DOENÇA MENINGOCÓCICA

Definição e aspectos epidemiológicos

A designação de doença meningocócica engloba as situações clínicas associadas à infecção pela Neisseria meningitidis ou meningococo. Trata-se dum importante problema de saúde pública mundial, estimando-se 500.000 casos por ano, do que resultam 50.000 óbitos.

A incidência de doença meningocócica relatada pelos Centers for Disease Control and Prevention em 2006 referente aos EUA foi de 0,3 casos/100.000 habitantes e, em 2011, de 0,2/100.000; tal indicador varia conforme o grupo etário: mais elevada incidência em crianças com menos de 1 ano, – 6,4/100.000. Em determinadas zonas do mundo são atingidos valores de 14/100.000/ano. A doença invasiva aparece mais frequentemente em crianças pequenas (~ 9/100.000 no primeiro ano de vida ~ 25 casos/100.000 nos primeiros 4 meses de vida).

Em Portugal, no quinquénio 2003-2007, foram notificados 387 casos de doença meningocócica, ocorrendo 26% dos casos em crianças com menos de 1 ano, 34% entre 1-4 anos e 18% entre 5 e 14 anos. A doença tem no nosso país um carácter esporádico, com casos ocorrendo ao longo do ano, com maior frequência no Inverno e Primavera, não havendo relato de qualquer epidemia (definida como o aparecimento de > 3 casos no período de 3 meses na mesma comunidade e > 10 casos/100.000 pessoas) ou surto em anos recentes.

Os dados nacionais mais recentes da vigilância epidemiológica de base laboratorial do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (IRJ), mostram uma redução da incidência global da doença invasiva meningocócica (DIM) de 1,99 casos por 100.000 habitantes em 2003, para 0,53 em 2014 e 0,41 em 2016. Esta descida poderá ser explicada pela natureza cíclica da doença causada pelo meningococo B e pela utilização da vacina contra o meningococo C.

De realçar que a incidência de DIM é máxima nos lactentes (com redução nos últimos anos: 24 por 100.000 habitantes de 2008 a 2013 para 15,8 em 2014), diminui de forma acentuada até a adolescência e mantém-se relativamente estável, em valores baixos, durante a idade adulta.

Na última década, o serogrupo predominante foi sempre o B, com percentagens que variaram, entre 47,9% e 90,5%, respectivamente, em 2003 e 2008.

Em 2015 e 2016, respectivamente 72,7% e 77,5% das estirpes identificadas pertenciam a este serogrupo (B), com um número total de casos tendencialmente crescente.

Os dados de distribuição por grupo etário mostram que a DIM causada pelo serogrupo B tem um perfil característico, com um pico de incidência aos 6 meses de idade. Em crianças com menos de 1 ano de idade, entre 2003 e 2013, 67,1% (159/237) dos casos de DIM causados pelo grupo B ocorreram até aos 6 meses de idade, inclusivé.

Em Portugal foram realizados dois estudos para avaliação da taxa de colonização numa população de estudantes universitários, na mesma área geográfica, em anos diferentes, utilizando a técnica da polymerase chain reaction (PCR).

No primeiro estudo, em 2012, a taxa de colonização global foi de 14,5%, correspondendo 2,5% ao grupo B. No segundo estudo, em 2016, as respectivas taxas foram 12,5% e 1,7%.

A taxa de letalidade global por DIM entre 2003 e 2014 variou entre 2,2% e 10,6% (média <> 7,0%), salientando-se que a referida taxa é crescente a partir dos 45 anos, verificando-se proporções superiores a 30%.

Situações associadas a doenças crónicas, infecções por vírus, especialmente influenza, condições precárias higiénicas, socioeconómicas e habitacionais com convívio promíscuo, exposição ao fumo do tabaco e hábitos tabágicos constituem factores de risco.

No RN a doença surge raramente.

Etiopatogénese

Considerando a relação entre hospedeiro humano e microrganismo, existem diversas variantes quanto ao efeito deste sobre aquele: 1) estado de colonização assintomática da orofaringe ou de portador; o estado de portador assintomático por um período geralmente curto é mais frequente no adolescente e adulto jovem e constitui um factor de disseminação da infecção; 2) infecções localizadas; 3) doença invasiva, sem dúvida a mais frequente e mais grave, cursando por vezes de modo agudo e fulminante, podendo conduzir à morte em poucas horas.

Na maior parte dos casos a colonização da nasofaringe resulta em resposta do organismo hospedeiro com formação de anticorpos (IgM, IgG e IgA), o que confere imunidade natural (protecção) contra diversos serótipos. Numa minoria de casos, especialmente nas crianças pequenas, N. meningitidis penetra na mucosa e, atingindo a circulação sanguínea, causa doença sistémica. A colonização intestinal de enterobacteriáceas produz o mesmo efeito de protecção (imunidade cruzada). A estirpe não patogénica (N. lactamica) confere igual protecção.

O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.

As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais seis – A, B, C, W (anteriormente designada W135), X, e Y – são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica.

Cada serogrupo divide-se em serótipos e subtipos em função das proteínas porinas da membrana externa (porA e porB, respectivamente), que contribuem para a virulência do microrganismo. O imunotipo é definido pela estrutura do lipo-oligossacárido/LOS ou endotoxina, crucial na cascata inflamatória activada através do Toll-like 4 receptor (TLR-4).*

*O Toll-like receptor 4 (Receptor TLR-4) é uma proteína codificada pelo gene TLR-4. Reconhecendo determinados compostos como por exemplo o lipopolissacárido (LPS), um componente presente em muitas bactérias Gram-negativas, é responsável pela activação do sistema imune inato.

A cápsula contendo, na sua composição, polissacáridos tem capacidade para resistir à fagocitose e à acção de depuração, com a participação do ferro através da lactoferrina e transferrina.

Através de técnicas genéticas concluiu-se que existem sete linhagens hiperinvasivas, causadoras da maior parte dos casos de doença meningocócica invasiva.

De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~ 1-3/100.00 nas duas últimas décadas) e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento, os quais têm registado incidência anual de ~ 25 casos/100.000.

A nível mundial, em diversos continentes, e relativamente aos serogrupos, verifica-se a seguinte distribuição predominante: América do Norte: B, C, Y; América do Sul, Austrália e Europa: B, C; Ásia: A, B, C; África: A, W, C, X.

Da interacção meningococo – célula endotelial – complemento resulta a produção de citocinas pró-inflamatórias- TNF-alfa, IL-1 beta, IL-7, IL-8, e activação das vias intrínseca e extrínseca da coagulação culminando em CID e vasculite difusa. O LOS, com acção antigénica, induz a produção de IL-12 e resposta de tipo Th1. São também produzidos anticorpos bacterianos contra o polissacárido capsular, as proteínas da camada externa da membrana e o próprio LOS.

A transferência de IgG materno-fetal confere protecção ao lactente nos primeiros 3 meses de vida; contudo, o défice de complemento confere risco aumentado de meningococcémia em tais crianças.

Como factores de risco de doença meningocócica grave/invasiva, descrevem-se como principais: infecção respiratória vírica prévia, défice congénito de properdina ou factor D, défice congénito de componentes terminais do complemento (C5-C9) e contacto com pessoa afectada pela doença.

Manifestações clínicas

O espectro clínico da doença meningocócica varia muito, desde o estado de portador assintomático, à forma aguda fulminante, levando à morte após escassas horas de evolução. As formas mais frequentes são a meningite (30%-50% dos casos) e a septicémia/sépsis.

Outras formas clínicas incluem bacteriémia sem sépsis, sépsis com ou sem meningite, pneumonia, bacteriémia crónica e bacteriémia oculta e infecções focais com diversas localizações.

As entidades meningite meningocócica e sépsis meningocócica, acompanhada ou não de meningite integram o conceito da chamada doença invasiva. (ver adiante “diagnóstico de meningococcémia)

Uma vez que aspectos gerais da meningite bacteriana relacionada com N. meningitidis foram abordados em capítulo anterior (meningite bacteriana pós-neonatal), o objectivo essencial deste capítulo é incidir sobre a sépsis meningocócica e outras manifestações de gravidade aparentemente intermédia.

  1. O quadro clínico de apresentação mais comum integra a febre acompanhada de exantema petequial na proporção variável entre 28% e 77% dos casos, com predomínio no tronco e extremidades inferiores (início como exantema maculopapular convertendo-se em petéquias após algumas horas. Nos casos graves, estas lesões podem evoluir para equimoses e púrpura disseminada, embora nem todos os casos letais evidenciem exantema. A febre está geralmente associada a mialgias, calafrios, vómitos, diarreia, rinite, disfagia e artralgias; este quadro pode coincidir com o aparecimento das lesões cutâneas.
  2. A bacteriémia/menigococcémia oculta manifesta-se por febre associada ou não a outros sintomas, sugerindo quadro de infecção vírica. A bacteriémia poderá regredir sem antibioticoterapia, ou evoluir para meningite ou para infecção focal com diversas localizações.
  3. Outras manifestações incluem sintomatologia associada a infecções focais: pneumonia com ou sem derrame, artrite séptica com isolamento do meningococo do líquido sinovial, artrite reactiva, estéril, de etiopatogénese imunológica, pericardite, miocardite, etc..
  4. A meningococcémia crónica constitui uma forma de apresentação rara, caracterizada por febre, artralgias, aspecto geral “não tóxico”, cefaleias, e exantema. A sintomatologia é intermitente, podendo durar cerca de 6 a 8 semanas. As hemoculturas são geralmente positivas, embora inicialmente estéreis. Nos casos não tratados poderá surgir meningite.
  5. As manifestações que sugerem o quadro da sépsis meningocócica na sua fase inicial são: febre, lesões cutâneas, e mau estado geral de instalação aguda. Por parte do clínico, reitera-se que deverá existir um elevado índice de suspeita no âmbito da avaliação de cada caso.

Tratando-se de criança mais pequena (lactente), as lesões cutâneas associadas ao mau estado geral podem constituir a primeira suspeita. As mesmas podem ser constituídas por petéquias localizadas ou disseminadas e confluentes, purpúricas.

As lesões petequiais iniciais em poucas horas aumentam em número e podem evoluir para exantema purpúrico equimótico (púrpura fulminante) com consequentes sequelas de necrose em vários territórios do organismo, podendo culminar em amputação das extremidades e obrigando a enxertos. Pode deduzir-se que, quanto mais rápida a evolução, pior o prognóstico. (Figura 3 do Capítulo sobre CIVD)

O mau estado geral corresponde a situação de choque, razão pela qual é importante pesquisar os respectivos sinais (oligúria, má perfusão periférica com tempo de reposição de circulação capilar pós-compressão da pele > três segundos, taquicárdia, taquipneia) – choque compensado. Com a evolução da situação pode passar-se para a fase de descompensação do choque potencialmente fatal, traduzida essencialmente por hipotensão arterial e falência multiorgânica.

As situações acompanhadas de insuficiência suprarrenal aguda integram a chamada síndroma de Waterhouse-Friderichsen.

Salienta-se que:

  • as formas subagudas e crónicas de doença meningocócica são raras (ver adiante);
  • em 80% dos casos, a doença meningocócica é acompanhada de sinais clínicos sugestivos;
  • o agente meningitidis é isolado do sangue em cerca de 2/3 dos casos de doença, em cerca de 50% do LCR e, em ~ 1%, do líquido articular.

Diagnóstico

O diagnóstico de meningococcémia baseia-se no isolamento da N. meningitidis do sangue, LCR, líquidos sinovial, pleural, pericárdio e lesões da pele por “técnicas de raspagem”.

Tal como noutras formas de sépsis a positividade dos exames culturais depende de vários factores, designadamente o eventual início de antibioticoterapia prévia e condições da colheita do produto a analisar.

A propósito da sépsis, cabe referir que estão indicados, em princípio, os exames complementares descritos a propósito de sépsis e meningite; salienta-se, no entanto, o interesse da PCR (técnica molecular de reacção em cadeia da polimerase) que permite aumentar a taxa de confirmação diagnóstica e quantificar a carga bacteriana com valor no prognóstico. Por outro lado, considerada a elevada probabilidade de CIVD, aconselha-se a consulta do capítulo sobre este tópico.

No que respeita a marcadores clássicos de gravidade em infecções sistémicas, determinados estudos demonstraram que, no caso da doença meningocócica, a procalcitonina (PCT) tem maior especificidade e sensibilidade que a proteína C reactiva (sigla igual à referida anteriormente para a reacção em cadeia da polimerase), considerando como valores de corte/cut off respectivamente 2 ng/mL (PCT) e 3 mg/dL (Prot CR). No que respeita à PCT, em situações de normalidade as concentrações séricas são geralmente < 0,01 ng/mL, em situações inflamatórias ligeiras, eventualmente de causa vírica raramente > 1 ng/mL, e em situações de doença menigocócica ou de infecção sistémica grave, em geral > 500 ng/mL.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se com outras causas de sépsis ou meningite (por enterobacteriáceas, S. pneumoniae, S. aureus, etc.) e de exantemas petequiais relacionados com infecções víricas, infecções por S. viridans, púrpura de Henoch-Schonlein, síndroma hemolítica urémica, púrpura trombocitopénica idiopática, reacções farmacológicas, etc..

Tratamento

Os aspectos do tratamento a propósito da meningite bacteriana, choque e coagulação intravascular disseminada, são aplicáveis à sépsis meningocócica.

O tratamento empírico deve iniciar-se imediatamente ante a suspeita de doença meningocócica. De facto, o tratamento antibiótico pré-hospitalar com estabilização hemodinâmica (prioritários), seguido de transporte medicalizado para hospital com unidade de cuidados intensivos, têm contribuído para melhorar o prognóstico, diminuindo a mortalidade e as sequelas.

Sintetizam-se aqui aspectos essenciais da antibioticoterapia que, reitera-se, se deve iniciar precocemente em regime de internamento hospitalar:

→ de eleição

  • penicilina G via IV (250.000-400.000U/kg/ dia IV em 4-6 doses);
  • cefotaxima via IV (200 mg/kg/dia) em 4-6 doses;
  • ceftriaxona via IV (100 mg/kg/dia) em 2 doses;
  • ampicilina via IV (200-400 mg/kg/dia) em 4-6 doses.

→ de alternativa (se alergia grave a beta-lactâmicos)

  • ciprofloxacina via IV (18-30 mg/kg/dia) em 2-3 doses;
  • meropenem via IV (60-120 mg/kg/dia) em 3 doses;
  • cloranfenicol via IV (75-100 mg/kg/dia) em 4 doses.

A duração varia entre 5 e 7 dias.

Notas importantes:

    • Nalguns centros hospitalares com experiência e com o apoio de equipas médicas e de enfermagem de ambulatório e de cuidados continuados, em função do contexto clínico, está previsto o tratamento empírico em casos seleccionados de crianças com estado geral bom/não tóxico durante surtos de meningococcémia em regime extra-hospitalar.
    • Têm sido identificadas estirpes de N. meningitidis evidenciando resistência relativa à penicilina (CIM de penicilina <> 0,1-1,0 mcg/mL).
    • As estirpes de N. meningitidis produtoras de beta-lactamase são raras.

Prevenção

Medidas não imunológicas

As medidas não imunológicas incluem:

  • isolamento de doentes com doença invasiva;
  • quimioprofilaxia com rifampicina na dose de 20 mg/kg/dia (não excedendo 600 mg/dose), em 2 tomas diárias, durante 2 dias. No adulto a dose é 600 mg/dia, 1 toma diária. A profilaxia não é recomendada a grávidas.

Como alternativa, pode utilizar-se uma única injecção de ceftriaxona ou 1 dose oral de ciprofloxacina (neste último caso, somente a partir dos 18 anos).

Em Portugal, as infecções por meningococos são de notificação obrigatória. Todas estas medidas deverão ser comunicadas aos pais ou responsáveis pela criança, assim como a professores e educadores em geral.

Medidas imunológicas

Em Portugal, as vacinas meningocócicas C (Men C) e B (Men B) fazem parte do actual PNV, sendo que, esta última, a partir de 2020.

Existem, também, comercializadas vacinas polissacarídeas anti-N. meningitidis dos grupos A, C, W e Y (Men ACWY- vacina conjugada tetravalente, por ex. Nimenrix®), designadamente para indivíduos residentes ou que façam viagens para áreas endémicas ou epidémicas.

A Comissão de Vacinas da Sociedade Portuguesa de Infecciologia Pediátrica, ramo da Sociedade Portuguesa de Pediatria (CV-SPP/SIP), recomenda igualmente a administração da referida vacina conjugada nas seguintes situações: as crianças e adolescentes com asplenia anatómica ou funcional, hiposplenismo, défice congénito do complemento e submetidas a tratamento com inibidores do complemento (Eculizamab).

Segundo a referida CV, a administração duma dose de Men ACWY aos 12 meses de idade dispensa a administração da Men C incluída no PNV. A mesma pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade.

Prognóstico

A taxa de mortalidade da doença meningocócica invasiva situa-se entre 5%-10%, sendo que os óbitos se verificam predominantemente nas situações de elevada carga bacteriana infectante.

Constituem factores de mau prognóstico: hipotermia, hipertermia, hipotensão, choque, púrpura fulminante, convulsões, leucopénia, trombocitopénia, CIVD, acidose, e elevados níveis circulantes de TNF-alfa e de endotoxinas. A presença de petéquias de início precoce (< 12 horas), ausência de meningite e baixa ou normal velocidade de sedimentação, são indicadores de rápida progressão da doença e de prognóstico mau.

Após resolução de episódio de infecção meningocócica aguda está indicado o rastreio de défice de complemento, sobretudo na segunda infância e adolescência, dado o risco de recorrência de infecções graves, caso se verifique tal défice.

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TOSSE CONVULSA

Definição e importância do problema

A tosse convulsa típica é uma doença infecciosa aguda do tracto respiratório provocada pela bactéria Gram-negativa Bordetella pertussis e, menos frequentemente, parapertussis.

Doença altamente contagiosa, é caracterizada fundamentalmente por acessos curtos e súbitos de tosse, por vezes emetizante; conhecida no Oriente por tosse dos 100 dias, só foi descrita no século XVI e apenas no século XIX isolado o agente Bordetella pertussis. Acompanha-se de morbilidade e mortalidade importantes, especialmente em crianças com idade inferior a três meses.

A tosse convulsa na era pré-vacinal era uma doença quase exclusiva da criança em idade pré-escolar e escolar. A vacinação universal contra a referida doença teve influência na epidemiologia que se traduziu por desvio etário. De facto, a doença actualmente atinge o pequeno lactente não vacinado ou incompletamente vacinado, o adolescente e o adulto jovem; como facto relevante regista-se que nos últimos anos se tem verificado uma incidência crescente. Apesar de uma taxa de cobertura vacinal elevada (86% a nível mundial em 2014), continua a ser um importante problema de saúde pública.

De acordo com estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2008 ocorreram cerca de 16 milhões de casos de tosse convulsa no mundo, dos quais mais de 95% ocorreram em países em vias de desenvolvimento, resultando na morte de 195.000 crianças. Em 2014 foram reportados 139.786 casos em todo o mundo, estimando-se o número de 89.000 mortes pela doença.

Aspectos epidemiológicos

A tosse convulsa é uma doença endémica em todo o mundo, com ciclos epidémicos que ocorrem a cada quatro a cinco anos, com duração aproximada de 12 a 18 meses, o que sugere que a vacinação não impede a circulação do agente.

Sendo o agente Bordetella pertussis patogénico humano exclusivo, o contágio faz-se através do contacto com gotículas do tracto respiratório de indivíduos com a doença. O grau de contagiosidade é extremamente elevado, podendo atingir 90%-100% dos contactos intradomiciliários susceptíveis. Mesmo em doentes imunocompetentes e vacinados, a percentagem de indivíduos com doença subclínica pode atingir 80%. Os portadores assintomáticos, descritos por vezes nos surtos, não são responsáveis pela transmissão da doença, uma vez que não tossem activamente.

A generalização da vacinação contra Bordetella pertussis no início da década de 1940 traduziu-se por franco declínio do número de casos e mortes. Com efeito, nos Estados Unidos da América (EUA) a mortalidade passou de 155 para 0,5 mortes/100.000 habitantes; em Portugal, após a introdução da vacinação em 1965, passou de 55 para 3 mortes/100.000 habitantes.

Apesar da diminuição da incidência com a vacinação universal, nos últimos anos tem-se assistido à re-emergência da doença. Em Portugal as notificações passaram de 32 casos durante o ano de 2011, para 225 em 2012, dos quais, 181 ocorreram durante o primeiro ano de vida e resultaram em 4 mortes. Em 2014 o número de casos voltou a diminuir: 74 casos.

O incremento das notificações poderá decorrer, não só do uso de exames de diagnóstico cada vez mais sensíveis, de programas de vigilância mais adequados, e da diminuição da subnotificação, mas também dum aumento real do número de casos.

Em Portugal, entre 2010 e 2013 (4 anos) foram notificados 385 casos, dos quais 309 (80%) ocorreram no primeiro ano de vida. Estes casos correspondem provavelmente a crianças contagiadas por adolescentes e adultos jovens que, por terem perdido a imunidade conferida pela vacina, adquiriram doença atípica, por vezes dificilmente diagnosticável. É de notar que a vacina não é 100% efectiva e a imunidade conferida pela vacina ou doença, não é permanente. As crianças nascem sem imunidade passiva para B. pertussis, o que significa que RN e lactentes são altamente vulneráveis até que o esquema vacinal se complete, em geral aos 6 meses de idade.

Etiopatogénese

O agente Bordetella pertussis é um coco-bacilo Gram-negativo, aeróbio, pleiomórfico, que sobrevive apenas algumas horas nas secreções respiratórias e que necessita de meios especiais para cultura, sendo os humanos o seu reservatório exclusivo. Pertence ao género Bordetella, o qual engloba oito espécies adicionais: Bordetella parapertussishu (infectando humanos), Bordetella parapertussisov (infectando ovelhas), Bordetella bronchiseptica (que causa doença respiratória em imunocomprometidos), Bordetella avium, Bordetella hinzii, Bordetella trematum, Bordetella holmesii e a mais recentemente descrita Bordetella petrii. Apesar de filogeneticamente semelhantes, estas espécies têm diferentes hospedeiros.

A transmissão ocorre por inalação de gotículas infectadas com Bordetella pertussis. Esta bactéria adere ao epitélio ciliado da nasofaringe, multiplica-se e dissemina-se pelo epitélio ciliado das vias aéreas inferiores. Num pequeno número de casos pode atingir o alvéolo e provocar pneumonia.

Os aspectos moleculares e celulares da patogénese da infecção por Bordetella pertussis são muito complexos e alguns ainda mal conhecidos. Esta bactéria produz diversas substâncias biologicamente activas (Quadro 1), com capacidade antigénica e de virulência, o que tem como resultado lesão celular, doença sistémica e interferência com os mecanismos de defesa do organismo. Muitas destas substâncias activas são imunogénicas e têm sido incluídas como componentes das vacinas acelulares disponíveis no mercado.

QUADRO 1 – Bordetella pertussis (Bp): alguns componentes moleculares biologicamente activos.

Componentes antigénicos Actividade biológica
    • Toxina pertussis (PT)
    • Hemaglutinina filamentosa (FHA)
    • Pertactina (PTN)
    • Fimbriae (aglutinogénios)
    • Toxina da adenilciclase (ACT)
    • Lipopolissacárido – endotoxina (LPS)
    • Factor de colonização traqueal ou citotoxina traqueal (TCT)
    • Toxina termolábil dermonecrótica
    • (HLT ou DNT)
    • Endotoxinas, factores de grande virulência com interferência em vários mecanismos imunológicos do hospedeiro; promovem a linfocitose associada à doença
    • Adesão ao epitélio ciliar; existem vários tipos; certas Bp poderão não conter fimbriae, outras conter fimbriae 2, fimbriae 3, ou fimbriae 2 e 3, etc.; interacção com integrina, regulando a expressão do receptor do complemento (CR3)
    • Citotóxica; afectando a fagocitose
    • Reacções locais, febre, e reacções observadas com a vacina de célula completa (holocelular) (ver adiante)
    • Efeito citopático na mucosa traqueal
    • Lesão da mucosa; responsável por alguns dos sintomas da fase catarral (consultar texto)
Com o tempo têm sido identificadas alterações genéticas relacionadas com os certos componentes antigénicos, nomeadamente PT, PTN e fimbriae.


FHA e alguns aglutinogénios (especialmente fimbriae tipos 2 e 3 e pertactina) são fundamentais para a adesão da bactéria às células epiteliais respiratórias. TCT e PT inibem provavelmente o processo de depuração da bactéria; por sua vez, TCT, HLT e DNT são responsáveis pela lesão epitelial (que origina sinais e sintomas respiratórios), permitindo a absorção de PT.

Os genes que determinam a virulência das várias espécies têm afinidades em termos de ADN, sendo que somente o germe B. pertussis produz PT.

Manifestações clínicas

Na sua forma típica (clássica) os sinais e sintomas são muito sugestivos. O diagnóstico de tosse convulsa é, pois, essencialmente clínico, sendo necessário um grau de suspeição elevado, nomeadamente quando a apresentação é atípica.

Nas formas típicas o diagnóstico é fácil, permitindo o início da terapêutica antes da confirmação laboratorial.

Após um período de incubação habitualmente de 7 a 10 dias (pode prolongar-se até 20 dias), a doença, na sua descrição clássica, tem 3 fases distintas:

  1. Fase catarral, com duração de 1-2 semanas, caracterizada por rinorreia serosa e obstrução nasal, acompanhadas por tosse seca esporádica (a partir da segunda semana) e lacrimejo. A febre é inconstante e, quando presente, é baixa. Ao contrário das outras infecções do tracto respiratório superior, ao fim destes 10-14 dias há um aumento da intensidade e frequência da tosse.
  2. Fase paroxística, com duração de 2-8 semanas, caracterizada por aumento gradual dos acessos de tosse os quais passam a ocorrer, tal como foi referido antes, em paroxismos típicos e muito característicos, com uma série de acessos de tosse no mesmo ciclo expiratório, muitas vezes acompanhados por engasgamento, protusão da língua, cianose e plétora facial, ocorrendo frequentemente vómito pós-tússico; tais acessos são seguidos por um “guincho ou silvo” inspiratório característico, que corresponde à passagem de ar pela glote, ainda parcialmente encerrada.
    Estes episódios, que podem ser espontâneos ou desencadeados por estímulos (como a alimentação ou frio), aumentam de frequência e intensidade ao longo da primeira e segunda semanas desta fase; estabilizam nas 2 a 3 semanas seguintes e diminuem gradualmente nas semanas que se seguem. As possíveis complicações da doença, descritas adiante, ocorrem nesta mesma fase.
    A contagiosidade é máxima durante a fase catarral e nas 2 primeiras semanas da fase paroxística.
  3. Fase de convalescença, pode durar semanas a meses, ao longo das quais ocorre diminuição progressiva da tosse.

Nas formas atípicas (ocorrendo em geral no pequeno lactente) a fase catarral está muitas vezes ausente ou é muito curta. Os paroxismos de tosse com congestão facial podem surgir apenas durante as refeições, estando a criança assintomática nos intervalos, e sendo o guincho característico muito pouco comum. No entanto, as complicações da doença, nomeadamente a apneia e bradicárdia, são mais frequentes.

No adolescente e adulto jovem, na maioria dos casos, a doença é atípica, manifestando-se por tosse persistente, o que dificulta o diagnóstico. Apesar de nestas faixas etárias a forma clínica ser benigna, é real o contágio ao lactente não vacinado ou sem primo-vacinação completa.

Em suma, o diagnóstico deverá ser ponderado em qualquer criança com tosse com a duração de, pelo menos, 14 dias, especialmente se não coexistir febre, exantema, enantema, e rouquidão. (Figura 1)

FIGURA 1. Cronologia da sintomatologia e exames complementares.

Complicações

As complicações mais graves da doença ocorrem na fase paroxística e decorrem essencialmente da hipóxia ou do aumento de pressão venosa por mecanismo semelhante ao da manobra de Valsalva durante os acessos de tosse. São muito mais frequentes nas crianças com idade inferior a três meses. A complicação mais comum é a pneumonia secundária (cerca de 13%), mas são descritas outras:

  1. Complicações do SNC: convulsões, encefalopatia, hemorragia subaracnoideia e intraventricular, síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética.
  2. Complicações nutricionais por vómitos, diminuição da ingesta e desidratação.
  3. Complicações cárdio-respiratórias: apneia, bradicárdia, cianose, hipertensão pulmonar, pneumotórax, pneumonia primária.
  4. Outras complicações: hemorragias conjuntivais, petéquias da face e tronco, epistaxe, hérnia umbilical e inguinal, prolapso rectal, laceração do freio da língua.

A tosse convulsa maligna, com evolução muito rápida, caracteriza-se por uma combinação de pneumonia, falência respiratória, leucocitose grave, envolvimento neurológico e hipertensão pulmonar. Culmina em morte em 75% dos casos apesar das medidas terapêuticas intensivas.

Exames complementares

Na tosse convulsa, o hemograma típico da fase catarral demonstra muitas vezes um valor aumentado dos leucócitos (15.000-100.000 cél/µL) com linfocitose e sem eosinofilia (como acontece na infecção por Chlamydia trachomatis). Os valores de linfocitose estão directamente relacionados com a gravidade da doença.

A radiografia do tórax poderá não evidenciar qualquer sinal de alteração, ou pode apresentar infiltrados peri-hilares inespecíficos ou atelectasia.

Embora o diagnóstico de tosse convulsa seja clínico, existem vários exames para confirmação da infecção:

  1. Exame cultural
    Apesar de continuar a ser considerado o método gold standard para o diagnóstico, o exame cultural tem vindo a ser substituído pelas técnicas de biologia molecular. Isto, porque a sua sensibilidade é baixa (especialmente após a fase catarral), o que se deve às características delicadas do agente e à difícil técnica de colheita.
    Recorda-se a propósito que o local de eleição para recolha do material deve ser a nasofaringe e não as fossas nasais, e que existe necessidade de zaragatoas específicas e de meios de transporte e cultura particulares. Além da baixa sensibilidade, o tempo de resposta é mais longo em comparação com os exames de biologia molecular.
  2. Polimerase Chain Reaction (PCR) ou reacção em cadeia da polimerase
    A utilização desta técnica de diagnóstico molecular tem vindo a ser cada vez maior, com as seguintes vantagens: – possibilidade na obtenção de resultados mais precoces e de utilização até mais tarde no decurso da doença; – não influência da antibioticoterapia prévia; – elevada sensibilidade, uma vez que o resultado é independente de existirem microrganismos viáveis ou de um inóculo importante.
    A sua maior limitação é a baixa especificidade.
  3. Imunofluorescência directa
    Esta ténica é usada para a detecção nas secreções respiratórias de Bordetella pertussis, através de anticorpos marcados. Com menor especificidade e sensibilidade do que o exame cultural e a PCR, é muito pouco utilizada, para além de que não é aceite como comprovativo de infecção.
  4. Estudo serológico
    A infecção por Bordetella pertussis desencadeia um aumento da concentração sérica de IgA e IgG para os antigénios de superfície (sendo que a IgM não tem significado diagnóstico na tosse convulsa). São necessárias duas colheitas de sangue para as serologias: uma na fase aguda e outra na fase de convalescença. A duplicação dos títulos de anticorpos (quantificação pelo método de ELISA) entre estas duas amostras tem elevada especificidade, apesar de fraca sensibilidade. Um valor de IgG anti-Bp >100 EU/ml também ajuda para o diagnóstico. De salientar, contudo, que permite o diagnóstico apenas nas semanas terminais da fase paroxística ou na fase de convalescença. Outras limitações do estudo serológico são:
    • diferente resposta individual, dependente da idade (crianças com menos de 3 meses podem não ter ainda capacidade imunológica para uma subida do título dos anticorpos);
    • interferência nos resultados, decorrente de exposição prévia ao microrganismo ou aos seus antigénios pela vacinação, tornando extremamente difícil a sua aplicação e interpretação.

O Center for Disease Control (CDC) recomenda a seguinte combinação de exames complementares para a comprovação diagnóstica de tosse convulsa:

  1. Nas primeiras quatro semanas de doença (três semanas de tosse): cultura e PCR.
  2. Tosse com duração de três ou quatro semanas: PCR e estudo serológico.
  3. Tosse com duração superior a quatro semanas: estudo serológico.

De notar que a tosse convulsa é uma doença de declaração obrigatória (DDO), devendo igualmente ser notificados todos os casos prováveis ou confirmados.

Diagnóstico diferencial

A infecção por Bordetella parapertussis é muito semelhante à doença provocada pela Bordetella pertussis. O hemograma (linfocitose igual ou superior a 10.000/uL é muito sugestiva de infecção por Bordetella pertussis); exames culturais ou PCR positivos para B. pertussis, permitirão o diagnóstico definitivo.

Outras infecções respiratórias que decorrem com tosse, por vezes acessual, podem dever-se a Chlamydia trachomatis, Chlamydia pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae, infecções por vírus respiratório sincicial, adenovírus e vírus parainfluenza.

Há ainda que considerar a tosse espasmódica que pode surgir no decurso de pneumonia bacteriana, fibrose quística, tuberculose, assim como nas situações de compressão extrínseca da traqueia e brônquios, ou de aspiração de corpo estranho. Nestes casos, uma anamnese cuidadosa e os exames complementares permitem, habitualmente, um diagnóstico diferencial rápido e correcto. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Tosse convulsa (por B. pertussis): diagnóstico diferencial.

Infecções víricas
Vírus sincicial respiratório (VSR); vírus parainfluenza; adenovírus; influenza A e B; rhinovirus; coronavírus
Infecções bacterianas
Bordetella parapertussis; Chlamydia trachomatis; Chlamydia pneumoniae; Mycoplasma pneumoniae
Causas não infecciosas
Refluxo gastresofágico, aspiração de corpo estranho

Tratamento

As crianças com menos de 6 meses ou com doença grave requerem hospitalização. Os doentes deverão ser mantidos isolados (transmissão por gotículas – quarto individual e máscara) até 5 dias após o início da antibioticoterapia.

Os principais critérios para internamento são: incapacidade de alimentação, sinais de dificuldade respiratória (retracção intercostal, taquipneia e cianose), convulsões ou más condições sociais. Por vezes, principalmente na criança com menos de 3 meses, é necessário o internamento em unidades de cuidados intensivos. Nos casos de insuficiência respiratória e hiperleucocitose (> 50.000 leucócitos/uL) deverá ser avaliada a possibilidade de realização de ECMO (extra-corporeal membrane oxigenation).

O tratamento de suporte é fundamental, com suprimento calórico e fluidoterapia ajustados às necessidades, uma vez que tais doentes têm frequentemente extrema dificuldade em se alimentar.

A terapêutica antibiótica (resumida no Quadro 3) deve ser iniciada numa fase precoce, o que contribui para uma diminuição da gravidade e duração dos sintomas, assim como da transmissão da doença aos contactos susceptíveis. Deverá ser instituída se houver uma suspeita clínica fortemente sugestiva, não se esperando pela confirmação do diagnóstico através dos meios de diagnóstico atrás descritos.

Broncodilatadores, glicocorticóides e antitússicos não têm qualquer papel no tratamento da doença.

QUADRO 3 – Tratamento antimicrobiano da tosse convulsa.

  Terapêutica Primária Terapêutica Alternativa
Grupo etário Azitromicina Eritromicina Claritromicina Cotrimoxazol
TMP – SMX
< 1 mês 10 mg/kg/dia, 24/24h; 5 dias Não recomendada Não recomendada Contraindicado em lactentes com < 2 meses
1-5 meses 10 mg/kg/dia, 24/24h; 5 dias 40 a 50 mg/kg/dia, 6/6h; 14 dias 15 mg/kg/dia,
12/12h; 7 dias
> 2 meses: Cotrimoxazol
TMP 8/SMX 40 mg/Kg/dia 12/12h; 14 dias
> 6 meses D1: 10 mg/kg/dia (máximo: 500 mg)
D2-5: 5 mg/kg/dia
(máximo: 250 mg)
24/24h
40 a 50 mg/kg/dia, 6/6h, (máximo: 2 g/dia); 14 dias 15 mg/kg/dia,12/12h
(máximo: 1 g/dia);
7 dias
Cotrimoxazol
TMP 8/SMX 40 mg/Kg/dia 12/12h
14 dias
Adolescentes/ Adultos D1: 500 mg
D2-5: 250 mg
24/24h
2000 mg/dia 8/8h;
14 dias
1000 mg/dia 12/12h;
7 dias
Cotrimoxazol
TMP 320/SMX 1600 mg/dia 12/12h 14 dias

Com o objectivo de evitar a transmissão secundária, para além do tratamento do caso índex, é recomendada a profilaxia dos contactos íntimos com macrólido, independentemente da idade e do estado vacinal. Nas crianças com idade igual ou inferior a 6 anos e com atraso vacinal deve ser actualizado o esquema de vacinação.

Prevenção

A imunização universal de crianças, começando na primeira infância e com reforços periódicos, constitui a base essencial da contenção da doença por B. pertussis.

Efectivamente, nos países industrializados a introdução da vacina na década de 40 permitiu uma diminuição da incidência da doença, da sua morbilidade e mortalidade. A primeira vacina utilizada foi a de célula completa Pw (DTPw ou vacina antipertussis associada à antidiftérica e antitetânica).

No entanto, pelo elevado número de efeitos adversos associados, foi interrompida nalguns países. Este procedimento teve consequências: recomeçaram grandes epidemias de tosse convulsa.

Os estudos epidemiológicos subsequentes demonstraram que o risco da doença excedia largamente o risco da vacinação, pelo que a DTPw foi reintroduzida na maioria dos países que a tinham suspendido. Grande parte das reacções adversas à DTPw deve-se ao seu conteúdo em endotoxina.

De forma a contornar esta problemática, surgiram as vacinas acelulares (DTPa), nas quais são utilizados apenas alguns antigénios da Bordetella pertussis, o que consequentemente levou a menor frequência de reacções adversas, conquanto associada a menor imunogenicidade e eficácia relativamente à DTPw. Assim, a DTPa não está recomendada em crianças com mais de 7 anos.

Os objectivos para o controlo da tosse convulsa a nível europeu estão definidos pela OMS desde 1993; entre outros, atingir em cada país a incidência inferior a 1/100.000. Portugal atingiu essa taxa em 1997, passando de 1,6 para 0,34/100.000. De salientar que, com tal estratégia, o nível de endemicidade manteve-se, com picos regulares.

Em Portugal, em 1965 foi introduzida no PNV a vacina combinada contra a tosse convulsa do tipo célula inteira (DTPw), sendo substituída em 2006 pela vacina pertussis acelular (DTPa).

Entretanto, passou a verificar-se o chamado efeito perverso da vacinação, com desvio etário da doença, quer no pequeno lactente não vacinado ou incompletamente vacinado, quer nos adolescentes e adultos.

Com o desenvolvimento da tecnologia, começaram a surgir vacinas acelulares com menor dose antigénica (símbolo pa em oposição ao convencional Pa) (Boostrix®), e com uma imunogenicidade semelhante à das vacinas utilizadas para a vacinação primária (DTPa), podendo ser utilizadas no adolescente e adulto em função da realidade epidemiológica local ou regional.

As estratégias a adoptar para controlo da re-emergência da tosse convulsa não consensuais, começaram a ser adoptadas nalguns países:

1. Vacinação da grávida

A passagem transplacentar de anticorpos é máxima às 34 semanas de gravidez. Embora a correlação entre os níveis de anticorpos e a seroprotecção não esteja ainda estabelecida, admite-se que aquela confere protecção passiva no primeiro mês de vida.

Desde 2012 os EUA e o Reino Unido adoptaram a vacinação de grávidas contra a tosse convulsa entre as 28 e as 38 semanas de gestação. Os estudos realizados pelos programas de vigilância de efeitos adversos destes países demonstraram que a vacina é segura e altamente eficaz na protecção do recém-nascido e pequeno lactente.

A vacinação da grávida parece ser a medida mais eficaz na prevenção da tosse convulsa em lactentes com menos de três meses; no entanto, é desconhecido se há interferência dos anticorpos maternos com a posterior resposta vacinal à DTPa no lactente.

2. Vacinação de recém-nascidos/antecipação da primovacinação

A imunização com DTPa no período neonatal parece interferir na resposta imunitária subsequente à tosse convulsa, não sendo recomendada. Antecipar a administração da DTPa para as 6 semanas tem sido proposto em vários países. Contudo, o impacte desta estratégia não está bem estabelecido.

3. Vacinação selectiva de familiares e contactos próximos do recém-nascido (cocooning)

Vários estudos sugerem que os lactentes são infectados pelos conviventes familiares em mais de 75% dos casos. Apesar de o efeito desta estratégia não estar ainda bem definido, a OMS recomenda a vacinação de adultos que tenham contacto próximo com recém-nascidos. Esta estratégia já foi adoptada na Austrália, EUA, França e Alemanha, sendo muito difícil de concretizar, não parece ser suficiente para diminuir a morbilidade no lactente pequeno nem a incidência global da doença.

4. Vacinação de adolescentes e adultos

Diminuir a doença nos adolescentes não parece trazer benefícios na redução de doença em lactentes. Tal facto poderá estar relacionado com a baixa cobertura vacinal ou com a reduzida interacção entre adolescentes e crianças. Por outro lado, o declínio da imunidade 6-10 anos após a vacinação na adolescência poderá levar a um aumento da susceptibilidade dos adultos em idade fértil. Para contornar esta problemática, alguns países sugerem reforços dos adultos a cada 10 anos com dTpa.

5. Vacinação selectiva de profissionais de saúde

São vários os estudos que têm sido publicados sobre surtos de infecção nosocomial em unidades de saúde, tendo os profissionais de saúde papel importante no contágio aos lactentes.

A OMS recomenda a vacinação dos profissionais de saúde, especialmente, de unidades de cuidados intensivos neonatais e maternidades. No entanto, não há estudos que avaliem o impacte desta medida.

Salienta-se que nenhuma das cinco estratégias descritas tem impacte significativo na redução global da doença e na morbilidade. Assim, perante o conhecimento actual, e de acordo com as recomendações internacionais (CDC e OMS), a comissão de vacinas da Sociedade de Infecciologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria recomenda:

  • A vacinação de jovens pais e conviventes que desejem reduzir o risco de infecção para os próprios e para os recém-nascidos com quem covivem; 

  • A vacinação de grávidas durante o terceiro trimestre (entre as 28 e 36 semanas da gravidez) durante surtos, tal como o que ocorre actualmente na Europa;
  • A vacinação de adolescentes e adultos como medida de protecção individual. 


Em suma, para avaliar o impacte de qualquer das estratégias abordadas, deverá existir um programa nacional de vigilância epidemiológica. Por outro lado, torna-se fundamental alcançar coberturas vacinais elevadas para garantir resultados eficazes em todos os grupos submetidos a vacinação na tentativa de eliminação da doença.

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INFECÇÕES POR HAEMOPHILUS INFLUENZAE

Definição e importância do problema

O agente Haemophilus influenzae é um cocobacilo, Gram-negativo e pleiomórfico, que necessita do factor X (hematina) e factor V (fosfopiridina nucleótido) para o seu crescimento. Algumas estirpes têm cápsula de polissacárido (cápsula polissacarídea), o principal determinante da virulência e da imunogenicidade.

Depois do pneumococo, agente Haemophilus influenzae é o mais prevalente na via respiratória superior sem causar doença; esta situação de colonização (60%-90% por estirpes não capsuladas) é designada por portador assintomático, agente Haemophilus influenzae. A espécie humana constitui o único reservatório.

As estirpes capsuladas, antigenicamente distintas, incluem seis serótipos (a, b, c, d, e, f). Haemophilus influenzae do tipo b (Hib) é o mais prevalente e causa de doença invasiva com septicémia, meningite, artrite séptica, celulite, epiglotite, pneumonia e empiema.

As estirpes não capsuladas ou não tipáveis associam-se a infecções não invasivas (das superfícies mucosas) como otite média, sinusite, bronquite, conjuntivite e alguns tipos de pneumonia, sendo que cerca de 30% dos casos de otite média aguda e sinusite são explicados pelo agente.

Aspectos epidemiológicos

Após a introdução da vacinação universal anti-Hib, a epidemiologia das infecções por Haemophilus influenzae modificou-se consideravelmente. Contudo, a doença provocada por este agente (incluindo doença invasiva) continua a ser responsável por uma variedade de entidades clínicas, comportando morbilidade e mortalidade elevadas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

O habitat natural deste microrganismo é a via respiratória superior do ser humano. A trasmissão ocorre de pessoa a pessoa, através da inalação de gotículas respiratórias, ou por contacto directo com secreções e gotículas de saliva.

Também pode ocorrer transmissão por via vertical, através da aspiração de líquido amniótico ou de secreções contaminadas do aparelho genital materno. Nestas circunstâncias, as estirpes em causa são distintas das que colonizam habitualmente o aparelho respiratório superior.

O período de incubação é desconhecido, sendo de salientar que pode haver múltiplas exposições ao microrganismo antes de a doença se manifestar.

Com a generalização das vacinas conjugadas, a incidência da doença invasiva diminuiu cerca de 90% nalgumas regiões do globo, sendo que os casos declarados da mesma se associam em geral a situações de imunização incompleta e a recém-nascidos.

A doença tem um carácter sazonal bimodal com um pico entre Setembro e Dezembro e Março e Maio.

A susceptibilidade à doença por Hib depende essencialmente da idade e correlaciona-se com a resposta imune. Durante os primeiros 6 meses de vida, algumas crianças evidenciam um estado de protecção passiva por anticorpos IgG maternos, adquiridos por via transplacentar e pelo aleitamento materno.

O pico da incidência ocorre entre os 7 e os 11 meses, quando o nível de anticorpos é baixo ou nulo. Após uma primeira doença invasiva, os níveis de anticorpos podem permanecer baixos, o que pode determinar uma resposta imune escassa e um segundo ou terceiro episódio de doença. Assim, a existência de doença invasiva prévia não invalida a necessidade de vacinação.

Na era pré-vacinal, por volta dos 5 anos de idade, na maioria das crianças, após infecções repetidas e aquisição de anticorpos capsulares e bactericidas, desenvolvia-se imunidade específica natural para o Hib.

A incidência da doença invasiva por Hib é mais elevada no sexo masculino, em crianças africanas, em índios, e em esquimós do Alasca. Os meios socioeconómicos desfavorecidos, a permanência em lugares com elevada densidade habitacional, ou em espaços fechados como instituições ou infantários, facilitam a transmissão por uma maior exposição ao agente, aumentando o risco de doença.

Outros factores de risco incluem o não aleitamento materno, doença crónica com défice da imunidade humoral ou do complemento, doença de células falciformes, asplenia, doença oncológica e terapêutica com imunossupressores. A constituição genética do hospedeiro pode também ter papel importante na susceptibilidade à infecção por Hib, sendo ainda desconhecido o mecanismo exacto de tal associação.

Mundialmente, enquanto a incidência anual de doença invasiva por Hib em crianças com < 5 anos tem sido estimada em cerca de 67-130/100.000, a incidência daquela por serótipos não tipo b é muito inferior (~0,5-1,9 /1.000.000).

Entre 1989 e 2010, dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, mostram que a introdução da vacina anti-Hib em Portugal conduziu a alterações na epidemiologia da doença invasiva, particularmente no que respeita ao declínio da infecção por Hib (de 81% para 13,2%) e ao aumento da infecção por estirpes não capsuladas (de 19% para 77,1%) e por Haemophilus influenzae tipo f (de 0,8% para 6,9%).

A doença secundária, que ocorre 1 a 30 dias após o contacto com um doente, representa menos de 5% de todos os casos de doença invasiva por Hib. O maior risco (2%-4%) verifica-se em conviventes da mesma família, principalmente em crianças não imunizadas ou parcialmente imunizadas, com menos de 2 anos. Surgindo doença, esta manifesta-se na primeira semana após o diagnóstico do caso index. Por esta razão se realiza quimioprofilaxia após a exposição à doença invasiva por Hib. Nos infantários, o risco de doença secundária por Hib parece ser relativamente mais baixo (~1,35%).

Etiopatogénese

O microrganismo invade a mucosa do epitélio respiratório, ocorrendo posteriormente bacteriémia. Para surgir a infecção, a bactéria adere ao epitélio respiratório através de adesinas da superfície bacteriana. Na maior parte das estirpes as adesinas são proteínas de elevado peso molecular (HMW1 e HMW2); numa pequena percentagem de estirpes predomina uma adesina chamada Hia (Haemophilus influenzae adhesin).

Todas as estirpes possuem uma adesina multifuncional chamada Hap que pertence a uma família de factores de virulência designados por proteínas autotransportadoras, com papel na adesão às células epiteliais e a certas proteínas da matriz extracelular (por ex. fibronectina, laminina e colagénio tipo IV) e na agregação bacteriana com formação de microcolónias.

Outros factores que influenciam a interacção com o epitélio respiratório incluem: fibras adesivas chamadas pili, uma proteína da camada externa da membrana chamada P5 e uma variante de lipopolissacárido (LOS ou lipoligossacárido).

Muitos agentes bacterianos exercem acção patogénica entrando para o interior das células epiteliais; pelo contrário, os agentes Haemophilus influenzae não tipáveis vão ocupar os espaços entre as células. A este último fenómeno dá-se o nome de paracitose, o qual propicia um “nicho” que protege as bactérias da acção dos antibióticos e poderá explicar o estado de portador crónico nasofaríngeo da bactéria em causa.

Haemophilus influenzae não tipáveis poderão também escapar ao mecanismo imune por variações que se verificam ao nível das estruturas referidas atrás (pili, adesinas HMW, e LOS) que funcionam como antigénios determinados geneticamente; ou seja, a variação antigénica compromete o efeito dos anticorpos anteriormente formados contra o agente infeccioso cujo património antigénico entretanto se modificou.

A maior parte das estirpes de Haemophilus influenzae é susceptível à amoxicilina ou ampicilina; cerca de 1/3 produz beta-lactamase, o que confere resistência àqueles antibióticos. Nos casos de resistência sem produção de beta-lactamases, aquela explica-se pela produção, na membrana, da enzima PBP3, o que ocorre com frequência cada vez maior.

Quanto ao hospedeiro, o mecanismo de defesa conhecido mais importante face à agressão por Haemophilus influenzae do tipo b relaciona-se com a existência de anticorpos com acção opsónica dirigidos contra o polissacárido capsular tipo b (PRP-polyribosylribitol phosphate) cuja acção é facilitar a lise de Hib.

A magnitude do inóculo bacteriano e as infecções respiratórias prévias, víricas ou por Mycoplasma pneumoniae, podem potenciar o risco de doença invasiva. Admite-se que as estirpes capsuladas, conseguindo resistir aos mecanismos de lise do complemento ou à fagocitose no hospedeiro, podem multiplicar-se no sangue e causar doença invasiva como sépsis, ou disseminar-se para outros locais e causar meningite ou artrite.

A adesina Hap tem também papel importante neste mecanismo patogénico, facilitando a ligação de Hib às células lesadas com formação de microcolónias de bactérias agregadas.

As infecções não invasivas das mucosas são mais frequentes, principalmente na era pós-vacinal. Presume-se que ocorram por extensão de locais contíguos à mucosa do aparelho respiratório e causem otite média, sinusite, pneumonia e bronquite.

A doença é mais frequente quando existe alteração dos mecanismos de depuração ou da função imunológica do hospedeiro, tais como obstrução dos seios, disfunção da trompa de Eustáquio, infecção vírica prévia ou lesão da mucosa pelo fumo do tabaco ou outros irritantes.

O mecanismo patogénico da pneumonia, epiglotite e celulite não é completamente compreendido, mesmo quando se verifica bacteriémia associada.

Possivelmente a pneumonia ocorre após aspiração de um número significativo de microrganismos virulentos; a epiglotite relaciona-se com infecção focal da epiglote; e a celulite, com infecção do tecido subcutâneo por agente veiculado pela corrente sanguínea.

Manifestações clínicas

A doença causada por Haemophilus influenzae pode afectar vários órgãos e sistemas, e originar diferentes quadros clínicos.

Meningite

É a manifestação mais grave da doença invasiva por Hib. Antes da vacinação universal era a maior causa de meningite bacteriana entre os 3 meses e os 3 anos. Tem um pico de incidência entre os 6 e 9 meses, diminuindo após os 2 anos. Nos países em vias de desenvolvimento, onde os recursos para programas de vacinação são escassos, continua a ser uma importante causa de meningite e sépsis.

O ínicio da doença pode ser fulminante, mas mais frequentemente é insidioso, com sintomas inespecíficos como recusa alimentar, febre, irritabilidade, letargia ou vómitos. Em 10% a 20% dos casos existem outros focos de infecção como celulite, pneumonia ou artrite, na sua maioria acompanhados de bacteriémia.

Epiglotite

A infecção da epiglote é a mais aguda e emergente de todas as infecções causadas por Hib, podendo conduzir à morte em 5%-10% dos casos. Está quase sempre relacionada com a obstrução abrupta da via aérea na ausência de tratamento adequado. Ocorre entre os 2 e os 7 anos, sendo rara abaixo dos 12 meses. Em cerca de 50% dos doentes ocorre infecção da via respiratória superior.

O início da doença é súbito com febre alta, odinofagia, disfagia, sialorreia, voz “abafada”, protusão da língua, agitação, exibindo o paciente um “aspecto tóxico”.

A infecção da epiglote ou tecidos supraglóticos pode, em poucas horas, evoluir para obstrução aguda da via aérea com dificuldade respiratória, estridor e cianose. Para permitir a entrada do ar, o doente senta-se inclinado para a frente, com a cabeça em hiperextensão, adoptando a típica posição em tripé. Actualmente esta entidade pode ocorrer em crianças não imunizadas ou adultos.

Pneumonia

Na era pré-vacinal a pneumonia por Hib era responsável por cerca de um terço das pneumonias bacterianas. Clinicamente é semelhante a outras pneumonias bacterianas.

O padrão radiográfico pode revelar infiltrados segmentares, lobares ou intersticiais, realçando-se que em mais de 50% dos casos se verifica derrame pleural ou pericárdico concomitante.

A hemocultura, o exame cultural do líquido pleural ou aspirados traqueais são positivos em 75% a 90% dos casos. A detecção de antigénios capsulares do Hib no líquido pleural, sangue ou urina não tem valor diagnóstico na idade pediátrica. As complicações incluem empiema, pericardite e meningite, sendo as sequelas a longo prazo raras.

Artrite séptica e osteomielite

Na era pré-vacinal, e na maioria dos casos de artrite séptica em crianças com < 2 anos estava implicado o agente Hib. Em mais de 90% dos casos, o envolvimento abrange apenas um território, de uma grande articulação, como a coxo-femoral, a do joelho, a tibiotársica ou o cotovelo.

Habitualmente, os sinais inflamatórios são precedidos de infecção das vias respiratórias superiores. Em cerca de 10% a 20% dos doentes pode ocorrer osteomielite por contiguidade.

Bacteriémia

A partir dum foco infeccioso surge bacteriémia, a qual precede a doença invasiva. Contudo, em crianças com < 2 anos pode ocorrer bacteriémia oculta (BO) sem foco infeccioso detectável, com febre > 39ºC e leucocitose periférica. Contrariamente à BO por pneumococo, que pode regredir espontaneamente, na BO por Hib, em 30% a 50% dos casos surgem complicações focais como meningite, pneumonia ou celulite, com implicações nas decisões de exames complementares a realizar.

Celulite

A celulite por Hib, mais observada na época pré-vacinal, envolve a face, cabeça e nariz em crianças abaixo dos 2 anos. A celulite odontogénica, mais frequente no lactente, tem ínicio súbito com rubor, calor, edema e aparecimento de uma área endurecida com halo violáceo que pode assemelhar-se à erisipela.

Outros quadros clínicos de doença invasiva

Na sequência de bacteriémia podem surgir os seguintes quadros clínicos: pericardite, endoftalmite, abcesso cerebral, glossite, traqueíte, tiroidite, endocardite, fascite necrosante, piomiosite, tenossinovite, polisserosite, abcesso pulmonar, abcesso intraperitoneal, abcesso escrotal e peritonite.

A doença invasiva pode ainda manifestar-se por febre isolada, febre e petéquias, ou febre de origem indeterminada.

Doença neonatal

O microrganismo Haemophilus influenzae pode causar sépsis precoce e meningite no recém-nascido: na maioria dos casos (2/3) a sintomatologia surge no primeiro dia de vida.

Habitualmente a doença é causada por estirpes não tipáveis isoladas do tracto genital materno.

A transmissão pode ocorrer durante o parto ou in utero. Pode existir associação a prematuridade, baixo peso de nascimento, corioamnionite materna e ruptura prematura de membranas. Nalguns casos há antecedentes de parto por cesariana.

As manifestações clínicas incluem fundamentalmente pneumonia, bacteriémia e conjuntivite. A taxa de mortalidade é cerca de 55%.

Infecções por Haemophilus influenzae não tipáveis

As estirpes não tipáveis do Haemophilus influenzae são causa frequente de otite média, sinusite, conjuntivite e bronquite. As vacinas conjugadas não conferem protecção para estas estirpes não capsuladas.

A sinusite por Haemophilus influenzae tem um curso clínico mais arrastado. A otite e a sinusite crónica raramente causam complicações como mastoidite ou abcessos meníngeos.

A conjuntivite habitualmente é bilateral e purulenta, podendo ocorrer por surtos e associar-se a otite média. Esta situação é denominada síndroma conjuntivite-otite.

A doença invasiva associada a estirpes não tipáveis, rara, associa-se a factores de risco como prematuridade, fístula permitindo a perda de líquido cefalorraquidiano, cardiopatia congénita ou imunodeficiência.

Salienta-se que o diagnóstico de infecção invasiava por estirpes não tipáveis obriga a investigação imunológica, mesmo na ausência de factores de risco.

Diagnóstico

A suspeita de doença por Haemophilus influenzae obriga à realização de exames complementares para avaliação clínica e confirmação etiológica.

Exame directo

A identificação do microrganismo em esfregaço de produto biológico, após coloração pelo Gram, pressupõe que exista uma concentração da ordem de, pelo menos, 105 bactérias/mL; consequentemente, a probabilidade de detecção é baixa.

Exame cultural

O exame cultural (hemocultura, cultura de outros líquidos biológicos) implica necessidade de colheita em condições ideais e transporte rápido para o laboratório. As amostras não devem ser expostas a temperaturas ou secura extremas.

Na BO por Hib, em 30% a 50% dos casos poderão surgir complicações focais como meningite. Assim, na presença de hemocultura positiva deverá considerar-se a realização de punção lombar e exame do LCR.

Serotipagem

Pelas implicações clínicas, epidemiológicas e de saúde pública, torna-se fundamental proceder a esta técnica, designadamente para identificação ou exclusão de serótipos associados a doença invasiva.

Outros exames

Na ausência de identificação do agente em exames culturais, o diagnóstico etiológico pode ser realizado por técnicas de biologia molecular com pesquisa de sequências específicas de ARN ou de ADN em produtos no local da infecção.

Tratamento

As crianças com doença invasiva devem ser hospitalizadas e submetidas a antibioticoterapia endovenosa. Nas infecções por estirpes não tipáveis poderá optar-se, em função do contexto clínico, pela antiboticoterapia oral.

A escolha do antibiótico deve basear-se nos seguintes critérios: 1) conhecimento epidemiológico; 2) susceptibilidade aos antimicrobianos; 3) local e gravidade do quadro clínico; 4) factores de risco no hospedeiro.

A resistência de Haemophilus influenzae à ampicilina varia entre 5% a 50%. Em Portugal, em cerca de 10% das estirpes verifica-se produção de beta-lactamase, sendo que existe uma susceptibilidade quase total à amoxicilina/clavulanato e cefuroxima.

O esquema de tratamento varia em função da entidade clínica. Os Quadros 1 e 2 sintetizam os principais esquemas de tratamento. No que respeita às entidades epiglotite, conjuntivite, pneumonia, artrite séptica e celulite, sugere-se ao leitor a consulta do índice geral para localização dos respectivos capítulos.

QUADRO 1 – Esquema de tratamento de algumas infecções por H. influenzae.

AM/CL* = amoxicilina e ácido clavulânico
EntidadeActuaçãoAntibióticoDuração
MeningiteRealizar 2 hemoculturas exame cultural do LCR
Realizar detecção de antigénios capsulares no LCR e urina se antibioticoterapia prévia
Dexametasona: 0,6 mg/kg/dia IV, 6/6h, 4 dias; administrar primeira dose 20 a 30 minutos antes da 1ª administração de antibiótico. Vigiar complicações neurológicas
Ceftriaxona10-14 dias
PneumoniaRealizar 2 hemoculturas
Exame cultural de líquido pleural e aspirados traqueias
Realizar detecção de antigénios capsulares no líquido pleural
e urina se antibioticoterapia prévia
Cefuroxima ou AM/CL*10 dias
BacteriémiaRealizar 2 hemoculturas
(cada colheita com 2 mL de sangue no mínimo)
Se hemocultura positiva realizar punção lombar
Ceftriaxona7-10 dias
Doença neonatalRealizar 2 hemoculturas e punção lombar
Vigiar pneumonia
Ampicilina + Cefotaxima10-14 dias
Doença invasiva por H. influenzae não tipáveisRealizar 2 hemoculturas e punção lombar
Realizar investigação imunológica, inclusivamente nos casos de criança previamente saudável
Ceftriaxona10 dias
Outras infecções por H. influenzae não tipáveisTratar OMA se houver factores de risco, otites de repetição
e na criança com menos dos 2 anos, durante 5 a 7 dias
Tratar sinusite durante 14 dias e bronquite durante 10 dias
AM/CL* 

QUADRO 2 – Esquema de tratamento de algumas infecções por H. influenzae.

Amoxicilina e ácido clavulânico (AM/CL): via oral/dose de amoxicilina: 50 mg/kg/dia; via IV: 50 mg/kg/dose
AntibióticoDose diária Dose no RNNº de doses/dia
Cefuroxima100 mg/kg200 mg/kg/dia3
Cefotaxima100 mg/kg200 mg/kg/dia3
Ceftriaxona100 mg/kg200 mg/kg/dia1
AM/CL*50 mg/kg*200 mg/kg/dia2-3

Prognóstico

A gravidade da doença depende fundamentalmente do local da infecção, de factores de risco, factores inerentes ao hospedeiro, factores de virulência do agente e de mecanismos de resistência aos antibióticos. O mais importante elemento de defesa do hospedeiro é a existência de anticorpos dirigidos contra o polissacárido capsular do tipo b PRP (poli-ribosil-ribitol-fosfato).

Prevenção

Medidas não imunológicas

Considera-se contacto de risco aquele que corresponde à exposição a uma pessoa com doença invasiva, ocorrendo 4 ou mais horas por dia, e durante, pelo menos, 5 dias.

As medidas não imunológicas incluem:

  • isolamento de doentes com forma invasiva até 24 horas após início de antibioticoterapia
  • quimioprofilaxia aplicada a:
    1. contactos de risco;
    2. conviventes do agregado familiar que, independentemente da idade, tenham contacto com crianças com < 4 anos não imunizadas ou parcialmente imunizadas;
    3. irmãos ou conviventes com menos de 12 meses;
    4. imunodeprimidos, independentemente do seu estado de imunização;
    5. Assistência em infantários ou instituições onde ocorreram 2 ou mais casos de doença invasiva no período de 60 dias.

Em qualquer situação de 1- a -5 deve administrar-se rifampicina na dose de 20 mg/kg/dia (não excedendo 600 mg/dose), em toma única diária, durante 4 dias. No adulto a dose é 600 mg/dia, em toma única diária.

Nota: Em Portugal, as infecções por Haemophilus influenzae são de notificação obrigatória desde 1999.

Medidas imunológicas

As vacinas conjugadas com protecção para o Haemophilus influenzae tipo b têm tido um papel primordial no combate à doença invasiva, diminuindo a incidência em cerca de 90%, a colonização da nasofaringe e a transmissão interpessoal em idades precoces em que o estado de portador é mais prevalente.

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INFECÇÕES POR STREPTOCOCCUS PYOGENES

Definição e importância do problema

As infecções devidas ao microrganismo Streptococcus beta hemolítico do grupo A de Lancefield (SGA), também denominado Streptococcus pyogenes, integrando o conceito de doença estreptocócica, são dum modo geral benignas e de curta duração; no entanto, salienta-se a possibilidade, quer de formas clínicas muito graves, potencialmente letais, quer de complicações e sequelas não supuradas, tais como a febre reumática e a glomerulonefrite pós-estreptocócica.

Citam-se como exemplos de formas clínicas de doença estreptocócica (em > 90% dos casos provocadas pela espécie S. pyogenes): faringoamigdalite, escarlatina, impétigo, erisipela, bacteriémia, vaginite, dermatite perianal, pneumonia, e doença invasiva grave (como celulite e bacteriémia, fascite necrosante e síndroma de choque tóxico, etc.).

Neste capítulo, abordando aspectos globais da epidemiologia, etiopatogénese, prevenção e tratamento, é dada ênfase à entidade clínica Escarlatina tipificando historicamente uma forma clássica de infecção por Streptococcus pyogenes.

Por outro lado, faz-se referência sucinta aos critérios de diagnóstico da Síndroma de choque tóxico estreptocócico como modelo de doença invasiva; este tópico é abordado na Parte sobre Urgências e Emergências.

Outros tipos de infecções pelo agente infeccioso em causa SGA (por ex. fascite necrosante erisipela, etc.) são descritos no capítulo dedicado às infecções da pele e dos tecidos moles.

Aspectos epidemiológicos

A doença estreptocócica é uma doença endémica nas grandes cidades, sendo o ser humano, de qualquer idade, o reservatório natural de SGA, germe bacteriano muito transmissível. É mais comum nos meses de inverno e início da primavera, em crianças acima dos 3 anos de idade, particularmente entre os 5 e os 15 anos. A doença é rara em lactentes devido à transmissão de anticorpos maternos, embora possa ocorrer em situações de epidemia, nomeadamente em infantários.

O modo de transmissão da infecção faz-se principalmente através de gotículas de saliva ou secreções nasais por contacto directo com um doente, pelo que é mais frequente em meios de maior densidade populacional, como escolas, grupos de desportos de contacto e instituições militares. Durante os meses de inverno, cerca de 15% a 25% das crianças são portadores assintomáticas de SGA na faringe, mas o risco de transmissão é baixo porque a bactéria perde virulência na faringe do portador. As razões imunológicas para a persistência da bactéria nas vias respiratórias superiores ainda não estão completamente explicadas.

A transmissão pode também fazer-se indirectamente por objectos ou alimentos contaminados pelas mãos de doentes. Foram descritas epidemias de amigdalofaringite provocada por ingestão de alimentos contaminados preparados, ou refrigerados, em más condições de higiene.

O epitélio estratificado da orofaringe e a pele são as principais barreiras contra a doença invasiva por SGA, mas a faringe é o ponto de partida mais frequente em situações de bacteriémia. Por vezes a porta de entrada pode ser uma ferida, uma queimadura ou outra lesão cutânea.

Etiopatogénese

O género Streptococcus constitui um grupo heterogéneo de bactérias responsáveis por quadros clínicos diferentes dependendo de vários factores: 1 – características próprias do tipo de Streptococcus responsável; 2 – porta de entrada; 3 – características do hospedeiro, como a sua idade e situação imunitária.

Estão descritos três esquemas de classificação deste microrganismo (coco gram-positivo que se apresenta em cadeias ou pares) de acordo com:

I – propriedades serológicas – consoante o grupo de polissacáridos da parede celular, com propriedades antigénicas específicas, a bactéria classifica-se em grupos de Lancefield, discriminados de A a V.

II – características hemolíticas – de acordo com o tipo de hemólise produzida por colónias da bactéria a crescer em placas de agar. O SGA, beta-hemolítico, produz uma hemólise completa no meio de cultura.

III – propriedades bioquímicas e fisiológicas – responsáveis pela virulência da bactéria.

Na parede celular encontram-se os factores responsáveis pela gravidade do quadro clínico.

A estrutura antigénica do Streptococcus pyogenes (SGA) baseia-se na camada de peptidoglicano da parede celular. A cápsula propriamente dita não é imunogénica, mas protege a bactéria da fagocitose pelo hospedeiro. Este agente pode ser subdividido em mais do que 220 serótipos com base no antigénio designado por proteína M localizada na superfície celular e nas fímbrias que se projectam da superfície externa da parede celular da bactéria; tal proteína promove a adesão da bactéria às células epiteliais do hospedeiro, contribuindo para a resistência da bactéria à fagocitose. É a proteína associada à maior virulência do agente SGA: estirpes ricas em proteína M resistem à fagocitose e fixam-se mais facilmente às células epiteliais faríngeas e à pele, ao contrário de estirpes sem a referida proteína.

A serotipagem M – com base em técnicas moleculares através de PCR, sequenciação ADN, etc. – tem grande valor em estudos epidemiológicos; com efeito, certas doenças específicas causadas por SGA estão associadas a certos tipos de proteína M. Os tipos 1, 12, 28, 4, 3 e 2 (por esta ordem) são causa frequente de faringite não complicada e raramente associados a infecções cutâneas. Algumas estirpes infectando a faringe (por ex. M tipo 12), estão associadas a glomerulonefrite, enquanto maior número de estirpes infectando a pele (por ex, M tipos 49, 55, 57, e 60) são consideradas nefritogénicas. Vários serótipos associados a infecção da faringe, mas não da pele (por ex. M tipos 1, 3, 5, 18, 29) estão associados a febre reumática aguda.

O agente SGA/S. pyogenes produz uma variedade de enzimas, incluindo as toxinas eritrogénicas (hoje conhecidas por exotoxinas pirogénicas estreptocócicas, – no total em número de 12); as designadas pelas letras A, B e C são responsáveis pelo exantema da escarlatina. Estas últimas 3 exotoxinas estimulam a formação de anticorpos/antitoxinas que conferem imunidade contra o exantema escarlatiniforme, mas não contra outras infecções estreptocócicas. Como os anticorpos formados são específicos da toxina, um doente poderá ter mais de um episódio de exantema.

Determinadas exotoxinas estão relacionadas com a patogénese da síndroma de choque tóxico estreptocócico.

Seguidamente são descritos outros dos componentes da bactéria, dando ênfase a certas funções específicas dos mesmos.

  • proteínas simile M, e outras proteínas da superfície celular, responsáveis pela inibição da protease.
  • proteínas F, responsáveis pela adesão da bactéria às células epiteliais do hospedeiro.
  • estreptolisina S, uma hemolisina que contribui para a lise dos leucócitos, plaquetas e eritrócitos.
  • estreptolisina O, estimulando a libertação de enzimas hidrolíticas pelos lisossomas e contribuindo para a lise dos leucócitos.
  • estreptoquinase, facilitando a invasão tecidual da bactéria.
  • hialuronidase.
  • DNAases – desoxirribonucleases despolimerizando o ADN livre no pus, reduzindo a viscosidade do material abcedado e facilitando a disseminação da bactéria.
  • C5a peptidase, componente do complemento mediando a inflamação e activando as células fagocitárias.
  • exotoxinas piogénicas (SPE) – A, C, e F, funcionando como superantigénios provocando síndroma de choque tóxico.

Formas clínicas

Nesta alínea é dada ênfase a amigdalofaringite, escarlatina (mais pormenorizadamente como paradigma por razões históricas e didácticas) e síndroma de choque tóxico estreptocócico tendo em conta que outras formas clínicas como a erisipela, o impétigo a celulite e a fascite necrosante integram o capítulo seguinte. (Infecções da pele e dos tecidos moles)

Amigdalofaringite

Em complemento do que foi referido na Parte sobre Otorrinolaringologia, cabe salientar que a colonização da faringe por S. pyogenes pode produzir estado de portador assintomático ou infecção aguda. A proteína M é responsável pela virulência, já que condiciona a resistência do microrganismo à fagocitose pelos polimorfonucleares.

Como dados clínicos sugestivos de faringite estreptocócica citam-se: odinofagia de início súbito, febre, cefaleia, vómitos, eritema faríngeo acompanhado ou não de exsudado e adenopatias cervicais. Ocasionalmente pode surgir tumefacção da úvula, petéquias no palato mole e exantema escarlatiniforme.

Escarlatina

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Na sequência do que foi descrito na alínea Etiopatogénese, para que uma infecção estreptocócica se expresse clinicamente como escarlatina há que atender aos seguintes critérios: – Streptococcus infectante (dos tipos A- mais frequentemente, B ou C) produtor de exotoxina pirogénica; – ocorrência em indivíduos sem imunidade humoral antitoxina e antibacteriana.

Uma vez que a exposição a cada tipo de exotoxina somente gera imunidade específica, tal pressupõe que um paciente possa apresentar escarlatina em três ocasiões diferentes/até três vezes.

A escarlatina é actualmente menos frequente e, sobretudo com manifestações mais ligeiras do que no passado, mas tem uma incidência cíclica, dependente da prevalência das estirpes produtoras de toxina e do estado imunitário da população. A porta de entrada do Streptococcus pyogenes pode ser uma ferida na pele.

Após período de incubação de 2-4 dias, nos casos típicos a doença manifesta-se de forma aguda pela tríade: 1 – febre; 2 – faringite ou amigdalite eritemato-pultácea aguda; e 3 – exantema máculo-papular ou punctiforme, muito fino de aspecto granitado e áspero (tipo lixa) confluente, diminuindo de intensidade quando se faz pressão com o dedo.

A febre alta, máxima pelo 2º dia, persiste durante 3 a 5 dias, acompanhada de cefaleias, vómitos, odinofagia, dor abdominal e taquicardia desproporcionada em relação com a temperatura. Nos casos graves, a temperatura elevada pode ser mais prolongada e, nalguns casos, é baixa e poderá mesmo não se verificar.

Cerca de 24 a 48 horas depois do início da febre, surgindo o exantema descrito, o mesmo progride rapidamente a partir do pescoço para o tronco e extremidades (Figuras 1 e 2). É mais acentuado (por vezes associado a petéquias e hiperpigmentação) nas pregas de flexão, como as axilas, pregas do cotovelo e região inguinal (sinal de Pastia) (Figura 3). Na face, a região malar pode apresentar-se eritematosa, mas verifica-se ausência de rubor ou “palidez” relativa (sinal designado por “triângulo perioral de Pilatov”). A prova de Rumpel-Leed é positiva.

Em 4 a 8 dias, a erupção regride, surgindo descamação da pele atingida, a qual pode durar entre 1-3 semanas (intensidade e duração proporcionais à intensidade do exantema). Começa pela face em flocos finos, estendendo-se depois para o tronco e, finalmente, para as extremidades, tornando-se generalizada pela 3ª semana. No tronco faz-se em grandes lâminas, sendo visível nas mãos e pés, em geral pela 2ª-3ª semana. Os topos dos dedos mostram uma descamação característica na margem livre das unhas; a mesma descamação atinge a palma das mãos e plantas dos pés.

Na boca, observa-se um enantema com petéquias na úvula, véu do paladar e pilares anteriores das amígdalas. Para além do aspecto inflamado da faringe e amígdalas, verifica-se um exsudado amigdalino branco nacarado, mucopurulento desde o 2º dia de doença (amigdalite eritemato-pultácea). A língua tem inicialmente um aspecto saburroso, adquirindo posteriormente o aspecto típico de “língua de framboesa branca” devido à cor (inicialmente rósea e depois vermelha) e ao ingurgitamento das papilas (Figura 4). É habitual a coexistência de gânglios cervicais anteriores aumentados de volume e dolorosos, assim como de vómitos.

FIGURA 1. Escarlatina: exantema notório na face e tronco, sendo menos acentuado na região peribucal (sinal de Pilatov). (NIHDE)

FIGURA 2. Escarlatina: exantema na face e tronco. (NIHDE)

FIGURA 3. Escarlatina: sinal de Pastia. (NIHDE)

FIGURA 4. Escarlatina: língua de framboesa. (NIHDE)

Depois de um intervalo livre de 10 ou 15 dias, podem surgir como complicações, respectivamente, uma glomerulonefrite aguda ou febre reumática. A terapêutica correcta não anula o risco de complicações, mas diminui-o de forma significativa. O risco de contrair febre reumática após uma infecção estreptocócica é inferior a 1%, enquanto o risco de contrair glomerulonefrite é de cerca de 10% se a estirpe for nefritogénica.

 Complicações

As complicações supurativas, ocorrem geralmente no final da primeira semana de doença e são: adenite cervical supurada, abcessos retrofaríngeo e/ou periamigdalino. Estas complicações, resultantes da extensão da infecção a estruturas vizinhas, são actualmente raras devido ao diagnóstico atempado e ao uso correcto de terapêutica antibiótica. As complicações não supurativas, detectadas após um intervalo livre de 2 a 3 semanas, são a glomerulonefrite aguda (GNA) e a febre reumática (FR). Salienta-se que a GNA pode ocorrer após infecção por SGA das vias respiratórias ou da pele, enquanto a FR ocorre somente após infecção das vias respiratórias superiores.

Duas outras entidades nosológicas foram descritas como possível complicação de infecção por SGA:

  • Artrite reactiva pós-estreptocócica – Cerca de 10 dias após infecção aguda por SGA podem ocorrer manifestações de artrite sem critérios clínicos ou laboratoriais que preencham os critérios de Jones para o diagnóstico de FR. A artrite, tipicamente não migratória, ao contrário da FR, envolve geralmente as grandes articulações, mas também as pequenas articulações. Também, ao invés do que acontece na FR, a resposta aos AINE não é boa. A relação entre esta artrite reactiva e a FR não é clara. Todavia, como um número muito reduzido destes doentes desenvolveu mais tarde doença valvular cardíaca, recomenda-se o seu seguimento durante um a dois anos para exclusão de cardite. Alguns investigadores recomendam a profilaxia secundária de FR nestes doentes.
  • PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcus pyogenes) – Esta situação clínica, conhecida pela sigla, integra um conjunto de perturbações do foro neuropsiquiátrico (particularmente alterações obsessivas-compulsivas, tiques e síndroma de Tourette). Tais sintomas podem também surgir em doentes com coreia de Sydenham no contexto de FR. Tem sido admitida uma relação entre infecção prévia por SGA e manifestações de PANDAS por produção de autoanticorpos que atravessam a barreira hematoencefálica, mas ainda não foi provada qualquer relação causal.
Diagnóstico

No âmbito da anamnese deve ser inquirido eventual contacto com um caso bem documentado, embora a tríade atrás descrita (febre, amigdalofaringite exsudativa e exantema) sugira o diagnóstico.

Admitindo a hipótese clínica de escarlatina, a confirmação do diagnóstico por exame cultural do exsudado faríngeo, após colheita apropriada, mantém-se como prova-padrão, embora tenha a desvantagem de demorar, pelo menos, 48 horas. As provas de detecção de antigénios, igualmente realizadas por zaragatoa, constituem uma alternativa rápida e adequada. Estes testes, se a técnica de execução for correcta, têm uma especificidade superior a 95%, pelo que resultados falsos positivos são raros; a sua sensibilidade é de cerca de 80% a 90%, variando com os reagentes utilizados pelos diversos fabricantes.

A infecção estreptocócica também pode ser diagnosticada de forma retrospectiva pela determinação do título de antiestreptolisina O (TASO), ou pelo título anti-DNAase. O TASO não é específico da infecção pelo SGA, podendo ser negativo nas infecções cutâneas. O título anti-DNAase é positivo tanto nas infecções respiratórias como nas infecções da pele. Os títulos de anticorpos anti-estreptocócicos começam a aumentar 7 a 24 dias após o início da infecção, atingindo o pico sérico às 3 a 6 semanas, pelo que o seu interesse resume-se a confirmar uma infecção passada.

Diagnóstico diferencial

O exantema da escarlatina pode ser confundido com infecção estafilocócica, (escarlatina estafilocócica), toxidermias, doença de Kawasaki ou exantemas de causa vírica. Na síndroma de choque tóxico por estafilococo, verifica-se exantema semelhante ao da escarlatina estreptocócica, com a particularidade de ser mais grave nas palmas das mãos e plantas dos pés, para além de se detectar o foco de infecção estafilocócica.

Nos casos raros em que não há amigdalofaringite, uma ferida cutânea infectada, ou a coexistência de impétigo, e o exantema característico sugerem o diagnóstico, o qual deve ser confirmado por exame bacteriológico.

Nota importante: O agente Staphylococcus aureus dos grupos C e G, produzindo toxinas eritrogénicas e epidermolíticas, pode originar um quadro clínico, do qual faz parte exantema semelhante ao provocado por S. pyogenes; é a chamada “escarlatina estafilocócica”.

Prognóstico

O prognóstico da escarlatina e das infecções estreptocócicas agudas em geral, correcta e atempadamente tratadas, é excelente. Se o tratamento for levado a cabo dentro de 9 dias após o início da doença, a FR é quase sempre prevenida. Contudo, não está provado que a GNA possa ser prevenida, designadamente no contexto de infecção por estirpe de SGA nefritogénica.

Em situações especiais de síndromas de imunodeficiência de etiopatogénese diversa, ou de infecção por estirpes de grande virulência, poderá verificar-se evolução para doença invasiva, nomeadamente síndroma de choque tóxico.

Síndroma de choque tóxico estreptocócico

Definição

Um quadro clínico grave compatível com choque e exantema máculo-papular ou punctiforme de tipo escarlatiniforme, no contexto de provável etiologia infecciosa, levará a admitir a possibilidade de síndroma de choque tóxico por S. pyogenes ou por S. aureus.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

A síndroma de choque tóxico estreptocócico é um quadro clínico grave e raro em idade pediátrica. Define-se como doença aguda gerando resposta inflamatória sistémica toxinas do microrganismo por estimulação dos linfócitos T. Em mais de metade dos casos surge em crianças com menos de 5 anos, embora ultimamente tenham sido descritos casos em idades mais baixas. De acordo com dados da literatura, a percentagem de hemoculturas positivas pode atingir 60%. A mortalidade situa-se entre 30% e 70%

O Quadro 1 resume os critérios de diagnóstico da síndroma em epígrafe.

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por Streptococcus do Grupo A (SGA).

    1. Isolamento do SGA de local estéril (sangue, LCR, líquido peritoneal, tecido de biópsia)
    2.  Isolamento do SGA de local não estéril (faringe, expectoração, vagina, ferida cirúrgica, ou lesão superficial da pele)
    3. Hipotensão sistólica (< percentil 5 para a idade)
    4. Dois ou mais dos seguintes parâmetros:
      • Disfunção renal (valor da creatinina 2 vezes maior que o limite superior considerado normal para idade)
      • Coagulopatia: nº de plaquetas < 100.000/mmc ou CID
      • Disfunção hepática (valor de ALT, AST ou bilirrubinémia total 2 vezes maior que o limite superior considerado normal para a idade)
      • SDR tipo adulto/ARDS
      • Exantema eritemato-macular generalizado com possível ulterior descamação
      • Miosite, fascite necrosante, gangrena, ou outros tipos de lesão necrótica dos tecidos moles

Diagnóstico definitivo: parâmetros 1+3+4 presentes
Diagnóstico provável: parâmetros 2+3+4 se não for identificada outra causa de doença

Diagnóstico diferencial

O Quadro 2 sintetiza os critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por S. aureus, o qual permite comparação com os critérios para a síndroma de choque tóxico por S. pyogenes (Quadro 1), para diagnóstico diferencial.

QUADRO 2 – Critérios de diagnóstico da síndroma de choque tóxico por S. aureus.

Critérios clínicos

    1. Febre > 38,9ºC
    2. Exantema máculo-papular punctiforme
    3. Descamação
    4. Hipotensão (Quadro 1)
    5. Disfunção multiorgânica: 3 ou mais dos sistemas – gastrintestinal, SNC, hematológico, hepático, renal, muscular, mucosas (hiperémia conjuntival, orofaríngea, ou vaginal)
    6. Resultados negativos dos seguintes exames:
      • cultural da faringe, LCR, ou sangue; excepção: hemocultura positiva para S. aureus
      • prova serológica para febre das Montanhas Rochosas, leptospirose ou sarampo

Diagnóstico provável: 5 de 6 critérios clínicos
Diagnóstico confirmado: totalidade dos 6 critérios clínicos; em caso de óbito e na ausência de descamação são suficientes 5 critérios

Tratamento das infecções por Streptococcus pyogenes

A comprovação da etiologia estreptocócica no contexto da tríade clássica referida a propósito das manifestações clínicas da escarlatina constitui indicação formal para início imediato de terapêutica antibiótica.

O agente Streptococcus pyogenes é muito sensível à penicilina, não estando descritas estirpes resistentes. Uma dose única via IM de penicilina benzatínica é adequada. Nas crianças com peso até 27 kg devem ser administradas 600.000 Unidades e nas crianças com 27 kg, ou mais, a dose apropriada é 1.200.000 Unidades. Este é o esquema posológico internacionalmente recomendado.

Todavia, há quem prefira ajustar a dose ao peso e prescrever 50.000 U/kg, até à dose máxima de 1.200.000 U.

Esta forma de tratamento tem a vantagem de evitar insucessos terapêuticos por incumprimento da medicação, embora com a desvantagem de ser doloroso. A dor desta administração pode ser minorada se a penicilina não estiver a baixa temperatura.

Se se optar por prescrever antibiótico por via oral, e uma vez que em Portugal não existe penicilina oral, a amoxicilina é a terapêutica preconizada na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1 g/dia) administrada de 12 em 12 horas durante 10 dias. Em caso de alergia à penicilina por reacção de hipersensibilidade tipo 1, deve-se prescrever um macrólido nas doses habituais: claritromicina – 15 mg/kg/dia (máximo 500 mg/dia) de 12/12 horas durante 10 dias; azitromicina 12 mg/kg/dia (máximo 500 mg/dia) de 24 em 24 horas durante 5 dias. Refira-se que em Portugal a resistência do Streptococcus do grupo A aos macrólidos diminuiu de 10% em 2007 para 1% em 2013. Em caso de alergia à penicilina por reacção de hipersensibilidade não tipo 1 pode prescrever-se uma cefalosporina de 1ª ou 2ª geração nas doses habituais e durante 10 dias.

No tratamento das infecções invasivas graves utiliza-se a clindamicina associada à penicilina porque numa pequena proporção se verifica resitência de S. pyogenes àquele antibiótico: associação de penicilina e clindamicina por via IV (penicilina G aquosa em perfusão lenta /20 minutos, 6 a 8 vezes/dia: 25.000-500.000U/kg/dia; clindamicina em perfusão rápida, 4 vezes/dia: 30-40 mg/kg/dia) com a duração de 10 ou mais dias, em função do contexto clínico e evolução.

Para além da antibioticoterapia, estão indicadas todas as medidas de reanimação e suporte hemodinâmico descritas no âmbito da sépsis e choque. A este respeito, sugere-se a consulta do capítulo sobre sépsis e choque (Parte XXVIII).

Prevenção

Não existe actualmente prevenção primária da infecção por Streptococcus do grupo A, nomeadamente vacina ou método de erradicar a bactéria do hospedeiro. Algumas vacinas recombinantes utilizando 30 serótipos de proteína M estão em estado inicial de desenvolvimento. Contudo, dada a existência de número superior a 130 de tipos M e respectivos serótipos, com larga distribuição geográfica, existe o risco de produção de anticorpos com reacção cruzada frente aos tecidos humanos, o que comporta o risco de doenças autoimunes.

O período de evicção escolar das crianças doentes é de apenas 24 horas após o início da terapêutica antibiótica, desde que a criança esteja apirética.

De salientar que:

  1. não está indicada a pesquisa de Streptococcus aos coabitantes assintomáticos de crianças doentes, excepto se os familiares tiverem risco elevado de patologia na sequência de infecção por SGA, como GNA ou FR.
  2. não está indicada a pesquisa de Streptococcus em qualquer contacto escolar assintomático da criança doente. O risco de transmissão da infecção por um portador é mínimo, bem como é mínimo o risco de um portador desenvolver complicações, pelo que estes portadores não devem ser tratados com antibiótico.

A erradicação do SGA da orofaringe de portadores assintomáticos, apenas está indicada nas situações seguintes:

  1. pessoas com diagnóstico de FR ou GNA
  2. doentes com história familiar de FR
  3. surtos epidémicos de FR ou GNA
  4. surtos epidémicos de faringite a SGA numa comunidade fechada ou semi-fechada
  5. episódios múltiplos intrafamiliares de faringite sintomática por SGA, apesar de antibioticoterapia apropriada.

O agente SGA pode ser dificil de erradicar da orofaringe de alguns portadores. A clindamicina na dose de 30 mg/kg dia (máximo 900mg) de 8 em 8 horas durante 10 dias é a terapêutica mais eficaz.

Nota: A escarlatina não é uma doença de notificação obrigatória.

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DOENÇA PNEUMOCÓCICA

Definições e importância do problema

O agente Streptococcus pneumoniae ou pneumococo é uma bactéria Gram-positiva (diplococo) que tem uma estrutura e um comportamento biológico muito complexos, uma vez que na sua cápsula, fortemente antigénica, existem 93 polissacáridos química e imunologicamente diferentes, com patogenicidade e virulência variáveis. A patogenicidade e virulência traduzem-se designadamente no impedimento da fagocitose pelos polimorfonucleares do hospedeiro. Segundo a classificação actual, existem 40 serogrupos e 93 serótipos.

Os anticorpos protectores são dirigidos contra os polissacáridos capsulares e são específicos de tipo; ou seja, a imunização contra determinado serótipo não protege das infecções provocadas por outros serótipos, o que explica a possibilidade de ocorrência de múltiplas infecções por este agente.

Colonizando o tracto respiratório superior, é a causa mais frequente de infecções do tracto respiratório superior (otite média, rino-sinusite) e inferior (pneumonia), doença invasiva (pneumonia, bacteriémia, meningite) e bacteriémia no período pós-neonatal. Pode ainda causar osteomielite, artrite séptica, pericardite e peritonite. Em regra, emprega-se o termo de doença pneumocócica para designar o conjunto de infecções provocadas por este agente. Esta entidade tem forte impacte em saúde pública pelo aumento crescente de estirpes resistentes à penicilina e a outros antibióticos em todo o mundo.

Calcula-se que anualmente este micorganismo seja responsável por 1 milhão de mortes em crianças com < 5 anos de idade, sobretudo em países em vias de desenvolvimento. A imunização universal com vacinas conjugadas tem vindo a modificar a epidemiologia da infecção penumocócica, reduzindo o número de portadores na nasofaringe e a prevalência dos serótipos mais virulentos. Tal facto tem tido repercussões na redução da incidência de doença pneumocócica, não só em crianças vacinadas, como também em crianças e adultos não vacinados pelo efeito de imunidade de grupo conferida pela vacina. Nos EUA, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) reportam que a doença pneumocócica invasiva (DIP) diminuiu de 100/100.000 casos em 1998 para 9/100.000 em 2015. Se avaliarmos apenas a doença invasiva causada pelos 13 serótipos cobertos pela vacina pneumocócica conjugada 13-valente (PVC13), então esta entidade diminuiu, entre 1998 e 2015, de 91/100.000 para 2/100.000 casos.

Em Portugal, a vacina conjugada para 7 serótipos – heptavalente (PVC7) passou a ser comercializada, extra-Programa Nacional de Vacinação/PNV em 2001 e, em 2010, subtituída pela PVC13. Neste período, em que as taxas de vacinação variaram entre 60-80%, a incidência da DIP diminui de 52/100.000 para 33/100.000 casos em crianças com menos de 12 meses de idade, com uma diminuição global da incidência em todos os grupos etários.

A PVC13 foi introduzida no PNV em Julho de 2015 no nosso País, passando a DIP a ser considerada doença de declaração obrigatória.

Aspectos epidemiológicos

Os pneumococos são ubíquos. A bactéria coloniza a nasofaringe de indivíduos saudáveis (~50% de crianças e ~8% de adultos), ocorrendo a transmissão através de gotículas de saliva. O período de contágio é desconhecido, salientando-se que se mantém enquanto a bactéria estiver presente nas secreções respiratórias. O período de incubação varia de acordo com o tipo de infecção, entre 1 a 3 dias.

A incidência da doença pneumocócica varia com grupo etário, sexo, raça e origem geográfica. A DIP é mais frequente em crianças com menos de 2 anos, em adultos com mais de 65 anos de idade, no sexo masculino, em africanos, indianos e nativos do Alasca. A incidência também é mais elevada em países em vias de desenvolvimento. Estas diferenças quanto a frequência da afecção relacionam-se com factores socioeconómicos e possivelmente também com factores genéticos.

A morbilidade e mortalidade da doença invasiva também é mais elevada em crianças com síndromas de imunodeficiência humoral (infecção por VIH, agamaglobulinémia, deficiência selectiva de subclasses de IgG), deficiência de complemento (sobretudo C1, C2, C3 e C4), disfunção dos neutrófilos ou neutropenia, deficiente ou ausente função esplénica (asplenia congénita ou cirúrgica, doença de células falciformes, outras hemoglobinopatias), síndroma nefrótica, insuficiência renal crónica, status pós-transplantação de órgão, doença oncológica, diabetes mellitus, condições associadas à diminuição do processo de depuração respiratória (asma, doença pulmonar obstrutiva crónica, bronquite crónica) e insuficiência cardíaca. Os doentes com defeitos congénitos e fístula de comunicação exterior e eliminação de LCR, fractura craniana ou submetidos a intervenção neurocirúrgica, comportam também risco mais elevado de doença invasiva pneumocócica.

A permanência em locais com aglomerados de pessoas aumenta o risco de infecção pneumocócica por haver uma maior exposição e possibilidade de transmissão do agente. As crianças que frequentam infantários, onde se combinam vários factores de risco de disseminação do pneumococo, têm também risco mais elevado de otite e doença invasiva. As infecções víricas do tracto respiratório superior são outro factor predisponente de infecções pneumocócicas, o que poderá explicar a sua maior frequência nos meses de Inverno.

Os portadores de Streptococus pneumoniae, ou seja, pessoas assintomáticas, sem doença, transmitem a bactéria a outras pessoas. As crianças, sobretudo em idade pré-escolar, constituem um importante reservatório e potencial disseminador da infecção (salientando-se, a propósito, que nos adultos as taxas de colonização são mais elevadas quando convivem com crianças).

A prevalência do estado de portador depende ainda da interacção bactéria/hospedeiro, da idade, da situação imunológica e da relação entre pneumococo e outros microrganismos da nasofaringe. Vários outros factores potenciam o estado de portador: a frequência de infantário, exposição a fumo de tabaco e uso recente e abusivo de antibióticos.

O Quadro 1 sintetiza os principais factores de risco de doença pneumocócica invasiva.

QUADRO 1 – Factores de risco de doença pneumocócica invasiva.

Alto risco (> 150 casos/100.000/ano)  
    • doença de células falciformes, asplenia congénita ou adquirida, ou disfunção esplénica
    • infecção por VIH
    • implantes cocleares
Alto risco provável
    • síndroma de imunodeficiência congénita
    • cardiopatia crónica (particularmente se cianótica)
    • doença pulmonar crónica
    • fractura do crânio, procedimento neurológico, ou fuga de LCR através de trajecto fistuloso
    • insuficiência renal crónica, síndroma nefrótica
    • doenças associadas a tratamento com imunossupressores ou radioterapia
    • diabetes
mellitus
Risco moderado (~20-150 casos/100.000/ano)
    • crianças com idades de 24-35 meses
    • crianças com idades de 36-59 meses em infantários
    • idem se etnia africana ou índia- americana/descendentes de nativos do Alasca

Etiopatogénese

Nas crianças, principalmente nas mais pequenas, ao ser adquirido um novo serótipo do pneumococo, surge doença clínica em 15% dos casos, cerca de um mês depois. A progressão do estado de colonização para o estado de doença depende habitualmente da aquisição de um serótipo para o qual o hospedeiro não está imune (ver atrás), e da existência de factores predisponentes.

Quando o pneumococo atinge a nasofaringe, a respectiva cápsula (de cuja espessura poderá depender a virulência) limita a fagocitose. Por outro lado, desencadeiam-se mecanismos locais de depuração que tentam remover o agente, ao mesmo tempo que ocorre resposta imune que inclui produção de anticorpos específicos para a cápsula do serótipo em causa, os quais influem na opsonização e fagocitose, na produção de IL-6, TNF, IL-1 e no influxo de neutrófilos para o local de infecção.

Estudos in vitro demonstraram o papel importante duma proteína A ligada à colina (CbpA) na superfície capsular que facilita a entrada do pneumococo nas células do epitélio, o que é facilitado se tiver havido uma infecção vírica prévia.

O agente infeccioso pode progredir para o ouvido médio, tracto respiratório inferior, ou corrente sanguínea e atingir órgãos e tecidos vários (por ex. articulações), espaço subaracnoideu e meninges (podendo estas últimas ser invadidas por extensão directa através do ouvido médio ou seios perinasais).

Por outro lado, foi demonstrado o papel duma toxina (pneumolisina -Ply) com acção lesiva na estrutura e função das células epiteliais brônquicas, designadamente na destruição dos cílios o que, comprometendo os mecanismos de depuração brônquica, facilita a disseminação do agente para as vias mais distais. Outra acção da Ply é a inibição da produção de citocinas pelos neutrófilos e a toxicidade para as células cocleares, o que explica a ocorrência de perda auditiva em crianças com antecedentes de doença pneumocócica.

Manifestações clínicas

Otite média aguda

Na criança a infecção mais frequente causada por Streptococcus pneumoniae é a otite média aguda (OMA). Por outro lado, o referido agente é também a causa mais frequente de otite na idade pediátrica, estimando-se que seja responsável por 40 a 60% de todos os episódios de OMA entre os 6 meses e os 2 anos de idade; a otalgia, a irritabilidade na criança mais pequena, a febre e o eritema da membrana timpânica são habitualmente mais marcados que nas otites de outra etiologia. Comparativamente a outros agentes, na otite pneumocócica a remissão espontânea na ausência de tratamento é mais rara e o aparecimento de complicações é mais frequente.

Mastoidite e sinusite

Streptococcus pneumoniae é responsável por cerca de 45% dos casos de mastoidite aguda, a complicação mais frequente da OMA; de salientar que um elevado número de casos se associa a uma incorrecta terapêutica desta última.

A verdadeira incidência da sinusite pneumocócica na criança é desconhecida, possivelmente por se tratar duma entidade clínica muitas vezes subdiagnosticada. Estima-se que o pneumococo cause 35 a 40% das sinusites bacterianas na criança.

Pneumonia

Streptococcus pneumoniae é a causa mais frequente de pneumonia adquirida na comunidade. Classicamente a febre é superior a 39ºC, com início súbito, acompanhada de tosse, prostração, vómitos, dor torácica ou abdominal, salientando-se que na criança mais pequena o quadro poderá ser menos exuberante.

Um padrão radiológico de infiltrados alveolares, com consolidação lobar em 50% dos casos, com ou sem derrame pleural, um valor de leucócitos > 15.000/mm3, de neutrófilos > 70% e de proteína C reactiva (PCR) > 6 mg/dL poderão contribuir para o diagnóstico etiológico. Se existir bacteriémia, as complicações são mais frequentes.

Bacteriémia

Streptococcus pneumoniae é responsável por cerca de 85-90% das bacteriémias na idade pediátrica. Bacteriémia oculta (BO), definida pela presença de bactérias no sangue detectada por hemocultura, em criança febril, sem foco identificado, com bom estado geral (por conseguinte, sem sinais clínicos sugestivos de sépsis), é a manifestação mais frequente de doença invasiva pneumocócica entre os 90 dias e os 3 anos de idade.

No exame objectivo não são evidenciadas alterações. Em cerca de 40% das crianças a febre tem uma duração inferior a 1 dia e em 82%, inferior a 2 dias. Valores de leucócitos > 15.000/mmc e de neutrófilos > 10.000/mmc são altamente preditivos de bacteriémia. Na maioria dos casos, a BO regride espontaneamente, conquanto ~10% desenvolvam complicações focais, e ~3-6% meningite.

Meningite

Streptococcus pneumoniae é a causa mais frequente de meningite bacteriana. As manifestações clínicas típicas de febre, vómitos, meningismo e irritabilidade têm um início súbito e evolução rápida. Em cerca de 25% dos casos ocorrem convulsões, e em cerca de 15%, alterações do estado de consciência, coma e choque séptico. A presença de febre prolongada por um período até 10 dias, ou febre recorrente após apirexia, associa-se habitualmente a complicações precoces tais como derrame subdural ou empiema. Deve considerar-se a repetição de punção lombar após 24-48 horas de terapêutica no caso de não se verificar melhoria clínica, ou de se identificar um pneumococo não susceptível à penicilina. Constitui factor de mau prognóstico valor de leucócitos no sangue periférico < 5.000/mmc.

Os achados característicos no LCR são: leucócitos > 100 a 10.000/mmc com predomínio de neutrófilos (excepto na circunstância de tratamento prévio), proteínas > 100-500 mg/dL e glicose < 40 mg/dL (ou < 50% do valor da glicémia).

O atraso do início da antibioticoterapia agrava o prognóstico. A mortalidade varia entre 10 a 20% e, a longo prazo, em cerca de 25 a 35% das crianças poderão surgir sequelas neurológicas graves como surdez, disfunção motora, epilepsia, atraso do desenvolvimento e problemas de aprendizagem ou de insucesso escolar.

Outros quadros clínicos

Streptococcus pneumoniae pode ainda (mais raramente) causar outros quadros clínicos como pneumococcemia fulminante, artrite séptica, osteomielite, celulite, peritonite, endocardite, SHU, CIVD e pericardite. Nestas situações existem habitualmente factores de risco (descritos no capítulo sobre Pneumonias).

Diagnóstico

Exames culturais

O diagnóstico definitivo baseia-se na identificação de Streptococcus pneumoniae no foco de infecção, LCR ou sangue, por exame cultural.

Embora os pneumococos possam ser detectados na nasofaringe de doentes com otite média, pneumonia, septicémia ou meningite, tal isolamento não deve ser interpretado como indicativo de infecção, uma vez que poderá tratar-se de colonização do tracto respiratório superior. Por este motivo as provas rápidas para detecção de antigénios não têm qualquer interesse e não devem ser realizadas.

O agente infeccioso pode ser identificado no LCR sem reacção celular significativa nas fases iniciais de meningite. Está indicado proceder a hemoculturas nos casos de pneumonia, meningite, artrite, osteomielite, peritonite, pericardite ou lesões gangrenosas da pele e sempre que se verifique mau estado geral ou leucocitose significativa. Actualmente os métodos laboratoriais permitem obter resposta em menos de 24 horas.

Em todos os exames culturais deve proceder-se a testes de susceptibilidade aos antimicrobianos (TSA) e determinar a concentração inibitória mínima (CIM) para a penicilina como orientação da terapêutica de cada caso e com objectivo epidemiológico.

Serotipagem

Pelas implicações clínicas, epidemiológicas e de saúde pública, torna-se fundamental proceder a esta técnica, designadamente para identificação ou exclusão de serótipos associados a doença invasiva.

Testes de biologia molecular

Na ausência de identificação do microrganismo em exames culturais, o diagnóstico etiológico deve ser realizado por técnicas de biologia molecular com pesquisa de sequências específicas de ARN ou de ADN em produtos no local da infecção.

Outros exames

Determinados achados laboratoriais, como valor de leucócitos >15.000/mm3, valor de proteína C reactiva > 6 mg/dL ou imagiológicos, como padrão radiográfico torácico de consolidação lobar ou segmentar poderão complementar os dados clínicos e orientar o diagnóstico. Salienta-se que nos casos graves de doença pneumocócica, como anteriormente referido, poderá verificar-se leucopénia com desvio à esquerda.

Tratamento

A escolha da antibioticoterapia deve basear-se no conhecimento epidemiológico e na susceptibilidade aos antimicrobianos, tendo em conta: – a localização da infecção; – o local e gravidade do quadro clínico; e – factores de risco do hospedeiro.

As resistências do pneumococo aos antibióticos constituem um problema crescente a nível mundial. As resistências à penicilina (entre 20 e 70%) e à ceftriaxona têm vindo a aumentar. Os serótipos 6B, 9A, 14, 19A, 19F e 23F, que mais frequentemente causam doença invasiva, evidenciam também resistências elevadas à penicilina.

No nosso País, o conhecimento epidemiológico das susceptibilidades (ou sensibilidades) aos antimicrobianos indica que a terapêutica de eleição das infecções pneumocócicas continua a ser a penicilina.

A este respeito convém reter algumas noções práticas:

  1. Os pneumococos são considerados como sendo susceptíveis, resistentes ou com resistência intermédia a vários antibacterianos, com base na verificação da concentração inibitória mínima (CIM), tendo como referência certos limites desta. Por exemplo, considerando-se a resistência à penicilina, na prática e em geral, a mesma é considerada intermédia se se verificar CIM entre 0,1-1µg/mL, e elevada se > 2 µg/mL.
  2. Mesmo na presença de pneumococos resistentes à penicilina (PnRP), em infecções localizadas no ouvido e aparelho respiratório, onde é possível obter concentrações mais elevadas que as CIM para o microrganismo, recomenda-se a penicilina ou a amoxicilina em doses elevadas, sendo de notar que a formulação pediátrica de penicilina por via oral não está disponível em Portugal.
  3. No LCR, cujas CIM bactericidas necessárias para a erradicação do agente são mais elevadas, na presença de PnRP deve optar-se por outros antibióticos.

A antibioticoterapia empírica deve realizar-se de acordo com as diferentes entidades clínicas da doença pneumocócica apresentadas nos Quadros 2 e 3, estando implícita a noção da necessidade de proceder à realização do TSA concomitantemente, a ponderar em função do contexto clínico.

QUADRO 2 – Antibioticoterapia nas infecções pneumocócicas.

Entidade AntibióticoDuraçãoComentário
Otite MédiaAmoxicilina5-7 diasTimpanocentese com colheita de pus para exame
cultural e TSA na otite média crónica ou refractária à terapêutica
Mastoidite Amoxicilina10 diasTimpanocentese com colheita de pus para exame
cultural e TSA
Sinusite Amoxicilina14 dias 
Pneumonia Penicilina G cristalina
ou Amoxicilina
10 diasO resultado do exame cultural das secreções pode
ser falso positivo por colonização da nasofaringe
Realizar 2 hemoculturas
Bacteriémia Amoxicilina;
Ceftriaxona (alternativa) se: Doentes de risco; Se CIM > 2 μg/mL;
Febre alta com aspecto geral de doença
7 a 10 diasRealizar 2 hemoculturas (cada colheita com 2 mL
de sangue no mínimo) com TSA/CIM
Meningite Iniciar com ceftriaxona e vancomicina até se conhecer TSA/CIMCeftriaxona+Vancomicina+ Rifampicina
Se CIM > 2 μg/mL
14 dias
21 dias se
complicações
Modificar a terapêutica de acordo com TSA/CIM
Solicitar CIM para Ceftriaxona
Abreviatura: PnPs = Pneumococo sensível à penicilina

QUADRO 3 – Doses e Intervalos de administração dos antibióticos.

Antibiótico Dose diária Dose máxima Nº de administrações
Amoxicilina 80-100 mg/Kg/dia 3 g 2-3
Penicilina 200.000-400.000 UI/Kg/dia 30.000.000 UI 4
Ceftriaxona 100 mg/Kg/dose 4 g 1-2
Vancomicina 60 mg/Kg/dia 2 g 3
Rifampicina 20 mg/Kg/dia 1,2 g 2

Prognóstico

A gravidade da doença depende de variáveis como o local da infecção, factores do hospedeiro, factores de virulência do agente e mecanismos de resistência aos antibióticos. O Quadro 1, sintetizando factores de risco de grau variável, permite compreender o resultado final.

Prevenção

Medidas não imunológicas

As medidas não imunológicas incluem a redução dos factores de risco da doença e do estado de portador, o uso criterioso de antibióticos em geral, e a modificação de alterações anatómicas predisponentes à infecção pneumocócica.

Medidas imunológicas

As vacinas conjugadas e as vacinas polissacarídicas polivalentes assumem um papel de primordial importância nas estratégias de prevenção da doença pneumocócica.

A vacina conjugada heptavalente, a primeira a ser comercializada, que conferia protecção para os serótipos 4, 6B, 9V, 14, 18C, 19F e 23F, contribuiu para a diminuição da incidência da DIP, da colonização da nasofaringe e da transmissão interpessoal em idades precoces. Actualmente a vacina conjugada para 13 serótipos inclui, para além dos anteriores, os seguintes serótipos 1, 5, 7F, 3, 6A e 19A.

Em Portugal, à semelhança de outros países em que esta vacina está incluída em PNV, espera-se diminuição significativa da doença invasiva na criança e, adicionalmente, efeito de imunidade de grupo, também no adulto.

A vacina polissacarídea confere protecção para 23 serótipos, mas a sua eficácia é bastante menor que a conferida pelas vacinas conjugadas e só pode ser admistrada a partir dos 2 anos de idade.

Crianças e adolescentes com risco aumentado de DIP devem receber a vacina VPC13 e também a vacina polissacarídea para 23 serótipos (intervalo de dois meses entre elas).

Quimioprofilaxia

Uma vez que as vacinas actuais não previnem a totalidade de infecções pneumocócicas invasivas, nas crianças com alto risco de DIP (Quadro 1), incluindo crianças com asplenia ou síndromas falciformes, é recomendada a profilaxia com penicilina G benzatínica até aos 5 anos.

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CELULITES PERIORBITÁRIAS E ORBITÁRIAS

Definição e importância do problema

A designação de celulite periorbitária corresponde a um processo inflamatório da hipoderme e do tecido conjuntivo subcutâneo, com ligeiro compromisso da derme, ao nível da pálpebra e tecidos periorbitários, sem proptose ou limitação do movimento ocular.

A celulite orbitária corresponde a um processo inflamatório dos tecidos da órbita com proptose, limitação dos movimentos do globo ocular, associado a edema da conjuntiva com rebordo saliente avermelhado em torno da córnea (quemose).

À primeira também se chama pré-septal (ou anterior ao septo orbitário), e à segunda, pós-septal (ou posterior ao septo orbitário), considerando-se anatomicamente o septo orbitário (folheto fibroso) como uma barreira entre os dois referidos espaços.

Na pálpebra superior, o septo tem origem no periósteo do rebordo orbitário superior, ligando-se ao bordo superior do tarso* da pálpebra (zona correspondente à zona de rebatimento da pele (concavidade circundante da respectiva pálpebra).

O septo ao nível da pálpebra inferior origina-se ao nível do periósteo do rebordo orbitário inferior, inserindo-se no bordo inferior do tarso* da pálpebra inferior (correspondente à concavidade inferior circundante da pálpebra inferior).

Estas noções anatómicas têm implicações clínicas importantes; com efeito, como se disse, o septo constitui uma barreira biológica que dificulta (não impedindo, no entanto) a difusão da infecção do espaço pré-septal para o espaço orbitário. Por outro lado, a localização pós-septal não implica necessariamente infecção prévia pré-septal.

* Recorda-se a definição de tarso palpebral: lamela de tecido conjuntivo relativamente denso, com forma semilunar, que constitui o bordo livre da pálpebra superior ou inferior.

Aspectos epidemiológicos

A celulite periorbitária é mais frequente que a celulite orbitária, sendo a primeira mais comum em crianças mais pequenas (< 5 anos); a segunda predomina em crianças mais velhas, o que é relacionável com o maior desenvolvimento dos seios perinasais nesta última circunstância.

A celulite orbitária ocorre mais frequentemente no sexo masculino (2:1), com maior incidência no final do Outono e início da Primavera, coincidindo com o pico de incidência de sinusite. A idade média na data do diagnóstico é de 7 anos.

Etiopatogénese

Os agentes patogénicos implicados são difíceis de identificar, pois as hemoculturas são maioritariamente negativas e as culturas orbitárias apenas são realizadas se estiverem indicadas intervenção cirúrgica e drenagem; de facto, demonstrou-se que os resultados de tais exames poderão não reflectir a etiologia das celulites orbitárias com precisão.

Antes da introdução da vacina conjugada anti-Haemophilus influenzae tipo b, este era o agente microbiano mais comum nas crianças de idade inferior a 2 anos. Actualmente contam-se como agentes mais frequentemente implicados os seguintes: Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae não tipável, Moraxella catarrhalis, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus meticilino-sensível, grupo S. anginosus (milleri) e anaeróbios (Bacteroides, Peptostreptococcus, Prevotella, Fusobacterium).

Nas últimas décadas, infecções por S. aureus meticilino-resistente (MRSA) têm tido incidência crescente, sobretudo no continente americano. Outros agentes etiológicos mais raros incluem Pseudomonas aeruginosa (indivíduos imunocomprometidos) e Eikenella corrodens. A infecção polimicrobiana (aeróbios e anaeróbios) surge sobretudo em crianças mais velhas.

A etiologia fúngica é rara, nomeadamente a mucormicose típica do doente diabético; a primeira, juntamente com a aspergilose são típicas nos doentes imunocomprometidos, apresentando uma evolução mais lenta ao longo de meses.

A infecção por micobactérias (sobretudo M. tuberculosis) é rara.

De acordo com o ponto de partida da infecção, podem ser consideradas diferentes etiologias, discriminadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Etiologias mais prováveis de acordo com o ponto de partida da infecção presumível.

PatologiaAgente mais provável
Sinusite / Infecção respiratóriaS. pneumoniae, H. influenzae não tipável, M. catarrhalis, Streptococcus spp, S. aureus, Anaeróbios
Traumatismo / Picada / Infecção cutâneaS. aureus (SAMS), S. pyogenes
HordéoloS. aureus
DacriocistiteS. pneumoniae, H. influenzae não tipável, S. pyogenes, S. aureus, P. aeruginosa
Abcesso dentárioPolimicrobiano (aeróbios e anaeróbios)
Infecção sistémica
– via hematogénica
S. pneumoniae, H. influenzae não tipável, S. pyogenes, S. aureus


A celulite pré-septal surge na sequência de três possíveis mecanismos: lesões traumáticas penetrantes (ferida, picada de insecto, mordedura); inflamações ou infecções perioculares (dacriocistite, dacrioadenite, calázio, conjuntivite, infecção cutânea); ou, menos frequentemente, difusão de microrganismos a partir de infecções dos seios perinasais ou nasofaringe para o espaço pré-septal.

A celulite pós-septal surge maioritariamente (70-90%) como consequência de sinusite, por extensão do processo infeccioso.

O seio etmoidal é o ponto de partida mais frequente; seguem-se, por ordem decrescente quanto ao referido ponto de partida, outras localizações – etmoidal > maxilar > frontal > esfenoidal-, verificando-se disseminação através da lamina papyracea.

A razão pela qual o espaço orbitário está particularmente predisposto à difusão da infecção a partir dos seios perinasais relaciona-se com particularidades anatómicas regionais: deiscências ósseas naturais nas paredes dos seios esfenoidais e etmoidais (lamina papyracea); e veias orbitárias sem válvulas, o que permite comunicação entre os seios e a órbita por via sanguínea.

Pela rapidez da evolução clínica, e pela proximidade das estruturas do SNC, sobretudo nos casos de celulite pós-septal, existe risco de lesão do globo ocular, nervo óptico, assim como de trombose do seio cavernoso, meningite e abcesso cerebral.

Frequentemente verifica-se infecção de dois seios perinasais, sendo a combinação etmoidal-maxilar a mais frequente. Outros mecanismos incluem: infecções odontogénicas; lesões penetrantes com solução de continuidade do septo orbitário (traumatismo, status pós-cirurgia ocular, etc.) ou disseminação hematogénica por bacteriémia que, sendo rara, pode ocorrer por S. pneumoniae, S. pyogenes, S. aureus ou H. influenzae não tipável.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas permitem, na maioria dos casos, estabelecer a diferença entre celulite pré-septal e pós-septal. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Diferenças clínicas entre a celulite pré-septal e pós-septal.

Celulite pré-septalCelulite pós-septal
Edema palpebral com ou sem eritema
Febre
Visão não afectadaDor ocular marcada
Dor com os movimentos oculares
Quemose
Proptose
Oftalmoplegia
Alteração da resposta pupilar
Alterações visuais


Podem ser considerados 5 estádios de evolução, salientando-se, e reiterando, que a celulite pré-septal não precede obrigatoriamente a celulite pós-septal. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Estádios da doença (adaptado de Chandler et al, 1970).

Estádio I
Celulite pré-septal
    • Edema e eritema palpebral (superior e/ou inferior)
    • Sem dor ou limitação dos movimentos oculares
    • Sem sinais sistémicos
Estádio II
Celulite pós-septal
    • Edema e eritema palpebral, quemose
    • Dor referida à órbita
    • Proptose
    • Limitação dos movimentos oculares, com dor associada nas posições extremas
    • Febre
Estádio III
Abcesso subperióstico
    • Igual ao anterior + eventual diminuição da acuidade visual e proptose
Estádio IV
Abcesso da órbita
    • Igual ao anterior + dor ocular intensa + compromisso da visão + oftalmoplegia
Estádio V
Trombose do seio cavernoso
    • Igual ao anterior. Poderão surgir sinais bilateralmente (após 24-48h), dada a inexistência de mecanismo valvular venoso no seio cavernoso.
    • Síndroma do ápex orbitário – ptose unilateral, proptose, perda de visão, oftalmoplegia intrínseca e extrínseca (midríase por paralisia do par III, e dos músculos extrínsecos por paralisia dos pares III, IV e VI), e perda da sensibilidade da região frontal até à linha média por compromisso do par V (raiz sensitiva)


As Figuras 1, 2, 3 e 4 documentam respectivamente os estádios I, II, II e IV.

FIGURA 1. Estádio I – celulite pré-septal ou periorbitária.

FIGURA 2. Estádio II – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: assimetria de estruturas/proptose do olho direito.

FIGURA 3. Estádio III – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: espaço orbitário preenchido por imagem “em meia lua” com contorno nítido (abcesso subperióstico secundário a sinusite), correspondendo ao levantamento do periósteo pela colecção purulenta; compressão do nervo óptico e do próprio globo ocular.

FIGURA 4. Estádio IV – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: espaço orbitário preenchido por imagem “em meia lua” com contorno denteado, e densidade diferente da anterior, correspondendo ao abcesso do espaço orbitário, comprimindo o nervo óptico e o próprio globo ocular.

Estabelecendo uma relação com aspectos da patogénese já descritos anteriormente, importa salientar sob o ponto de vista clínico que a evolução para abcesso subperióstico e abcesso orbitário, as complicações mais frequentes, pode ser rápida. O abcesso subperióstico surge maioritariamente por extensão de sinusite etmoidal, facilitada através da lamina papyracea.

No abcesso orbitário, o aumento da pressão intraorbitária com consequente oclusão dos vasos da retina, assim como a neurite óptica associada, podem condicionar alteração da visão. Como manifestação clássica cita-se a fixação do olhar “para baixo e para fora”. A ausência de reflexo pupilar aferente é um sinal precoce de complicação, o que implica necessidade da sua detecção com regularidade e em tempo útil. A extensão da infecção para o SNC- traduzida por empiema epidural ou subdural, meningite e abcesso cerebral-, e a trombose do seio cavernoso são as complicações mais temidas.

Exames complementares

Exames laboratoriais

Na celulite pré-septal e pós-septal pode verificar-se a presença de leucocitose, embora seja mais frequente nesta última. A bacteriémia ocorre em cerca de 33% das crianças com idade inferior a 4 anos. Por isso, deve realizar-se hemocultura antes do início da antibioticoterapia, embora o isolamento microbiano a partir do sangue seja raro. Nos casos com necessidade de intervenção cirúrgica deve proceder-se a:

  • exame bacteriológico da amostra colhida; e
  • exames micológico e para micobactérias em crianças com factores de risco como imunossupressão.

A pesquisa microbiana através de zaragatoa nasal e/ou conjuntival tem pouco interesse para o diagnóstico etiológico.

Exames imagiológicos

A tomografia axial computadorizada (TAC) da órbita e seios perinasais (de preferência com contraste intravenoso) é importante para avaliar a extensão da celulite e as complicações. Deve ser realizada em todos os casos que apresentem sintomas ou sinais sugestivos de celulite da órbita, de envolvimento do SNC (convulsões, alterações do estado de consciência), incerteza quanto ao diagnóstico (menor colaboração no exame objectivo em crianças com <1 ano) e deterioração do estado geral ou intensificação dos sinais inflamatórios locais apesar de tratamento instituído (após 24-48 horas).

A ressonância magnética (RM) é o exame de eleição na suspeita de trombose do seio cavernoso (desenvolvimento de sintomas bilaterais após um período unilateral, ou clínica sugestiva de síndroma do ápex orbitário).

Da mesma forma, na suspeita de complicações intracranianas está indicada a realização de punção lombar, sempre após TAC crânio-encefálica e na asusência de contraindicação.

Diagnóstico diferencial

O edema palpebral presente, quer na celulite pré- como pós-septal, pode ter múltiplas causas, a destacar: reacção alérgica, hipoproteinémia (edema bilateral), enfarte da parede da órbita e hematoma subperióstico (por doença de células falciformes, designadamente).

O diagnóstico diferencial de proptose inclui inúmeras patologias de origem infecciosa e não-infecciosa: trombose do seio cavernoso, pseudotumor da órbita, granulomatose de Wegener, sarcoidose, linfoma, rabdomiossarcoma, retinoblastoma, histiocitose X e doença de Graves (proptose bilateral). A síndroma do apex orbitário, que pode decorrer destas etiologias, pode ser forma de apresentação de mucormicose ou aspergilose em doentes imunocomprometidos.

Tratamento

As celulites pré e pós-septal devem ser rápida e agressivamente tratadas. A escolha de antibioticoterapia deve ser feita de acordo com o ponto de partida de infecção presumível, idade do doente, presença de co-morbilidades e complicações.

Na celulite pré-septal poderá ser considerado o tratamento em regime ambulatório e por via oral nas crianças de idade superior a 1 ano, sem doença subjacente, sem sinais sistémicos, com condições para boa adesão à terapêutica, e garantia de vigilância médica 24 horas após o início do mesmo.

A amoxicilina com ácido clavulânico ou a cefuroxima oral são boas opções terapêuticas nas crianças em que o ponto de partida aparenta ser sinusite, infecção odontogénica, conjuntivite ou mordedura de cão. Na presença de hordéolo, calázio, dacrioadenite, dacriocistite, lesão cutânea ou picada de insecto a escolha é a flucloxacilina.

A celulite pós-septal deve ser sempre tratada em regime de internamento, com vigilância rigorosa dos sinais clínicos sugestivos de extensão ou complicação do processo infeccioso. Nestes casos, as opções terapêuticas devem ser de aplicação intravenosa:

  • amoxicilina com ácido clavulânico (50 mg/kg/dose 8/8h de amoxi-) ou,
  • cefuroxima (150 mg/kg/dia 8/8h) associada ou não à clindamicina (30-40 mg/kg/dia 6/6h).

Na suspeita de bacteriémia é preferível optar por ceftriaxona (100 mg/kg/dia 24/24h) ou cefotaxima (200 mg/kg/dia 6/6h).

No abcesso subperióstico ou orbitário associa-se habitualmente a clindamicina ou o metronidazol à cefalosporina de terceira geração.

Nos doentes com suspeita de extensão intracraniana, deve optar-se por ceftriaxona ou cefotaxima (200 mg/kg/dia 6/6h) em associação à vancomicina (60 mg/kg/dia 8/8h) e metronidazol (30 mg/kg/dia 8/8h).

Nos doentes com celulite não complicada é possível a transição para terapêutica oral após 24h de apirexia, na condição de se verificar melhoria dos sinais inflamatórios locais, habitualmente após 3 a 5 dias de terapêutica intravenosa. A duração total é de 10 dias, excepto nos casos de sinusite aguda (14 dias), complicações intracranianas (4-8 semanas) e de sinusite etmoidal com destruição óssea (6-8 semanas).

Na suspeita de infecção confirmada por S. aureus meticilino-resistente (MRSA) é recomendado o uso de vancomina.

Nos casos de infecção em doentes imunocomprometidos ou com outros factores de risco (por ex. diabetes mellitus mal controlada), deve ser considerada a etiologia fúngica e ponderar-se a instituição de antifúngico.

A terapêutica adjuvante com descongestionantes nasais, por um período de 7-10 dias e nos casos em que o factor predisponente é sinusite, pode facilitar a drenagem do seio infectado e promover a resolução do quadro. O uso de corticosteróides é controverso.

Salienta-se que a celulite pós-septal implica uma abordagem multidisciplinar, incluindo obrigatoriamente otorrinolaringologista, oftalmologista e neurocirurgião.

As situações que requerem intervenção cirúrgica urgente incluem: diminuição da acuidade visual, oftalmoplegia, sinusite frontal (Pott tuffy tumor, osteíte frontal), abcesso subperióstico de grandes dimensões (>10 mm) ou não-medial, abcesso orbitário, complicações intracranianas e ausência de melhoria ou agravamento clínico após 24-48h de antibioticoterapia adequada.

A abordagem cirúrgica do abcesso subperióstico é controversa. Alguns estudos defendem iniciar antibioticoterapia em crianças pequenas (< 9 anos), seguida de cirurgia na ausência de melhoria ou agravamento, o que requer uma monitorização rigorosa; alguns autores elegem o volume como melhor critério para escolha de abordagem, considerando que um abcesso que corresponda a > 1,25 cm3 deve ser submetido a intervenção cirúrgica.

O tratamento com anticoagulante na trombose do seio cavernoso, para além da terapêutica antibiótica e doutras medidas de suporte vital, é controverso. Alguns autores defendem os seus benefícios quando iniciado precocemente em doentes sem evidência de hemorragia.

Prognóstico

O prognóstico de celulite pré-septal é favorável após instituição de terapêutica adequada.

Raramente há progressão para celulite pós-septal ou complicações. Contrariamente, a celulite pós-septal é uma situação que comporta elevado risco: pode levar a perda visual definitiva, a complicações intracranianas e, até, à morte.

Na maioria dos casos em que a abordagem terapêutica médica e/ou cirúrgica é concretizada de forma urgente e eficaz (conforme é recomendado), não se verificam sequelas.

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INFECÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES

Definição e importância do problema

As infecções de pele e tecidos moles são processos inflamatórios que podem atingir todas as camadas da pele (epiderme, derme, folículos pilosos, hipoderme* e tecido celular subcutâneo).

Trata-se de patologia frequente em todas as idades pediátricas, correspondendo a cerca de 25% dos motivos de recurso aos serviços de urgência e de ambulatório. O diagnóstico precoce é fundamental, pois sem tratamento a morbilidade e mortalidade associadas são elevadas. Globalmente, Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes são os agentes mais frequentes; no entanto, são raras as entidades clínicas exclusivamente associadas a um destes agentes.

A lista de causas de infecções bacterianas da pele é extensa; neste capítulo são focadas as situações mais comuns e apenas as infecções bacterianas, tendo em conta a localização, profundidade, agente etiológico e clínica. (Quadro 1)

* As paniculites (ou hipodermites) são quadros clinicopatológicos em que se verifica inflamação do panículo adiposo (hipoderme) de etiopatogénese diversa (infecções, doenças inflamatórias e administração de fármacos).  Por vezes associadas a vasculite, nesta obra optou-se pela inclusão de tal nosologia na Parte sobre Reumatologia.

QUADRO 1 – Infeções da pele e tecidos moles: estruturas atingidas e microrganismos envolvidos

 EstruturaMicrorganismos
ImpetigoSimplesEpidermeStaphylococcus aureus
Streptococcus pyogenes
BolhosoS. aureus
Síndroma da Pele EscaldadaSistémicoS. aureus
ÉctimaEpiderme/DermeStreptococcus pyogenes/S. aureus
Éctima gangrenosaEpiderme/DermePseudomonas aeruginosa
Dermatite perianalEpidermeS. pyogenes/S. aureus
FoliculiteFolículo piloso superficial (epiderme e derme)S. aureus
Staphylococcus coagulase negativos
Klebsiella spp
Enterobacter spp
Escherichia coli
Pseudomonas aeruginosa
Proteus spp
FurúnculoFolículo piloso profundo (derme e hipoderme)S. aureus
CarbúnculoBacillus anthracis
ErisipelaDerme
Tecido celular subcutâneo (Vasos linfáticos)
S. pyogenes
Streptococcus grupo B, C e G
S. aureus
Streptococcus pneumoniae
CeluliteHipoderme
Tecido celular subcutâneo
S. pyogenes
S. aureus
Haemophilus influenzae tipo b
Streptococcus pneumoniae
Abcesso e FleimãoDerme e hipodermeS. aureus
S. pyogenes
Fascite NecrotizanteTecido celular subcutâneo
Fáscia
S. pyogenes
S. aureus
Polimicrobiano
Gangrena GasosaHipoderme
Tecido celular subcutâneo
Clostridium perfringens
PiomiositeMúsculoS. aureus
S. pyogenes
Streptococcus pneumoniae

Aspectos semiológicos

Para melhor compreensão da terminologia relacionada com as infecções da pele e dos tecidos moles a analisar, importa ter em consideração alguns aspectos semiológicos.

Lesões cutâneas primárias

  1. Sem relevo na superfície cutânea, atingindo a epiderme e derme (mancha ou mácula).
  2. Com relevo na superfície cutânea.

a) sólidas (sem conteúdo líquido)

  • pápula (atingindo a epiderme e derme);
  • nódulo (atingindo a epiderme, derme profunda até à hipoderme);
  • tumor (semelhante ao nódulo, mas de maiores dimensões.

b) com conteúdo líquido (atingindo a epiderme ou derme e epiderme)

  • vesícula;
  • bolha ou flictena;
  • pústula.

Entre pápulas, nódulos e tumores existem principalmente diferenças quantitativas; assim sucede entre vesícula e bolha (ou flictena). A pústula refere-se à natureza do conteúdo líquido (pus).

A Figura 1 e o Quadro 1 ilustram esquematicamente as principais formas clínicas de infecção da pele e tecidos moles.  

A – Impétigo B – Éctima C – Erisipela D – Abcesso e fleimão E – Ostiofoliculite F – Foliculite G – Furúnculo H – Antraz I – Hidrosadenite J – Perioniquia

FIGURA 1. Principais formas clínicas das infeções da pele e tecidos moles.

Lesões cutâneas secundárias

  1. Escama (pequena lâmina epidérmica seca que se destaca da superfície da pele em caso de perturbação da sua queratinização).
    Conforme o tamanho e aspecto, as escamas podem ser farinosas, furfuráceas, pitiriásicas e psoriásicas).
  2. Crosta (pequena formação sólida constituída na superfície da pele ou de uma mucosa por serosidade, sangue ou pus secos.
  3. Escoriação ou erosão (perda de substância limitada às camadas superficiais da pele, de uma mucosa ou de uma membrana superficial tal como a córnea). Na pele pode ser provocada por coceira.
  4. Fenda ou fissura (solução de continuidade ou abertura estreita e linear).
  5. Ulceração (processo patológico que leva à formação de úlcera ou a própria quando está em vias de constituição); o conceito, em comparação com escoriação, implica maior profundidade e maior dificuldade de cicatrização.
  6. Cicatriz (tecido fibroso neoformado substituindo perda de substância, tecido inflamatório, ou reunindo as partes divididas duma ferida ou uma incisão operatória).
  7. Atrofia (redução das dimensões de tecido ou de lesão anterior).

Etiopatogénese

Microbiota cutânea

O termo colonização refere-se à presença de microrganismos na pele, sem sinais ou sintomas associados. As bactérias colonizadoras podem ser residentes ou comensais; raramente condicionando doença, constituem a maior parte da microbiota dita normal ou saprófita (Staphylococcus epidermidis e Propionibacterium acnes). As bactérias transitórias ou contaminantes provêm da flora patogénica do meio ambiente (S. aureus, Streptococcus spp, microrganismos entéricos gram-negativos e Candida albicans) que se multiplicam e persistem na pele por tempo variado e podem causar doença ao hospedeiro. Esta distinção tem implicações clínicas importantes na interpretação dos resultados dos exames bacteriológicos cutâneos visto que, por vezes, é difícil distinguir entre colonização e infecção secundária.

Mecanismos de defesa

A pele íntegra constitui uma barreira anatómica eficaz contra a infecção. Fissuras ou escoriações, que podem ter múltiplas causas – picada, mordedura, traumatismo, queimadura, infecções (varicela), infestações e lesões de coceira (escabiose), ou ainda dermatoses primárias (eczema ou psoríase) – são a porta de entrada para múltiplos microrganismos que predispõem a infecção. São também factores predisponentes importantes as síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida, prematuridade, diabetes mellitus e terapêutica imunossupressora (por ex. corticoterapia).

Para além de barreira anatómica, a pele também funciona como barreira imunológica, integrando mecanismos de imunidade inata e adaptativa. A resposta inata, a linha de defesa inicial contra os microrganismos patogénicos, é rápida, inespecífica e limitada. Os queratinócitos da epiderme produzem péptidos cutâneos microbicidas em resposta a padrões moleculares associados a patogénios (PAMP ou DAMP) e citocinas pro-inflamatórias (IL-1, IL-6, TNFa) em resposta à infecção. As células de Langerhans integram no citoplasma os microrganismos e produzem Il-1b, Il-6. Esta resposta integra ainda a produção de citocinas imunomoduladoras (IL-10, TGF-β) (que mantêm a integridade da barreira), proteínas do complemento (promovendo a opsonização de microrganismos extracelulares), células fagocitárias (neutrófilos e macrófagos), células Natural Killer e outras células “promovendo a apresentação” de antigénios.

Sendo a resposta imune inata a primeira linha de defesa, a resposta imune adaptativa é mais tardia, específica para o antigénio e com capacidade de memória. Em infecções da pele a resposta imunitária adaptativa é efectuada principalmente por células T e anticorpos IgE. Em resposta aos antigénios apresentados pelas células dendríticas, as células T activadas expandem-se e formam vários subtipos, de que se destacam as células T CD4+, Th1, Th2, Th17 e Tregs.

Patogenicidade

Sendo os agentes S. aureus e S. pyogenes os principais microrganismos responsáveis pelas infecções da pele e tecidos moles, é importante salientar os principais mecanismos de patogenicidade.

S. aureus – adere à pele e, na presença de lesão, pode invadir o epitélio, atingir os tecidos mais superficiais e estender-se aos mais profundos, causando infecção. Este patogénio tem capacidade de produção de múltiplos factores de virulência, nomeadamente diferentes toxinas – enterotoxinas, TSST-1(toxic shock syndrome toxin-1) e toxinas esfoliativas (A e B) – que funcionam como superantigénios e induzem resposta inflamatória sistémica que é responsável pelas manifestações clínicas características do processo infeccioso. A leucocidina de Panton-Valentine (LPV) é uma citotoxina particularmente virulenta que provoca destruição leucocitária e necrose tecidual; tem sido encontrada nas infeções mais graves. A resistência à meticilina – S. aureus meticilino-resistente (SAMR) – tem aumentado nos últimos anos, principalmente no âmbito dos cuidados de saúde, mas também na comunidade. Pode estar associada a um aumento de virulência relacionada com vários factores, como a produção da toxina LPV. Esta capacidade de resistência é conferida pela PBP2a (penicillin-binding protein 2a), que é codificada pelo gene mecA.

S. pyogenes adere à superfície das células do hospedeiro e invade as células epiteliais, utilizando uma variedade de estratégias para se difundir e causar infecção. A virulência deste organismo depende sobretudo da proteína M que promove a adesão, confere resistência à fagocitose e ilude a resposta inata do organismo. Com base nesta proteína de superfície, com características antigénicas, estão identificados cerca de 200 serótipos distintos, sendo que os tipos associados a infecções cutâneas raramente causam faringite. Existem outros mecanismos de evasão como a cápsula de ácido hialurónico, exotoxinas, hemolisinas estreptocócicas O e S, leucocidina, estreptoquinase, desoxirribonuclease, hialuronidase, peptidase C5a e estreptodornase – descritos noutro capítulo.

Actualmente tem surgido o conceito de reguladores da expressão de factores de virulência, os quais controlam de forma complexa a síntese destes factores ao longo do tempo e sob determinadas situações, como o designado CovRS. A transmissão de infecções estreptocócicas e estafilocócicas faz-se sobretudo por contacto direto.

Formas clínicas

1. Impetigo

Trata-se duma infecção superficial da epiderme, muito contagiosa, caracterizada por vesículas, pústulas e posteriormente crostas. É a infecção cutânea mais frequente na idade pediátrica, correspondendo a cerca de 10% de todos os problemas dermatológicos. Descrevem-se duas formas de impetigo: – o superficial simples não bolhoso, que é o mais frequente (70% dos casos); e – o impetigo bolhoso.

Impetigo não bolhoso

O impetigo superficial simples não bolhoso corresponde a uma infecção superficial da pele, com atingimento da epiderme. Tem uma incidência máxima entre os 2 e os 5 anos, sendo raro abaixo dos 2 anos.

Atinge preferencialmente crianças e jovens em condições precárias de higiene ou classe social baixa. Tem maior prevalência no verão e em climas tropicais (quente e húmido) e pode ocorrer em epidemias familiares ou em escolas e infantários.

O agente etiológico mais frequente é S. aureus, seguido por S. pyogenes. Em cerca de 15% dos casos de impetigo, estes dois microrganismos encontram-se associados.

Clinicamente estas duas entidades são de muito difícil distinção. As lesões típicas começam na face, com predomínio periorificial, ou membros inferiores, em pele previamente traumatizada; inicia-se por uma lesão maculopapular eritematosa que rapidamente evolui para vesícula e pústula com crosta do tipo “cor de mel”. Habitualmente de diâmetro inferior a 2 cm e com halo eritematoso não é dolorosa, evoluindo com prurido ocasional e sem repercussão sistémica. Na maioria dos casos pode ter associada adenopatia regional.

Ao fim de algum tempo as crostas destacam-se e, na superfície da pele, pode surgir ligeira descamação e alteração da pigmentação, sem ulterior formação de cicatriz (Figura 2). O diagnóstico é clínico e o diagnóstico diferencial inclui infecções por herpes, tinha e eczema agudizado.

FIGURA 2. Impetigo.

Impetigo bolhoso

O impetigo bolhoso tem maior incidência em lactentes e crianças pequenas. É causado quase exclusivamente por uma toxina esfoliativa produzida por S. aureus (cerca de 80% pertence ao grupo fágico II, produtor da toxina epidermolítica A e B).

Surgindo vesículas em pele previamente sã, as mesmas rapidamente aumentam de tamanho e formam bolhas transparentes, de parede fina, flácida, não dolorosas, habitualmente de diâmetro superior a 1 cm, com conteúdo amarelo claro (Figura 3) que se pode tornar turvo e purulento. A ruptura da bolha deixa uma base eritematosa e húmida que posteriormente seca e fica com um aspecto acastanhado e brilhante (Figura 4).

Tratamento

O impetigo dissemina-se a outras zonas do corpo por autoinoculação, pelo que é importante respeitar certos princípios gerais; o objectivo é evitar a propagação e recidiva, assim como limitar as probabilidades de transmissão. As lesões devem ser lavadas com água e sabão ou antissépticos, e eventualmente tapadas. O tratamento tópico é lícito nas lesões localizadas, com ácido fusídico ou mupirocina, durante 5 a 7 dias. Havendo ineficácia do tratamento tópico, lesões múltiplas e dispersas, localização periorificial (olhos e boca), ou outros casos de impetigo em familiares ou conviventes, está indicada a antibioticoterapia sistémica durante 5 a 7 dias. O antibiótico de primeira linha é a flucloxacilina oral 50-100 mg/kg/dia de 8 em 8 horas. Como tratamento de segunda linha, ou havendo suspeita de infecção por S. pyogenes, deve optar-se pela amoxicilina com ácido clavulânico, sendo 50 mg/kg/dia de amoxicilina de 8 em 8 horas. Apesar de raros, nos casos de alergia à penicilina, poderá optar-se pela clindamicina (20 a 40 mg/kg/dia), ou por uma cefalosporina de 1ª geração como a cefradina (25-100 mg/kg/dia) (este princípio também é válido para as patologias descritas adiante).

FIGURA 3. Impetigo bolhoso.

FIGURA 4. Impetigo bolhoso após ruptura da bolha.

Quando não tratado, pode curar sem sequelas ou evoluir durante semanas em surtos sucessivos. Em menos de 10% dos casos evolui para infecções mais profundas, como celulite e linfadenite. O aparecimento de glomerulonefrite está relacionado com as estirpes estreptocócicas nefritogénicas (sobretudo tipo M 2, 31, 49, 53, 55, 56, 57 e 60), surgindo 10 a 21 dias após o aparecimento do impetigo. Pelo contrário, as infecções cutâneas por Streptococcus não estão associadas a ulterior febre reumática.

O impetigo é uma doença de evicção escolar; a lesão deve ser coberta e a evicção deve ser concretizada até 24 horas após o início da antibioticoterapia.

Nos casos de impetigo recorrente deve-se considerar a pesquisa de colonização por S. aureus (ver abcessos recorrentes).

2. Síndroma da pele escaldada estafilocócica

Considerada a variante sistémica do impetigo bolhoso, é causada pelas toxinas esfoliativas A e B produzidas por S. aureus, afectando geralmente crianças até aos 5 anos. (Figura 5)

FIGURA 5. Síndroma de pele escaldada.

FIGURA 5A. Escarlatina estafilocócica.

FIGURA 6. Síndroma de Ritter. 

Tem início súbito, habitualmente, após uma infecção estafilocócica primária (umbigo, conjuntiva). Caracteriza-se por mau estado geral aparente, febre alta, prostração, eritema difuso e doloroso, tipo escarlatiniforme. Verifica-se descamação superficial da pele ao toque (sinal de Nikolsky, correspondendo à clivagem epiderme-derme, característica desta situação); a evolução é muito rápida, com aparecimento de bolhas de conteúdo claro em grandes áreas da pele; após rotura evidenciam uma base eritematosa que cicatriza com restitutio ad integrum.

No RN este quadro clínico, surge entre o 4º e 10º dia de vida, por vezes assumindo carácter epidémico nas unidades neonatais; é denominado síndroma de Ritter ou impetigo neonatal. Traduz-se por descolamento epidérmico de grandes áreas do corpo. Por vezes surge septicemia, pneumonia e meningite. (Figura 6)

Dada a gravidade clínica e possibilidade de complicações, a síndroma da pele escaldada estafilocócica exige internamento hospitalar. A pele requer os mesmos cuidados que a de um grande queimado: deve ser mantida limpa e húmida com compressas esterilizadas embebidas em soro fisiológico, e aplicação de emoliente em função do contexto clínico. A assepsia deve ser rigorosa, usando sempre material esterilizado. A antibioticoterapia sistémica IV, está sempre indicada, sendo a primeira escolha a associação de flucloxacilina, 150-200 mg/kg/dia de 6 em 6 horas, com clindamicina, 40 mg/kg/dia de 6 em 6 horas (este último antibiótico inibindo a síntese da toxina bacteriana), durante 10 a 14 dias.

Com o tratamento adequado a recuperação habitualmente é rápida; no entanto, por vezes são necessárias medidas de ressuscitação e suporte hemodinâmico. É essencial ter em atenção as complicações, nomeadamente alterações hidroelectrolíticas, perturbações da termorregulação e infecções bacterianas secundárias graves.

Nota importante: A chamada escarlatina estafilocócica tem afinidades com a síndroma de pele escaldada; com efeito, a sua etiopatogénese está também relacionada com a toxina epidermolítica estafilocócica. Manifesta-se em crianças mais velhas e com maior experiência imunológica: febre, eritrodermia difusa, dolorosa e áspera, não evidenciando – ao contrário da escarlatina estreptocócicanem “língua de fambroesa” nem petéquias no véu do paladar. Evolui para descamação em grandes retalhos. (Figura 5A)

3. Éctima

A éctima é uma infeção ulcerosa da pele, atingindo a epiderme e derme. Surgindo, sobretudo em crianças e idosos, tem como localização mais frequente os membros inferiores. É causada por S. pyogenes, sendo que o agente S. aureus também poderá actuar secundariamente com efeito sinérgico e contribuir para manutenção da infecção.

Trata-se duma situação semelhante ao impetigo, com evolução mais arrastada e erosão da epiderme, levando à ulceração e atingimento da derme. (Quadro 1) Frequentemente surge num local traumatizado, forma-se uma vesícula ou vesicopústula que se cobre de crosta dura, necrótica, elevada e aderente. Cura com formação de cicatriz, geralmente pouco evidente (Figura 7). O tratamento, semelhante ao do impetigo, deve ser sistémico.

FIGURA 7. Éctima.

A éctima deve ser distinguida da éctima gangrenosa, que tem uma apresentação mais exuberante, com bacteriémia e múltiplas lesões na pele que correspondem a vasculite necrosante bacteriana. Esta entidade tem sido associada a infecção por Pseudomonas aeruginosa e é rara em crianças saudáveis; por isso, quando presente, deve ser feito estudo para detecção de imunodeficiência primária (IDP) subjacente.

4. Dermatite perianal

É uma infeção superficial da epiderme, localizada e bem delimitada na região perianal, muito contagiosa. Mais frequente em crianças entre os 6 meses e os 10 anos, com maior frequência entre os 3 e 5 anos, e predomínio no sexo masculino (70%).

Causada classicamente por S. pyogenes, nos últimos anos tem-se verificado incremento do número de casos por S. aureus.

Clinicamente cursa com eritema perianal (90%) bem delimitado, sem induração, e confluente com o orifício anal.

Posteriormente, na ausência de tratamento, começam a aparecer fissuras dolorosas, com dejecções mucosas e placas “cor de mel” na periferia. Pode estar associada a prurido (80%), dor (50%) e, em 1/3 dos casos, pode haver fezes com sangue.

Em geral não se verifica elevação dos títulos de antiestreptolisina O, nem de DNAase B. Pode ser feita cultura da zaragatoa perianal, mas o diagnóstico é essencialmente clínico.

O diagnóstico diferencial, em função da idade e do contexto ambiental, deve ser feito com dermatite seborreica, psoríase, candidíase, doença inflamatória intestinal e abuso sexual.

O tratamento de escolha é realizado com amoxicilina (50 mg/kg/dia de 8 em 8 horas, 7 dias). Se houver suspeita de S. aureus, deve utilizar-se amoxicilina com ácido clavulânico ou flucloxacilina.

A dermatite perianal é muito contagiosa e em mais de 40% dos casos é recorrente.

5. Foliculite, furúnculo e antraz

Estas entidades representam um grupo de infecções que têm em comum a sua origem nos folículos pilosos com formação de abcessos. Factores como humidade, higiene precária e maceração da pele predispõem à infeção por S. aureus, o principal agente patogénico envolvido. Esta patologia pode ser sistematizada como se segue.

Foliculite

Infecção piogénica dos folículos pilosos com atingimento da derme e epiderme. Invade apenas a porção superficial de um único folículo e pode atingir com maior profundidade o bulbo piloso, mas com reacção tecidual mínima (Figura 8). Pode observar-se, em zonas contíguas da pele, lesões em vários estádios evolutivos.

Formam-se pápulas eritematosas que evoluem para pústulas de localização folicular. Habitualmente atinge as zonas com maior número de folículos pilosos, barba (sicose vulgar), couro cabeludo, regiões pilosas das nádegas e extremidades.

O tratamento da foliculite inclui a eliminação dos factores patogénicos e a limpeza da pele. Como medidas locais citam-se: cuidados de assepsia, protecção com pensos, limpeza da pele com cloro-hexidina e aplicação de antibioticoterapia tópica (ácido fusídico, bacitracina ou mupirocina). O uso de depilação com laser ou pinça devem ser os métodos preferidos; os métodos que utilizam cera ou lâmina agravam a foliculite, pelo que devem ser evitados. 

A foliculite é, na sua maioria, autolimitada; pode regredir com a terapêutica tópica, ou ainda, evoluir para formas mais profundas (furúnculo) e necessitar de antibioticoterapia sistémica.

FIGURA 8. Foliculite.

Furúnculo e antraz*

– Furúnculo é a inflamação estafilocócica perifolicular global. Trata-se dum processo mais profundo (derme e hipoderme) (Quadro 1) com necrose do folículo e tecidos adjacentes (Figura 9). O furúnculo da pálpebra ou terçol constitui um exemplo deste tipo de lesão, com localização particular.

– Antraz é uma lesão de maiores dimensões, profunda (derme e hipoderme), com reacção tecidual mais extensa e podendo estar associado a sintomas sistémicos. É a aglomeração de vários furúnculos separados por septos que drenam à superfície da pele por orifícios independentes e com locas que comunicam entre si. (Figura 10)

*Na linguagem em língua inglesa, a aglomeração de diversos furúnculos com tendência necrosante é designada carbuncle. Na literatura científica portuguesa clássica o referido quadro clínico-patológico é designado antraz, o que por vezes pode gerar confusão.

O termo carbúnculo, segundo a linguagem clássica portuguesa diz respeito à doença infecciosa, hoje rara, comum ao gado e à espécie humana provocada por “bactéria carbunculosa” – bacilo Gram positivo (Bacilus anthracis) – cujos esporos, muito resistentes, contaminam o solo e diversos produtos de origem animal. Esta infecção é designada na literatura de língua inglesa por anthrax. O microrganismo em causa constitui  uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.


Havendo tendência para localização em áreas pilosas e mais expostas a atrito (nádegas, pescoço, axilas, região da cintura), a lesão inicia-se em volta dum folículo piloso por nódulo doloroso eritematoso. Após alguns dias surge massa necrótica a que se sucede colecção purulenta central com flutuação. A ruptura dá lugar à expulsão do rolhão de tecido necrosado, com destruição do folículo piloso e cicatriz residual.

O furúnculo e o antraz comportam risco de celulite, bacteriémia, e de focos infecciosos à distância como osteomielite, endocardite e abcessos cerebrais. Os furúnculos da asa do nariz, lábio superior e canal auditivo externo podem associar-se a trombose do seio cavernoso com risco de extensão à veia angular e propagação ao cérebro.

O tratamento destas entidades consiste nas medidas gerais aplicáveis à foliculite: aplicar compressas esterilizadas húmidas e quentes (facilitando a drenagem) e evitar manipulação de lesões, nomeadamente as localizadas na face. Nas lesões mais profundas, bem localizadas e com flutuação, está indicada drenagem cirúrgica e a antibioticoterapia é habitualmente desnecessária.

Quando a drenagem não é possível, ou há sintomas sistémicos associados, utiliza-se como primeira escolha a flucloxacilina durante 5 a 10 dias. Se houver atingimento sistémico, deve iniciar-se antibioticoterapia endovenosa e, após melhoria, passar-se a oral.

Na ausência de tratamento, o que é actualmente raro, pode haver evolução por surtos, com aparecimento sucessivo de novas lesões durante semanas ou meses. Nos casos recorrentes, deve ser feita a pesquisa de colonização por SAMR ou S. aureus produtor de LPV; se presente, deve ser ponderada a descolonização adequada. A abordagem da furunculose recorrente será focada na alínea dedicada a “abcessos recorrentes”.

6. Erisipela

A erisipela é definida como inflamação superficial da pele, que envolve a camada profunda da derme e pode estender-se até à camada superficial do tecido celular subcutâneo, com atingimento dos vasos linfáticos. (Quadro 1)

É mais frequente nos extremos etários (crianças e idosos) e em imunocomprometidos. Nas crianças parece ser mais frequente no sexo masculino e, com o avançar da idade, passa a ser mais comum nas mulheres. Em 70 a 80% dos casos são os membros inferiores e superiores que estão envolvidos, sendo a face afectada em apenas 5 a 20% dos casos.

A erisipela é maioritariamente causada por S. pyogenes, sendo menos frequentes outros Streptococcus dos grupos B, C e G. Mais recentemente tem-se atribuído o envolvimento do agente S. aureus e outros microrganismos gram-negativos em cerca de 10% dos casos.

As manifestações clínicas surgem de modo aparatoso após um período de incubação de 2 a 5 dias, com sintomas sistémicos inespecíficos, febre, cefaleia, astenia e vómitos. Posteriormente, surge uma placa eritematosa, edemaciada, quente, dolorosa, circunscrita com os limites muito bem definidos e com bordo nítido, elevado, com tendência para extensão periférica. Por vezes surgem vesículas, bolhas, linfangite superficial (aspecto “casca de laranja”) e adenite satélite (Figura 11). Na fase inicial, a erisipela pode ser facilmente confundida com celulite, a diferenciação é feita com a evolução da doença.

O diagnóstico é clínico e em regra o quadro acompanha-se de leucocitose com neutrofilia e elevação do valor da PCR. O resultado do exame cultural da lesão raramente é positivo, pelo que é desnecessário para o diagnóstico.

É fundamental o repouso com elevação do membro afectado e manobras de diminuição da estase linfática. O tratamento da eventual “porta de entrada” (fissuras, dermatofitoses) é indispensável e obrigatório. Outras medidas de suporte incluem analgésicos e antipiréticos (paracetamol); localmente podem ser aplicados emolientes.

Quando a apresentação clínica é exuberante, o tratamento deve ser iniciado em internamento hospitalar.

A antibioticoterapia de primeira escolha é a penicilina G cristalina 150.000 – 200.000 UI/kg/dia IV, de 6 em 6 horas; após melhoria clínica, o tratamento antimicrobiano pode completar-se com 7 a 10 dias de antibioticoterapia no domicílio, com amoxicilina 50 mg/kg/dia PO de 8 em 8 horas. Se se suspeitar de infecção por S. aureus (aspecto geral tóxico), deve ser associada a clindamicina.

A erisipela pode apresentar recorrência em cerca de 20 a 30% dos casos em que há condições predisponentes (diabetes, linfoma, síndroma nefrótica, estase venosa e hipogamaglobulinémia). Nestas formas recidivantes poderá estar indicada a profilaxia com penicilina G benzatínica intramuscular ou amoxicilina oral.

Sem tratamento adequado a situação pode complicar-se com septicemia, focos infecciosos metastáticos (pneumonia, meningite e osteomielite), abcesso, tromboflebite, fascite necrosante ou choque tóxico.

Nota importante: A propósito da designação “erisipela” chama-se a atenção para uma entidade clínica designada erisipelóide, a qual é provocada por uma bactéria da família Corynebacteriaceae chamada Erysipelothrix rhusiopathiae. Trata-se duma infecção aguda (rara, autolimitada, localizada nos dedos das mãos, não ultrapassando a porção proximal do pulso), resultante da inoculação do microrganismo por contacto com peixes, aves ou os seus produtos contaminados. Traduz-se por edema e eritema azulado, com compromisso articular. O tratamento específico de escolha inclui eritromicina ou penicilina.

FIGURA  9. Furúnculo.

FIGURA 10. Antraz.

FIGURA 11. Erisipela.

7. Celulite

A celulite é uma inflamação aguda da hipoderme e do tecido celular subcutâneo (Quadro 1). Pode manifestar-se em qualquer idade sendo mais frequente nos membros inferiores; (39,9%), seguem-se em frequência a face e os membros superiores.

Os agentes etiológicos mais comuns são S. pyogenes e S. aureus; e mais raros, Streptococcus pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa.

A celulite surge frequentemente como sobreinfecção de uma lesão da pele. Manifesta-se por área edematosa, vermelho vivo, quente, de propagação insidiosa, associada a dor ligeira, com limites mal definidos, ao contrário da erisipela. Concomitantemente pode aparecer febre (inconstante) e outros sinais sistémicos inespecíficos que, quando presentes, são brandos. Pode haver linfadenopatia regional associada. Nas formas mais graves podem surgir lesões bolhosas, hemorrágicas e necrose.

Após a introdução duma vacina conjugada, a celulite por Haemophilus influenzae tipo b tornou-se rara. Surgindo no decurso de bacteriémia, a observação da pele mostra zona de aspecto violáceo, por alguns considerado patognomónico. A face e o pescoço são as áreas mais afectadas.

Se idênticos sinais surgirem no RN, admite-se como hipótese mais provável, infecção por Streptococcus agalactiae ou Escherichia coli.

FIGURA 12. Celulite localizada.

FIGURA 13. Celulite com sinais sistémicos.

→ Celulite sem sinais sistémicos: mais provavelmente provocada pelo agente S. aureus, é mais localizada, mais rapidamente supurada, mas sem sinais sistémicos (Figura 12).

→ Celulite com sinais sistémicos: distribuição mais difusa, com linfangite e adenite associadas a sintomas sistémicos mais graves; o agente causal mais provável é S. pyogenes; existe elevado risco de produção de toxina necrosante. (Figura 13)

O diagnóstico é clínico; no entanto, deve proceder-se a hemocultura nos casos com sinais sistémicos mais graves, pois em cerca de 5% dos casos pode haver associação a bacteriémia.

O diagnóstico diferencial faz-se com erisipela, reação inflamatória a picadas de insetos, tromboflebite superficial e piomiosite.

Nas formas não acompanhadas de sinais sistémicos, localizadas, está indicada flucloxacilina (100-150 mg/kg/dia PO de 8 em 8 horas (no RN e lactente, via IV), durante 7 a 10 dias.

Havendo sinais sistémicos deve ser feito tratamento com penicilina G cristalina IV (100.000-200.000 UI/kg/dia) de 6 em 6 horas ou uma cefalosporina, associada a clindamicina IV. Após melhoria clínica (habitualmente três a cinco dias) o tratamento pode ser completado em ambulatório com flucloxacilina, amoxicilina ou clindamicina PO.

Na maioria dos casos de celulite não complicada pode verificar-se evolução para abcesso, osteomielite ou artrite séptica. Sem tratamento, a situação poderá evoluir para infecção mais profunda e grave, como a fascite necrosante.

8. Abcesso e fleimão

Numa perspectiva global, abcesso e fleimão são infeções purulentas com atingimento da derme e hipoderme (Quadro 1). Verifica-se acentuada destruição tecidual, com rápida propagação (sobretudo no fleimão) e possível repercussão no estado geral, por vezes grave. Nas crianças as localizações mais frequentes são mama, região perianal, glândulas sudoríparas e couro cabeludo.

Habitualmente o quadro inflamatório localizado é precedido por manifestações sistémicas: calafrio, mal-estar geral e febre.

O fleimão caracteriza-se por maior tendência para empastamento tecidual difuso e propagação da afecção para a profundidade. Surge como área de eritema que rapidamente se torna viva, adquire tumefação edematosa de bordo mal definido, no início dura, que pode evoluir para abcesso. Quando o fleimão tem localização ganglionar denomina-se adenofleimão. S. aureus e S. pyogenes são os agentes etiológicos implicados.

No abcesso, ao eritema e tumefação localizados com aumento da temperatura local seguem-se flutuação, ruptura e fistulização com consequente descarga purulenta; geralmente verifica-se adenite regional. Em causa está habitualmente o microrganismo S. aureus.

Estas duas entidades correspondem a situações clínicas de urgência; a sua evolução é por vezes grave, podendo ser ponto de partida para complicações viscerais; em consequência da metastização bacteriana poderá instalar-se quadro de sépsis.

As bases do tratamento do abcesso podem ser assim sintetizadas:

  • Incisão e drenagem – é o procedimento de primeira escolha e fundamental para evitar complicações; deve ser feita cultura do material drenado.
  • Antibioticoterapia – o uso adicional de antibiótico após drenagem não parece trazer vantagens na melhoria clínica; assim, só deve ser iniciada nos abcessos múltiplos ou com mais de 5 cm, nos abcessos persistentes após drenagem, ou se houver sinais de resposta inflamatória sistémica, risco de endocardite, celulite extensa associada, presença de comorbilidades ou imunossupressão, ou ainda, se se tratar de um lactente; o antimicrobiano de escolha é a flucloxacilina (100-200 mg/kg/dia) PO de 8 em 8 horas durante 7 dias; demonstrando-se etiologia estreptocócica, aplicam-se os princípios da antibioticoterapia referidos a propósito da erisipela.

No tratamento do fleimão aplicam-se os mesmos princípios, sendo que a duração da antibioticoterapia deverá durar, no mínimo, 10 dias.

Notas importantes:
→ À semelhança do que sucede na furunculose, quando há história de abcessos cutâneos recorrentes os doentes devem ser avaliados. Na maioria dos casos não há imunodeficiência subjacente e as medidas de higiene são suficientes. Contudo, nalguns casos pode estar subjacente quadro de IDP, pelo que a história clínica deve ser bem caracterizada. Deve inquirir-se sobre os antecedentes familiares, incluindo a presença de consanguinidade e sobre doenças concomitantes e o padrão da doença. Por exemplo os abcessos perianais são mais frequentes na doença de Crohn, o eczema na síndroma de hiperIgE ou Wiskott-Aldrich, a onfalite e a queda tardia do cordão umbilical na deficiência da adesão leucocitária (LAD) e a infecção por bactérias ou fungos habitualmente não patogénicas, nos defeitos dos neutrófilos.
→ Nos casos de impetigo, foliculite ou abcessos recorrentes deve considerar-se a pesquisa de colonização por S. aureus. Se se tratar de SAMR ou LPV positivo, deve ponderar-se descontaminação com mupirocina tópica de 8 em 8 horas durante 5 dias associada a medidas de higiene estritas: banho diário com digluconato de cloro-hexidina a 4%; uso individual de toalhas e mudança diária; mudança dos lençóis diariamente; manter a casa limpa, aspirar e lavar casa-de-banho (banheira e lavatório) com lixívia; não frequentar locais públicos como ginásio e piscina; cobrir as zonas infectadas; lavar as mãos, frequentemente, com sabão líquido; a recolonização é frequente, pelo que o número de descolonizações a fazer deve ser ponderado caso a caso; a pesquisa de S. aureus após o tratamento não é recomendada por rotina.

9. Fascite necrosante

A fascite necrosante ou “gangrena estreptocócica” é a infeção bacteriana aguda do tecido celular subcutâneo, hipoderme e fáscia, com tendência para difusão rápida e grande destruição tecidual com necrose maciça. É uma entidade rara na idade pediátrica, localizando-se principalmente no tronco e nos membros superiores ou inferiores. (Figura 14)

S. pyogenes é o agente causal mais frequente, de forma isolada ou combinado com S. aureus verificando-se efeito sinérgico (tipo 2). Muitas vezes a etiologia pode ser mista, polimicrobiana (tipo 1).

Esta infecção pode implantar-se em lesões cutâneas prévias (por ex. feridas, queimaduras, escoriações, ulcerações de diversa natureza, eczema ou mais frequentemente varicela). O uso de ibuprofeno, ou outros anti-inflamatórios não esteróides, no contexto de varicela tem sido associado a risco mais elevado de fascite necrosante; no entanto, os dados disponíveis não são consistentes.

A apresentação clínica pode ser subaguda, aguda ou fulminante. Na fase inicial pode começar como uma celulite, com sinais locais mínimos mas com dor intensa desproporcional, podendo atrasar o diagnóstico. Posteriormente surge sintomatologia sistémica, como febre, prostração, mau estado geral, por vezes choque e falência multiorgânica.

Cerca de dois a quatro dias depois, coincidindo com agravamento do estado geral, verifica-se evolução da lesão tecidual: área edematosa com rubor vivo, de bordo mal definido que fica com aspecto violáceo, extensão centrífuga rápida e aparecimento de bolhas hemorrágicas e necrose.

O diagnóstico é clínico, com tradução imagiológica. A TAC pode mostrar a referida necrose, como pode não mostrar alterações. A ressonância magnética é o exame de escolha para visualização dos tecidos moles; contudo, a impossibilidade de a realizar, não deve atrasar o início da terapêutica. No que respeita a exames complementares, cabe referir que o número de leucócitos é geralmente normal e o valor da PCR está elevado. Pode haver trombocitopenia, coagulopatia e hipoalbuminemia com hipocalcemia. Deve ser colhida hemocultura antes de se iniciar a antibioticoterapia. Mais frequentemente, o agente S. pyogenes é isolado do sangue e do líquido das bolhas. Em casos raros a etiologia é polimicrobiana, particularmente na gangrena de Fournier, ou fascite necrosante do períneo. Nestes casos, para além de S. aureus e S. pyogenes, os anaeróbios, incluindo Peptotreptococcus, Prevotella e Bacterioides fragilis estão geralmente implicados.

O diagnóstico diferencial realiza-se com outras gangrenas (designadamente, gangrena gasosa, abordada adiante). O exame histológico evidencia sinais de necrose subcutânea que se estende ao longo das fáscias com trombose e necrose fibrinóide das paredes vasculares.

A fascite necrosante é uma emergência que obriga a terapia em cuidados intensivos, com apoio da cirurgia. Muitas vezes é necessário adoptar várias medidas já descritas no tratamento de quadros de choque e sépsis, tais como expansão de volume, medidas de suporte inotrópico, sedação e analgesia.

A antibioticoterapia deve ser iniciada de forma empírica. Admitindo a etiologia por S. pyogenes deve ser iniciada, penicilina G aquosa (300.000 a 400.000 UI/kg/dia IV, de 4 em 4 ou de 6 em 6 horas) associada a clindamicina (40 mg/kg/dia IV, de 6 em 6 ou de 8 em 8 horas); deverá ponderar-se adicionar a flucloxacilina se houver suspeita de infecção por S. aureus.

Nos casos em que se suspeita de infecção polimicrobiana deve ser iniciada antibioticoterapia de largo espectro com cefotaxima, clindamicina e gentamicina. Nos doentes neutropénicos é importante a administração de antimicrobianos com actividade contra P. aeruginosa.

Verificando-se alergia à penicilina, importa adoptar o seguinte esquema: cefalosporina de 3ª geração IV – cefotaxima (150 mg/kg/dia) ou ceftriaxona (75 mg/kg/dia), em 2 doses + clindamicina IV (20 a 40 mg/kg/dia) em 3-4 doses, durante 15 a 21 dias.

A excisão cirúrgica da área afectada deve ser precoce e seriada a cada 24 a 48 horas, até haver controlo da infecção.

FIGURA 14. Fascite necrosante no contexto de varicela. TAC evidenciando sinais de necrose da hipoderme ao longo das fáscias.

Posteriormente, e quando possível, a antibioticoterapia deve ser ajustada de acordo com o TSA e manter-se até: – não ser necessário proceder a mais excisões; ou – haver melhoria clínica significativa e; – se verificar apirexia de 3 a 5 dias (mínimo: 15 dias de antibioticoterapia). O uso de imunoglobulina não é consensual e deve ser ponderado caso a caso.

Esta entidade clínica comporta morbilidade e mortalidade elevadas.

10. Gangrena gasosa ou mionecrose

A gangrena gasosa é uma infecção bacteriana aguda da hipoderme e tecido subcutâneo com evolução para necrose do tecido muscular. Em cerca de 90-95% dos casos está implicado o agente Clostridium perfringens. (Figura 15)

Na maioria dos casos, a etiopatogénese desta infecção relaciona-se com lesões traumáticas que atingem o músculo e são a forma de entrada do agente microbiano. Por outro lado, a infecção pode ter origem endógena através de agentes anaeróbios, com ponto de partida no tracto gastrintestinal e invasão da corrente sanguínea (bacteriémia).

FIGURA 15. Gangrena gasosa ou mionecrose.

Clinicamente surge quadro de mau estado geral e sépsis. O doente pode evidenciar dor intensa na área do músculo afectado, a qual se apresenta edemaciada e pálida, tornando-se posteriormente violácea. Pode ser notado odor característico, aparecendo, entretanto, bolhas de conteúdo purpúrico; à palpação da pele nota-se crepitação. Trata-se duma situação clínica muito grave, com evolução rápida para choque séptico.

Para além das medidas de terapia intensiva de suporte (ressuscitação, ventilação, estabilização hemodinâmica), a antibioticoterapia de escolha, no pressuposto de que Clostridium perfringens é o agente etiológico: penicilina G aquosa (250.000 UI/kg/dia IV, de 6 em 6 horas) associada a clindamicina (40 mg/kg/dia IV, de 8 em 8 horas) durante 15 a 21 dias.

11. Piomiosite

A piomiosite é uma infeção bacteriana primária, aguda e supurada do músculo esquelético. Relativamente comum em regiões tropicais (4% das admissões hospitalares nestes países), salienta-se que a incidência tem aumentado em climas temperados nas últimas décadas. A emergência de estirpes de S. aureus produtoras da toxina LPV e o aumento global da temperatura, têm sido factores apontados.

Surge habitualmente em crianças até então saudáveis, embora possa estar associada a imunodeficiência (por ex. VIH, diabetes) ou a infecções concomitantes em 25% dos casos.

Os músculos dos membros inferiores e cintura pélvica são os mais frequentemente atingidos.

S. aureus é o agente mais comum (95%). Em situações associadas a varicela, S. pyogenes pode ser agente causal. Agentes mais raros são: S. pneumoniae, E. coli, Salmonella typhi, Bacteroides fragilis, N. gonorroeae e Mycobacterium tuberculosis.

Na maioria dos casos surge como consequência de bacteriemia, com consequente metastização nos grandes músculos estriados; raramente, por difusão a partir de foco infeccioso contíguo ao músculo.

Sobre a patogénese, não totalmente esclarecida, admite-se que o esforço muscular, lesão muscular e status pós-hipóxia-isquémia muscular constituam factores predisponentes.

As manifestações clínicas incluem fundamentalmente febre, dores e rigidez musculares, cãibras, rubor e edema ao nível da pele suprajacente. Verifica-se leucocitose e aumento da velocidade de sedimentação que podem durar mais de duas semanas. Os aspirados musculares somente evidenciando material purulento, permitem o isolamento do agente infeccioso após formação de abcessos.

Curiosamente não se verifica adenopatia satélite.

O diagnóstico diferencial faz-se com osteoartrite, hematoma, neoplasia, polimiosite e celulite; nesta última, ao contrário da piomiosite, bacteriémia, a velocidade de sedimentação elevada e a leucocitose são raras, e as adenopatias frequentes.

A piomiosite não tratada evolui para choque séptico.

Com a progressão da infecção, os sinais de toxicidade sistémica tornam-se evidentes. Verifica-se leucocitose e aumento dos valores da PCR e da velocidade de sedimentação, podendo durar mais de duas semanas. As enzimas musculares (CK e AST) estão habitualmente com valores normais.

A hemocultura é positiva em 10 a 35% dos casos e o exame cultural após aspiração do conteúdo dos abcessos pode contribuir decisivamente para o diagnóstico. Nos primeiros estádios da doença a RM é o exame mais sensível, sendo muito útil na determinação da localização e extensão.

Para além das medidas gerais de suporte, em função da gravidade, deve ser iniciada antibioticoterapia com flucloxacilina IV 150 a 200 mg/kg/dia de 6 em 6 horas, associada a clindamicina 40 mg/kg/dia de 8 em 8 horas, até melhoria clínica, seguida de flucloxacilina oral. A duração total da terapêutica é variável, consoante a evolução clínica e analítica, sendo habitualmente de 15 dias.

12. Outras formas clínicas

O panarício ou perioniquia é uma inflamação dos tecidos periungueais, com etiologia polimicrobiana. A hidrosadenite é uma infecção rara, crónica e recidivante das glândulas sudoríparas apócrinas (derme e hipoderme) que pode surgir na adolescência. O terçol (terçolho ou hordéolo) e o calázio foram descritos na Parte sobre Oftalmologia. As infecções da pele e dos tecidos moles com ponto de partida nos dentes e tecidos envolventes (infecções odontogénicas) constam da Parte sobre Estomatologia. Às infecções relacionadas com mordeduras foi feita referência na Parte sobre Urgências e emergências.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor F. Guerra Rodrigo co-autor do livro Dermatologia, citado na Bibliografia, o agradecimento do coordenador- editor pela cedência da Figura 1.

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MENINGOENCEFALITES VÍRICAS

Definição e importância do problema

A meningoencefalite (ME) é um processo inflamatório das meninges e, em grau variável, do encéfalo. Trata-se dum quadro clínico causado por agentes vários, na maioria das vezes autolimitado, podendo, no entanto, ser fatal ou provocar sequelas neurológicas importantes.

Sendo numerosas as situações clínicas, infecciosas ou não, que se podem apresentar de início com um quadro que se pode sobrepor ao da ME (febre, alteração do estado de consciência, cefaleias e sinais neurológicos focais), torna-se, por isso, premente que no âmbito do raciocínio clínico exista elevado índice de suspeita.

Aspectos epidemiológicos

O padrão epidemiológico da ME, na maior parte das vezes de origem vírica, está por sua vez relacionado com a prevalência da infecção por enterovírus, o agente etiológico mais comum.

A infecção por enterovírus dissemina-se rapidamente de pessoa a pessoa, com um período de incubação variando entre 4 e 6 dias. Nos climas temperados ocorre com mais frequência no Verão e Outono.

Etiopatogénese

Os enterovírus (com mais de 70 serótipos) são os agentes responsáveis por ME em > 90% dos casos. Podendo surgir epidemias nos períodos atrás referidos, a via fecal-oral constitui a forma mais frequente de transmissão. Salienta-se o papel importante do enterovírus humano 68, associado a paralisia flácida, assim como dos parechovirus, com manifestações semelhantes às dos enterovírus.

A ME também pode ser provocada por diversos membros da família Herpes. O HVS do tipo 1 actua mais tipicamente nas crianças mais velhas e pode ocorrer durante a primo-infecção ou por reactivação do vírus, latente no gânglio do trigémio. Causa doença focal que atinge preferencialmente o lobo temporal; quando não tratada, comporta mortalidade elevada (> 70%) sem tratamento. A infecção pelo VHS do tipo 2 predomina no período neonatal, sendo adquirida intraparto. Neste caso, o SNC é atingido de forma difusa e apresenta um melhor prognóstico. Uma forma mais ligeira e transitória (na maioria por VHS do tipo 2) pode acompanhar a infecção por herpes genital em adolescentes sexualmente activos.

O vírus da varicela-zóster (VVZ) pode causar infecção do SNC em estreita relação temporal com o período eruptivo da varicela (os sinais neurológicos ocorrem geralmente 2 a 6 dias após o início das manifestações cutâneas, mas podem surgir durante o período de incubação ou após cicatrização das vesículas). A manifestação mais comum de compromisso do SNC é a ataxia cerebelosa, e a encefalite aguda a forma mais grave.

Após infecção primária, VVZ permanece latente nas raízes e gânglios dos nervos cranianos e espinhais, podendo mais tarde originar quadro de herpes-zóster acompanhado de meningoencefalite ligeira. A reactivação na forma de herpes-zóster pode ser acompanhada de meningoencefalite ligeira.

Os arbovírus (abreviatura do inglês: arthropod-borne-virus) constituem um grupo de vírus com ARN transmitidos pela picada de artrópodes, incluindo grande número de tipos patogénicos para o homem. Os astrovírus, englobados nos arbovírus e provocando classicamente gastrenterite, são a causa mais comum de encefalite epidémica nalgumas áreas geográficas dos Estados Unidos da América, China, Sudoeste Asiático e Índia. Destacam-se a encefalite japonesa, a encefalite de Saint Louis e a encefalite pelo vírus do Nilo (WNV ou West Nile vírus), entre outros. Não há casos descritos em Portugal. Os mosquitos e as carraças são os principais vectores, transmitindo a doença ao Homem e outros animais vertebrados após picada de pássaros e de outros pequenos animais infectados. O WNV pode também ser transmitido por transfusão de sangue ou derivados, em transplantes de órgãos, e por via transplacentar.

Outras doenças provocadas por vírus como o sarampo, a raiva, a papeira, a rubéola, a infecção congénita por CMV ou mesmo infecções por vírus respiratórios, como o adenovírus e o VRS, podem provocar meningoencefalite.

Os vírus podem atingir o SNC por via hematogénica ou intraneural. A disseminação hematogénica é característica dos arbovírus e enterovírus. Estes, após inoculação através do vector ou transmissão fecal-oral respectivamente, replicam-se localmente e, após virémia transitória, alojam-se no sistema reticuloendotelial e tecido muscular. A replicação nestes tecidos promove uma segunda virémia com invasão de outros órgãos, incluindo o SNC. O VHS, o vírus da raiva e, possivelmente, os poliovírus atingem o SNC por via axonal retrógada.

A lesão do SNC explica-se por invasão directa, com replicação do vírus, ou por reacção do hospedeiro aos antigénios dos vírus. A resposta imunológica do hospedeiro é responsável por desmielinização e por destruição vascular e perivascular. O estudo histológico revela sinais de congestão meníngea com infiltração linfocitária e mononuclear envolvendo “em manga” os vasos. Outros achados incluem ruptura neuronal, neuronofagia e proliferação ou necrose endoteliais.

O achado histopatológico de certo grau de desmielinização, com preservação de neurónios e seus axónios, é considerado representativo do quadro de encefalite pós-infecciosa ou alérgica. O córtex cerebral, especialmente o lobo temporal, é frequentemente afectado pelo VHS; os arbovírus tendem a afectar de modo generalizado o encéfalo, e o vírus da raiva as estruturas da base. O compromisso da espinhal medula, raízes nervosas e nervos periféricos é variável.

Manifestações clínicas

Como regra, pode estabelecer-se que o início da doença é geralmente agudo, sendo os sinais e sintomas relacionados com infecção do SNC, designadamente meningite associada a encefalite.

Classicamente é considerada a tríade febre, cefaleias e alteração do estado da consciência, valorizando-se igualmente a existência de eventual exantema (por ex. nas infecções por enterovírus, sarampo, rubéola, etc.) ou sinais inespecíficos durando alguns dias. Nas crianças mais velhas os sinais de apresentação incluem cefaleias e hiperestesia; nos lactentes, sobretudo irritabilidade ou letargia. O exantema prévio pode prolongar-se, a par das manifestações neurológicas.

Outros achados incluem sonolência, desorientação, náuseas, vómitos, fotofobia, cervicalgias, dorsalgias, perturbações comportamentais ou da fala. Poderão surgir rigidez da nuca, e sinais neurológicos como hemiparésia, convulsões, ou movimentos anómalos bizarros. Os sinais neurológicos podem ser mantidos, progressivos ou flutuantes.

Tendo como base os sinais e sintomas referidos apontando para compromisso das meninges e encéfalo (áreas anatómicas não estanques e em continuidade com o tronco cerebral e a espinhal medula) em termos de raciocínio clínico, com utilidade para o diagnóstico diferencial, importa salientar sucintamente os sinais e sintomas de infecção do tronco cerebral (febre, cefaleias, letargia, estado confusional, convulsões), e de mielite (retenção urinária, dor dorsolombar, parestesias/disestesias, fraqueza muscular, alterações do trânsito intestinal e vesical, e sinais de disfunção autonómica.

Diagnóstico

O diagnóstico provisório de meningoencefalite por vírus é, em geral, sugerido pela verificação de sinais prodrómicos inespecíficos seguidos por sintomatologia progressiva do SNC. A este propósito, é importante reforçar a noção de que é a anamnese e o exame físico/neurológico rigorosos que deverão fundamentar a realização de exames complementares.

Alguns achados sugerem uma etiologia específica: dor e parestesias das extremidades devem levantar a suspeita de ME pelo vírus da raiva ou por enterovírus não-pólio.

Achados focais, como a paralisia ou a afasia, apontam para probabilidade de ME por VHS, sem, no entanto, se poder excluir ME por VEB, ou CMV. Formas específicas de ME ou complicações incluem a síndroma de Guillain-Barré, a mielite transversa aguda, a hemiplegia aguda, e a ataxia cerebelar aguda.

Face à hipótese diagnóstica, torna-se prioritário proceder a PL para exame do LCR, excluídas as contra-indicações clássicas. Em contexto de ME por vírus verifica-se, em geral:

  • pleiocitose linfocítica (10 a 1000 células/mm3 até, por vezes, 8000 células/mm3); pleiocitose acentuada poderá ser epifenómeno de destruição extensa, tal como acontece nos casos de infecção por VHS;
  • proteínas em valor normal ou elevado (geralmente, 50-200 mg/dL); e
  • glicose geralmente normal (> 40 mg/dL), ou hipoglicorráquia discreta.

Estes parâmetros podem, no entanto, variar, sendo que o resultado do exame do LCR pode ser normal nos estádios iniciais da doença, ou evidenciar elevação dos polimorfonucleares antecedendo a pleiocitose linfocítica.

Quanto à pressão intracraniana, nas situações de infecção bacterina meníngea aguda em geral é elevada, sendo normal ou ligeiramente elevada nas de causa vírica.

O LCR deverá ser submetido a exames culturais para vírus, bactérias, fungos, e micobactérias; em determinado contexto clínico poderá haver necessidade de proceder a exames especiais para detecção de protozoários, Mycoplasma e outros patogénios. Sendo fortemente sugestiva a implicação de vírus no quadro de ME, deverá fazer-se a sua pesquisa igualmente noutros locais, como secreções da orofaringe, fezes, urina, etc..

A detecção do DNA ou RNA víricos por método molecular PCR/reacção em cadeia da polimerase no LCR, respectivamente para VHS, parechovírus, e enterovírus tornou-se o método diagnóstico de escolha (especificidade ~ 100%), sendo positivo nas primeiras 24 horas de doença e durante a primeira semana de terapêutica. O estudo serológico no LCR constitui o método de escolha para WNV.

Outros exames a efectuar para avaliação dos doentes com suspeita de ME são o EEG e os exames de neuroimagem.

No caso do EEG, na situação presente, ou se verifica normalidade, ou inespecificidade dos traçados, com actividade lenta difusa. A presença de complexos de ondas lentas ou de sinais de descargas epileptiformes laterais periódicas (PLED) nas regiões temporal e fronto-temporal é muito sugestiva de ME por VHS.

Quanto aos estudos de neuroimagem (TAC ou RM) podem ser detectados sinais de edema cerebral ou sinais focais.

A verificação de convulsões focais, e de sinais focais no EEG e nos estudos de neuroimagem – especialmente nos lobos temporais – apontam para ME por VHS.

No início da doença deve proceder-se a colheita de sangue para estudo serológico. Nos casos de as culturas de vírus serem negativas na fase precoce da doença, o estudo serológico repetido 2-3 semanas depois da primeira colheita poderá ter grande utilidade para verificar eventual subida de títulos. O estudo serológico para enterovírus não tem, contudo, utilidade por haver muitos serótipos.

Diagnóstico diferencial

Grande número de situações poderá ter manifestações clínicas semelhantes às da ME. As mesmas podem ser sistematizadas do seguinte modo:

  • meningite bacteriana;
  • outras infecções bacterianas (abcesso cerebral, empiema subdural ou epidural);
  • infecções por M. tuberculosis, T. pallidum, B. Burgdorferi /doença de Lyme, Bartonella henselae/ doença do arranhão do gato;
  • infecções por fungos, riquétsias, Mycoplasma, protozoários, e outros parasitas;
  • infecções humanas por vírus lentos (panencefalite esclerosante subaguda, encefalopatia espongiforme/doença de Creutzfeldt-Jakob, VIH, leucoencefalopatia multifocal progressiva, etc.);
  • várias situações não infecciosas (encefalopatia urémica, hepática, doenças hereditárias do metabolismo);
  • doenças tóxicas (intoxicações medicamentosas acidentais, acção tóxica percutânea de chumbo, hexaclorofeno, mercúrio, síndroma de Reye);
  • miscelânea (tumores intracranianos, hemorragias subaracnoideias, embolias por endocardite bacteriana, doenças desmielinizantes agudas, status epilepticus; doenças para – infecciosas (pós-infecciosas e alérgicas) associadas a vírus, riquétsias, Mycoplasma, vacinas, etc.).

Em suma, tendo em conta esta vasta lista de quadros clínicos, importa salientar:

  • várias situações não infecciosas poder estar associadas a inflamação do SNC e evidenciar sinais e sintomas que se sobrepõem aos da ME. São exemplos: doenças do foro oncológico, doenças autoimunes e hemorragia intracraniana;
  • encefalite autoimune devida a anticorpos anti-receptor do N-metil-D-aspartato é uma importante causa de encefalite de causa não infecciosa na idade pediátrica; este diagnóstico pode ser confirmado pela detecção dos referidos anticorpos no LCR;
  • a encefalomielite aguda disseminada também pode ser confundida na fase inicial com encefalite.

Tratamento

Exceptuando os casos de ME por VHS para os quais existe tratamento específico anti-vírico, dum modo geral as medidas a aplicar são sintomáticas e de suporte: analgésicos (desde paracetamol a codeína e morfina), ambiente calmo com diminuição do ruído e da luminosidade, anti-eméticos, fluidoterapia IV para compensar as dificuldades de alimentação oral, tratamento das convulsões, oxigenoterapia, etc..

Nas formas mais graves está indicado o internamento em UCIP para tratamento do coma, edema cerebral, estado de mal epiléptico, choque, monitorização da pressão intracraniana, correcção de desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, alterações metabólicas, síndroma de secreção inapropriada da hormona anti-diurética/SIADH, etc..

No que respeita ao tratamento das infecções por VHS, administra-se aciclovir IV na dose de 10 mg/kg de 8-8 horas (20 mg/kg nos recém-nascidos) durante 14-21 dias. Verificando-se resistência ao aciclovir, o foscarnet constitui uma alternativa.

Nos casos de ME por VVZ utiliza-se aciclovir IV; a associação de ganciclovir com foscarnet é utilizada quando o agente etiológico é o CMV.

Prognóstico

O prognóstico depende essencialmente da idade, do nível de consciência na data de internamento e do agente etiológico. A idade inferior a um ano, a diminuição do estado de consciência, a ocorrência de convulsões e o isolamento do HVS como agente etiológico são factores de mau prognóstico. As crianças com um ou mais destes factores de risco comportam maior taxa de mortalidade e de sequelas graves. Nos casos em que nenhum destes factores está presente, a recuperação é geralmente total.

Todas as crianças com o diagnóstico de meningoencefalite devem ser acompanhadas por uma equipa multidisciplinar na perspectiva de intervenção precoce para minorar possíveis défices. Tal acompanhamento deverá manter-se pelo menos durante dois anos e, idealmente, até ao ingresso na escola, período em que determinados problemas auditivos ou cognitivos se poderão tornar mais evidentes.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção podem ser assim sintetizados:

  • aplicação de vacinas anti-víricas desde a idade pediátrica; de salientar algumas dificuldades ainda verificadas na confecção de vacinas anti-arbovírus;
  • aplicação de vacinas em animais domésticos (o exemplo da vacina antirrábica é paradigmático);
  • actuação contra os insectos vectores através de produtos aplicados sob a forma de spray;
  • utilização de repelentes de insectos;
  • uso de roupa que proteja eficazmente a pele das picadas dos insectos.

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MENINGITE BACTERIANA PÓS-NEONATAL

Definição e importância do problema

Por meningite entende-se a inflamação das membranas (meninges) que cobrem o encéfalo e a medula espinhal. A inflamação meníngea é habitualmente o resultado de infecção vírica ou bacteriana, e mais raramente fúngica; outras etiologias pouco frequentes são as neoplasias, drogas ou doenças autoimunes. Neste capítulo não será abordada a meningite crónica, nem a encefalite (inflamação do encéfalo), em que o processo inflamatório ultrapassa as meninges e atinge o tecido encefálico.

Apesar dos progressos realizados no que respeita a medidas gerais de suporte e a terapêutica antimicrobiana, as infecções do sistema nervoso central são ainda na actualidade uma importante causa de morbilidade e mortalidade na criança, sobretudo nos primeiros 3 anos de vida, período de maior incidência da doença.

Aspectos epidemiológicos

A meningite bacteriana aguda tem uma incidência global anual de 2-5 casos por 100.000 habitantes nos países ocidentais. Vários microrganismos podem ser responsáveis pela doença, sendo que o agente mais provável pode ser inferido de acordo com a idade (Quadro 1), assim como da presença de factores de risco, co-morbilidades e estado imunológico.

Nos últimos anos, verificou-se uma mudança frequente na epidemiologia das meningites bacterianas, à custa de medidas preventivas como o rastreio e tratamento de mães portadoras de Streptococcus agalactiae ou do grupo B (SGB) e a introdução de vacinas contra Haemophilus influenzae b, Streptococcus pneumoniae (vacina conjugada pneumocócica 13-valente, VCP13) e Neisseria meningitidis do serogrupo C (e recentemente do serogrupo B).

Actualmente, Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae são responsáveis por 80% dos casos em crianças imunocompetentes com mais de 4 semanas de vida. Os bacilos gram negativos (Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter) são responsáveis por menos de 10% dos casos.

A meningite neonatal está habitualmente relacionada com os agentes que colonizam o tracto intestinal ou genital da mãe e com a imaturidade e inexperiência imunológicas do recém-nascido (ver Parte sobre Perinatologia/Neonatologia). No entanto, as bactérias adquiridas por contacto ambiental, típicas do lactente e criança, podem também originar meningite no recém-nascido. Neste grupo etário E. coli e SGB são os agentes mais frequentes, podendo também ocorrer infecção por Listeria monocytogenes em 5-10% dos casos, segundo alguns autores.

Entre os 30 e 90 dias, os principais agentes são Streptococcus do grupo B (SGB), Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae, seguidos de microrganismos entéricos gram-negativos. Segundo os dados mais recentes publicados (Neto MT et al., 2008), entre 2001-2005 registaram-se 46 casos (19%) de meningite por SGB a nível nacional, verificando-se uma incidência de 0,54 casos de doença invasiva por SGB por cada 1000 nascimentos, sendo esta mais frequente nos primeiros 7 dias de vida (81%).

Após os 3 meses, N. meningitidis é o agente mais frequente em Portugal, sobretudo após a comercialização da vacina conjugada polissacarídea 13 valente (VCP13) contra S. pneumoniae. A nível europeu os serogrupos mais prevalentes responsáveis por doença invasiva meningocócica são o B, C e Y. Em Portugal, desde 2007, o serogrupo B é responsável pela maioria dos casos de doença invasiva meningocócica (49-92%), a qual apresenta uma incidência anual de 6,3 casos por 100.000 habitantes em crianças com idade compreendida entre 1-4 anos (20,2 casos/100.000 habitantes em menores de 1 ano de idade), entre 2003-2012, segundo Simões MJ (2014). Desde 2014 está disponível para compra a vacina de 4 componentes contra a N. meningitidis do serogrupo B.

Relativamente à doença invasiva pneumocócica, no período entre 2010-2012 registou-se uma incidência global 12,33/100.000 crianças até aos 5 anos, a qual tem vindo a diminuir, sendo mais frequente abaixo dos 2 anos (20,9/100.000). A meningite bacteriana de etiologia pneumocócica, verificou-se em 18% dos casos, sendo que em metade dos casos não havia antecedentes de VCP13.

Após a introdução da vacina contra Haemophilus influenzae b, a meningite por este agente é excepcional nos países que a introduziram nos seus programas de vacinação, tal como aconteceu em Portugal. Existem, no entanto, alguns casos esporádicos (em crianças que não tenham cumprido a primovacinação, ou com falência vacinal) em contactos com indivíduos colonizados.

Uma forma hoje rara, mas grave, de meningite bacteriana é causada por Mycobacterium tuberculosis, microrganismo que pode afectar todas as idades; a patogénese é insidiosa, condicionando em geral apresentação clínica atípica (ver capítulo respectivo).

 QUADRO 1 – Distribuição de agentes de meningite pós-neonatal por faixa etária.

Grupo etário Causas
Recém-nascidos S. agalactiae, E. coli, L. monocytogenes
1-3 meses Agentes neonatais, S. pneumoniae, N. meningitidis, H. influenzae b
3 meses – 5 anos S. pneumoniae, N. meningitidis, H. influenzae b
6 anos – adolescentes N. meningitidis, S. pneumoniae

Etiopatogénese

Os agentes responsáveis pela meningite bacteriana podem atingir as leptomeninges por:

  • via hematogénica, a mais frequente, em que as bactérias atingem as meninges através da corrente sanguínea; a mais frequente corresponde à bacteriémia com origem nasofaríngea, adquirida por contacto com portador assintomático;
  • extensão contígua de local de infecção extracerebral (por exemplo, otite média, mastoidite ou sinusite);
  • implantação bacteriana directa como complicação de intervenção neurocirúrgica na cabeça e pescoço, lesão penetrante na cabeça, fractura de crânio com fístula de LCR ou erosão osteomielítica. Nestas circunstâncias há risco acrescido de meningite recorrente, sendo que o primeiro episódio poderá não ter uma relação temporal com o traumatismo;
  • anomalias congénitas, nomeadamente defeitos de encerramento da linha média, como quistos dermóides intracranianos (associados a seio dérmico com fístula para a pele e meningite por agentes menos habituais como Staphylococcus epidermidis).

As bactérias mais frequentemente associadas a meningite (N. meningitidis, S. pneumoniae, H. influenzae) contêm uma cápsula de polissacáridos, o que permite a colonização da nasofaringe das crianças saudáveis. Uma infecção vírica intercorrente pode facilitar a penetração da bactéria através do epitélio nasofaríngeo. Atingida a corrente sanguínea, o polissacárido capsular confere resistência à opsonização pela via clássica do complemento, com consequente inibição da fagocitose, criando-se condições para bacteriémia e acesso às meninges.

A parede celular das bactérias Gram-positivas e Gram-negativas contém componentes que desencadeiam resposta inflamatória. Nas bactérias Gram-positivas o ácido lipotecóico e o peptidoglicano, e nas Gram-negativas o lipopolissacárido ou as endotoxinas, são considerados os componentes patogénicos principais. Os mediadores da resposta inflamatória incluem citocinas (TNF, IL-1, 6, 8, 10), PAF (factor activador das plaquetas), óxido nítrico, prostaglandinas e leucotrienos. Numa segunda fase, a resposta pró-inflamatória provoca lesão do espaço subaracnoideu e, posteriormente, verifica-se aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica, edema cerebral e presença de leucócitos e mediadores tóxicos no líquido céfalo-raquidiano (LCR). Uma vez lesada a barreira hematoencefálica, os microrganismos invadem o LCR.

Através do LCR há extensão do exsudado para as cisternas basais com consequente:

  1. lesão dos nervos cranianos (nomeadamente VII par, podendo condicionar surdez neuro-sensorial);
  2. obstrução da drenagem do LCR (causando hidrocefalia obstrutiva);
  3. vasculite (sendo as células endoteliais dos capilares o local principal da lesão na meningite bacteriana) e tromboflebite secundárias, responsáveis por áreas de isquémia localizadas.

À medida que aumenta a pressão intracraniana pelo edema cerebral, o fluxo sanguíneo cerebral diminui, provocando alteração do estado de consciência. Sem intervenção terapêutica, o ciclo de diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, intensificação do edema e aumento da pressão intracraniana mantém-se, condicionando maior lesão endotelial com vasospasmo e trombose, maior compromisso do fluxo sanguíneo cerebral e estenose dos grandes e pequenos vasos; ulteriormente surge, como consequência, hipotensão sistémica (choque séptico) e lesão difusa do sistema nervoso central.

Os componentes ou produtos patogénicos bacterianos são libertados no LCR, não só no decurso da multiplicação bacteriana, mas especialmente quando há lesão destrutiva da parede celular, sendo que a terapêutica antimicrobiana leva a libertação significativa de mediadores de resposta inflamatória.

 Factores de risco

  • Idades inferior a 5 anos, e principalmente inferior a 2 anos.
  • Na criança de idade inferior a 5 anos são factores de risco acrescido: diabetes mellitus, insuficiência renal ou suprarrenal, hipoparatiroidismo, fibrose quística, desnutrição.
  • Defeitos imunitários congénitos.
  • imunossupressão (maior risco de infecção por agentes oportunistas, podendo não evidenciar os sinais clássicos de febre e irritação meníngea).
  • Status pós-esplenectomia, asplenia congénita, drepanocitose e talassémia major (maior risco de infecção por microrganismos capsulados).
  • Infeção contígua (por ex. sinusite), fístula de LCR ou outras alterações traumáticas, cirúrgicas ou congénitas, atrás referidas.
  • Dependência de drogas endovenosas.
  • Endocardite bacteriana.
  • Derivação ventriculoperitoneal (infecção por Staphylococcus, Streptococcus e enterobacteriáceas são mais frequentes).
  • Co-habitação de grande número de indivíduos (risco aumentado de surtos de meningite meningocócica).
  • Exposição recente a outros casos de meningite, com ou sem profilaxia.

Manifestações clínicas

Na criança, os sinais e sintomas são, regra geral, dependentes da idade. Muitas vezes é referida infecção das vias respiratórias superiores nos dias precedentes, coexistindo eventualmente com o quadro descrito (por ex. sinusite e/ou otite média).

Os sintomas clássicos em lactentes são: recusa alimentar, vómito, irritabilidade, gemido, choro gritado, prostração, febre ou hipotermia, fontanela hipertensa, por vezes convulsões, dificuldade respiratória, episódios de apneia ou cianose. Os sinais de irritação meníngea poderão não estar presentes no primeiro ano de vida.

Em crianças de idade superior a 1 ano são habituais náusea e vómitos, cefaleia, fotofobia, febre ou hipotermia, prostração. Em 75% dos casos estão presentes os sinais clássicos de irritação meníngea: rigidez da nuca, sinal de Kernig (impossibilidade de extensão completa dos membros inferiores após flexão a 90º da coxa sobre a anca) e sinal de Brudzinski (flexão automática dos joelhos com a flexão do pescoço.

Outros sinais de compromisso neurológico que poderão ser verificados são: alteração do estado de consciência, convulsões, sinais neurológicos focais e alterações dos pares cranianos III, IV, VI, VII. O edema da papila surge em cerca de um terço dos doentes com meningite, demorando cerca de 24 a 48 horas a estabelecer-se. As convulsões, generalizadas ou focais, podem surgir em cerca de 30% dos doentes, sendo duas vezes mais comuns na meningite por S. pneumoniae e Hib do que na meningite meningocócica.

O choque por endotoxinas com colapso vascular é característico da infecção grave por N. meningitidis. Apesar de o exantema generalizado, máculo-papular, petequial ou purpúrico ser habitualmente associado à meningite/sépsis meningocócica, pode surgir igualmente nas infecções por H. influenzae e por S. pnemoniae. Um exantema petequial precoce (concomitante com a febre) deve ser sempre considerado indicador muito provável de infecção bacteriana, e um exantema macular com aparecimento precoce em relação à febre deve sempre evocar uma infecção meningocócica.

A hipertensão intracraniana pode evoluir para herniação cerebral, com alteração dos movimentos oculares, bradicardia, hipertensão, descorticação/descerebração e apneia.

A artrite, quando surge, é sugestiva de infecção por Neisseria meningitidis. Se ocorrer nos primeiros dias de doença é muitas vezes piogénica; se mais tarde, corresponderá a forma reactiva, curando, regra geral, sem sequelas.

Diagnóstico

Exame do LCR

A análise do LCR através de punção lombar (PL) é fundamental para o diagnóstico, devendo ser realizada sempre excepto em caso de contraindicação.

Tipicamente há marcada pleiocitose (>1000 células/mm3; até aos 3 meses de idade considera-se normal a presença de até 6 células/mm3) com predomínio polimorfonuclear, elevação das proteínas (100-200 mg/dL) e diminuição da concentração da glucose (ratio LCR/soro < 0,4). (Quadros 2 e 3)

QUADRO 2 – Valores de referência no LCR.

LCRPré-termoRN1-12 meses> 12 meses
Leucócitos (/mm3)0-320-290-10< 10
Proteínas (mg/dL)65-15020-170< 60< 40
Glucose (mg/dL)55-10545-150> 50% glicémia

QUADRO 3 – Etiologia sugestiva de acordo com exame citoquímico e citológico LCR.

  Mais comumMenos comum
Glicorráquia (mg/dL)< 10Bacteriana e micobacterianaFúngica
10 – 45 Sífilis, vírus
Proteinorráquia (mg/dL)50 – 250Vírica, Borrelia 
> 1000BacterianaParotidite
Contagem celular (/mm3)100-1000Bacteriana, vírica, micobacteriana 
5 – 100Bacteriana (fase inicial), vírica, micobacteriana, sífilis 

 

A identificação do agente habitualmente é obtida por coloração de Gram e por exame cultural (considerado “padrão de ouro”, embora com sensibilidade 50-90%); estes parâmetros devem ser sempre realizados.

Para identificação específica de agente pode ser realizado teste rápido de aglutinação de antigénios (sensibilidade 60-90%; especificidade 90-100%; valor preditivo negativo 80-95%) e/ou identificação molecular por técnica de reação em cadeia da polimerase/PCR (sensibilidade 87-100%; especificidade 98-100%). De referir que os testes rápidos de aglutinação têm caído em desuso pela maior sensibilidade e especificidade da PCR e também pela diminuição de casos de meningite por Hib, situação em que eram mais úteis. A PCR é particularmente útil nas situações em que a criança já estava sob antibioticoterapia no momento da PL e nos casos de PL traumática. Uma desvantagem desta técnica em relação à cultura é não fornecer sensibilidade do microrganismo aos antibióticos.

Em caso de evolução clínica favorável a PL não é repetida, excepto nas seguintes situações: diagnóstico incerto; evolução desfavorável na ausência de outras causas; meningite por bacilo gram-negativo; doentes tratados com vancomicina e dexametasona; meningite em doente com derivação ventriculo-peritoneal e submetido a antibioticoterapia intratecal.

São consideradas contraindicações para realização de PL:

  • Hipertensão intracraniana (depressão do estado de consciência ou deterioração rápida; sinais neurológicos focais; edema da papila; após convulsão prolongada – duração superior a 30 minutos; hipertensão com bradicardia – tríade de Cushing);
  • Choque ou instabilidade hemodinâmica;
  • Alterações dos reflexos pupilares, midríase ou anisocória;
  • Postura de descerebração ou de descorticação;
  • Infecções da pele e tecidos moles no local da punção;
  • Alterações anatómicas locais, como escoliose grave ou mielomeningocele;
  • Alterações da coagulação (sendo a trombocitopénia contraindicação relativa).

Notas:

    1. Em caso de suspeita clínica e insucesso na realização de punção lombar, não deve ser protelado o início de terapêutica empírica para meningite;
    2. Se a PL for traumática e se se verificar LCR hemorrágico, a interpretação de resultados deve ser cuidadosa, só podendo ser valorizada a glicorráquia e a coloração de gram. O diagnóstico definitivo dependerá sempre da identificação do agente por meio cultural ou molecular;
    3. Um resultado positivo de PCR no sangue para S. pneumoniae não significa que seja este o agente responsável pelo processo meníngeo; poderá apenas reflectir colonização nasofaríngea. Em relação a N. meningitidis, alguns autores referem que a PCR quantitativa no sangue periférico se correlaciona com o prognóstico e que a carga bacteriana máxima tem sido observada em crianças que vieram a falecer.

 

Hemocultura e outros exames culturais

Em todos os casos de suspeita de meningite deve proceder-se a hemocultura antes de se iniciar antibioticoterapia, a qual poderá identificar o agente em 50-80% dos casos (cerca de 80% dos casos provocados por H. influenza b e S. pneumoniae, mas apenas em 50% dos casos de meningite por Neisseria meningitidis).

Outros exames laboratoriais

Para avaliação global do doente, tratando-se duma doença sistémica, são realizados os seguintes exames, a ponderar racionalmente caso a caso:

  • Hemograma e estudo da coagulação;
  • Proteína C reactiva (negativa em 90% dos casos de meningite vírica);
  • Ionograma sérico (avaliação do equilíbrio hidroelectrolítico, estado de hidratação e detecção de eventual hiponatrémia (de diluição) compatível com síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética – SIADH);
  • Glicémia;
  • Ureia, creatinina e enzimas hepáticas (para detecção de eventual disfunção de órgãos e correcção terapêutica);
  • Gasometria arterial (pode haver acidose metabólica e elevação de lactato);
  • Ionograma urinário, suspeitando-se de SIADH.

Exames imagiológicos

Os exames imagiológicos (TAC e RM) poderão estar indicados nas seguintes situações:

  • Doentes com evidência de traumatismo craniano, alteração do estado de consciência ou sinais focais;
  • Doentes com edema da papila ou outras contra-indicações para punção lombar;
  • Avaliação de complicações da meningite (enfarte, hidrocefalia, ventriculite, empiema e abcesso cerebral, trombose do seio venoso);
  • Situações de difícil diagnóstico diferencial (ver adiante).

A TAC é um exame rápido e útil para excluir contra-indicações à realização de PL, enquanto a RM é mais sensível na determinação do envolvimento do SNC. Ambos podem ser normais, numa fase inicial, ou revelar reforço leptomeníngeo, dilatação ventricular, apagamento dos sulcos cerebrais na convexidade e acentuação da hiperdensidade relativa da substância cinzenta. Sinais mais tardios incluem enfarte venoso e hidrocefalia comunicante.

Diagnóstico diferencial

  • Outros agentes de meningite/meningoencefalite aguda não bacteriana: víricos; fúngicos (Histoplasma e Blastomyces; nos imunocomprometidos Candida, Cryptococcus, Aspegillus), tuberculose.
  • Infecções focais do SNC [abcesso cerebral, abcesso parameníngeo (empiema subdural, abcesso epidural espinhal e craniano, osteomielite)].
  • Meningite de causa não infecciosa: medicamentos (AINE, imunoglobulina endovenosa, trimpetropim-sulfametoxazol, isoniazida, metronidazol), vasculites (LES, Doença de Behçet, Sarcoidose, Febre Familiar do Mediterrâneo), tumores e hemorragia do SNC.

Tratamento

Princípios gerais

Nas formas agudas, rapidamente progressivas, que surgem em menos de 24 horas, e na ausência de sinais de hipertensão intracraniana (HIC), deve ser iniciada de imediato antibioticoterapia segundo esquema empírico, após PL.

Verificando-se sinais de HIC ou sinais neurológicos focais, a antibioticoterapia deverá ser iniciada sem proceder a PL e antes de realizar TAC; a HIC deve ser tratada simultaneamente, tal como a disfunção multiorgânica e/ou choque e SDR.

Apesar de o início da antibioticoterapia antes da realização de PL estar associado frequentemente a um exame cultural de LCR negativo, habitualmente não provoca alteração do número de células nem da concentração de proteínas, mesmo que efectuado durante 44-68 horas. Nestes casos, a presença de pleiocitose e proteinorráquia permitem inferir como provável o diagnóstico, podendo o agente ser identificado por hemocultura e exames não-culturais.

Medidas de suporte

  • Monitorização dos sinais vitais, de manifestações neurológicas e do balanço hídrico.
  • Cabeceira elevada a 30º.
  • Suprimento hídrico endovenoso para 2/3 das necessidades, para prevenção do edema cerebral de forma a obter pressão arterial sistólica em valores cerca de 80 mmHg, diurese cerca de 500 mL/m2/dia e perfusão tecidual adequada.
  • Dopamina e outros agentes inotrópicos: poderão estar indicados com o objectivo de manter uma pressão arterial adequada.

Antibioticoterapia

1. Empírica (Quadro 4)

A terapêutica inicial da meningite bacteriana aguda deve cobrir os dois agentes mais frequentes (S. pneumoniae e N. meningitidis), com o objectivo de obter níveis bactericidas no LCR. Actualmente, as cefalosporinas de terceira geração são recomendadas como primeira linha da terapêutica empírica, excepto nos recém-nascidos, não só pelo seu bom e abrangente perfil bactericida no LCR, mas também pela emergência de estirpes de pneumococos resistentes às penicilinas. Dentro do grupo, são recomendados cefotaxima (225-300 mg/kg/dia, 8/8h ou 6/6h) ou ceftriaxona (100 mg/kg/dia, 12/12 ou 24/24h) (Quadro 4). Com a emergência de estirpes de pneumococos resistentes às penicilinas e às cefalosporinas, muitos autores, bem como a Academia Americana de Pediatria, defendem o uso associado de vancomicina no tratamento empírico (60 mg/kg/dia, 6/6h, máximo 4 g/dia, de forma a obter valor sérico em vale superior a 10-15 mcg/mL). Listeria é intrinsecamente resistente às cefalosporinas pelo que, na suspeita de meningite por este agente deve ser usada ampicilina (2 g 4/4h) ou amoxicilina, por via endovenosa, em doses altas, associada a gentamicina nos primeiros 7 dias de terapêutica.

QUADRO 4 – Esquemas de antibioticoterapia empírica de acordo com idade.

Idade Esquemas em 1ª escolha
1-3 meses
    • Ampicilina (400 mg/kg/dia, máx.12 g/dia) + Cefotaxima (200-300 mg/kg/dia, máx.12 g/dia) ou Ceftriaxona (100 mg/kg/dia, máx. 4 g/dia)
    • Ampicilina + Gentamicina
    • Ampicilina + Cefotaxima + Vancomicina
> 3 meses Ceftriaxona (100 mg/kg/dia, máx. 4 g/dia) ou Cefotaxima (200-300 mg/kg/dia, máx. 12 g/dia) + Vancomicina (60 mg/kg/dia)

 

O resultado da coloração de Gram pode orientar na escolha terapêutica:

  • Gram-negativo (provável N. meningitidis): cefalosporina de 3ª geração, cefotaxima IV (200-300 mg/kg/dia em 4 doses) ou ceftriaxona IV (100 mg/kg/dia) em dose única diária (sendo em duas doses com intervalo de 12 horas nas primeiras 24 horas de terapêutica).
    Alguns autores propõem, mesmo nos casos com resultado conhecido da coloração de Gram, a associação empírica inicial com vancomicina (ver abaixo) de modo a cobrir H. influenzae do tipo b, resistente às b-lactamases;
  • Gram-positivo (provável S. pneumoniae): cefalosporina de 3ª geração, cefotaxima IV (200-300 mg/kg/dia em 4 doses) ou ceftriaxona IV (100 mg/kg/dia) em dose única diária (após duas doses com intervalo de 12 horas nas primeiras 24 horas de terapêutica), associada a vancomicina IV (60 mg/kg/dia em 4 doses);
  • Desconhecendo-se o resultado da coloração de Gram, e em crianças de idade inferior a 2 anos, ou com factores de risco de doença pneumocócica invasiva, a terapêutica empírica inicial deverá incluir uma cefalosporina de 3ª geração e vancomicina (ver atrás). Em crianças com idade superior a 2 anos e sem factores de risco referidos, a terapêutica empírica inicial deverá incluir apenas uma cefalosporina de 3ª geração.

No caso de situações especiais, a terapêutica empírica deve ser ajustada à situação clínica subjacente. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Antibioticoterapia.

FACTOR DE RISCOETIOLOGIAANTIBIOTICOTERAPIA
NeurocirurgiaStaphylococcus (CN e aureus)
Pseudomonas aeruginosa
Outros Bacilos G-
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G +-
Aminoglicosídeo
Fístula LCRStreptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Derivação Ventriculoperitoneal (VP)Staphylococcus (CN e aureus)
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Sinus dermóide
Mielomeningocele
Staphylococcus (CN e aureus)
Bacilos G-
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G +-
Aminoglicosídeo
Infecção por VIH
Hipogamaglobulinémia
Patologia ORL
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Asplenia
Drepanocitose
Streptococcus pneumoniae
Neisseria meningitidis
Salmonella
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Défices do complementoNeisseria meningitidisCefalosporina 3ª G
2. Terapêutica dirigida e duração

S. pneumoniae:

  • Sensível à penicilina (~75% dos casos): substituir cefalosporina por penicilina G aquosa IV (400.000U/kg/dia em 4 a 6 doses);
  • Sensível às cefalosporinas de 3ª geração (concentração inibitória mínima < 0,06 mcg/mL): interromper a vancomicina e manter ceftriaxona ou cefotaxima.

Se CIM para cefotaxima elevada (~ 2 mcg/mL), deve utilizar-se uma dose mais elevada da mesma (300 mg/kg/dia) ou ceftriaxona (200 mg/kg/dia), em associação a vancomicina (60 mg/kg/dia). Nos casos raros de resistência às cefalosporinas de 3ª geração (~25%), a monoterapia com vancomicina, antibiótico com penetração deficiente no SNC, poderá não ser adequada para uma rápida esterilização do LCR, razão pela qual deve ser adicionada rifampicina (600 mg 12/12 h). Estudos recentes sugerem que a terapêutica com carbapenemes (meropenem ou imipenem) ou com linezoline, combinada com rifampicina, pode ser uma opção nestes casos;

  • Duração: 10-14 dias.

N. meningitidis:

  • Penicilina G aquosa IV (400.000U/kg/dia em 4 a 6 doses) ou ceftriaxona ou cefotaxima;
  • Duração: 5-7 dias para casos não complicados.

H. influenzae:

  • Cefotaxima ou ceftriaxona, conforme doses indicadas previamente. Em alternativa: ampicilina/amoxicilina ou cloranfenicol;
  • Duração: 7-14 dias.

L. monocytogenes:

  • Ampicilina IV (200 mg/kg/dia) em 4 doses diárias, à qual se pode associar, nos primeiros 7-10 dias, gentamicina. Em alternativa: trimetoprim-sulfametoxazol IV (10-20 mg/kg 6-12 h).
  • Duração: 21 dias.

Staphylococcus aureus:

  • Flucloxacilina 2 g 6/6h ou vancomicina, à qual se poderá associar rifampicina. Em casos de SAMR, o linezoline é uma boa alternativa.
  • Duração: 14 dias.

Bacilos Gram-negativos (E. coli, Pseudomonas aeruginosa, Klebisella pneumoniae):

  • Cefalosporinas de 3ª geração (ceftriaxona, ceftazidima, cefotaxima) ou, em alternativa, meropenem;  aeruginosa: ceftazidima (maioria é sensível). Em alternativa, meropenem com gentamicina;
  • Duração: 21-27 dias ou 2 semanas após esterilização do LCR (o que pode acontecer entre 2-10 dias depois do início do tratamento).

Corticoterapia

O efeito anti-inflamatório dos corticóides na meningite bacteriana tem sido explorado nos últimos anos, contudo a sua utilização continua a considerar-se controversa devido a diferenças entre estudos relativamente a metodologia, gravidade da doença, co-morbilidades, agentes bacterianos e antibioticoterapia efectuada. No entanto, foi demonstrada uma diminuição das sequelas auditivas ligeiras com o uso da dexametasona antes do início da antibioticoterapia (0,15 mg/kg cerca de 15-20 minutos antes e depois de 6 em 6 horas durante 4 dias) na meningite por H. influenzae b (se iniciada até uma hora após a administração do antibiótico).

Em relação às meningites pneumocócica e meningocócica, de acordo com múltiplos estudos efectuados, não foi demonstrada vantagem na diminuição de sequelas.

O uso de corticóides não está associado a diminuição da mortalidade, independentemente do agente.

Actuação nos casos de hipertensão intracraniana

  • Elevação da cabeceira a 30º, cabeça na linha média, minorar estímulos externos, hipotermia normal a moderada e evitar hipercápnia.
  • Manitol 20% – Nos casos de hipertensão intracraniana está indicada a administração precoce de manitol (0,25-1 g/kg/dose IV durante 20-30 minutos, podendo ser repetida a administração 0,25 g/kg/dose em intervalos 2-3 h ou 1 g/kg/dose em intervalos 4-6 h); o mesmo produz efeito diurético osmótico que, ao aumentar transitoriamente a osmolalidade do espaço intravascular, condiciona um movimento de água dos tecidos cerebrais para o espaço intravascular.
  • Acetazolamida e furosemido – a sua eficácia em doentes com meningite bacteriana não foi demonstrada em estudos controlados.

Actuação em caso de convulsões

As convulsões são frequentes na meningite bacteriana, estando associadas a maior mortalidade.

Durante a convulsão, assegurando-se a permeabilidade da via aérea (ressucitação ABC), devem ser administradas de imediato drogas anticonvulsantes por via endovenosa. A terapêutica inicia-se, preferencialmente, por diazepam IV (0,2-0,5 mg/kg/dose). Após paragem da convulsão deve iniciar-se fenitoína (dose de impregnação de 15-20 mg/kg, seguida de dose de manutenção de 5 mg/kg/dia) a fim de evitar recorrência. A fenitoína, obrigando a monitorização sérica, é preferível ao fenobarbital pela menor probabilidade de depressão respiratória: os níveis séricos deverão ser mantidos entre 10-20 mcg/mL. Neste contexto haverá também que proceder ao doseamento sérico de glucose, cálcio e sódio.

Complicações, sequelas e prognóstico

O prognóstico da meningite está directamente relacionado com: – a idade (pior no período neonatal); – com a precocidade da antibioticoterapia (melhor quando iniciada nas primeiras 48 horas de doença); – com o agente e número de colónias (mau prognóstico se associado a mais de 10 UFC/mL); e – com comorbilidades.

São factores de mau prognóstico:

  • Atraso no diagnóstico e início do tratamento;
  • Recém-nascidos e lactentes com < 6 meses; imunodeprimidos;
  • Meningite por Gram-negativo, por pneumoniae e por microrganismo multirresistente aos antimicrobianos;
  • LCR: glicorráquia < 20 mg/dL na admissão e elevado número de células;
  • Sinais neurológicos focais ou coma na admissão;
  • Convulsões tardias (> 72 h após início da antibioticoterapia);
  • Factores do meio ambiente: más condições socioeconómicas, sobrepopulação.

Globalmente, a meningite bacteriana aguda tem uma mortalidade inferior a 10%, sendo esta mais elevada no período neonatal e nos casos de etiologia pneumocócica.

Em relação à evolução clínica no decurso do internamento, as convulsões nos primeiros 3 dias de internamento têm, regra geral, valor prognóstico irrelevante. Contudo, convulsões difíceis de controlar, que persistem ao 4º dia de internamento ou que surgem tardiamente (após 72 h), estão geralmente relacionadas com uma evolução complicada e sequelas graves, as quais são mais frequentes no contexto de convulsões focais do que no de generalizadas. Nestes casos deve proceder-se a EEG.

A febre prolongada (persistente ao 8º dia de antibioticoterapia) pode estar associada a resposta terapêutica desfavorável, designadamente por complicações supurativas da meningite (abcesso cerebral, empiema subdural ou pleural, artrite séptica, pericardite), intercorrência vírica ou infecções associadas a dispositivos implantados.

As sequelas a longo prazo variam conforme o agente etiológico, a idade do doente, os sinais clínicos iniciais e o atraso no diagnóstico.

Assim, estas crianças devem ter uma vigilância mantida após o internamento, para detecção precoce das sequelas e tentativa de minorar consequências. Ainda que na maioria dos casos as sequelas neurológicas sejam subtis e dificilmente detectáveis, nomeadamente a dificuldade na aprendizagem que pode ter etiopatogénese multifactorial, nalguns doentes surgem sequelas graves: surdez neurossensorial em 33,6% (S. pneumoniae ≤ 30%, por N. meningitidis 10% e Hib 85-40%), epilepsia (12,6%), hemi/tetraparésia, ataxia, atraso do desenvolvimento psicomotor (9%), hidrocefalia obstrutiva (7%), atrofia cerebral e cegueira (6%).

O défice da audição pode ser precoce ou tardio e a sua detecção permitirá medidas que têm como objectivo a recuperação precoce.

As sequelas motoras, neurológicas ou por amputação (nomeadamente nalguns dos casos de sépsis meningocócica que se manifestam por coagulação intravascular disseminada e choque por endotoxinas) implicarão um trabalho de reabilitação, de terapia ocupacional e de apoio psicológico de modo a rendibilizar, ao máximo, a função de cada doente com a utilização de todas as suas potencialidades.

Prevenção

A quimioprofilaxia utiliza-se nos casos de doença invasiva por N. meningitidis e H. influenzae. A quimiprofilaxia no âmbito da comunidade deve ser decidida pela Autoridade de Saúde local. Na doença invasiva por S. pneumoniae a quimioprofilaxia não tem qualquer interesse, uma vez que a colonização nasofaríngea é muito frequente e existe uma grande variabilidade de serótipos.

1- N. meningitidis se:

→ contacto prolongado (> 8 horas) e próximo (< 1 metro) com o doente ou que tenham sido expostos às secreções orais do doente nos sete dias anteriores ao início dos sintomas ou até 24 horas após o início de terapêutica eficaz;

→ conviventes no domicílio do doente, pessoas que tenham partilhado o mesmo quarto, assim como quaisquer pessoas expostas às suas secreções orais, nomeadamente através dos beijos, partilha de escovas de dentes ou utensílios de mesa;

→ adultos e crianças que, mesmo não tendo qualquer relação de proximidade com o doente, tenham frequentado as mesmas creches, amas ou jardins de infância;

→ viajantes que tenham tido contacto directo com as secreções respiratórias do doente ou que tenham estado sentados ao lado do doente num vôo prolongado (> 8 horas);

→ indivíduos que tenham tido contacto estreito e frequente com o doente, em escolas do ensino básico e secundário; em geral, não se consideram contactos íntimos os casos de colegas cuja única relação com o doente frequentarem a mesma sala;

→ indivíduos que tenham sido expostos a secreções orais: ressuscitação boca-a-boca, intubação endotraqueal; relativamente à maioria dos trabalhadores da área da saúde somente se consideram contactos íntimos os casos associados a exposição directa às secreções respiratórias (aspiração ou entubação, por exemplo).

As opções disponíveis estão resumidas no Quadro 6.

QUADRO 6 – Esquemas de quimioprofilaxia

Fármaco Idade Dose Duração
Rifampicina < 1 mês 5 mg/kg de 12/12 horas 2 dias
> 1 mês 10 mg/kg de 12/12 horas 2 dias
Adultos 600 mg 12/12h 2 dias
Ceftriaxona < 15 anos 125 mg Toma única
Adultos 250 mg Toma única
Ciprofloxacina Adultos 500 mg Toma única
2- H. influenzae b em todos os contactos íntimos domiciliários nas seguintes circunstâncias:

→ existência de 1 contacto com idade < 4 anos que não tenha recebido o número preconizado de doses da vacina contra Hib. A criança susceptível deverá receber uma dose de vacina, planeando-se entretanto a aplicação das restantes doses, se for caso disso;

→ existência de contacto com criança imunocomprometida, independentemente do seu estado vacinal e da idade.

A profilaxia deve ser feita com rifampicina, de acordo com a idade e o peso:

  • Idade < 1 mês à 10 mg/kg, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias;
  • Idade >1 mês à 20 mg/kg, até ao máximo de 600 mg por dose, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias;
  • Adultos à 600 mg, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias.

Deverá ser preenchido e enviado o impresso de Notificação das Doenças de Declaração Obrigatória quando estiver indicado. De salientar que a meningite por N. meningitidis, H. influenzae do tipo b e S. pneumoniae são de declaração obrigatória.

Adicionalmente, é obrigatória a notificação laboratorial de doença invasiva pneumocócica e meningocócica para o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge para caracterização molecular.

Vacinas

A melhor forma de prevenção contra a doença invasiva é através da vacinação. Actualmente estão incluídas no Programa Nacional de Vacinação as vacinas pneumocócica 13-valente, a vacina contra H. influenzae b e a vacina contra N. meningitidis serogrupo C. De referir ainda a introdução recente no mercado da vacina contra N. meningitidis do serogrupo B.

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FEBRE SEM FOCO DE INFECÇÃO LOCALIZÁVEL

Definições e aspectos epidemiológicos

Na idade pediátrica a febre é uma das causas mais frequentes de recurso aos serviços de saúde (10-30% das visitas a consultas e 25-30% das visitas aos serviços de urgência). Os episódios febris são mais frequentes entre os 3 e os 36 meses. Neste período, a média de episódios febris agudos oscila entre 4 a 6 por ano. Não há diferenças significativas relativamente ao sexo ou condição económica. As doenças febris em crianças são causadas na sua maioria por vírus; porém, estima-se que em 5% dos casos a causa poderá ser uma infecção bacteriana.

Nos últimos anos, com a introdução das vacinas conjugadas contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib), Neisseria meningitidis do serogrupo C e Streptococcus pneumoniae (para 13 serótipos), o panorama geral relacionado com quadros febris em crianças pequenas (sobretudo entre os 3 e 36 meses) requerendo actuação especial melhorou substancialmente.

A este respeito importa definir um conjunto de conceitos:

  1. A febre surge como resposta a um estímulo patológico com produção de pirogénios endógenos que actuam no centro termorregulador.
    Existem várias definições de febre; segundo a mais consensual, febre é o aumento da temperatura corporal acima da variação da temperatura normal diária de um indivíduo. Depreende-se assim que o valor da temperatura corporal a partir do qual se considera febre pode ser variável; concretizando, na prática diz-se que o paciente tem febre quando a temperatura rectal é > 38ºC, auricular > 38,2ºC ou axilar > 37,5ºC.
  2. O termo febre sem foco (de infecção localizável) refere-se às situações de febre com duração inferior ou igual a 7 dias numa criança sem evidenciar sinais compatíveis com sépsis, e em que a anamnese ou o exame físico não permitem detectar a sua etiologia.
  3. A bacteriémia oculta é um processo febril em que a criança não evidencia clinicamente sinais de gravidade compatíveis com sépsis, mas em que se detecta crescimento de bactérias no sangue.
  4. A designação de febre de origem indeterminada refere-se à presença de febre com duração superior a 3 semanas, sem etiologia identificável após realização de anamnese, exame objectivo e exames complementares de diagnóstico ou após uma semana de hospitalização e avaliação.

Em cerca de 20% dos casos com quadro febril agudo, não é possível identificar um foco infeccioso após cuidado exame objectivo. Neste sentido, perante uma criança febril a principal atitude é excluir uma infecção bacteriana potencialmente grave (sépsis, pneumonia, artrite séptica, osteomielite, celulite, pielonefrite, meningite, gastrenterite aguda bacteriana), tendo em conta a sua idade e o seu estado de imunização.

Neste grupo de crianças, as infecções do tracto urinário representam a infecção bacteriana mais frequente, com uma prevalência que varia entre 5% a 7%.

O número de casos de meningite bacteriana também tem diminuído, muito devido à generalização da vacinação (anteriormente referida) contra o Hib, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis (serogrupos C e B). O mesmo aconteceu com as bacteriémias ocultas em crianças febris entre os 3 e 36 meses de idade (diminuição de 5% para 1%.

A pneumonia sem sintomas ou sinais respiratórios é causa pouco provável de febre sem foco, embora existam estudos demonstrando que nos lactentes com febre > 39ºC e leucocitose ~20 000/μL, a incidência de pneumonia poderá atingir o valor de 19%.

Este capítulo incide sobre as crianças com febre sem foco de idades entre os 3 e 36 meses, grupo etário que comporta maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave. Excluem-se desta análise as crianças que necessitam de uma abordagem individualizada – crianças com sinais compatíveis com sépsis, recém-nascidos com sépsis neonatal precoce, e crianças com imunodeficiências primárias ou adquiridas, ou com doenças crónicas.

Etiopatogénese

O aparecimento de febre resulta da libertação de pirogénios endógenos para a circulação como resultado, na maioria das vezes, de infecções; uma proporção mais restrita poderá resultar de causas não infecciosas, tais como disfunção do SNC, febre neoplásica, condições inflamatórias crónicas, febre medicamentosa ou recções às imunizações. Na presença de uma infecção, os agentes e toxinas microbianos actuam como pirogénios exógenos; estes estimulam a libertação de pirogénios endógenos (citocinas) a partir de monócitos, macrófagos, células mesangiais, células gliais, células epiteliais, e linfócitos B: interleucina-1(IL-1), IL-6, factor de necrose tumoral (TNF) e interferões vários. Quer a proteína C reactiva (PCR), quer a procalcitonina (PCT), como reagentes da fase aguda inflamatória, são produzidos no fígado como resposta às citocinas.

Os pirogénios endógenos, atingindo o hipotálamo, promovem a libertação de ácido araquidónico que, transformado em prostaglandina E2, actua no centro termorregulador. Os antipiréticos (paracetamol, ibuprofeno, ácido acetilsalicílico), inibindo a cicloxigenase hipotalâmica, inibem a produção de prostaglandina E2.

A razão pela qual os lactentes têm um risco aumentado de infecção bacteriana grave deve-se essencialmente à imaturidade do seu sistema imunológico. Nos primeiros meses de vida existe um défice na opsonização e da função dos macrófagos e da actividade dos neutrófilos. A imunidade celular e humoral também é extremamente imatura, nomeadamente a produção de IgG específicas contra bactérias capsuladas.

A etiologia dos quadros febris infecciosos varia consoante a idade da criança.

Nos recém-nascidos (idade até 28 dias/4 semanas completas), os agentes mais prevalentes são: Streptococcus do grupo B, Escherichia coli, Listeria monocytogenes, se bem que possam também surgir infecções por agentes que surgem com maior frequência noutros grupos etários, nomeadamente Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae.

Entre os 29 dias e os 3 meses de idade estão habitualmente implicados: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, Haemophilus influenzae. No entanto, poderão também estar em causa germes que infectam habitualmente o RN.

Após os 90 dias e até aos 36 meses (3 anos): Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, e Haemophilus influenzae.

Abordagem clínica

Por definição, a febre sem foco não se acompanha de qualquer sinal ou sintoma de localização (infecção das vias respiratórias superiores ou inferiores, infecção gastrintestinal, infecção urinária, infecção osteoarticular, infecção do SNC); por outro lado, na grande maioria das crianças existe bom estado geral. Por isso, o grande desafio do clínico é identificar quais os pacientes que comportam maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave.

Para tentar identificar as crianças com uma infecção bacteriana potencialmente grave é imprescindível a realização de história clínica pormenorizada, incluindo anamnese e exame objectivo minuciosos.

Nas crianças mais pequenas, a anamnese propicia dados mais escassos e o exame objectivo é mais difícil. Nesta perspectiva, tentando de modo estruturado quantificar/estratificar o risco de infecção bacteriana potencialmente grave nas situações de febre sem foco, foram desenvolvidas escalas de avaliação associando critérios clínicos e valores analíticos. São exemplos as escalas de YOS (Young Infant Observation– para crianças com menos de 3 meses), Rochester, Boston, Yale ou Philadelphia. De acordo com os resultados de estudos, salienta-se que a sensibilidade e a especificidade de tais critérios é baixa.

A anamnese relativamente à criança febril deve ser sempre pormenorizada, incluindo inquirir, designadamente sobre:

  • Parto de termo ou pré-termo;
  • Doenças anteriores;
  • Imunizações (quais e quando);
  • Contexto epidemiológico, como contactos de doentes conhecidos e eventual frequência de escola ou infantário;
  • Características da febre;
  • Nível de actividade da criança desde o início da febre;
  • Repercussão eventual sobre o apetite.

O risco de haver uma infecção bacteriana potencialmente grave é menor nas crianças que nasceram de termo e previamente saudáveis. É importante caracterizar a febre: existe um maior risco de bacteriémia com temperatura mais elevada, mas não há relação com a duração da febre; a facilidade de resposta a antipiréticos também não permite distinguir quadros bacterianos de víricos.

São manifestações de possível infecção sistémica e, como tal, sugestivas de gravidade clínica, prostração e recusa alimentar.

O exame objectivo deve ser pormenorizado, valorizando, designadamente:

  • Mau estado geral compatível com quadro séptico;
  • Presença de foco infeccioso;
  • Sinais respiratórios;
  • Existência de exantema.

O estado geral da criança é um importante indicador clínico. A criança com aspecto geral séptico, nomeadamente com prostração, pouco reactiva, com bradipneia ou hiper ou taquipneia, que não estabelece contacto ocular e não sorri, tem maior probabilidade de ter uma doença grave do que a criança que evidencia bom estado geral. A má perfusão periférica, a pele marmoreada e cianose são também indicadores de maior gravidade.

A existência de exantema é importante: lesões petequiais ou purpúricas surgem na sépsis meningocócica e, mais raramente, em infecções por Haemophilus influenzae. O exantema macular que surge precocemente em relação ao início da febre pode igualmente ser sinal de sépsis; por isso, torna-se obrigatório determinar a cronologia do aparecimento das lesões cutâneas.

A pneumonia pode manifestar-se apenas por taquipneia ou sinais de hipoxémia; por conseguinte, não deve excluir-se infecção das vias respiratórias inferiores pela ausência de sinais de dificuldade respiratória ou de ruídos adventícios através da auscultação pulmonar.

O exame objectivo completo deve incluir a medição da frequência respiratória e a determinação da saturação transcutânea em O2 (SpO2), especialmente nos recém-nascidos e pequenos lactentes.

A observação deve identificar possíveis focos infecciosos. A presença de sinais sugestivos de infecção vírica diminui a probabilidade de existir uma doença bacteriana grave subjacente. No entanto, tal não se aplica a recém-nascidos e pequenos lactentes: efectivamente, diversos estudos revelaram igual incidência de doença bacteriana com e sem infecção vírica concomitante.

De salientar que taxas de bacteriémia são semelhantes em crianças febris com e sem otite média aguda, sem outro foco infeccioso aparente; por isso, tal achado não deve ser sobrevalorizado.

Actuação prática e exames complementares

Como regra geral pode estabelecer-se que uma criança com febre e sinais sistémicos graves deve ser imediatamente hospitalizada.

Com vista à actuação prática, específica, as crianças são classicamente divididas de acordo com a sua idade:

  1. Recém-nascidos;
  2. Lactentes com idades entre os 29 dias e os 3 meses; e
  3. Crianças com idades entre >3 e 36 meses.

     

I. Recém-nascidos

A imaturidade imunológica dos recém-nascidos constitui um factor de maior vulnerabilidade a agentes infecciosos, o que determina maior probabilidade de evolução desfavorável da doença.

Com base na avaliação estritamente clínica, em geral torna-se difícil identificar as situações de possível doença bacteriana grave. Assim, nesta faixa etária, todo o paciente deve ser abordado, até prova em contrário, como tendo uma doença bacteriana grave e sujeito a avaliação diagnóstica completa, sendo obrigatório proceder ao internamento hospitalar e à realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo;
  • Doseamento da proteína C reactiva (PCR) e da procalcitonina (PCT);
  • Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto ou alterações na auscultação pulmonar;
  • Punção lombar, sempre que o estado clínico 
da criança o permita, para análise citoquímica, coloração Gram e exame cultural do líquido céfalo-raquidiano (LCR); pesquisa específica de diversos vírus por técnica molecular/PCR se suspeita de meningite vírica e/ou em função da clínica;
  • ALT, AST, GGT, PT, aPTT, LDH (eventualmente em função da clínica);
  • Coproculturas, se houver história de diarreia, ou de sangue ou muco nas fezes. 


Em regra, devido à elevada incidência de doença bacteriana grave e a sua elevada taxa de mortalidade se não for tratada, após a realização destes exames deve ser instituída terapêutica antibiótica empírica. Habitualmente, o tratamento inclui ampicilina e gentamicina e/ou uma cefalosporina de terceira geração (designadamente cefotaxima, sobretudo se houver sinais de doença grave ou evidência de meningite, tendo como base o resultado do exame citoquímico do LCR.

Embora o tratamento empírico com aciclovir não seja usado por rotina, a sua utilização deve ser considerada na presença de factores de risco de infecção por vírus Herpes simplex (história materna de infecção por vírus Herpes simplex, ruptura prolongada de membranas, presença de vesículas mucocutâneas, orais ou oculares, sinais neurológicos focais, falência da antibioticoterapia passadas 48 horas, elevação dos valores das enzimas hepáticas (indicadores precoce de infecção disseminada por VHS em recém-nascidos com < 2 semanas de vida) ou pleiocitose no LCR

II. Crianças com idades entre 29 dias e 3 meses

Apesar de nesta faixa etária já ser mais habitual haver sinais indiciando foco localizado de infecção, ainda é muito difícil prever se a criança tem uma doença potencialmente grave. Nesta idade, uma infecção vírica não diminui a probabilidade de doença bacteriana grave concomitante.

Porém, com a introdução de novas vacinas, nomeadamente com a vacina anti-pneumocócica conjugada, verificou-se uma diminuição da prevalência de bacteriémia oculta, tornando-se assim controversa a necessidade de hospitalização e terapêutica antibiótica em todos os lactentes nesta faixa etária. Os critérios de observação clínica mais difundidos e que não utilizam a punção lombar para estratificação do risco são os critérios de Rochester (Quadro 1). Estes critérios tentam identificar as crianças com baixo risco de infecção bacteriana, o que permite uma abordagem menos agressiva nas crianças que cumprem todos os critérios. Para uma infecção bacteriana grave, estes critérios apresentam um valor preditivo negativo de 98,9% e, para o risco de bacteriémia, um valor preditivo negativo de 99,5%.

Assim, uma vez realizados a anamnese e o exame objectivo, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo
  •  Doseamento de PCR e PCT;
  •  Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucocitos > 20.000/mmc;
  • Punção lombar – na criança com aspecto geral séptico, não cumprimento dos critérios de Rochester ou antes de iniciar antibioticoterapia.

 

Nota

    • PCR com valor limitado para identificar lactente febril com risco de bacteriémia oculta;
    • PCT com valor > 0,5 ng/mL aumenta a probabilidade de infecção bacteriana potencialmente grave.

Assim, numa criança cumprindo todos os critérios de baixo risco ou com o diagnóstico estabelecido de pielonefrite pode protelar-se a realização da punção lombar e o início de antibioticoterapia, vigiando a evolução do quadro febril (sendo a criança obrigatoriamente reavaliada dentro de 24 horas, ou antes, se houver agravamento clínico). Contudo, é essencial avaliar previamente se os pais e/ou familiares estão capacitados para identificar eventual agravamento do estado clínico da criança, e se existe fácil acesso à instituição de saúde.

Se a investigação levada a cabo não permitir a identificação do foco e se a criança não cumprir todos os critérios de baixo risco, a mesma deverá ser submetida a punção lombar e hospitalizada para antibioticoterapia empírica, por existir, nestas circunstâncias, risco elevado de bacteriémia oculta. O esquema de tratamento é ampicilina + cefotaxima. Deve considerar-se a administração de aciclovir caso o lactente tenha estado em contacto com algum indivíduo com infecção herpética.

A actuação nos casos de lactente vigiado em ambulatório sem antibioticoterapia instituída previamente, e cuja hemocultura é positiva, é a seguinte: – deve repetir-se a avaliação analítica; – deve proceder-se à hospitalização para antibioticoterapia endovenosa de acordo com o antibiograma.

QUADRO 1 – Critérios de Rochester

Parâmetros a avaliar
    • Bom estado geral
    • Previamente saudável (idade gestacional > 37 semanas; sem tratamento antibiótico perinatal; sem tratamento para hiperbilirrubinémia neonatal de etiologia desconhecida, sem hospitalização ou antibioticoterapia prévia, sem doença crónica conhecida)
    • Sem sinais de foco infeccioso (pele, tecido subcutâneo, osso, articulações ou ouvidos)
    • Valores laboratoriais
      • Leucócitos 5.000-15.000/mmc; relação do número absoluto neutrófilos imatutos/número absoluto de neutrófilos totais ou NANI/NANT < 0,2
      • Bastonetes no sangue periférico < 1.500/mmc
      • Sedimento urinário: < 10 leucócitos/campo
      • Se diarreia: < 5 leucócitos fecais/campo

 

III. Crianças com idades entre > 3 e 36 meses

Neste período etário será possível identificar um número significante de infecções através da anamnese e do exame objectivo; no entanto, existe ainda a possibilidade de determinados casos corresponderem a infecções ocultas: entre estas, como mais frequentes e potencialmente mais graves, citam-se a infecção urinária, a pneumonia e a bacteriémia oculta.

Neste grupo de doentes, a abordagem divide-se consoante a idade e estado de imunização:

  • Crianças com idade > 6 meses e estado vacinal actualizado (três doses de vacina anti-Hib e, pelo menos, duas doses de vacina antipneumocócica): o risco de bacteriémia é inferior a 1% sendo, por isso, recomendadas a avaliação analítica nem a antibioticoterapia empírica. Porém, porque o risco de infecção do tracto urinário se mantém, nestas crianças estão indicados: – Exame sumário da urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não circuncidados com menos de 12 meses ou naqueles submetidos a circuncisão com idade inferior a 6 meses).
  • Crianças com estado vacinal desactualizado ou com idade < 6 meses: o risco de bacteriémia oculta pode ser superior a 5%, embora actualmente (após introdução da vacina anti-pneumocócica) este valor possa ser menor devido ao efeito da imunização de grupo. Nestes casos recomenda-se a realização dos seguintes exames:
    • Hemograma completo;
    • PCR e PCT;
    • Hemocultura;
    • Exame sumário de urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não com idade < 12 meses, ou naqueles submetidos a circuncisão com idade < 6 meses);
    • Radiografia de tórax se leucócitos > 20.000/mmc.

Perante o diagnóstico de infecção urinária ou pneumonia, a decisão de proceder a tratamento antibiótico em regime de internamento ou em regime ambulatório dependerá de vários factores: idade da criança, estado geral, tolerância da via oral, e capacidade de os pais ou representantes assegurarem o cumprimento terapêutico.

Na hipótese de bacteriémia oculta (ausência de foco e de aspecto séptico e valor de leucócitos > 15.000/mmc, é fortemente recomendado iniciar antibioticoterapia com ceftriaxona intramuscular e reavaliar após 24 horas, uma vez que vários estudos têm demonstrado que a utilização de antibioticoterapia empírica, nas crianças não imunizadas e no contexto de febre sem foco, poderá evitar a progressão da bacteriémia para a focalização, especialmente meningite.

O resultado da hemocultura, que virá estabelecer o diagnóstico, poderá obrigar à alteração do antimicrobiano escolhido antes empiricamente, de acordo com o antibiograma relativo ao agente isolado.

Outra situação possível é a obtenção de resultado positivo da hemocultura numa criança relativamente à qual se optou inicialmente por abstenção de antibioticoterapia. A atitude neste caso é a seguinte:

  • Hemocultura positiva para S. pneumoniae: no caso de febre persistente, deve proceder-se a avaliação analítica, incluindo punção lombar. Se se verificar meningite a criança deverá ser hospitalizada e medicada com cefalosporina de 3ª geração (associada a vancomicina até confirmação da inexistência de resistência elevada à penicilina e cefalosporinas de 3ª geração). Se o LCR for estéril, pode proceder-se a antibioticoterapia oral (amoxicilina 90 mg/kg/dia) durante 7 a 10 dias em ambulatório; em caso de apirexia, há indicação para antibioticoterapia oral em ambulatório (amoxicilina 90 mg/kg/dia);
  • Hemocultura positiva para N. meningitidis ou H. influenzae tipo B: a criança deve ser hospitalizada, realizando-se avaliação analítica, incluindo punção lombar e iniciando-se antibioticoterapia endovenosa com ceftriaxona.

O tratamento das situações em que tenham sido isoladas outras bactérias, como Salmonella spp, Streptococcus – hemolítico grupo A, Staphylococcus spp, Moraxella spp e Haemophilus influenzae não-B, está menos bem definido; contudo, poderá adoptar-se o procedimento referido a propósito dos casos com isolamento de Streptococcus pneumoniae, valorizando sempre o estado clínico. Apesar de os resultados das hemoculturas serem conhecidos regra geral 24-48 horas após a colheita, é de salientar que muitas vezes o resultado, quando positivo, poderá não ter relação com o agente causal, situação que corresponde a contaminação da colheita.

Tratamento antipirético

Embora não altere a evolução da doença infecciosa de base, justifica-se o tratamento sintomático da febre alta (temperatura rectal > 38ºC), sobretudo se associada a mal-estar evidenciado por sintomatologia como gemido, prostração, hiporreactividade, etc.. Por outro lado, o abaixamento da temperatura:

  1. reduz as necessidades metabólicas;
  2. permite que a criança esteja mais desperta e com maior propensão para comer e beber líquidos – cuja ingestão deve ser estimulada – prevenindo a desidratação;
  3. diminui a probabilidade de convulsões em crianças de risco neurológico.

Com a criança despida, procede-se à passagem pelo corpo de esponja embebida em água tépida (não álcool) a temperatura < 3-4ºC relativamente à temperatura corporal, ao mesmo tempo que se administra como primeira prioridade paracetamol (oral ou rectal) na dose de 10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 80 mg/kg/dia.

Como segunda prioridade utiliza-se o ibuprofeno (oral) na dose de 5-10 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 20 mg/kg/dia. Salienta-se que o decréscimo da temperatura corporal após tratamento antipirético não permite distinguir doença bacteriana grave de doença vírica menos grave.

O AAS não é recomendado na idade pediátrica como antipirético pela possibilidade de desencadear síndroma de Reye.

QUADRO 2 – Síntese da abordagem

FEBRE SEM FOCO DE INFECÇÃO LOCALIZÁVEL
Idade*Abordagem diagnóstica e terapêutica
< 1 mês
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar; RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Hospitalização
    • Antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou ampicilina 200 mg/kg/dia + cefotaxima 200 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8/8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
1-3 meses
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura; Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucócitos > 20 000/mmc; Punção lombar – considerada na criança com aspecto geral séptico ou não cumprimento de factores de baixo risco para infecção bacteriana potencialmente grave
    • Avaliação clínica e/ou analítica – critérios Rochester
    • Baixo risco – Vigilância em internamento ou em ambulatório (reavaliação após 24 horas de evolução)
    • Alto risco – Vigilância em internamento e início de antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou cefotaxime 50 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8-8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
> 3 meses a
36 meses
Criança sem aspecto séptico, com idade > 6 meses e com vacinas actualizadas (incluido 2 doses vacina anti-pneumocócica)
    • Exame sumário de urina
    • Vigilância em ambulatório apenas com tratamento sintomático. Reavaliar às 24h
 Crianças sem estado vacinal actualizado e com idade inferior a 6 meses
    • Exame sumário de urina
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, hemocultura.
    • Considerar antibioticoterapia se leucócitos ≥ 15.000/mmc ou vigilância em internamento sem antibioticoterapia
 Crianças com aspecto séptico
    • Abordagem ABCDE
    • Tratar o choque, se indicado
    • Avaliação analítica: hemograma, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar (excepto se instabilidade clínica, alteração do estado de consciência ou sinais neurológicos focais); RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Internamento
* Neste quadro, para fins práticos, procedeu-se a um arredondamento quanto à divisão em idades inicialmente estabelecida  

Conclusão

O quadro clínico designado por febre sem foco (FSF) de infecção localizável constitui uma realidade cada vez mais frequente na prática clínica pediátrica. Apesar de se ter registado uma diminuição do número absoluto de casos de bacteriémias ocultas, torna-se premente conseguir identificar e tratar precocemente tais crianças.

Para cumprir tal objectivo, ao longo do tempo têm sido elaboradas inúmeras grelhas de critérios para estratificar, caso a caso, o risco de doença bacteriana potencialmente grave. Tais critérios, contudo, vieram a revelar-se insuficientes pela introdução de novas vacinas, contribuindo para uma diminuição do risco de doença bacteriana grave no contexto do quadro de FSF.

Em suma, a decisão de investigar e, posteriormente, de tratar ou não, é do médico que observa cada criança, sabendo-se à partida que não há sinal, sintoma ou resultado laboratorial que seja por si só diagnóstico. Há, pois, necessidade de actuar com bom senso, conjugando várias circunstâncias presentes. Da acção combinada dos profissionais de saúde e dos familiares, será possível reduzir-se ao mínimo as agressões iatrogénicas às crianças.

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DOENÇAS EXANTEMÁTICAS – UMA VISÃO GLOBAL

Definição e etiopatogénese

Exantema define-se como uma erupção cutânea, localizada ou generalizada, que pode surgir num vasto leque de doenças de etiopatogénese diversa (infecciosa, alérgica ou autoimune). Contudo, em Pediatria, quando nos referimos a doenças exantemáticas falamos de um grupo relativamente restrito de doenças infecciosas que se manifestam, na maioria das vezes, por exantema associado a febre (exantema febril). As doenças exantemáticas “clássicas”, descritas no início do século XX, são o sarampo, a escarlatina, a rubéola, o eritema infeccioso e o exantema súbito. No entanto, muitos outros agentes infecciosos são causa frequente de exantema, tais como enterovírus, adenovírus, vírus da varicela, VEB, Staphylococcus aureus e Rickettsia spp.

Algumas destas doenças têm um carácter sazonal mais ou menos acentuado. As infecções por enterovírus são mais comuns no Verão e início de Outono; por vírus da varicela-zóster no Inverno e Primavera; por parvovírus B19 no fim do Inverno e Primavera; por Rickettsia spp na Primavera e Verão. As infecções por VEB e HHV 6 e 7 ocorrem durante todo o ano. Antes do uso generalizado da vacina os surtos de sarampo e rubéola eram mais comuns na Primavera.

As lesões podem ser resultantes de infecção da derme (sarampo, varicela, doença por enterovírus), de lesão do endotélio vascular (riquetsiose), de efeitos de toxinas circulantes (S. pyogenes, S. aureus), de resposta imunológica do hospedeiro (parvovírus B19) ou da combinação de vários factores.

Os exantemas, o problema de expressão cutânea mais frequente na idade pediátrica, são na sua maioria causados por infecções víricas, de transmissão horizontal, pessoa a pessoa.

Aspectos epidemiológicos

Estudos de seroprevalência mostram que a grande maioria destas infecções ocorre até ao final da adolescência. Em Portugal, a ampla cobertura vacinal contra o sarampo e a rubéola levou a um quase desaparecimento da sua incidência. No que respeita a Doenças de Declaração Obrigatória, nos anos de 2009 a 2012 foram notificados à DGS, até aos 15 anos de idade, seis casos de rubéola, dois casos confirmados de rubéola congénita, cinco casos de sarampo (importados de outros países) e 208 casos de febre escaro-nodular.

Quanto a outras doenças como varicela, enterovírus ou infecção por parvovírus B19, não de declaração obrigatória, não existem estudos representativos da população nacional para avaliar a sua incidência em função da idade. No entanto, no inquérito serológico nacional efectuado em 2002, 94% dos indivíduos dos 15 aos 19 anos apresentavam evidência serológica de infecção anterior por varicela. Na Europa e nos Estados Unidos nos últimos têm ocorrido vários surtos de sarampo sobretudo em populações não vacinadas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na avaliação da criança previamente saudável com exantema febril, a abordagem clínica com base na anamnese e exame objectivo é fundamental para se estabelecer o diagnóstico etiológico. Este tem implicações óbvias na atitude terapêutica a tomar e, nalguns casos, igualmente de extrema importância na programação de medidas atempadas de controlo epidemiológico.

No contexto epidemiológico importam: a idade, o estado vacinal (por ex. podendo apoiar a exclusão de diagnóstico de sarampo ou rubéola); o contacto com animais (febre escaro-nodular); contacto familiar ou na escola com casos de doença já diagnosticada (escarlatina, adenovírus, enterovírus); história de viagens, doença exantemática prévia, etc..

Quanto à história da doença actual, determinados aspectos devem ser inquiridos e/ou observados com rigor: O exantema foi precedido por um pródromo febril de alguns dias? Foi a primeira manifestação da doença (rubéola, escarlatina) ou surgiu após o desaparecimento da febre (exantema súbito)? Estão presentes sinais patognomónicos ou sugestivos da etiologia (manchas de Koplik no sarampo, tache noire na febre escaro-nodular, amigdalite eritemato-pultácea na escarlatina ou mononucleose infecciosa)? A natureza da lesão elementar: mácula – sem relevo na superfície cutânea; pápula – com relevo e sem conteúdo líquido; vesícula, bolha ou pústula – com relevo e com conteúdo líquido; petéquias ou sufusões hemorrágicas. Na presença de exantema maculopapular é útil verificar se existe um fundo eritematoso que atinge toda a superfície cutânea da zona afectada (escarlatiniforme); se as manchas são confluentes e de tom vermelho escuro (morbiliforme), ou róseo, discreto e não confluente (rubeoliforme). Por sua vez, na febre escaro-nodular, as lesões são mais dispersas e algumas são nodulares. A topografia das lesões: atingimento do couro cabeludo e mucosas na varicela ou das palmas e plantas na febre escaro-nodular e enterovírus. A presença de prurido (eritema infeccioso, rubéola no adolescente e o exantema vírico por enterovírus e adenovírus) e a descamação ulterior ao exantema (furfurácea no sarampo, em dedos de luva na escarlatina e doença de Kawasaki) são elementos importantes.

Os exames complementares têm interesse limitado uma vez que o diagnóstico é essencialmente clínico. No entanto, por vezes podem dar-nos algumas indicações (leucocitose com neutrofilia na escarlatina, neutropenia no exantema súbito, presença de linfócitos atípicos na mononucleose infecciosa).

As serologias têm interesse para a confirmação do diagnóstico, sobretudo nas situações em que tal é importante por motivos epidemiológicos ou pela presença de complicações. Nos últimos anos, a utilização mais generalizada das técnicas de biologia molecular contribuiu para a confirmação do diagnóstico etiológico em situações menos típicas e/ou de maior relevância clínica.

O Quadro 1 sintetiza as principais características clínicas e biológicas de doenças exantemáticas surgindo classicamente em idade pediátrica, algumas das quais são objecto de abordagem em capítulos próprios. No Quadro 2 são descritos os tipos de exantema associados a doenças infecciosas e a outras situações não infecciosas. Nas Figuras 1 e 2 são exemplificados aspectos de exantema petequial e morbiliforme.

Tratamento e medidas de controlo epidemiológico

Apenas na escarlatina e na febre escaro-nodular é necessária antibioticoterapia. Com a escarlatina, o sarampo e a rubéola existe risco de contágio, obrigando por isso a evicção escolar. A febre escaro-nodular, o sarampo e a rubéola são doenças de declaração obrigatória. (Consultar Anexos)

QUADRO 1 – Doenças exantemáticas – Características clínicas.

PI – período de incubação; PCR – reacção de polimerase em cadeia/técnica molecular

Doença/AgenteClínicaExantemaDiagnósticoComplicações
Sarampo
Paramixovírus
Febre alta, tosse, coriza e conjuntivite; manchas de Koplik na mucosa oral antes do início do exantemaAo 4º/5º dia de doença; maculopapular confluente com progressão cefalo-caudal; descamação furfurácea e coloração acobreadaClínico; Serologia; PCROtite, pneumonia, laringotraqueíte, encefalite, panencefalite esclerosante subaguda, morte
Rubéola
Togavírus
Febre baixa ou ausente, adenopatia cervical posterior ou occipitalPrimeira manifestação, macular discreto, não confluente, fugaz, progressão cefalocaudal pode ser pruriginosoClínico; SerologiaSíndroma da rubéola congénita, encefalite, poliartralgia, artrite
Escarlatina
Streptococcus β-hemolítico do grupo A
Febre alta com amigdalite eritemato-pultácea e enantema do palato, língua saburrosa e adenomegalias cervicaisInício simultâneo com a febre, eritematoso, puntiforme, sem intervalos de pele sã, áspero, mais intenso nas pregas cutâneas, palidez peribucal; descamação foliácea dos dedos na 2ª ou 3ª semanaCultura de exsudado faríngeo; Pesquisa de antigénioAbcesso retro amigdalino; sépsis, miocardite, febre reumática; glomerulonefrite aguda
Exantema súbito
Herpes vírus 6
Herpes vírus 7
Mais frequente no lactente, febre alta por 3-4 dias antes do exantemaInício após normalizar a temperatura, macular ou maculopapular, róseo, centrífugo, dois a três dias de duraçãoClínico, serologia e PCRConvulsões febris; doença disseminada em imunocomprometidos
Eritema infeccioso
Parvovírus B19
Sintomas gerais; por vezes dois a três dias de febre e intervalo livre de sete diasExantema eritematoso da face, geográfico da superfície extensora dos membros; pode recorrer por várias semanasClínico, serologia e PCRHidropisia fetal, artrite; crise aplásica, infeção crónica em imunocomprometidos
EnterovírusFebre, faringiteMaculopapular, morbiliforme ou petequial; pode atingir palmas e plantas (Coxsackie)Clínico, serologia, PCRMeningite, miocardite
Vírus Epstein-BarrFebre, cefaleias, edema palpebral, amigdalite exsudativa, adenomegalias, hepatosplenomegaliaMaculopapular ou urticariforme; atinge mais o troncoClínico, serologia, PCRObstrução respiratória, ruptura esplénica, síndroma hemofagocítica; associado a linfoma
VaricelaFebreTipicamente com máculas, pápulas, vesículas, pústulas e crostas, pruriginoso, progressão cefalocaudal, atinge couro cabeludo e mucosasClínico, serologia, PCRSobre infecção bacteriana das lesões, piomiosite, fascite, encefalite, cerebelite
Febre escaro-nodular
Rickettsia conorii
Contacto com cães, febre alta com mialgias e mal-estar geral“Tache noire”; exantema nodular disperso; não poupa plantas e palmasClínico; SerologiaPneumonia, flebite; encefalite, miocardite

QUADRO 2 – Tipos de exantema em doenças infecciosas e não infecciosas.

Nota: Outras situações como infecções por Mycoplasma, sífilis, blastomicose, dengue, doença de inclusões citomegálicas, dermatomicoses, etc. podem estar associadas a erupção, a qual está enquadrada em sintomatologia mais relevante.
Erupção maculopapular ou punctiforme
    • Infecciosa: sarampo, rubéola, exantema súbito, eritema infeccioso, escarlatina, riquetsioses, doença meningocócica, toxoplasmose, infecções por enterovírus, mononucleose infecciosa
    • Não infecciosa: queimadura solar, miliária, eritema tóxico, erupções por fármacos
Erupção pápulo-vesicular
    • Infecciosa: varicela-zóster, herpes simplex, varíola, eczema herpeticum, eczema vacinatum, infecções por enterovírus, riquetsioses, impétigo, molusco contagioso, dermatite herpetiforme.
    • Não infecciosa: picada de insecto, estrófulo, erupções por fármacos.

FIGURA 1. Aspecto de exantemas: A – máculo-papuloso; B – petequial. (NIHDE)

FIGURA 2. Aspecto de exantema morbiliforme (caso de sarampo). (NIHDE)

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INFECÇÕES E CUIDADOS DE SAÚDE

Importância do problema e definições

No âmbito da clínica pediátrica hospitalar ou extra-hospitalar, a prevenção, vigilância e contenção (ou controlo) das infecções constituem um objectivo fundamental, implicando o envolvimento de todos os profissionais de saúde e familiares (e a responsabilidade de cada um). Para tal, torna-se imprescindível que exista um sistema de saúde pública eficaz, eficiente e efectivo, um programa de imunizações universal, e um plano (nacional e institucional) que permita prevenir a transmissão de infecções de criança a criança, de criança a adulto, e de adulto a criança, quer nas instituições hospitalares, quer noutras unidades de saúde.

Daqui nasce a noção de infecções associadas à prestação de cuidados de saúde (sigla corrente: IACS) que se refere às infecções adquiridas durante o internamento em hospital ou no decurso da prestação de cuidados numa instituição de saúde extra-hospitalar.

Como existe maior probabilidade de determinado doente adquirir infecção em ambiente hospitalar, habitualmente utiliza-se como sinónimo de IACS o termo no sentido estrito – infecção nosocomial, que significa hospitalar (palavra derivada do grego nosokómos ou hospital); tal pressupõe que, na data de admissão, determinada doença infecciosa não estava presente, nem em período de incubação. Infecções adquiridas na comunidade são as que se verificam na data de internamento hospitalar (isto é, adquiridas anteriormente à observação do doente em unidade de saúde, hospitalar ou não).

De acordo com estudos epidemiológicos, calcula-se que cerca de 3-5% de crianças internadas em hospitais adquirem infecções nosocomiais (IN) (ver adiante). O problema adquire maior importância pela maior incidência, nas unidades de cuidados intensivos; contudo, e de acordo com a noção antes expressa, as infecções podem também surgir após permanência em serviços de urgência, nos gabinetes de consulta intra e extra-hospitalares, assim como em unidades de cuidados continuados e, até em ambiente domiciliário (por exemplo doentes submetidos a nutrição parentérica e a tratamentos por via IV com cateter, submetidos a ventilação domiciliária, a tratamentos com aerossóis, etc.).

No âmbito deste tipo de infecções são englobadas as infecções ocupacionais nos profissionais de saúde.

Definido o conceito de IACS, cabe especificar que a infecção poderá:

  • ser localizada ou sistémica;
  • resultar de reacção adversa à presença de agente(s) infeccioso(s) ou da(s) sua(s) toxina(s);
  • ser eventualmente detectada após alta de instituição hospitalar ou extra-hospitalar;
  • ser admitida como hipótese se surgir > 48 horas após a admissão hospitalar.
  • ser endémica (mais comum, de ocorrência expectável na instituição); ou
  • ser epidémica (ocorrendo sob a forma de surtos, definidos como um aumento, acima da taxa média de incidência, de determinada infecção ou de determinado microrganismo infectante).

Não é considerada IACS:

  • a colonização (presença de microrganismos na pele ou mucosas, feridas abertas ou secreções) não associada a sintomas ou sinais clínicos adversos);
  • a inflamação (resposta tecidual à lesão ou estimulação por agentes não infecciosos, como químicos ou físicos).

Em suma, as IACS constituem um problema de saúde pública que importa prevenir, tendo em conta, nomeadamente, a morbilidade e mortalidade que comportam, e o impacte económico e social pelos custos acrescidos em relação com a necessidade de prestação de cuidados mais prolongada, e pelo absentismo laboral dos prestadores de cuidados. Quanto menor a frequência daquelas, mais precária se considera a qualidade dos cuidados de saúde prestados à comunidade.

Nota importante: neste capítulo são empregues indiferentemente as siglas IN e IACS.

Etiopatogénese

No âmbito da prestação de cuidados de saúde, em regime hospitalar ou extra-hospitalar, vários factores podem ser determinantes de infecção: factores de susceptibilidade do hospedeiro (lesões da pele congénitas ou adquiridas, queimaduras, úlceras e escaras de decúbito, má-nutrição, etc.), manobras invasivas, antibioticoterapia, utilização de cateteres ou outro equipamento, e exposição: – a outros doentes; – a pessoas que visitam os doentes; – a profissionais de saúde; ou – a prestadores de cuidados, incluindo familiares, portadores de doenças infecciosas, adquiridas na instituição de saúde e não na comunidade. Especificando alguns pontos importantes:

  • determinadas doenças subjacentes e terapias várias podem alterar a imunidade, predispondo a infecção;
  • as manobras invasivas permitem o acesso de patogénios vários à corrente sanguínea e, por outro lado, alteram as barreiras mecânicas de defesa natural contra aqueles;
  • determinados “corpos estranhos” para o organismo, tais como sondas de drenagem, cateteres e dispositivos de bypass constituem local de atracção e adesão para microrganismos, podendo obstruir orifícios naturais como as trompas de Eustáquio;
  • os antibióticos podem alterar o microbioma intestinal, facilitar a colonização por agentes microbianos resistentes e comprometer a função hematopoiética.

No que respeita à transmissão de microrganismos, a mesma pode fazer-se por diversas vias, sendo as mãos a mais frequente e mais importante.

Tratando-se de IACS, são as mãos não correctamente lavadas dos prestadores de cuidados, das visitas, ou doutras crianças, que podem veicular o patogénio hospitalar ou institucional para o doente assistido.

Outros possíveis transmissores, reservatórios de bactérias, são: equipamento médico (estetoscópio, otoscópio, termómetro contactando com mucosas), bata e gravata, anéis, brinquedos não submetidos a lavagem e desinfecção, equipamento manuseado pelos prestadores ou visitas, como o rato do computador, livros em geral, lista telefónica, telefones, etc..

Alguns microrganismos são transmitidos por via aérea, como vírus da varicela, do sarampo, e Mycobacterium tuberculosis. A água e alimentos podem também ser agentes de transmissão.

Os agentes infecciosos mais comuns de IACS, diversos dos que originam infecções na comunidade, são: vírus sazonais [na época de Inverno, vírus respiratórios (influenza, parainfluenza, VSR) e, durante o Verão, enterovírus], Staphylococcus e bacilos gram-negativos. Fungos, parasitas e bactérias resistentes são causas frequentes de infecção em casos de doentes com imunodeficiência congénita ou adquirida, submetidos a terapia intensiva e requerendo internamento prolongado. Staphylococcus coagulase negativo (SCN) e Enterococcus, mais frequentes na idade pediátrica do que em adultos, são agentes prevalentes em unidades de hemato-oncologia e UCIN, geralmente em relação com cateteres centrais. Nas UCIP, Streptococcus viridans, Gram-negativos entéricos e não entéricos, Bacillus spp, SCN e S. aureus são os principais agentes.

De acordo com estudos epidemiológicos recentes em UCIP, considerando a resistência aos antimicrobianos, a proporção de estirpes Staphylococcus aureus meticilina-resistente (SAMR) é menor na população pediátrica; contudo, a resistência de SCN e a multirresistência dos bacilos gram-negativos são semelhantes às observadas em adultos.

As infecções fúngicas (particularmente por Candida spp e Aspergilus spp) embora menos frequentes, constituem um problema crescente.

Aspectos epidemiológicos

Em unidades de cuidados intensivos (UCI), considerando todas as idades, a frequência de IN varia entre 5-10%. Em clínica pediátrica, considerando as infecções nosocomiais propriamente ditas, a incidência global de IN varia entre 2 e 12%, com uma grande discrepância em relação à idade (7-9% no 1º ano de vida, contra 1,5-4% após 10 anos de idade) e tipo de unidade de internamento (3-26% em UCI contra 1-4% em enfermarias de pediatria geral). No período neonatal, o baixo peso de nascimento e o sexo masculino (relação M/F de 1,7/1) estão associados a um risco aumentado de IN.

Na idade pediátrica, os problemas clínicos mais comuns relacionados com IACS são: infecções respiratórias, gastrintestinais, infecções urinárias, infecções da pele e, designadamente, de ferida operatória, e bacteriémia (esta última,

geralmente associada a cateter venoso central). De acordo com dados da literatura, as gastrenterites, sobretudo por rotavírus, correspondem a ~10% dos casos de IN em enfermarias de pediatria geral.

Relativamente a Portugal, num inquérito nacional de prevalência, realizado em Maio de 2003, envolvendo 67 hospitais e 16.373 doentes, identificou uma prevalência de 8,4% de doentes com IACS e uma prevalência de 22,7% de doentes com infecção adquirida na comunidade (taxas semelhantes às verificadas na maioria dos estudos internacionais).

Considerando os casos internados em UCIP, surgem como mais frequentes: – pneumonia (casos submetidos a ventilação mecânica); – infecção urinária (associadas a algaliação); – infecção de ferida operatória; – rinossinusite em crianças com entubação traqueal ou nasogástrica); – flebite e endocardite associadas a cateterismo venoso; e – bacteriémia (mais frequente em RN e doentes hemato-oncológicos).

Manifestações clínicas e políticas de vigilância

Em todos os doentes hospitalizados por doença não febril, nos quais surja quadro febril, deverá proceder-se a investigação no sentido de detectar eventual IN. Nesta perspectiva, há que ter em atenção:

  • ao aparecimento de determinados sinais e sintomas podendo indiciar infecção sistémica: febre, taquicárdia, taquipneia, exantema, prostração (no lactente: febre ou hipotermia, episódios de apneia, bradicárdia, letargia ou vómitos);
  • à possível relação entre os antecedentes/tipo de procedimento recentemente efectuado, sintomatologia, e resultados de exames complementares realizados em função desta; por ex. disúria/piúria, algaliação;
  • à urocultura positiva por Candida spp – infecção urinária; cateterismo venoso central – febre;
  • à hemocultura positiva – bacteriémia; febre e sinais auscultatórios de alveolite – entubação traqueal – sinais radiológicos de condensação pulmonar, baixa saturação tc em oxigénio – pneumonia, etc..

Tendo em consideração a probabilidade de surgimento de IACS em doentes assistidos nos hospitais, numa perspectiva preventiva de vigilância das infecções, foram criados:

  • a nível nacional, o chamado Programa Nacional de Controlo da Infecção; e
  • nos hospitais, Comissões de Controlo da Infecção (CCI). Estas (CCI) são grupos multidisciplinares institucionais que definem políticas de prevenção, procedem à colheita de dados epidemiológicos que são discutidos e avaliados, e investigam as circunstâncias e factores de eventuais surtos surgidos;
  • idealmente, as mesmas devem debruçar-se também sobre a vigilância de âmbito extra-hospitalar da área de influência do hospital em causa.

De acordo com os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são utilizados determinados critérios na vigilância epidemiológica das IACS; os mesmos baseiam-se em parâmetros clínicos e biológicos permitindo identificar aproximadamente 50 potenciais locais de infecção. Os critérios simplificados para as infecções mais comuns apresentam-se no Quadro 1.

QUADRO 1 – Critérios simplificados para a vigilância de IACS

Tipo de infecção nosocomial  Critérios simplificados
(Adaptado de Ducel G, et al, 2002)
Infecção de IACS Qualquer exsudado, abcesso ou celulite em expansão no local de intervenção cirúrgica, durante o primeiro mês após a mesma
Infecção urinária Urocultura positiva (≤2 estirpes) com, pelo menos, 105 bactérias/mL, com ou sem sintomas
Infecção respiratória Dois ou mais sinais de disfunção respiratória surgindo durante o internamento: tosse, expectoração purulenta, infiltrado de novo na radiografia do tórax compatível com infecção
Infecção do cateter vascular Inflamação, linfangite ou exsudado no local de inserção do cateter
Sépsis Febre ou calafrio em associação a pelo menos, 1 hemocultura positiva

Tratamento

O tratamento inclui fundamentalmente:

  • administração empírica de antibióticos de largo espectro (de acordo com padrões de resistência locais, se possível), de antivíricos e/ou de antifúngicos;
  • tratamento das complicações (como choque, insuficiência respiratória, disfunção multiorgânica, etc.), muitas vezes com necessidade de internamento em UCIP, o que implica apoio multidisciplinar;
  • remoção/substituição de material potencialmente contaminado (cirúrgico, cateter central, algália, entre outros) quando possível.

Nota importante: Nas UCIP em que existe elevada prevalência de microrganismos resistentes, na data de admissão de qualquer doente é rotina proceder ao rastreio de SAMR, através de colheitas de produtos e culturas nos seguintes locais: narinas, feridas ou lesões cutâneas, cateteres e sondas de traqueostomias (e região umbilical no RN). Se se demonstrar que o doente está colonizado com SAMR, o mesmo deverá ficar em área de isolamento e submetido a tratamento para erradicar a colonização. Esta estratégia pode ser aplicada a outros microrganismos em idêntica circunstância.

Prevenção

A prevenção das IACS assenta numa abordagem multidisciplinar e integrada, com o objectivo de limitar a transmissão de microrganismos. A propósito das manifestações clínicas, chamou-se já a atenção do papel das CCI na vigilância.

Como pontos fundamentais das estratégias utilizadas, salientam-se:

  • lavagem adequada das mãos e utilização de luvas descartáveis por todos prestadores de cuidados (profissionais de saúde, familiares, voluntários, outras pessoas, etc.);
  • utilização de barreiras (bata, máscara, óculos de protecção);
  • cuidados de assepsia, designadamente nos locais de penetração ou contacto de material estranho e nos cuidados com as feridas operatórias;
  • desinfecção e esterilização do material utilizado;
  • protecção do doente através de nutrição adequada, imunização e utilização de antibioticoterapia profiláctica, quando houver indicação;
  • isolamento do doente infectado com os objectivos de evitar a disseminação da doença, e de simultaneamente o proteger doutras infecções;
  • limitação do risco de infecção endógena (da microbiota do próprio doente), seleccionando criteriosamente a antibioticoterapia;
  • redução ao mínimo indispensável os procedimentos invasivos;
  • prevenção da infecção nos profissionais de saúde (e voluntários) – rastreios periódicos, imunização, etc.;
  • aplicação de boas práticas de prevenção da infecção através de acções sistemáticas e periódicas de formação contínua dirigidas a prestadores de cuidados (profissionais de saúde ou não).

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PRINCÍPIOS GERAIS DA TERAPÊUTICA ANTIMICROBIANA

Conceitos fundamentais  

A Microbiologia é a ciência que estuda os seres vivos de dimensões microscópicas. O seu nome deriva de três vocábulos gregos: mikrós (pequeno), bios (vida) e logos (ciência).

A vastidão do mundo microbiano inclui bactérias, microalgas, fungos e parasitas, nomeadamente protozoários, e ainda, vírus.

Assim, os micróbios (mais modernamente preferindo-se a designação de microrganismos) são estudados em diversas áreas científicas: Bacteriologia (sobre bactérias), Micologia (sobre fungos), Parasitologia (sobre determinados parasitas), Ficologia ou Algologia (sobre diversos tipos de algas) e Virologia (sobre os vírus, parasitas obrigatórios das células), podendo afectar todos os seres vivos, incluindo bactérias. A todos os microrganismos foram dados nomes para classificação e identificação.

Relativamente à Virologia, importa uma referência especial, pois, de facto, os vírus não são definidos como seres vivos: não possuindo células, apresentam-se como matéria inerte fora das células onde obrigatoriamente replicam, afastando-se assim do conceito clássico para definir os seres vivos.

A Parasitologia, outra área da Microbiologia, também merece um comentário: incluindo seres vivos no estado adulto visíveis a olho nu, são também consideradas como critério de inclusão as dimensões microscópicas dos seus ovos ou das suas formas larvares.

Tendo em conta que tais microrganismos/micróbios exercem efeito patogénico potencialmente fatal (infecção), ao longo da História, e especialmente na segunda metade do século XX, a Ciência promoveu o desenvolvimento de diversas “armas” contra o efeito patogénico dos micróbios (agentes antimicrobianos no sentido lato), com o objectivo de prevenção ou cura de diversas enfermidades. Citam-se, como exemplos, os soros, as vacinas e determinadas substâncias ou compostos químicos.

Nesta perspectiva importa referir alguns factos históricos para o enquadramento do título deste capítulo.

Factos históricos

No século XVI o médico Paracelsus usou compostos de antimónio no tratamento geral das infecções e derivados de mercúrio no tratamento da sífilis.

No século XVII Thomas Sydenham usou casca de chinchona no tratamento da malária, descobrindo-se mais tarde, em 1920, que a mesma casca continha um princípio activo, a quinina.

Em 1876, Robert Koch criou as bases científicas para o conhecimento das doenças provocadas por micróbios (doenças infecciosas), conhecidas por postulados de Koch, demonstrando que o microrganismo designado por Bacillus anthracis provocava o carbúnculo.

Em 1928, um acontecimento acidental veio revolucionar o tratamento das doenças infecciosas. Alexander Fleming, microbiólogo de um hospital em Londres, descobriu numa placa de Petri com colónias do microrganismo Staphylococcus aureus, a presença dum fungo contaminante chamado Penicillium notatum, o qual excretava uma substância antagonizando o crescimento e a vida do Staphylococcus (substância antimicrobina, neste caso, anti-estafilocócica) que mais tarde veio a chamar-se penicilina.

Em 1935, Gerhard Domagk, tendo usado um composto químico chamado prontosil (azo-sulfanilamida) no tratamento de ratos infectados, verificou que da hidrólise daquele resultava um princípio biologicamente activo que se designou sulfonamida.

Pode pois afirmar-se que, no sentido genérico, tinha nascido a quimioterapia (administração de uma substância química com a finalidade de curar uma doença ou de impedir a sua progressão).

Definições e nomenclatura

Relatados certos factos históricos, importa uma referência a certas noções relacionadas com a taxonomia e com a terapêutica anti-infecciosa em pleno século XXI. (consultar Glossário geral)

O nome geral de “quimioterapia” é dado ao tratamento de doenças infecciosas e das doenças malignas por meio de agentes químicos – os agentes quimioterapêuticos.

Reportando-nos à descoberta de Fleming (e que corresponde à descoberta do “primeiro antibiótico”), importa, no entanto, salientar que o termo “antibiótico” foi proposto pela primeira vez em 1942 por Waksman, definindo-o como substância produzida por microrganismos que antagonizam o crescimento ou a vida doutros microrganismos.

Na actualidade discute-se se se deve fazer a destrinça entre antibióticos e agentes quimioterapêuticos. A diferença reside no modo como são produzidos e não na sua acção. Conceptualmente os antibióticos são substâncias produzidas por microrganismos, enquanto os agentes quimioterapêuticos são produzidos sinteticamente e não ocorrem na natureza. De facto, hoje em dia não há uma distinção absoluta entre as duas classes de compostos. Nesta perspectiva, são classificados como antibióticos, quer substâncias obtidas por modificações semi-sintéticas da estrutura dum antibiótico, quer compostos que eram originalmente obtidos como metabólitos de microrganismos, mas actualmente sintetizados.  

 Eis o que acontece na prática, traduzindo alguma sobreposição de conceitos:

  • Na generalidade os agentes quimioterapêuticos são usados para combater o cancro e parasitas (englobando bactérias, vírus, fungos, protozoários, vermes);
  • Na generalidade os antibióticos destinam-se ao tratamento de infecções bacterianas.

Como excepções, cabe citar:

  • Número escasso de antibióticos usado no tratamento de micoses (por ex. griseofulvina), de doenças por protozoários (por ex. macrólidos, tetraciclinas), de doenças por nemátodos (por ex. avermectinas), de doenças oncológicas (por ex. mitomicina, daunorrubicina).

Em suma, no decorrer do texto que integra este capítulo, de acordo com a literatura científica consultada, e em função do contexto de cada situação clínica, pareceu-nos lícito empregar, por vezes indistintamente, os termos “antibiótico, agente quimioterapêutico, agente antimicrobiano e agente antibacteriano”.

Os antibacterianos, o grupo dos antimicrobianos mais investigado, constituem o tópico central abordado neste capítulo. Noutros capítulos deste livro são abordados, em relação com situações clínicas específicas, outros antimicrobianos.

Classificação

Os antibacterianos podem ser classificados de acordo com diversos critérios: estrutura, acção biológica, espectro e mecanismo de acção. No quadro 1 apresenta-se a sua classificação organizada por grupos.

QUADRO 1 – Classificação de antibacterianos por grupos

1Não disponível em Portugal; 2Sem avaliação em Pediatria; 3Profilaxia em Cirurgia; 4Tópico; 5Antimalária; 6Antituberculose; 7Antilepra
CLASSIFICAÇÃO DE ANTIBACTERIANOS
β-LactâmicosPenicilinasBenzilpenicilinasBenzatínica, Procaínica, Fenoximetilpenicilina
AminopenicilinasAmoxicilina, Ampicilina
Isoxazolilpenicilinas (resistentes às penicilinases)Flucloxacilina, Dicloxacilina1, Oxacilina1, Nafcilina1, Meticilina1
Anti-PseudomonasUreidopenicilinasPiperacilina, Azlocilina1, Mezlocilina1
CarboxipenicilinasTemocilina1, Ticarcilina1, Carbenicilina1
AmidinopenicilinasPivmecilinam2
Cefalosporinas1ª geraçãoCefazolina3, Cefatrizina, Cefradina, Cefadroxil1, Cefalexina1
2ª geraçãoCefuroxima, Cefoxitina, Cefaclor, Cefprozil, Cefotetano1, Cefmetazol1
3ª geraçãoCefotaxima, Ceftriaxona, Ceftazidima, Cefixima,
4ª geraçãoCefepime
5ª geraçãoCeftarolina fosamil, Ceftolozano2, Ceftobiprole1
CarbapenemesErtapenem, Imipenem, Meropenem, Doripenem1
MonobactâmicosAztreonam
Inibidores das b-lactamasesÁcido Clavulânico, Tazobactam, Sulbactam1, Avibactam1, Vaborbactam1
Associações com Inibidores das b-lactamasesAmoxicilina + Ácido Clavulânico, Piperacilina + Tazobactam, Ceftolozano + Tazobactam1
MacrólidosAzalídeosAzitromicina
CetólidosTelitromicina1
Claritromicina, Eritromicina, Espiramicina
AminoglicosídeosAmicacina, Gentamicina, Tobramicina, Neomicina4, Estreptomicina6, Netilmicina, Espectomicina, Canamicina1
QuinolonasCiprofloxacina, Levofloxacina, Moxifloxacina, Norfloxacina, Ofloxacina4, Prulifloxacina1, Gemifloxacina1, Gatifloxacina1
SulfonamidasSulfametoxazol + Trimetropim, Suldadiazina, Sulfadiazina de Prata4, Sulfadoxina + Pirimetamina1,5, Sulfasalazina, Sulfacetamida5, Mafenide1,4
GlicopeptídeosVancomicina, Teicoplanina
Cloranfenicol e TetraciclinasCloranfenicol, Doxiciclina, Minociclina
LincosamidasClindamicina, Lincomicina
PéptidosBacitracina4, Polimixinas, Tirotricina
RifamicinasRifamicina6, Rifampicina6, Rifabutina6
OxazolidinonasLinezolide
GlicilciclinasTigeciclina
NitroimidazólicosMetronidazol
OutrosÁcido fusídico4, Mupirocina, Colistimetato de sódio, Daptomicina, Fidaxomicina2, Fosfomicina, Rifaximina, Tinidazol, Isoniazida6, Etambutol6, Pirazinamida6, Capreomicina6, Etionamida6, Ácido aminossalicílico6, Cicloserina6, Dapsona7, Etionamida6

Espectro, mecanismo de acção e efeito

Em Microbiologia considera-se espectro de acção a extensão ou número de microrganismos que um antibiótico inibe ou destrói. De realçar que este pode alterar-se de acordo com a aquisição de resistências, como será discutido adiante.

De acordo com o seu espectro, os antibióticos classificam-se em:

  • Espectro de acção largo: acção contra Gram-positivos e Gram-negativos. Exemplo: tetraciclinas, fluoroquinolonas, cefalosporinas 3ª, 4ª e 5ª gerações e cloranfenicol;
  • Espectro de acção estreito: acção limitada a determinadas espécies de microrganismos. Exemplo: aminoglicosídeos, sulfonamidas, glicopéptidos, bacitracina, polimixinas, nitroimidazóis.

Relativamente à acção biológica (ou efeito), os antibióticos antibacterianos classificam-se em:

  • Bactericidas: quando originam a destruição das bactérias. Exemplo: aminoglicosídeos, cefalosporinas, penicilinas e quinolonas;
  • Bacteriostáticos: quando inibem ou retardam o crescimento e a replicação bacterianas. Exemplo: tetraciclinas, sulfonamidas e macrólidos.

Alguns antibióticos podem apresentar ambas as acções, dependendo da dose, duração, exposição e o estado das bactérias invasoras. Assim, os antibióticos bactericidas em doses baixas podem funcionar como bacteriostáticos; e os antibióticos bacteriostáticos em concentrações elevadas podem ter acção bactericida. Por exemplo, a acção bactericida aumenta a par da concentração dos aminoglicosídeos, fluoroquinolonas e metronidazol.

O mecanismo de acção dos antibióticos varia em função da estrutura da célula bacteriana atingida, isto é, segundo os alvos morfológicos atingidos. Contudo, para o mesmo antibiótico, o alvo a atingir poderá variar em função de determinados factores, como a respectiva concentração. Sistematizando, são descritos 5 grupos:

  • Inibidores da síntese da parede celular: inibem a síntese de um dos constituintes da parede celular bacteriana – os peptidoglicanos. Os antibióticos que actuam neste alvo, podem ser bactericidas ou bacteriostáticos. Exemplo: beta-lactâmicos, glicopeptídeos e bacitracina;
  • Inibidores da síntese da membrana celular: a membrana celular é uma barreira importante na secreção e regulação do fluxo intra e extracelular de substâncias. Os antibióticos deste grupo são pouco selectivos e apresentam elevada toxicidade sistémica; por isso, a sua utilização é fundamentalmente tópica. Exemplo: polimixina B e colistina;
  • Inibidores da síntese proteica: actuam nas subunidades 30S e 50S dos ribossomas intracelulares, levando à disrupção do metabolismo celular da bactéria. Exemplo: aminoglicosídeos, tetraciclinas, cloranfenicol, macrólidos, clindamicina, linezolida;
  • Inibidores da síntese de ácidos nucleicos: bloqueiam componentes envolvidos na síntese de DNA ou RNA, o que impede a multiplicação e sobrevivência das bactérias. Exemplo: quinolonas, rifampicina e metronidazol;
  • Inibidores de processos metabólicos: actuam em determinados processos celulares essenciais para a sobrevivência da bactéria. Exemplo: interrupção da produção de ácido fólico no trimetropim, essencial para síntese de DNA, bloqueio de enzimas, etc..

Farmacocinética dos antibacterianos na idade pediátrica

  • O objectivo principal da administração de um antibacteriano é obter uma concentração óptima no local da infecção, parâmetro dependente da capacidade de difusão do fármaco.
  • O pico de concentração plasmática do antibacteriano correlaciona-se inversamente com o seu volume de distribuição (volume de líquido necessário para conter a quantidade total do fármaco no organismo na mesma concentração presente no plasma).
  • Na maioria dos antibacterianos, o compartimento extracelular (plasma, líquido intersticial e linfa) representa uma parte significativa no seu volume de distribuição, assistindo-se ao longo do crescimento, a uma diminuição do seu volume e da sua percentagem no peso corporal. Assim, por exemplo no RN, são necessárias doses mais elevadas por kg de peso corporal do que no adulto, para atingir concentrações plasmáticas e teciduais comparáveis. De uma forma geral, as doses por kg de peso corporal vão diminuindo à medida que a criança cresce.
  • O RN tem uma concentração total de proteínas plasmáticas de cerca de 86% da do adulto, o que leva à maior circulação de fracções livres, com maior probabilidade de penetração em compartimentos teciduais.
  • A Concentração Inibitória Mínima (CIM, ou sigla MIC em inglês) é a concentração mínima do antibacteriano requerida para inibir o crescimento do microrganismo. Idealmente, a dose de antibacteriano administrada deverá ser a suficiente para permitir que a concentração do antibacteriano no local de infecção seja superior à sua CIM.
  • A Concentração Bactericida Mínima (CBM ou sigla MBC em inglês) é a concentração mínima do antibacteriano capaz de destruir o microrganismo. Uma CBM quatro vezes superior à CIM é indicadora de tolerância bacteriana.
  • As concentrações de antibacterianos são mais elevadas em órgãos mais perfundidos (por ex. fígado e pulmões) do que nos menos perfundidos e menos acessíveis (ossos, olhos, meninges, cavidades de abcessos, etc.). Contudo, a existência de um processo inflamatório num local habitualmente menos perfundido, pode levar a um aumento da concentração local do fármaco.
  • A semivida de um antibacteriano – tempo necessário para que a sua quantidade total ou a sua concentração no plasma diminuam para metade – constitui um parâmetro útil para estabelecer o intervalo óptimo entre as administrações; no geral, este deverá ser igual ou inferior à semivida dos fármacos.

Actuação prática

Aspectos gerais

Apesar de os antibióticos utilizados em idade pediátrica serem similares aos dos adultos, a sua escolha, dosagem e modo de administração estão condicionados pelas particularidades desta faixa etária.

A selecção da antibioticoterapia deverá ser efectuada com base nos resultados culturais. Na maioria das situações, tal não é possível a priori, pelo que se deverá optar por uma terapêutica designada empírica, isto é, fundamentada no agente ou grupo de agentes etiológicos mais prováveis de acordo com as características do doente, e quadro clínico, laboratorial e imagiológico disponíveis.

Perante a possibilidade da existência de vários agentes responsáveis pela infecção, deve optar-se por uma antibioticoterapia empírica de espectro largo, garantindo a cobertura dos agentes bacterianos mais prováveis. Logo que possível, esta terapêutica deverá ser alterada para uma de espectro mais curto, dirigida aos agentes identificados nos exames culturais.

Para a selecção do antibacteriano mais adequado, é imperativo ter em conta as características do fármaco, do doente, da sua família e do panorama microbiológico, especialmente no que se refere às resistências ao fármaco. (ver adiante)

Só a prescrição racional dos antibacterianos permitirá minorar a probabilidade de resistências.

Os antibióticos mais prescritos em Pediatria são os beta-lactâmicos. Exceptuando algumas situações particulares, a prescrição da antibioticoterapia deverá seguir os seguintes princípios:

  • Optar pela monoterapia, de espectro o mais curto possível;
  • Dosagem de acordo com o peso corporal, tendo em conta a dose máxima;
  • A escolha da via de administração deverá ser realizada de acordo com as características do doente/família, quadro clínico, localização e gravidade da infecção;
  • A duração deverá ser a mais curta possível, de modo a proporcionar melhor adesão, menos efeitos colaterais, menos custos e maior satisfação do doente e prestadores de cuidados. Deverá, contudo, ser suficientemente prolongada para debelar a infecção.

Os antibacterianos podem também ser utilizados em profilaxia primária – evitar o aparecimento de uma infecção – ou secundária – prevenir a progressão de uma infecção já existente. Nas duas vertentes, são verificados melhores resultados quando o antibacteriano utilizado é dirigido a um microrganismo específico.

A falência terapêutica exige uma reavaliação da situação clínica, bem como a reformulação diagnóstica.

De realçar que a prescrição de um antibiótico não tem apenas impacte a nível individual; por isso, deverão sempre ser tidos em conta os aspectos de Saúde Pública inerentes.

Por fim, são referidas dez regras importantes a ter em conta na prática clínica na circunstância de ser realizada antibioticoterapia (o Decálogo da antibioticoterapia, da autoria de J Pascoal Duarte, 1996).

  1. “Não me uses em vão.”
  2. “Usa-me sozinho sempre que possível.”
  3. “Se não me podes usar, usa o meu parente mais próximo.”
  4. “Usa primeiro o meu irmão de espectro mais estreito e de primeira linha. Não tenhas vergonha de receitar muitas vezes o mesmo antibiótico.”
  5. “Usa-me de acordo com o local a que estou destinado e pela via em que sou mais eficaz.”
  6. “Usa-me apenas durante o tempo necessário e na dose mais adequada. Só me deves usar profilacticamente em situações bem definidas.”
  7. “Não me troques por outro, só por ser mais novo.”
  8. “Não uses o mais caro se podes usar o mais barato com a mesma eficácia.”
  9. “Não esqueças os meus efeitos colaterais e acessórios. Deves conhecer bem a minha vida.”
  10. “Escolhe-me sempre de acordo com o doente, a doença, e se possível com o antibiograma; mas, acima de tudo, usa o teu bom senso.”

Associação de antibióticos

Em determinadas situações clínicas está indicada a associação ou combinação de antibióticos com o objectivo fundamental de alargar o espectro de actividade face à gravidade de determinado quadro clínico. Contudo, importa relevar que tal associação ou combinação se reserva quase exclusivamente à prática hospitalar.

Ao associar antibióticos – facto que pode contribuir para diminuir o desenvolvimento de resistências – há que ter em conta determinadas noções básicas com implicações importantes na clínica:

  • dois antibióticos, administrados concomitantemente para actuarem sobre uma mesma bactéria (ou uma mesma estirpe bacteriana), tanto o podem fazer simultaneamente ou sequencialmente;
  • ocorre antagonismo quando a actividade da combinação é menor que a do componente mais activo (1+2 <2);
  • ocorre adição quando a actividade da associação é igual à soma da actividade de cada um dos componentes (1+1=2);
  • ocorre indiferença quando a actividade da associação é igual à do componente mais activo (1+2=2);
  • ocorre sinergismo (ou potenciação) quando a actividade da associação é superior à soma das actividades de cada um dos componentes (1+1=4); trata-se duma verdadeira “cooperação” que pode ser tipificada pela associação de beta-lactâmico (actuando ao nível da membrana da bactéria, como que a “fragilizando”), o que facilita a “entrada de outro antimicrobiano, por ex. aminoglicosídeo (cuja acção se verifica no citoplasma).

As principais indicações para a associação de antibióticos são as seguintes:

  • infecções graves com focos de localização múltipla (sépsis);
  • infecções mistas;
  • infecções em doentes com síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida;
  • infecções sitémicas no RN, leucemias, síndromas de má-nutrição e infecção, situações clínicas implicando terapêutica com imunossupressores, etc.;
  • endocardites;
  • infecções associadas a corpos estranhos;
  • tratamento inicial de base empírica em situações com risco vital.

Quimioprofilaxia antibacteriana

A quimioprofilaxia (antibacteriana) é a prevenção de doença infecciosa através da administração de fármaco (antibacteriano). A utilização de antibacteriano com este fim deverá ser criteriosa, tendo em conta a emergência de estirpes resistentes, a toxicidade e efeitos secundários dos fármacos, a diminuição inadvertida da vigilância e dos cuidados de que o doente necessita por falsa sensação de segurança e os custos associados.

Com a finalidade descrita têm sido utilizados antibióticos nas seguintes situações:

  • Protecção contra um único microrganismo por um curto período de tempo. Exemplo: eliminação do estado de portador nos contactos íntimos dos doentes com doença meningocócica invasiva;
  • Protecção contra um único microrganismo por períodos longos de tempo. Exemplo: prevenção de infecção estreptocócica nos doentes com febre reumática prévia;
  • Protecção contra vários microrganismos por um período curto. Exemplo: prevenção de endocardite em doentes susceptíveis em contexto de procedimentos invasivos;
  • Protecção contra vários microrganismos por longos períodos de tempo; esta prática é muito controversa, por ser em geral ineficaz e por envolver riscos para o doente e para a comunidade.

Em diversos capítulos do livro são descritos esquemas de quimioprofilaxia aplicáveis em situações clínicas específicas.

O protocolo da quimioprofilaxia em cirurgia deve ser elaborado em cada instituição hospitalar, de acordo com a experiência local e o conhecimento actualizado da prevalência dos patogénios em cada serviço.

Segundo o esquema descrito a seguir, são classificados os actos operatórios de acordo com o risco previsível de infecção:

  1. Cirurgia “limpa” – apenas quando as consequências de uma eventual infecção são muito graves, como é o caso de implantação de próteses, doentes imunocomprometidos ou cirurgia cardíaca. (risco < 2%);
  2. Cirurgia “limpa/contaminada” – somente quando há grande risco de contaminação e infecção, como na cirurgia do tracto digestivo alto, tracto biliar com icterícia obstrutiva e cirurgia, ou instrumentação do tracto urinário em presença de bacteriúria ou uropatia obstrutiva. (risco < 10%);
  3. Cirurgia “contaminada” – designadamente nas seguintes circunstâncias: extravasão ao nível do tracto gastrintestinal, entrada no lume biliar ou génito-urinário, lesão traumática com menos de 4 horas, etc.. (risco 20%);
  4. Cirurgia “suja” – perante presença de pus, perfuração dos tractos respiratório, gastrintestinal ou génito-urinário. (risco 40%)
    Idealmente um agente antibacteriano para profilaxia em cirurgia deve:
    • prevenir a infecção do local cirúrgico;
    • prevenir morbimortalidade relacionada com a infecção do local cirúrgico;
    • reduzir a duração e os custos dos cuidados de saúde;
    • apresentar escassos efeitos adversos;
    • não afectar o microbioma do doente nem o ecossistema do local/instituição.

Assim, o agente seleccionado deverá ser:

  • activo contra os agentes patogénicos com maior probabilidade de contaminar o local cirúrgico;
  • administrado na dose e momento correctos (cefazolina, 2 horas antes do procedimento), de forma a garantir concentrações séricas e teciduais adequadas durante o período de potencial contaminação;
  • seguro;
  • administrado no período de tempo mais curto possível, de modo a minorar os efeitos adversos, o desenvolvimento de resistências e os custos. Para a maioria dos procedimentos cirúrgicos admite-se que a duração deverá ser menor do que 24 h.

Para a maioria dos procedimentos, a cefazolina é o fármaco de eleição para a profilaxia cirúrgica, dado que apresenta uma duração de acção desejável, espectro de acção contra os microrganismos mais frequentemente envolvidos na cirurgia, seguro e de baixo custo.

Resistência bacteriana a antibióticos

Definições e importância do problema

A resistência das bactérias aos antimicrobianos, isto é, a capacidade de um microrganismo resistir ao efeito de um fármaco, é um problema crescente a nível mundial com elevado impacte ao nível da morbimortalidade, prolongamento dos internamentos e aumento dos custos associados aos cuidados de saúde.

A resistência bacteriana aos antibióticos pode ser natural ou adquirida.

A resistência natural (ou mais correctamente, insensibilidade), que corresponde a uma propriedade intrínseca da bactéria, observa-se em todos os membros de uma espécie ou género, independentemente do seu local de isolamento.

O consumo frequente de antibióticos constitui o factor mais importante no desenvolvimento de resistências. Assim, as bactérias resistentes são mais comuns nos locais ou em ambientes em que o uso dos referidos fármacos é frequente, como os hospitais. E, a propósito do uso frequente de antibióticos na idade pediátrica, importa citar publicações recentes (ver Bibliografia) alertando para o risco elevado de obesidade em tal circunstância.

De facto, desde a introdução dos antibióticos, tem-se assistido a uma evolução das bactérias para a resistência, sendo as bactérias sensíveis substituídas por bactérias multirresistentes; salienta-se que já têm sido isoladas estirpes bacterianas resistentes a todos os antibióticos disponíveis, e até, bactérias “toxicodependentes” que só crescem na presença de determinado antibiótico.

As bactérias resistentes podem circular entre humanos, animais, alimentos, água, ambiente, podendo a sua transmissão ser influenciada pelas deslocações, viagens e migrações. Desta forma, torna-se imperativo o estabelecimento de políticas de combate à emergência e crescimento de resistências aos antibióticos, contando com a colaboração de todos os sectores da sociedade, em particular dos relacionados com a medicina humana, a medicina veterinária e a agricultura.

Bases genéticas dos mecanismos de resistência

A resistência adquirida ocorre numa proporção variável de isolados de uma espécie ou género, sendo também variável ao longo do tempo, e resulta da aquisição de um ou mais mecanismos de resistência.

Mutações em genes:
  • específicos ou a aquisição horizontal de genes localizados em cromossomas, e
  • no ADN móvel em plasmídeos e transposões, constituem as bases genéticas dos mecanismos de resistência adquirida (respectivamente nas proporções de 20%/80%).

De salientar que:

  • os genes contidos nos plasmídeos e transposões (nestes últimos, chamados também “genes saltitantes”), mais móveis que os dos cromossomas, podem ser adquiridos doutras bactérias, ou das células bacterianas mães às células bacterianas filhas;
  • numa mesma bactéria podem coexistir vários plasmídeos e transposões, movendo-se no genoma dum local para outro;
  • vários transposões podem aglomerar-se no mesmo plasmídeo. Movendo-se do cromossoma para os plasmídeos, permitem uma rápida disseminação de genes cromossómicos;
  • os integrões são estruturas genéticas mais recentemente reconhecidas, adquiridas através do ADN móvel. Embora não possuam mobilidade própria, encontram-se habitualmente inseridas em transposões e plasmídeos, e conferindo resistência a determinados compostos antibacterianos (por ex. compostos de amónio quaternário e sulfonamidas). Para facilidade de compreensão, têm sido comparados a “cassetes” ou “blocos” albergando genes de resistência.

Em suma, esta forma peculiar de colocação e de mobilidade de genes na célula bacteriana (quer seja eucariótica, quer procariótica – ver Glossário geral) permite a disseminação e manutenção, em simultâneo, de resistência a antibióticos de famílias independentes e com mecanismos de resistência totalmente diferentes. Este facto permite, por outro lado, compreender que uma bactéria se comporte como resistente a um antibiótico que nunca foi usado pelo paciente.

O processo de transferência horizontal de genes pode fazer-se dos seguintes modos:

  • Conjugação: processo requerendo contacto directo entre células bacterianas, com transferência de genes por intermédio de plasmídeos;
  • Transformação: processo em que a célula bacteriana integra partes do ADN do meio envolvente, englobando-as no seu genoma;
  • Transdução: processo de transferência de genes de resistência, de bactéria para outra bactéria, por acção de bacteriófagos (vírus parasitando bactérias) (ver Glossário).

Mecanismos de resistência adquirida

Os mecanismos de resistência adquirida são esquematicamente descritos no Quadro 2.

No mesmo quadro consideram-se fundamentalmente o mecanismo básico (numerado de 1. a 6.) e o modo como o mesmo actua. Para cada alínea são dados exemplos práticos.

Importa relevar, de modo genérico, por ordem decrescente, os mecanismos mais frequentemente observados:

  • inactivação enzimática do antibiótico (3. e 4.);
  • redução na quantidade de antibiótico que atinge o alvo, por impermeabilidade ou efluxo (1. e 2.);
  • modificação da bactéria-alvo do antibiótico (6.).

Sobre os mecanismos de resistência (3. e 4.), para além dos exemplos citados no Quadro, acrescentam-se os seguintes:

  • as penicilinas e as cefalosporinas, possuindo na sua estrutura molecular um anel Beta-lactâmico, sobre o qual actuam as Beta-lactamases; o resultado é a formação dum derivado inactivo – o ácido peniciloico;
  • num microrganismo (Gram-positivo ou Gram-negativo) que produza três ou quatro Beta-lactamases em pequeníssimas quantidades, estas enzimas podem inactivar, por hidrólise, milhões de moléculas do antibiótico possuindo anel Beta-lactâmico;
  • importa referir também que poderá haver transferência de Beta-lactamases duma bactéria ou estirpe, para outra (por ex. Klebsiella pneumoniae e Enterobacteriaceae).

QUADRO 2 – Mecanismos de resistência adquirida a antibióticos

MECANISMO MODO EXEMPLO
1. Restrição da entrada do antibiótico Alteração da permeabilidade da parede celular (alteração nas porinas) As bactérias Gram-negativas possuem uma membrana externa protectora que pode ser utilizada para impedir a entrada do antibiótico
2. Eliminação do antibiótico Utilização de bombas de efluxo ao nível da parede celular para remover o antibiótico do interior da célula Algumas estirpes de Pseudomonas produzem bombas para eliminar diferentes antibióticos como as fluoroquinolonas, Beta-lactâmicos, cloranfenicol e trimetroprim
3. Destruição do antibiótico Produção de enzimas que hidrolisam o antibiótico Klebsiella pneumoniae produzindo carbapenemases tornam a bactéria resistente aos carbapenemes e muitos outros Beta-lactâmicos
4. Alteração do antibiótico Utilização de enzimas que diminuem a eficácia do antibiótico Estirpes de Staphylococcus aureus adicionando determinados componentes aos aminogicosídeos, alteram a função destes
5. Contorno dos efeitos do antibiótico Desenvolvimento de vias metabólicas acessórias que substituem as afectadas pelo antibiótico Algumas estirpes de Staphylococcus aureus podem compensar os efeitos do trimetropim
6. Modificação do alvo do antibiótico Alteração da estrutura do alvo específico, o que diminui ou inibe a afinidade do antibiótico com o alvo Mutações nos genes que codificam a girase podem condicionar a actividade das fluoroquinolonas

Notas finais

Tratando este capítulo da abordagem de um tema complexo, importa chamar a atenção do clínico prático para as seguintes notas:

  1. Os antibióticos podem matar bactérias, mas não tratam doenças.
  2. Os antibióticos não substituem a necessidade de correcção de anomalias na respiração, oxigenação, volémia, equilíbrio hidoelectrolítico, de drenagem cirúrgica, etc..
  3. Os microrganismos são seres vivos que evoluem a um ritmo muito rápido e, havendo vias possíveis para rodear as defesas naturais, descobrem-nas e tiram vantagens delas.
  4. Todo o ser vivo pode adquirir resistência a agentes agressores, mas nada na natureza iguala a resistência que as bactérias podem desenvolver em relação aos antibióticos.
  5. A ineficácia da antibioticoterapia poderá ser explicada não somente pela resistência bacteriana; outros factores poderão estar em causa, como o estado metabólico do organismo ou a capacidade de as bactérias produzirem um biofilme permitindo a sobrevivência frente a antimicrobianos activos e escapando à acção dos neutrófilos. (Pita Groz Dias & Paula Valente, 2000)

GLOSSÁRIO  

 Bacteriófago ou Fago > Qualquer vírus que infecta as bactérias e as pode destruir (bacteriólise). Os bacteriófagos apresentam uma grande especificidade não só para determinado grupo de bactérias, mas também para uma espécie ou mesmo uma estirpe de bactérias.

Farmacocinética > Parte da Farmacologia relacionada com a “mobilidade e o trajecto” do fármaco no organismo (absorção, distribuição, metabolismo associado ao papel de enzimas, e excreção); trata-se de processo dependente de genes. 

Farmacodinâmica > Parte da Farmacologia que tem por objecto o estudo da acção exercida pelos agentes medicinais sobre o organismo são. 

Farmacogenética > Estudo das variações interindividuais na sequência do ADN com as quais se relacionam diversas respostas a determinados fármacos.

Farmacogenómica > Termo mais lato que Farmacogenética designando o modo como as determinantes genéticas afectam a resposta individual à medicação.

Microbiologia > No sentido lato, Ciência que estuda os seres vivos de dimensões microscópicas. Compreende diversas áreas como a Taxonomia (ou Sistemática) que aborda aspectos da classificação, nomenclatura e identificação dos microrganismos. (ver Glossário Geral)

Plasmido ou plasmídeo > Molécula circular de ADN que se replica independentemente do cromossoma e cujos genes codificam várias funções, inclusivamente a resistência aos antibióticos. Os genes dos plasmídeos são mais móveis que os genes dos cromossomas e mais facilmente transferidos entre bactérias da mesma espécie e de espécies diferentes.

Prevenção > Conjunto de meios médicos, médico-sociais e ambientais para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos, evitando doença (prevenção primária), impedindo um agravamento (prevenção secundária), ou evitando sequelas tardias (prevenção terciária) de modo a propiciar, tanto quanto possível, vida próxima do normal. Trata-se de um conceito mais lato que o de profilaxia.

Profilaxia > Método de prevenção ou protecção dirigido contra uma doença através do emprego de substância (por ex. fármacos, vacinas, imunoglobulinas, etc.). Trata-se dum conceito mais restrito que o de prevenção.

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PROGRAMAS DE VACINAÇÃO – IMPACTE E PERSPECTIVAS

Generalidades sobre Programas de Vacinação

Em Portugal, na primeira metade do século XX, apesar de algum êxito no controlo da varíola, as estatísticas de morbilidade e mortalidade, nomeadamente respeitantes ao tétano e à difteria mostravam o insucesso de algumas campanhas de vacinação, afastando os indicadores nacionais dos da maioria dos países europeus.

Impondo-se, pois, um programa de vacinação com características adaptadas à realidade nacional, foi criado o chamado Programa Nacional de Vacinação (PNV), o qual foi possível concretizar a partir de Outubro de 1965. De salientar que ao longo do tempo têm surgido diversas versões quanto a Programas. (ver adiante)

Características

Descrevem-se as seguintes:

  1. Universal – até 2017 aplicava-se às pessoas presentes em Portugal, de idade entre os 0 e os <18 anos e durante toda a vida para a vacina Td (ver adiante), se bem que esquemas iniciados antes dos 18 anos pudessem ser completados depois desta idade, excepto quando são estabelecidos limites etários máximos. O PNV 2017 começa in utero; com efeito, é recomendada a vacinação da grávida contra a tosse convulsa com o objectivo de garantir a protecção do bebé nos primeiros 2 meses de vida;
  2. Gratuito para o utilizador, pois é financiado pelo orçamento do Estado;
  3. Descentralizado a nível nacional, permitindo a administração das mesmas vacinas em todo o país;
  4. Aplicado sobretudo pela rede pública de serviços (Centros de Saúde e Hospitais) e administrado por enfermeiros;
  5. As vacinas que integram o PNV são eficazes e seguras, e da sua aplicação obtêm-se os maiores ganhos em saúde. Os ganhos em saúde são o critério principal de inclusão no PNV, e a demonstração deste facto explica o lapso de tempo que se verifica entre a entrada de determinadas vacinas no circuito comercial e a sua inclusão no PNV;
  6. As vacinas aplicam-se segundo um esquema/calendário vacinal recomendado que constitui uma receita universal, não necessitando de prescrição médica (havendo algumas excepções em relação a alguns grupos de risco). Um dos objectivos do PNV é obter a melhor protecção, na idade mais adequada e o mais precocemente possível, contra o maior número possível de doenças, com um esquema de primovacinação que permite, no primeiro ano de vida, a protecção contra a maioria das doenças-alvo do programa;
  7. Os esquemas cronológicos de recurso destinam-se a crianças e jovens sem qualquer dose de uma ou mais vacinas ou com doses em falta em relação ao esquema recomendado e incluem:
    • o esquema em atraso para crianças de idade < 7 anos; e
    • o esquema tardio para crianças e jovens dos 7 aos 18 anos de idade, exclusive.

Em suma, o PNV é um programa dinâmico, transparente e efectivo (aspectos que se desenvolvem de seguida).

Evolução

O chamado PNV é um programa dinâmico.

Com efeito, desde 1965 foi progressivamente actualizado com a introdução progressiva de vacinas, determinada por factores epidemiológicos, pela evidência científica e pela evolução tecnológica com disponibilidade de novas e melhores vacinas. Durante os 51 anos da sua existência foi apenas retirada a vacina contra a varíola, após a erradicação da doença (OMS, 1980) e a BCG passou, em 2016, a ser recomendada apenas a grupos de risco.

A introdução de algumas vacinas no PNV fez-se simultaneamente com a concretização de campanhas. O PNV iniciou-se com uma campanha contra a poliomielite (1965-1966). Posteriormente houve campanhas com a introdução da vacina contra o sarampo (1973-1977 e nova campanha em 1998-2000), da vacina contra doença invasiva por N. meningitidis C (2006-2007), e da vacina contra HPV (2009-2011).

Avaliação

O PNV é um programa transparente submetido a avaliação interna regional e nacional anual, e a avaliação externa internacional anual (ECDC e OMS). Esta avaliação é feita pela análise das coberturas vacinais, dos dados serológicos e do impacte nas doenças-alvo.

Cobertura vacinal

As coberturas vacinais determinam-se em coortes de nascimento (relativas a idades-chave) para cada uma das vacinas que integram o PNV. Ao longo dos seus 51 anos, o desempenho do Pro­grama Nacional de Vacinação (PNV) tem sido notável, atingindo-se, anualmente elevadas coberturas vacinais (≥ 95% para as vacinas em geral e ≥ 85% para a vacina HPV) tanto na vacinação de rotina como vacinação integrada nas campanhas de vacinação.

A avaliação realizada em Dezembro de 2015 revelou:

  • Cerca de 95% das crianças com 1, 2, 7 e 14 anos de idade em 2015 tinham o PNV cumprido para cada vacina avaliada;
  • Na vacinação de adultos, em 76% dos que completaram 65 anos em 2015 (coorte de 1950) a vacinação com Td estava actualizada;
  • Das crianças com 8 a 18 anos de idade em 2015, 95% a 98% estavam vacinadas com 2 doses da vacina VASPR, cumprindo-se um dos objectivos do Programa Na­cional de Eliminação do Sarampo e os requisitos da OMS relativos à eliminação do sarampo e da rubéola;
  • 84% a 92% das ra­parigas com idades entre os 15 e os 23 anos, esta­vam vacinadas com o esquema de 3 doses da vacina HPV4, valores exemplares a nível mundial.

Dados serológicos

O 3º Inquérito Serológico Nacional 2016 revelou que a maioria da população está imunizada contra as doenças-alvo do PNV.

Impacte nas doenças-alvo

No que se refere ao impacte global do PNV, entre a década anterior ao PNV (1956-1965) e a década de 2006-2015 houve menos cerca de 40.000 casos de doença e 5.200 óbitos por tétano, difteria, tosse convulsa e poliomielite. O PNV foi determinante na diminuição da taxa de mortalidade infantil.

  • A redução da incidência das doenças evitáveis pela vacinação verificou-se rapidamente, como aconte­ceu com a poliomielite. O último caso de poliomielite aguda por vírus selvagem em Portugal ocorreu em 1986;
  • O paradigma do sucesso do PNV é o caso do tétano, doença que não se transmite de pessoa a pessoa e que não confere imunidade. O controlo da doença depende única e exclusivamente da vacinação de cada um. Houve uma descida progressiva do número de casos a partir dos anos 70. Os 2 últimos casos de tétano neonatal foram notificados em 1996; e nos últimos anos ocorreram apenas casos esporádicos (0 a 3 casos por ano, desde 2010) em adultos não vacinados;
  • A vacinação organizada contra o sarampo iniciou-se em 1973, com uma campanha de vacinação até 1977. Em 1990 foi introduzida a segunda dose. A estratégia de vacinação foi sendo actualizada, resultando no controlo/eliminação do sarampo. Em 2015, a OMS-Europa emitiu para Portugal os certificados da eliminação do sarampo e da rubéola.

Os PNV têm características de efectividade pois permitiram: erradicar a varíola; eliminar a poliomielite, difteria, sarampo, rubéola e tétano neonatal; controlar o tétano, a doença invasiva por N. meningitidis C e H. influenzae b, hepatite B, parotidite epidémica, tosse convulsa, e formas graves de tuberculose. No futuro é expectável o controlo do cancro do colo do útero (relacionado com infecção por HPV) e da doença por S. pneumoniae.

Programa Nacional de Vacinação de 2017 (alargado em 2018-2019)

I. Siglas das vacinas e procedimentos

As siglas referentes às vacinas incluídas nos referidos PNV são descritas no Quadro 1.

Com base no esquema de vacinação aconselhado e antes de se proceder à vacinação, importa identificar eventuais contraindicações das vacinas e seguir eventuais procedimentos. (ver adiante)

Para evitar eventuais traumatismos por queda, a vacinação deve ser efectuada com as pessoas em posição sentada ou deitada. Após a injecção deve ser respeitado um tempo de vigilância de cerca de 30 minutos.

Qualquer alteração individual aos esquemas cronológicos aconselhados no PNV deve ser devidamente fundamentada pelo médico assistente através de prescrição que deve ficar arquivada no local de vacinação.

Em circunstâncias excepcionais a DGS e a Autoridade de Saúde podem também decidir alteração dos esquemas aconselhados.

QUADRO 1 – PNV 2017-2019: vacinas e respectivas siglas

Adaptado de DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017

Notas:
Tdpa – vacina contra tétano, difteria e pertussis. A maiúscula significa vacina em dose não reduzida. As minúsculas significam doses reduzidas (difteria e pertussis). A letra “a” significa acelular. As doses reduzidas utilizam-se a partir dos 7 anos, período a partir do qual se verifica maior imunogenicidade. Até à referida idade, doses não reduzidas.
→  GR- Para grupos de risco.
→  Contenção Laboratorial – Noção relacionada com a segurança laboratorial, restrição de manuseamento e retransporte/transferência do agente microbiano, tratando-se de uma doença em processo de erradicação.

SiglaVacina
BCGVacina contra a tuberculose (Bacilo de Calmette e Guérin)* GR
DTPaVacina contra difteria, tétano e tosse convulsa acelular, doses pediátricas
DTPa HibVacina tetravalente contra difteria, tétano, tosse convulsa e doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b
DTPa Hib VIPVacina pentavalente contra difteria, tétano, tosse convulsa, doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b e poliomielite
DTPa Hib VIP VHBVacina hexavalente contra difteria, o tétano e a tosse convulsa, doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b, poliomielite e hepatite B
HibVacina contra doença invasiva por Haemophilus influenzae do serótipo b
HPV4Vacina contra infecções por vírus do Papiloma Humano de 4 genótipos
HPV9Vacina contra infecções por vírus do Papiloma Humano de 9 genótipos
MenC e Men BVacinas contra doença invasiva por Neisseria meningitidis serogrupos C e B
Pn13 e Pn23Vacinas polissacarídicas → Pn13 (conjugada) contra 13 serótipos de Streptococcus pneumoniae (qualquer idade)
→ Pn23 (combinada) contra 23 serótipos (a partir dos 2 anos)
TdVacina contra tétano, (e difteria em doses reduzidas)
TdpaVacina contra tétano, (e difteria e tosse convulsa em doses reduzidas); “a” significa “acelular”
VASPRVacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola
VHBVacina contra hepatite B
VIPVacina inactivada contra a poliomielite
VRVVacina contra RotaVírus * GR

II. PNV 2017 → Esquema vacinal

O esquema geral de vacinação recomendado, conjugando as designações das vacinas com as idades cronológicas (Quadro 2), tem como objectivo obter a melhor protecção, na idade mais adequada e o mais precocemente possível.

QUADRO 2 – PNV 2017: ESQUEMA VACINAL

    1. Aplicável apenas a raparigas, com esquema: duas doses, separadas 6 meses.
    2. Aplicável apenas a mulheres grávidas. Uma dose em cada gravidez.
    3. As idades referidas são indicativas. De acordo com a idade da pessoa, devem ser aplicados os intervalos recomendados entre doses, tendo como referência a data de administração da dose anterior. A partir dos 65 anos, recomenda-se a vacinação de todas as pessoas que tenham feito a última dose de Td há ≥10 anos; as doses seguintes são administradas de 10 em 10 anos.
    4. Salienta-se que as vacinas são imunogénicas no recém-nascido (RN) (incluindo nos pré-termo, nas idades cronológicas (pós-natais) consideradas para os RN de termo).
      Fonte: DGS- Norma 016/2016. Programa Nacional de Vacinação 2017.
    5. A numeração em dígitos associados às siglas diz respeito à numeração das doses (1= 1ª dose; 2= 2ª dose, etc.).
Idade
Vacina|Doença 0
meses
2
meses
4
meses
6
meses
12
meses
18
meses
5
anos
10
anos
25
anos
45
anos
65
anos
10/10
anos
Hepatite B VHB 1 VHB 2   VHB 3                
Haemophilus influenzae b   Hib 1 Hib 2 Hib 3   Hib 4            
Difteria, tétano, tosse convulsa   DTPa 1 DTPa 2 DTPa 3   DTPa 4 DTPa 5          
Poliomielite   VIP 1 VIP 2 VIP 3   VIP 4 VIP 5          
Streptococcus pneumoniae   Pn13 1 Pn13 2   Pn13 3              
Neisseria meningitidis C         MenC 1              
Sarampo, parotidite epidémica, rubéola         VASPR 1   VASPR 2          
Vírus Papiloma humano1               HPV 1,2        
Tétano, difteria e tosse convulsa2                 Tdpa – grávidas    
Tétano e difteria3               Td Td Td Td Td
  • Aos 2 meses de idade, recomenda-se:
    • A 1ª dose das vacinas contra a difteria, tétano e tosse convulsa (DTPa), doença invasiva por Haemophilus influenzae b (Hib), poliomielite (VIP) e a 2ª dose de VHB – vacina hexavalente DTPaHibVIPVHB;
    • A 1ª dose da vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae de 13 serótipos (Pn13).
  • Aos 4 meses de idade, recomenda-se:
    • A 2ª dose de DTPa, Hib e VIP – vacina pentavalente DTPaHibVIP;
    • A 2ª dose de Pn13.
  • Aos 6 meses de idade, recomenda-se:
    • A 3ª dose de DTPa, Hib, VIP e VHB – vacina hexavalente DTPaHibVIPVHB.
  • Aos 12 meses de idade, recomenda-se:
    • A 3ª dose da Pn13;
    • A vacina contra a doença invasiva por Neisseria meningitidis C – MenC (dose única);
    • A 1ª dose da vacina contra o sarampo, parotidite epidémica e rubéola – VASPR.
  • Aos 18 meses de idade, recomenda-se:
    • O 1º reforço de DTPa (4ª dose) e de VIP (4ª dose) e o único reforço de Hib (4ª dose) – vacina pentavalente DTPaHibVIP.
  • Aos 5 anos de idade, recomenda-se:
    • O 2º reforço (5ª dose) de DTPa e de VIP – vacina tetravalente DTPaVIP
    • A 2ª dose de VASPR
  • Aos 10 anos de idade, recomenda-se:
    • O reforço da vacina contra o tétano e difteria – Td;
    • 2 doses da vacina contra infecções por vírus do Papiloma humano de 9 genótipos – HPV9 (esquema 0, 6 meses), administradas apenas a raparigas.
  • Durante toda a vida, recomenda-se:
    Reforços das vacinas contra o tétano e difteria – Td, aos 10, 25, 45, 65 anos de idade e, posteriormente, de 10 em 10 anos.
    De acordo com a idade, devem ser aplicados os intervalos recomendados entre doses, tendo como referência a data de administração da dose anterior. Aos 65 anos, recomenda-se a vacinação de todas as pessoas em que tenha sido aplicada a última dose há ≥10 anos; as doses seguintes devem ser administradas de 10 em 10 anos.

Nota: às mulheres grávidas recomenda-se: vacina contra o tétano, difteria e tosse convulsa – Tdpa (dose única em cada gravidez).
De acordo com o Quadro 2-A são especificadas particularidades respeitantes ao grupo etário neonatal:

  • No recém-nascido recomenda-se a primeira dose da vacina contra a hepatite B (VHB). A vacina é administrada na maternidade. Quando tal não ocorrer, deve ser administrada o mais brevemente possível no período neonatal/primeiras 4 semanas de vida.

QUADRO 2-A – PNV 2017: Vacinação VHB do recém-nascido e lactente em função do peso ao nascer, da idade cronológica e da serologia materna

a) 1ª dose do esquema recomendado em 2; b) Imunoglobulina humana específica anti-VHB
Peso ao nascer < 2.000 g Peso ao nascer ≥ 2.000 g

A – Mãe Ag HBs negativo

    1. Aguardar até 1 mês de idade ou até atingir 2.000 g (o que se verificar primeiro)
    2. Vacinação – Esquema de 3 doses:
      • 1ª dose – quando se verificarem condições de 
      • 2ª dose – aos 2 meses de idade, respeitando o intervalo mínimo de 4 semanas entre 1ª e 2ª dose
      • 3ª dose – aos 6 meses de idade
D – Mãe Ag HBs negativo

Vacinação – Esquema PNV aos 0, 2, 6 meses de idade

B – Mãe Ag HBs positivo

    1. Primeiras 12 h de vida – Vacinaa) e IgG anti-VHBb)
    2. Vacinação – Esquema de 4 doses:
      • Aos 0, 1, 2 e 6 meses de idade

E – Mãe Ag HBs positivo

    1. Primeiras 12 h de vida – Vacinaa) e IgG anti-VHB
    2. Vacinação – Esquema de 3 doses:
      • Aos 0, 1 e 6 meses de idade

C – Mãe Ag HBs desconhecido
Investigar imediatamente serologia materna:

    1. Mãe Ag HBs negativo – igual a A
    2. Mãe Ag HBs positivo – igual a B
    3. Se não for possível estudo serológico, ou se os resultados continuarem desconhecidos até às 12 horas de vida, proceder como no caso de mãe Ag HBs positivo – igual a B

F – Mãe Ag HBs desconhecido
Estudo serológico materno imediato:

    1. Mãe Ag HBs negativo – igual a D
    2. Mãe Ag HBs positivo – igual a E
    3. Se não for possível estudo serológico ou se os resultados continuarem desconhecidos até às 12 horas de vida, proceder como no caso de mãe Ag HBs positivo – igual a E

No que se refere ao esquema recomendado (PNV 2017), as principais alterações relativamente ao PNV 2012 são as seguintes:

→ Aos 2 e 6 meses idade – Vacina combinada hexavalente DTPaHibVIPVHB, para reduzir o número de injecções e obter melhor aceitação do esquema recomendado;

→ Aos 18 meses – reforços com vacina combinada pentavalente DTPaHibVIP, em vez da vacina tetravalente DTPaHib;

→ Idades fixas para vacinação – nomeadamente aos 5 anos e aos 10 anos, em vez dos intervalos previstos no PNV 2012 (5-6 anos e 10-13 anos).

O PNV 2017 reflecte também a evolução que foi sendo feita entre 2012 e 2017. Neste período o PNV sofreu algumas atualizações, nomeadamente em relação às vacinas HPV4 (2014), Pn13 (2015), BCG (2016) e vacinação da grávida contra a tosse convulsa (2016).

III. PNV 2018-2019 <> Esquema vacinal do PNV 2017 alargado

No que se refere ao esquema recomendado (PNV 2018-2019 – Quadro 2-B), as principais alterações relativamente ao PNV 2017 dizem respeito aos seguintes aspectos:

Alargamento ao sexo masculino, aos 10 anos de idade, da vacinação contra infeçcões por Vírus do Papiloma Humano (vacina HPV), incluindo os genótipos causadores de condilomas anogenitais;

Introdução a todas as crianças, aos 2, 4 e 12 meses de idade, da vacinação contra doença invasiva por Neisseria meningitidis do grupo B (vacina MenB).

 Introdução da vacina contra Rotavírus (vacina Rota/VRV) para grupos de risco, a definir em Norma da Direcção-Geral da Saúde.

 Ênfase à vacinação de RN pré-termo a realizar em idades cronológicas idênticas às do RN de termo.

O alargamento relativamente a HPV é aplicável aos nascidos a partir de 1 de Janeiro de 2009, podendo o esquema de vacinação ser iniciado ou completado, de acordo com a história vacinal individual.

O alargamento relativamente a MenB é aplicável aos nascidos a partir de 1 de Janeiro de 2019, podendo o esquema de vacinação ser iniciado ou completado, de acordo com a história vacinal individual. (Quadro 2-B)

Quanto à vacinação em RN pré-termo, importa anotar algumas particularidades:

Diversos estudos demonstram que as vacinas são imunogénicas nos RN pré-termo. A magnitude da resposta imunológica poderá ser menor para algumas vacinas, mas está provado que se atingem respostas protectoras e duradouras com a primovacinação.

No caso de, na idade cronológica/pós-natal indicada, tais pré-termo ainda estarem hospitalizados, e dada a probabilidade de ocorrência de eventos cardiorrespiratórios (apneia, bradicardia, diminuição da saturação em O2, hipotensão, etc.) poderá haver a necessidade de monitorização dos parâmetros vitais no acto da vacinação ou durante período variável em função de cada caso clínico.

Em suma, os lactentes pré-termo, clinicamente estáveis, devem ser vacinados de acordo com o esquema recomendado no PNV, com as mesmas doses e na mesma idade cronológica que as crianças de termo. Relativamente à vacina VHB, o Quadro 2-A é elucidativo.

Relembra-se que a administração do anticorpo monoclonal específico palivizumab não interfere com a resposta imunitária às vacinas.

QUADRO 2-B – PNV 2018-2019: esquema vacinal

(a) Men B: aplicável aos nascidos ≥ 2019
(b) HPV: aplicável também ao sexo masculino, aos nascidos ≥ 2019. Esquema 0, 6 meses
(c) Tdpa: aplicável apenas a mulheres grávidas. Uma dose em cada gravidez
(d) Td: de acordo com a idade, devem ser aplicados os intervalos recomendados entre doses, tendo como referência a data de administração da dose anterior. A partir dos 65 anos de idade, recomenda-se a vacinação se a última dose de Td tiver ocorrido há ≥ 10 anos; as doses seguintes são administradas de 10 em 10 anos
(e) A numeração em dígitos associados às siglas diz respeito à numeração das doses (1= 1ª dose; 2= 2ª dose, etc..)

Nota: De acordo com o despacho do DR, pressupõe-se que este esquema entra em vigor a partir de 1 de Outubro de 2020.
Idade
Vacinas|Doenças Nasci-mento 2
meses
4
meses
6
meses
12
meses
18
meses
5
anos
10
anos
25
anos
45
anos
65
anos
10/10
anos
Hepatite B VHB 1 VHB 2   VHB 3                
Haemophilus influenzae b   Hib 1 Hib 2 Hib 3   Hib 4            
Difteria, tétano, tosse convulsa   DTPa 1 DTPa 2 DTPa 3   DTPa 4 DTPa 5          
Poliomielite   VIP 1 VIP 2 VIP 3   VIP 4 VIP 5          
Streptococcus pneumoniae   Pn13 1 Pn13 2   Pn13 3              
Neisseria meningitidis B (a)   MenB MenB   MenB              
Neisseria meningitidis C         MenC 1              
Sarampo, parotidite epidémica, rubéola         VASPR 1   VASPR 2          
Vírus Papiloma humano (b)               HPV 1,2        
Tétano, difteria e tosse convulsa (c)                 Tdpa – grávidas    
Tétano e difteria (d)               Td 6 Td 7 Td 8 Td 9 Td 10…

Aspectos epidemiológicos e particularidades de algumas vacinas

1. BCG

A vacina BCG previne as formas graves de reactivação endógena: miliar, meníngea (eficácia até 80%), mas não tem qualquer acção no controlo e eliminação da tuberculose: não previne a infecção exógena nem a evolução para tuberculose activa resultante da transmissão exógena.

Desde Junho de 2016 (Despacho n.º 8264/2016 – Diário da República n.º 120/2016, Série II, 24/06/2016) a vacina BCG deixou de ser recomendada de forma universal, passando a incorporar uma estratégia de vacinação de grupos de risco (DGS, Norma nº 006/2016 de 29/06/2016). Esta alteração reflecte a evolução epidemiológica da tuberculose em Portugal:

  • Redução consistente da incidência de tuberculose (DGS): 2013-21,1/100.000; 2014-20,0/100.000; 2015-19,2/100.000;
  • Cumprimento dos critérios da OMS para passagem à vacinação dos grupos de risco apenas: vigilância eficaz e incidência anual de meningite tuberculosa em crianças de idade inferior 5 anos <1:10.000.000 nos últimos 5 anos;
  • Mais de 50% dos casos pertencem a grupos de risco bem identificados (população estrangeira, infecção por VIH, dependências de álcool e drogas, reclusos);
  • Número de casos de infecção disseminada por BCG equivalente ao causado por tuberculosis em crianças de idade inferior 5 anos nos últimos 5 anos (nomeadamente crianças com ulterior diagnóstico de Imunodeficiência primária);
  • Capacidade de assegurar a manutenção da vacinação das crianças de risco.
1.1 A vacinação com BCG dos grupos de risco permite
  • adequar a estratégia vacinal à epidemiologia da doença;
  • tornar a vacinação contra a tuberculose mais custo-efectiva;
  • reduzir o número de reacções adversas graves à BCG; e ainda
  • equiparar a estratégia nacional à da maioria dos outros países europeus com características epidemiológicas semelhantes.
1.2 Recomendação para vacinação com BCG em grupos de risco
  • crianças com idade < 6 anos (5 anos e 364 dias) pertencentes aos grupos de risco definidos no Quadro 3 e ainda não vacinadas com BCG (sem registo da vacina ou cicatriz vacinal) devem ser activamente identificadas e encaminhadas para vacinação.

QUADRO 3 – Crianças de idade inferior a 6 anos, elegíveis para vacinação com BCG – Grupos de risco(a)

(a) A partir dos 12 meses de idade há indicação para realização de prova tuberculínica ou de IGRA antes da vacinação com BCG. Se houver antecedentes de contacto com caso de tuberculose activa (possível ou confirmada), ou outras circunstâncias que levem a suspeitar que a criança teve ou tem uma probabilidade elevada de ter contraído infecção, deve ser submetida a rastreio em articulação com o PNT. Após teste tuberculínico/IGRA negativo, a vacina BCG pode ser administrada nos 3 meses seguintes.
(b) Dependendo de uma avaliação do risco, caso a caso.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017.
Crianças sem registo de BCG/ sem cicatriz vacinal e: Situações abrangidas
Provenientes de países com elevada incidência de tuberculose
Que terminaram o processo de rastreio de contactos e/ou esquema de profilaxia
    • A avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose (PNT) e Centros de Diagnóstico Pneumológico (CDP)
Cujos pais, outros coabitantes ou conviventes apresentem →
    • Infecção por VIH/SIDA, após exclusão de infecção VIH na criança, no caso de mãe VIH+
    • Dependência de álcool ou de drogas
    • Naturalidade de país com elevada incidência de tuberculose (TB) (ver anexo II) (b)
    • Antecedentes de tuberculose
Pertencentes a comunidades com risco elevado de tuberculose
    • A avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose e CDP
Viajantes para países com elevada incidência de tuberculose(b)
1.3 Esquema vacinal
  • dose única, o mais cedo possível após o nascimento (vacina BCG do Japan BCG Laboratory).

A BCG pode ser administrada em simultâneo, antes, ou depois da administração de produtos contendo imunoglobulinas.

1.4 Prova tuberculínica (prova de Mantoux)/prova de libertação do interferão gama (IGRA)
  • as crianças com idade inferior a 12 meses não necessitam de prova tuberculínica/IGRA anteriormente à vacinação (excepto se se comprovar história de contacto directo com casos de tuberculose activa, situação estabelece a indicação de rastreio). A BCG pode ser administrada até 3 meses após prova tuberculínica/IGRA negativo.

A VASPR pode interferir com a resposta à prova de Mantoux ou a IGRA, podendo causar um resultado falso negativo. A prova tuberculínica/IGRA deve ser efetuada antes da VASPR, administrando-se a VASPR após a leitura. A administração de BCG, se aplicável, pode ser feita no mesmo dia.

1.5 Contraindicações da vacina BCG em grupos de risco
  • recém-nascidos com peso de nascimento < 2.000 g independentemente da idade gestacional, adiando-se tal vacinação até ser atingido o peso recomendado;
  • lactentes de mães VIH+ (até à exclusão da infecção na criança);
  • recém-nascidos familiares directos de doente com suspeita ou confirmação de imunodeficiência primária (até exclusão de imunodeficiência na criança);
  • imunodeficiência celular, congénita ou adquirida;
  • tratamentos imunossupressores;
  • infecção por VIH;
  • pré e pós-transplante de órgãos ou de medula;
  • doença sistémica grave;
  • doença aguda grave, com ou sem febre;
  • doença cutânea generalizada;
  • antibioticoterapia com tuberculostáticos;
  • tuberculose activa/prova tuberculínica positiva;
  • subnutrição grave.

2. Vacina Pn13

Tendo em conta que:

  • a doença invasiva pneumocócica (DIP) não era uma doença de Declaração Obrigatória (DDO); os serótipos de pneumococos na DIP não eram determinados por rotina; não havia registo das sequelas a nível nacional, não havia vigilância integrada clínica/laboratorial e não existiam dados de custo-benefício, a demonstração dos ganhos em saúde para inclusão da vacina pneumocócica conjugada no PNV não foi possível logo após a comercialização da vacina de 7 valências (2001).

Em 2008, a comparação entre o período pré e pós-vacinal (com Pn7) demonstrou:

  • diminuição da concordância dos serótipos causadores de doença invasiva pneumocócica (DIP) com os serótipos vacinais – de 67% para 20%;
  • não variação significativa nos internamentos por meningites pneumocócicas (GDH), nomeadamente no grupo abaixo de 1 ano de idade;
  • manutenção da percentagem de portadores de pneumococos em alguns infantários do distrito de Lisboa;
  • substituição de serótipos vacinais por serótipos não vacinais na população vacinada, não sendo possível prever as consequências, nomeadamente o aparecimento de doença de substituição.

Em 2010, a concordância entre os serótipos responsáveis por DIP e os serótipos vacinais era de 80,4% para as vacinas de 13 valências (Pn13) e 50,4% para as vacinas de 10 valências (Pn10), entretanto comercializadas. Numa perspetiva de protecção individual imediata foi elaborada uma circular normativa para vacinação gratuita de crianças e adolescentes pertencentes a grupos de risco.

Em 2014 foram estimados os potenciais ganhos em saúde com a introdução da vacina no PNV através do cálculo das mortes e internamentos evitáveis, dos efeitos indirectos da vacinação (protecção de grupos etários não abrangidos pela vacinação) e do impacte adicional na otite média aguda, causa mais frequente da prescrição de antibióticos em idade pediátrica.

Os benefícios da introdução da vacina no PNV foram calculados comparativamente à situação em 2012, quando a vacina já estava implementada fora do PNV, mas com cobertura não negligenciável. Nesta perspectiva, concluiu-se ser expectável um impacte positivo na Saúde Pública.

Em 2015, a vacina foi incluída no PNV (norma DGS 008/2015 de 01/06/2015) abrangendo todas as crianças nascidas a partir de 1 de Janeiro de 2015, num esquema de 3 doses, aos 2, 4 e 12 meses de idade.

Simultaneamente foram emitidas as orientações para a Vacinação contra infecções por Streptococcus pneumoniae de:

  • grupos com alto risco de doença invasiva pneumocócica (DIP) na idade pediátrica (Norma 012/2015) (Quadro 4); e de
  • grupos com alto risco de doença invasiva pneumocócica (DIP) na idade adulta (≥18 anos de idade).

As crianças e os jovens englobados na situação de alto risco DIP serão vacinados mediante apresentação de declaração médica, especificando a identificação do risco.

QUADRO 4 – Vacinação contra infecções por Streptococcus pneumoniae em grupos de alto risco de DIP na idade pediátrica (<18 anos de idade)

A – Imunocompetente
Condição: Situações abrangidas:
Doença cardíaca crónica
    • Cardiopatias congénitas com repercussão hemodinâmica ou cianóticas
    • Insuficiência cardíaca crónica
    • Hipertensão arterial com repercussão cardíaca
    • Hipertensão arterial pulmonar
Doença hepática crónica  
Insuficiência renal crónica  
Doença respiratória crónica
    • Bronquiectasias
    • Doença intersticial pulmonar – Asma brônquica (sob corticoterapia sistémica(a))
    • Fibrose quística – Doenças neuromusculares
    • Insuficiência respiratória crónica
Pré-transplantação de órgão  
Dador de medula óssea (antes da doação)  
Fístulas de LCR  
Implantes cocleares (candidatos e portadores)  
Diabetes mellitus  
B – Imunocomprometidos
Condição: Condições abrangidas:
Asplenia ou disfunção esplénica
    • Asplenia congénita ou adquirida
    • Doença de células falciformes
    • Outras hemoglobinopatias com disfunção esplénica
Imunodeficiência primária(b)  
Infecção por VIH  
Receptor de transplante
    • Células precursoras hematopoiéticas
    • Órgãos sólidos
Doença neoplásica ativa
    • Doenças linfoproliferativas
    • Outros tumores malignos
Imunossupressão iatrogénica(a)
    • Terapêutica com fármacos biológicos ou DMARDs (Disease Modifying AntiRheumatic Drugs)
    • Corticoterapia sistémica
    • Quimioterapia
    • Radioterapia
Síndroma de Down  
Síndroma nefrótica  
(a) Corticosteróides sistémicos:
    • Peso < 10 Kg: ≥ 2 mg/Kg de peso/dia de prednisona ou equivalente, diário, durante 14 ou mais dias
    • Peso ≥ 10 Kg: ≥ 20 mg/dia de prednisona ou equivalente, diário, durante 14 ou mais dias
    • Metotrexato em dose superior a 0,4 mg/Kg/semana;
    • Azatioprina em dose superior a 3 mg/Kg/dia;
    • Exemplos de outros fármacos imunossupressores: Leflunomida, Micofenolato de Mofetil, Ciclofosfamida, Ciclosporina e Tacrolimus, fármacos biológicos ou DMARDs (Disease-Modifying AntiRheumatic Drugs utilizados, nomeadamente, na Artrite Reumatóide, Lúpus Eritematoso Sistémico, Síndroma de Sjögren e Doenças Inflamatórias Intestinais), por exemplo Anti-TNF (Infliximab, Etanercept, Adalimumab, Golimumab, Certolizumab); Anti-CD20 (Rituximab); Anti-IL6 (Tocilizumab); CTLA-4-Ig (Abatacept); Anti-BLYS (Belimumab); Anti-IL12 e Anti-IL23 (Ustekinumab); Antagonista do Receptor da IL1 (Anakirna).
(b) Exclui défice isolado de IgA e doentes em terapêutica de substituição com imunoglobulinas sem função B residual.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017.

 

  1. Esquema vacinal dos grupos de risco, idade pediátrica, para nascidos depois de 1 de Janeiro de 2015
    • Pn13 aos 2, 4 e 12 meses de idade (PNV);
    • Pn23 aos 24 meses de idade.
  2. Esquema vacinal dos grupos de risco em idade pediátrica para nascidos antes de 1 de Janeiro de 2015 (<18 anos de idade)
    • Esquema vacinal de recurso para a vacina Pn131. (Quadro 5)
    • Todos os esquemas vacinais devem ser completados com 1 dose de Pn23, a partir dos 24 meses de idade.

QUADRO 5 – Vacina Pn13 – em grupos de risco em idade pediátrica e para nascidos antes de 1 de Janeiro de 2015

1 Intervalo de 8 semanas entre doses, podendo, se necessário, aplicar-se os intervalos mínimos.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017.
Idade de início Primovacinação Idade do reforço único
6 semanas – 9 meses 2 doses ≥12 meses
10-11 meses 1 dose ≥12 meses
12-23 meses 1 dose >12 meses
>23 meses e <5 anos 1 dose Não recomendado


Mesmo quando o indivíduo já está vacinado (criança ou jovem) com um esquema completo com Pn7 e/ou Pn10 e Pn23, recomenda-se 1 dose de Pn13 se ainda não tiver sido administrada.

Nas situações de asplenia ou disfunção esplénica, imunodeficiência primária, infecção por VIH, imunossupressão iatrogénica, insuficiência renal crónica, síndroma nefrótica, recomenda-se uma 2ª dose de Pn23, pelo menos 5 anos após a 1ª dose.

3. Vacina contra HPV

O Papilomavírus humano (HPV) tem vários tipos em função de proteínas estruturais que funcionam como antigénios imunodominantes que levam a respostas imunes; tal resposta imune traduz-se pela produção de anticorpos neutralizantes, os quais são determinantes para a eficácia na prevenção da infecção persistente.

Descrevem-se mais de 100 tipos que tipicamente podem causar doença (diferentes variedades de lesões cutaneomucosas em locais específicos (orofaríngeas, anais, genitais, em geral benignas nas crianças e adolescentes. Cerca de 30 tipos relacionam-se com lesões no tracto genital.qq

A prevalência da infecção por HPV é elevada e constante ao longo da vida. Nos EUA estima-se que cerca de setenta e quatro por cento de 6,2 milhões de novas infecções em cada ano ocorre em indivíduos entre idades de 15 e 24 anos. Embora na maioria dos casos se trate de infecções assintomáticas e autolimitadas, a infecção persistente pode originar, não só condilomas genitais, como cancro anogenital e colo do útero. De salientar que os tipos de HPV 16 e 18 explicam 70% dos casos de cancro do colo do útero.

Como regra geral, a vacina HPV é recomendada (em esquema de duas ou três doses) a todos os adolescentes, de ambos os sexos.

Existem 3 tipos de vacinas HPV:

  • Bivalente (2vHPV) contendo os tipos 16 e 18;
  • Tetravalente (4vHPV contendo os tipos 6, 11, 16 e 18 – sendo Gardasil 4® uma das marcas comercializadas), com bom perfil de segurança e demonstrada eficácia elevada na redução de verrugas genitais e de lesões precursoras de cancros genitais e anais em ambos os sexos. Contudo, esta vacina tem um potencial de prevenção mais significativo, das lesões que atingem o sexo masculino;
  • Vacina HPV 9-valente (9vHPV)-Gardasil 9® incluindo os tipos 6, 11, 16, 18, 31, 33, 45, 52 e 58 é recomendada em ambos os sexos dos 9 aos 26 anos para prevenção do cancro vulvar, vaginal, cervical e anal, assim como dos condilomas anogenitais (condyloma acuminata) e de lesões displásicas pré-cancerosas.

Os dados de imunogenicidade, demonstrando que o esquema de 3 doses não é mais eficaz que o de 2 doses em jovens até aos 14 anos, determinaram a adopção deste último em 2014 – duas doses com 6 meses de intervalo (esquema tipo 0,6).

Segundo o PNV 2017 foi adoptado o seguinte esquema:

  • Recomendadas 2 doses na vacinação iniciada entre os 10 e os 15 anos;
  • Recomendada de preferência a vacinação aos 10 anos (idade fixa) porque a imunogenicidade é tanto maior quanto mais cedo for iniciada a vacinação;
  • Na vacinação iniciada a partir dos 15 anos de idade recomenda-se um esquema de 3 doses, respectivamente intervalos mínimos de 2 e 6 meses (esquema tipo 0, 2, 6).

Provou-se que os homens beneficiam da imunidade de grupo se a taxa de cobertura vacinal nas raparigas for muito elevada, como é o caso de Portugal. No entanto, as viagens para zonas de baixa cobertura vacinal, ou onde a vacina não é utilizada, podem colocar em risco os não vacinados.

Uma vez que a vacina se encontra no circuito comercial poderão vacinar-se, a título individual, os adolescentes do sexo masculino.

4. Vacinação dos adultos com vacina Td

As alterações à vacina Td baseiam-se no facto de se ter demonstrado cientificamente que a vacina Td confere protecção duradoura de, pelo menos 20 anos, em pessoas que completaram a vacinação na infância.

4.1 Assim, os reforços de Td passam a ser recomendados aos 10, 25, 45 e 65 anos. Após os 65 anos de idade, em virtude da imuno-senescência, a vacina passa a ser administrada de 10 em 10 anos.
A vacina combinada bivalente contém: toxóide tetânico adsorvido (T); toxóide diftérico adsorvido, em dose reduzida (d). No âmbito do PNV utiliza-se em adolescentes e adultos para minorar o risco de reacções adversas ao componente diftérico.

4.2 Outras indicações, ainda no âmbito do PNV, incluem: grávidas não correctamente vacinadas contra o tétano, para prevenção do tétano neonatal e do puerpério; e profilaxia do tétano, na presença de ferimentos.

5. Vacinação da grávida com a vacina contra a tosse convulsa (Tdpa)

A vacinação na grávida, numa base de prescrição individual foi recomendada em Julho de 2016 e introduzida no PNV em Janeiro de 2017. Como foi referido antes, quanto a datas/idades de administração, o PNV 2017 “começa in utero”, uma vez que recomenda a vacinação da grávida contra a tosse convulsa com o objectivo de conferir a protecção do bebé nos primeiros 2 meses de vida.

Em Portugal, a tosse convulsa é alvo de vigilância universal, passiva e clínica, integrando a lista de Doenças de Declaração Obrigatória (DDO) desde 1950. A vacina contra a tosse convulsa de célula completa (Pw) foi incluída no primeiro Programa Nacional de Vacinação de 1965. Em 2006 a vacina Pw, mais reactogénica, foi substituída pela vacina acelular (Pa).

A cobertura vacinal pela vacinação contra a tosse convulsa (DTP) aos 12 meses e aos 7 anos de idade é da ordem dos 95%, há pelo menos duas décadas.

Após a inclusão da vacina no PNV assistiu-se a um progressivo controlo da doença, mas com um padrão de endemicidade residual, apesar da elevada cobertura vacinal, tal como se verificou noutros países. Entre 2000 e 2011 registaram-se 370 casos (uma média de 31 casos/ano) e 5 óbitos.

Em 2012, 2013, 2014 e 2015 foram declarados 677 casos (237, 106, 74 e 260 casos, respectivamente) e ocorreram 8 óbitos (4, 2 e 2 óbitos respectivamente em 2012, 2013 e 2015). A maior incidência da doença ocorreu em crianças com idade inferior a 2 meses (42% dos casos) – ou seja, em crianças que não tinham iniciado ainda a primovacinação, – seguida do grupo etário 2 a 5 meses (32%). Na grande maioria dos casos verificados com <1 ano de idade (95%) houve necessidade de hospitalização, nalgumas situações em cuidados intensivos. Os óbitos ocorreram apenas em lactentes de idade inferior a 2 meses, ainda sem idade para vacinação.

A situação epidemiológica portuguesa tem, em paralelo com a maioria dos outros países, a maior carga da doença no grupo etário dos <2 meses, incidindo a letalidade quase exclusivamente neste grupo.

Entre as causas prováveis mais importantes do aumento da incidência da tosse convulsa estão a diminuição rápida da imunidade conferida pela vacina acelular e o aparecimento crescente de mutantes de escape vacinal, ou seja, variantes da bactéria que, devido à pressão selectiva vacinal, apresentam antigénios divergindo dos incluídos na vacina.

Na ausência de novas vacinas mais eficazes concluiu-se que importava aplicar estratégias adicionais de controlo da tosse convulsa com o objectivo prioritário de reduzir a carga da doença em lactentes de idade inferior a 2 meses, o grupo etário com doença mais grave e maior letalidade. De entre estas, a que tem demonstrado maior efectividade é a vacinação da grávida, a qual se baseia na passagem transplacentária de anticorpos da mãe para o filho, conferindo, a este, protecção passiva até ao início da vacinação, aos 2 meses de vida.

O Reino Unido, em 2012, foi o primeiro país a utilizar esta estratégia. Neste País, os estudos caso-controlo mostraram que a efectividade da vacinação da grávida na prevenção da tosse convulsa no filho foi superior a 90%.

No âmbito do PNV foram estabelecidas as seguintes recomendações:

  • Vacinação na gravidez com uma dose de vacina combinada contra a tosse convulsa, o tétano, e a difteria, em doses reduzidas (Tdpa), entre as 20 e as 36 semanas de gestação, idealmente até às 32 semanas;
  • A vacinação deve ocorrer após a ecografia morfológica (recomendada entre as 20 e as 22 semanas + 6 dias), para evitar eventuais associações entre a detecção de eventual anomalia congénita e a vacina;
  • A vacinação deve ser repetida em cada gravidez;
  • Após as 36 semanas de gestação, a Tdpa confere apenas protecção indirecta do recém-nascido e lactente através da prevenção da doença na mãe. Nesta situação a vacina é administrada, gratuitamente, mediante prescrição médica.

A idade gestacional é comprovada através de apresentação do Boletim de Saúde da Grávida, de declaração médica ou por consulta da informação clínica. A vacina deve ser registada no Boletim de Saúde da Grávida, no Boletim Individual de Saúde (BIS).

Por se tratar de uma vacina inactivada, a Tdpa pode ser administrada em simultâneo, antes ou depois de produtos contendo imunoglobulinas, tal como a imunoglobulina anti-D, desde que em locais anatómicos diferentes.

Notas importantes:

  • Os estudos efectuados demonstram que a vacinação da grávida é segura, nomeadamente sem risco aumentado de morte fetal, aborto espontâneo, prematuridade, pré-eclampsia ou eclampsia.
  • Para além da vacinação da grávida, atrás referida, e desde que haja disponibilidade da vacina Tdpa, poderá ser considerada a vacinação de progenitores e conviventes que desejem reduzir o risco de infecção para si e para os recém-nascidos com quem residem (estratégia de cocooning). Com a vacinação de adolescentes e adultos não se evidenciou efectividade quanto à redução da incidência da doença no lactente até aos dois meses, aceitando-se apenas como medida de protecção individual.

6. Vacina contra Neisseria meningitidis serogrupo B

Após o controlo da doença invasiva meningocócica (DIM) C, fruto da vacinação universal, o grupo B é actualmente predominante (mais de 70% dos casos de DIM em Portugal).

Está disponível uma vacina de 4 componentes (antigénios) contra MenB (Bexsero®), segura e eficaz para cerca de 68% das estirpes circulantes em Portugal (dados do estudo MATS, efectuado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e pelo laboratório da GSK em Sienna.

Embora a DIM possa ocorrer em qualquer pessoa, existe um grupo de situações, relativamente restrito, com mais elevado risco de contrair a doença, de ter vários episódios, ou de ter uma forma de doença particularmente grave, motivo pelo qual se recomenda a vacinação:

  • Asplenia anatómica ou funcional e hipoesplenismo;
  • Défice congénito de complemento;
  • Terapêutica com inibidores do complemento (Eculizumab).

A vacina pode ser administrada no Serviço Nacional de Saúde, em cuidados de saúde primários e hospitais.

  • De forma a obter-se protecção o mais precocemente possível. O esquema recomendado para a vacina MenB é: 2, 4, 6 e 12-15 meses de idade; pode ser administrada em simultâneo com as vacinas do PNV. Para reduzir o número de inoculações e efeitos secundários numa mesma visita, poderá ser considerado o esquema 3, 5 e 7 meses para a imunização primária. (Quadro 2-B)

No entanto, o esquema de vacinação depende da idade de início da vacinação (Quadro 6). Até aos 24 meses de idade, recomenda-se a administração de paracetamol na dose recomendada para a idade, prévia à administração de MenB, com o objectivo de prevenir ou diminuir a febre possivelmente associada a esta vacina.

Notas importantes:

  • O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.
  • As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais 6 – A, B, C, W (anteriormente designada W135) X e Y– são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica. Surtos responsáveis pelo serogrupo X têm sido identificados em África.
  • De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~1-3/100.00 nas duas últimas décadas), e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento.
  • Reitera-se que em Portugal as vacinas meningocócicas C (Men C) e B (Men B) fazem parte do actual PNV – esta última, a partir de 2018-2019.
  • Existem também comercializadas vacinas polissacarídicas anti-N. meningitidis dos grupos A, C, W e Y (Men ACWY), designadamente para indivíduos que façam viagens para áreas endémicas.
  • A Comissão de Vacinas da Sociedade Portuguesa de Infecciologia Pediátrica, ramo da Sociedade Portuguesa de Pediatria (CV-SPP/SIP) recomenda igualmente a administração da referida vacina conjugada nas seguintes situações: a crianças e adolescentes com asplenia anatómica ou funcional, hiposplenismo, défice congénito do complemento e submetidas a tratamento com inibidores do complemento (Eculizamab).
  • Segundo a referida CV, a administração duma dose de Men ACWY aos 12 meses de idade dispensa a administração da Men C incluída no PNV. A mesma pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade.

QUADRO 6 Esquema de vacinação (MenB) contra doença invasiva meningocócica do grupo B, recomendado em situações de alto risco, em idades <18 anos

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Idade de início da vacinação Vacinação primária
(doses)
Intervalo entre doses
da vacinação primária (meses)
Reforço
2-5 meses 3 ≥2 Sim (aos 12-15 meses)
6-11 meses 2 ≥2 Sim (2º ano de vida; ≥2 meses após 2ª dose)
12-23 meses 2 ≥2 Sim (12 a 23 meses após 2ª dose)
2-10 anos 2 ≥2
>10 anos 2 ≥2

 

7. Vacina contra Rotavírus (RV)

O agente rotavírus (RV) é uma causa muito frequente de gastrenterite aguda (GEA) em todo o mundo. Nos países de clima temperado, a GEA devida a RV predomina no Inverno e na Primavera. Podendo atingir qualquer criança, a quase totalidade destas, aos cinco anos de idade, já terá tido pelo menos um episódio, ocorrendo mais frequentemente entre os seis e os 24 meses. Na história natural da diarreia por RV, as infecções subsequentes por diferentes tipos são frequentes, mas de menor gravidade. Globalmente os tipos G1-G4 e G9 estão associados à maioria das infecções.

Em Portugal, desde 2006, estão comercializadas duas vacinas, com estrutura e esquemas posológicos diferentes (Quadro 7)

De acordo com estudos recentes, uma nova vacina a administrar por via parentérica está em investigação avançada.

 

QUADRO 7 – Características das vacinas contra Rotavírus e esquema vacinal aprovado pela EMA para as vacinas RotaTeq® e Rotarix®

Fonte – Recomendações sobre vacinas extra-Programa Nacional de Vacinação, atualização 2015/2016. Sociedade Portuguesa de Pediatria/Sociedade de Infecciologia Pediátrica. Abreviatura: EMA – Agência Europeia do Medicamento
  RotaTeq®, SPMSD Rotarix®, GSK
Tipo Viva, oral Viva, oral
Composição Reagrupamento bovino-humano G1, G2, G3, G4; P[8] Humana atenuada G1; P[8]
Número de doses 3 2
Primeira dose A partir das 6S e nunca depois das 12S A partir das 6S
Dose(s) subsequente(s) O esquema de vacinação deve estar concluído preferencialmente às 20-22S. Se necessário, 3ª dose pode ser administrada até às 32S O esquema de vacinação deve preferencialmente ser administrado antes das 16S, mas deve estar completo pelas 24S
Intervalo entre doses Mínimo de 4 semanas Mínimo de 4 semanas
Administração simultânea com as outras vacinas do PNV Sim Sim
Administração ao pré-termo ≥25S idade gestacional >27S idade gestacional


Não há informação quanto à utilização de diferentes vacinas anti-RV na mesma criança, pelo que esta prática não é recomendada. A amamentação não altera a eficácia da vacina, não sendo necessária a sua interrupção.

A vacinação do prematuro deverá ser efectuada no mesmo esquema, de acordo com a idade cronológica, sempre que clinicamente estável.

Contraindicações e precauções
  • Porque os estudos da vacina foram efectuados em lactentes saudáveis, não há actualmente prova científica suficiente para que sejam feitas recomendações específicas para lactentes com patologia subjacente, tais como anomalias congénitas gastrintestinais, invaginação intestinal prévia ou status pós-cirurgia abdominal;
  • Pelo risco de efeitos secundários a vacina não deve ser administrada a lactentes imunocomprometidos ou potencialmente imunocomprometidos;
  • A administração da vacina deve ser adiada em crianças com diarreia aguda ou vómitos;
  • Porque há possibilidade de eliminação do vírus vacinal nas fezes, as vacinas devem ser administradas com precaução a crianças que se encontram em contacto próximo com pessoas que apresentam imunodeficiência.

Em ambas as vacinas existe risco pequeno, mas mensurável, de invaginação intestinal. Parece existir uma correlação entre invaginação intestinal e idade de administração da primeira dose, a qual deve ser administrada o mais precocemente possível.

Esquemas vacinais de recurso

Para além do esquema recomendado no âmbito do PNV, existem os chamados esquemas vacinais de recurso.

Este conceito engloba as seguintes situações:

  • ausência de registo de vacinação;
  • ausência de qualquer dose anterior de uma ou mais vacinas (atraso);
  • esquema vacinal tardio;
  • esquema vacinal incompleto;
  • esquema vacinal diferente do recomendado.

Em termos práticos, os esquemas de recurso incluem apenas o número de doses de cada vacina, necessário para os completar de acordo com a idade.

Nesta perspectiva, devem ser sempre respeitados os limites máximos para administração das vacinas no âmbito do PNV, as idades mínimas recomendadas para cada dose, os intervalos entre doses para cada vacina (Quadro 8) e os intervalos entre a administração de vacinas diferentes. (Quadro 9)

QUADRO 8 – PNV: Idade mínima para iniciar a vacinação e intervalos mínimos entre doses sequenciais da mesma vacina

1 VHB – Idade mínima para a VHB: 6 meses. A vacina hexavalente contendo VHB não deve ser administrada antes das 6 semanas de idade devido aos outros componentes (DTPa, Hib e VIP).
2 Hib – Recomendada <5 anos de idade (excepto em pessoas com alterações imunitárias. O número de doses em esquemas de recurso depende da idade de administração da 1ª dose. A última dose é administrada ≥12 meses de idade, pelo menos 8 semanas após a anterior.
3 DTPa – Recomendada <7 anos de idade. Após essa idade deve ser utilizada Tdpa (<10 anos de idade) ou Td (≥10 anos de idade). A idade mínima para DTPa 4 é de 12 meses. Se DTPa 4 for administrada ≥4 anos de idade não se recomenda a administração de DTPa 5. Excepcionalmente, pode ser aceite um intervalo de 4 meses entre DTPa 3 e DTPa 4. Em situação de surto, a idade mínima para DTPa 1 pode ser de 4 semanas, com prescrição médica, caso exista vacina trivalente. Em crianças com contra-indicação absoluta de Pa, a Td pode ser administrada em idade <7 anos de idade, com prescrição médica.
4 VIP – Se <7 anos de idade e a 4ª dose de VIP for administrada ≥4 anos de idade, considera-se o esquema completo, desde que o intervalo entre a penúltima e a última dose da VIP seja de, pelo menos, 6 meses. Se ≥7 anos de idade e a 3ª ou 4ª dose de VIP forem administradas ≥4 anos de idade, considera-se o esquema completo, desde que o intervalo entre a penúltima e a última dose da VIP seja de, pelo menos, 6 meses. Pessoas com esquema misto VAP e VIP devem receber 4 doses, mesmo que a 3ª tenha sido administrada ≥4 anos de idade.
5 Pn13 – Recomendada <5 anos de idade (excepto em grupos de risco). O número de doses a administrar em esquemas de recurso depende da idade em que for administrada a 1ª dose. A última dose é administrada ≥12 meses de idade, pelo menos 8 semanas após a anterior.
6 MenC – Pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade, apenas em contexto de vacinação pós-exposição, recomendando-se uma dose ≥12 meses de idade.
7 VASPR – Se for necessária protecção mais precoce, a 1ª dose de VASPR pode ser antecipada para os 6 meses de idade. As crianças vacinadas durante o primeiro ano de vida devem ser revacinadas, com VASPR 1, aos 12 meses de idade. O intervalo mínimo entre as 2 doses de VASPR é de 4 semanas.
8 HPV9 – Esquema iniciado <15 anos de idade: 2 doses (0, 6 meses). Esquema iniciado ≥15 anos de idade: 3 doses (0, 1, 6 meses). Intervalo mínimo entre a 1ª e a 3ª dose: 6 meses. Aplica-se o mesmo critério relativamente a HPV4.
9 Tdpa – Recomendada ≥7 e <10 anos de idade.
10 Td – Recomendada, no âmbito do PNV ≥10 anos de idade. Em ≥10 anos de idade, a primovacinação é constituída por 3 doses de Td.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
   Intervalos mínimos
Vacina Idade mínima para a 1ª dose Entre a 1ª e a 2ª dose Entre a 2ª e a 3ª dose Entre a 3ª e a 4ª dose Entre a 4ª e a 5ª dose
VHB1 nascimento 4 semanas 8 semanas
Hib2 6 semanas 4 semanas 4 semanas 8 semanas
DTPa3 6 semanas 4 semanas 4 semanas 6 meses 6 meses
VIP4 6 semanas 4 semanas 4 semanas 6 meses 6 meses
Pn135 6 semanas 4 semanas 8 semanas
MenC6 6 semanas 8 semanas
VASPR7 12 meses 4 semanas
HPV98 9 anos 5 meses
Tdpa9 7 anos 4 semanas 4 semanas 6 meses
Td10 7 anos 4 semanas 6-12 meses

QUADRO 9 – PNV: Intervalos entre a administração de vacinas diferentes

Nota – A administração simultânea das vacinas contra a febre amarela e VASPR parece condicionar, principalmente nas crianças, taxas de seroconversão mais baixas em contexto de rubéola, parotidite epidémica e febre amarela. Sempre que possível, deverá ser respeitado um intervalo de 4 semanas entre as duas vacinas.

Adaptado de: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Tipos de vacina Intervalo mínimo recomendado entre doses
≥2 inativadas Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses
≥2 vivas orais Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses
≥2 vivas injetáveis Podem ser administradas no mesmo dia1 ou com intervalo entre as doses de pelo menos, 4 semanas
≥1 inativada + ≥1 viva oral Podem ser administradas no mesmo dia ou com intervalo entre as doses de pelo menos, 4 semanas
≥1 inativada + ≥1 viva injetável Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses, desde que respeitando um intervalo de 4 semanas em relação a outra vacina viva injetável administrada antes ou depois
≥1 viva oral + ≥1 viva injetável Podem ser administradas no mesmo dia ou com qualquer intervalo entre as doses, desde que respeitando um intervalo de 4 semanas em relação a outra vacina viva injetável administrada antes ou depois

 

Algumas circunstâncias especiais

Vacinas e imunoglobulinas

A interacção entre imunoglobulinas (Ig) e vacinas inactivadas é reduzida, pelo que estas podem ser administradas em simultâneo, antes ou depois da administração de produtos contendo imunoglobulinas, desde que em locais anatómicos diferentes.

Os produtos contendo imunoglobulinas interferem potencialmente com o desenvolvimento da imunidade às vacinas víricas vivas do PNV.

O intervalo de tempo a respeitar até à vacinação com VASPR varia entre 3 e 11 meses e depende da dose de Ig e do produto administrado (Quadro 10).

 

QUADRO 10 – PNV: Intervalos mínimos entre a administração de produtos contendo imunoglobulinas e VASPR

1Considerada dose de 10 mL/Kg
Adaptado de: American Academy of Pediatrics. Red Book: 2015 Report of the Committee on Infectious Diseases. American Academy of Pediatrics; 2015

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Produto Intervalo (meses)
Ig específica tétano 3
Profilaxia hepatite A 3
Ig específica hepatite B 3
Ig específica raiva 4
Ig específica varicela 5
Profilaxia sarampo
Imunocompetente 40 mg/Kg
Imunocomprometido 80 mg/Kg

5
6
Imunoglobulina humana contra o antigénio D 3
Transfusão concentrado eritrocitário lavado1 0
Transfusão concentrado de eritrócitos1 5
Transfusão sangue total1 6
Transfusão plasma ou plaquetas1 8
Terapêutica de substituição ou imunomoduladora (Ig EV ou subcutânea)
400 mg IgG/Kg
1000 mg IgG/Kg
≥1600 mg IgG/Kg


8
10
11

Vacinas e alterações imunitárias

A vacinação de pessoas com alterações imunitárias deve ser efectuada sob orientação e prescrição do médico assistente.

As vacinas inactivadas não apresentam contraindicações. As vacinas vivas podem estar contraindicadas em situações particulares devido ao risco de doença provocada pelas estirpes vacinais. (Quadro 11)

Quando é previsível um declínio do estado imunitário a vacinação deve ser antecipada, recorrendo-se a esquemas acelerados. As vacinas inactivadas devem ser administradas até 15 dias antes da intervenção imunossupressora, e as vacinas vivas até 4 semanas antes.

A eficácia e efectividade da vacinação podem estar diminuídas nalguns casos de imunodeficiência, o que pode justificar a administração de um maior número de doses de uma vacina.

Pessoas com imunodeficiência devem ser sempre consideradas potencialmente susceptíveis às doenças evitáveis pela vacinação, mesmo que tenham o esquema vacinal actualizado. Em caso de exposição, deve ser considerada a administração de imunoprofilaxia passiva (imunoglobulina humana normal ou imunoglobulina humana específica) e/ou de quimioprofilaxia.

Como medida adicional de protecção, os conviventes com pessoas afectadas com imunodeficiência devem estar vacinados de acordo com o PNV e, anualmente, com a vacina contra a gripe (no âmbito da Orientação emitida pela DGS). A vacinação com vacinas vivas de conviventes de pessoas com imunodeficiência pode exigir precauções especiais. A vacina oral contra a poliomielite viva atenuada (VAP) está contraindicada, e a vacina contra a varicela pode ser administrada, mas, nas 6 semanas após a vacinação, deve ser evitado o contacto próximo com pessoas susceptíveis de alto risco.

As vacinas VASPR, BCG e contra Rotavírus podem ser administradas aos contactos próximos de pessoas com imunodeficiência.

QUADRO 11 – PNV: Vacinas com contraindicação absoluta e relativa em diferentes tipos de imunodeficiência

1Apesar de não fazer parte do PNV a administração da VAP está prevista em circunstâncias especiais (controlo de surtos)

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Tipo de imunodeficiência Contraindicação absoluta Contraindicação relativa Observações
Primárias Alterações dos linfócitos B (imunidade humoral comprometida) BCG
VAP1
VASPR
A vacina pode não estar indicada, por não haver resposta imunitária, devido à terapêutica regular com imunoglobulinas
A deficiência selectiva de IgA e de subclasses de IgG não é contraindicação para as vacinas vivas
Alterações dos linfócitos T (imunidade humoral e celular comprometidas) Vacinas vivas Nenhuma Nos defeitos completos (ex. SCID) as vacinas podem ser ineficazes
Alterações do complemento Nenhuma Nenhuma
Alterações da função fagocitária BCG Nenhuma
Adquiridas Infecção por VIH BCG VASPR A VASPR só está contraindicada se houver imunossupressão grave
Cancro, transplante ou terapêutica imunossupressora Vacinas vivas (dependendo do estado imunitário) Nenhuma A efectividade das vacinas depende do grau de imunossupressão

Contraindicações, precauções e falsas contraindicações das vacinas do PNV

As contraindicações das vacinas, raras, podem ser permanentes ou transitórias.

As precauções, não contraindicações, exigem, contudo, prescrição médica.

Excepto quando existe uma contraindicação verdadeira, a decisão de não vacinar, por razões médicas, deve ser sempre cuidadosamente ponderada e é da responsabilidade do médico assistente, considerando os benefícios da prevenção da doença e as raras situações adversas, cronologicamente relacionadas com as vacinas.

É importante lembrar que qualquer adiamento da vacinação com base em falsa contraindicação (Quadro 12) constitui uma oportunidade perdida de vacinação.

QUADRO 12 – Falsas contraindicações das vacinas do PNV

. Reacções locais, ligeiras a moderadas, a uma dose anterior da vacina
Doença ligeira aguda, com ou sem febre (exemplo: infecção das vias respiratórias superiores, diarreia)
Terapêutica antibiótica concomitante (excepto os tuberculostáticos para a BCG)
. Imunoterapia concomitante com extractos de alergénios
Antecedentes pessoais ou familiares de alergia (por ex. a: ovos, penicilina, febre dos fenos, rinite)
Dermatoses, eczema, asma ou manifestações de atopia em geral
Doenças crónicas cardíaca, pulmonar, renal ou hepática
Doenças neurológicas não evolutivas, como a paralisia cerebral
Síndroma de Down ou outras cromossomopatias
Prematuridade
Peso de nascimento <2000 g (excepto para a VHB e a BCG – ver “Vacinação em Circunstâncias Especiais”)
Aleitamento materno
História de icterícia neonatal
Subnutrição
Antecedentes de sarampo, parotidite epidémica, rubéola ou outra doença alvo de uma vacina
Exposição recente a uma doença infecciosa
Convalescença de doença aguda
História familiar de reacções adversas graves à mesma vacina ou a outras vacinas
História familiar de síndroma da morte súbita do lactente
História familiar de convulsões, etc.



No que se refere à administração da vacina VASPR reforça-se:

  • Não é boa prática recomendar como requisito prévio à administração da VASPR quer a introdução alimentar do ovo, quer o teste cutâneo com a vacina diluída (que não é preditivo de uma reacção alérgica à vacinação);
  • Todas as crianças elegíveis para receber a VASPR devem ser vacinadas, tenham ou não ingerido ovo previamente;
  • Nas crianças com alergia não grave ao ovo, a VASPR deve ser administrada no serviço de vacinação habitual, não estando recomendada a referenciação hospitalar ou a realização de testes cutâneos anteriormente à administração da vacina;
  • Nos casos muito raros de história pessoal clinicamente documentada de reacção anafiláctica ao ovo, a administração da VASPR deverá ser feita em meio hospitalar;
  • Nas crianças com asma não controlada e com história documentada de alergia de qualquer tipo ou gravidade a uma dose prévia da vacina ou ao ovo, a administração da VASPR não deve ser adiada, embora deva ser feita em meio hospitalar.

A vacinação no âmbito de Programas da OMS

Programa Nacional de Erradicação da Poliomielite – Plano de Acção Pós-Eliminação

Os objectivos gerais deste programa são: manter a ausência de circulação do vírus da poliomielite em Portugal e o estatuto nacional de eliminação da poliomielite (Polio-free country), segundo os critérios da OMS.

As estratégias principais para manter a eliminação da poliomielite em Portugal são: a vacinação, a vigilância, a contenção laboratorial e a resposta à eventual importação do vírus da poliomielite.

A vacinação, com utilização exclusiva da vacina inactivada contra a poliomielite, inclui:

  • Vacinação de rotina no âmbito do PNV – universal, gratuita, acessível a todas as pessoas presentes em Portugal e não necessitando de prescrição médica;
  • Vacinação em circunstâncias especiais
    • Viajantes, profissionais de saúde e outros profissionais de risco (Quadro 13);
    • Bolsas de população susceptível;
    • Instituições colectivas;
    • Grupos de imigrantes de países de risco;
    • Resposta a casos importados.

QUADRO 13 – Vacinação contra a poliomielite (VIP) se houver risco de exposição1

1Vacinar apenas as pessoas que não possuam o número de doses recomendado neste quadro.
2Esquema mínimo de 4 doses. A última dose deve ser em ≥4 anos de idade.
3Esquema mínimo de 3 doses. A última dose deve se rem ≥4 anos de idade. Verificando-se ter sido aplicado um esquema misto com VAP e VIP são necessárias 4 doses.
4Se a exposição ao risco se mantiver, deve proceder-se a um reforço 6 a 12 meses depois da 3ª dose, para completar o esquema.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Idade Estado vacinal Número total de doses de VIP recomendadas1 Intervalo mínimo entre as doses
≥6 semanas e <7 anos Não vacinado ou incompletamente vacinado Fazer ou completar o esquema de 4 ou 5 doses2 4 semanas
(6 meses entre a penúltima e a última)
≥7 e <18 anos Não vacinado ou incompletamente vacinado Fazer ou completar o esquema de 3 doses3 4 semanas
(6 meses entre a penúltima e a última)
≥18 anos <3 doses Fazer ou completar o esquema de 3 doses
Esquema recomendado: 0, 1, 7-13 meses
Esquema acelerado: 0, 1, 2 meses4
4 semanas
(6 meses entre a penúltima e a última)
≥18 anos Com esquema vacinal completo para a idade 1 dose
(reforço único, válido para toda a vida)
≥10 anos depois da dose anterior

 

Programa Nacional de Eliminação do Sarampo, Integrado no Programa Nacional de Eliminação do Sarampo e da Rubéola

Os objectivos gerais deste programa são: manter a ausência de circulação do vírus do sarampo em Portugal e o estatuto nacional de eliminação do sarampo segundo os critérios da OMS.

As estratégias principais para manter a eliminação do sarampo em Portugal são: a vacinação, a vigilância clínica, laboratorial e epidemiológica, a gestão de casos e de surtos, e a comunicação.

A vacinação, com utilização da vacina VASPR, inclui:

  • Vacinação de rotina no âmbito do PNV – universal, gratuita, acessível a todas as pessoas presentes em Portugal e não necessitando de prescrição médica
  • Vacinação em circunstâncias especiais (Quadro14):
    • Viajantes, profissionais de saúde
      Nas crianças que viajem para áreas de risco para sarampo ou rubéola[1] a VASPR pode ser administrada a partir dos 6 meses de idade. No entanto, quando é administrada antes dos 12 meses de idade, esta dose não é válida (dose “zero”) e a criança deve ser vacinada (VASPR 1) aos 12 meses de idade, desde que respeitado o intervalo mínimo de 4 semanas entre as doses
  • Actividades adicionais de vacinação para diminuição de bolsas de susceptíveis
[1] Áreas de risco atualizadas em: http://www.who.int/immunization/monitoring_surveillance/burden/vpd/surveillance_type/active/measles_monthlydata/en/; http://measlesrubellainitiative.org/


QUADRO 14 – Vacinação recomendada contra o sarampo (VASPR), se houver risco de exposição1

1Vacinar apenas as pessoas sem história credível de sarampo e que não tenham o número de doses recomendado.
2Por indicação expressa da DGS, da Autoridade de Saúde ou prescrição do médico assistente.

Fonte: DGS, Norma 016/2016, Programa Nacional de Vacinação 2017
Idade Número de doses de VASPR recomendadas1
≥6 meses e <12 meses Considerada dose “zero”, devendo ser administrada a VASPR 1 aos 12 meses de idade
≥12 meses e <18 anos Antecipar a VASPR 2, se necessário (intervalo ≥4 semanas entre as doses)
≥18 anos
(independentemente do ano de nascimento)
1 dose
Profissional de saúde: 2 doses

Recomendações sobre vacinas não incluídas no PNV

Algumas vacinas são recomendadas apenas para grupos de risco ou em circunstâncias especiais; outras vacinas comercializadas, mas não incluídas no PNV, poderão ser recomendadas no âmbito da protecção individual e administradas nos serviços do SNS mediante prescrição médica (incluindo o esquema vacinal), com registo no respectivo serviço de vacinação.

Vacina contra a gripe sazonal

O método mais efectivo para a prevenção e controlo da gripe sazonal é a vacinação. As vacinas licenciadas são actualizadas todos os anos de acordo com as recomendações da OMS sobre a composição das vacinas para a próxima época gripal. Esta recomendação baseia-se na vigilância epidemiológica, laboratorial e clínica.

Existem 2 tipos de vacinas: inactivadas (incluindo vacinas recombinantes) e vacinas vivas atenuadas, estas não disponíveis em Portugal. As vacinas trivalentes contêm antigénios dos subtipos de vírus influenza A (H1N1 e H3N2) e Influenza B (linhagem dominante em circulação). As vacinas tetravalentes, com duas linhagens B não estão disponíveis em Portugal.

Pelo menos dois factores intervêm na efectividade da vacina:

  • as características do vacinado (ex. a resposta imunológica é menor no idoso, tendo em consideração a imuno-senescência; e no imunocomprometido); e
  • a concordância da vacina com as estirpes circulantes, que varia de ano para ano.

Na Europa, as recomendações para a vacinação anual e as coberturas vacinais variam de país para país, recomendando-se a vacinação das pessoas em maior risco de desenvolverem complicações: idosos, mulheres grávidas, doentes crónicas, residentes em lares e profissionais de saúde.

Nos Estados Unidos da América do Norte utiliza-se uma estratégia de vacinação universal: recomendação para todas as pessoas a partir dos seis meses de idade.

Para além da prevenção do alto risco de desenvolvimento de complicações, a vacinação da grávida é também o mecanismo primário de protecção do bebé nos primeiros meses de vida, uma vez que a vacina não está licenciada para utilização abaixo dos 6 meses de idade. No entanto, a adesão a esta medida tem sido difícil por dúvidas quanto à segurança da vacina na gravidez. Vários estudos demonstraram não haver incremento de reações adversas na mãe e no feto.

Anualmente, a DGS emite as recomendações para a vacinação, cuja administração se inicia no mês de Outubro, podendo ser prolongada durante toda a chamada época gripal. O Quadro 15 especifica as recomendações para a época 2016/2017.

QUADRO 15 – Grupos alvo prioritários para os quais se recomenda a vacinação antigripal

1. Pessoas com risco de complicações durante ou após infecção gripal
    • Idade igual ou superior a 65 anos (1), particularmente se residentes em lares ou outras instituições
    • Residentes ou internados por períodos prolongados em instituições prestadoras de cuidados de saúde (por ex: deficientes, utilizadores de centros de reabilitação), desde que com idade superior a 6 meses
    • Grávidas, para prevenir evolução grave da gripe durante a gravidez e para proteger os seus filhos durante os primeiros meses de vida (imunização passiva)
    • Doentes com idade superior a 6 meses (incluindo grávidas e mulheres a amamentar) com doenças crónicas cardiovasculares, pulmonares, renais, hepáticas, hematológicas, metabólicas, neuromusculares ou imunitárias
2. Pessoas com maior probabilidade de contrair e transmitir o vírus às pessoas consideradas no ponto 1
    • Coabitantes e prestadores de cuidados a pessoas consideradas no ponto 1: Quando estas não possam ser vacinadas (idade <6 meses) ou tenham imunodepressão moderada ou grave
3. Saúde ocupacional
    • Pessoal dos serviços de saúde (públicos e privados) e de outros serviços prestadores de cuidados com contacto directo com as pessoas consideradas no ponto 1., mesmo que estas estejam vacinadas
    • Pessoal de infantários, creches e equiparados

 

Vacina contra varicela

A vacina contra varicela é composta pelo vírus varicela-zóster (VVZ) vivo atenuado (estirpe Oka). Em Portugal está disponível na forma monovalente; nalguns países existe também em combinação com a vacina contra sarampo, papeira e rubéola. Em Portugal as duas vacinas monovalentes Varilrix® e Varivax® estão disponíveis apenas no mercado privado (Quadro 16). Em ambas foram demonstradas imunogenicidade, segurança e eficácia.

No mês seguinte à imunização, em adultos e crianças (respectivamente 10% e 5%) desenvolve-se erupção cutânea associada à vacina, localizada à área da injecção ou generalizada. A transmissão secundária do vírus vacinal a contactos próximos susceptíveis tem sido documentada, mas o risco é muito baixo. Não foi descrita transmissão na ausência de erupção pós-vacinação. A varicela pós-vacinal é habitualmente ligeira, observando-se uma protecção significativa contra a sobre-infecção cutânea.

A vacina pode ser administrada concomitantemente com outras vacinas do PNV.

QUADRO 16 – Características das vacinas contra varicela (esquema vacinal aprovado pela EMA)

Fonte – Recomendações sobre vacinas extra Programa Nacional de Vacinação atualização 2015/2016. Sociedade Portuguesa de Pediatria/Sociedade de Infecciologia Pediátrica
  Varilrix®, GSK (9) Varivax®, SPMSD (10)
Tipo Viva, atenuada Viva, atenuada
Via de administração Subcutânea Intramuscular ou subcutânea
Local de administração Região deltoide Zona anterolateral da coxa em crianças pequenas, e região deltoide em crianças mais velhas e adolescentes
Número de doses 2 2
Primeira dose ≥12 meses ≥12 meses; em circunstâncias especiais (ex. surtos) pode ser administrada a lactentes >9 meses
Intervalo entre doses Preferencialmente a 2ª dose deve ser administrada pelo menos 6 semanas após a 1ª dose 12M-12 anos: mínimo de 4 semanas

≥13 anos: 4-8 semanas
Administração simultânea com as outras vacinas do PNV Sim Sim
Contraindicações e precauções

A vacina não deve ser administrada:

  • a imunodeprimidos, grávidas, menores de 1 ano de idade;
  • em situações de hipersensibilidade a algum dos componentes da vacina; e
  • em indivíduos submetidos a terapêutica com salicilatos (potencial associação com síndroma de Reye, à semelhança do que foi descrito com a infecção por vírus selvagem), terapêutica que deve ser evitada nas seis semanas após a vacinação.

A vacina deve ser adiada:

  • após administração de plasma, sangue ou imunoglobulina humana, durante um mínimo de três a cinco meses.
Notas importantes
  • A administração de produtos sanguíneos contendo anticorpos contra o VVZ pode reduzir a resposta à vacina e a sua eficácia protectora. Por isso, sempre que possível, a administração de qualquer destes produtos deve ser evitada durante o mês seguinte à administração da vacina.
  • Nos doentes de alto risco, a vacina não deve ser administrada concomitantemente com outras vacinas vivas atenuadas.
Utilização da vacina na profilaxia pós-contacto

O Advisory Committee on Immunization Practices (ACIP) dos Estados Unidos da América, país em que a vacinação universal se iniciou em 1995, recomenda a vacinação após exposição a varicela ou herpes-zóster das pessoas sem evidência de imunidade: a vacina deve ser administrada até 3 a 5 dias pós-exposição, o que poderá prevenir a doença ou diminuir a sua gravidade.

Vacina contra a hepatite A

A vacina contra a hepatite A é uma vacina de vírus inactivado, segura, com elevado grau de imunogenicidade. Confere protecção duradoura e não interfere com as outras vacinas.

Utilização da vacina na profilaxia pré-exposição

O maior interesse desta vacina é a vacinação pré-exposição de crianças e adolescentes:

  • Que viajem para países com endemicidade intermédia ou alta;
  • Com patologia hepática crónica;
  • Hemofílicos e que recebam hemoderivados;
  • Candidatos a transplante de órgão;
  • Infectados por VIH;
  • Que pertençam a comunidade onde seja detectado um surto.

Para uma resposta de anticorpos óptima, a imunização deverá ser efectuada de preferência 4 semanas (no mínimo 2 semanas) antes da esperada exposição ao vírus da hepatite A.

Utilização da vacina na profilaxia pós-contacto

A vacina da hepatite A pode ainda ser usada na profilaxia pós-exposição, para controlo de casos e surtos. Deverá ser efectuada em indivíduos susceptíveis nos 14 dias seguintes após contacto.

Hesitação em vacinar – algumas considerações

Os movimentos e posturas antivacinas existem historicamente, desde os tempos em que surgiu a 1ª vacina, a contra a varíola. E acontece curiosamente que a varíola foi a 1ª doença infecciosa a ser erradicada, o que por muitos é considerado o feito mais importante da História da Medicina, e a prova inequívoca do poder da acção colectiva na melhoria da condição humana segundo Margaret Chan, diretora da OMS.

Conceito de hesitação em vacinar

A aceitação da vacinação é a norma, havendo, contudo, algumas pessoas que aceitam a vacinação com algumas dúvidas. No outro extremo há pessoas que recusam todas as vacinas, havendo ainda outras que recusam, mas com dúvidas. A hesitação em vacinar é o continuum entre a aceitação sem dúvidas e a recusa sem dúvidas, grupo muito heterogéneo em que se encontram pessoas que aceitam mas duvidam, que aceitam algumas vacinas recusando outras, que atrasam as vacinas num calendário vacinal próprio que vai ter efeitos na imunidade de grupo, ou que recusam sem convicção.

Em Portugal, as coberturas vacinais elevadas indicam que a vacinação é uma medida de saúde pública muito bem aceite, mas mesmo alguns dos pais que vacinam os filhos têm dúvidas e têm medos, o que significa que a hesitação em vacinar também pode existir entre nós; ou seja, as coberturas vacinais não são um indicador directo do nível de hesitação.

A hesitação em vacinar depende, de facto, de múltiplos factores. Nesta perspectiva, foram desenvolvidos modelos para ajudar a entender e a lidar com tal comportamento.

O modelo mais simples é o chamado modelo dos 3 C, que incorpora 3 critérios principais: confiança, conveniência e complacência.

Por confiança, factor positivo na aceitação, entende-se acreditar na efectividade e segurança das vacinas, no sistema que as disponibiliza, na competência dos serviços e profissionais, e nas motivações dos decisores sobre as vacinas que são necessárias.

A conveniência é um factor que tem a ver com:

  • A qualidade dos serviços (real ou percebida), respeito pelo contexto cultural, conforto, acessibilidade, aspectos económicos, acções para a aplicação atempada das vacinas;
  • A capacidade do utilizador: disponibilidade para pagar (nem que seja os transportes em tempo de crise), literacia em saúde, entendimento da língua; este factor, extremamente importante para o sucesso do PNV, pode ser positivo se a qualidade dos serviços e a capacidade do utilizador forem boas, e negativo se tal não acontecer.

A complacência existe quando a percepção de risco sobre as doenças evitáveis pela vacinação é baixa, ou seja, a vacinação não é percebida como uma medida preventiva necessária e a sua segurança é questionada; uma das causas de complacência é o próprio sucesso dos programas de vacinação, com o controlo das doenças infecciosas. Surgem depois os mitos e a inversão da percepção de risco, passando-se ao cenário de mais medo da vacina do que da doença.

Para ajudar a perceber as causas mais profundas da hesitação em vacinar, que pode estar relacionada com vários determinantes ao mesmo tempo, o grupo de trabalho da OMS sobre este tópico desenvolveu um 2º modelo, integrando a chamada matriz de determinantes.

Esta matriz assenta em 3 grupos de determinantes:

  • O 1º grupo de determinantes tem origem em influências de contexto, nomeadamente o ambiente histórico e sociocultural, as características do sistema de saúde e factores políticos e económicos;
  • O 2º grupo de determinantes tem origem em influências individuais e de grupo, e inclui por exemplo a percepção sobre o risco/benefício da vacinação, e a noção da segurança das vacinas, um tema muito actual;
  • E, por fim, o 3º grupo, o dos determinantes que dependem de especificidades da vacina ou da vacinação.

Influências de contexto

Normas sociais

Nas influências de contexto, as normas sociais são muito importantes: não se vacina porque ninguém vacina ou vacina-se porque em determinada comunidade todos os pais vacinam os seus filhos; é talvez isto que se passa um pouco em Portugal.

Mas o que se pretende é que os indivíduos e as comunidades entendam o valor das vacinas e as procurem como um direito e com responsabilidade. E este é um objectivo estratégico da OMS definido em 2012, que está também consagrado no nosso Programa Nacional de Saúde.

Razões religiosas e filosóficas

Sem grande relevo em Portugal, mas com expressão a nível europeu referem-se as razões religiosas ou as razões filosóficas como a antroposofia, havendo em Portugal várias escolas de educação Waldorf que assentam nesta filosofia. Um dado importante é a tendência para a formação de bolsas, isto é, os não vacinados distribuem-se em grupos, não se distribuem homogeneamente na população, pelo que a probabilidade de ocorrência de surtos nessas comunidades é muito maior.

Influência dos líderes de opinião

Em relação à influência dos líderes de opinião, refere-se o caso Wakefield, que publicou na revista Lancet em 1998 um artigo que associava a vacina VASPR a colite e autismo. Este artigo teve ampla divulgação e, como consequência a cobertura vacinal desceu, e em 2003 começaram a registar-se surtos de sarampo no Reino Unido, que rapidamente se estenderam a outros países da Europa.

Em 2004 demonstrou-se que o artigo padecia de erros graves na amostra e na análise estatística; muitos estudos posteriores não demonstraram a associação. Foi também demonstrado que havia grandes conflitos de interesse. Em 2004 a Lancet retirou o artigo dos arquivos e em 2010 Andrew Wakefield foi excluído do General Medical Council.

Em 2013, na região europeia da OMS houve 29.000 casos de sarampo, a maioria em pessoas não vacinadas. Na Europa os objectivos de eliminação do sarampo têm sido sucessivamente adiados, havendo muitos países em que a doença ainda é endémica, como a Espanha, a Suíça e o Reino Unido. Também nos Estados Unidos, em 2015 houve uma grande epidemia com origem na Disneylandia.

Entre 1980 e 2008 a redução das mortes por sarampo correspondeu a 23% da redução da mortalidade infantil, a nível global.

Contactos sociais, comunicação social e internet

A importância do papel dos contactos sociais, da comunicação social e da internet é cada vez maior.

Em relação aos contactos sociais, de acordo com um estudo de 2013 verificou-se que os pais que não cumpriam o esquema recomendado tinham uma rede de contactos muito mais alargada do que os cumpridores. Em relação à comunicação social, verificou-se que a probabilidade de terem lido ou ouvido informação negativa sobre a vacinação era muito maior nos pais que atrasavam a vacinação do que nos pais que cumpriam o esquema recomendado. Verificou-se ainda que a probabilidade de confiar na informação dada pelos profissionais de saúde é menor nos pais que procuram informação sobre vacinas na Internet.

Influências individuais e de grupo

Nos países desenvolvidos, as atitudes antivacinais estão habitualmente associadas a um maior nível económico. Mas, ao contrário dos determinantes sociais da Saúde, os determinantes da hesitação em vacinar como a educação ou o status socioeconómico não influenciam numa única direcção, ou seja, mais educação e cultura podem estar associados a níveis elevados ou baixos de aceitação. Como defensor da vacinação há que citar o exemplo de Bill Gates, como antivacinal o exemplo de Robert Kennedy Junior ou alguns actores como Jim Carrey.

Há grupos com uma visão particular do mundo no que refere à saúde, em que as pessoas optam pela medicina não convencional, preferem a “imunidade natural” conferida pelos alimentos, defendem que a boa higiene e os hábitos de vida tornam a vacinação desnecessária ou que as doenças evitáveis pela vacinação são necessárias para um sistema imunitário forte.

Mesmo nas pessoas que aderem à vacinação uma dúvida frequente é a sobrecarga do sistema imunitário com tantas vacinas nos programas de vacinação. No PNV, entre 1965 e 1980, só com a vacina antivariólica e a vacina de célula completa contra a tosse convulsa (Pw) eram inoculados cerca de 3200 antigénios, carga substancialmente superior à actual, apesar de muito mais vacinas agora incluídas no PNV.

Uma outra situação bastante frequente é a chamada culpa antecipada: por um lado, o medo da possibilidade de uma criança contrair uma doença evitável pela vacinação e, por outro, o medo de uma reacção adversa, o que é gerador de grande ansiedade e ambivalência em relação à vacinação.

Especificidades da vacina ou da vacinação

Uma dúvida crescente refere-se à dor na vacinação. A OMS emitiu, em Setembro de 2015, um documento recomendando medidas simples de combate à dor numa perspetiva de diminuir a hesitação em vacinar, medidas que já são usadas em muitos dos nossos centros de vacinação.

O esquema vacinal com a administração simultânea de múltiplas vacinas tem sido problemático nalguns países, levando a recorrer a esquemas alternativos, o que pode adiar a protecção e comprometer a imunidade de grupo. Apesar de se pretender obter protecção o mais precocemente possível para o maior número possível de doenças e para o maior número possível de pessoas, muitos pais discordam da necessidade de um esquema tão sobrecarregado.

Todos os estudos apontam para que os profissionais de saúde representam ainda a maior fonte de aconselhamento sobre vacinas, mas que o seu papel tem diminuído ao longo dos anos em favor dos familiares, amigos e internet. Um estudo realizado na Holanda demonstrou que a confiança na objectividade do profissional tem grande impacte na decisão dos pais, que alguns pais acham que os profissionais só informam sobre as vantagens e não sobre as reacções adversas e que os pais duvidam do conhecimento dos profissionais sobre as reacções adversas.

Dinâmicas subjacentes à hesitação em vacinar

Crenças e mitos

As dinâmicas subjacentes à hesitação em vacinar, ou seja, de que forma a interacção dos determinantes vai pesar para a pró- ou para a antivacinação, estão intimamente ligadas às estruturas sociais, às representações e às mentalidades.

Apesar de vacinas mais seguras e efectivas, do aumento da vigilância dos eventos adversos, os argumentos da antivacinação mantêm-se desde há 2 séculos, o que significa que existem crenças e mitos profundamente enraizados:

  • As vacinas são ineficazes, causam doenças, têm em vista o lucro, contêm substâncias perigosas;
  • As lesões causadas pelas vacinas são escondidas pelas autoridades;
  • A imunidade natural é melhor que a conferida pelas vacinas;
  • As intervenções “naturais” (ex. Homeopatia) são superiores às vacinas na prevenção das doenças.

No entanto, há diferenças assinaláveis entre os antigos opositores e os actuais. Enquanto no passado a liderança antivacinação era feita por proletários opondo-se à intervenção do Estado no seu corpo, actualmente a liderança nos países ocidentais é feita por diferenciados, classe média ou alta, pais de crianças “lesadas” pelas vacinas, exigindo compensação da indústria ou do estado, ou ainda, praticantes de terapêuticas não convencionais. Existe uma estratégia de marketing bem definida através da internet em que os opositores se assumem como não sendo antivacinas, mas a favor de “vacinas seguras”, “decisão informada”, “vacinas verdes” e utilizam nomes neutros, que parecem websites de informação sobre vacinas: Vaccination News, The Association of American Phisicians and Surgeons ou National Vaccine Information Center.

Vivemos num aparente paradoxo:

  • Assistiu-se, por um lado, a uma diminuição das doenças evitáveis pela vacinação simultaneamente com a disponibilidade de cada vez maior número de novas vacinas que sobrecarregam os esquemas vacinais, levando a questionar a necessidade de mais vacinas, qual a sua segurança e riscos, ou ainda quais os objectivos ocultos entre companhias farmacêuticas e estados (teoria da conspiração);
  • Por outro lado, há uma alteração das relações de poder médico-doente: os médicos deixaram de ser os únicos a tomar decisões e os doentes querem ser sujeitos activos e participar das decisões referentes à sua saúde, capacitação essa que é objectivo, quer da OMS, quer do Plano Nacional de Saúde.

E, finalmente, a internet, em que a informação baseada na experiência individual (experience-based) ganhou legitimidade e credibilidade semelhante à informação científica (evidence-based). A disseminação da internet, principalmente a partir do ano 2000, representou uma oportunidade soberana para a difusão de mensagens antivacinas a muito maior audiência, e a capacidade de poucas pessoas gerarem grande quantidade de conteúdos, muitas vezes com informação inadequada. Mas também os artigos científicos, nomeadamente os estudos de segurança das vacinas, se tornarem acessíveis possibilitando interpretações descontextualizadas e conclusões antivacinais.

A consulta de plataformas veiculando conteúdos antivacinas tem um impacte particularmente significativo na percepção de maiores riscos da vacinação e na diminuição da intenção de vacinar, em comparação com plataformas ditas oficiais.

Mecanismos psicológicos

Do ponto de vista psicológico, foram identificados alguns factores que, de algum modo, podem explicar a hesitação em vacinar e o seu aumento nos últimos anos.

  1. Vieses de omissão, ou seja, as pessoas têm maior relutância ao risco da acção (fazer uma vacina possivelmente “não segura”) do que ao risco da inacção (ter uma doença evitável pela vacinação, que as plataformas consultadas dizem ser rara e benigna).
  2. Propensão para atribuir qualquer evento após a vacinação à(s) vacina(s) recebida(s). Por e coincidência de situações como morte súbita, doenças neurológicas que se manifestam no 1º ano de vida com a data da primovacinação. Os argumentos antivacinas podem convencer os pais porque são simples de perceber e dão explicações etiológicas para doenças que a ciência e a medicina não conseguem explicar completamente.
  3. Vieses de disponibilidade, como ver conteúdos antivacinas aumenta a noção do risco das vacinas.
  4. O apelo à emoção, ao apresentar histórias (narrativas) de pais que acreditam que o seu filho foi gravemente lesado pela vacinação. As narrativas são extremamente poderosas porque causam uma enorme sensação de ameaça pelas vacinas. As estatísticas e probabilidades usadas na comunicação em saúde pública não têm definitivamente o mesmo impacte porque não interferem com as emoções.
  5. É muito difícil o entendimento da vacinação como um direito, mas também como um dever de contribuir para a imunidade de grupo. Os pais pensam no risco para os seus filhos mais do que numa abordagem de saúde pública.

Intervenções para diminuir a hesitação em vacinar

Poucas ou nenhumas estratégias de saúde pública tiveram sucesso no combate às posições antivacinas. Antes pelo contrário, a hesitação em vacinar foi aumentando tornando cada vez maior o contingente dos que aceitam, mas duvidam e dos que recusam, mas duvidam. O modelo da Educação e Informação não dirigidas (Knowledge deficit model) não resultou porque desvalorizava os efeitos da luta antivacinas no meio social, não identificava os diferentes determinantes causadores da hesitação em vacinar e era de certo modo uma atitude paternalista baseada na assunção de que as pessoas hesitavam porque “não sabiam”.

Neste momento há que evoluir para modelos inovadores, percebendo as causas e os contextos, de modo a alimentar a confiança dos que conscientemente aceitam todas as vacinas recomendadas, prevenir a evolução para a recusa dos que aceitam, mas com dúvidas, tornar possível reverter a posição dos que recusam, mas com dúvidas. É importante nunca considerar os oponentes da vacinação como ignorantes, pois isso é desvalorizar o significado e consequências da sua luta no meio social.

Os profissionais de saúde são ainda aqueles em que os pais mais confiam para receber informações sobre vacinas e de quem esperam respostas esclarecedoras. Os profissionais têm de estar capacitados para saber responder às dúvidas e aconselhar, permitindo uma decisão informada e consciente, mantendo a relação com o seu doente, mesmo em situação de desacordo, que poderá ser modificada se puder manter-se a capacidade de diálogo. Deverá haver um grande empenho na formação nesta área específica e no debate do tema no seio da comunidade científica.

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IMUNIZAÇÃO – PRINCÍPIOS BÁSICOS

Introdução

Ao abordar o tema sobre “Imunizações”, importa rever algumas definições relacionadas, para melhor compreensão.

 Antigénio – substância (geralmente uma molécula complexa de proteína ou de polissacárido) que, introduzida no organismo, provoca a formação de um anticorpo específico suscetível de a neutralizar. Os antigénios têm proveniência diversa (bactérias, vírus, células ou proteínas estranhas, substâncias tóxicas, etc.).

Anticorpo – classe de proteínas presentes naturalmente, ou produzidas no organismo sob a acção de um antigénio, com este reagindo especificamente in vitro ou in vivo. Existem 5 classes de anticorpos: IgG, IgA, IgM, IgD, e IgE, podendo alguns destes apresentar subclasses.

Controlo ou contenção de uma doença evitável pela vacinação – significa que se verifica a existência de casos, embora não constituindo problema significativo de saúde pública. Exemplifica-se com o tétano, doença com reservatório ambiental, em que não existe imunidade de grupo e a protecção depende da vacinação individual.

Eliminação – este termo significa supressão da doença localmente, sem erradicação global do microrganismo causal. Exemplificando: nalgumas regiões verifica-se um progresso significativo na eliminação do sarampo, com inexistência de circulação endémica do vírus, sendo que a importação do vírus não resulta em cadeias de transmissão na comunidade, como é o caso de Portugal. Este objectivo é atingido com uma taxa de cobertura vacinal superior a 95% e num regime de duas doses. Para doenças com reservatório ambiental, como o tétano, a erradicação não é possível, mas a eliminação está ao nosso alcance se a vacinação individual incluir todas as pessoas.

Erradicação – significa supressão total de uma doença com erradicação global do microrganismo causal. Somente se pode considerar a erradicação relativamente a doenças de contágio exclusivamente inter-humano. De salientar que a erradicação implica a aplicação, à escala global, duma vacina efectiva, a verificação de altos níveis de imunidade contra a doença por um período de tempo prolongado, e a existência de apoio laboratorial específico que permita uma vigilância epidemiológica eficaz e mantida. Pressupõe-se que um microrganismo erradicado não pode reemergir, excepto se houver algum reservatório ou uma introdução por bioterrorismo.

Embora a erradicação seja teoricamente possível para outras doenças evitáveis pela vacinação, apenas a varíola foi até hoje erradicada (OMS, 1980). A erradicação de uma doença por acção do Homem foi por muitos considerada o feito mais importante da história da Medicina. Como disse Margaret Chan, da OMS, na comemoração dos 30 anos da erradicação da varíola (2010): …esta foi a prova do poder da acção colectiva na melhoria da condição humana

As próximas doenças-alvo para a erradicação são a poliomielite e o sarampo.

Imunidade (do latim immunitas) – significa a capacidade congénita ou adquirida para resistir ou permanecer isento de doença provocada pela exposição a microrganismos ou toxinas. A imunidade para uma doença infecciosa específica pode ser adquirida após contacto com um microrganismo, com ou sem manifestações de doença, ou após imunização (ver adiante); deve-se na maior parte das vezes à presença de anticorpos para um microrganismo específico.

Imunidade de grupo – a imunidade de grupo, entendida como a protecção de não vacinados, ocorre quando uma proporção suficiente de indivíduos está imunizada numa determinada comunidade. O declínio da incidência da doença é maior do que a proporção de indivíduos vacinados, pois a vacinação reduz a disseminação do agente infeccioso. A imunidade de grupo explica a ausência da doença em determinada área geográfica sem se ter atingido 100% da cobertura vacinal contra essa doença.

O conceito de imunidade de grupo não se aplica às doenças com reservatório ambiental, como o tétano, em que a protecção só é atingida com a vacinação individual.

Imunogenicidade – capacidade de determinada molécula antigénica, ou determinada fracção de um antigénio, suscitar uma reacção imunitária.

Imunogénio – substância com capacidade de provocar reacção imunitária; na maior parte dos casos trata-se dum antigénio. Certos antigénios, como as háptenas, estrutura antigénica de muito baixo peso molecular, não têm capacidade para induzir resposta imunitária devido às reduzidas dimensões; contudo, enxertadas numa molécula maior (chamada portadora ou carrier) passa a ter tal capacidade.

Imunização – acção pela qual se confere imunidade:

  • Imunização activa – administração de antigénios que estimulam o sistema imunitário, o que se traduz na produção de anticorpos e/ou ativação de células de memória; a protecção é habitualmente de longa duração. Em geral, emprega-se o termo “imunização activa” como sinónimo de vacinação, mas imunização activa pode também ser obtida de forma natural através da exposição a determinadas doenças.
  • Imunização passiva – injecção de anticorpos, o que permite protecção imediata, embora de menor duração do que a conferida pela imunização activa; tal duração depende da vida média dos anticorpos injectados: semanas ou meses. A imunidade adquirida pelo feto, pela passagem de anticorpos maternos através da placenta é também uma forma de imunização passiva (ver adiante).

Microbioma – em complemento da definição explanada no Glossário geral, importa salientar que as “comunidades microbianas” simile “exércitos” (células em número 10 vezes superior ao das células totais do organismo humano, e comportando genes em número 100 vezes superior ao número de genes humanos), interagem com o ambiente e influenciam significativamente a função imunológica e metabólica.

Pré-exposição – em regra, as vacinas são eficazes se aplicadas antes do contacto com a doença infecciosa em causa. Daí a fundamentação dos programas de vacinação em que a administração precoce de vários antigénios pode ainda permitir uma protecção contra doenças maioritariamente adquiridas na infância.

Primo-vacinação ou imunização primária – série de doses de uma mesma vacina a administrar a uma pessoa susceptível para que se consiga uma imunidade adequada e duradoura frente à infecção que se quer prevenir.

Pós-exposição – algumas vacinas podem conferir protecção quando administradas em situações de pós-exposição, nomeadamente as vacinas contra hepatite B, hepatite A, sarampo e varicela. Neste contexto, as vacinas podem ser utilizadas na protecção individual ou no controlo de surtos.

Toxina – substância simultaneamente tóxica e antigénica elaborada por certas bactérias, nomeadamente Clostridium tetani, Corynebacterium difteriae e Bordetella pertussis.

Toxóide (sinónimo de anatoxina) – substância preparada a partir duma toxina bacteriana pela acção simultânea do formol e do calor, a qual perdeu o seu poder tóxico (toxina modificada), conservando, embora, as suas propriedades imunizantes.

Vacina – produto preparado a partir de microrganismos (do todo ou de componentes estruturais do mesmo), com propriedades antigénicas, suscitando no indivíduo em que é aplicado, uma resposta imunitária protectora contra a doença provocada pelo microrganismo correspondente. Os microrganismos em causa podem ser mortos ou inactivados, ou vivos, embora atenuados por passagens num hospedeiro não natural, ou por um meio desfavorável (formol, outra substância ou calor).

Mais recentemente, a chamada vacinologia reversa veio permitir o fabrico de vacinas utilizando alguns genes do microrganismo. A vacina contra Neisseria meningitidis do serogrupo B (MenB), já comercializada, foi a primeira desenvolvida por esta técnica.

Imunização passiva

Principais indicações

A imunização passiva consiste na transferência de anticorpos pré-formados, de origem humana ou animal, conferindo uma imunidade temporariamente limitada contra algumas infecções (semanas ou meses, dependendo da velocidade de degradação dos anticorpos).

As principais indicações na prevenção de doenças evitáveis pela vacinação são:

  1. Exposição ou risco de exposição a determinadas doenças sem que haja tempo suficiente para se desenvolver imunidade activa através de vacinação, como por ex. sarampo, hepatite A, hepatite B, tétano;
  2. Vacinação da grávida contra a tosse convulsa para prevenção da tosse convulsa no lactente até aos 2 meses de idade através da passagem transplacentar de anticorpos da mãe para o filho. (ver adiante)

As principais origens de anticorpos para imunização passiva, no âmbito das doenças evitáveis pela vacinação, são a imunoglobulina humana, a imunoglobulina humana específica (hiperimune) e o soro heterólogo (de origem animal) hiperimune.

Imunoglobulina humana (homóloga)

Em Portugal apenas está disponível a imunoglobulina humana para administração endovenosa (IGIV). A imunoglobulina humana é policlonal, contendo vários tipos de anticorpos, predominantemente IgG, obtidos a partir do plasma de adultos. É usada principalmente na profilaxia pré e pós-exposição a hepatite A e sarampo, em pessoas incompletamente vacinadas, com contraindicação para a vacinação, ou cuja doença de base não permite uma resposta adequada à vacinação (imunossupressão).

 Imunoglobulina humana específica (hiperimune)

As globulinas hiperimunes são preparados de IG obtidos de dadores com títulos elevados de anticorpos contra agentes específicos, nomeadamente hepatite B, raiva, tétano, varicela-zóster, citomegalovírus, botulismo e varíola.

Soro heterólogo hiperimune (antitoxina ou anti-soro hiperimune)

Também chamada antitoxina, é uma solução de anticorpos contra uma toxina bacteriana. O soro, obtido a partir de animais habitualmente de origem equina, contém anticorpos contra um único antigénio.

Existem disponíveis os seguintes preparados para utilizar na espécie humana: antitoxina diftérica e antitoxina botulínica trivalente (A, B, E) e bivalente (A, B).

As potenciais reacções adversas exigem precauções antes da administração (teste de sensibilidade, dessensibilização) e tratamento enérgico quando surge febre, anafilaxia e doença do soro).

Imunização activa

A este propósito, importa relevar certos factos considerados histórico-científicos (I e II).

I – A palavra “vacina” deriva de vacínia, doença vesiculosa dos bovinos, também chamada varíola das vacas (cowpox), provocada por um vírus do mesmo grupo do vírus da varíola humana (smallpox). As pessoas com história de vacínia (nomeadamente as leiteiras) não eram contagiadas pela varíola. Com base nesta constatação, em 1796 Edward Jenner inoculou James Phipps, de 8 anos (filho do seu jardineiro) com material das lesões de vacínia das mãos da Sarah Nelmes (leiteira), o que desencadeou uma reacção febril transitória na criança. Cerca de dois meses mais tarde Jenner voltou a inocular James Phipps com material de lesões de varíola, não tendo a criança desenvolvido doença. Jenner demonstrou assim o papel protector do vírus mais “fraco”, descobrindo a primeira vacina. Esta experiência seria actualmente inaceitável pelas questões éticas que levanta.

Cerca de 80 anos depois, Louis Pasteur verificou que a inoculação de microrganismos previamente expostos ao ar ou ao tratamento químico provocava uma doença atenuada.

Nasceu assim um novo conceito de prevenção de doenças infecciosas fundamentada na capacidade natural de resposta ou de reacção do organismo à inoculação de um agente similar ao agente microbiano “agressor” ou a um “produto” seu derivado, resposta ou reacção que conferem protecção por um período habitualmente longo.

As primeiras vacinas englobavam todo o microrganismo contra o qual se pretendia a protecção (ver adiante). Um passo importante foi o isolamento dos componentes essenciais dos microrganismos (geralmente determinantes da virulência), surgindo as vacinas de subunidades (ver adiante). Esta tecnologia foi usada pela primeira vez para as vacinas contra a difteria e o tétano, doenças cujas manifestações se devem às toxinas produzidas pelas bactérias. As vacinas iniciais (toxóides) eram toxinas quimicamente inactivadas.

Inicialmente, o desenvolvimento das vacinas ocorreu de forma quase empírica”, com grande desconhecimento dos complexos mecanismos imunológicos do agente e do hospedeiro subjacentes à protecção conferida pelas vacinas.

II – A compreensão cada vez maior da resposta imunológica e o desenvolvimento da biotecnologia têm permitido um aperfeiçoamento constante com vacinas mais seguras e eficazes:

  1. A cultura de células permitiu o desenvolvimento de vacinas vivas antivíricas, designadamente contra a poliomielite, sarampo, parotidite, rubéola e varicela;

  2. A engenharia genética permitiu a produção, por leveduras, Escherichia coli e báculo-vírus, de proteínas estruturais, potencialmente imunogénicas, culminando com a produção de vacinas seguras e altamente imunogénicas contra a hepatite B, o vírus do papiloma humano e rotavírus;

  3. A tecnologia da conjugação química de proteínas a polissacáridos permitiu a elaboração de vacinas polissacarídeas imunogénicas para administrar abaixo dos dois anos; são exemplos as vacinas conjugadas contra Haemophilus influenza b, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis C; *

*Relativamente a Neisseria meningitidis em geral, importa referir certos pormenores.

O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase-positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.

As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais 6 – A, B, C, W (anteriormente designada W135) X e Y – são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica. Surtos responsáveis pelo serogrupo X têm sido identificados em África.

Cada serogrupo divide-se em serótipos e subtipos em função das proteínas porinas da membrana externa (porA e porB, respectivamente) que contribuem para a virulência do microrganismo. O imunotipo é definido pela estrutura do lipo-oligossacárido/LOS ou endotoxina, crucial na cascata inflamatória activada através do receptor Toll-like 4 (TLR4).

A cápsula de polissacáridos tem capacidade para resistir à fagocitose e à acção de depuração com a participação do ferro através da lactoferrina e transferrina.

Através de técnicas genéticas concluiu-se que existem sete linhagens hiperinvasivas, causadoras da maior parte dos casos de doença meningocócica invasiva.

De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~1-3/100.00 nas duas últimas décadas), e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento, os quais têm registado incidência anual de ~25 casos/100.000 (ver adiante e capítulo sobre Doença Meningocócica).

 

  1. Novos adjuvantes estão a ser investigados. Para além do adjuvante clássico, – o alumínio, usado há mais de 80 anos, há referir actualmente:
    • o MPL (lípido A monofosforil), já aprovado;
    • a combinação de alumínio e MPL (AS04), utilizada numa vacina contra o papiloma vírus humano (vacina HPV bivalente Cervarix®); e
    • o MF59, utilizado numa vacina contra a gripe (Fluad®).

    Estes novos compostos permitem aumentar a magnitude e qualidade da resposta imunológica em função de cada doença-alvo e utilizar menor dose de antigénio.

  2. A vacinologia reversa, decorrente da capacidade de sequenciação do genoma dos microrganismos permite a investigação do seu repertório antigénico potencial e a escolha dos genes mais adequados para a vacina.A vacina contra N. meningitidis B (MenB) foi a primeira em que se utilizou esta técnica. Não era possível uma vacina de subunidades, quer pela semelhança entre a sua cápsula polissacarídica da N. meningitidis B e um self-antigénio, quer pela grande variabilidade dos antigénios proteicos da membrana externa. Bexsero®, a primeira vacina com cobertura alargada para MenB, foi aprovada pela Comissão Europeia em Janeiro de 2013;
  3. O desenvolvimento de técnicas de estimulação da imunidade celular veio mudar o paradigma da vacinologia cujo investimento científico se tem centrado na protecção decorrente da imunidade humoral, traduzida pela produção de anticorpos específicos. Partindo da constatação de que as vacinas vivas induzem respostas associadas à imunidade celular, a utilização de um vector (poxvírus aviário, BCG, e mutantes do adenovírus), no qual são incorporados genes do agente contra o qual se pretende imunizar, induzirá forte resposta da imunidade celular. Esta tecnologia é um desafio para os investigadores, dadas as perspectivas de concretização de vacina contra o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e citomegalovírus (CMV);
  4. A utilização do genoma microbiano para a codificação de proteínas protectoras vai permitir a utilização de vacinas para além das doenças infecciosas, com potencial na contracepção, cessação tabágica e na prevenção da cárie dentária;
  5. Por fim, uma referência à pesquisa quanto à administração das vacinas no sentido de ultrapassar a necessidade de seringa e agulha, que cada vez mais são um obstáculo à adesão aos programas de vacinação. A via intranasal já é usada na vacina viva contra a gripe, encontrando-se em investigação outras vias, nomeadamente a via transcutânea, a via oral, e por aerossóis.

Importância das vacinas

Aspectos epidemiológicos

A imunização activa através da aplicação de vacinas é considerada, entre todas as medidas de saúde pública, a que melhor relação custo-benefício tem evidenciado. A história das vacinas é uma história de sucesso: a sua aplicação sistematizada sob a forma de programas ao longo de décadas e as campanhas de vacinação coordenadas pela OMS contribuíram para melhorar o panorama da saúde a nível global com diminuição significativa da taxa de mortalidade, principalmente a mortalidade infantil por varíola, difteria, poliomielite, tétano, sarampo e tosse convulsa. Estima-se que as vacinas previnem cerca de seis milhões de óbitos anualmente (OMS).

A erradicação é um objectivo futuro para algumas doenças de transmissão inter-humana exclusiva e para as quais existem vacinas comprovadamente efectivas. Até à data só a varíola foi eliminada (OMS, 1980), permitindo a descontinuidade da vacinação a nível global.

A próxima doença-alvo da erradicação é a poliomielite. Se bem que as coberturas vacinais elevadas com a vacina oral (OPV) tenham permitido a erradicação do vírus da poliomielite tipo 2, a transmissão dos tipos 1 e 3 mantém-se ainda (2016) no Paquistão e no Afeganistão.

A OMS/UNICEF pretende a eliminação progressiva do sarampo em todas as regiões do globo (e posterior erradicação), o que implica 95% de cobertura vacinal de um esquema com duas doses da vacina contra o sarampo. Portugal é um país com certificação (OMS- Europa 2015) da eliminação do sarampo. Contudo, a eliminação não remove o risco de reintrodução da doença, sendo crucial garantir a vigilância epidemiológica e coberturas vacinais elevadas para as duas doses.

Para doenças de reservatório ambiental, como o tétano, a erradicação nunca será possível, sendo o controlo da doença dependente da vacinação do maior número possível de pessoas e da sua protecção individual.

Benefícios para a sociedade

Os programas de vacinação requerem recursos económicos para infraestruturas (por ex. cadeia do frio), compra de vacinas e recursos humanos. No entanto, a mortalidade e morbilidade prevenidas pela vacinação traduzem-se a longo prazo em economia de custos e crescimento económico.

A introdução de vacinas combinadas nos programas de vacinação, com administração simultânea de vários antigénios, trouxe benefícios adicionais, nomeadamente a potencial maior adesão e maior facilidade na introdução de novos antigénios, permitindo manter os esquemas vacinais. As vacinas geram ganhos em saúde essencialmente através da protecção pré-exposição, base dos programas de vacinação. Algumas vacinas podem proteger em situações de pós-exposição, como é, por exemplo, o caso das vacinas contra o sarampo e contra a hepatite B.

Diminuição de complicações de doenças evitáveis

Este tópico aplica-se de modo significativo a diversas formas de morbilidade como síndroma de rubéola congénita, cirrose hepática, cancro por hepatite B crónica, lesões neurológicas causadas por vírus do sarampo ou meningite por Haemophilus influenza b e Neisseria meningitidis serogrupo C. Em comparação com a doença aguda, estas complicações têm um maior impacte a longo prazo. A inclusão recente de outras vacinas, como a vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae vai permitir incrementar os ganhos em saúde.

Imunidade de grupo

As vacinas (com excepção da vacina contra o tétano) não protegem apenas os vacinados, mas reduzem também a incidência da doença nos não vacinados através da “imunidade de grupo”. A imunidade de grupo permite a eliminação de várias doenças com uma cobertura vacinal inferior a 100% porque a vacinação reduz a disseminação do microrganismo alvo da vacinação, anulando ou diminuindo significativamente a probabilidade de colonização e transmissão.

Prevenção do cancro

Os agentes infecciosos podem causar cancro. Tal é o caso das associações hepatite B crónica – carcinoma hepatocelular, do vírus HPV – carcinoma do colo do útero (e também da vulva, vagina, ânus, pénis, cervical). A diminuição do carcinoma hepatocelular em consequência da vacinação contra a hepatite B já foi demonstrada em Taiwan, China. A redução da incidência do carcinoma do colo do útero é expectável com a vacinação contra HPV, esperando-se maiores ganhos em saúde com a substituição, no PNV 2017, da vacina tetravalente pela vacina nonavalente.

 Prevenção do desenvolvimento da resistência antibiótica

Ao reduzir os casos de doença e a consequente necessidade de antibióticos, a vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae é um instrumento de diminuição da prevalência de estirpes resistentes aos antibióticos. A título de exemplo, nos EUA a introdução da vacina conjugada contra Streptococcus pneumoniae heptavalente para vacinação na infância no ano 2000 condicionou, numa avaliação efectuada em 2004, uma redução de 57% na doença invasiva causada por estirpes resistentes à penicilina, e 59% de redução na doença invasiva por estirpes multirresistentes. Esta redução, maior nos grupos-alvo da vacinação, estendeu-se a todos os grupos etários apesar de a vacina ser inicialmente recomendada apenas na infância.

 Protecção contra doenças associadas

Algumas vacinas conferem também protecção contra doenças associadas à doença-alvo da vacinação, aumentando os ganhos em saúde decorrentes da vacinação. A vacina contra a gripe sazonal, cujo objectivo principal é a proteção contra a gripe, protege adicionalmente contra complicações bacterianas associadas, nomeadamente pneumonia; a vacina conjugada contra S. pneumoniae, dirigida primariamente à protecção contra a doença invasiva, protege também contra a doença não invasiva, como otite e pneumonia não bacteriémica.

Mecanismos de acção das vacinas

A acção das vacinas assenta na activação dos mecanismos imunológicos protectores do receptor da vacina, nomeadamente:

  • Estimulação da formação de anticorpos, da imunidade celular, ou de ambas;
  • A protecção conferida pela maioria das vacinas é mediada primariamente por linfócitos B, requerendo na maioria, a cooperação dos linfócitos T, células CD4 Helper. Estas respostas, dependentes de linfócitos T ou células-T dependentes, tendem a induzir memória imunológica e níveis elevados de anticorpos;
  • As vacinas dependentes de linfócitos T, que incluem antigénios proteicos, induzem respostas imunológicas eficazes em crianças de idade inferior a 2 anos;
  • As vacinas de antigénios polissacarídeos induzem respostas pelos linfócitos B independentes (sem a cooperação de linfócitos T) com fraca resposta imunológica em crianças de idade inferior a 2 anos, sendo a imunidade conferida de curta duração;
  • Os anticorpos produzidos podem inactivar toxinas, neutralizar vírus, prevenir a sua ligação a receptores celulares, facilitar a fagocitose e destruição bacteriana, interagir com o complemento promovendo a lise bacteriana e prevenir a sua adesão às superfícies das mucosas.

A avaliação da resposta imunológica à maioria das vacinas inclui a medição do nível de anticorpos séricos. Embora a detecção de determinado nível sérico se possa considerar protectora e indique imunidade após vacinação, a diminuição ao longo do tempo não significa necessariamente susceptibilidade à doença respectiva. Com efeito, a maioria das vacinas induz memória imunológica, pelo que uma nova administração do antigénio, ou uma resposta anamnéstica após exposição, garante protecção contra a doença.

Tipos de vacinas

Vacinas vivas (atenuadas)

Contêm estirpes modificadas de um agente patogénico (bactéria ou vírus) que foram enfraquecidas (atenuadas) por passagens por um hospedeiro não natural ou por um meio desfavorável. Mantêm a capacidade de se multiplicar no hospedeiro e induzem uma forte resposta imunitária.

A base das vacinas vivas atenuadas reporta-se aos primórdios da história da vacinação com o procedimento realizado por Jenner atrás referido; no entanto, a vacina contra a varíola foi a única vacina viva produzida a partir de estirpes que são patogénicas em animais, mas não em pessoas (vacina heteróloga).

Como exemplos de vacinas vivas citam-se: BCG, VASPR (vacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola), vacina contra a varicela e contra rotavírus e a vacina oral viva contra a poliomielite (VAP) substituída em 2006 pela vacina inactivada injetável (VIP).

Vacinas inactivadas

A utilização de microrganismos inactivados (mortos) foi desenvolvida por Daniel Salmon e Theobald Smith (1886). As técnicas de inactivação utilizam o calor, o formol, o formaldeído e outras substâncias.

As vacinas inactivadas podem ser:

  • constituídas pelo microrganismo na totalidade; são exemplos a vacina inactivada contra a poliomielite, a hepatite A ou a vacina de célula completa contra a tosse convulsa (substituída pela vacina acelular no PNV de 2006); ou
  • constituídas por fracções ou subunidades do agente infeccioso (vacinas subunitárias) de que são exemplos a vacina acelular contra a tosse convulsa, a vacina contra o papiloma vírus humano (HPV), e a vacina contra a hepatite B (VHB). Algumas vacinas utilizam os polissacáridos da cápsula bacteriana, de que é exemplo a vacina pneumocócica polissacarídea 23-valente.

Toxóides (vacinas contra o tétano e difteria)

Induzem protecção através da produção de anticorpos que inactivam as respectivas toxinas.

Vacinas conjugadas

Utilizam os polissacáridos da cápsula bacteriana em ligação covalente com proteínas transportadoras, o que rendibiliza a imunogenicidade (estimulação das células T e memória imunológica em crianças com idade inferior a 2 anos). Como foi referido antes, são exemplos as vacinas conjugadas contra Haemophilus influenza b, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis C. A vacina antipneumocócica Pn 13 (Prevenar 13Ò) é um exemplo de vacina conjugada polissacarídica contra 13 serótipos (ver adiante siglas e esquemas vacinais).

Vacinas obtidas por vacinologia reversa

Tal com foi descrito antes, trata-se de vacinas obtidas utilizando técnica de sequenciação do genoma, investigação do repertório antigénico potencial e a escolha dos antigénios mais adequados para a vacina. A vacina contra N. meningitidis B (MenB) foi a primeira (e única comercializada até à data) em que se utilizou esta técnica.

Vacinas combinadas

Estas vacinas incorporam simultaneamente vários antigénios (independentemente de se tratar de vacinas vivas ou inactivadas). As primeiras vacinas utilizadas com estas características foram a DTP (vacina contra difteria, tétano e tosse convulsa) e, muito mais tarde (década de 80) a VASPR (vacina contra sarampo, parotidite epidémica e rubéola). Posteriormente, as vacinas tetra (DTPa-Hib, DTPa-VIP), penta (DTPa-VIP/Hib) e hexavalentes (DTPa-VIP-VHB/Hib) permitiram reduzir significativamente o número de injecções nos programas de vacinação de rotina, contribuindo para maior humanização e adesão e facilitaram a concepção dos programas possibilitando a introdução de maior número de antigénios. A vacina antipneumocócica Pn 23 (PneumovaxÒ) é um exemplo de vacina polissacarídica combinada contra 23 serótipos, indicada a partir dos 2 anos por ser deficientemente imunogénica antes desta idade. (ver adiante siglas e esquemas vacinais)

Componentes não antigénicos das vacinas

Os referidos componentes incluem: os fluidos como veículos, os agentes que preservam e estabilizam os antigénios, e os adjuvantes.

Os fluidos, funcionando como veículos, podem ser água ou soro fisiológico estéril, ou fluidos em cuja composição entram proteínas em baixa concentração.

Os agentes preservativos, estabilizadores e antimicrobianos são acrescentados com a finalidade de inibir o crescimento bacteriano e prevenir a degradação do antigénio (por exemplo, gelatina, 2-fenoxietanol e determinados antimicrobianos etc.).

Desde há mais de uma década, as vacinas utilizadas nos programas de vacinação dos países desenvolvidos deixaram de conter, como preservativo, um composto mercurial, o timerossal. Esta foi uma medida de precaução, apesar de não estar demonstrado qualquer risco de toxicidade na sua utilização. Actualmente, este composto é utilizado apenas nalgumas vacinas multidose. Em Portugal, a única vacina multidose utilizada é a vacina BCG liofilizada, estirpe BCG Tokyo 172, produzida no Japão, que não contém timerossal. Esta vacina começou a utilizar-se em 2016, na sequência da cessação de fabrico da vacina unidose produzida na Europa (SSI, Dinamarca).

Os adjuvantes são incorporados em algumas vacinas para incrementar a resposta imunológica (inata e adaptativa) e poupar a quantidade de antigénio inoculado. Os adjuvantes mais utilizados, desde há mais de 80 anos, são os sais de alumínio.

As vacinas de fracções ou subunidades do agente infeccioso desencadeiam uma resposta imunológica de menor magnitude que as vacinas de microrganismos completos (vivas/inactivadas), pelo que a necessidade de adjuvantes é cada vez maior.

As vacinas com adjuvantes devem ser administradas em injeção IM profunda para evitar irritação local, formação de granuloma e necrose.

Eficácia, efectividade e falência das vacinas

Tal como qualquer outro fármaco, nenhuma vacina é 100% eficaz, 100% efectiva ou 100% segura. Definem-se a seguir tais características.

Eficácia vacinal

É a redução percentual da incidência de doença num grupo de pessoas vacinada contra essa doença, em comparação com um grupo de pessoas não vacinadas, em condições ideais de avaliação. A eficácia é determinada em ensaios clínicos, geralmente na fase de pré-licenciamento.

Efectividade vacinal

É a capacidade de a vacina se comportar no “mundo real” em relação a critérios de avaliação definidos, como por exemplo, a capacidade de prevenir a infecção, a capacidade de prevenir a doença, a capacidade de prevenir a doença grave ou ainda a capacidade de desencadear uma resposta imunológica eficaz e duradoura. Há autores que definem efectividade de uma vacina de um modo mais simples: a proporção de carga da doença que é evitável pela aplicação de determinada vacina em condições de “mundo real”.

A efetividade de uma vacina depende de vários fatores, nomeadamente:

  • Fatores do hospedeiro (receptor da vacina), como por exemplo: idade, co- morbilidades, exposição prévia ao agente para o qual a vacina protege, tempo decorrido desde a vacinação;
  • Características da vacina, como por exemplo: modo de administração, vacina viva versus inactivada, composição da vacina (por ex. adição de adjuvante);
  • Concordância da vacina com as estirpes, genótipos e serótipos circulantes.

Também é importante o conceito de custo-efetividade: a qualquer custo de uma vacina, quanto maior for a carga da doença e quanto maior a sua proporção evitável pela vacinação, mais custo-efectiva será a vacinação.

Falência vacinal

A falência vacinal é considerada uma reacção adversa à vacinação, sendo obrigatória a sua notificação ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. (ver adiante)

É importante realçar que quando a doença ocorre em pessoas previamente vacinadas, quer por falência vacinal primária, quer por falência vacinal secundária (ver adiante), é regra geral mais benigna que nos não vacinados. Tal é o caso da vacina contra a tosse convulsa e da vacina contra o sarampo.

A falência vacinal pode ser definida em função do objectivo clínico de cada vacina per se, ou seja, o que se pretende proteger (infecção versus doença versus doença grave), dificultando uma definição abrangente para todas as vacinas. A falência vacinal pode também ser definida em função de critérios imunológicos quando existem marcadores serológicos de protecção. Apesar destas dificuldades, podem ser consideradas as seguintes definições:

  • Falência vacinal confirmada – ocorrência de uma doença evitável pela vacinação numa pessoa que está correcta e completamente vacinada, tendo em consideração o período de incubação da doença e o período que decorre entre a vacinação e a protecção contra essa doença. Esta definição requere confirmação clínica, laboratorial (ou link epidemiológico com um caso confirmado) de que a doença é evitável pela vacinação (incluindo, quando aplicável, a identificação do serogrupo, serótipo, genótipo);
  • Falência vacinal suspeita – ocorrência de doença evitável pela vacinação numa pessoa que está correcta e completamente vacinada, mas não há demonstração de que a doença seja evitável pela vacina (por ex. doença pneumocócica de serótipo desconhecido numa pessoa com vacinação pneumocócica completa);
  • Falência imunológica – não desenvolvimento, para determinada vacina, de um nível de anticorpos que seja considerado protector, o que implica a avaliação serológica do vacinado num intervalo de tempo apropriado após terminar a vacinação. Há que distinguir entre a falência vacinal primária, em que logo após a vacinação completa não existe seroconversão, e a falência vacinal secundária, com diminuição progressiva dos anticorpos protectores (waning immunity) ao longo do tempo. Na falência vacinal primária há falha na resposta imunológica à vacinação, o que acontece em 5% a 10% das crianças vacinadas com a vacina VASPR aos 12 meses. A maioria das pessoas que não responde à primeira dose responderá à segunda. A segunda dose da vacina VASPR aos 5 anos não é um reforço, mas sim uma segunda oportunidade de imunização. A falência vacinal secundária (waning immunity) ocorre raramente com a vacina VASPR, não tendo um papel significativo na transmissão e nos surtos de sarampo. Pelo contrário, parece ser um factor determinante na ocorrência de tosse convulsa em crianças vacinadas, adolescentes e adultos.

A falência vacinal depende de vários factores, nomeadamente:

  • Factores do hospedeiro (receptor da vacina):
    • Imunodeficiência ou terapêutica imunossupressora, por resposta imunitária diminuída ou ausente após a vacinação;
    • Idade, quer a maturação imunológica do crescimento, quer a imuno-senescência com diminuição da resposta imunitária, mais notória a partir dos 65 anos de idade;
    • Resposta imunológica diminuída (em receptor não imunodeficiente) a um ou mais componentes antigénicos da vacina, estirpes vacinais ou serotipos;
    • Interferência devido a outros agentes infecciosos (por ex. a infecção por enterovírus pode interferir com a resposta imunológica à vacina oral contra a poliomielite, OPV, não incluída no PNV de Portugal desde 2006, quando foi substituída pela vacina inactivada VIP);
    • Diminuição progressiva dos anticorpos protectores;
    • Interferência imunológica, por exemplo: anticorpos maternos e resposta do lactente à primovacinação (significado clínico em estudo), administração de imunoglobulinas e resposta à VASPR;
    • Infecção pré-existente (por ex. genótipo de HPV incluído na vacina) ou vacinação durante o período de incubação (por ex. em situações de pós-exposição);
    • Estado de saúde debilitado (por ex. subnutrição).
  • Características da vacina
    • Cobertura incompleta para estirpes, serótipos, genótipos, variantes antigénicas, mutantes de escape, que podem causar a doença;
    • Interferência antigénica ou interacções entre vacinas;
    • Relacionadas com o fabrico (variação de lote).
  • Esquema vacinal e administração
    • Erro de administração (via, dose inadequada);
    • Não cumprimento do esquema vacinal (ex. sem respeitar intervalos mínimos, séries primárias incompletas, ausência dos reforços recomendados). Estes casos configuram uma “falência da vacinação”, não uma “falência vacinal” propriamente dita;
    • Erros de armazenamento, relacionados com a cadeia do frio;
    • Administração para além do prazo de validade.

Segurança das vacinas e reacções adversas

Para as vacinas são exigidos padrões de segurança mais rigorosos do que para os outros fármacos porque, ao contrário destes, destinados a pessoas doentes, as vacinas são aplicadas a pessoas saudáveis para prevenção de doenças. De facto, a tolerância da sociedade às reacções adversas a produtos administrados a pessoas saudáveis, especialmente lactentes e crianças, é muito baixa.

Avaliação e monitorização da segurança das vacinas

A comercialização e inclusão de uma vacina num programa de vacinação são resultado de um trabalho de anos de desenvolvimento científico e tecnológico. Só uma pequena percentagem de “potenciais candidatos” a vacinas chegam ao licenciamento. Os custos da pesquisa e desenvolvimento de vacinas são extremamente elevados.

As vacinas são submetidas a avaliações de segurança e eficácia muito rigorosas:

  1. Desenvolvimento pré-clínico – inclui a identificação dos antigénios relevantes para a vacina e testes de eficácia em tubo e em animais de laboratório.
  2. Desenvolvimento clínico – inicia-se com os primeiros testes em humanos, segundo princípios éticos rigorosos e consentimento informado.
    Fase I – Ensaios clínicos em pequena escala, com 20 a 100 voluntários para avaliar a segurança (detecção de reacções adversas graves) e o tipo de resposta imunológica.
    Fase II – Ensaios clínicos de maior amplitude, com algumas centenas de voluntários, e mais prolongados (alguns meses até três anos) para avaliar a eficácia contra a infecção artificial e a doença clínica, e determinar a melhor dose e o número de doses necessárias para que o “produto candidato a vacina” seja efectivo e seguro.
    Fase IIIEnsaios clínicos de larga escala, com centenas a alguns milhares de voluntários, que podem durar alguns anos e decorrem geralmente em diversos locais. Têm por objectivo avaliar a eficácia em condições naturais, determinando a sua efectividade e segurança. Em função dos resultados, a vacina pode ser licenciada/comercializada.
    Fase IVTambém chamada vigilância post-marketing; tem por objectivo detectar reacções adversas raras, reacções retardadas ou em subpopulações, que não tenham sido detectadas antes do licenciamento.

Reacções adversas

Se bem que a quase totalidade das reacções adversas associadas às vacinas seja de importância minor, predominantemente reacções locais e autolimitadas, há referência a eventos graves ocorrendo muito raramente, pelo que a notificação de tais eventos é muito importante. A avaliação atempada permite distinguir entre verdadeiras reacções às vacinas e eventos coincidentes ou temporalmente associados, mas não relacionados com a vacinação. A investigação dos eventos que ocorrem após a vacinação e a avaliação contínua dos riscos/benefícios de cada vacina são muito importantes para aferir e ajustar as recomendações, como aconteceu em 2012 com a substituição, no PNV, da vacina viva atenuada e oral contra a poliomielite (VAP) por uma vacina inactivada injectável (VAP). Esta alteração teve como objectivo a eliminação do risco muito baixo de ocorrência de um caso de poliomielite provocado pelo vírus vacinal (por administração da vacina viva), uma vez que estava disponível uma vacina mais segura (a vacina inactivada VIP) e que a doença por vírus selvagem estava eliminada na Região Europeia.

As reações adversas podem ser classificadas:

  1. Quanto à frequência (casos de reacções adversas por número de pessoas vacinadas) – as reacções adversas notificadas são listadas de acordo com as seguintes categorias: Muito frequentes (≥1/10); Frequentes (≥1/100 a <1/10); Pouco frequentes (≥1/1.000 a <1/100); Raras (≥1/10.000 a <1/1.000); Muito raras (<1/10.000).
  2. Quanto à gravidade – ocorrência que leva a óbito, ou que põe em risco a vida, ou que resulta em internamento/prolongamento de internamento hospitalar, ou que determina incapacidade significativa permanente.
  3. Quanto à causalidade – na avaliação da causalidade são utilizados os graus de probabilidade definidos pela OMS: Definitiva; Provável; Possível; Improvável; Condicional/Não Classificada; Não classificável.
  4. Quanto à possibilidade de prevençãosituações intrínsecas à vacina: por exemplo, defeito de produção ou defeito de administração da vacina.

Notificação de reacções adversas

A notificação das reacções adversas às vacinas é dirigida ao Sistema Nacional de Farmacovigilância (SNF), coordenado pelo INFARMED. Monitoriza a segurança dos medicamentos com autorização de introdução no mercado (AIM) nacional, através da avaliação dos problemas relacionados com reacções adversas aos medicamentos (RAM) e implementação de medidas de segurança, sempre que necessário.

  1. Quando notificar uma reação adversa? Basta que exista uma suspeita, devendo a informação disponível ser enviada ao INFARMED logo que possível.
  2. Quem pode notificar uma reação adversa? As suspeitas de reacções adversas podem ser notificadas por profissionais de saúde como médicos, farmacêuticos, enfermeiros, médicos dentistas ou técnicos de farmácia, e por utentes.
  3. Para que serve a notificação? Permite a monitorização contínua da segurança dos medicamentos existentes no mercado, permitindo identificar potenciais reacções adversas novas, quantificar e/ou melhor caracterizar reações adversas previamente identificadas, e implementar medidas que permitam minorar o risco da sua ocorrência.
  4. Como notificar uma reacção adversa?
    On line no Portal RAM, com acesso através de → farmacovigilancia@infarmed.pt – Notificação de Reacções Adversas ao Medicamento ou Por preenchimento no Portal RAM, com acesso através de àfarmacovigilancia@infarmed.pt, e envio de formulário específico e adequado a cada caso, ao INFARMED, IP ou às Unidades Regionais de Farmacovigilância: Ficha de notificação para profissionais de saúde ou Ficha de notificação para utentes.

Por se tratar de medicamentos biológicos, nas notificações relativas a vacinas é fundamental que os profissionais de saúde e os utentes identifiquem o nome comercial da vacina bem como o respectivo número de lote.

A reacção adversa também deve ser comunicada ao médico assistente e ao responsável pela vacinação.

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MORDEDURAS E PICADAS

Importância do problema

Os problemas clínicos relacionados com mordeduras e picadas por animais chamados venenosos são, não só pouco frequentes em crianças e adolescentes vivendo no meio urbano, como comportam baixa morbilidade e mortalidade. No que respeita às mordeduras, as situações mais prevalentes são, dum modo geral, as produzidas por animais domésticos, especialmente cães (a maioria ~80%) e gatos (~5%). As mordeduras produzidas por animais não domésticos (ratos, coelhos, répteis, etc.), assim como as lesões ou picadas por animais marinhos e insectos venenosos, constituem uma minoria (~1-2% conforme o meio em que a criança vive ou frequenta). No nosso meio é pouco comum ter primatas como animais de companhia.

Dum modo geral as lesões por mordedura de animais localizam-se nas extremidades; as lesões na face observam-se quase invariavelmente em crianças pequenas.

Neste capítulo é dada ênfase às lesões por mordedura de cão, gato, primata e réptil venenoso, assim como às lesões e picadas por animais marinhos e insectos venenosos.

1. MORDEDURA POR CÃO

Manifestações clínicas e factores etiológicos infecciosos

As lesões resultantes deste tipo de mordedura são variáveis, quer em extensão, quer em profundidade: entre feridas simples (punctiformes ou lineares) ou feridas múltiplas (lacerações e abrasões) e até amputações. Poderão ser atingidos, para além da pele, outras estruturas como vasos, nervos, músculos e tendões, deduzindo-se destas circunstâncias as implicações em termos de manifestações clínicas, as quais também dependem da localização.

Surgem frequentemente infecções de localização muito diversa como complicação, sobretudo por anaeróbios; tal depende das condições ambientais em que se verificou a lesão, do microbioma bucal do animal e do tempo decorrido entre a ocorrência e o início do tratamento.

Existe risco de infecção da pele e tecidos moles por S. viridans, S. aureus, Pasteurella multocida, Bacteróides sp, Fusobacterium sp, e Capnocytophaga canimorsus (DF-2). Este último agente pode dar origem a septicémia com CID em doentes asplénicos.

Tratamento

Como cuidados gerais iniciais, deve lavar-se a ferida com soro fisiológico estéril, de preferência com seringa, dirigindo o soro em jacto; em alternativa, com povidona iodada (Betadine®) diluída a 1%. De facto, uma lesão deste tipo deve ser sempre considerada ferida suja ou contaminada. Poderá haver necessidade de proceder a excisão de tecidos desvitalizados.

No âmbito dos cuidados iniciais, hospitalares ou em centro médico-cirúrgico, sob anestesia local ou no bloco operatório, deve proceder-se à excisão dos tecidos desvitalizados, retirando eventuais corpos estranhos. Como regra geral, é prudente não realizar suturas pelo risco de infecção, sobretudo se o tempo decorrido for > 8 horas após a mordedura. Tratando-se de lesão num membro, poderá estar indicada a imobilização do mesmo durante 3-5 dias.

Medidas profilácticas

A antibioticoterapia profiláctica está indicada sempre que a mordedura tenha ocorrido há mais de 8 horas, em feridas da face, profundas e em pacientes imunodeprimidos (amoxicilina+ácido clavulânico na dose de 40 mg/kg da primeira, por via oral durante 7 dias; ou ceftriaxona – 80 mg/kg IM em dose única); ou doxicilina PO em doentes com > 8 anos (dose inicial: 4 mg/kg; doses seguintes: 2 mg/kg em 1-2 doses). Em casos especiais poderá estar indicado proceder a exames culturais da ferida.

Está indicada a profilaxia da raiva nos cães não vacinados e reforço de 1 dose de vacina antitetânica – 0,5 mL por via IM.

Nos casos de feridas sujas (raros no panorama actual no nosso país – eventualmente cidadãos estrangeiros) não previamente vacinados, está indicada imunoglobulina antitetânica seguida de vacinação. Nos casos de ferida limpa, deve iniciar-se a vacinação.

No que respeita à profilaxia da raiva, cabe referir que a mesma está indicada se o estado de saúde do animal (que deve ser capturado e observado durante 10 dias) o justificar com base na decisão do delegado de saúde e autoridade veterinária. Em Portugal não há casos notificados de raiva na espécie humana desde há mais de meio século.

2. MORDEDURA/ARRANHÃO POR GATO

Manifestações clínicas

Frequentemente o gato origina mordeduras perfurantes nos membros, pescoço, tronco, fronte e face; outro tipo de lesão é o arranhão.

As complicações mais frequentes são as infecções da pele e tecidos moles (celulite, tenossinovite, linfangite) por Staphylococcus aureus, Streptococcus beta hemolítico do grupo A, Capnocytophaga canimorsus, Pasteurella multocida e Bartonella hensalae. Relativamente a este último germe microbiano é feita referência especial em capítulo próprio na Parte sobre Infecciologia.

Tratamento e medidas profilácticas

Aplicam-se os mesmo princípios gerais enunciados a propósito da mordedura por cão.

3. MORDEDURA POR RATO

Como resultado da mordedura do rato poderão surgir infecçõs da pele e tecidos moles, possivelmente causadas por Streptobacillus moniliformis ou Spirillum minus.

Em termos profilácticos, têm indicação as medidas locais referidas a propósito da mordedura por cão e gato.

Surgindo infecções da pele e tecidos moles, os antibióticos de primeira escolha são: penicilina G IM ou amoxicilina/clavulanato durante 10 dias. Como alternativa pode empregar-se doxiciclina em idades > 8 anos.

4. MORDEDURA POR PRIMATA

Embora no nosso meio, como se disse, não seja habitual a convivência com macacos, importa referir uma particularidade relacionada com o risco de transmissão de agentes como S. viridans, S. aureus, S. pyogenes, Eikenella corrodens, Bacteróides sp, Fusobacterium sp e vírus herpes.

Está indicada investigação serológica sobre VIH, VHB, VHC e Vírus herpes, dados os riscos de contrair infecções por estes agentes.

No caso de agentes bacterianos é possível o surgimento de infecções da pele e tecidos moles. Nesta perspectiva, para além doutras medidas de profilaxia abordadas na Parte sobre Infecciologia, caso surjam infecções da pele e tecidos moles, a antibioticoterapia de eleição contempla a amoxicilina-clavulanato (dose de amoxicilina: 30-60 mg/kg/dia PO ou IV em 3 doses); como alternativa: cefoxitina IV ou IM (75-200 mg/kg/dia em 3-4 doses), ou clindamicina IV, IM ou PO (15-40 mg/kg/dia em 3-4 doses) + cotrimoxazol (PO ou IV na dose de sulfametoxazol de 40-100 mg/kg/dia em 2-4 vezes, ou ciprofloxacina PO se > 18 anos: 10-30 mg/kg/dia; duração da antibioticoterapia -10 dias.

Deve proceder-se à lavagem da ferida ou feridas com água e sabão durante 3-5 minutos e nos primeiros minutos após o evento.

Para além da profilaxia da raiva, poderá ser necessária a limpeza cirúrgica da ferida e desinfecção com soluto iodado. No caso do globo ocular, se afectado, para além da indicação de observação por oftalmologista, como primeiros cuidados citam-se irrigação com soro fisiológico durante 15 minutos dado o risco de transmissão do vírus herpes; se não existir soro fisiológico, deve utilizar-se água corrente.

Está também indicada, como profilaxia, a administração de aciclovir PO quando as lesões são profundas, em crianças com > 6 anos durante 5 dias na dose de 800 mg de 4-4 horas, 5 vezes/dia.

5. MORDEDURA POR SERPENTE VENENOSA

Etiopatogénese e importância do problema

As serpentes venenosas existentes no nosso país e na Europa pertencem fundamentalmente a três espécies: Vipera aspis, Vipera latasti (víboras) e a Macroprotodon cuccullatus; esta última raramente inocula veneno porque tem dentes muito posteriores.

As víboras distinguem-se das restantes serpentes pelas seguintes características:

  • comprimento em geral inferior a 1 metro; versus maior;
  • cabeça achatada, larga e triangular; versus arredondada/ovóide;
  • pupilas elípticas; versus circulares;
  • apêndice nasal em forma de chifre; versus ausente;
  • dentes ou colmilhos em forma de garra aguçada, anteriores; versus

O veneno destes animais é proteolítico e coagulante em pequena dose; se inoculado em grande dose tem efeito hemolítico e anticoagulante. Não há casos registados de mortes por picada de víboras no nosso país. Tratando-se de um veneno hemotóxico, poderão surgir fenómenos hemorrágicos e trombóticos.

Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações clínicas variam em função do tamanho do animal, da idade e estado de saúde da criança, assim como do local da picada; a gravidade é tanto maior quanto maior o tamanho do animal e mais proximal o local da agressão.

A picada identifica-se por duas pequenas marcas ou orifícios separados entre 6 e 10 mm, sendo também possível identificar a marca de um colmilho ou mais de uma mordedura. Nos minutos que se seguem à mordedura, verifica-se inflamação localizada, com dor e edema variáveis. Se nos 30 minutos seguintes não se verificar reacção inflamatória local, é provável que a inoculação do veneno tenha sido escassa.

Para além dos fenómenos locais descritos, outros como flictenas, necrose, linfangite e tromboflebite poderão surgir. No caso de inoculação sistémica importante poderão surgir náuseas, vómitos, CID, choque, HTA, IRA, anemia hemolítica, convulsões, choque anafiláctico, rabdomiólise, etc.. São critérios de gravidade idade < 5 anos e lesões na face, pescoço e tronco.

Como prioridade, para além de ser fundamental proceder a colheita de sangue para hemograma e estudo da coagulação, o quadro descrito implica monitorização do doente durante um período ~24 horas, e evacuação para UCIP no caso de surgirem sinais de doença sistémica com disfunção multiorgânica.

Tratamento inicial

Imediatamente após a mordedura são estabelecidas as seguintes medidas gerais:

  • imobilização do membro afectado, colocando-o em posição inferior ao tronco;
  • arrefecimento local moderado (saco de água fria separado da pele com toalha);
  • limpeza da ferida com água e sabão e, posteriormente, com peróxido de hidrogénio;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno) – o ácido acetilsalicílico, hoje só utilizado em situações especiais, pode potenciar o efeito do veneno;
  • antibioticoterapia (ceftriaxona – 80 mg/kg em dose única IV);
  • profilaxia antitetânica, inclusivamente nos doentes vacinados (1 dose de reforço).

Tratamento hospitalar (UCIP)

  • limpeza da ferida com excisão dos tecidos no caso de necrose;
  • imobilização e (agora) elevação do membro;
  • sedação com diazepam se houver agitação;
  • heparinoterapia se existir CIVD;
  • fasciotomia se existir edema compressivo (síndroma compartimental);
  • soro anti-ofídio com indicações muito precisas dado o risco de choque anafiláctico; por outro lado, o efeito é duvidoso, sendo que os corticóides e os anti-histamínicos não modificam a evolução do processo.

Nota: Não se deve garrotar o membro atingido nem fazer incisão no local da mordedura por aumentar o risco de disseminação do veneno; também o socorrista não deverá proceder à sucção da ferida.

6. LESÕES E PICADAS POR ANIMAIS MARINHOS

Nesta alínea é dada ênfase à picada pelo peixe-aranha e às lesões por medusa, anémona e hidra.

Etiopatogénese

O peixe-aranha, com duas variedades principais – uma de menor comprimento ~15 cm, e outra com cerca de 55 cm tem espinhos venenosos numa das duas barbatanas dorsais, e em torno dos opérculos branquiais. Podendo estar enterrado na areia da praia, ao ser pisado inocula o veneno neurotóxico, não deixando habitualmente o espinho; ao ser manuseado ou pisado depois de morto, sua picada continua a ser venenosa.

No caso da medusa, anémona e hidra, o veneno, actuando por contacto, é libertado por determinadas células chamadas nematocistos, as quais funcionam como reservatório do veneno.

Manifestações clínicas

No caso do peixe-aranha, a picada localizada nas mãos ou pés provoca dor intensíssima e edema duro de dimensões varáveis; poderão surgir sintomas e sinais gerais como hipertermia, náuseas, vómitos, ansiedade, cefaleia, cãibras, dificuldade respiratória, sudação, vertigens, etc..

Tratando-se dos problemas provocados por medusa, anémona e hidra há a particularizar o aparecimento de lesões de tipo urticária com disposição grosseiramente linear.

Tratamento

Nas picadas por peixe-aranha recomenda-se:

  • desinfecção local e eventual extracção do espinho se partido ou espetado;
  • imersão imediata (nos primeiros 30 minutos para garantir eficácia) em água a 45º durante cerca de 30-60 minutos, uma vez que o veneno é termolábil;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno, eventualmente opiáceos);
  • infiltração com lidocaína em situações não respondentes às medidas anteriores;
  • profilaxia antitetânica;
  • antibioticoterapia profiláctica durante 3 dias (amoxicilina + ácido clavulânico).

Nas lesões por medusa, anémona ou hidra:

  • lavagem suave, sem exercer pressão, da zona da lesão com água salgada – e não com água doce pela possibilidade de ruptura das células contendo o veneno, o que poderá libertar mais tóxico, agravando a situação;
  • limpeza de seguida com vinagre (ácido acético a 5%) durante 30 minutos;
  • extracção de eventuais restos aderentes do animal com luvas;
  • corticóides tópicos;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno);
  • antibiótico tópico.

Não estão indicadas aplicação de penso oclusivo nem antibioticoterapia profiláctica sistémica.

7. PICADAS POR INSECTOS VENENOSOS

Etiopatogénese e importância do problema

Além dos himenópteros (englobando abelhas, vespas e formigas), outros insectos poderão estar implicados, como mosca, certos aracnídeos (carraça e lacrau, e um tipo de aranha conhecida como viúva negra).

A viúva negra, que produz uma potente neurotoxina (a alfa-latrotoxina) – distingue-se doutras pelo corpo esferóide, preto brilhante, com uma marca vermelha “em vidro de relógio” no abdómen. A referida neurotoxina liga-se às membranas neuronais pré-sinápticas causando libertação de acetilcolina e nor-adrenalina ao nível da junção neuromuscular. Como resultado da libertação destes neurotransmissores, surge despolarização muscular excessiva e hiperactividade do sistema autónomo.

A carraça produz também uma neurotoxina. Quanto aos lacraus cabe referir que a variedade negra não produz veneno tóxico, ao contrário da amarela.

Manifestações clínicas

A picada por himenópteros em geral origina reacção local com aparecimento de pápulas pruriginosas. Poderão surgir reacções de hipersensibilidade ao veneno traduzidas por choque anafiláctico e, em casos menos graves, de forma retardada sob a forma de urticária papular. Como regra, pode considerar-se que quanto mais curto é o intervalo entre a picada e o início dos sintomas, mais exuberante é a reacção.

No caso da picada por carraça poderá surgir paralisia flácida do tipo Guillain-Barré por inoculação de neurotoxina, sendo tal quadro clínico reversível com a extracção do aracnídeo.

Nas picadas de moscas, aparentemente irrelevantes, está indicado apenas tratamento sintomático. A picada por lacrau origina dor local muito intensa, edema e linfangite; a mesma tem maior relevância em crianças mais pequenas pela possibilidade de taquicárdia, arritmia e edema agudo do pulmão.

A picada da viúva negra origina reacções locais e sistémicas; na sua forma típica é indolor na primeira hora; ao cabo deste tempo surge dor local que rapidamente se generaliza pelo corpo, acompanhada de rigidez muscular regional, cefaleia, HTA, cãibras musculares e sinais muscarínicos (sialorreia, miose, hipersudorese e bradicárdia), náuseas, vómitos, irritabilidade, etc.. Em picadas nas extremidades poderão surgir lesões de necrose. Para decisão terapêutica é importante entrar em conta com quatro sintomas/sinais-chave: dor abdominal, HTA, mialgias e agitação/irritabilidade. (ver adiante)

Uma das formas de apresentação com dor abdominal, dor abdominal e rigidez muscular tipo “ventre em tábua” pode simular quadro de abdómen agudo relacionável com apendicite aguda ou peritonite. Na literatura antiga estão descritos casos fatais relacionados com laparotomia intempestiva, realizada no pressuposto de diagnóstico de apendicite aguda.

Tratamento

Nas picadas por himenópteros aplica-se tratamento que se pode generalizar a todas as picadas de insectos:

  • extracção imediata do ferrão (com pinça e não espremendo);
  • lavagem/limpeza da ferida;
  • arrefecimento com compressas geladas e elevação do membro (caso se trate de membro afectado) para combater o edema;
  • anti-histamínicos e analgésicos.

Nas reacções sistémicas, com internamento em UCIP, podem estar indicados:

  • adrenalina a 1/1.000 via SC na dose de 0,01 mL/kg;
  • corticóides sitémicos;
  • beta-agonistas se se verificar broncospasmo;
  • dopamina e cristalóides em caso de choque/hipotensão.

Nas picadas por carraça recomenda-se a extracção mediante impregnação com éter ou cloreto de etilo. Não está indicada antibioticoterapia profiláctica da febre escaronodular.

Nas picadas por lacrau deve aplicar-se gelo e, eventualmente proceder-se a infiltração de anestésico local quando a dor é muito intensa.

Nos casos de picada por viúva-negra:

  • tratamento sintomático, recomendando-se atropina se surgir síndroma muscarínica e gluconato de cálcio se surgirem cãibras;
  • a verificação de 3 ou menos dos sinais-chave anteriormente referidos com duração inferior a 12 horas estabelece indicação para tratamento conservador com benzodiazepinas e/ou opióides;
  • a verificação de 4 ou mais dos sinais-chave ou a hipótese anterior > 12 horas obrigam à utilização de soro antiveneno específico após prova intradérmica prévia a fim de avaliar risco de anafilaxia (em geral inferior a 1%).

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QUEIMADURAS. ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR

1. QUEIMADURAS E TRATAMENTO EMERGENTE

Definições e importância do problema

As queimaduras são lesões da pele e mucosas, de extensão e profundidade variáveis (lesões tridimensionais) que podem ser causadas por agentes físicos (líquidos quentes ou frios, corpos sólidos incandescentes, fogo, radiações ionizantes, corrente eléctrica), químicos corrosivos (fósforo, flúor, ácidos e bases fortes, hidrocarbonetos, medicamentos com acção na queratina) e biológicos (animais como a medusa, vegetais como látex, etc.).

Idênticas lesões podem ser consequências de fotossensibilidade em relação com a ingestão de sulfamidas, butazolidina ou difenil-hidantoína (síndroma de Leill).

A maioria das queimaduras em crianças é provocada por acidentes domésticos; dum modo geral são mais graves que no adulto. Com efeito, na criança as várias estruturas que formam a pele ainda não atingiram a maturação e são menos espessas. Por outro lado, os reflexos de defesa, consoante a idade, podem ainda não estar presentes.

Aspectos epidemiológicos

É sobretudo na faixa etária dos 0 aos 4 anos, com maior incidência aos 2 anos, que ocorrem queimaduras. É nesta fase de desenvolvimento psicomotor que a criança está mais activa na descoberta do ambiente que a rodeia: agarra, puxa, mete os dedos, corre pela casa sem se fazer notar, etc.. Os líquidos quentes são a principal causa de queimaduras neste grupo etário (60%): água a ferver, leite, chá, café, sopa, óleo alimentar, azeite, etc.); de salientar que cerca de 95% dos acidentes ocorrem na cozinha na presença de, pelo menos, um adulto.

Na faixa etária dos 5 aos 10 anos a água quente continua a ser a principal responsável, mas verifica-se um aumento importante dos acidentes com fogo, mais frequentemente associado a substâncias inflamáveis como o álcool ou a gasolina. As queimaduras eléctricas são mais frequentes no grupo etário dos 1-4 anos; e, a partir dos 10 anos, há um recrudescimento de acidentes por esta causa.

Nos Estados Unidos ocorrem em cada ano cerca de dois milhões de queimaduras, que originam internamento de 150.000 doentes. Neste país as queimaduras são causa de morte em 2.500 crianças por ano; e entre os sobreviventes, 50% requerem internamento superior a um mês. Por outro lado, as queimaduras são responsáveis por sequelas graves em cerca de 10.000 casos/ano. São também, em acidentes domésticos, a primeira causa de morte até aos catorze anos de idade.

Esta patologia pode, por outro lado, estar associada a casos de maus tratos infantis (entre 10-20% conforme as estatísticas). Este tipo de abuso é típico antes dos cinco anos de idade, apresentando um pico de incidência cerca dos 18 meses.

As queimaduras ocorrem também com incidência significativa em meios socialmente desfavorecidos e no contexto de crianças sozinhas durante longos períodos de tempo, sem vigilância adequada. Por isso, a principal medida com o objectivo de diminuir a incidência deste problema é a prevenção.

Etiopatogénese

A pele é constituída por uma camada superficial, a epiderme, uma camada intermédia, a derme ou mesoderme, e uma camada profunda, a hipoderme. Na epiderme encontram-se os queratinócitos, os melanócitos e as células de Langerhans. Na derme as células principais são os fibroblastos; nela existe uma rede densa, fibrosa, composta por colagénio, elastina e reticulina onde abundam os vasos sanguíneos, as terminações nervosas, as glândulas sebáceas e as estruturas pilosas. A hipoderme é constituída essencialmente por células adiposas.

A separação entre a epiderme e as camadas mais profundas é feita pela junção dermo-epidérmica ou membrana basal. (Figura 1)

Por efeito do agente agressor ocorre trombose vascular levando a hipóxia, isquémia e grau variável de disfunção e destruição celulares. Esta variação depende fundamentalmente da área afectada, do tipo e intensidade da acção do agente agressor, e da espessura da pele.

Na pele lesada por queimadura são identificadas três zonas no sentido da superfície para a profundidade. A zona externa (mais superficial) inclui tecido necrótico irrecuperável. Abaixo desta encontra-se zona de estase parcialmente viável, podendo evoluir para necrose. A zona adjacente à zona de estase é a chamada zona de hiperémia, dado que se verifica a esse nível incremento do fluxo sanguíneo associado a resposta inflamatória e imunitária.

Ao nível da superfície lesada, por alteração da permeabilidade capilar, verifica-se extravasão de fluidos e plasma para os tecidos vizinhos (edema), do que poderá resultar hipovolémia e choque.

A libertação de prostaglandinas provoca irritação das terminações nervosas sensitivas que se traduz clinicamente por dor. Nos casos de queimaduras de boca poderá haver edema e obstrução das vias respiratórias.

A resposta inflamatória à queimadura é constituída por uma fase vascular e uma fase celular. Inicialmente ocorre um curto período de vasoconstrição seguido de vasodilatação activa. Simultaneamente verifica-se afluxo à zona da lesão de vários mediadores inflamatórios, proteínas, macromoléculas assim como neutrófilos, monócitos e plaquetas. 

FIGURA 1. Esquema da pele

Os monócitos têm um papel central na modulação da resposta inflamatória. Os factores de coagulação e o complemento estimulam a migração celular e regulam a fase de resposta vascular.

A resposta imunitária processa-se nas seguintes fases: uma, inespecífica, ocorrendo logo no período inicial pós-queimadura; outra, constando de resposta celular e humoral mais tardia; e, finalmente por uma resposta específica linfocitária de natureza tímica e não tímica. Os elementos celulares referidos são fundamentalmente neutrófilos e macrófagos; e os elementos humorais integram factores de coagulação, fibrinogénio, complemento e fibronectina. A acção sinérgica dos linfócitos B pela produção de anticorpos específicos, e dos linfócitos T pela libertação de linfocinas, condiciona a resposta imunitária final.

A supressão da resposta imunitária nestes doentes é um fenómeno bem documentado. Tal fenómeno poderá contribuir para o agravamento clínico global do doente queimado e, designadamente, para o aparecimento de quadro séptico pós-queimadura explicável por compromisso da fagocitose e da quimiotaxia dos neutrófilos, por disfunção dos macrófagos, e diminuição da resposta linfocitária à estimulação mitogénica, dos níveis de IL-2, de fibronectina, de gamaglobulina, e da acção celular T-supressora.

A resposta metabólica às queimaduras cursa com um período inicial de hipometabolismo durante 48 horas, iniciando-se posteriormente um período de hipercatabolismo que pode originar perda importante de proteínas estruturais e de lípidos. Esta fase prolonga-se enquanto não se verifica reepitelização da área queimada, e agrava-se durante os episódios de infecção, o estresse pós-operatório e a colheita e colocação de enxertos cutâneos.

As queimaduras químicas, eléctricas e as provocadas por agentes inalados merecem uma referência especial.

As primeiras provocam desnaturação das proteínas e destruição celular. O grau de lesão depende do tempo de exposição, da concentração do agente e da sua solubilidade nos tecidos, sendo que os agentes alcalinos tendem a penetrar mais que os ácidos.

No caso das queimaduras eléctricas, o efeito lesivo não pode ser somente avaliado pela lesão verificada à superfície. Com efeito, uma vez que a corrente eléctrica segue a via dos tecidos com menor resistência, como consequência poderão surgir lesões “à distância”, ao longo dos nervos e vasos, e lesão miocárdica em grau variável, traduzida muitas vezes por arritmia.

Quanto às lesões inalatórias, exceptuando no caso do vapor de água a temperaturas elevadas, o calor provoca lesão apenas acima das cordas vocais. No que respeita à inalação de fumo, como consequência surge alteração da permeabilidade vascular pulmonar, do que pode resultar: edema pulmonar e destruição do surfactante pulmonar com consequentes diminuição da distensibilidade alveolar (compliance) e hipoventilação, culminando em insuficiência respiratória. Contudo, a maioria das lesões da via respiratória é atribuída a queimaduras por aspiração/inalação de produtos químicos como gases tóxicos, óxidos, aldeídos e produtos azotados.

A perda de integridade da pele expõe a criança ao ambiente exterior de agentes infecciosos como bactérias, vírus e fungos, ao mesmo tempo que leva à perda de fluidos e de temperatura corporal.

Em geral, as complicações secundárias das queimaduras estão ligadas à infecção e à ulterior cicatrização.

Quando a queimadura é profunda, o processo de cicatrização é prolongado, com formação, após 3-6 meses, de cicatriz hipertrófica relacionada com proliferação dos fibroblastos e neovasos, concomitantemente com aumento da produção de colagénio espesso e desorganizado. A cicatriz tem aspecto vermelho, é rosada, dura e pruriginosa; a partir do 9º-12º mês, este processo inflamatório diminui, adquirindo progressivamente a cicatriz o aspecto de cor rosada clara até atingir, pelo 18º-24º mês, o aspecto de pele normal.

No caso das queimaduras eléctricas poderão surgir sequelas tardias (meses ou anos) como cataratas e mielite transversa.

Na literatura tem sido descrita situação de carência em vitamina D como resultado das cicatrizes extensas.

Manifestações clínicas e classificação

De acordo com a profundidade das lesões, as queimaduras podem ser classificadas em 3 graus:

1° grau – As lesões estão confinadas à camada mais superficial da pele – a epiderme – sem perda de continuidade, não sendo atingida a membrana basal (Figura 1). Traduz-se por eritema doloroso. São exemplos as queimaduras provocadas por exposição solar ou por contacto de curta duração com chama; quanto à evolução, salienta-se a cura espontânea em menos de uma semana, sem sequelas.

2° grau – As queimaduras, lesando a membrana basal, atingem também a derme mais ou menos profundamente (2º grau superficial, e 2º grau profundo, respectivamente), com formação de eritema e flictenas ou bolhas (que correspondem à acumulação de líquido seroso subepidérmico). Nesta modalidade de queimaduras é possível a regeneração a partir do epitélio glandular.

  • Nas formas superficiais a pele mantém a elasticidade normal, verificando-se reepitelização cerca de 2 a 3 semanas após o evento agudo. A sequela mais frequente é a hipo ou hiperpigmentação, sinal que poderá regredir ao cabo de alguns meses, sobretudo nas crianças mais pequenas.
  • Nas formas profundas verifica-se edema mais acentuado relativamente às superficiais, com aspectos variáveis da pele: vermelho brilhante, ou branco amarelado, ou ainda aspecto nacarado central com halo de eritema. A cura é mais lenta que nas formas superficiais, podendo aparecer, como sequelas, cicatrizes hipertróficas e retracção da pele com repercussão funcional músculo-esquelética. (Figura 2)

3° grau – Neste tipo de queimaduras que, em fase inicial se poderão confundir com as de 2º grau profundas, toda a espessura da derme e tecidos subjacentes são atingidos, com destruição de vasos e terminações nervosas; trata-se de lesões indolores com aspecto macroscópico de necrose de coagulação dos tecidos. A cura é lenta e as sequelas graves.
Na prática clínica, são consideradas queimaduras profundas as de 2º grau profundas e as de 3º grau.
Como nota, salienta-se que constituem sinais de suspeita de queimaduras por maus tratos: 1 – presença de lesões da pele simétricas; 2 – lesões do períneo e dos membros inferiores; e 3 – intervalo de tempo alargado entre a ocorrência da queimadura e o pedido de observação médica.

FIGURA 2. Cicatriz em fase inf lamatória (vermelha, dura e pruriginosa)

Factores de gravidade

Classicamente considera-se que a gravidade duma queimadura na criança depende de um conjunto de factores:

  1. Extensão traduzida objectivamente pela percentagem de área total queimada (TSBA – sigla de: total surface burn area);
  2. Espessura e vascularização do tecido atingido;
  3. Localização;
  4. Idade < 5 anos.

São consideradas queimaduras major com indicação de serem referidas para centro especializado (com unidades de cuidados especiais ou intensivos e condições de internamento implicando isolamento e assépsia rigorosos, assim como apoio de equipas multidisciplinares médico-cirúrgicas especializadas) aquelas com as seguintes particularidades:

  • se TSBA > 15%;
  • se TSBA > 9% e idade < 5 anos;
  • se do 3º grau com TSBA > 5%
  • se associadas a doenças pré-existentes e a lesões traumáticas;
  • se atingirem olhos, orelhas, face, mãos, pés, períneo;
  • se eléctricas;
  • se inalatórias.

Nos casos de TSBA > 50% a probabilidade de sobrevivência é limitada.

Chama-se a atenção para o facto de a distribuição da TSBA ser diferente da do adulto, o que se explica pelas particularidades do organismo em idade pediátrica (crescimento e desenvolvimento), verificando-se maior relação superfície/peso. O Quadro 1 é elucidativo.

QUADRO 1 – Diferente distribuição da TSBA (%) em diferentes idades

Idade em anos
Área0-11-45-910-1415
Cabeça191713119
Pescoço22222
Tronco anterior1313131313
Tronco posterior1313131313
Cada nádega2,52,52,52,52,5
Genitais11111
Cada braço44444
Cada antebraço33333
Cada mão2,52,52,52,52,5
Cada coxa5,56,588,59
Cada perna555,566,5
Cada pé3,53,53,53,53,5

A determinação da extensão da queimadura permite uma estimativa do cálculo das perdas de fluidos e das respectivas necessidades, o que tem implicações práticas ao estabelecer o plano de tratamento emergente (Parte X).

Exames complementares

Sucintamente são indicados alguns exames complementares nos casos de queimaduras que requerem internamento. Contudo, cada caso – mesmo sem indicação para internamento – deverá ser ponderado face às respectivas particularidades.

Eis os essenciais:

  • hemograma e estudo da coagulação;
  • ionograma sérico;
  • doseamento sérico de glicose, ureia, creatinina, sódio, potássio, proteínas totais, albumina e pré-albumina;
  • análise sumária de urina com determinação de mioglobinúria;
  • osmolalidade sérica e urinária;
  • gasometria arterial;
  • determinação de carboxiemoglobina;
  • retinol ligado a proteína.

Tratamento emergente

No âmbito da actuação prioritária é fundamental determinar a TSBA, assim como obter a estimativa da profundidade da lesão. Por outro lado há que ter em atenção que a TSBA e a profundidade da lesão podem aumentar nas primeiras horas pós-trauma.

Tratando-se duma situação requerendo, nas formas graves, actuação de emergência em ambiente asséptico, (inicialmente em unidades de cuidados especiais ou intensivos e, depois, em unidades de queimados com equipas especializadas e logística própria), muitas das medidas a seguir descritas poderão ter de ser realizadas em simultâneo, garantindo sempre a estabilidade hemodinâmica com monitorização dos sinais vitais.

Cuidados gerais

  • Lavagem da área lesada, em condições de assépsia, com compressas esterilizadas utilizando soro fisiológico ou sabão cirúrgico/solução antisséptica sob analgesia, sedação, ou anestesia (ver adiante).
  • Algaliação.
  • Aplicação de sonda nasogástrica para descompressão do estômago.
  • Aplicação de cânula venosa periférica para garantir acesso venoso, eventualmente em dois locais, de preferência nos membros superiores (em caso de necessidade, não contra-indicada em tecidos lesados).
  • Profilaxia antitetânica.
  • Aplicação de penso ”almofadado” com sulfadiazina de prata a 1% ou vaselina esterilizada.
  • Analgesia/sedação*.
    • *As benzodiazepinas, das quais o midazolam é a escolha habitual em pediatria, têm um efeito sedativo variável consoante a dose. Não têm efeito analgésico, pelo que não devem ser usadas isoladamente em procedimentos dolorosos.
    • O paracetamol é o analgésico mais frequentemente utilizado; é eficaz apenas no tratamento da dor ligeira.
    • Os opióides são os fármacos de eleição no tratamento da dor intensa. A codeína, cloridrato de tramadol, morfina, fentanil e sufentanil têm uma potência analgésica crescente. A sua utilização de forma transitória não tem risco de dependência. O risco de depressão respiratória não deve inibir a sua prescrição.
    • A cetamina é um fármaco que produz analgesia, sedação, diminuição da ansiedade e amnésia, com relativa estabilidade cardiovascular; pode constituir alternativa para a realização de alguns procedimentos dolorosos como nos casos de queimaduras.

O esquema terapêutico a aplicar depende da extensão da queimadura e da sua profundidade. Em queimaduras superficiais e de pequena área pode utilizar-se apenas o paracetamol ou propacetamol. Em queimaduras mais extensas pode iniciar-se cetamina ou cetamina + midazolam. Nos casos mais graves: fentanil + midazolam.

  • Paracetamol; dose inicial 10-15 mg/kg PO ou 15-20 mg/kg rectal; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Proparacetamol (1 grama<>500 mg de paracetamol); dose inicial 30 mg/kg IV; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Cetamina; dose inicial 0,5 mg/kg IV a repetir de 10-10 minutos SOS até máximo de 2 mg/kg; por via IM, dose inicial: 2-3 mg/kg, seguida de doses parcelares de 0,5 mg/kg SOS de 10-10 minutos até máximo de 2 mg/kg.
  • Midazolam; dose inicial em bólus IV de 0,05-0,1 mg/kg, seguida de perfusão IV ao ritmo de 0,5-3 mcg/kg/minuto até dose total máxima de 10 mg.
  • Fentanil; dose inicial IV em bólus: 0,5 mcg/kg a repetir até efeito desejado, sem ultrapassar 5 mcg/kg (1/3 da dose em crianças com < 3 meses); em perfusão IV, após bólus: 0,5-3 mcg/kg/hora até máximo de 5 mcg/kg.
  • Homeostase térmica.
    A manutenção da temperatura corporal deve ser acautelada desde a primeira avaliação do doente e durante todos os procedimentos cirúrgicos subsequentes. De salientar que a hipotermia pode agravar o catabolismo pós-traumático. Assim, torna-se fundamental manter uma temperatura constante no bloco operatório de queimados a fim de evitar a perda térmica do doente.
  • Garantir a permeabilidade da via aérea.
    O factor primordial de reanimação de um queimado é a chamada reanimação com fluidos IV nos casos de TSBA > 15%. Na idade pediátrica, a maior relação superfície/peso e a maior intensidade do catabolismo, implicam o cálculo preciso do volume de fluidos a administrar, considerando-se a normalidade da natrémia um elemento chave na hidratação.

Assim, de acordo com a chamada fórmula de Parkland modificada para a idade pediátrica, o volume de fluidos (cristalóides) de ressuscitação (que devem ser aquecidos) para as primeiras 24 horas é: 

lactato de Ringer (4 mL/Kg x TSBA em %) + fluidos de manutenção

administrando 50% do volume nas primeiras oito horas, e os restantes 50% nas dezasseis horas subsequentes. O ritmo de perfusão deverá ser ajustado de modo a manter a diurese ~1 mL/kg/hora). Os fluidos de manutenção não são considerados se o doente pesar > 40 kg.

Como notas importantes quanto a reanimação por fluidoterapia há a referir:

  • uma reidratação ineficaz poderá ter efeitos adversos ao nível dos pulmões, rim e mesentério;
  • uma reidratação excessiva (sobrecarga de fluidos) poderá conduzir a edema pulmonar agudo, a edema ao nível das lesões da queimadura com hipóxia-isquémia secundárias;
  • o objectivo da fluidoterapia é manter normalidade das FC, FR, PA, diurese e natrémia;
  • nos casos de albuminémia < 3 g/dL está indicada albumina sem sal a 20% na dose de 1 g/kg em 4-6 horas, seguida, em função do contexto clínico, de furosemido (1 mg/kg).

Assistência respiratória

O tipo de assistência respiratória pode variar entre oxigenoterapia suplementar humidificada e aquecida através de cânula nasal ou máscara, e ventilação mecânica sofisticada e terapia com oxigénio hiperbárico, sobretudo nos casos de inalação de químicos tóxicos e SDR tipo adulto (sigla ARDS na nomenclatura de língua inglesa) com compromisso de surfactante (ver atrás). A verificação de estridor, sugestiva de edema da via aérea superior, estabelece a indicação de epinefrina racémica para melhorar o fluxo aéreo.

As estratégias ventilatórias mais usadas e “menos agressivas” incluem protocolos com baixo volume corrente, PEEP elevada, e alta frequência oscilatória. O heliox (mistura de oxigénio + hélio) é utilizado sobretudo nas lesões da via aérea superior.

Nas UCIP, para a ventilação mecânica nas situações de queimaduras e inalação de fumos, há tendência para a utilização de tubos endotraqueais (TET) com cuff (0,5 cm menores do que os sem cuff) com as seguintes dimensões/comprimento em cm, de acordo com as normas da Pediatric Advanced Life Support: (Idade/4) + 3 se TET com cuff, e (Idade/4) + 4 se TET sem cuff.

Nutrição e metabolismo

Os fenómenos que integram a chamada resposta metabólica às queimaduras, atrás descritos, são mediados por corticosteróides, epinefrina, norepinefrina, glucagom, aldosterona e HAD.

Na prática utilizam-se as seguintes fórmulas para suprimento energético global:

  • Lactentes (0-12 meses): 2100 kcal/m2 + 1000 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças (1-12 anos): 1800 kcal/m2 + 1300 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças/adolescentes (>12 anos): 1500 kcal/m2 + 1500 kcal/m2 de área de queimadura.

Em termos de % de VCT são estabelecidas as seguintes proporções de nutrientes: proteínas – 25%; hidratos de carbono – 50%; e lípidos – 25%. A nutrição deverá ser ministrada por via entérica, ficando a nutrição por via parentérica reservada para casos de extrema gravidade (se o suprimento calculado ultrapassar o limite de tolerância entérica). Igualmente deverá ser dada atenção às necessidades doutros nutrientes.

Deverá ser providenciada monitorização sérica de parâmetros bioquímicos e outros.

O hipercatabolismo pode ser combatido, até certo ponto, com a administração de propranolol (0,3-1 mg/kg cada 4 a 6 horas por via nasogástrica). Para combater a degradação da massa magra e do conteúdo mineral ósseo, assim como para promover a normalização da albuminémia, pré-albuminémia e do retinol ligado a proteína, é recomendada a administração de análogo da testosterona – a oxandrolona.

No âmbito do tópico em análise, há que atender a diversos problemas metabólicos (por ex. hiperglicémia, hipoglicémia) e hidroelectrolíticos a prevenir, detectar e tratar. Em casos seleccionados pode estar indicada insulinoterapia que, para além da normalização da glicémia, poderá contribuir para o combate ao catabolismo proteico.

Procedimentos cirúrgicos

Nas queimaduras superficiais e não incluídas nos critérios major, definidos a propósito dos factores de risco, a resolução é na maior parte das vezes conseguida com tratamento conservador, vigiando de modo seriado a reepitelização da zona lesada e aplicando os cuidados gerais.

Nas queimaduras profundas, os princípios fundamentais do tratamento cirúrgico são:

  • a excisão de tecidos desvitalizados sob anestesia, sedação e analgesia, evitando a infecção local;
  • a preparação precoce do leito da queimadura para receber o enxerto com sucesso.

A excisão tangencial dos tecidos não viáveis deverá ser limitada a cerca de 15% a 20% de área queimada por sessão cirúrgica. Por vezes, a gravidade da queimadura pela sua profundidade e disposição circunferencial, não permite este objectivo. A presença de compromisso neurovascular distal por desenvolvimento de síndroma compartimental poderá implicar a realização de escarotomias, o que impede a concretização de enxerto precoce.

Como terapêutica promissora, ainda em fase de investigação, citam-se as técnicas de reconstrução com base em pele fetal e cultura de tecidos (engenharia tecidual).

Como nota importante, salienta-se que o tratamento agressivo e precoce da queimadura permite reduzir o tempo de internamento hospitalar, limitar o número de procedimentos sob anestesia geral, e melhorar a relação custo-benefício do processo terapêutico.

2. QUEIMADURAS E REABILITAÇÃO

Importância do problema

A reabilitação dos doentes com formas graves deste tipo de patologia deve começar na fase inicial, ainda na unidade de queimados, e prolongar-se até à fase de maturação cicatricial; o objectivo é evitar repercussão em diversas vertentes, quer de ordem física, quer de ordem psíquica, tendo em conta a elevada probabilidade de sequelas funcionais e estéticas.

Em média, a duração da reabilitação é cerca de 18 a 24 meses, sendo que nos casos mais complicados poderá atingir 5 anos.

Reabilitação durante o período de cicatrização

A intervenção no âmbito da reabilitação de lesões por queimaduras em idade pediátrica deve estar integrada num programa de cuidados multidisciplinares, desde o internamento numa unidade especializada até à maturação cicatricial; o principal objectivo é a prevenção das sequelas cicatriciais e osteoarticulares.

Durante a hospitalização, o tratamento de reabilitação integra os seguintes procedimentos:

  1. posicionamento articular correcto, quer no leito quer sob os pensos cirúrgicos;
  2. aplicação de ortóteses estáticas para manter o posicionamento articular pretendido (Figura 3);
  3. prevenção de complicações respiratórias através de cinesiterapia respiratória;
  4. mobilização articular através de hidrocinesiterapia realizada durante os banhos salinos efectuados antes da realização dos pensos cirúrgicos (Figura 4);
  5. estímulo precoce da função, como nos casos de mão queimada (terapia ocupacional). (Figura 5)

FIGURA 3. Ortótese estática (tala) para posicionamento no leito da tibiotársica/pé em extensão; caso de queimadura na face dorsal do pé

FIGURA 4. Hidrocinesiterapia

FIGURA 5. Queimadura do membro superior: terapia ocupacional durante o internamento

Reabilitação após o período de cicatrização

Após cicatrização deve ser feita uma avaliação do estado da pele e das zonas funcionais abrangidas.

Na avaliação da pele é importante ter sempre presente a história clínica desde o acidente até à cicatrização. O balanço deverá ser feito tendo em conta o factor etiológico da queimadura, o tempo decorrido e os cuidados prestados até à admissão hospitalar, o tempo de cicatrização, a necessidade de enxerto e a existência de complicações durante a mesma cicatrização. Associando estes dados à eventualidade de antecedentes familiares de tendência para cicatrização hipertrófica (componente genético), é possível estabelecer a probabilidade de evolução do caso para cicatriz hipertrófica, ou não (Quadro 2). Nesta perspectiva há a referir que, até à 10ª semana após a cicatrização, a vigilância clínica deve ser extremamente rigorosa, minuciosa e frequente. Se não se verificarem sinais de hipertrofia com a cicatrização durante o referido período, existe fraca probabilidade de tal acontecer depois deste período.

QUADRO 2 – Parâmetros preditivos da evolução da cicatriz*

Cor
Dá orientação sobre a neovascularização.

Relevo
Presença de hipertrofia. No início detecta-se melhor à palpação superficial do que à inspecção.

Prurido
Directamente relacionado com a possibilidade de surgir hipertrofia.

Dor
Só está presente nas fases iniciais. Se se prolongar é possível surgir hipertrofia.

Consistência
Dá orientação sobre a formação de fibrose e consequente perda das fibras elásticas.


* Na cicatriz são avaliadas as seguintes características fundamentais: cor, relevo, prurido, dor e consistência. A cor pode ser rosada, vermelha rosada ou vermelha escura; tais variantes dão indicações quanto ao modo de evolução da neovascularização:
      1. a manutenção de cor vermelha viva poderá significar que a cicatriz está a evoluir para quelóide, com neovascularização activa e produção de colagénio;
      2. quando, pelo contrário, a cicatriz evolui para cor mais clara, tal significa que há regressão da vascularização acompanhada de diminuição da produção do colagénio, o que corresponde a melhor prognóstico.

 

Em função do resultado da avaliação referida, decide-se ou não pela aplicação de material compressivo o mais precocemente possível para contrariar a tendência para a cicatrização hipertrófica; uma vez que este tipo de material tem um custo elevado, a sua prescrição deverá ser sempre muito bem ponderada caso a caso.

Na avaliação das áreas articulares afectadas há que ponderar a necessidade, ou não, de ortótese para evitar a instalação de bridas que afectem a amplitude do movimento articular, obrigando posteriormente a uma ou mais intervenções cirúrgicas. Nas crianças, ao contrário dos adultos, o uso prolongado de ortóteses de imobilização não provoca rigidez articular, e o aparecimento de osteomas pós-imobilização é raro.

Quando a área queimada afecta, por retracção cutânea, a atitude postural, como acontece nas frequentes queimaduras da região anterior e ou lateral do tórax, ou quando existe uma ou mais zonas articulares com limitação da amplitude articular, devem ser prescritos tratamentos de fisioterapia para evitar a instalação de deformações osteoarticulares definitivas que poderão necessitar de intervenções cirúrgicas futuras. (Figura 6)

Se a queimadura abranger o membro superior, e em especial a mão (uni ou bilateralmente), os tratamentos devem ser sempre que possível orientados para terapia ocupacional. A recuperação da função dos membros superiores é fundamental para o normal desenvolvimento psicomotor e sensorial da criança.

FIGURA 6. Limitação articular do ombro por queimadura axilar

Prevenção e tratamento da hipertrofia

Dada a sua importância, reitera-se que o tratamento de reabilitação da criança que sofreu queimaduras deve ser fundamentalmente centrado na evolução cicatricial das áreas queimadas. Com efeito, uma boa cicatrização com a instalação mínima possível de hipertrofia e de bridas, poderá evitar sequelas osteoarticulares e posturas anómalas, com ou sem desvios da coluna.

Neste campo, cabe salientar a extraordinária importância da colaboração dos pais/família; de facto, são os mesmos que cuidam diariamente da criança. Devendo ser minorado pelo clínico assistente o eventual sentimento de culpa que possa instalar-se por parte daqueles em relação ao acidente (o que passou, passou…), há contudo que os responsabilizar pelo tratamento a decorrer, chamando-se a sua atenção para a hipótese de agravamento das sequelas, no caso de não colaboração nos cuidados a prestar à criança em casa.

Caso se venha a instalar cicatriz hipertrófica, torna-se fundamental descrever os principais procedimentos para combater a sua intensificação:

  • Hidratação correcta da pele, com a aplicação de um creme hidratante associado a um componente gordo (por ex. creme de aveia com omega 6); a aplicação deve ser feita várias vezes ao dia consoante o estado da pele, salientando-se que uma boa hidratação também diminui o prurido. Este deve ser evitado, pois o acto de coçar contribui para aumentar a vascularização, com consequente produção de colagénio por parte dos fibroblastos. As lesões de coceira numa pele friável podem, de facto, atrasar o processo cicatricial.
  • Para combater o prurido pode administrar-se, ao deitar (se for necessário, também durante o dia), hidroxizina; e, nos casos mais graves, diazepam.
  • Para lutar contra a hipertrofia (produção e deposição anómala de colagénio) recorre-se ao uso de peças de vestuário compressivas – pressoterapia (Figura 7). A compressão cicatricial é o meio mais eficaz de luta contra a proliferação anómala das fibras de colagéneo. Ao comprimir-se a rede vascular anómala existente na evolução cicatricial em fase inflamatória, diminui o suprimento de oxigénio aos fibroblastos e, consequentemente, a produção de colagénio. Por outro lado, a pressão sobre a cicatriz também promove uma distribuição paralela das fibras de colagénio, o que a torna menos dura e retráctil. O fato compressivo deve ser usado durante o máximo de tempo possível, cerca de 23 horas/dia, só se retirando para a higiene e para aplicação do hidratante. O seu uso em tempo parcial não é recomendado, principalmente na fase inflamatória do processo cicatricial.
  • No reforço da compressão cicatricial pode ser utilizado o silicone-gel (Figura 8) ou mesmo placas de couro (vulgar sola de sapato). O efeito do silicone-gel na evolução da cicatriz ainda hoje é discutível. Além da melhor distribuição das forças de pressão na zona pretendida, atribui-se-lhe a criação de um ambiente de anaerobiose local sobre a cicatriz, susceptível de contrariar a produção de colagénio. A pressoterapia deve ser mantida até haver a certeza de que a fase inflamatória cicatricial chegou ao seu termo; tal ocorre em geral quando a cicatriz começar a ficar rosada, clara, enrugada e mole.
  • Depois da fase inflamatória, podem ser iniciados os tratamentos de vacuoterapia. Este tipo de tratamento promove o descolamento da cicatriz dos planos profundos e destroi parcialmente a fibrose que possa ter-se instalado.
  • A massagem também tem o seu papel. A massagem clássica (do tipo deslizamento) está contra-indicada na fase inflamatória por promover o aumento da vascularização. Neste período somente está indicada a massagem do tipo compressivo, como a transversa profunda; o objectivo é comprimir os vasos arteriais e impedir a organização de fibrose.
  • Paralelamente a estes cuidados na luta contra a hipertrofia, por vezes há necessidade de recorrer aos tratamentos de cinesiterapia e/ou aos tratamentos em terapia ocupacional. (Figura 9).
  • O tratamento em estâncias termais (crenoterapia) com especialização para tratamentos de sequelas de queimaduras é eficaz, embora de elevado custo.

FIGURA 7. Fato compressivo (pressoterapia)

FIGURA 8. Placas de silicone sobre cicatrizes hipertróficas em fase inflamatória

FIGURA 9. Sequência de tratamentos de mãos queimadas em terapia ocupacional

GLOSSÁRIO

Pressoterapia > Método de tratamento utlizado classicamente nas perturbações circulatórias dos membros através de dispositivo mecânico de compressão e descompressão. No caso das queimaduras, o princípio baseia-se na compressão.

Vacuoterapia > Método de tratamento que consiste no descolamento de cicatrizes aderentes através de aparelho eléctrico com dispositivo colocado sobre aquelas, através do vácuo provocado (~sucção).

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ANALGESIA E SEDAÇÃO

Definições e importância do problema

Antes da abordagem do tema relacionado com dor, importa recordar definições básicas relacionadas:

  • Analgesia significa perda da sensibilidade à dor, o que suprime ou atenua a mesma;
  • Anestesia significa genericamente perda de sensibilidade que pode dizer respeito a uma ou mais formas de sensibilidade (por ex. à dor, ao calor, ao toque, etc.); especificamente, anestesia significa supressão artificial da sensibilidade por meio de fármacos chamados anestésicos, numa parte do corpo (local ou regional), ou em todo o corpo (geral- estado farmacologicamente induzido de amnésia, analgesia, perda de consciência e perda de reflexos musculares esqueléticos), quase sempre com vista a uma intervenção cirúrgica;
  • Narcose é o estado de sono provocado por fármacos, na maior parte durante uma anestesia geral; por extensão designa a própria anestesia geral;
  • Hipnose é um estado próximo do sono provocado pelo hipnotismo; no sentido menos corrente é o sono provocado por hipnotismo;
  • Hipnótico (sonífero ou soporífero) é um medicamento que provoca o sono;
  • Sedação corresponde a estado de consciência diminuída, induzida farmacologicamente, com respiração espontânea; pode ser ligeira ou ansiolítica, moderada (doente despertável e ventilação espontânea) e profunda, de acordo com doses administradas;
  • Sedação profunda é um estado de depressão do nível de consciência: o doente não pode ser despertado com facilidade, responder aos estímulos dolorosos, mas existe perda dos reflexos protectores da via aérea, necessitando de suporte para a manutenção da permeabilidade das vias aéreas e/ou ventilatório.

A dor, experiência emocional e sensorial desagradável associada a uma lesão, pode desencadear uma resposta ao estresse com libertação de catecolaminas. A abordagem da dor (um dos sintomas mais frequentes na idade pediátrica), podendo ser avaliada de forma subjectiva ou através de escalas de quantificação adequadas ao grupo etário, deve ser feita fundamentalmente com duas perspectivas: – proporcionar conforto e sensação de segurança ao doente; – ter em conta que a libertação de catecolaminas contribui para a instabilidade do doente crítico. Assim, a supressão da dor frena a resposta neuroendócrina e permite uma maior estabilização clínica.

Na prática clínica em geral, e no contexto da terapia de urgência e emergência, designadamente em cuidados intensivos, a analgesia e a sedação são aplicados: – em casos de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos dolorosos; – para promover a adaptação à ventilação mecânica. Importa referir a propósito o fenómeno de amnésia durante o período de sedação.

Não existindo um modelo único de actuação, a abordagem da terapêutica em análise tem como base normas que garantam segurança e facilitem a aplicação clínica. (ver capítulo “Dor no Recém-Nascido) – Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Avaliação da dor

As escalas de avaliação de dor são muito úteis, especialmente, em crianças pequenas. Existindo várias escalas, a Direcção Geral da Saúde (2010) recomenda algumas daquelas, não pormenorizadas neste capítulo, mas com especificação de idades em que estão indicadas:

Menores de 4 anos ou crianças sem capacidade para verbalizar

  FLACC (Face, Legs, Activity, Cry, Consolability).

Entre 4 e 6 anos

      1. FPS-R (Faces Pain Scale–Revised). Válida a partir dos 4 anos;
      2. Escala de faces de Wong-Baker. Válida a partir dos 3 anos.

A título de exemplo apresenta-se ainda a escala (OPS), adequada para avaliar crianças de todas as idades (0-18 anos), combinando indicadores comportamentais e fisiológicos com atribuição de pontuação 0-1-2. (Quadro 1)

QUADRO 1 – OPS – Escala objectiva da dor, até 18 anos

Sigla: OPS<> Objective Pain Scale. PA <> pressão arterial
Parâmetro012
PA sistólicaaumento < 20% PA basal20-30%> 30%
Choroausenteconsolávelinconsolável
Actividade motoratranquilamoderada/controlávelintensa/inconsolável
Expressão facialsorrisoneutraexpressiva
Avaliação verbal
(2-3 anos)
sem dorincómodo, não localizando a dorqueixa e localizando a dor
Linguagem corporal
(< 2 anos)
postura normalhipertoniaprotege ou toca zona dolorosa


Nesta escala, pontuações de 1-2 significam presença de dor ligeira; 3-5 dor moderada; 6-8 dor intensa que justificam a administração de opióides; 9-10 dor insuportável, com necessidade de opióides em perfusão.

Normas práticas importantes

1. O doente deve ser monitorizado durante todo o procedimento de analgesia e/ou sedação: frequência cardíaca, saturação em oxigénio por oximetria de pulso e pressão arterial.

2. Deve-se administrar oxigénio, se necessário.

3. Toda a equipa deve estar familiarizada com os procedimentos a efectuar, realçando-se a importância do cálculo das doses, das diluições usadas, do tempo de administração, do material e dos antídotos. Quanto à dose, recomenda-se iniciar por doses mais baixas e ir administrando bólus até atingir o efeito pretendido (sem ultrapassar a dose máxima). Excluir alergias

4. Recomenda-se dieta absoluta precedendo a analgesia e/ou sedação, com restrição de líquidos de duração variável: se líquidos à 2 h; se leite materno 4 h; se leite artificial ou restante alimentação à 6 h.

5. Conhecer factores de risco que possam alterar a susceptibilidade individual ao fármaco e que possam levar à necessidade de redução da dose, tais como idade inferior a 5 anos, antecedentes de apneia, risco de obstrução da via aérea (por ex. hipertrofia das adenóides), risco de doença crónica como displasia broncopulmonar e asma, insuficiência hepática, renal e doenças neurológicas. Na presença destes factores de risco, deve-se começar com doses mais baixas (25 a 50% de redução) até efeito desejado.

6. Outra forma de reduzir os efeitos secundários é utilizar sempre que possível, associação de fármacos, o que permite reduzir a dose total. O uso concomitante de fármacos adjuvantes também pode ser útil. Por exemplo, a hidroxizina (1-2 mg/kg/dose oral, dose máxima 25 mg), pode ser usada para aliviar a ansiedade e insónia, sem necessidade de incrementar as doses dos fármacos principais.

7. O conhecimento dos efeitos hemodinâmicos e respiratórios, da rapidez de actuação, da vida média do fármaco, de eventual interacção medicamentosa e da existência de antídoto específico contribuem para auxiliar o clínico na escolha dos fármacos a utilizar, com base na patologia de base, designadamente em contexto de insuficiência hepática ou renal.

ANALGESIA

1. Fármacos analgésicos mais utilizados

O Quadro 2 discrimina os fármacos analgésicos mais utilizados, seguindo-se a subdivisão de acordo com os diversos tipos de acção.

QUADRO 2 – Fármacos analgésicos mais utilizados

Não opióidesOpióides, doses de acordo com o efeito pretendido (ver adiante)
Paracetamol oral/rectal 10-15 mg/kg cada 4-6 h máx 30 mg/kg/dia (< 10 kg)
ev: < 10 kg 7,5 mg/kg/dose máx 30 mg/kg/dia > 10 kg 15 mg/kg cada 4-6 h máx 60 mg/kg
dose máx dia: 4 g/3 g se factores de risco
Morfina
Ibuprofeno: oral 5-10 mg/kg cada 6-8 h
(máx 40 mg/ kg/d)
Fentanil
Metamizol oral: 20-40 mg/kg cada 6-8 h
ev: 40 mg/kg cada 6-8 h
dose máx 2 g/dose
Alfentanil
Cetorolac ev/oral: 0,25-0,5 mg/kg cada 6 h
(> 3 anos) dose máx 30 mg/dose, durante 48-72 h
Remifentanil
Cetamina ev: 1-2 mg/kg/bólusCodeína oral: 0,5-1 mg/kg cada 4-6 h
1.1 Analgésicos não opióides – anti-inflamatórios não esteroides (AINE)

Estes analgésicos, com uma ação analgésica e anti-inflamatória, apresentam como efeitos secundários náuseas, vómitos, gastrite erosiva (pelo que se realça a importância da necessidade de gastroprotecção), e hepatoxicidade (paracetamol lesão/dose dependente).

1.2 Analgésicos opióides

Os analgésicos opióides, porque têm efeito analgésico e hipnótico, também são denominados narcóticos. São fármacos potentes com modulação no sistema nervoso autónomo, originando, entre outros efeitos, diminuição da sudorese; não produzem amnésia, e são frequentemente associados às benzodiazepinas. Produzem miose, o que permite titular o seu efeito. Têm eliminação hepática e renal, sendo necessário adaptar doses em caso de insuficiência orgânica.

Como efeitos secundários frequentes, descrevem-se: depressão respiratória (dose-dependente), náuseas, vómitos, íleo paralítico, espasmo do esfíncter Oddi, retenção urinária e bradicárdia. Como induzem a libertação de histamina, podem associar-se a prurido importante, broncospasmo e laringospasmo. A administração prolongada associa-se a tolerância e a dependência. A suspensão abrupta pode levar a síndroma de abstinência.

A Naloxona, é um antídoto que permite reverter a depressão respiratória em doentes com respiração espontânea (doses 0,01 mg/kg/dose, máx 2 mg). Pode repetir-se a dose e usar-se em perfusão ao ritmo de 2-10 mcg/kg/h. A reversão dos efeitos está contra-indicada quando existe dependência física.

Os opióides podem ser naturais, como a morfina e a codeína. Existem ainda várias substâncias sintéticas com acção semelhante aos opióides, como por exemplo a meperidina, o propoxifeno e a metadona.

Faz-se seguidamente referência aos analgésicos opióides mais representativos (Quadros 3, 4, 5, 6).

Morfina

A morfina está indicada no tratamento sintomático da dor moderada a severa (associada a cirurgia, doenças neoplásicas e dor crónica em geral), na sedação pré-operatória e como adjuvante da anestesia. É igualmente útil nas crises hipoxémicas na hipertensão pulmonar e edema pulmonar.

QUADRO 3 – Doses da Morfina

MORFINAVia EV/IM (idades em anos → A)Em perfusãoVia oral
Dose (respiração espontânea)0,1-0,2 mg/kg
cada 2-4 h
máx por dose
    • < 1 A – 2 mg
    • 1-6 A – 4 mg
    • 7-12A – 8 mg
    • > 12 A – 15 mg
10-15 mcg/kg/h0,2-0,5 mg/kg cada 4-6 h
Fentanil

É um fármaco muito utilizado para analgesia em procedimentos muito dolorosos, podendo ser usado em bólus (procedimentos curtos) ou em perfusão contínua (em situações de pós-operatório). É cem vezes mais potente do que a morfina, com início de acção após alguns minutos, e duração de 30-45 minutos. Doses repetidas podem prolongar os efeitos farmacológicos por acumulação.

A administração rápida pode produzir depressão respiratória, bradicardia e rigidez muscular. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Doses de Fentanil (ev)

Nota → Diluir com soro fisiológico ou Dextrose a 5% para perfusão contínua, na concentração máxima 50 mcg/mL; reajuste de dose na insuficiência renal <> 75% da dose com TGF 10-50 ml/min/1,73m3; 50% da dose TGF < 10 ml/min/1,73 m3

Analgesia (respiração espontânea)Sedoanalgesia (doente ventilado)
Bólus 0,5 mcg/kg
(dose máx 25-50 mcg); repetir, se necessário, de 5-5 minutos
1-3 mcg/kg   bólus cada 2 a 4 h
Perfusão   0,5-1 mcg/kg/h1-5 mcg/kg/h

Uma das utilizações do fentanil diz respeito ao tratamento da dor crónica, como a dor oncológica; pode ser utilizado sob a forma transdérmica (adesivos), sublingual, ou oral através de chupa-chupas. O cálculo da dose necessária leva em conta a soma de todos os analgésicos usados, aplicando, posteriormente, uma conversão através de uma tabela que permite calcular a dose final de fentanil.

 Alfentanil

Os derivados do fentanil (sulfentanil, alfentanil, remifentanil) vieram reduzir alguns dos efeitos secundários, nomeadamente alterações hemodinâmicas associadas ao uso da morfina, tendo níveis de potência de acção superiores em relação à morfina. São fármacos com maior estabilidade hemodinâmica e por isso são utilizados durante procedimentos ou mesmo durante cirurgia.

O alfentanil é um opióide sintético, de curta duração, indicado para analgesia, isolado ou em associação com outros anestésicos ou sedativos. Deve-se administrar em bólus lento, de forma a evitar rigidez muscular, em particular da caixa torácica que interfere com a ventilação. Tem uma acção de curta duração, sendo um fármaco de eleição para procedimentos breves e quando se pretende rápida recuperação da consciência, até cerca de 15 minutos. Tem acção mais rápida do que o fentanil, com 25% da sua potência. Vigilância acrescida nos doentes com bradicardia e sinais de hipertensão intracraniana. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Doses de Alfentanil (ev)

Nota Diluir com soro fisiológico ou com Dextrose a 5% para perfusão contínua, atendendo à concentração máxima permitida de 80 mcg/mL

AnalgesiaSedoanalgesia (doente ventilado)
Bólus 2-5 mcg/kgBólus  5-10 mcg/kg
Perfusão 2-5 mcg/kgPerfusão  2,5-30 mcg/kg/h
Remifentanil        

O remifentanil tem uma vida ultracurta (3-5 minutos); com eliminação rápida, permite recuperação imediata da consciência, muito útil quando é necessário proceder a monitorização neurológica. Tratando-se dum fármaco muito seguro no caso de insuficiência renal e hepática, é considerado um fármaco de eleição. O efeito analgésico é obtido ao fim de 1-3 minutos, não se acumula nos tecidos, permitindo a extubação após intervenção; também é adequado em contexto de se proceder a entubação (dose 1-3 mcg/kg/dose). (Quadro 6)

QUADRO 6 – Doses de Remifentanil (ev)

AnalgesiaSedoanalgesia
Bólus 0,1 mcg/kg, em procedimentos rápidosBólus sem interesse por acção curta
Perfusão 0,025-0,1 mcg/kg/minPerfusão 0,05-1 mcg/kg/min

 

2. Fármacos sedativos mais utilizados

O Quadro 7 discrimina os fármacos sedativos mais utilizados, divididos em dois grupos terapêuticos: os anestésicos e os ansiolíticos-hipnóticos.

QUADRO 7 – Fármacos sedativos mais utilizados: anestésicos e ansiolíticos-hipnóticos

ANESTÉSICOSANSIOLÍTICOS – HIPNÓTICOS
TiopentalHidrato cloral
EtomidatoDiazepam
PropofolMidazolam
Cetamina 
Protóxido de azoto 

 

2.1 Ansiolíticos-hipnóticos
Hidrato de cloral

O hidrato de cloral é um fármaco sedativo não analgésico que não provoca depressão respiratória nas doses de sedação. É utilizado frequentemente nos procedimentos não dolorosos, como por exemplo nos exames de Imagem. Com metabolismo hepático e eliminação renal, o seu efeito é mantido por 6-8 h. (Quadro 8)

QUADRO 8 – Hidrato cloral: doses e vias de administração

Vias de administração Doses
(Nota – Dose máxima: 2 g/24 h)
Oral (1 mL <> 50 mg)Sedação: 25 mg/kg/dia
Rectal (1 mL <> 100 mg)Hipnose: 50-100 mg /kg/dia
Dose máxima 2 g/24 h
Benzodiazepinas

O grupo das benzodiazepinas tem efeito dependente da dose, com acção inicial ansiolítica e, gradualmente, anticonvulsante, sedativa, e relaxante muscular, até à fase anestésica. Tem metabolismo hepático com eliminação renal e biliar. Este grupo terapêutico produz sedação, mas não analgesia.

Como efeitos secundários citam-se: depressão respiratória, depressão miocárdio, hipotensão, náuseas e vómitos.

O antídoto específico é o flumazenil (anexato); dose: 0,01 mg/kg até 0,2 mg/dose, podendo repetir-se bólus até máximo 1 mg. Dose para perfusão: 5-10 mcg/kg/h. Deve usar-se flumazenil só depois de reverter efeito do bloqueio neuromuscular (até o doente ter movimentos respiratórios espontâneos) e tendo-se em atenção o mal convulsivo: ao anular efeito farmacológico das benzodiazepinas, perde-se também acção terapêutica dirigida ao status convulsivo.

Entre as benzodiazepinas citam-se de modo sucinto, como os mais frequentemente utilizados, o midazolam e o diazepam. Nos Quadros 9 e 10 são descritas respectivamente as doses e as vias de administração

QUADRO 9 – Midazolam: doses e vias de administração

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua, concentração máxima 1-5 mg/mL. Se sedação insuficiente: administrar bólus extra de 0,05 mg/kg
MidazolamEVSublingual/intranasalOral
Dose0,05-0,1 mg/kg
(máx <> 5 mg)
0,2-0,5 mg/kg0,5-0,7 mg/kg;
(máx <> 20 mg)
Início de acção1-3 min10 min10-20 min
Efeito máximo5-7 min10 min 
Duração20-30 min (bólus)60 min 
Perfusão1-15 mcg/kg/min  

QUADRO 10 – Diazepam: doses e vias de administração

Nota – Menor potência do que o midazolam, mas acção mais prolongada. Concentração máxima de 5 mg/mL, não ultrapassando o ritmo de 5 mg/min
 >EVRectalOral
Dose
    • 0,05-0,1 mg/kg (pode ser repetido até 10 mg/dose)
    • 2-4 h (máx 0,6 mg/kg em 8 h)
    • 0,5 mg/kg/dose (até 5 anos)
    • 0,3 mg/kg/dose (6-11 anos)
    • 0,2 mg/kg (> 12 anos máx 10 mg)
0,2-0,8 mg/kg/dia (a: 6-8 h)
Início de acção3 min5 min10-20 min
Duração60-120 min  
2.2 Anestésicos
Cetamina

É um anestésico dissociativo que bloqueia selectivamente as vias de associação cerebral e deprime o sistema talâmico-cortical, o sistema activador reticular e límbico, produzindo analgesia e sedação.

Tem efeito anti-inflamatório e diminui as citocinas pró-inflamatórias, propriedades muito úteis em situações de estresse importante como cirurgia, sépsis e no trauma. Embora tenha efeito inotrópico negativo intrínseco e propriedades vasodilatadoras, a cetamina preserva a estabilidade hemodinâmica pelo efeito simpático secundário ao induzir a libertação de catecolaminas, (atenção, por isso, aos casos de hipertensão e/ou aneurisma), acabando por ser um estimulante cardiovascular: incrementa a pressão arterial, o cronotropismo e a resistência dos vasos periféricos. Por estas propriedades é um fármaco de primeira eleição nos casos cursando com hipotensão, (sépsis), broncospasmo (efeito broncodilatador) e nos queimados. Garante uma associação segura com propofol (ver adiante) por manter estabilidade hemodinâmica. Tem metabolismo hepático e excreção renal. (Quadro 11)

Como efeitos secundários indesejáveis regista-se o aumento das secreções orais e brônquicas.

QUADRO 11 – Cetamina: doses e vias de administração

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua; concentração de 5-10 mg/mL
Cetamina
Sedação para procedimentos 1 mg/kg/dose, pode-se repetir bólus (lento)
Anestésico 2 mg/kg/dose
Perfusão 5-20 mcg/kg/min
Intramuscular 2-3 mg/kg/dose

Uma dose endovenosa 1-2 mg/kg é normalmente adequada para induzir sedação com preservação da via aérea e de ventilação espontânea; por isso, permite realizar procedimentos dolorosos (suturas, colocação de catéteres centrais, redução de fracturas) em doentes não ventilados.

Tiopental

É um barbitúrico de acção ultracurta, início de acção imediata, com duração de 5 minutos. Produz sedação profunda e apneia em 15-30 segundos. Diminui o fluxo cerebral, o consumo de oxigénio cerebral e a pressão intracraniana. Indicado para procedimentos rápidos como a entubação. Indicado, também, na hipertensão intracraniana, e ainda na abordagem do estado mal convulsivo; as crises convulsivas podem ser controladas com tiopental enquanto os agentes anticonvulsantes não atingirem os níveis terapêuticos ideais. O uso de tiopental em perfusão já pressupõe ventilação assistida e possível suporte vasopressor. Tem eliminação hepática e excreção renal.

As doses em diferentes situações constam do Quadro 12.

QUADRO 12 – Doses do Tiopental (ev)

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua; concentração máxima de 50 mg/mL
TIOPENTAL ev SEDAÇÃO curta ENTUBAÇÃO MAL CONVULSIVO
DOSE 1-3 mg/kg 3-5 mg/kg 1-5 mg/kg/h
Propofol

O propofol pertence ao grupo de anestésicos gerais; tem início de acção muito rápida (15-45s), e despertar também rápido. É metabolizado no fígado e eliminado pelo rim. Pode ser utilizado na sedação de jovens e adultos em ventilação mecânica, nas crianças com mais de um mês de idade (de acordo com o INFARMED, 2014) e adultos durante procedimentos de diagnóstico e cirúrgicos.

A administração rápida produz vasodilatação com diminuição das resistências periféricas e do inotropismo, pelo que deverá ser evitado em doentes hipovolémicos ou hemodinamicamente instáveis. Em perfusão contínua e prolongada (>10 mg/k/h) por mais de 48 horas, associa-se a acidose metabólica. Assim, a perfusão contínua e prolongada, não está recomendado em crianças pequenas, pela probabilidade de surgimento da chamada síndroma de perfusão do propofol (acidose metabólica, hipercaliémia, hiperlipémia, hepatomegália, insuficiência renal, disritmia, e insuficiência cardíaca. (Quadro 13)

Este fármaco está contra-indicado em casos de alergia ao ovo, à soja e ao amendoim.

QUADRO 13 – Doses de administração do Propofol (ev) e respectivos efeitos

PROPOFOL
Indução anestésica 2,5-3,5 mg/kg
Sedação 1-2 mg/kg
Perfusão 1-4 mg/kg/h
Etomidato

É um anestésico com início de acção imediata, indicado na indução de anestesia para procedimentos de curta duração, procedimentos de diagnóstico ou intervenções rápidas que exigem uma recuperação rápida sem sintomas residuais. O seu tempo de actuação é mais curto do que o do midazolam. A dose em bólus por via ev é 0,2-0,3 mg/kg.

Trata-se do anestésico com menor repercussão hemodinâmica, diminuindo a pressão intracraniana através da diminuição do fluxo cerebral e diminuição do consumo de oxigénio. Não recomendado para uso de rotina em doentes críticos ou sujeitos a estresse grave pelos efeitos de supressão da função da suprarrenal (inibe a 11-beta hidroxilase). Em tais circunstâncias deve proceder-se sempre à administração duma dose de reposição de prednisolona (1-2 mg/kg) de forma a acautelar a disfunção adrenocortical. Pode ocorrer supressão prolongada de cortisol e aldosterona quando administrado em perfusão contínua; por isso, este modo de administração não é aconselhado. Não possuindo efeito analgésico, recomenda-se a administração simultânea de um opióide como o alfentanil.

Protóxido de azoto

O protóxido de azoto é um gás anestésico, que associa propriedades analgésicas e amnésicas. É usado por via inalatória com máscara, permitindo diminuir a ansiedade e o medo, aumentando o limiar da dor e melhorando a cooperação da criança. Pode ser usado através de uma mistura equimolar de 50% de protóxido de azoto e pelo menos 50% de oxigénio (MEOPA). A via inalatória é feita através de uma máscara (com fluxo de 4 l/min) e durante pelo menos 3-4 minutos antes do início do procedimento.

A criança deve permanecer sempre comunicativa, já que o nível de sedação pretendido é mínimo. Verifica-se uma resposta normal a comandos verbais, sendo que, por outro lado, a função cardiovascular e respiratória permanece inalterada. Se a criança adormecer durante a administração, deve suspender-se o fornecimento do gás, passando a oxigénio unicamente. O procedimento pode manter-se desde que o paciente responda ao estímulo táctil. No fim de cada procedimento deve administrar-se oxigénio a 100%.

A sedação consciente mantém intactos os reflexos protectores da via aérea. O início rápido de acção e eliminação rápida (3-5 min), associados a ausência de nefrotoxicidade ou hepatotoxicidade são características que tornam o protóxido de azoto uma opção válida em pediatria, proporcionando segurança no seu uso, designadamente sem depressão do centro respiratório.

As suas limitações relacionam-se com dificuldades na adaptação da máscara, seja por falta de aderência, seja por alterações anatómicas faciais: distúrbios psiquiátricos, traumatismo craniano com alteração do estado de consciência, e associação de patologia com risco de expansão das cavidades com ar sob tensão, como pneumotórax. Também, tratando-se de procedimentos mais cruentos, esta abordagem poderá não ser suficiente.

A utilização desta técnica está indicada em procedimentos de curta duração, em casos de dor de intensidade ligeira ou moderada, mas associada a um elevado nível de ansiedade. Muito útil em pequenos procedimentos como punção venosa, punção lombar, cateterismo para uretrocistografia, suturas de pele, correcção de fractura, tratamento dentário e procedimentos endoscópicos.

Esquemas terapêuticos

Depois de avaliada a condição clínica do doente e os potenciais efeitos secundários dos fármacos, a escolha deve ser baseada no efeito pretendido, escolhendo para isso fármacos com menor risco, com doses mais baixas, e com possibilidade de existir antídoto. (ver Quadros seguintes)

A aplicação de escalas de dor é, mais uma vez, muito útil para decisão terapêutica.

QUADRO 14 – Analgesia de acordo com situação clínica e grau da dor

Dor Leve Dor moderada Dor intensa
Paracetamol Associação de 2 AINE Opióide em bólus
Metamizol AINE + Opióide Opióide em perfusão
Cetorolac Opióide + Midazolam

QUADRO 15 – Terapêutica em função do tipo de procedimento

Procedimentos não dolorosos Ecografia, Tomografia, Ressonância Magnética
Colaborante Sem necessidade
Não colaborante e sem via Hidrato de cloral, Hidroxizina oral Midazolam oral (0,5-0,75 mg/kg), 20 min antes
Não colaborante e com via Midazolam ev 0,05-0,1 mg/kg, lento, no local
Procedimentos dolorosos
Canalização venosa, punção lombar EMLA, ponderar de acordo com idade, clínica e colaboração restante sedação
Pensos, queimaduras, drenos torácicos em doentes não ventilados Cetamina+Midazolam Alfentanil+Midazolam Alfentanil+Propofol
Pensos, queimaduras, drenos torácicos em doentes ventilados Fentanil/Alfentanil+Midazolam (sedação profunda) Fentanil/Alfentanil+Midazolam+Vecurónio ou Rocurónio
Procedimentos muito dolorosos Doses até sedação profunda
Biópsia medula, hepática, renal, desbridamento de feridas, queimaduras Canalização de vias centrais Fentanil/Alfentanil+Midazolam Fentanil/Alfentanil+Propofol Cetamina+Midazolam

 

Esquemas terapêuticos segundo a patologia

O quadro 16 esquematiza as noções anteriormente expostas.

QUADRO 16 – Terapêutica segundo patologia

TRAUMA
Sem traumatismo cranianoCom traumatismo craniano e estabilidade hemodinâmicaSem estabilidade hemodinâmica
Midazolam+AlfentanilPropofol+RemifentanilMidazolam+Cetamina
Midazolam+CetaminaMidazolam+RemifentanilMidazolam+Alfentanil
 Midazolam+Alfentanil 
QUEIMADO
AlfentanilUso preferencial pelo seu efeito sobre a dor
HIPERTENSÃO INTRACRANIANA
Midazolam/Propofol+RemifentanilPonderar Tiopental (Coma Barbitúrico)
Ponderar Vecurónio/Rocurónio 
ENTUBAÇÃO
SedaçãoMidazolam
Cetamina (asma, hipotensão, choque)
Propofol
Nota – Com instabilidade hemodinâmica deve-se evitar o Propofol.
VENTILAÇÃO MECÂNICA
Midazolam+Fentanil/AlfentanilBólus e perfusão
Propafol+Fentanil/AlfentanilBólus e perfusão
Adicionar relaxante muscularQuando há transporte do doente
Risco de auto-extubação
Assistência respiratória agressiva


O Quadro 17 descreve aspectos sucintos do tratamento dos efeitos secundários dos opióides.        

QUADRO 17 – Tratamento dos efeitos secundários dos opióides

Digestivos
(náuseas, vómitos, dor abdominal)
Cutâneos
(prurido)
Urinários
(retenção urinária)
Metoclopramida
0,1-0,2 mg/kg/dose cada 6-8 h IV
Diminuição da dose opióidesAlgaliação
Ondasetron
0,1-0,2 mg/kg/dose 6-6 h IV
Compressas friasDiminuir dose de opióide
Difen-hidramina
1,25 mg/kg/dose 6-6 h IV
Difen-hidraminaBetanecol 0,05 mg/kg/dose de 8-8 h
PO SC
Droperidol
10-30 mcg/kg dose IV
  
Naloxona
0,01 mg/kg IV
Mudar para Cetamina 

Tolerância, dependência e abstinência

O uso de opióides, benzadiazepinas, barbitúricos e de cetamina por períodos curtos e em baixa dose, raramente induzem abstinência. O risco de abstinência é de 50% com o uso de fentanil por mais de 5 dias ou numa dose cumulativa maior que 1,5 mg/kg enquanto, para o midazolam, este risco ocorre com uma dose cumulativa total superior a 60 mg/kg.

Existem vários esquemas de redução da dose destes fármacos cuja descrição ultrapassa os objectivos deste livro.

Escalas de sedação

Os níveis de sedação dos doentes devem ser avaliados, a fim de evitar uma sedação mais profunda do que a necessária, reduzindo tempo de ventilação mecânica e de internamento, e não agravar o prognóstico pela associação de complicações e maior mobilidade. Para a descrição das referidas escalas, sugere-se ao leitor a consulta da bibliografia.

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TRAUMATISMOS CRANIOENCEFÁLICOS (TCE)

Definição e importância do problema

Ao abordar-se o tópico TCE, importa estabelecer uma destrinça entre traumatismo craniano e traumatismo cranioencefálico. A primeira situação refere-se ao problema clínico associado a concussão e contusão da cabeça. O TCE refere-se às situações em que a lesão traumática da cabeça origina perda transitória da consciência, perturbação do estado mental ou amnésia com ou sem défice neurológico. Nas formas ligeiras de TC ligeiro a criança está consciente ou é facilmente despertável, não se verificando défice neurológico. De acordo com estudos epidemiológicos, na maioria das situações não se verifica evolução de TC para TCE.

A lesão cerebral constitui a causa mais frequente de morte por traumatismo em idade pediátrica (75-97%). As causas mais frequentes variam de acordo com o grupo etário: em menores de 4 anos são as quedas e acidentes de viação, com destaque em menores de 1 ano para a síndroma da criança batida e, em adolescentes, os acidentes desportivos e de viação. De referir que o veículo motorizado é o componente que comporta maior risco no ambiente que rodeia a criança.

Os TCE correspondem a cerca de 50% dos acidentes no primeiro ano de vida e a 25% dos mesmos até aos 5 anos. Nos EUA estima-se uma incidência de 200-300 casos por 100.000 crianças por ano, correspondendo a cerca de 1-2% de todas as situações de emergência no referido grupo etário. Destas, cerca de 5% são fatais. 

Etiopatogénese

O TCE pode originar dois tipos de lesão: primária e secundária.

A chamada lesão primária é imediata e corresponde à lesão física

do couro cabeludo, crânio, dura, vasos e parênquima nervoso (neurónios, dendritos, axónios, glia). Descrevem-se os seguintes mecanismos de lesão: impacte (hemorragias epidural, subdural, intracerebral, contusão, fracturas); inércia (concussão, lesão difusa axonal); hipóxia/isquémia.

Se a lesão primária não for reconhecida, poderá surgir lesão secundária na base da qual estão cinco categorias de mecanismos: excitotoxicidade, isquémia e falência de energia, activação da cascata da inflamação, lesão/ruptura tecidual, e lesão dos axónios.

Todos estes fenómenos associam-se a eventos clínicos diversos: hipotensão sistémica, insuficiência respiratória e hipóxia-isquémia, assim como herniação cerebral ou do tronco cerebral como resultado de edema cerebral ou hemorragia intracraniana com consequente hipertensão intracraniana, agravante da hipóxia-isquémia/hipoperfusão cerebral. A presença de tecido cerebral lesado, por sua vez, poderá comprometer o débito sanguíneo cerebral, por disfunção do mecanismo de autorregulação.

A localização do encéfalo no interior da calote craniana confere protecção às agressões externas. Contudo, a rigidez óssea opõe-se às variações do volume do conteúdo intracraniano, exceptuando nas primeiras idades em que se verifica certo grau de distensibilidade da calote enquanto não se verificar o encerramento das fontanelas e suturas. Ou seja, a partir das idades em que a calote deixa de ser distensível, a expansão do tecido cerebral, ou dos fluidos que circulam dentro do crânio por lesão traumática originam elevação da pressão intracraniana (hipertensão intracraniana). Especificando: qualquer aumento do volume do tecido cerebral, do volume de sangue contido no tecido cerebral e meninges, e/ou do volume do LCR por patologia (como edema, hemorragia ou hidrocefalia) origina desvio do LCR para o canal espinal como mecanismo de compensação, o que, como se pode calcular, tem limites.

Se o aumento do volume intracraniano for muito acentuado, a pressão intracraniana (PIC) aumenta rapidamente. Se a PIC exceder a pressão venosa (PV) os vasos cerebrais são comprimidos, o que se repercute sobre a pressão de perfusão cerebral (PPC- pressão que garante o débito sanguíneo cerebral); a consequência é a redução do débito sanguíneo cerebral.

Recordam-se, a propósito, algumas noções básicas:

  • A PPC é a diferença entre a pressão nas artérias à entrada na calote craniana e a PIC;
  • Na maior parte dos órgãos, o débito sanguíneo é directamente proporcional à diferença entre a pressão arterial e a pressão venosa (pressão de perfusão) e inversamente proporcional à resistência que o órgão oferece ao leito vascular;
  • Nalguns órgãos como o coração e o cérebro, verifica-se igualmente um mecanismo de regulação através do tono vascular (resistência vascular) de modo a garantir débito sanguíneo constante face às variações da pressão de perfusão; trata-se do fenómeno de autorregulação.

Ao nível ultraestrutural são verificados os seguintes eventos com resultado do TCE:

  • Depleção de fosfocreatina com repercussão no défice de energia para as reacções requerendo ATP;
  • Falência da membrana com perda de gradientes iónicos, aumento de Ca++ e Na+ e diminuição de K+ intracelulares;
  • Libertação de ácidos gordos livres da membrana neuronal;
  • Acção do glutamato e de outros aminoácidos excitatórios originando lesão neuronal (excitotoxicidade) paralelamente à produção de radicais livres;
  • Estresse oxidativo (acção do O) e nitrativo (acção do N) como resultado da disfunção mitocondrial;
  • Peroxidação lipídica e oxidação proteica, conduzindo a lesão do ADN, necrose e apoptose; estes fenómenos são associados a nível elevado de poli-insaturação;
  • Edema citotóxico conduzindo a necrose neuronal e edema vasogénico (relacionado com disfunção da barreira hemato-encefálica por inflamação).

Actuação inicial

Sendo os TCE situações emergentes, importa abordar aspectos da actuação inicial (prioritária) antes da descrição sucinta das formas clínicas mais frequentes e dos procedimentos a realizar durante a estadia do doente na unidade de cuidados intensivos pediátricos. (Figura 1)   

Numa perspectiva prática, a actuação no âmbito deste problema clínico pressupõe um trabalho coordenado de equipa treinada, importando chamar a atenção para a necessidade de uma sequência de gestos:

  • Tratar prioritariamente a disfunção respiratória e cardiovascular;
  • Anamnese inquirindo sobre circunstâncias em que se verificou o acidente, sinais e sintomas ocorridos eventualmente como convulsões, vómitos, hemorragias nasais ou auriculares, perda de LCR etc.;
  • Exame somático global para detecção de lesões como abdómen agudo, fracturas, lesões torácicas etc;
  • Observação cuidadosa da calote craniana;
  • Monitorização dos sinais vitais (pressão arterial e pulso; hipertensão e bradicárdia apontam para hipertensão intracraniana, enquanto hipotensão e taquicárdia, para choque hipovolémico);
  • Avaliação neurológica prévia englobando atenção especial: – às pupilas (simetria, dimensões e reacção à luz), ao nível de consciência de modo estruturado, objectivo e mensurável em cada caso – através da escala de Glasgow ou Glasgow Coma Scale/GCS; e – à existência de défices motores e de sinais meníngeos; anisocória pode sugerir herniação ou hematoma epidural ou subdural;
  • Outros procedimentos a aplicar concomitantemente em função do contexto clínico (Quadros 1 e 2); salienta-se que a realização de radiografia do crânio nos TC ligeiros é pouco esclarecedora; por isso, é dada preferência à TAC-CE em situações acompanhadas de perda de consciência, sinais de fractura, suspeita de síndroma da criança batida, sinais neurológicos focais, ataxia, cefaleias e vómitos persistentes, otorráquia, rinorráquia, convulsão ou antecedentes de discrasias sanguíneas; a necessidade de suporte ventilatório implica seguramente, também, monitorização hemodinâmica invasiva e monitorização da PIC. De salientar que pode ocorrer herniação apesar de valores de PIC normais.

Nota: uma TAC-CE inicial normal não exclui a hipótese de se desenvolver hipertensão intracraniana ou de aparecerem outras lesões. Deverá repetir-se o exame se:

  • TAC-CE realizada nas primeiras 6 horas
  • Após 24 horas se a TAC-CE inicial evidenciar sinais de patologia
  • Se houver agravamento clínico
  • 24 h após drenagem de colecção para excluir recidiva
  • 24 h após primeira TAC normal, em doentes sedados, sem monitorização de PIC

FIGURA 1. Algoritmo para casos de TCE na idade pediátrica

QUADRO 1- Monitorização neurológica (Glasgow Coma Scale)

Interpretação: graus 13-15: ligeiro compromisso neurológico; graus 9-12: moderado compromisso neurológico; graus < 8: grave compromisso neurológico
Melhor abertura dos olhos (1-4)Melhor resposta motora
(membros superiores (1-6))
Melhor resposta verbal (1-5)Melhor resposta verbal (1-5)
(modificado para criança mais nova)
    1. Sem resposta
    2. Responde à dor
    3. Responde à voz
    4. Espontâneo
    1. Sem resposta
    2. Extensão anormal (postura de descerebração)
    3. Flexão anormal (postura de descorticação)
    4. Flexão de retirada à dor
    5. Localização da dor
    6. Obedece a ordens
    1. Ausência
    2. Sons incompreensíveis
    3. Palavras inapropriadas
    4. Discurso confuso
    5. Orientado
    1. Ausência
    2. Inquieto, agitado
    3. Irritabilidade persistente
    4. Choro consolável
    5. Palavras apropriadas, sorri, fixa + segue

QUADRO 2 – Procedimentos ABC (Airway – Breath – Circulation)

Entubação traqueal: quando, quem, como?…
Quando:
      • Escala de coma de Glasgow (GCS) < 8
      • Decréscimo de 3 pontos na GCS, independentemente do valor inicial de GCS
      • Assimetria pupilar
      • Esforço respiratório ineficaz ou lesão torácica ou pulmonar significativa
      • Perda do reflexo faríngeo (gag)
      • Apneia
      • Convulsões
Por quem:
      • Pela mais qualificada e experiente pessoa disponível
      • Com a presença de, pelo menos, duas pessoas qualificadas e experientes
      • Com o apoio indispensável de equipa de enfermagem e de assistência respiratória
Como:

Sequência rápida de procedimentos:

          • Estabilização com tracção axial do pescoço se houver suspeita de lesão da coluna cervical (até prova em contrário, toda a lesão craniana está associada a lesão cervical)
          • Compressão da cartilagem cricóide
          • Pré-oxigenação com O2 a 100% e máscara (2-3 minutos)
          • Lidocaína (1-2 mg/kg) – prevenção da elevação da pressão intracraniana (PIC)
          • Tiopental: 2-3 mg/kg se TC + hipovolémia; 5-7 mg/kg na ausência de hipovolémia
          • Considerar bloqueio neuromuscular: vecurónio (0,2-0,4 mg/kg)
          • Entubação
          • Promover oxigenação e ventilação eficazes

Algumas formas clínicas e actuação em situações específicas

 Importa considerar as principais formas clínicas de apresentação, descritas a seguir, chamando-se a atenção para medidas particulares de actuação. (Figuras 2 a 7)

Associada a qualquer das formas clínicas, poderá estar a hipertensão intracraniana; recordam-se os sinais principais desta última: alteração do estado de consciência, edema da papila, cefaleias e paralisia do 6º par craniano.

Poderá verificar-se evolução para herniação perante as seguintes circunstâncias:

  • Anisocória por midríase unilateral; ou
  • Tríade de Cushing (hipertensão, bradicardia e padrão respiratório anómalo).

Fracturas do crânio

Existindo uma força de impacte importante, o clínico poderá deparar-se com diversas situações:

  • Fractura linear; deverá ser ponderada a vigilância no domicílio ou no hospital.
  • Fractura exposta (risco de lesão directa do SNC e risco infeccioso); tal implica necessidade de avaliação neurocirúrgica.
  • Fractura com afundamento (quando a tábua interna sofre uma deslocação superior à espessura do osso); obriga à necessidade de avaliação neurocirúrgica e antibioticoterapia.
  • Fractura da base do crânio (basilar); o diagnóstico é clínico e imagiológico. A TAC evidencia sinais de fractura e de lesões cerebrais associadas. Relativamente ao exame objectivo há a salientar:
    • equimose retroauricular ou mastoideia (sinal de Battle) – por dissecção do sangue na região occipital ou mastoideia;
    • laceração do canal auditivo externo, nervos facial e auditivo (fractura do rochedo temporal);
    • hemorragia endotimpânica com abaulamento (fractura do rochedo temporal);
    • equimose periorbitária (racoon eyes)difusão do sangue para a região periorbitária;
    • perda de LCR (nasal, canal auditivo) <> ruptura da leptomeninge.

Este tipo de fracturas exige hospitalização, fluidoterapia IV, analgésicos e anti-eméticos, estando contra-indicada a entubação nasogástrica pelo risco de lesão da lâmina crivada do etmóide. A evolução, embora decorra habitualmente sem complicações, estas poderão surgir:

  • perda de LCR pela lâmina crivada do etmóide é a mais frequente (~80%), em geral com cura espontânea em cerca de 1 semana;
  • meningite (3-25% com rinorráquia; 4,5% com otorráquia); está contra-indicada a antibioticoterapia profiláctica;
  • lesão dos nervos cranianos: entre 3-10% com anósmia (permanente), entre 1-10% com paralisia ocular recuperando na maioria dos casos (~75%); entre 1-12% paralisia facial, com recuperação em cerca de 90%; e, em cerca de 2%, surdez neurossensorial completa.

Concussão

Trata-se da perda de consciência transitória na sequência de traumatismo craniano (termo descritivo, sem especificar alterações anatómicas ou fisiológicas). A sintomatologia acompanhante varia:

  • Nas crianças mais novas: sonolência e vómitos arrastados, sendo elevada a incidência de convulsões benignas pós-traumáticas.
  • Nas crianças mais velhas (colaborantes): amnésia pós-traumática, com duração proporcional à gravidade do trauma).

De um modo geral, verifica-se a normalização da função neurológica em 1 semana. A chamada síndroma pós-concussão pode persistir até 1 ano (ligeiro atraso na aprendizagem, alterações de comportamento, cefaleias ligeiras ou moderadas).

Contusão

Esta designação refere-se à maceração do tecido nervoso com hemorragia microscópica, sem laceração de tecidos.

As causas mais frequentes relacionam-se com agressão directa e efeito por desaceleração/aceleração.

Verifica-se deterioração neurológica relacionada com edema local progressivo, enfarte ou hematoma.

O tratamento é fundamentalmente médico: controlo da PIC. Em função da magnitude das lesões e sintomatologia, poderá estar indicado tratamento cirúrgico: drenagem do hematoma. O prognóstico é favorável.

FIGURA 2. Hematoma epidural (Esquema)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos (Imagem de TAC)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos pós-drenagem cirúrgica (TAC)

FIGURA 3. Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos

Hematoma epidural

Esta forma clínica, geralmente associada a fractura, corresponde à colecção de sangue entre o crânio e a dura-máter. (Figuras 2, 3, 4)

Os factores etiológicos relacionam-se com agressão directa sobre a cabeça, com energia suficiente para descolar a dura do crânio. Trata-se dum hematoma limitado pelas linhas das suturas, podendo a sua origem ser arterial (manifestações surgidas cerca de 6-8 h após evento desencadeante), ou venosa (de início de manifestações mais tardio, cerca de 24 horas depois da acção do desencadeante). Classicamente existe um intervalo livre de tempo (intervalo lúcido) entre o evento agressivo e o início das manifestações clínicas com deterioração neurológica em geral rápida; as manifestações dependem da expansão maior ou menor do hematoma, da possível herniação do lobo temporal e da eventualidade de compressão da protuberância. A anisocória, como se disse, poderá ser um sinal suspeito. O hematoma da fossa posterior é assintomático em geral até se verificar herniação.

A TAC CE evidencia sinais de lesão de alta densidade, localizada, lenticular e efeito de massa.

A actuação emergente consiste em craniotomia. O prognóstico favorável:  mortalidade 5% e recuperação em cerca de 90% dos casos.

Hematoma epidural agudo em criança com 11 anos de idade (Imagem de TAC)

FIGURA 4. Hematoma epidural agudo em criança de 11 anos

Hematoma subdural agudo

O hematoma subdural agudo é uma colecção de sangue na superfície do córtex, debaixo da dura, em geral associada a lesão cortical (laceração de vasos ou contusão cortical), por acção mecânica de agente externo. (Figura 5)

Ao contrário do hematoma epidural, não está limitado pelas linhas das suturas, podendo ser holo-hemisférico.

As manifestações neurológicas surgem abruptamente, sem intervalo lúcido, o que se pode relacionar com lesão parenquimatosa grave associada. Poderá surgir anisocória entre outros sinais.

A TAC CE, realizada com carácter emergente, evidencia sinal em forma de crescente de hiperdensidade localizado ao longo da convexidade, efeito de massa importante, lesão cerebral subjacente e sinais de edema cerebral.

O tratamento é médico e cirúrgico. O prognóstico é menos favorável do que no caso do hematoma epidural.

Hematoma subdural crónico

Esta situação corresponde a uma colecção hemática no espaço subdural com produtos sanguíneos degradados. O principal factor etiopatogénico é um trauma não acidental (especialmente por abuso).

Raro em crianças depois dos 2 anos (a distensibilidade craniana – fontanelas e suturas – permitem uma lenta acumulação de líquido subdural), manifesta-se por convulsões como epifenómeno de irritação cortical; poderão verificar-se hipertensão intracraniana e hemorragias retinianas.

A TAC CE revela: sinais de colecção hipodensa nas convexidades cerebrais, em forma de crescente; alargamento dos espaços do LCR; e sulcos espaçados. (Figura 6)

O tratamento é geralmente médico e, por vezes, cirúrgico.

Hematoma subdural (Esquema)

Hematoma subdural (imagem de TAC)

Hematoma subdural com drenagem externa (imagem de TAC)

Hematoma subdural agudo em lactente de 3 meses de idade no contexto de sépsis meningocócica

FIGURA 5. Hematoma subdural agudo

Hematoma subdural crónico em criança de 8 meses de idade vítima de maus tratos (shaken baby) (TAC)

FIGURA 6. Hematoma subdural crónico

Hematoma intracerebral

Esta entidade clínica é pouco frequente na idade pediátrica. Em geral associado a lesão parenquimatosa grave, acompanha-se de prognóstico reservado. (Figura 7)

O tratamente consiste essencialmente em drenagem cirúrgica.

Hemorragia intracerebral num recém-nascido (TAC). Uso de derivação ventrículo-peritoneal como tratamento da hidrocefalia sequelar.

FIGURA 7. Hemorragia intracerebral

Lesão penetrante

Nos casos de lesões penetrantes está indicada intervenção neurocirúrgica emergente com avaliação imagiológica (TAC CE, RM ou angiografia). O objecto penetrante não deve ser removido pelo risco de hemorragia.

Deverá proceder-se a antibioticoterapia profiláctica e a terapêutica anticonvulsante em situações associadas a lesão cortical.

Hemorragia intraventricular

Este tipo de lesão traumática é, na maioria dos casos, provocada por pequenos traumas, com resolução espontânea. Existe risco de hidrocefalia obstrutiva.

Poderá estar indicada derivação ventriculoperitoneal.

Hemorragia subaracnoideia

Constitui a hemorragia intracraniana pós-traumática mais frequente.

Os sinais clínicos incluem: irritação das meninges pela hemorragia (cefaleias, rigidez da nuca, agitação, náuseas/vómitos). O tratamento é sintomático, incluindo analgesia com paracetamol e corticosteróides.

Lesão axonal difusa

Esta entidade corresponde a ruptura das vias axonais (resultado do efeito desaceleração/aceleração do crânio) com repercussão sobre os núcleos basais, tálamo e corpo caloso. A RM revela sinais de pequenas e numerosas hemorragias, assim como edema parenquimatoso difuso.

O prognóstico é reservado pelas sequelas, obrigando a ulterior reabilitação.

Lesão de golpe-contragolpe

Esta lesão traumática pode resultar de queda para trás com consequentes lesões bilaterais ou de acção traumática exercida sobre a região frontal (Figura 8). Geralmente estão implicados os lobos frontal inferior e temporal.

Neste tipo de lesões há grande probabilidade de ocorrer hemorragia subaracnoideia com contusão dos lobos frontal e temporal.

Síndroma do bébé abanado (Shaken Baby Syndrome)

A esta situação já foi feita referência no capítulo sobre “a criança maltratada” (volume 1).

Como consequência da oscilação da cabeça para a frente e para trás originando flexões e extensões da região cervicocefálica rápidas, intermitentes e até ao limite de mobilidade, poderá surgir lesão craniana fechada inesperada. Recorda-se, a propósito, frequente atraso na procura de apoio médico e história inconsistente ou ausente de evento traumático.

As características fundamentais das lesões são:

  • Hematoma subdural e/ou hemorragia intraparenquimatosa;
  • Hemorragias retinianas bilaterais (Figuras 9 e 10);
  • Fracturas ocultas;
  • Verificação de lesões antigas e recentes.

FIGURA 8. Lesão tipo chicote (golpe-contragolpe) – lesão de cabeça fechada com lesão cerebral resultante. Exibe os seguintes estágios: A. à cabeça empurrada para trás com o cérebro a chocar com a parede do crânio (impacte primário); e B. à cabeça é empurrada para a frente com o cérebro a chocar com a parede posterior do crânio (impacte secundário)

FIGURA 9. Hemorragia peripapilar (Fundoscopia)

FIGURA 10. Hemorragia intra e pré-retinal (Fundoscopia)

  • Terapia e monitorização na unidade de cuidados intensivos

 Para além dos aspectos focados na alínea Actuação inicial, importa focar os procedimentos a aplicar durante a estadia do doente na UCIP:

Monitorização
  • Avaliação neurológica e exame objectivo seriado;
  • Monitorização contínua cardiorrespiratória e hemodinâmica (frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial invasiva, pressão venosa central, capnografia e diurese);
  • Monitorização da PIC (tratar se >15 mmHg até aos 2 anos e > 20 mmHg acima dos 2 anos) e da PPC; esta deve ser superior a 40-50 mmHg no lactente, 50-60 mmHg na criança e > 60 mmHg no adolescente);
  • Doppler transcraniano;
  • NIRS (near-infrared spectroscopy) – permite a monitorização não invasiva da saturação de O2 cerebral;
  • Outros métodos de monitorização: Saturação venosa jugular? Pressão tecidual de O2, potenciais auditivos evocados do tronco, microdiálise cerebral.
Tratamento
  • Oxigenação e a ventilação
    • Entubação imediata se GCS ≤ 8 ou rápida deterioração neurológica
    • Manter PEEP < 10 para prevenir a diminuição do retorno venoso
    • Evitar a hiperventilação; normocápnia
  • Circulação
    • Manter normovolémia, com soro fisiológico para as necessidades (soro dextrosado apenas se houver hipoglicemia)
    • Garantir o suporte hemodinâmico necessário, rendibilizando PPC de modo que se estabeleça a relação → PPC=PAM-PIC
  • Suspeitar de lesão cervical até esta ser excluída
  • Colocar sonda orogástrica se suspeita de fractura da base do crânio
  • Posição do pescoço na linha média, elevação da cabeceira a 30º
  • Tratamento da dor e da agitação (sedoanalgesia; considerar bloqueio neuromuscular quando necessário)
  • Monitorização cuidadosa da PIC durante os cuidados de enfermagem, limitando ao mínimo a manipulação; aspiração de secreções – só quando necessário; administração de bólus de lidocaína 1 mg/kg ev antes das aspirações e manipulações
  • Após preparação cuidadosa dos visitantes, permitir o contacto calmo
    NB – Corticóides sem indicação
  • Tratar a hipertensão intracraniana
    • Aumentar sedoanalgesia; relaxantes musculares
    • Considerar drenagem LCR quando possível (se cateter PIC intraventricular)
    • Drenar hemorragias ocupando espaço se aplicacável
    • Promover fluidoterapia hiperosmolar:
      • manitol: 0,25-0,5 g/kg/dose): manter osmolalidade sérica < 320 mOsm/kg para evitar agravamento da lesão do tecido neural; pode associar-se furosemido
      • soro salino hipertónico (NaCl 3%-2-6 ml/kg; modo de preparação: 15 ml NaCl 20%+85 ml água destilada), pode seguir perfusão contínua 0,1-1 ml/kg/h; manter osmolalidade sérica < 360 mOsm/kg
    • Hiperventilação moderada (pCO2 30-35 mmHg)
    • Se falência das medidas anteriores:
      • hiperventilação intensa (pCO2 < 30 mmHg)
      • coma barbitúrico
      • craniectomia descompressiva
  • Diminuir a taxa metabólica cerebral
    • Prevenir as convulsões (fenitoína, fenobarbital)
    • Tratar agressivamente as convulsões (diazepam, fenitoína, fenobarbital)
    • Reservar o tiopental/pentobarbital para situações refractárias
    • Evitar a hipertermia; normotermia como meio de preservar o tecido cerebral; em relação a hipotermia (32-34ºC) – ainda não está provada a eficácia em crianças
    • Evitar a hiperglicemia; perfusão de insulina se necessário
  • Tratar possíveis complicações – disfunção do eixo hipotálamo-hipófise
    • Diabetes insípida central
    • Secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH)
    • Insuficiência suprarrenal

Procedimentos após a alta hospitalar

Após a alta, os pais ou prestadores de cuidados no domicílio deverão ser esclarecidos sobre a necessidade de vigilância, incidindo a atenção sobre determinados aspectos, quer nos casos de TCE, quer nos de TC ligeiro:

  • Alteração do estado mental/comportamento
  • Observação das pupilas (dimensões, simetria e resposta à luz)
  • Dificuldade em falar
  • Alterações da visão
  • Desequilíbrio na marcha
  • Dificuldade em usar os membros superiores
  • Cefaleias ou vómitos persistentes
  • Convulsões
  • Febre

Abreviaturas

GCS: Glasgow Coma Scale
SNC: sistema nervoso central
TC: traumatismo craniano
LCR: líquido cefalo-raquidiano
PIC: pressão intracraniana
HIC: hipertensão intracraniana
UCIP: unidade de cuidados intensivos pediátricos
PAM: pressão arterial média
PA: pressão arterial
TAC CE: tomografia axial computotadorizada cranioencefálica
CID: coagulação intravascular disseminada
SIHAD: síndroma secreção inapropriada de hormona anti-diurética
PPC: pressão de perfusão cerebral
ET: endotraqueal
SF: soro fisiológico

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HIPERTERMIA E HIPOTERMIA

1. HIPERTERMIA

Definições e importância do problema

A temperatura corporal compreende dois componentes: a chamada temperatura central (ou do interior do corpo), e periférica (ou do exterior, à superfície do mesmo). A temperatura central pode ser representada pela temperatura rectal, esofágica e oral; por sua vez, a temperatura periférica pode ser exemplificada pela temperatura cutânea, em geral determinada na região axilar. Cabe salientar, a propósito, que a temperatura central se relaciona com o risco de lesão dos vários órgãos.

Os termorreceptores em relação com a temperatura periférica residem na pele, enquanto os receptores para a temperatura central estão localizados, não só na pele, como no córtex cerebral, hipotálamo, tronco cerebral, medula espinhal e estruturas abdominais profundas.

Com as variações de temperatura, estes receptores transmitem impulsos aferentes através do feixe lateral espinotalâmico para o termóstato central localizado no hipotálamo anterior/pré-óptico que, com papel regulador, contribui para que a temperatura corporal se mantenha dentro dos níveis de normalidade (36-37,5ºC).

O termo genérico hipertermia refere-se à situação em que se verifica elevação da temperatura corporal para além dos limites de regulação do hipotálamo, quer por perda, quer por ganho excessivo de calor. O termo febre, com uma acepção mais ampla, designa especificamente elevação da temperatura central > 38,5ºC associada a determinados sinais e sintomas como taquicardia, taquipneia, delírio, letargia, alterações electrocardiográficas, etc.. Muitas vezes estes termos são empregues impropriamente como sinónimos.

O termo golpe de calor, situação potencialmente fatal, caracteriza-se pela elevação da temperatura central > 40ºC, associada a sintomas e sinais com maior repercussão sobre o estado geral que na situação considerada febre.

Existem múltiplas implicações fisiopatológicas da elevação excessiva da temperatura, de grau diverso em função da susceptibilidade individual, de base genética. A este propósito salientam-se as repercussões neurológicas, sobretudo ao nível do cerebelo, órgão particularmente sensível a altas temperaturas; outros problemas relacionam-se com a possibilidade de lesões no tubo digestivo e neurológicas, como hemorragia intracraniana, enfarte cerebral, edema cerebral, hipóxia-isquémia, etc..

Etiopatogénese

Para a melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes de hipertermia, importa recordar os mecanismos fundamentais do balanço térmico no organismo.

O calor é produzido no organismo como resultado final do metabolismo celular e também adquirido a partir do ambiente. As reacções metabólicas são exotérmicas, contribuindo para 50-60 kcal/m2/hora. Durante um esforço físico intenso a produção de calor pode atingir valor 10-20 vezes superior ao do correspondente à situação basal.

Os mecanismos de transferência de calor são quatro:

1 – Convecção: o calor é transferido através do ar e do vapor de água circundante ao corpo (dependendo do movimento do ar na pele e velocidade do vento e explica o efeito do uso de roupas largas e folgadas em climas quentes para manter algum conforto);

2 – Radiação: o calor é transferido por ondas electromagnéticas; trata-se da principal fonte de ganho de calor em ambientes quentes – até 300 Kcal/hora podem ser ganhas num dia de Verão;

3 – Evaporação: a conversão de um líquido para um gás resulta em transferência de calor (por exemplo 1 litro de suor resulta em uma perda de 580 Kcal de calor);

4 – Condução: o contacto físico transfere calor de um objecto mais quente para um mais frio (a água é 25 vezes mais eficiente que o ar na condução de calor).

 A maior parcela da perda verifica-se através da pele, designadamente por evaporação induzida pela perspiração. De particularizar que através dos vasos à superfície da pele é perdido calor do sangue circulante a determinada temperatura por condução e convecção, sendo que o sistema simpático regula o débito sanguíneo ao nível da pele através do efeito sobre fibras vasodilatadoras ou vasoconstritoras.

As síndromas com hipertermia podem ter na sua base factores ambientais por aumento do calor (ondas de calor, maior humidade) ou diminuição da dissipação do calor (excesso de roupa, maior humidade, anidrose), aumento da produção de calor (exercício físico, tirotoxicose, hipertermia maligna, síndroma maligna neuroléptica, feocromocitoma, delirium tremens, hemorragia hipotalâmica, ingestão tóxica – simpaticomiméticos, anticolinérgicos, ecstasy) e causas genéticas ou desconhecidas. De salientar que nos casos de hipertermia em que se identifica o exercício físico como factor de risco, poderá haver concomitantemente predisposição genética.

A seguir à elevação da temperatura corporal (com maior impacte nas situações de golpe de calor) surge elevação do nível sérico de TNF-alfa, IL1, IL6 e de endotoxinas susceptíveis de originarem lesão tecidual. Do balanço entre os mediadores pró-inflamatórios (tais como interferão-gama e IL1-beta) e mediadores anti-inflamatórios (tais como TNF-alfa e IL10) resultará o grau de lesão. A vasodilatação que resulta dos mediadores desvia o sangue da circulação esplâncnica para a circulação à superfície, do que resulta, designadamente hipóxia-isquémia gastrintestinal. A activação da cascata da coagulação como resultado da lesão tecidual pela temperatura excessiva traduz-se pela presença do complexo trombina-antitrombina e por diminuição do nível sérico das proteínas C, S e da antitrombina III.

Formas clínicas

Golpe de calor

Nos casos de exposição a calor ambiente excessivo em diversos cenários pode verificar-se delírio, convulsões, letargia ou coma; neste contexto, com temperatura central > 40,6ºC deve suspeitar-se de golpe de calor.

Em relação com os eventos fisiopatotógicos atrás descritos, verifica-se o seguinte quadro clínico-biológico-imagiológico: hipotensão e hipovolémia, IRA, alterações electrocardiográficas e ecocardiográficas (disfunção miocárdica, disritmias, alterações da condução, alterações do intervalo QT e do segmento ST, etc.). O prolongamento do intervalo QT poderá ser devido a diminuição do cálcio, magnésio e/ou potássio séricos (hipocaliémia- inicialmente- como consequência da alcalose respiratória), hiponatrémia (perdas de Na por sudorese acentuada), hipoglicémia, hiperuricémia, rabdomiólise (valor elevado de CPK e mioglobinúria), acidose láctica (compensada com alcalose respiratória por hiperventilação) e CID são achados frequentes.

A rabdomiólise, frequente no contexto de golpe de calor, leva a hiperpotassémia com acção cardiotóxica, mioglobinúria, necrose diafragmática e insuficiência respiratória grave. Nos casos de rabdomiólise, e nas 24-48 horas subsequentes ao episódio agudo do golpe de calor, pode surgir quadro de choque por sequestração de volume considerável de fluido intramuscular (síndroma compartimental), o que agrava a necrose muscular por compressão.

O quadro de SDR (tipo adulto) com sinais de hipoventilação globar (pulmão branco) pode estar relacionado com lesão alveolar pulmonar com disfunção ou destruição do surfactante.

As complicações do golpe de calor ao nível do SNC poderão obrigar a TAC ou RM para esclarecimento de eventuais lesões.

O diagnóstico diferencial faz-se com afecções do SNC (por ex. meningoencefalite), doença de Graves, acção de drogas como neurolépticos e anticolinérgicos, síndromas de abstinência de drogas (narcóticos, benzodiazepinas), cetoacidose diabética, hipertermia maligna (esta última abordada adiante mais pormenorizadamente).

O tratamento (emergente) em UCIP implica a aplicação dum conjunto de medidas assim sintetizadas (Quadro 1):

  • Ressuscitação cardiorrespiratória em obediência aos princípios explanados no Capítulo próprio, admitindo-se a eventualidade de ulterior ventilação mecânica com PEEP e oxigenoterapia para correcção da hipoxémia, não ultrapassando FiO2 de 50%; há que ter atenção ao choque pelas 24-48 horas, após o episódio inicial nos casos de rabdomiólise;
  • Aplicação de vários métodos de arrefecimento com o objectivo de obter temperatura central < 39ºC;
  • Fluidoterapia/reidratação em caso de rabdomiólise, com o objectivo de promover diurese > 3 mL/kg/hora e prevenir a IRA;
  • Correcção das alterações electrolíticas, tais como hiperpotassémia, hipocalcémia, etc.;
  • Correcção da hiperfosfatémia com quelantes do fósforo e diálise;
  • Alcalinização da urina acrescentando bicarbonato de sódio aos fluidos IV (para obter pH urinário > 6,5 a fim de prevenir a precipitação da mioglobina no túbulo renal, necrose tubular e IRA);
  • Administração de manitol IV (0,25 g/kg) uma vez obtido o estado de hidratação, com o objectivo de promover diurese osmótica;
  • Fasciotomia nos casos de rabdomiólise com síndroma compartimental.

QUADRO 1 – Métodos de antipirexia no golpe de calor

Gerais

    • Criança sem roupa.
    • Antipirético associado a fluidoterapia anteriormente referida.
      • 1º fármaco ” paracetamol po (10-15 mg/kg/dose, 4-6x/dia, até 80 mg/dia; duração variável); em alternativa pode ser usado propacetamol IV em que 1 g <> 0,5 g de paracetamol
      • 2º fármaco ” ibuprofeno po (5-10 mg/kg/dia, 4-6x/dia, até 20 mg/kg/dia); duração variável
    • Banho com água a temperatura cerca de 4ºC inferior à temperatura central, precedido de antipirético.
    • Ingestão de líquidos se o estado do doente o permitir.


Específicos (a aplicar apenas em UCIP)

    • Imersão em água com gelo (risco de vasoconstrição, interferindo com as medidas de ressuscitação).
    • Aplicação de água atomizada em micropartículas (spray) com ar quente de modo a manter a temperatura corporal > 33ºC (equipamento próprio).
    • Envolvimento com lençol húmido associado a deslocação de ar com ventoinha.
    • Aplicação de sacos com gelo sobre as axilas, virilhas e pescoço.
    • Outros métodos (em investigação)
      • introdução, através de sonda, de água fria no estômago e bexiga
      • fluidoterapia IV com fluidos arrefecidos

 

Síndroma de hipertermia maligna clássica

A chamada hipertermia maligna (HM) clássica é definida como uma síndroma hereditária autossómica dominante, com expressividade e penetrância variáveis (em relação com gene anormal localizado em locus 19q13.1, conhecendo-se mais de 15 mutações); pode estar associada a determinadas miopatias, designadamente a conhecida por central core.

A sua incidência varia entre 1/15.000 anestesias efectuadas em crianças, e cerca de 1/50.000 em adultos.

A etiopatogénese relaciona-se com disfunção do músculo esquelético (estriado), traduzida por incapacidade de a membrana do retículo sarcoplásmico reter o cálcio, aumentando a sua libertação para a estrutura muscular envolvente, o que leva a contracção muscular permanente e consequente estado hipermetabólico. Este estado de hipermetabolismo conduz a um aumento do metabolismo anaeróbio por estimulação do catabolismo do glicogénio, com acumulação de ácido láctico, aumento da produção de calor e de CO2 e aumento de consumo de O2. O aumento da permeabilidade das membranas leva a necrose das fibras musculares (rabdomiólise) com libertação de enzimas, electrólitos e mioglobina para a circulação sanguínea. Como se pode depreender, existe repercussão destas alterações ao nível de vários órgãos e sistemas, pelo que o doente deverá estar monitorizado em UCIP com apoio laboratorial e imagiológico contínuo.

As manifestações surgem sob a forma de episódios agudos na sequência de exposição do doente a certos anestésicos gerais potentes e a certos anestésicos locais (Quadro 2); para além da temperatura corporal excedendo por vezes 41ºC, verificam-se rigidez muscular, trismo, acidose respiratória e metabólica, taquicárdia e taquipneia (por vezes relacionável com SDR tipo adulto). Na ausência de intervenção emergente, a rabdomiólise leva a aumento dos valores de CPK ~ 35.000 UI/L e a mioglobinúria), verificando-se entretanto, taquicárdia, hipercaliémia e IRA mioglobinúrica. A repercussão hepática e hematológica traduz-se por elevação de ALT, LDH, TP, PTT, anemia, trombocitopénia, diminuição do fibrinogénio, aumento de PDF, etc..

QUADRO 2 – Hipertermia maligna (HM): agentes desencadeantes e agentes agravantes

* MAO = monoaminoxidase
DesencadeantesAgravantes
      • Halotano
      • Enflurano
      • Isoflurano
      • Desflurano
      • Sevoflurano
      • Metoxiflurano
      • Tricloroetileno
      • Ciclopropano
      • Contraste radiológico halogenado
      • Clorofórmio
      • Éter
      • Etileno
      • Succinilcolina
      • Drogas simpaticomiméticas
      • Drogas parassimpaticolíticas
      • Digitálicos
      • Cálcio
      • Potássio
      • Inibidores da MAO*
      • Inibidores da angiotensina
      • Antidepressivos tricíclicos
      • Bloqueantes dos canais de cálcio

Cabe salientar que a HM tem um espectro de apresentação clínica variável; de acordo com o Grupo Europeu de Hipertermia Maligna, distinguem-se os seguintes tipos: 1) fulminante – o mais grave com, pelo menos três das seguintes manifestações: taquicárdia e arritmia cardíaca, acidose, hipercápnia, rigidez muscular e febre; 2) espasmo do masséter – a única manifestação é a contractura do masséter ou trismo que, só por si pode levar a admitir o diagnóstico de HM em 50% dos casos; 3) abortivo, traduzindo-se por alguns dos sinais e sintomas ou alterações metabólicas descritos; a tríade “hipertermia, hipercápnia e acidose” constitui a associação mais frequente.

No diagnóstico diferencial da HM clássica há que ter em conta a chamada síndroma simile HM (SSHM) surgindo na ausência de exposição, quer a anestésicos, quer a succinilcolina; tal situação ocorre nos casos de coma hiperosmolar hiperglicémico não cetótico, associado a diabetes mellitus tipo 2, sendo que a hipertermia é desencadeada após administração de insulina. O quadro, mais frequente em obesos afroamericanos com acanthosis nigricans, é acompanhado de rabdomiólise, instabilidade hemodinâmica e falência de órgãos.

O tratamento de emergência da HM (a cargo do anestesista ou intensivista) integra um conjunto de medidas descritas nos Quadros 3, 4 e 5, relacionando aspectos semiológicos e diagnósticos com a actuação segundo a Associação da Hipertermia Maligna dos Estados Unidos da América.

QUADRO 3 – Hipertermia maligna: Avaliação Imediata

Avaliação imediata
Sinais de hipertermia malignaParagem cardíaca súbita/inesperadaTrismo ou contractura dos masseteres com succinilcolina
Aumento de ETCO2
(CO2 expirado)
Presumir hipercaliémia e iniciar tratamentoSinal precoce de HM
Rigidez corporalMedição de CPK, mioglobina e gasimetria até os valores normalizaremIniciar dantroleno se rigidez dos membros
Trismo ou contractura dos masseteresConsiderar dantrolenoPara procedimentos emergentes evitar agentes desencadeadores de HM; considerar dantroleno
Taquicardia/ taquipneiaSuspeitar de patologia miopática (ex. distrofia muscular)Monitorizar CPK imediatamente e de 6/6 horas até normalizar e pelo menos até 36 horas. Se urina escura testar para mioglobinúria
AcidoseReanimação pode ser difícil e prolongadaInternamento em Cuidados Intensivos até pelo menos 12 horas
Aumento da temperatura (pode ser um sinal tardio)  

QUADRO 4 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Aguda

Tratamento na fase aguda
1. Notificar o cirurgião
      • descontinuar agentes voláteis e succinilcolina
      • hiperventilar com FiO2 100% ou > 10 L/minuto
      • suspender o procedimento quando possível; se emergente, não usar agentes desencadeantes
2. Dantroleno 2,5 mg/kg ev rápido
      • repetir até regressão dos sinais de HM
      • se necessário máxima dose 10-30 mg/kg
      • dissolver 20 mg em pelo menos 60 ml de água esterilizada
3. Bicarbonato para tratamento da acidose metabólica
      • 1-2 mEq/kg de imediato se ainda não houver valores de gasometria 
4. Arrefecimento do doente se temperatura central > 39ºC
      • lavagem das cavidades abertas (estômago: lavagem gástrica por sonda naso/orogástrica – instilar 10 ml/kg de água ou soro fisiológico gelado em 30-60 segundos e remover em 30-60 segundos (objectivo: reduzir 0,15ºC por minuto); também se pode utilizar a bexiga e a ampola rectal)
      • lavagem peritoneal por catéter peritoneal: instilar e drenar 500-1000 ml de soro fisiológico gelado até temperatura central atingir 38-39ºC (objectivo: reduzir 0,5ºC por minuto ou 5-10ºC por hora)
      • perfusão endovenosa de solução salina gelada
      • arrefecimento externo: aplicação de gelo à superfície corporal, imersão em água gelada, vaporização com água tépida (15ºC), evaporação com ventoínhas, ambiente frio (ar condicionado, refrigeração)
      • suspender estes procedimentos quando temperatura central < 38ºC
5. Disritmias geralmente respondendo ao tratamento da acidose e hipercaliémia
      • usar fármacos adequados excepto os bloqueadores dos canais de cálcio (risco de hipercaliémia ou paragem cardíaca na presença do dantroleno)
6. Hipercaliémia: tratar com hiperventilação, bicarbonato, glicose/insulina, calcio
      • bicarbonato ≥ 1-2 mEq/kg ev
      • insulina ≥ 0,1 Unidade/kg e 1 ml/kg de glicose a 50% (adulto: 10 U insulina regular ev e 50 ml de glicose a 50% ev)
      • gluconato de cálcio a 10% ≥ 10-50 mg/kg se risco de vida pela hipercaliémia
      • monitorizar glicemia de hora a hora
7. Monitorizar ETCO2, electrólitos, gasometria, CPK, temperatura central, diurese e coloração da urina, provas de coagulação
      • induzir diurese se < 0,5 ml/kg/h ou CPK e/ou caliémia em agravamento, para evitar insuficiência renal por mioglobinúria

QUADRO 5 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Pós- Aguda

Tratamento na fase pós-aguda
      1. Observação do doente em Cuidados Intensivos até pelo menos 24 horas pelo risco de recorrência
      2. Dantroleno 1 mg/kg ev de 4-6 horas de intervalo ou 0,25 mg/kg/hora de perfusão ev, até pelo menos 24 horas
      3. Monitorizar CPK de 6/6 horas e gasimetrias frequentes (ver item 7. da fase aguda)
      4. Monitorizar mioglobinúria e prevenir a precipitação da mioglobina nos túbulos renais e subsequente insuficiência renal aguda. Promover diurese aumentada e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio
      5. Sinalizar o doente e familiares em consultas médicas específicas. Risco de desenvolver esta situação em novas ocasiões e prevenção para que não ocorram

Síndroma neuroléptica maligna

Define-se a síndroma neuroléptica maligna (SNM) como situação rara associada ao uso de fármacos antipsicóticos após período de latência de dias ou semanas.

As manifestações clínicas incluem classicamente quatro sinais cardinais:

  1. Rigidez muscular;
  2. Alterações do estado mental (confusão, agitação, catatonia, encefalopatia, coma);
  3. Hipertermia; e
  4. Instabilidade autonómica (taquicárdia, HTA lábil, diaforese).

Para o tratamento têm sido usados os fármacos dantroleno, bromocriptina e amantadina.

Síndroma serotonínica

Define-se como síndroma serotonínica (SS) uma situação em que se verificam sinais de excesso de neurotransmissão serotoninérgica pós-sináptica por acção de um conjunto de fármacos após período de latência curto (~24 horas).

Os fármacos que podem produzir tal efeito, entre outros, incluem: fentanil, dextrometorfam, L-triptofano, anfetamina, cocaína, ecstasy, fluoxetina, amitriptilina, nortriptilina, linezolid (inibidor da MAO), etc..

As manifestações clínicas incluem uma tríade clássica de anomalias: 1) do estado mental (agitação, delírio); 2) da função neuromuscular (hiperreflexia, clono, hipertonia, tremor); e 3) da função autonómica (hipertermia, taquicárdia, HTA, diaforese, vómitos, diarreia). Por vezes é confundida com SNM, sendo que o clono não é proeminente nesta última.

O tratamento inclui as seguintes medidas:

  • Ressuscitação circulatória com fluidos;
  • Fenilefrina (vasoconstritor de acção directa) para tratar a hipotensão;
  • Cipro-heptadina (antídoto para SS) por via nasogástrica na dose diária de 0,25 mg/kg/dia dividida em 4 doses (dose máxima diária de 12 mg dos 2-6 anos, e de 16 mg dos 7-14 anos).

Nos casos de SSHM o tratamento inclui também o dantroleno; uma vez que o dantroleno é diluído em água esterilizada, concomitantemente deve administrar-se soluto salino hipertónico em dose a calcular, a fim de se prevenir o rápido declínio da osmolalidade sérica, susceptível de originar edema cerebral. 

2. HIPOTERMIA

Definições e importância do problema

Hipotermia é definida pela verificação de temperatura corporal central inferior a 35ºC. A hipotermia tem implicações clínicas importantes pelas alterações fisiopatológicas sistémicas e lesões teciduais locais ou sistémicas que pode provocar em função do grau, obrigando a medidas terapêuticas específicas. Tal pode acontecer designadamente em crianças e jovens expostos a ambientes de clima frio com neve e gelo durante grande parte do ano, e em cenários de desportos de neve e de escaladas de montanhas no inverno. Para além da hipotermia de causa ambiental, são exemplos de lesões provocadas pelo frio: a frieira, e a necrose gorda ou paniculite.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Tendo em consideração o balanço térmico descrito em 1. torna-se importante salientar que existe maior susceptibilidade à lesão pelo frio em situações de alteração circulatória por doença cardiovascular, desidratação, anemia, toxicodependência, sépsis, e idades extremas (infância e velhice). Surge, assim, hipotermia como epifenómeno da falência dos mecanismos de manutenção da normalidade da temperatura central relacionados com diminuição da perda ou tentativa de produção de calor (designadamente por vasoconstrição, arrepio, contracção muscular). O Quadro 6 resume os principais factores etiológicos da hipotermia (acidental ou não, ambiental ou não), cuja gravidade se pode classificar do seguinte modo:

1) Ligeira (35-32ºC); 2) Moderada (< 32-28ºC); 3) Grave (< 28ºC).

Nos casos de hipotermia moderada ou grave, a água intra ou extacelular congela, o que interfere no funcionamento da bomba de sódio e conduz a ruptura da membrana celular. Ocorrem igualmente alterações estruturais em células sanguíneas podendo verificar-se microembolismo ou trombose. Como resultado de respostas neurovasculares (vasoconstrição/vasodilatação), poderão surgir curto-circuitos veiculando sangue para zonas menos afectadas, o que agrava as lesões iniciais. O espectro de lesões abrange sobretudo vasos, nervos e pele.

Ao abordar o tópico Hipotermia, torna-se oportuno citar sucintamente alguns exemplos de manifestações clínicas relacionadas com o efeito do frio no organismo (causa ambiental) – lesões locais provocadas pela exposição prolongada ao frio (não necessariamente associadas a hipotermia):

      • Forma ligeira de alteração dos tecidos da pele pelo frio, especialmente da face, orelhas, extremidades dos dedos das mãos e pés em indivíduos expostos a temperaturas ~15ºC (áreas brancas e frias). Poderão surgir nos 2-3 dias seguintes vesículas e descamação. (Frostnip)
      • Frieiras (eritema pérnio), ou lesões eritemato-vesiculares, por vezes ulcerando, em zonas expostas a temperaturas < 15ºC (orelhas, dedos das mãos e pés). Verifica-se, também, discreto edema, dor e prurido, admitindo-se que se originem por vasoconstrição. Podem durar enquanto se verificar a exposição ao frio.
      • Necrose gorda induzida pelo frio (paniculite), situação benigna traduzida por lesões maculares, papulares ou nodulares durando em geral entre 1 a 3 semanas. Esta afecção foi abordada anteriormente em capítulo próprio.
      • Destruição da pele ou outros tecidos (sofrendo congelação e podendo levar a gangrena) por exposição a temperaturas entre 6ºC e -15ºC. (Frostbite)

QUADRO 6 – Factores etiológicos de hipotermia

Perdas de calor aumentadas
(ambiental, iatrogénica/tratamento do golpe de calor, queimaduras, dermatose esfoliativa, vasodilatação periférica/etanol, beta-bloqueantes, etc.).
Produção de calor diminuída
(insuficiência neuromuscular, hipoglicémia, má-nutrição, falência endocrinológica/hipopituitarismo, hipotiroidismo, hipoadrenalismo).
Alteração da termogénese
(patologia do SNC, acção de fármacos no SNC, falência do sistema nervoso periférico/neuropatias/lesão da espinhal medula).
Outras situações clínicas
(lesões de politraumatismo, choque, sépsis, pancreatite, intoxicação pela água, disautonomia familiar).


Em função do grau de hipotermia surgem manifestações clínicas e respostas diversas, endócrino-metabólicas e ao nível de vários sistemas (SNC, cardiovascular, respiratório, renal e neuromuscular), considerando respectivamente os símbolos:

L = ligeiras; M = moderadas; G = graves.

L: arrepio, taquipneia, taquicárdia, HTA, íleo paralítico, hipocaliémia, alcalose, diurese pelo frio estado confusional, disartria, ataxia, hiperreflexia.

M: arrepio inconstante, hipoventilação, hipoxémia e acidose respiratória, bradicárdia, hipotensão, hipovolémia/IRA, prolongamento do intervalo QT, pancreatite, doença péptica, hiperglicémia, hipercaliémia, acidose láctica, oligúria, rigidez, hemoconcentração, hipercoagulabilidade, agitação, midríase, hiporreflexia.

G: ausência de arrepio, apneia, edema pulmonar, SDR, AESP, FV, assitolia, pancreatite, doença péptica, hipercaliémia, hiperglicémia, acidose láctica, rabdomiólise, trombocitopénia, CID, IRA, coma, pupilas não reactivas, estado símile morte cerebral.

Exames complementares

No doente hipotérmico são considerados exames complementares prioritários: ionograma sérico, glicémia, provas de função renal, gasometria arterial, hemograma completo, estudo da coagulação e exame toxicológico para doseamento de fármacos e etanol.

Tratamento

A actuação nos casos de hipotermia consiste nas seguintes medidas, a ponderar em função do contexto clínico de cada caso:

  • Reaquecimento passivo de todo o corpo, incluindo cabeça, com cobertor no sentido de reduzir as perdas por evaporação, em geral eficaz nos casos ligeiros (L) podendo incrementar a temperatura entre 0,5 – 4ºC;
  • Aquecimento externo activo através da aplicação de calor directo à pele, só efectivo se a circulação estiver intacta, permitindo o retorno, da periferia para a zona central do organismo, de sangue reaquecido; tal pode realizar-se através de cobertores aquecidos ou calor irradiante ou sob a forma de ar forçado aquecido a curta distância do doente; este método é eficaz em geral nos casos ligeiros e moderados (L,M);
  • Aquecimento interno activo através de ar humidificado e aquecido a 42ºC por via endotraqueal, associado a fluidoterapia IV com fluido aquecido a 42ºC em perfusão rápida controlada conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-2ºC/hora;
  • Aquecimento interno invasivo com “lavagem” através de instilação de soro fisiológico aquecido na bexiga, estômago e cólon (e, nalguns centros, também cavidades pleural e peritoneal), conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-4ºC/hora.

Na maior parte dos casos as disritmias corrigem-se com o aquecimento.

Aplicam-se nos casos de hipotermia as medidas de ressuscitação ABC descritas no Capítulo próprio, com algumas especificidades:

  • Em geral torna-se prioritário promover o reaquecimento até, pelo menos, 30ºC salientando-se que as manobras poderão ter que ser muito prolongadas;
  • Embora o doente pareça clinicamente morto, os esforços de ressuscitação deverão continuar até se atingir, com as manobras de reaquecimento, a temperatura central normal;
  • Justifica-se a ressuscitação circulatória agressiva nos doentes hipotérmicos desidratados, tendo em conta a hipovolémia e a vasodilatação após reaquecimento.

Nota final – Dado que a hipotermia programada constitui uma medida terapêutica (efeito neuroprotector) em situações especiais, o leitor pode consultar o capítulo sobre encefalopatia hipóxico-isquémica na Parte Perinatologia/Neonatologia.

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