Importância do problema e definições

No âmbito da clínica pediátrica hospitalar ou extra-hospitalar, a prevenção, vigilância e contenção (ou controlo) das infecções constituem um objectivo fundamental, implicando o envolvimento de todos os profissionais de saúde e familiares (e a responsabilidade de cada um). Para tal, torna-se imprescindível que exista um sistema de saúde pública eficaz, eficiente e efectivo, um programa de imunizações universal, e um plano (nacional e institucional) que permita prevenir a transmissão de infecções de criança a criança, de criança a adulto, e de adulto a criança, quer nas instituições hospitalares, quer noutras unidades de saúde.

Daqui nasce a noção de infecções associadas à prestação de cuidados de saúde (sigla corrente: IACS) que se refere às infecções adquiridas durante o internamento em hospital ou no decurso da prestação de cuidados numa instituição de saúde extra-hospitalar.

Como existe maior probabilidade de determinado doente adquirir infecção em ambiente hospitalar, habitualmente utiliza-se como sinónimo de IACS o termo no sentido estrito – infecção nosocomial, que significa hospitalar (palavra derivada do grego nosokómos ou hospital); tal pressupõe que, na data de admissão, determinada doença infecciosa não estava presente, nem em período de incubação. Infecções adquiridas na comunidade são as que se verificam na data de internamento hospitalar (isto é, adquiridas anteriormente à observação do doente em unidade de saúde, hospitalar ou não).

De acordo com estudos epidemiológicos, calcula-se que cerca de 3-5% de crianças internadas em hospitais adquirem infecções nosocomiais (IN) (ver adiante). O problema adquire maior importância pela maior incidência, nas unidades de cuidados intensivos; contudo, e de acordo com a noção antes expressa, as infecções podem também surgir após permanência em serviços de urgência, nos gabinetes de consulta intra e extra-hospitalares, assim como em unidades de cuidados continuados e, até em ambiente domiciliário (por exemplo doentes submetidos a nutrição parentérica e a tratamentos por via IV com cateter, submetidos a ventilação domiciliária, a tratamentos com aerossóis, etc.).

No âmbito deste tipo de infecções são englobadas as infecções ocupacionais nos profissionais de saúde.

Definido o conceito de IACS, cabe especificar que a infecção poderá:

  • ser localizada ou sistémica;
  • resultar de reacção adversa à presença de agente(s) infeccioso(s) ou da(s) sua(s) toxina(s);
  • ser eventualmente detectada após alta de instituição hospitalar ou extra-hospitalar;
  • ser admitida como hipótese se surgir > 48 horas após a admissão hospitalar.
  • ser endémica (mais comum, de ocorrência expectável na instituição); ou
  • ser epidémica (ocorrendo sob a forma de surtos, definidos como um aumento, acima da taxa média de incidência, de determinada infecção ou de determinado microrganismo infectante).

Não é considerada IACS:

  • a colonização (presença de microrganismos na pele ou mucosas, feridas abertas ou secreções) não associada a sintomas ou sinais clínicos adversos);
  • a inflamação (resposta tecidual à lesão ou estimulação por agentes não infecciosos, como químicos ou físicos).

Em suma, as IACS constituem um problema de saúde pública que importa prevenir, tendo em conta, nomeadamente, a morbilidade e mortalidade que comportam, e o impacte económico e social pelos custos acrescidos em relação com a necessidade de prestação de cuidados mais prolongada, e pelo absentismo laboral dos prestadores de cuidados. Quanto menor a frequência daquelas, mais precária se considera a qualidade dos cuidados de saúde prestados à comunidade.

Nota importante: neste capítulo são empregues indiferentemente as siglas IN e IACS.

Etiopatogénese

No âmbito da prestação de cuidados de saúde, em regime hospitalar ou extra-hospitalar, vários factores podem ser determinantes de infecção: factores de susceptibilidade do hospedeiro (lesões da pele congénitas ou adquiridas, queimaduras, úlceras e escaras de decúbito, má-nutrição, etc.), manobras invasivas, antibioticoterapia, utilização de cateteres ou outro equipamento, e exposição: – a outros doentes; – a pessoas que visitam os doentes; – a profissionais de saúde; ou – a prestadores de cuidados, incluindo familiares, portadores de doenças infecciosas, adquiridas na instituição de saúde e não na comunidade. Especificando alguns pontos importantes:

  • determinadas doenças subjacentes e terapias várias podem alterar a imunidade, predispondo a infecção;
  • as manobras invasivas permitem o acesso de patogénios vários à corrente sanguínea e, por outro lado, alteram as barreiras mecânicas de defesa natural contra aqueles;
  • determinados “corpos estranhos” para o organismo, tais como sondas de drenagem, cateteres e dispositivos de bypass constituem local de atracção e adesão para microrganismos, podendo obstruir orifícios naturais como as trompas de Eustáquio;
  • os antibióticos podem alterar o microbioma intestinal, facilitar a colonização por agentes microbianos resistentes e comprometer a função hematopoiética.

No que respeita à transmissão de microrganismos, a mesma pode fazer-se por diversas vias, sendo as mãos a mais frequente e mais importante.

Tratando-se de IACS, são as mãos não correctamente lavadas dos prestadores de cuidados, das visitas, ou doutras crianças, que podem veicular o patogénio hospitalar ou institucional para o doente assistido.

Outros possíveis transmissores, reservatórios de bactérias, são: equipamento médico (estetoscópio, otoscópio, termómetro contactando com mucosas), bata e gravata, anéis, brinquedos não submetidos a lavagem e desinfecção, equipamento manuseado pelos prestadores ou visitas, como o rato do computador, livros em geral, lista telefónica, telefones, etc..

Alguns microrganismos são transmitidos por via aérea, como vírus da varicela, do sarampo, e Mycobacterium tuberculosis. A água e alimentos podem também ser agentes de transmissão.

Os agentes infecciosos mais comuns de IACS, diversos dos que originam infecções na comunidade, são: vírus sazonais [na época de Inverno, vírus respiratórios (influenza, parainfluenza, VSR) e, durante o Verão, enterovírus], Staphylococcus e bacilos gram-negativos. Fungos, parasitas e bactérias resistentes são causas frequentes de infecção em casos de doentes com imunodeficiência congénita ou adquirida, submetidos a terapia intensiva e requerendo internamento prolongado. Staphylococcus coagulase negativo (SCN) e Enterococcus, mais frequentes na idade pediátrica do que em adultos, são agentes prevalentes em unidades de hemato-oncologia e UCIN, geralmente em relação com cateteres centrais. Nas UCIP, Streptococcus viridans, Gram-negativos entéricos e não entéricos, Bacillus spp, SCN e S. aureus são os principais agentes.

De acordo com estudos epidemiológicos recentes em UCIP, considerando a resistência aos antimicrobianos, a proporção de estirpes Staphylococcus aureus meticilina-resistente (SAMR) é menor na população pediátrica; contudo, a resistência de SCN e a multirresistência dos bacilos gram-negativos são semelhantes às observadas em adultos.

As infecções fúngicas (particularmente por Candida spp e Aspergilus spp) embora menos frequentes, constituem um problema crescente.

Aspectos epidemiológicos

Em unidades de cuidados intensivos (UCI), considerando todas as idades, a frequência de IN varia entre 5-10%. Em clínica pediátrica, considerando as infecções nosocomiais propriamente ditas, a incidência global de IN varia entre 2 e 12%, com uma grande discrepância em relação à idade (7-9% no 1º ano de vida, contra 1,5-4% após 10 anos de idade) e tipo de unidade de internamento (3-26% em UCI contra 1-4% em enfermarias de pediatria geral). No período neonatal, o baixo peso de nascimento e o sexo masculino (relação M/F de 1,7/1) estão associados a um risco aumentado de IN.

Na idade pediátrica, os problemas clínicos mais comuns relacionados com IACS são: infecções respiratórias, gastrintestinais, infecções urinárias, infecções da pele e, designadamente, de ferida operatória, e bacteriémia (esta última,

geralmente associada a cateter venoso central). De acordo com dados da literatura, as gastrenterites, sobretudo por rotavírus, correspondem a ~10% dos casos de IN em enfermarias de pediatria geral.

Relativamente a Portugal, num inquérito nacional de prevalência, realizado em Maio de 2003, envolvendo 67 hospitais e 16.373 doentes, identificou uma prevalência de 8,4% de doentes com IACS e uma prevalência de 22,7% de doentes com infecção adquirida na comunidade (taxas semelhantes às verificadas na maioria dos estudos internacionais).

Considerando os casos internados em UCIP, surgem como mais frequentes: – pneumonia (casos submetidos a ventilação mecânica); – infecção urinária (associadas a algaliação); – infecção de ferida operatória; – rinossinusite em crianças com entubação traqueal ou nasogástrica); – flebite e endocardite associadas a cateterismo venoso; e – bacteriémia (mais frequente em RN e doentes hemato-oncológicos).

Manifestações clínicas e políticas de vigilância

Em todos os doentes hospitalizados por doença não febril, nos quais surja quadro febril, deverá proceder-se a investigação no sentido de detectar eventual IN. Nesta perspectiva, há que ter em atenção:

  • ao aparecimento de determinados sinais e sintomas podendo indiciar infecção sistémica: febre, taquicárdia, taquipneia, exantema, prostração (no lactente: febre ou hipotermia, episódios de apneia, bradicárdia, letargia ou vómitos);
  • à possível relação entre os antecedentes/tipo de procedimento recentemente efectuado, sintomatologia, e resultados de exames complementares realizados em função desta; por ex. disúria/piúria, algaliação;
  • à urocultura positiva por Candida spp – infecção urinária; cateterismo venoso central – febre;
  • à hemocultura positiva – bacteriémia; febre e sinais auscultatórios de alveolite – entubação traqueal – sinais radiológicos de condensação pulmonar, baixa saturação tc em oxigénio – pneumonia, etc..

Tendo em consideração a probabilidade de surgimento de IACS em doentes assistidos nos hospitais, numa perspectiva preventiva de vigilância das infecções, foram criados:

  • a nível nacional, o chamado Programa Nacional de Controlo da Infecção; e
  • nos hospitais, Comissões de Controlo da Infecção (CCI). Estas (CCI) são grupos multidisciplinares institucionais que definem políticas de prevenção, procedem à colheita de dados epidemiológicos que são discutidos e avaliados, e investigam as circunstâncias e factores de eventuais surtos surgidos;
  • idealmente, as mesmas devem debruçar-se também sobre a vigilância de âmbito extra-hospitalar da área de influência do hospital em causa.

De acordo com os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são utilizados determinados critérios na vigilância epidemiológica das IACS; os mesmos baseiam-se em parâmetros clínicos e biológicos permitindo identificar aproximadamente 50 potenciais locais de infecção. Os critérios simplificados para as infecções mais comuns apresentam-se no Quadro 1.

QUADRO 1 – Critérios simplificados para a vigilância de IACS

Tipo de infecção nosocomial  Critérios simplificados
(Adaptado de Ducel G, et al, 2002)
Infecção de IACS Qualquer exsudado, abcesso ou celulite em expansão no local de intervenção cirúrgica, durante o primeiro mês após a mesma
Infecção urinária Urocultura positiva (≤2 estirpes) com, pelo menos, 105 bactérias/mL, com ou sem sintomas
Infecção respiratória Dois ou mais sinais de disfunção respiratória surgindo durante o internamento: tosse, expectoração purulenta, infiltrado de novo na radiografia do tórax compatível com infecção
Infecção do cateter vascular Inflamação, linfangite ou exsudado no local de inserção do cateter
Sépsis Febre ou calafrio em associação a pelo menos, 1 hemocultura positiva

Tratamento

O tratamento inclui fundamentalmente:

  • administração empírica de antibióticos de largo espectro (de acordo com padrões de resistência locais, se possível), de antivíricos e/ou de antifúngicos;
  • tratamento das complicações (como choque, insuficiência respiratória, disfunção multiorgânica, etc.), muitas vezes com necessidade de internamento em UCIP, o que implica apoio multidisciplinar;
  • remoção/substituição de material potencialmente contaminado (cirúrgico, cateter central, algália, entre outros) quando possível.

Nota importante: Nas UCIP em que existe elevada prevalência de microrganismos resistentes, na data de admissão de qualquer doente é rotina proceder ao rastreio de SAMR, através de colheitas de produtos e culturas nos seguintes locais: narinas, feridas ou lesões cutâneas, cateteres e sondas de traqueostomias (e região umbilical no RN). Se se demonstrar que o doente está colonizado com SAMR, o mesmo deverá ficar em área de isolamento e submetido a tratamento para erradicar a colonização. Esta estratégia pode ser aplicada a outros microrganismos em idêntica circunstância.

Prevenção

A prevenção das IACS assenta numa abordagem multidisciplinar e integrada, com o objectivo de limitar a transmissão de microrganismos. A propósito das manifestações clínicas, chamou-se já a atenção do papel das CCI na vigilância.

Como pontos fundamentais das estratégias utilizadas, salientam-se:

  • lavagem adequada das mãos e utilização de luvas descartáveis por todos prestadores de cuidados (profissionais de saúde, familiares, voluntários, outras pessoas, etc.);
  • utilização de barreiras (bata, máscara, óculos de protecção);
  • cuidados de assepsia, designadamente nos locais de penetração ou contacto de material estranho e nos cuidados com as feridas operatórias;
  • desinfecção e esterilização do material utilizado;
  • protecção do doente através de nutrição adequada, imunização e utilização de antibioticoterapia profiláctica, quando houver indicação;
  • isolamento do doente infectado com os objectivos de evitar a disseminação da doença, e de simultaneamente o proteger doutras infecções;
  • limitação do risco de infecção endógena (da microbiota do próprio doente), seleccionando criteriosamente a antibioticoterapia;
  • redução ao mínimo indispensável os procedimentos invasivos;
  • prevenção da infecção nos profissionais de saúde (e voluntários) – rastreios periódicos, imunização, etc.;
  • aplicação de boas práticas de prevenção da infecção através de acções sistemáticas e periódicas de formação contínua dirigidas a prestadores de cuidados (profissionais de saúde ou não).

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