1. QUEIMADURAS E TRATAMENTO EMERGENTE

Definições e importância do problema

As queimaduras são lesões da pele e mucosas, de extensão e profundidade variáveis (lesões tridimensionais) que podem ser causadas por agentes físicos (líquidos quentes ou frios, corpos sólidos incandescentes, fogo, radiações ionizantes, corrente eléctrica), químicos corrosivos (fósforo, flúor, ácidos e bases fortes, hidrocarbonetos, medicamentos com acção na queratina) e biológicos (animais como a medusa, vegetais como látex, etc.).

Idênticas lesões podem ser consequências de fotossensibilidade em relação com a ingestão de sulfamidas, butazolidina ou difenil-hidantoína (síndroma de Leill).

A maioria das queimaduras em crianças é provocada por acidentes domésticos; dum modo geral são mais graves que no adulto. Com efeito, na criança as várias estruturas que formam a pele ainda não atingiram a maturação e são menos espessas. Por outro lado, os reflexos de defesa, consoante a idade, podem ainda não estar presentes.

Aspectos epidemiológicos

É sobretudo na faixa etária dos 0 aos 4 anos, com maior incidência aos 2 anos, que ocorrem queimaduras. É nesta fase de desenvolvimento psicomotor que a criança está mais activa na descoberta do ambiente que a rodeia: agarra, puxa, mete os dedos, corre pela casa sem se fazer notar, etc.. Os líquidos quentes são a principal causa de queimaduras neste grupo etário (60%): água a ferver, leite, chá, café, sopa, óleo alimentar, azeite, etc.); de salientar que cerca de 95% dos acidentes ocorrem na cozinha na presença de, pelo menos, um adulto.

Na faixa etária dos 5 aos 10 anos a água quente continua a ser a principal responsável, mas verifica-se um aumento importante dos acidentes com fogo, mais frequentemente associado a substâncias inflamáveis como o álcool ou a gasolina. As queimaduras eléctricas são mais frequentes no grupo etário dos 1-4 anos; e, a partir dos 10 anos, há um recrudescimento de acidentes por esta causa.

Nos Estados Unidos ocorrem em cada ano cerca de dois milhões de queimaduras, que originam internamento de 150.000 doentes. Neste país as queimaduras são causa de morte em 2.500 crianças por ano; e entre os sobreviventes, 50% requerem internamento superior a um mês. Por outro lado, as queimaduras são responsáveis por sequelas graves em cerca de 10.000 casos/ano. São também, em acidentes domésticos, a primeira causa de morte até aos catorze anos de idade.

Esta patologia pode, por outro lado, estar associada a casos de maus tratos infantis (entre 10-20% conforme as estatísticas). Este tipo de abuso é típico antes dos cinco anos de idade, apresentando um pico de incidência cerca dos 18 meses.

As queimaduras ocorrem também com incidência significativa em meios socialmente desfavorecidos e no contexto de crianças sozinhas durante longos períodos de tempo, sem vigilância adequada. Por isso, a principal medida com o objectivo de diminuir a incidência deste problema é a prevenção.

Etiopatogénese

A pele é constituída por uma camada superficial, a epiderme, uma camada intermédia, a derme ou mesoderme, e uma camada profunda, a hipoderme. Na epiderme encontram-se os queratinócitos, os melanócitos e as células de Langerhans. Na derme as células principais são os fibroblastos; nela existe uma rede densa, fibrosa, composta por colagénio, elastina e reticulina onde abundam os vasos sanguíneos, as terminações nervosas, as glândulas sebáceas e as estruturas pilosas. A hipoderme é constituída essencialmente por células adiposas.

A separação entre a epiderme e as camadas mais profundas é feita pela junção dermo-epidérmica ou membrana basal. (Figura 1)

Por efeito do agente agressor ocorre trombose vascular levando a hipóxia, isquémia e grau variável de disfunção e destruição celulares. Esta variação depende fundamentalmente da área afectada, do tipo e intensidade da acção do agente agressor, e da espessura da pele.

Na pele lesada por queimadura são identificadas três zonas no sentido da superfície para a profundidade. A zona externa (mais superficial) inclui tecido necrótico irrecuperável. Abaixo desta encontra-se zona de estase parcialmente viável, podendo evoluir para necrose. A zona adjacente à zona de estase é a chamada zona de hiperémia, dado que se verifica a esse nível incremento do fluxo sanguíneo associado a resposta inflamatória e imunitária.

Ao nível da superfície lesada, por alteração da permeabilidade capilar, verifica-se extravasão de fluidos e plasma para os tecidos vizinhos (edema), do que poderá resultar hipovolémia e choque.

A libertação de prostaglandinas provoca irritação das terminações nervosas sensitivas que se traduz clinicamente por dor. Nos casos de queimaduras de boca poderá haver edema e obstrução das vias respiratórias.

A resposta inflamatória à queimadura é constituída por uma fase vascular e uma fase celular. Inicialmente ocorre um curto período de vasoconstrição seguido de vasodilatação activa. Simultaneamente verifica-se afluxo à zona da lesão de vários mediadores inflamatórios, proteínas, macromoléculas assim como neutrófilos, monócitos e plaquetas. 

FIGURA 1. Esquema da pele

Os monócitos têm um papel central na modulação da resposta inflamatória. Os factores de coagulação e o complemento estimulam a migração celular e regulam a fase de resposta vascular.

A resposta imunitária processa-se nas seguintes fases: uma, inespecífica, ocorrendo logo no período inicial pós-queimadura; outra, constando de resposta celular e humoral mais tardia; e, finalmente por uma resposta específica linfocitária de natureza tímica e não tímica. Os elementos celulares referidos são fundamentalmente neutrófilos e macrófagos; e os elementos humorais integram factores de coagulação, fibrinogénio, complemento e fibronectina. A acção sinérgica dos linfócitos B pela produção de anticorpos específicos, e dos linfócitos T pela libertação de linfocinas, condiciona a resposta imunitária final.

A supressão da resposta imunitária nestes doentes é um fenómeno bem documentado. Tal fenómeno poderá contribuir para o agravamento clínico global do doente queimado e, designadamente, para o aparecimento de quadro séptico pós-queimadura explicável por compromisso da fagocitose e da quimiotaxia dos neutrófilos, por disfunção dos macrófagos, e diminuição da resposta linfocitária à estimulação mitogénica, dos níveis de IL-2, de fibronectina, de gamaglobulina, e da acção celular T-supressora.

A resposta metabólica às queimaduras cursa com um período inicial de hipometabolismo durante 48 horas, iniciando-se posteriormente um período de hipercatabolismo que pode originar perda importante de proteínas estruturais e de lípidos. Esta fase prolonga-se enquanto não se verifica reepitelização da área queimada, e agrava-se durante os episódios de infecção, o estresse pós-operatório e a colheita e colocação de enxertos cutâneos.

As queimaduras químicas, eléctricas e as provocadas por agentes inalados merecem uma referência especial.

As primeiras provocam desnaturação das proteínas e destruição celular. O grau de lesão depende do tempo de exposição, da concentração do agente e da sua solubilidade nos tecidos, sendo que os agentes alcalinos tendem a penetrar mais que os ácidos.

No caso das queimaduras eléctricas, o efeito lesivo não pode ser somente avaliado pela lesão verificada à superfície. Com efeito, uma vez que a corrente eléctrica segue a via dos tecidos com menor resistência, como consequência poderão surgir lesões “à distância”, ao longo dos nervos e vasos, e lesão miocárdica em grau variável, traduzida muitas vezes por arritmia.

Quanto às lesões inalatórias, exceptuando no caso do vapor de água a temperaturas elevadas, o calor provoca lesão apenas acima das cordas vocais. No que respeita à inalação de fumo, como consequência surge alteração da permeabilidade vascular pulmonar, do que pode resultar: edema pulmonar e destruição do surfactante pulmonar com consequentes diminuição da distensibilidade alveolar (compliance) e hipoventilação, culminando em insuficiência respiratória. Contudo, a maioria das lesões da via respiratória é atribuída a queimaduras por aspiração/inalação de produtos químicos como gases tóxicos, óxidos, aldeídos e produtos azotados.

A perda de integridade da pele expõe a criança ao ambiente exterior de agentes infecciosos como bactérias, vírus e fungos, ao mesmo tempo que leva à perda de fluidos e de temperatura corporal.

Em geral, as complicações secundárias das queimaduras estão ligadas à infecção e à ulterior cicatrização.

Quando a queimadura é profunda, o processo de cicatrização é prolongado, com formação, após 3-6 meses, de cicatriz hipertrófica relacionada com proliferação dos fibroblastos e neovasos, concomitantemente com aumento da produção de colagénio espesso e desorganizado. A cicatriz tem aspecto vermelho, é rosada, dura e pruriginosa; a partir do 9º-12º mês, este processo inflamatório diminui, adquirindo progressivamente a cicatriz o aspecto de cor rosada clara até atingir, pelo 18º-24º mês, o aspecto de pele normal.

No caso das queimaduras eléctricas poderão surgir sequelas tardias (meses ou anos) como cataratas e mielite transversa.

Na literatura tem sido descrita situação de carência em vitamina D como resultado das cicatrizes extensas.

Manifestações clínicas e classificação

De acordo com a profundidade das lesões, as queimaduras podem ser classificadas em 3 graus:

1° grau – As lesões estão confinadas à camada mais superficial da pele – a epiderme – sem perda de continuidade, não sendo atingida a membrana basal (Figura 1). Traduz-se por eritema doloroso. São exemplos as queimaduras provocadas por exposição solar ou por contacto de curta duração com chama; quanto à evolução, salienta-se a cura espontânea em menos de uma semana, sem sequelas.

2° grau – As queimaduras, lesando a membrana basal, atingem também a derme mais ou menos profundamente (2º grau superficial, e 2º grau profundo, respectivamente), com formação de eritema e flictenas ou bolhas (que correspondem à acumulação de líquido seroso subepidérmico). Nesta modalidade de queimaduras é possível a regeneração a partir do epitélio glandular.

  • Nas formas superficiais a pele mantém a elasticidade normal, verificando-se reepitelização cerca de 2 a 3 semanas após o evento agudo. A sequela mais frequente é a hipo ou hiperpigmentação, sinal que poderá regredir ao cabo de alguns meses, sobretudo nas crianças mais pequenas.
  • Nas formas profundas verifica-se edema mais acentuado relativamente às superficiais, com aspectos variáveis da pele: vermelho brilhante, ou branco amarelado, ou ainda aspecto nacarado central com halo de eritema. A cura é mais lenta que nas formas superficiais, podendo aparecer, como sequelas, cicatrizes hipertróficas e retracção da pele com repercussão funcional músculo-esquelética. (Figura 2)

3° grau – Neste tipo de queimaduras que, em fase inicial se poderão confundir com as de 2º grau profundas, toda a espessura da derme e tecidos subjacentes são atingidos, com destruição de vasos e terminações nervosas; trata-se de lesões indolores com aspecto macroscópico de necrose de coagulação dos tecidos. A cura é lenta e as sequelas graves.
Na prática clínica, são consideradas queimaduras profundas as de 2º grau profundas e as de 3º grau.
Como nota, salienta-se que constituem sinais de suspeita de queimaduras por maus tratos: 1 – presença de lesões da pele simétricas; 2 – lesões do períneo e dos membros inferiores; e 3 – intervalo de tempo alargado entre a ocorrência da queimadura e o pedido de observação médica.

FIGURA 2. Cicatriz em fase inf lamatória (vermelha, dura e pruriginosa)

Factores de gravidade

Classicamente considera-se que a gravidade duma queimadura na criança depende de um conjunto de factores:

  1. Extensão traduzida objectivamente pela percentagem de área total queimada (TSBA – sigla de: total surface burn area);
  2. Espessura e vascularização do tecido atingido;
  3. Localização;
  4. Idade < 5 anos.

São consideradas queimaduras major com indicação de serem referidas para centro especializado (com unidades de cuidados especiais ou intensivos e condições de internamento implicando isolamento e assépsia rigorosos, assim como apoio de equipas multidisciplinares médico-cirúrgicas especializadas) aquelas com as seguintes particularidades:

  • se TSBA > 15%;
  • se TSBA > 9% e idade < 5 anos;
  • se do 3º grau com TSBA > 5%
  • se associadas a doenças pré-existentes e a lesões traumáticas;
  • se atingirem olhos, orelhas, face, mãos, pés, períneo;
  • se eléctricas;
  • se inalatórias.

Nos casos de TSBA > 50% a probabilidade de sobrevivência é limitada.

Chama-se a atenção para o facto de a distribuição da TSBA ser diferente da do adulto, o que se explica pelas particularidades do organismo em idade pediátrica (crescimento e desenvolvimento), verificando-se maior relação superfície/peso. O Quadro 1 é elucidativo.

QUADRO 1 – Diferente distribuição da TSBA (%) em diferentes idades

Idade em anos
Área0-11-45-910-1415
Cabeça191713119
Pescoço22222
Tronco anterior1313131313
Tronco posterior1313131313
Cada nádega2,52,52,52,52,5
Genitais11111
Cada braço44444
Cada antebraço33333
Cada mão2,52,52,52,52,5
Cada coxa5,56,588,59
Cada perna555,566,5
Cada pé3,53,53,53,53,5

A determinação da extensão da queimadura permite uma estimativa do cálculo das perdas de fluidos e das respectivas necessidades, o que tem implicações práticas ao estabelecer o plano de tratamento emergente (Parte X).

Exames complementares

Sucintamente são indicados alguns exames complementares nos casos de queimaduras que requerem internamento. Contudo, cada caso – mesmo sem indicação para internamento – deverá ser ponderado face às respectivas particularidades.

Eis os essenciais:

  • hemograma e estudo da coagulação;
  • ionograma sérico;
  • doseamento sérico de glicose, ureia, creatinina, sódio, potássio, proteínas totais, albumina e pré-albumina;
  • análise sumária de urina com determinação de mioglobinúria;
  • osmolalidade sérica e urinária;
  • gasometria arterial;
  • determinação de carboxiemoglobina;
  • retinol ligado a proteína.

Tratamento emergente

No âmbito da actuação prioritária é fundamental determinar a TSBA, assim como obter a estimativa da profundidade da lesão. Por outro lado há que ter em atenção que a TSBA e a profundidade da lesão podem aumentar nas primeiras horas pós-trauma.

Tratando-se duma situação requerendo, nas formas graves, actuação de emergência em ambiente asséptico, (inicialmente em unidades de cuidados especiais ou intensivos e, depois, em unidades de queimados com equipas especializadas e logística própria), muitas das medidas a seguir descritas poderão ter de ser realizadas em simultâneo, garantindo sempre a estabilidade hemodinâmica com monitorização dos sinais vitais.

Cuidados gerais

  • Lavagem da área lesada, em condições de assépsia, com compressas esterilizadas utilizando soro fisiológico ou sabão cirúrgico/solução antisséptica sob analgesia, sedação, ou anestesia (ver adiante).
  • Algaliação.
  • Aplicação de sonda nasogástrica para descompressão do estômago.
  • Aplicação de cânula venosa periférica para garantir acesso venoso, eventualmente em dois locais, de preferência nos membros superiores (em caso de necessidade, não contra-indicada em tecidos lesados).
  • Profilaxia antitetânica.
  • Aplicação de penso ”almofadado” com sulfadiazina de prata a 1% ou vaselina esterilizada.
  • Analgesia/sedação*.
    • *As benzodiazepinas, das quais o midazolam é a escolha habitual em pediatria, têm um efeito sedativo variável consoante a dose. Não têm efeito analgésico, pelo que não devem ser usadas isoladamente em procedimentos dolorosos.
    • O paracetamol é o analgésico mais frequentemente utilizado; é eficaz apenas no tratamento da dor ligeira.
    • Os opióides são os fármacos de eleição no tratamento da dor intensa. A codeína, cloridrato de tramadol, morfina, fentanil e sufentanil têm uma potência analgésica crescente. A sua utilização de forma transitória não tem risco de dependência. O risco de depressão respiratória não deve inibir a sua prescrição.
    • A cetamina é um fármaco que produz analgesia, sedação, diminuição da ansiedade e amnésia, com relativa estabilidade cardiovascular; pode constituir alternativa para a realização de alguns procedimentos dolorosos como nos casos de queimaduras.

O esquema terapêutico a aplicar depende da extensão da queimadura e da sua profundidade. Em queimaduras superficiais e de pequena área pode utilizar-se apenas o paracetamol ou propacetamol. Em queimaduras mais extensas pode iniciar-se cetamina ou cetamina + midazolam. Nos casos mais graves: fentanil + midazolam.

  • Paracetamol; dose inicial 10-15 mg/kg PO ou 15-20 mg/kg rectal; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Proparacetamol (1 grama<>500 mg de paracetamol); dose inicial 30 mg/kg IV; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Cetamina; dose inicial 0,5 mg/kg IV a repetir de 10-10 minutos SOS até máximo de 2 mg/kg; por via IM, dose inicial: 2-3 mg/kg, seguida de doses parcelares de 0,5 mg/kg SOS de 10-10 minutos até máximo de 2 mg/kg.
  • Midazolam; dose inicial em bólus IV de 0,05-0,1 mg/kg, seguida de perfusão IV ao ritmo de 0,5-3 mcg/kg/minuto até dose total máxima de 10 mg.
  • Fentanil; dose inicial IV em bólus: 0,5 mcg/kg a repetir até efeito desejado, sem ultrapassar 5 mcg/kg (1/3 da dose em crianças com < 3 meses); em perfusão IV, após bólus: 0,5-3 mcg/kg/hora até máximo de 5 mcg/kg.
  • Homeostase térmica.
    A manutenção da temperatura corporal deve ser acautelada desde a primeira avaliação do doente e durante todos os procedimentos cirúrgicos subsequentes. De salientar que a hipotermia pode agravar o catabolismo pós-traumático. Assim, torna-se fundamental manter uma temperatura constante no bloco operatório de queimados a fim de evitar a perda térmica do doente.
  • Garantir a permeabilidade da via aérea.
    O factor primordial de reanimação de um queimado é a chamada reanimação com fluidos IV nos casos de TSBA > 15%. Na idade pediátrica, a maior relação superfície/peso e a maior intensidade do catabolismo, implicam o cálculo preciso do volume de fluidos a administrar, considerando-se a normalidade da natrémia um elemento chave na hidratação.

Assim, de acordo com a chamada fórmula de Parkland modificada para a idade pediátrica, o volume de fluidos (cristalóides) de ressuscitação (que devem ser aquecidos) para as primeiras 24 horas é: 

lactato de Ringer (4 mL/Kg x TSBA em %) + fluidos de manutenção

administrando 50% do volume nas primeiras oito horas, e os restantes 50% nas dezasseis horas subsequentes. O ritmo de perfusão deverá ser ajustado de modo a manter a diurese ~1 mL/kg/hora). Os fluidos de manutenção não são considerados se o doente pesar > 40 kg.

Como notas importantes quanto a reanimação por fluidoterapia há a referir:

  • uma reidratação ineficaz poderá ter efeitos adversos ao nível dos pulmões, rim e mesentério;
  • uma reidratação excessiva (sobrecarga de fluidos) poderá conduzir a edema pulmonar agudo, a edema ao nível das lesões da queimadura com hipóxia-isquémia secundárias;
  • o objectivo da fluidoterapia é manter normalidade das FC, FR, PA, diurese e natrémia;
  • nos casos de albuminémia < 3 g/dL está indicada albumina sem sal a 20% na dose de 1 g/kg em 4-6 horas, seguida, em função do contexto clínico, de furosemido (1 mg/kg).

Assistência respiratória

O tipo de assistência respiratória pode variar entre oxigenoterapia suplementar humidificada e aquecida através de cânula nasal ou máscara, e ventilação mecânica sofisticada e terapia com oxigénio hiperbárico, sobretudo nos casos de inalação de químicos tóxicos e SDR tipo adulto (sigla ARDS na nomenclatura de língua inglesa) com compromisso de surfactante (ver atrás). A verificação de estridor, sugestiva de edema da via aérea superior, estabelece a indicação de epinefrina racémica para melhorar o fluxo aéreo.

As estratégias ventilatórias mais usadas e “menos agressivas” incluem protocolos com baixo volume corrente, PEEP elevada, e alta frequência oscilatória. O heliox (mistura de oxigénio + hélio) é utilizado sobretudo nas lesões da via aérea superior.

Nas UCIP, para a ventilação mecânica nas situações de queimaduras e inalação de fumos, há tendência para a utilização de tubos endotraqueais (TET) com cuff (0,5 cm menores do que os sem cuff) com as seguintes dimensões/comprimento em cm, de acordo com as normas da Pediatric Advanced Life Support: (Idade/4) + 3 se TET com cuff, e (Idade/4) + 4 se TET sem cuff.

Nutrição e metabolismo

Os fenómenos que integram a chamada resposta metabólica às queimaduras, atrás descritos, são mediados por corticosteróides, epinefrina, norepinefrina, glucagom, aldosterona e HAD.

Na prática utilizam-se as seguintes fórmulas para suprimento energético global:

  • Lactentes (0-12 meses): 2100 kcal/m2 + 1000 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças (1-12 anos): 1800 kcal/m2 + 1300 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças/adolescentes (>12 anos): 1500 kcal/m2 + 1500 kcal/m2 de área de queimadura.

Em termos de % de VCT são estabelecidas as seguintes proporções de nutrientes: proteínas – 25%; hidratos de carbono – 50%; e lípidos – 25%. A nutrição deverá ser ministrada por via entérica, ficando a nutrição por via parentérica reservada para casos de extrema gravidade (se o suprimento calculado ultrapassar o limite de tolerância entérica). Igualmente deverá ser dada atenção às necessidades doutros nutrientes.

Deverá ser providenciada monitorização sérica de parâmetros bioquímicos e outros.

O hipercatabolismo pode ser combatido, até certo ponto, com a administração de propranolol (0,3-1 mg/kg cada 4 a 6 horas por via nasogástrica). Para combater a degradação da massa magra e do conteúdo mineral ósseo, assim como para promover a normalização da albuminémia, pré-albuminémia e do retinol ligado a proteína, é recomendada a administração de análogo da testosterona – a oxandrolona.

No âmbito do tópico em análise, há que atender a diversos problemas metabólicos (por ex. hiperglicémia, hipoglicémia) e hidroelectrolíticos a prevenir, detectar e tratar. Em casos seleccionados pode estar indicada insulinoterapia que, para além da normalização da glicémia, poderá contribuir para o combate ao catabolismo proteico.

Procedimentos cirúrgicos

Nas queimaduras superficiais e não incluídas nos critérios major, definidos a propósito dos factores de risco, a resolução é na maior parte das vezes conseguida com tratamento conservador, vigiando de modo seriado a reepitelização da zona lesada e aplicando os cuidados gerais.

Nas queimaduras profundas, os princípios fundamentais do tratamento cirúrgico são:

  • a excisão de tecidos desvitalizados sob anestesia, sedação e analgesia, evitando a infecção local;
  • a preparação precoce do leito da queimadura para receber o enxerto com sucesso.

A excisão tangencial dos tecidos não viáveis deverá ser limitada a cerca de 15% a 20% de área queimada por sessão cirúrgica. Por vezes, a gravidade da queimadura pela sua profundidade e disposição circunferencial, não permite este objectivo. A presença de compromisso neurovascular distal por desenvolvimento de síndroma compartimental poderá implicar a realização de escarotomias, o que impede a concretização de enxerto precoce.

Como terapêutica promissora, ainda em fase de investigação, citam-se as técnicas de reconstrução com base em pele fetal e cultura de tecidos (engenharia tecidual).

Como nota importante, salienta-se que o tratamento agressivo e precoce da queimadura permite reduzir o tempo de internamento hospitalar, limitar o número de procedimentos sob anestesia geral, e melhorar a relação custo-benefício do processo terapêutico.

2. QUEIMADURAS E REABILITAÇÃO

Importância do problema

A reabilitação dos doentes com formas graves deste tipo de patologia deve começar na fase inicial, ainda na unidade de queimados, e prolongar-se até à fase de maturação cicatricial; o objectivo é evitar repercussão em diversas vertentes, quer de ordem física, quer de ordem psíquica, tendo em conta a elevada probabilidade de sequelas funcionais e estéticas.

Em média, a duração da reabilitação é cerca de 18 a 24 meses, sendo que nos casos mais complicados poderá atingir 5 anos.

Reabilitação durante o período de cicatrização

A intervenção no âmbito da reabilitação de lesões por queimaduras em idade pediátrica deve estar integrada num programa de cuidados multidisciplinares, desde o internamento numa unidade especializada até à maturação cicatricial; o principal objectivo é a prevenção das sequelas cicatriciais e osteoarticulares.

Durante a hospitalização, o tratamento de reabilitação integra os seguintes procedimentos:

  1. posicionamento articular correcto, quer no leito quer sob os pensos cirúrgicos;
  2. aplicação de ortóteses estáticas para manter o posicionamento articular pretendido (Figura 3);
  3. prevenção de complicações respiratórias através de cinesiterapia respiratória;
  4. mobilização articular através de hidrocinesiterapia realizada durante os banhos salinos efectuados antes da realização dos pensos cirúrgicos (Figura 4);
  5. estímulo precoce da função, como nos casos de mão queimada (terapia ocupacional). (Figura 5)

FIGURA 3. Ortótese estática (tala) para posicionamento no leito da tibiotársica/pé em extensão; caso de queimadura na face dorsal do pé

FIGURA 4. Hidrocinesiterapia

FIGURA 5. Queimadura do membro superior: terapia ocupacional durante o internamento

Reabilitação após o período de cicatrização

Após cicatrização deve ser feita uma avaliação do estado da pele e das zonas funcionais abrangidas.

Na avaliação da pele é importante ter sempre presente a história clínica desde o acidente até à cicatrização. O balanço deverá ser feito tendo em conta o factor etiológico da queimadura, o tempo decorrido e os cuidados prestados até à admissão hospitalar, o tempo de cicatrização, a necessidade de enxerto e a existência de complicações durante a mesma cicatrização. Associando estes dados à eventualidade de antecedentes familiares de tendência para cicatrização hipertrófica (componente genético), é possível estabelecer a probabilidade de evolução do caso para cicatriz hipertrófica, ou não (Quadro 2). Nesta perspectiva há a referir que, até à 10ª semana após a cicatrização, a vigilância clínica deve ser extremamente rigorosa, minuciosa e frequente. Se não se verificarem sinais de hipertrofia com a cicatrização durante o referido período, existe fraca probabilidade de tal acontecer depois deste período.

QUADRO 2 – Parâmetros preditivos da evolução da cicatriz*

Cor
Dá orientação sobre a neovascularização.

Relevo
Presença de hipertrofia. No início detecta-se melhor à palpação superficial do que à inspecção.

Prurido
Directamente relacionado com a possibilidade de surgir hipertrofia.

Dor
Só está presente nas fases iniciais. Se se prolongar é possível surgir hipertrofia.

Consistência
Dá orientação sobre a formação de fibrose e consequente perda das fibras elásticas.


* Na cicatriz são avaliadas as seguintes características fundamentais: cor, relevo, prurido, dor e consistência. A cor pode ser rosada, vermelha rosada ou vermelha escura; tais variantes dão indicações quanto ao modo de evolução da neovascularização:
      1. a manutenção de cor vermelha viva poderá significar que a cicatriz está a evoluir para quelóide, com neovascularização activa e produção de colagénio;
      2. quando, pelo contrário, a cicatriz evolui para cor mais clara, tal significa que há regressão da vascularização acompanhada de diminuição da produção do colagénio, o que corresponde a melhor prognóstico.

 

Em função do resultado da avaliação referida, decide-se ou não pela aplicação de material compressivo o mais precocemente possível para contrariar a tendência para a cicatrização hipertrófica; uma vez que este tipo de material tem um custo elevado, a sua prescrição deverá ser sempre muito bem ponderada caso a caso.

Na avaliação das áreas articulares afectadas há que ponderar a necessidade, ou não, de ortótese para evitar a instalação de bridas que afectem a amplitude do movimento articular, obrigando posteriormente a uma ou mais intervenções cirúrgicas. Nas crianças, ao contrário dos adultos, o uso prolongado de ortóteses de imobilização não provoca rigidez articular, e o aparecimento de osteomas pós-imobilização é raro.

Quando a área queimada afecta, por retracção cutânea, a atitude postural, como acontece nas frequentes queimaduras da região anterior e ou lateral do tórax, ou quando existe uma ou mais zonas articulares com limitação da amplitude articular, devem ser prescritos tratamentos de fisioterapia para evitar a instalação de deformações osteoarticulares definitivas que poderão necessitar de intervenções cirúrgicas futuras. (Figura 6)

Se a queimadura abranger o membro superior, e em especial a mão (uni ou bilateralmente), os tratamentos devem ser sempre que possível orientados para terapia ocupacional. A recuperação da função dos membros superiores é fundamental para o normal desenvolvimento psicomotor e sensorial da criança.

FIGURA 6. Limitação articular do ombro por queimadura axilar

Prevenção e tratamento da hipertrofia

Dada a sua importância, reitera-se que o tratamento de reabilitação da criança que sofreu queimaduras deve ser fundamentalmente centrado na evolução cicatricial das áreas queimadas. Com efeito, uma boa cicatrização com a instalação mínima possível de hipertrofia e de bridas, poderá evitar sequelas osteoarticulares e posturas anómalas, com ou sem desvios da coluna.

Neste campo, cabe salientar a extraordinária importância da colaboração dos pais/família; de facto, são os mesmos que cuidam diariamente da criança. Devendo ser minorado pelo clínico assistente o eventual sentimento de culpa que possa instalar-se por parte daqueles em relação ao acidente (o que passou, passou…), há contudo que os responsabilizar pelo tratamento a decorrer, chamando-se a sua atenção para a hipótese de agravamento das sequelas, no caso de não colaboração nos cuidados a prestar à criança em casa.

Caso se venha a instalar cicatriz hipertrófica, torna-se fundamental descrever os principais procedimentos para combater a sua intensificação:

  • Hidratação correcta da pele, com a aplicação de um creme hidratante associado a um componente gordo (por ex. creme de aveia com omega 6); a aplicação deve ser feita várias vezes ao dia consoante o estado da pele, salientando-se que uma boa hidratação também diminui o prurido. Este deve ser evitado, pois o acto de coçar contribui para aumentar a vascularização, com consequente produção de colagénio por parte dos fibroblastos. As lesões de coceira numa pele friável podem, de facto, atrasar o processo cicatricial.
  • Para combater o prurido pode administrar-se, ao deitar (se for necessário, também durante o dia), hidroxizina; e, nos casos mais graves, diazepam.
  • Para lutar contra a hipertrofia (produção e deposição anómala de colagénio) recorre-se ao uso de peças de vestuário compressivas – pressoterapia (Figura 7). A compressão cicatricial é o meio mais eficaz de luta contra a proliferação anómala das fibras de colagéneo. Ao comprimir-se a rede vascular anómala existente na evolução cicatricial em fase inflamatória, diminui o suprimento de oxigénio aos fibroblastos e, consequentemente, a produção de colagénio. Por outro lado, a pressão sobre a cicatriz também promove uma distribuição paralela das fibras de colagénio, o que a torna menos dura e retráctil. O fato compressivo deve ser usado durante o máximo de tempo possível, cerca de 23 horas/dia, só se retirando para a higiene e para aplicação do hidratante. O seu uso em tempo parcial não é recomendado, principalmente na fase inflamatória do processo cicatricial.
  • No reforço da compressão cicatricial pode ser utilizado o silicone-gel (Figura 8) ou mesmo placas de couro (vulgar sola de sapato). O efeito do silicone-gel na evolução da cicatriz ainda hoje é discutível. Além da melhor distribuição das forças de pressão na zona pretendida, atribui-se-lhe a criação de um ambiente de anaerobiose local sobre a cicatriz, susceptível de contrariar a produção de colagénio. A pressoterapia deve ser mantida até haver a certeza de que a fase inflamatória cicatricial chegou ao seu termo; tal ocorre em geral quando a cicatriz começar a ficar rosada, clara, enrugada e mole.
  • Depois da fase inflamatória, podem ser iniciados os tratamentos de vacuoterapia. Este tipo de tratamento promove o descolamento da cicatriz dos planos profundos e destroi parcialmente a fibrose que possa ter-se instalado.
  • A massagem também tem o seu papel. A massagem clássica (do tipo deslizamento) está contra-indicada na fase inflamatória por promover o aumento da vascularização. Neste período somente está indicada a massagem do tipo compressivo, como a transversa profunda; o objectivo é comprimir os vasos arteriais e impedir a organização de fibrose.
  • Paralelamente a estes cuidados na luta contra a hipertrofia, por vezes há necessidade de recorrer aos tratamentos de cinesiterapia e/ou aos tratamentos em terapia ocupacional. (Figura 9).
  • O tratamento em estâncias termais (crenoterapia) com especialização para tratamentos de sequelas de queimaduras é eficaz, embora de elevado custo.

FIGURA 7. Fato compressivo (pressoterapia)

FIGURA 8. Placas de silicone sobre cicatrizes hipertróficas em fase inflamatória

FIGURA 9. Sequência de tratamentos de mãos queimadas em terapia ocupacional

GLOSSÁRIO

Pressoterapia > Método de tratamento utlizado classicamente nas perturbações circulatórias dos membros através de dispositivo mecânico de compressão e descompressão. No caso das queimaduras, o princípio baseia-se na compressão.

Vacuoterapia > Método de tratamento que consiste no descolamento de cicatrizes aderentes através de aparelho eléctrico com dispositivo colocado sobre aquelas, através do vácuo provocado (~sucção).

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