Definição e importância do problema

A meningoencefalite (ME) é um processo inflamatório das meninges e, em grau variável, do encéfalo. Trata-se dum quadro clínico causado por agentes vários, na maioria das vezes autolimitado, podendo, no entanto, ser fatal ou provocar sequelas neurológicas importantes.

Sendo numerosas as situações clínicas, infecciosas ou não, que se podem apresentar de início com um quadro que se pode sobrepor ao da ME (febre, alteração do estado de consciência, cefaleias e sinais neurológicos focais), torna-se, por isso, premente que no âmbito do raciocínio clínico exista elevado índice de suspeita.

Aspectos epidemiológicos

O padrão epidemiológico da ME, na maior parte das vezes de origem vírica, está por sua vez relacionado com a prevalência da infecção por enterovírus, o agente etiológico mais comum.

A infecção por enterovírus dissemina-se rapidamente de pessoa a pessoa, com um período de incubação variando entre 4 e 6 dias. Nos climas temperados ocorre com mais frequência no Verão e Outono.

Etiopatogénese

Os enterovírus (com mais de 70 serótipos) são os agentes responsáveis por ME em > 90% dos casos. Podendo surgir epidemias nos períodos atrás referidos, a via fecal-oral constitui a forma mais frequente de transmissão. Salienta-se o papel importante do enterovírus humano 68, associado a paralisia flácida, assim como dos parechovirus, com manifestações semelhantes às dos enterovírus.

A ME também pode ser provocada por diversos membros da família Herpes. O HVS do tipo 1 actua mais tipicamente nas crianças mais velhas e pode ocorrer durante a primo-infecção ou por reactivação do vírus, latente no gânglio do trigémio. Causa doença focal que atinge preferencialmente o lobo temporal; quando não tratada, comporta mortalidade elevada (> 70%) sem tratamento. A infecção pelo VHS do tipo 2 predomina no período neonatal, sendo adquirida intraparto. Neste caso, o SNC é atingido de forma difusa e apresenta um melhor prognóstico. Uma forma mais ligeira e transitória (na maioria por VHS do tipo 2) pode acompanhar a infecção por herpes genital em adolescentes sexualmente activos.

O vírus da varicela-zóster (VVZ) pode causar infecção do SNC em estreita relação temporal com o período eruptivo da varicela (os sinais neurológicos ocorrem geralmente 2 a 6 dias após o início das manifestações cutâneas, mas podem surgir durante o período de incubação ou após cicatrização das vesículas). A manifestação mais comum de compromisso do SNC é a ataxia cerebelosa, e a encefalite aguda a forma mais grave.

Após infecção primária, VVZ permanece latente nas raízes e gânglios dos nervos cranianos e espinhais, podendo mais tarde originar quadro de herpes-zóster acompanhado de meningoencefalite ligeira. A reactivação na forma de herpes-zóster pode ser acompanhada de meningoencefalite ligeira.

Os arbovírus (abreviatura do inglês: arthropod-borne-virus) constituem um grupo de vírus com ARN transmitidos pela picada de artrópodes, incluindo grande número de tipos patogénicos para o homem. Os astrovírus, englobados nos arbovírus e provocando classicamente gastrenterite, são a causa mais comum de encefalite epidémica nalgumas áreas geográficas dos Estados Unidos da América, China, Sudoeste Asiático e Índia. Destacam-se a encefalite japonesa, a encefalite de Saint Louis e a encefalite pelo vírus do Nilo (WNV ou West Nile vírus), entre outros. Não há casos descritos em Portugal. Os mosquitos e as carraças são os principais vectores, transmitindo a doença ao Homem e outros animais vertebrados após picada de pássaros e de outros pequenos animais infectados. O WNV pode também ser transmitido por transfusão de sangue ou derivados, em transplantes de órgãos, e por via transplacentar.

Outras doenças provocadas por vírus como o sarampo, a raiva, a papeira, a rubéola, a infecção congénita por CMV ou mesmo infecções por vírus respiratórios, como o adenovírus e o VRS, podem provocar meningoencefalite.

Os vírus podem atingir o SNC por via hematogénica ou intraneural. A disseminação hematogénica é característica dos arbovírus e enterovírus. Estes, após inoculação através do vector ou transmissão fecal-oral respectivamente, replicam-se localmente e, após virémia transitória, alojam-se no sistema reticuloendotelial e tecido muscular. A replicação nestes tecidos promove uma segunda virémia com invasão de outros órgãos, incluindo o SNC. O VHS, o vírus da raiva e, possivelmente, os poliovírus atingem o SNC por via axonal retrógada.

A lesão do SNC explica-se por invasão directa, com replicação do vírus, ou por reacção do hospedeiro aos antigénios dos vírus. A resposta imunológica do hospedeiro é responsável por desmielinização e por destruição vascular e perivascular. O estudo histológico revela sinais de congestão meníngea com infiltração linfocitária e mononuclear envolvendo “em manga” os vasos. Outros achados incluem ruptura neuronal, neuronofagia e proliferação ou necrose endoteliais.

O achado histopatológico de certo grau de desmielinização, com preservação de neurónios e seus axónios, é considerado representativo do quadro de encefalite pós-infecciosa ou alérgica. O córtex cerebral, especialmente o lobo temporal, é frequentemente afectado pelo VHS; os arbovírus tendem a afectar de modo generalizado o encéfalo, e o vírus da raiva as estruturas da base. O compromisso da espinhal medula, raízes nervosas e nervos periféricos é variável.

Manifestações clínicas

Como regra, pode estabelecer-se que o início da doença é geralmente agudo, sendo os sinais e sintomas relacionados com infecção do SNC, designadamente meningite associada a encefalite.

Classicamente é considerada a tríade febre, cefaleias e alteração do estado da consciência, valorizando-se igualmente a existência de eventual exantema (por ex. nas infecções por enterovírus, sarampo, rubéola, etc.) ou sinais inespecíficos durando alguns dias. Nas crianças mais velhas os sinais de apresentação incluem cefaleias e hiperestesia; nos lactentes, sobretudo irritabilidade ou letargia. O exantema prévio pode prolongar-se, a par das manifestações neurológicas.

Outros achados incluem sonolência, desorientação, náuseas, vómitos, fotofobia, cervicalgias, dorsalgias, perturbações comportamentais ou da fala. Poderão surgir rigidez da nuca, e sinais neurológicos como hemiparésia, convulsões, ou movimentos anómalos bizarros. Os sinais neurológicos podem ser mantidos, progressivos ou flutuantes.

Tendo como base os sinais e sintomas referidos apontando para compromisso das meninges e encéfalo (áreas anatómicas não estanques e em continuidade com o tronco cerebral e a espinhal medula) em termos de raciocínio clínico, com utilidade para o diagnóstico diferencial, importa salientar sucintamente os sinais e sintomas de infecção do tronco cerebral (febre, cefaleias, letargia, estado confusional, convulsões), e de mielite (retenção urinária, dor dorsolombar, parestesias/disestesias, fraqueza muscular, alterações do trânsito intestinal e vesical, e sinais de disfunção autonómica.

Diagnóstico

O diagnóstico provisório de meningoencefalite por vírus é, em geral, sugerido pela verificação de sinais prodrómicos inespecíficos seguidos por sintomatologia progressiva do SNC. A este propósito, é importante reforçar a noção de que é a anamnese e o exame físico/neurológico rigorosos que deverão fundamentar a realização de exames complementares.

Alguns achados sugerem uma etiologia específica: dor e parestesias das extremidades devem levantar a suspeita de ME pelo vírus da raiva ou por enterovírus não-pólio.

Achados focais, como a paralisia ou a afasia, apontam para probabilidade de ME por VHS, sem, no entanto, se poder excluir ME por VEB, ou CMV. Formas específicas de ME ou complicações incluem a síndroma de Guillain-Barré, a mielite transversa aguda, a hemiplegia aguda, e a ataxia cerebelar aguda.

Face à hipótese diagnóstica, torna-se prioritário proceder a PL para exame do LCR, excluídas as contra-indicações clássicas. Em contexto de ME por vírus verifica-se, em geral:

  • pleiocitose linfocítica (10 a 1000 células/mm3 até, por vezes, 8000 células/mm3); pleiocitose acentuada poderá ser epifenómeno de destruição extensa, tal como acontece nos casos de infecção por VHS;
  • proteínas em valor normal ou elevado (geralmente, 50-200 mg/dL); e
  • glicose geralmente normal (> 40 mg/dL), ou hipoglicorráquia discreta.

Estes parâmetros podem, no entanto, variar, sendo que o resultado do exame do LCR pode ser normal nos estádios iniciais da doença, ou evidenciar elevação dos polimorfonucleares antecedendo a pleiocitose linfocítica.

Quanto à pressão intracraniana, nas situações de infecção bacterina meníngea aguda em geral é elevada, sendo normal ou ligeiramente elevada nas de causa vírica.

O LCR deverá ser submetido a exames culturais para vírus, bactérias, fungos, e micobactérias; em determinado contexto clínico poderá haver necessidade de proceder a exames especiais para detecção de protozoários, Mycoplasma e outros patogénios. Sendo fortemente sugestiva a implicação de vírus no quadro de ME, deverá fazer-se a sua pesquisa igualmente noutros locais, como secreções da orofaringe, fezes, urina, etc..

A detecção do DNA ou RNA víricos por método molecular PCR/reacção em cadeia da polimerase no LCR, respectivamente para VHS, parechovírus, e enterovírus tornou-se o método diagnóstico de escolha (especificidade ~ 100%), sendo positivo nas primeiras 24 horas de doença e durante a primeira semana de terapêutica. O estudo serológico no LCR constitui o método de escolha para WNV.

Outros exames a efectuar para avaliação dos doentes com suspeita de ME são o EEG e os exames de neuroimagem.

No caso do EEG, na situação presente, ou se verifica normalidade, ou inespecificidade dos traçados, com actividade lenta difusa. A presença de complexos de ondas lentas ou de sinais de descargas epileptiformes laterais periódicas (PLED) nas regiões temporal e fronto-temporal é muito sugestiva de ME por VHS.

Quanto aos estudos de neuroimagem (TAC ou RM) podem ser detectados sinais de edema cerebral ou sinais focais.

A verificação de convulsões focais, e de sinais focais no EEG e nos estudos de neuroimagem – especialmente nos lobos temporais – apontam para ME por VHS.

No início da doença deve proceder-se a colheita de sangue para estudo serológico. Nos casos de as culturas de vírus serem negativas na fase precoce da doença, o estudo serológico repetido 2-3 semanas depois da primeira colheita poderá ter grande utilidade para verificar eventual subida de títulos. O estudo serológico para enterovírus não tem, contudo, utilidade por haver muitos serótipos.

Diagnóstico diferencial

Grande número de situações poderá ter manifestações clínicas semelhantes às da ME. As mesmas podem ser sistematizadas do seguinte modo:

  • meningite bacteriana;
  • outras infecções bacterianas (abcesso cerebral, empiema subdural ou epidural);
  • infecções por M. tuberculosis, T. pallidum, B. Burgdorferi /doença de Lyme, Bartonella henselae/ doença do arranhão do gato;
  • infecções por fungos, riquétsias, Mycoplasma, protozoários, e outros parasitas;
  • infecções humanas por vírus lentos (panencefalite esclerosante subaguda, encefalopatia espongiforme/doença de Creutzfeldt-Jakob, VIH, leucoencefalopatia multifocal progressiva, etc.);
  • várias situações não infecciosas (encefalopatia urémica, hepática, doenças hereditárias do metabolismo);
  • doenças tóxicas (intoxicações medicamentosas acidentais, acção tóxica percutânea de chumbo, hexaclorofeno, mercúrio, síndroma de Reye);
  • miscelânea (tumores intracranianos, hemorragias subaracnoideias, embolias por endocardite bacteriana, doenças desmielinizantes agudas, status epilepticus; doenças para – infecciosas (pós-infecciosas e alérgicas) associadas a vírus, riquétsias, Mycoplasma, vacinas, etc.).

Em suma, tendo em conta esta vasta lista de quadros clínicos, importa salientar:

  • várias situações não infecciosas poder estar associadas a inflamação do SNC e evidenciar sinais e sintomas que se sobrepõem aos da ME. São exemplos: doenças do foro oncológico, doenças autoimunes e hemorragia intracraniana;
  • encefalite autoimune devida a anticorpos anti-receptor do N-metil-D-aspartato é uma importante causa de encefalite de causa não infecciosa na idade pediátrica; este diagnóstico pode ser confirmado pela detecção dos referidos anticorpos no LCR;
  • a encefalomielite aguda disseminada também pode ser confundida na fase inicial com encefalite.

Tratamento

Exceptuando os casos de ME por VHS para os quais existe tratamento específico anti-vírico, dum modo geral as medidas a aplicar são sintomáticas e de suporte: analgésicos (desde paracetamol a codeína e morfina), ambiente calmo com diminuição do ruído e da luminosidade, anti-eméticos, fluidoterapia IV para compensar as dificuldades de alimentação oral, tratamento das convulsões, oxigenoterapia, etc..

Nas formas mais graves está indicado o internamento em UCIP para tratamento do coma, edema cerebral, estado de mal epiléptico, choque, monitorização da pressão intracraniana, correcção de desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, alterações metabólicas, síndroma de secreção inapropriada da hormona anti-diurética/SIADH, etc..

No que respeita ao tratamento das infecções por VHS, administra-se aciclovir IV na dose de 10 mg/kg de 8-8 horas (20 mg/kg nos recém-nascidos) durante 14-21 dias. Verificando-se resistência ao aciclovir, o foscarnet constitui uma alternativa.

Nos casos de ME por VVZ utiliza-se aciclovir IV; a associação de ganciclovir com foscarnet é utilizada quando o agente etiológico é o CMV.

Prognóstico

O prognóstico depende essencialmente da idade, do nível de consciência na data de internamento e do agente etiológico. A idade inferior a um ano, a diminuição do estado de consciência, a ocorrência de convulsões e o isolamento do HVS como agente etiológico são factores de mau prognóstico. As crianças com um ou mais destes factores de risco comportam maior taxa de mortalidade e de sequelas graves. Nos casos em que nenhum destes factores está presente, a recuperação é geralmente total.

Todas as crianças com o diagnóstico de meningoencefalite devem ser acompanhadas por uma equipa multidisciplinar na perspectiva de intervenção precoce para minorar possíveis défices. Tal acompanhamento deverá manter-se pelo menos durante dois anos e, idealmente, até ao ingresso na escola, período em que determinados problemas auditivos ou cognitivos se poderão tornar mais evidentes.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção podem ser assim sintetizados:

  • aplicação de vacinas anti-víricas desde a idade pediátrica; de salientar algumas dificuldades ainda verificadas na confecção de vacinas anti-arbovírus;
  • aplicação de vacinas em animais domésticos (o exemplo da vacina antirrábica é paradigmático);
  • actuação contra os insectos vectores através de produtos aplicados sob a forma de spray;
  • utilização de repelentes de insectos;
  • uso de roupa que proteja eficazmente a pele das picadas dos insectos.

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