Definição e importância do problema

Ao abordar-se o tópico TCE, importa estabelecer uma destrinça entre traumatismo craniano e traumatismo cranioencefálico. A primeira situação refere-se ao problema clínico associado a concussão e contusão da cabeça. O TCE refere-se às situações em que a lesão traumática da cabeça origina perda transitória da consciência, perturbação do estado mental ou amnésia com ou sem défice neurológico. Nas formas ligeiras de TC ligeiro a criança está consciente ou é facilmente despertável, não se verificando défice neurológico. De acordo com estudos epidemiológicos, na maioria das situações não se verifica evolução de TC para TCE.

A lesão cerebral constitui a causa mais frequente de morte por traumatismo em idade pediátrica (75-97%). As causas mais frequentes variam de acordo com o grupo etário: em menores de 4 anos são as quedas e acidentes de viação, com destaque em menores de 1 ano para a síndroma da criança batida e, em adolescentes, os acidentes desportivos e de viação. De referir que o veículo motorizado é o componente que comporta maior risco no ambiente que rodeia a criança.

Os TCE correspondem a cerca de 50% dos acidentes no primeiro ano de vida e a 25% dos mesmos até aos 5 anos. Nos EUA estima-se uma incidência de 200-300 casos por 100.000 crianças por ano, correspondendo a cerca de 1-2% de todas as situações de emergência no referido grupo etário. Destas, cerca de 5% são fatais. 

Etiopatogénese

O TCE pode originar dois tipos de lesão: primária e secundária.

A chamada lesão primária é imediata e corresponde à lesão física

do couro cabeludo, crânio, dura, vasos e parênquima nervoso (neurónios, dendritos, axónios, glia). Descrevem-se os seguintes mecanismos de lesão: impacte (hemorragias epidural, subdural, intracerebral, contusão, fracturas); inércia (concussão, lesão difusa axonal); hipóxia/isquémia.

Se a lesão primária não for reconhecida, poderá surgir lesão secundária na base da qual estão cinco categorias de mecanismos: excitotoxicidade, isquémia e falência de energia, activação da cascata da inflamação, lesão/ruptura tecidual, e lesão dos axónios.

Todos estes fenómenos associam-se a eventos clínicos diversos: hipotensão sistémica, insuficiência respiratória e hipóxia-isquémia, assim como herniação cerebral ou do tronco cerebral como resultado de edema cerebral ou hemorragia intracraniana com consequente hipertensão intracraniana, agravante da hipóxia-isquémia/hipoperfusão cerebral. A presença de tecido cerebral lesado, por sua vez, poderá comprometer o débito sanguíneo cerebral, por disfunção do mecanismo de autorregulação.

A localização do encéfalo no interior da calote craniana confere protecção às agressões externas. Contudo, a rigidez óssea opõe-se às variações do volume do conteúdo intracraniano, exceptuando nas primeiras idades em que se verifica certo grau de distensibilidade da calote enquanto não se verificar o encerramento das fontanelas e suturas. Ou seja, a partir das idades em que a calote deixa de ser distensível, a expansão do tecido cerebral, ou dos fluidos que circulam dentro do crânio por lesão traumática originam elevação da pressão intracraniana (hipertensão intracraniana). Especificando: qualquer aumento do volume do tecido cerebral, do volume de sangue contido no tecido cerebral e meninges, e/ou do volume do LCR por patologia (como edema, hemorragia ou hidrocefalia) origina desvio do LCR para o canal espinal como mecanismo de compensação, o que, como se pode calcular, tem limites.

Se o aumento do volume intracraniano for muito acentuado, a pressão intracraniana (PIC) aumenta rapidamente. Se a PIC exceder a pressão venosa (PV) os vasos cerebrais são comprimidos, o que se repercute sobre a pressão de perfusão cerebral (PPC- pressão que garante o débito sanguíneo cerebral); a consequência é a redução do débito sanguíneo cerebral.

Recordam-se, a propósito, algumas noções básicas:

  • A PPC é a diferença entre a pressão nas artérias à entrada na calote craniana e a PIC;
  • Na maior parte dos órgãos, o débito sanguíneo é directamente proporcional à diferença entre a pressão arterial e a pressão venosa (pressão de perfusão) e inversamente proporcional à resistência que o órgão oferece ao leito vascular;
  • Nalguns órgãos como o coração e o cérebro, verifica-se igualmente um mecanismo de regulação através do tono vascular (resistência vascular) de modo a garantir débito sanguíneo constante face às variações da pressão de perfusão; trata-se do fenómeno de autorregulação.

Ao nível ultraestrutural são verificados os seguintes eventos com resultado do TCE:

  • Depleção de fosfocreatina com repercussão no défice de energia para as reacções requerendo ATP;
  • Falência da membrana com perda de gradientes iónicos, aumento de Ca++ e Na+ e diminuição de K+ intracelulares;
  • Libertação de ácidos gordos livres da membrana neuronal;
  • Acção do glutamato e de outros aminoácidos excitatórios originando lesão neuronal (excitotoxicidade) paralelamente à produção de radicais livres;
  • Estresse oxidativo (acção do O) e nitrativo (acção do N) como resultado da disfunção mitocondrial;
  • Peroxidação lipídica e oxidação proteica, conduzindo a lesão do ADN, necrose e apoptose; estes fenómenos são associados a nível elevado de poli-insaturação;
  • Edema citotóxico conduzindo a necrose neuronal e edema vasogénico (relacionado com disfunção da barreira hemato-encefálica por inflamação).

Actuação inicial

Sendo os TCE situações emergentes, importa abordar aspectos da actuação inicial (prioritária) antes da descrição sucinta das formas clínicas mais frequentes e dos procedimentos a realizar durante a estadia do doente na unidade de cuidados intensivos pediátricos. (Figura 1)   

Numa perspectiva prática, a actuação no âmbito deste problema clínico pressupõe um trabalho coordenado de equipa treinada, importando chamar a atenção para a necessidade de uma sequência de gestos:

  • Tratar prioritariamente a disfunção respiratória e cardiovascular;
  • Anamnese inquirindo sobre circunstâncias em que se verificou o acidente, sinais e sintomas ocorridos eventualmente como convulsões, vómitos, hemorragias nasais ou auriculares, perda de LCR etc.;
  • Exame somático global para detecção de lesões como abdómen agudo, fracturas, lesões torácicas etc;
  • Observação cuidadosa da calote craniana;
  • Monitorização dos sinais vitais (pressão arterial e pulso; hipertensão e bradicárdia apontam para hipertensão intracraniana, enquanto hipotensão e taquicárdia, para choque hipovolémico);
  • Avaliação neurológica prévia englobando atenção especial: – às pupilas (simetria, dimensões e reacção à luz), ao nível de consciência de modo estruturado, objectivo e mensurável em cada caso – através da escala de Glasgow ou Glasgow Coma Scale/GCS; e – à existência de défices motores e de sinais meníngeos; anisocória pode sugerir herniação ou hematoma epidural ou subdural;
  • Outros procedimentos a aplicar concomitantemente em função do contexto clínico (Quadros 1 e 2); salienta-se que a realização de radiografia do crânio nos TC ligeiros é pouco esclarecedora; por isso, é dada preferência à TAC-CE em situações acompanhadas de perda de consciência, sinais de fractura, suspeita de síndroma da criança batida, sinais neurológicos focais, ataxia, cefaleias e vómitos persistentes, otorráquia, rinorráquia, convulsão ou antecedentes de discrasias sanguíneas; a necessidade de suporte ventilatório implica seguramente, também, monitorização hemodinâmica invasiva e monitorização da PIC. De salientar que pode ocorrer herniação apesar de valores de PIC normais.

Nota: uma TAC-CE inicial normal não exclui a hipótese de se desenvolver hipertensão intracraniana ou de aparecerem outras lesões. Deverá repetir-se o exame se:

  • TAC-CE realizada nas primeiras 6 horas
  • Após 24 horas se a TAC-CE inicial evidenciar sinais de patologia
  • Se houver agravamento clínico
  • 24 h após drenagem de colecção para excluir recidiva
  • 24 h após primeira TAC normal, em doentes sedados, sem monitorização de PIC

FIGURA 1. Algoritmo para casos de TCE na idade pediátrica

QUADRO 1- Monitorização neurológica (Glasgow Coma Scale)

Interpretação: graus 13-15: ligeiro compromisso neurológico; graus 9-12: moderado compromisso neurológico; graus < 8: grave compromisso neurológico
Melhor abertura dos olhos (1-4)Melhor resposta motora
(membros superiores (1-6))
Melhor resposta verbal (1-5)Melhor resposta verbal (1-5)
(modificado para criança mais nova)
    1. Sem resposta
    2. Responde à dor
    3. Responde à voz
    4. Espontâneo
    1. Sem resposta
    2. Extensão anormal (postura de descerebração)
    3. Flexão anormal (postura de descorticação)
    4. Flexão de retirada à dor
    5. Localização da dor
    6. Obedece a ordens
    1. Ausência
    2. Sons incompreensíveis
    3. Palavras inapropriadas
    4. Discurso confuso
    5. Orientado
    1. Ausência
    2. Inquieto, agitado
    3. Irritabilidade persistente
    4. Choro consolável
    5. Palavras apropriadas, sorri, fixa + segue

QUADRO 2 – Procedimentos ABC (Airway – Breath – Circulation)

Entubação traqueal: quando, quem, como?…
Quando:
      • Escala de coma de Glasgow (GCS) < 8
      • Decréscimo de 3 pontos na GCS, independentemente do valor inicial de GCS
      • Assimetria pupilar
      • Esforço respiratório ineficaz ou lesão torácica ou pulmonar significativa
      • Perda do reflexo faríngeo (gag)
      • Apneia
      • Convulsões
Por quem:
      • Pela mais qualificada e experiente pessoa disponível
      • Com a presença de, pelo menos, duas pessoas qualificadas e experientes
      • Com o apoio indispensável de equipa de enfermagem e de assistência respiratória
Como:

Sequência rápida de procedimentos:

          • Estabilização com tracção axial do pescoço se houver suspeita de lesão da coluna cervical (até prova em contrário, toda a lesão craniana está associada a lesão cervical)
          • Compressão da cartilagem cricóide
          • Pré-oxigenação com O2 a 100% e máscara (2-3 minutos)
          • Lidocaína (1-2 mg/kg) – prevenção da elevação da pressão intracraniana (PIC)
          • Tiopental: 2-3 mg/kg se TC + hipovolémia; 5-7 mg/kg na ausência de hipovolémia
          • Considerar bloqueio neuromuscular: vecurónio (0,2-0,4 mg/kg)
          • Entubação
          • Promover oxigenação e ventilação eficazes

Algumas formas clínicas e actuação em situações específicas

 Importa considerar as principais formas clínicas de apresentação, descritas a seguir, chamando-se a atenção para medidas particulares de actuação. (Figuras 2 a 7)

Associada a qualquer das formas clínicas, poderá estar a hipertensão intracraniana; recordam-se os sinais principais desta última: alteração do estado de consciência, edema da papila, cefaleias e paralisia do 6º par craniano.

Poderá verificar-se evolução para herniação perante as seguintes circunstâncias:

  • Anisocória por midríase unilateral; ou
  • Tríade de Cushing (hipertensão, bradicardia e padrão respiratório anómalo).

Fracturas do crânio

Existindo uma força de impacte importante, o clínico poderá deparar-se com diversas situações:

  • Fractura linear; deverá ser ponderada a vigilância no domicílio ou no hospital.
  • Fractura exposta (risco de lesão directa do SNC e risco infeccioso); tal implica necessidade de avaliação neurocirúrgica.
  • Fractura com afundamento (quando a tábua interna sofre uma deslocação superior à espessura do osso); obriga à necessidade de avaliação neurocirúrgica e antibioticoterapia.
  • Fractura da base do crânio (basilar); o diagnóstico é clínico e imagiológico. A TAC evidencia sinais de fractura e de lesões cerebrais associadas. Relativamente ao exame objectivo há a salientar:
    • equimose retroauricular ou mastoideia (sinal de Battle) – por dissecção do sangue na região occipital ou mastoideia;
    • laceração do canal auditivo externo, nervos facial e auditivo (fractura do rochedo temporal);
    • hemorragia endotimpânica com abaulamento (fractura do rochedo temporal);
    • equimose periorbitária (racoon eyes)difusão do sangue para a região periorbitária;
    • perda de LCR (nasal, canal auditivo) <> ruptura da leptomeninge.

Este tipo de fracturas exige hospitalização, fluidoterapia IV, analgésicos e anti-eméticos, estando contra-indicada a entubação nasogástrica pelo risco de lesão da lâmina crivada do etmóide. A evolução, embora decorra habitualmente sem complicações, estas poderão surgir:

  • perda de LCR pela lâmina crivada do etmóide é a mais frequente (~80%), em geral com cura espontânea em cerca de 1 semana;
  • meningite (3-25% com rinorráquia; 4,5% com otorráquia); está contra-indicada a antibioticoterapia profiláctica;
  • lesão dos nervos cranianos: entre 3-10% com anósmia (permanente), entre 1-10% com paralisia ocular recuperando na maioria dos casos (~75%); entre 1-12% paralisia facial, com recuperação em cerca de 90%; e, em cerca de 2%, surdez neurossensorial completa.

Concussão

Trata-se da perda de consciência transitória na sequência de traumatismo craniano (termo descritivo, sem especificar alterações anatómicas ou fisiológicas). A sintomatologia acompanhante varia:

  • Nas crianças mais novas: sonolência e vómitos arrastados, sendo elevada a incidência de convulsões benignas pós-traumáticas.
  • Nas crianças mais velhas (colaborantes): amnésia pós-traumática, com duração proporcional à gravidade do trauma).

De um modo geral, verifica-se a normalização da função neurológica em 1 semana. A chamada síndroma pós-concussão pode persistir até 1 ano (ligeiro atraso na aprendizagem, alterações de comportamento, cefaleias ligeiras ou moderadas).

Contusão

Esta designação refere-se à maceração do tecido nervoso com hemorragia microscópica, sem laceração de tecidos.

As causas mais frequentes relacionam-se com agressão directa e efeito por desaceleração/aceleração.

Verifica-se deterioração neurológica relacionada com edema local progressivo, enfarte ou hematoma.

O tratamento é fundamentalmente médico: controlo da PIC. Em função da magnitude das lesões e sintomatologia, poderá estar indicado tratamento cirúrgico: drenagem do hematoma. O prognóstico é favorável.

FIGURA 2. Hematoma epidural (Esquema)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos (Imagem de TAC)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos pós-drenagem cirúrgica (TAC)

FIGURA 3. Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos

Hematoma epidural

Esta forma clínica, geralmente associada a fractura, corresponde à colecção de sangue entre o crânio e a dura-máter. (Figuras 2, 3, 4)

Os factores etiológicos relacionam-se com agressão directa sobre a cabeça, com energia suficiente para descolar a dura do crânio. Trata-se dum hematoma limitado pelas linhas das suturas, podendo a sua origem ser arterial (manifestações surgidas cerca de 6-8 h após evento desencadeante), ou venosa (de início de manifestações mais tardio, cerca de 24 horas depois da acção do desencadeante). Classicamente existe um intervalo livre de tempo (intervalo lúcido) entre o evento agressivo e o início das manifestações clínicas com deterioração neurológica em geral rápida; as manifestações dependem da expansão maior ou menor do hematoma, da possível herniação do lobo temporal e da eventualidade de compressão da protuberância. A anisocória, como se disse, poderá ser um sinal suspeito. O hematoma da fossa posterior é assintomático em geral até se verificar herniação.

A TAC CE evidencia sinais de lesão de alta densidade, localizada, lenticular e efeito de massa.

A actuação emergente consiste em craniotomia. O prognóstico favorável:  mortalidade 5% e recuperação em cerca de 90% dos casos.

Hematoma epidural agudo em criança com 11 anos de idade (Imagem de TAC)

FIGURA 4. Hematoma epidural agudo em criança de 11 anos

Hematoma subdural agudo

O hematoma subdural agudo é uma colecção de sangue na superfície do córtex, debaixo da dura, em geral associada a lesão cortical (laceração de vasos ou contusão cortical), por acção mecânica de agente externo. (Figura 5)

Ao contrário do hematoma epidural, não está limitado pelas linhas das suturas, podendo ser holo-hemisférico.

As manifestações neurológicas surgem abruptamente, sem intervalo lúcido, o que se pode relacionar com lesão parenquimatosa grave associada. Poderá surgir anisocória entre outros sinais.

A TAC CE, realizada com carácter emergente, evidencia sinal em forma de crescente de hiperdensidade localizado ao longo da convexidade, efeito de massa importante, lesão cerebral subjacente e sinais de edema cerebral.

O tratamento é médico e cirúrgico. O prognóstico é menos favorável do que no caso do hematoma epidural.

Hematoma subdural crónico

Esta situação corresponde a uma colecção hemática no espaço subdural com produtos sanguíneos degradados. O principal factor etiopatogénico é um trauma não acidental (especialmente por abuso).

Raro em crianças depois dos 2 anos (a distensibilidade craniana – fontanelas e suturas – permitem uma lenta acumulação de líquido subdural), manifesta-se por convulsões como epifenómeno de irritação cortical; poderão verificar-se hipertensão intracraniana e hemorragias retinianas.

A TAC CE revela: sinais de colecção hipodensa nas convexidades cerebrais, em forma de crescente; alargamento dos espaços do LCR; e sulcos espaçados. (Figura 6)

O tratamento é geralmente médico e, por vezes, cirúrgico.

Hematoma subdural (Esquema)

Hematoma subdural (imagem de TAC)

Hematoma subdural com drenagem externa (imagem de TAC)

Hematoma subdural agudo em lactente de 3 meses de idade no contexto de sépsis meningocócica

FIGURA 5. Hematoma subdural agudo

Hematoma subdural crónico em criança de 8 meses de idade vítima de maus tratos (shaken baby) (TAC)

FIGURA 6. Hematoma subdural crónico

Hematoma intracerebral

Esta entidade clínica é pouco frequente na idade pediátrica. Em geral associado a lesão parenquimatosa grave, acompanha-se de prognóstico reservado. (Figura 7)

O tratamente consiste essencialmente em drenagem cirúrgica.

Hemorragia intracerebral num recém-nascido (TAC). Uso de derivação ventrículo-peritoneal como tratamento da hidrocefalia sequelar.

FIGURA 7. Hemorragia intracerebral

Lesão penetrante

Nos casos de lesões penetrantes está indicada intervenção neurocirúrgica emergente com avaliação imagiológica (TAC CE, RM ou angiografia). O objecto penetrante não deve ser removido pelo risco de hemorragia.

Deverá proceder-se a antibioticoterapia profiláctica e a terapêutica anticonvulsante em situações associadas a lesão cortical.

Hemorragia intraventricular

Este tipo de lesão traumática é, na maioria dos casos, provocada por pequenos traumas, com resolução espontânea. Existe risco de hidrocefalia obstrutiva.

Poderá estar indicada derivação ventriculoperitoneal.

Hemorragia subaracnoideia

Constitui a hemorragia intracraniana pós-traumática mais frequente.

Os sinais clínicos incluem: irritação das meninges pela hemorragia (cefaleias, rigidez da nuca, agitação, náuseas/vómitos). O tratamento é sintomático, incluindo analgesia com paracetamol e corticosteróides.

Lesão axonal difusa

Esta entidade corresponde a ruptura das vias axonais (resultado do efeito desaceleração/aceleração do crânio) com repercussão sobre os núcleos basais, tálamo e corpo caloso. A RM revela sinais de pequenas e numerosas hemorragias, assim como edema parenquimatoso difuso.

O prognóstico é reservado pelas sequelas, obrigando a ulterior reabilitação.

Lesão de golpe-contragolpe

Esta lesão traumática pode resultar de queda para trás com consequentes lesões bilaterais ou de acção traumática exercida sobre a região frontal (Figura 8). Geralmente estão implicados os lobos frontal inferior e temporal.

Neste tipo de lesões há grande probabilidade de ocorrer hemorragia subaracnoideia com contusão dos lobos frontal e temporal.

Síndroma do bébé abanado (Shaken Baby Syndrome)

A esta situação já foi feita referência no capítulo sobre “a criança maltratada” (volume 1).

Como consequência da oscilação da cabeça para a frente e para trás originando flexões e extensões da região cervicocefálica rápidas, intermitentes e até ao limite de mobilidade, poderá surgir lesão craniana fechada inesperada. Recorda-se, a propósito, frequente atraso na procura de apoio médico e história inconsistente ou ausente de evento traumático.

As características fundamentais das lesões são:

  • Hematoma subdural e/ou hemorragia intraparenquimatosa;
  • Hemorragias retinianas bilaterais (Figuras 9 e 10);
  • Fracturas ocultas;
  • Verificação de lesões antigas e recentes.

FIGURA 8. Lesão tipo chicote (golpe-contragolpe) – lesão de cabeça fechada com lesão cerebral resultante. Exibe os seguintes estágios: A. à cabeça empurrada para trás com o cérebro a chocar com a parede do crânio (impacte primário); e B. à cabeça é empurrada para a frente com o cérebro a chocar com a parede posterior do crânio (impacte secundário)

FIGURA 9. Hemorragia peripapilar (Fundoscopia)

FIGURA 10. Hemorragia intra e pré-retinal (Fundoscopia)

  • Terapia e monitorização na unidade de cuidados intensivos

 Para além dos aspectos focados na alínea Actuação inicial, importa focar os procedimentos a aplicar durante a estadia do doente na UCIP:

Monitorização
  • Avaliação neurológica e exame objectivo seriado;
  • Monitorização contínua cardiorrespiratória e hemodinâmica (frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial invasiva, pressão venosa central, capnografia e diurese);
  • Monitorização da PIC (tratar se >15 mmHg até aos 2 anos e > 20 mmHg acima dos 2 anos) e da PPC; esta deve ser superior a 40-50 mmHg no lactente, 50-60 mmHg na criança e > 60 mmHg no adolescente);
  • Doppler transcraniano;
  • NIRS (near-infrared spectroscopy) – permite a monitorização não invasiva da saturação de O2 cerebral;
  • Outros métodos de monitorização: Saturação venosa jugular? Pressão tecidual de O2, potenciais auditivos evocados do tronco, microdiálise cerebral.
Tratamento
  • Oxigenação e a ventilação
    • Entubação imediata se GCS ≤ 8 ou rápida deterioração neurológica
    • Manter PEEP < 10 para prevenir a diminuição do retorno venoso
    • Evitar a hiperventilação; normocápnia
  • Circulação
    • Manter normovolémia, com soro fisiológico para as necessidades (soro dextrosado apenas se houver hipoglicemia)
    • Garantir o suporte hemodinâmico necessário, rendibilizando PPC de modo que se estabeleça a relação → PPC=PAM-PIC
  • Suspeitar de lesão cervical até esta ser excluída
  • Colocar sonda orogástrica se suspeita de fractura da base do crânio
  • Posição do pescoço na linha média, elevação da cabeceira a 30º
  • Tratamento da dor e da agitação (sedoanalgesia; considerar bloqueio neuromuscular quando necessário)
  • Monitorização cuidadosa da PIC durante os cuidados de enfermagem, limitando ao mínimo a manipulação; aspiração de secreções – só quando necessário; administração de bólus de lidocaína 1 mg/kg ev antes das aspirações e manipulações
  • Após preparação cuidadosa dos visitantes, permitir o contacto calmo
    NB – Corticóides sem indicação
  • Tratar a hipertensão intracraniana
    • Aumentar sedoanalgesia; relaxantes musculares
    • Considerar drenagem LCR quando possível (se cateter PIC intraventricular)
    • Drenar hemorragias ocupando espaço se aplicacável
    • Promover fluidoterapia hiperosmolar:
      • manitol: 0,25-0,5 g/kg/dose): manter osmolalidade sérica < 320 mOsm/kg para evitar agravamento da lesão do tecido neural; pode associar-se furosemido
      • soro salino hipertónico (NaCl 3%-2-6 ml/kg; modo de preparação: 15 ml NaCl 20%+85 ml água destilada), pode seguir perfusão contínua 0,1-1 ml/kg/h; manter osmolalidade sérica < 360 mOsm/kg
    • Hiperventilação moderada (pCO2 30-35 mmHg)
    • Se falência das medidas anteriores:
      • hiperventilação intensa (pCO2 < 30 mmHg)
      • coma barbitúrico
      • craniectomia descompressiva
  • Diminuir a taxa metabólica cerebral
    • Prevenir as convulsões (fenitoína, fenobarbital)
    • Tratar agressivamente as convulsões (diazepam, fenitoína, fenobarbital)
    • Reservar o tiopental/pentobarbital para situações refractárias
    • Evitar a hipertermia; normotermia como meio de preservar o tecido cerebral; em relação a hipotermia (32-34ºC) – ainda não está provada a eficácia em crianças
    • Evitar a hiperglicemia; perfusão de insulina se necessário
  • Tratar possíveis complicações – disfunção do eixo hipotálamo-hipófise
    • Diabetes insípida central
    • Secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH)
    • Insuficiência suprarrenal

Procedimentos após a alta hospitalar

Após a alta, os pais ou prestadores de cuidados no domicílio deverão ser esclarecidos sobre a necessidade de vigilância, incidindo a atenção sobre determinados aspectos, quer nos casos de TCE, quer nos de TC ligeiro:

  • Alteração do estado mental/comportamento
  • Observação das pupilas (dimensões, simetria e resposta à luz)
  • Dificuldade em falar
  • Alterações da visão
  • Desequilíbrio na marcha
  • Dificuldade em usar os membros superiores
  • Cefaleias ou vómitos persistentes
  • Convulsões
  • Febre

Abreviaturas

GCS: Glasgow Coma Scale
SNC: sistema nervoso central
TC: traumatismo craniano
LCR: líquido cefalo-raquidiano
PIC: pressão intracraniana
HIC: hipertensão intracraniana
UCIP: unidade de cuidados intensivos pediátricos
PAM: pressão arterial média
PA: pressão arterial
TAC CE: tomografia axial computotadorizada cranioencefálica
CID: coagulação intravascular disseminada
SIHAD: síndroma secreção inapropriada de hormona anti-diurética
PPC: pressão de perfusão cerebral
ET: endotraqueal
SF: soro fisiológico

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