Definições e aspectos epidemiológicos

Na idade pediátrica a febre é uma das causas mais frequentes de recurso aos serviços de saúde (10-30% das visitas a consultas e 25-30% das visitas aos serviços de urgência). Os episódios febris são mais frequentes entre os 3 e os 36 meses. Neste período, a média de episódios febris agudos oscila entre 4 a 6 por ano. Não há diferenças significativas relativamente ao sexo ou condição económica. As doenças febris em crianças são causadas na sua maioria por vírus; porém, estima-se que em 5% dos casos a causa poderá ser uma infecção bacteriana.

Nos últimos anos, com a introdução das vacinas conjugadas contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib), Neisseria meningitidis do serogrupo C e Streptococcus pneumoniae (para 13 serótipos), o panorama geral relacionado com quadros febris em crianças pequenas (sobretudo entre os 3 e 36 meses) requerendo actuação especial melhorou substancialmente.

A este respeito importa definir um conjunto de conceitos:

  1. A febre surge como resposta a um estímulo patológico com produção de pirogénios endógenos que actuam no centro termorregulador.
    Existem várias definições de febre; segundo a mais consensual, febre é o aumento da temperatura corporal acima da variação da temperatura normal diária de um indivíduo. Depreende-se assim que o valor da temperatura corporal a partir do qual se considera febre pode ser variável; concretizando, na prática diz-se que o paciente tem febre quando a temperatura rectal é > 38ºC, auricular > 38,2ºC ou axilar > 37,5ºC.
  2. O termo febre sem foco (de infecção localizável) refere-se às situações de febre com duração inferior ou igual a 7 dias numa criança sem evidenciar sinais compatíveis com sépsis, e em que a anamnese ou o exame físico não permitem detectar a sua etiologia.
  3. A bacteriémia oculta é um processo febril em que a criança não evidencia clinicamente sinais de gravidade compatíveis com sépsis, mas em que se detecta crescimento de bactérias no sangue.
  4. A designação de febre de origem indeterminada refere-se à presença de febre com duração superior a 3 semanas, sem etiologia identificável após realização de anamnese, exame objectivo e exames complementares de diagnóstico ou após uma semana de hospitalização e avaliação.

Em cerca de 20% dos casos com quadro febril agudo, não é possível identificar um foco infeccioso após cuidado exame objectivo. Neste sentido, perante uma criança febril a principal atitude é excluir uma infecção bacteriana potencialmente grave (sépsis, pneumonia, artrite séptica, osteomielite, celulite, pielonefrite, meningite, gastrenterite aguda bacteriana), tendo em conta a sua idade e o seu estado de imunização.

Neste grupo de crianças, as infecções do tracto urinário representam a infecção bacteriana mais frequente, com uma prevalência que varia entre 5% a 7%.

O número de casos de meningite bacteriana também tem diminuído, muito devido à generalização da vacinação (anteriormente referida) contra o Hib, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis (serogrupos C e B). O mesmo aconteceu com as bacteriémias ocultas em crianças febris entre os 3 e 36 meses de idade (diminuição de 5% para 1%.

A pneumonia sem sintomas ou sinais respiratórios é causa pouco provável de febre sem foco, embora existam estudos demonstrando que nos lactentes com febre > 39ºC e leucocitose ~20 000/μL, a incidência de pneumonia poderá atingir o valor de 19%.

Este capítulo incide sobre as crianças com febre sem foco de idades entre os 3 e 36 meses, grupo etário que comporta maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave. Excluem-se desta análise as crianças que necessitam de uma abordagem individualizada – crianças com sinais compatíveis com sépsis, recém-nascidos com sépsis neonatal precoce, e crianças com imunodeficiências primárias ou adquiridas, ou com doenças crónicas.

Etiopatogénese

O aparecimento de febre resulta da libertação de pirogénios endógenos para a circulação como resultado, na maioria das vezes, de infecções; uma proporção mais restrita poderá resultar de causas não infecciosas, tais como disfunção do SNC, febre neoplásica, condições inflamatórias crónicas, febre medicamentosa ou recções às imunizações. Na presença de uma infecção, os agentes e toxinas microbianos actuam como pirogénios exógenos; estes estimulam a libertação de pirogénios endógenos (citocinas) a partir de monócitos, macrófagos, células mesangiais, células gliais, células epiteliais, e linfócitos B: interleucina-1(IL-1), IL-6, factor de necrose tumoral (TNF) e interferões vários. Quer a proteína C reactiva (PCR), quer a procalcitonina (PCT), como reagentes da fase aguda inflamatória, são produzidos no fígado como resposta às citocinas.

Os pirogénios endógenos, atingindo o hipotálamo, promovem a libertação de ácido araquidónico que, transformado em prostaglandina E2, actua no centro termorregulador. Os antipiréticos (paracetamol, ibuprofeno, ácido acetilsalicílico), inibindo a cicloxigenase hipotalâmica, inibem a produção de prostaglandina E2.

A razão pela qual os lactentes têm um risco aumentado de infecção bacteriana grave deve-se essencialmente à imaturidade do seu sistema imunológico. Nos primeiros meses de vida existe um défice na opsonização e da função dos macrófagos e da actividade dos neutrófilos. A imunidade celular e humoral também é extremamente imatura, nomeadamente a produção de IgG específicas contra bactérias capsuladas.

A etiologia dos quadros febris infecciosos varia consoante a idade da criança.

Nos recém-nascidos (idade até 28 dias/4 semanas completas), os agentes mais prevalentes são: Streptococcus do grupo B, Escherichia coli, Listeria monocytogenes, se bem que possam também surgir infecções por agentes que surgem com maior frequência noutros grupos etários, nomeadamente Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae.

Entre os 29 dias e os 3 meses de idade estão habitualmente implicados: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, Haemophilus influenzae. No entanto, poderão também estar em causa germes que infectam habitualmente o RN.

Após os 90 dias e até aos 36 meses (3 anos): Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, e Haemophilus influenzae.

Abordagem clínica

Por definição, a febre sem foco não se acompanha de qualquer sinal ou sintoma de localização (infecção das vias respiratórias superiores ou inferiores, infecção gastrintestinal, infecção urinária, infecção osteoarticular, infecção do SNC); por outro lado, na grande maioria das crianças existe bom estado geral. Por isso, o grande desafio do clínico é identificar quais os pacientes que comportam maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave.

Para tentar identificar as crianças com uma infecção bacteriana potencialmente grave é imprescindível a realização de história clínica pormenorizada, incluindo anamnese e exame objectivo minuciosos.

Nas crianças mais pequenas, a anamnese propicia dados mais escassos e o exame objectivo é mais difícil. Nesta perspectiva, tentando de modo estruturado quantificar/estratificar o risco de infecção bacteriana potencialmente grave nas situações de febre sem foco, foram desenvolvidas escalas de avaliação associando critérios clínicos e valores analíticos. São exemplos as escalas de YOS (Young Infant Observation– para crianças com menos de 3 meses), Rochester, Boston, Yale ou Philadelphia. De acordo com os resultados de estudos, salienta-se que a sensibilidade e a especificidade de tais critérios é baixa.

A anamnese relativamente à criança febril deve ser sempre pormenorizada, incluindo inquirir, designadamente sobre:

  • Parto de termo ou pré-termo;
  • Doenças anteriores;
  • Imunizações (quais e quando);
  • Contexto epidemiológico, como contactos de doentes conhecidos e eventual frequência de escola ou infantário;
  • Características da febre;
  • Nível de actividade da criança desde o início da febre;
  • Repercussão eventual sobre o apetite.

O risco de haver uma infecção bacteriana potencialmente grave é menor nas crianças que nasceram de termo e previamente saudáveis. É importante caracterizar a febre: existe um maior risco de bacteriémia com temperatura mais elevada, mas não há relação com a duração da febre; a facilidade de resposta a antipiréticos também não permite distinguir quadros bacterianos de víricos.

São manifestações de possível infecção sistémica e, como tal, sugestivas de gravidade clínica, prostração e recusa alimentar.

O exame objectivo deve ser pormenorizado, valorizando, designadamente:

  • Mau estado geral compatível com quadro séptico;
  • Presença de foco infeccioso;
  • Sinais respiratórios;
  • Existência de exantema.

O estado geral da criança é um importante indicador clínico. A criança com aspecto geral séptico, nomeadamente com prostração, pouco reactiva, com bradipneia ou hiper ou taquipneia, que não estabelece contacto ocular e não sorri, tem maior probabilidade de ter uma doença grave do que a criança que evidencia bom estado geral. A má perfusão periférica, a pele marmoreada e cianose são também indicadores de maior gravidade.

A existência de exantema é importante: lesões petequiais ou purpúricas surgem na sépsis meningocócica e, mais raramente, em infecções por Haemophilus influenzae. O exantema macular que surge precocemente em relação ao início da febre pode igualmente ser sinal de sépsis; por isso, torna-se obrigatório determinar a cronologia do aparecimento das lesões cutâneas.

A pneumonia pode manifestar-se apenas por taquipneia ou sinais de hipoxémia; por conseguinte, não deve excluir-se infecção das vias respiratórias inferiores pela ausência de sinais de dificuldade respiratória ou de ruídos adventícios através da auscultação pulmonar.

O exame objectivo completo deve incluir a medição da frequência respiratória e a determinação da saturação transcutânea em O2 (SpO2), especialmente nos recém-nascidos e pequenos lactentes.

A observação deve identificar possíveis focos infecciosos. A presença de sinais sugestivos de infecção vírica diminui a probabilidade de existir uma doença bacteriana grave subjacente. No entanto, tal não se aplica a recém-nascidos e pequenos lactentes: efectivamente, diversos estudos revelaram igual incidência de doença bacteriana com e sem infecção vírica concomitante.

De salientar que taxas de bacteriémia são semelhantes em crianças febris com e sem otite média aguda, sem outro foco infeccioso aparente; por isso, tal achado não deve ser sobrevalorizado.

Actuação prática e exames complementares

Como regra geral pode estabelecer-se que uma criança com febre e sinais sistémicos graves deve ser imediatamente hospitalizada.

Com vista à actuação prática, específica, as crianças são classicamente divididas de acordo com a sua idade:

  1. Recém-nascidos;
  2. Lactentes com idades entre os 29 dias e os 3 meses; e
  3. Crianças com idades entre >3 e 36 meses.

     

I. Recém-nascidos

A imaturidade imunológica dos recém-nascidos constitui um factor de maior vulnerabilidade a agentes infecciosos, o que determina maior probabilidade de evolução desfavorável da doença.

Com base na avaliação estritamente clínica, em geral torna-se difícil identificar as situações de possível doença bacteriana grave. Assim, nesta faixa etária, todo o paciente deve ser abordado, até prova em contrário, como tendo uma doença bacteriana grave e sujeito a avaliação diagnóstica completa, sendo obrigatório proceder ao internamento hospitalar e à realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo;
  • Doseamento da proteína C reactiva (PCR) e da procalcitonina (PCT);
  • Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto ou alterações na auscultação pulmonar;
  • Punção lombar, sempre que o estado clínico 
da criança o permita, para análise citoquímica, coloração Gram e exame cultural do líquido céfalo-raquidiano (LCR); pesquisa específica de diversos vírus por técnica molecular/PCR se suspeita de meningite vírica e/ou em função da clínica;
  • ALT, AST, GGT, PT, aPTT, LDH (eventualmente em função da clínica);
  • Coproculturas, se houver história de diarreia, ou de sangue ou muco nas fezes. 


Em regra, devido à elevada incidência de doença bacteriana grave e a sua elevada taxa de mortalidade se não for tratada, após a realização destes exames deve ser instituída terapêutica antibiótica empírica. Habitualmente, o tratamento inclui ampicilina e gentamicina e/ou uma cefalosporina de terceira geração (designadamente cefotaxima, sobretudo se houver sinais de doença grave ou evidência de meningite, tendo como base o resultado do exame citoquímico do LCR.

Embora o tratamento empírico com aciclovir não seja usado por rotina, a sua utilização deve ser considerada na presença de factores de risco de infecção por vírus Herpes simplex (história materna de infecção por vírus Herpes simplex, ruptura prolongada de membranas, presença de vesículas mucocutâneas, orais ou oculares, sinais neurológicos focais, falência da antibioticoterapia passadas 48 horas, elevação dos valores das enzimas hepáticas (indicadores precoce de infecção disseminada por VHS em recém-nascidos com < 2 semanas de vida) ou pleiocitose no LCR

II. Crianças com idades entre 29 dias e 3 meses

Apesar de nesta faixa etária já ser mais habitual haver sinais indiciando foco localizado de infecção, ainda é muito difícil prever se a criança tem uma doença potencialmente grave. Nesta idade, uma infecção vírica não diminui a probabilidade de doença bacteriana grave concomitante.

Porém, com a introdução de novas vacinas, nomeadamente com a vacina anti-pneumocócica conjugada, verificou-se uma diminuição da prevalência de bacteriémia oculta, tornando-se assim controversa a necessidade de hospitalização e terapêutica antibiótica em todos os lactentes nesta faixa etária. Os critérios de observação clínica mais difundidos e que não utilizam a punção lombar para estratificação do risco são os critérios de Rochester (Quadro 1). Estes critérios tentam identificar as crianças com baixo risco de infecção bacteriana, o que permite uma abordagem menos agressiva nas crianças que cumprem todos os critérios. Para uma infecção bacteriana grave, estes critérios apresentam um valor preditivo negativo de 98,9% e, para o risco de bacteriémia, um valor preditivo negativo de 99,5%.

Assim, uma vez realizados a anamnese e o exame objectivo, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo
  •  Doseamento de PCR e PCT;
  •  Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucocitos > 20.000/mmc;
  • Punção lombar – na criança com aspecto geral séptico, não cumprimento dos critérios de Rochester ou antes de iniciar antibioticoterapia.

 

Nota

    • PCR com valor limitado para identificar lactente febril com risco de bacteriémia oculta;
    • PCT com valor > 0,5 ng/mL aumenta a probabilidade de infecção bacteriana potencialmente grave.

Assim, numa criança cumprindo todos os critérios de baixo risco ou com o diagnóstico estabelecido de pielonefrite pode protelar-se a realização da punção lombar e o início de antibioticoterapia, vigiando a evolução do quadro febril (sendo a criança obrigatoriamente reavaliada dentro de 24 horas, ou antes, se houver agravamento clínico). Contudo, é essencial avaliar previamente se os pais e/ou familiares estão capacitados para identificar eventual agravamento do estado clínico da criança, e se existe fácil acesso à instituição de saúde.

Se a investigação levada a cabo não permitir a identificação do foco e se a criança não cumprir todos os critérios de baixo risco, a mesma deverá ser submetida a punção lombar e hospitalizada para antibioticoterapia empírica, por existir, nestas circunstâncias, risco elevado de bacteriémia oculta. O esquema de tratamento é ampicilina + cefotaxima. Deve considerar-se a administração de aciclovir caso o lactente tenha estado em contacto com algum indivíduo com infecção herpética.

A actuação nos casos de lactente vigiado em ambulatório sem antibioticoterapia instituída previamente, e cuja hemocultura é positiva, é a seguinte: – deve repetir-se a avaliação analítica; – deve proceder-se à hospitalização para antibioticoterapia endovenosa de acordo com o antibiograma.

QUADRO 1 – Critérios de Rochester

Parâmetros a avaliar
    • Bom estado geral
    • Previamente saudável (idade gestacional > 37 semanas; sem tratamento antibiótico perinatal; sem tratamento para hiperbilirrubinémia neonatal de etiologia desconhecida, sem hospitalização ou antibioticoterapia prévia, sem doença crónica conhecida)
    • Sem sinais de foco infeccioso (pele, tecido subcutâneo, osso, articulações ou ouvidos)
    • Valores laboratoriais
      • Leucócitos 5.000-15.000/mmc; relação do número absoluto neutrófilos imatutos/número absoluto de neutrófilos totais ou NANI/NANT < 0,2
      • Bastonetes no sangue periférico < 1.500/mmc
      • Sedimento urinário: < 10 leucócitos/campo
      • Se diarreia: < 5 leucócitos fecais/campo

 

III. Crianças com idades entre > 3 e 36 meses

Neste período etário será possível identificar um número significante de infecções através da anamnese e do exame objectivo; no entanto, existe ainda a possibilidade de determinados casos corresponderem a infecções ocultas: entre estas, como mais frequentes e potencialmente mais graves, citam-se a infecção urinária, a pneumonia e a bacteriémia oculta.

Neste grupo de doentes, a abordagem divide-se consoante a idade e estado de imunização:

  • Crianças com idade > 6 meses e estado vacinal actualizado (três doses de vacina anti-Hib e, pelo menos, duas doses de vacina antipneumocócica): o risco de bacteriémia é inferior a 1% sendo, por isso, recomendadas a avaliação analítica nem a antibioticoterapia empírica. Porém, porque o risco de infecção do tracto urinário se mantém, nestas crianças estão indicados: – Exame sumário da urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não circuncidados com menos de 12 meses ou naqueles submetidos a circuncisão com idade inferior a 6 meses).
  • Crianças com estado vacinal desactualizado ou com idade < 6 meses: o risco de bacteriémia oculta pode ser superior a 5%, embora actualmente (após introdução da vacina anti-pneumocócica) este valor possa ser menor devido ao efeito da imunização de grupo. Nestes casos recomenda-se a realização dos seguintes exames:
    • Hemograma completo;
    • PCR e PCT;
    • Hemocultura;
    • Exame sumário de urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não com idade < 12 meses, ou naqueles submetidos a circuncisão com idade < 6 meses);
    • Radiografia de tórax se leucócitos > 20.000/mmc.

Perante o diagnóstico de infecção urinária ou pneumonia, a decisão de proceder a tratamento antibiótico em regime de internamento ou em regime ambulatório dependerá de vários factores: idade da criança, estado geral, tolerância da via oral, e capacidade de os pais ou representantes assegurarem o cumprimento terapêutico.

Na hipótese de bacteriémia oculta (ausência de foco e de aspecto séptico e valor de leucócitos > 15.000/mmc, é fortemente recomendado iniciar antibioticoterapia com ceftriaxona intramuscular e reavaliar após 24 horas, uma vez que vários estudos têm demonstrado que a utilização de antibioticoterapia empírica, nas crianças não imunizadas e no contexto de febre sem foco, poderá evitar a progressão da bacteriémia para a focalização, especialmente meningite.

O resultado da hemocultura, que virá estabelecer o diagnóstico, poderá obrigar à alteração do antimicrobiano escolhido antes empiricamente, de acordo com o antibiograma relativo ao agente isolado.

Outra situação possível é a obtenção de resultado positivo da hemocultura numa criança relativamente à qual se optou inicialmente por abstenção de antibioticoterapia. A atitude neste caso é a seguinte:

  • Hemocultura positiva para S. pneumoniae: no caso de febre persistente, deve proceder-se a avaliação analítica, incluindo punção lombar. Se se verificar meningite a criança deverá ser hospitalizada e medicada com cefalosporina de 3ª geração (associada a vancomicina até confirmação da inexistência de resistência elevada à penicilina e cefalosporinas de 3ª geração). Se o LCR for estéril, pode proceder-se a antibioticoterapia oral (amoxicilina 90 mg/kg/dia) durante 7 a 10 dias em ambulatório; em caso de apirexia, há indicação para antibioticoterapia oral em ambulatório (amoxicilina 90 mg/kg/dia);
  • Hemocultura positiva para N. meningitidis ou H. influenzae tipo B: a criança deve ser hospitalizada, realizando-se avaliação analítica, incluindo punção lombar e iniciando-se antibioticoterapia endovenosa com ceftriaxona.

O tratamento das situações em que tenham sido isoladas outras bactérias, como Salmonella spp, Streptococcus – hemolítico grupo A, Staphylococcus spp, Moraxella spp e Haemophilus influenzae não-B, está menos bem definido; contudo, poderá adoptar-se o procedimento referido a propósito dos casos com isolamento de Streptococcus pneumoniae, valorizando sempre o estado clínico. Apesar de os resultados das hemoculturas serem conhecidos regra geral 24-48 horas após a colheita, é de salientar que muitas vezes o resultado, quando positivo, poderá não ter relação com o agente causal, situação que corresponde a contaminação da colheita.

Tratamento antipirético

Embora não altere a evolução da doença infecciosa de base, justifica-se o tratamento sintomático da febre alta (temperatura rectal > 38ºC), sobretudo se associada a mal-estar evidenciado por sintomatologia como gemido, prostração, hiporreactividade, etc.. Por outro lado, o abaixamento da temperatura:

  1. reduz as necessidades metabólicas;
  2. permite que a criança esteja mais desperta e com maior propensão para comer e beber líquidos – cuja ingestão deve ser estimulada – prevenindo a desidratação;
  3. diminui a probabilidade de convulsões em crianças de risco neurológico.

Com a criança despida, procede-se à passagem pelo corpo de esponja embebida em água tépida (não álcool) a temperatura < 3-4ºC relativamente à temperatura corporal, ao mesmo tempo que se administra como primeira prioridade paracetamol (oral ou rectal) na dose de 10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 80 mg/kg/dia.

Como segunda prioridade utiliza-se o ibuprofeno (oral) na dose de 5-10 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 20 mg/kg/dia. Salienta-se que o decréscimo da temperatura corporal após tratamento antipirético não permite distinguir doença bacteriana grave de doença vírica menos grave.

O AAS não é recomendado na idade pediátrica como antipirético pela possibilidade de desencadear síndroma de Reye.

QUADRO 2 – Síntese da abordagem

FEBRE SEM FOCO DE INFECÇÃO LOCALIZÁVEL
Idade*Abordagem diagnóstica e terapêutica
< 1 mês
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar; RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Hospitalização
    • Antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou ampicilina 200 mg/kg/dia + cefotaxima 200 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8/8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
1-3 meses
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura; Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucócitos > 20 000/mmc; Punção lombar – considerada na criança com aspecto geral séptico ou não cumprimento de factores de baixo risco para infecção bacteriana potencialmente grave
    • Avaliação clínica e/ou analítica – critérios Rochester
    • Baixo risco – Vigilância em internamento ou em ambulatório (reavaliação após 24 horas de evolução)
    • Alto risco – Vigilância em internamento e início de antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou cefotaxime 50 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8-8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
> 3 meses a
36 meses
Criança sem aspecto séptico, com idade > 6 meses e com vacinas actualizadas (incluido 2 doses vacina anti-pneumocócica)
    • Exame sumário de urina
    • Vigilância em ambulatório apenas com tratamento sintomático. Reavaliar às 24h
 Crianças sem estado vacinal actualizado e com idade inferior a 6 meses
    • Exame sumário de urina
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, hemocultura.
    • Considerar antibioticoterapia se leucócitos ≥ 15.000/mmc ou vigilância em internamento sem antibioticoterapia
 Crianças com aspecto séptico
    • Abordagem ABCDE
    • Tratar o choque, se indicado
    • Avaliação analítica: hemograma, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar (excepto se instabilidade clínica, alteração do estado de consciência ou sinais neurológicos focais); RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Internamento
* Neste quadro, para fins práticos, procedeu-se a um arredondamento quanto à divisão em idades inicialmente estabelecida  

Conclusão

O quadro clínico designado por febre sem foco (FSF) de infecção localizável constitui uma realidade cada vez mais frequente na prática clínica pediátrica. Apesar de se ter registado uma diminuição do número absoluto de casos de bacteriémias ocultas, torna-se premente conseguir identificar e tratar precocemente tais crianças.

Para cumprir tal objectivo, ao longo do tempo têm sido elaboradas inúmeras grelhas de critérios para estratificar, caso a caso, o risco de doença bacteriana potencialmente grave. Tais critérios, contudo, vieram a revelar-se insuficientes pela introdução de novas vacinas, contribuindo para uma diminuição do risco de doença bacteriana grave no contexto do quadro de FSF.

Em suma, a decisão de investigar e, posteriormente, de tratar ou não, é do médico que observa cada criança, sabendo-se à partida que não há sinal, sintoma ou resultado laboratorial que seja por si só diagnóstico. Há, pois, necessidade de actuar com bom senso, conjugando várias circunstâncias presentes. Da acção combinada dos profissionais de saúde e dos familiares, será possível reduzir-se ao mínimo as agressões iatrogénicas às crianças.

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