ENTEROCOLITE NECROSANTE

Definição

A enterocolite necrosante (ECN) é uma situação clínica gastrintestinal de repercussão sistémica e gravidade progressiva, afectando sobretudo o recém-nascido pré-termo; é caracterizada fundamentalmente por vários graus de necrose da mucosa ou transmural do intestino, em áreas de extensão variável, no íleo terminal (mais frequentemente), cólon ascendente e porção proximal do cólon transverso.

De etiopatogénese não totalmente esclarecida, admite-se a comparticipação de múltiplos factores culminando num processo agudo de isquémia-reperfusão associado a uma resposta inflamatória amplificada em concomitância com processo infeccioso decorrente da invasão de microrganismos.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Esta afecção – que constitui a emergência cirúrgica mais frequente no recém-nascido – atinge com maior frequência os recém-nascidos pré-termo (com menos de 37 semanas completas contadas a partir do 1º dia da última menstruação), principalmente os de muito baixo peso (inferior a 1.500 gramas). A ECN surge em 5 a 15% dos recém-nascidos pré-termo hospitalizados em UCIN; a incidência é máxima entre a primeira e segunda semana. Nos Estados Unidos, a incidência oscila entre 1 a 3 casos por 1000 nados-vivos, com maior número de casos entre a primeira e segunda semana de vida, sem predomínio de sexo; considerando a globalidade dos casos, cerca de 7% corresponde a RN de termo.

Em Portugal, no âmbito da Secção de Neonatologia da SPP foi realizado um estudo multicêntrico pelo Grupo de Registo Nacional dos Recém-Nascidos de Muito Baixo Peso (RNMBP ou de peso < 1.500 g) no quinquénio 1996-2000, englobando unidades neonatais de 35 hospitais nacionais. Estudada a série de 4355 RN com tais características ponderais, o diagnóstico de ECN ocorreu em 437 (~10%). A letalidade nos RN com ECN perfurada foi de 64,3% quando não submetidos a cirurgia, e de 29,5% quando operados.

Na UCIN (médico-cirúrgica) do Hospital de Dona Estefânia (Lisboa) foram assistidos 114 RN com o diagnóstico de ECN no período de 22 anos (1990 a 2011). Globalmente a taxa de mortalidade foi de 27,2%, a que corresponde letalidade de 14,9% e taxa de sequelas (estenose intestinal e síndroma de intestino curto) de 45,3%. De referir que nesta série de RN com ECN, 41% dos doentes tinham peso inferior a 1.000 g.

Etiopatogénese

Apesar de ainda existirem muitos enigmas quanto à patogénese da ECN, admite-se que na generalidade dos casos o factor major envolvido é a prematuridade, dado que a incidência e gravidade desta patologia é inversamente proporcional à idade gestacional.

No RN pré-termo (RNPT), e na base da imaturidade intestinal, estão determinadas características tais como maior permeabilidade da barreira resultante da débil união entre enterócitos, menor secreção de muco e de IgA, motilidade diminuída e maior vulnerabilidade a determinadas agressões. Com efeito, verificou-se que determinadas agressões que alteram o tono do leito microvascular intestinal (hipóxico-isquémicas, infecciosas, relacionadas com a introdução de alimentação entérica, etc.) desencadeiam uma série de reacções inflamatórias em cascata, desproporcionais e excessivas, associadas a invasão da respectiva mucosa por agentes microbianos com consequente proliferação. Este processo, que culmina em necrose de coagulação das áreas afectadas, tipifica a patogénese “clássica” (90% dos casos), afectando essencialmente a ECN nos RN de muito baixo peso (RNMBP).

Por outro lado, determinados estudos sobre microbiota intestinal permitiram identificar, em cerca de 10% dos casos, outro grupo de ECN, afectando RN de termo (RNT) que tipicamente evidenciam quadro clínico iniciado em fase mais precoce e relacionado predominantemente com patologia ao nível do cólon. Os factores de risco associados a este grupo de RNT incluem designadamentre: restrição do crescimento fetal, asfixia perinatal, cardiopatia congénita, policitémia, gastrosquise, exsanguinotransfusão, transfusão de hemoderivados, sépsis, cateterismo umbilical, ruptura prematura de membranas, corioamnionite e diabetes gestacional.

Seguidamente são abordados os principais factores etiopatogénicos, interligados, como que num círculo vicioso. A separação por alíneas foi feita por razões didácticas

Circulação intestinal e isquémia

Admite-se que a hipóxia-isquémia intrauterina promove a redistribuição do débito cardíaco em favor do coração e do sistema nervoso central, privando o intestino imaturo de oxigenação adequada. Efectivamente, pela avaliação do fluxo sanguíneo através do método doppler, demonstrou-se redução do fluxo sanguíneo na artéria mesentérica superior e no tronco celíaco nas situações de restrição de crescimento intrauterino. Esta alteração mantém-se após o nascimento durante a primeira semana de vida, o que sugere, segundo alguns investigadores, que a maior resistência vascular mesentérica já venha programada desde a vida intrauterina. Noutros estudos comprovou-se que a reticulocitose no recém-nascido pré-termo com restrição de crescimento intrauterino constitui um marcador de maior risco para o desenvolvimento de ECN.

Relativamente às características da circulação neonatal cabe referir que existe um equilíbrio muito lábil entre vasodilatação e vasoconstrição, fenómenos mediados respectivamente pelo óxido nítrico (NO) e pela endotelina-1. O estado neonatal basal sob o ponto de vista fisiológico é caracterizado pelo predomínio do NO, gerando-se baixa resistência vascular sistémica. Os estados patológicos causam disfunção endotelial, o que conduz a activação da endotelina-1 e a vasoconstrição, isquémia intestinal e lesão celular. Este mecanismo é compatível com os achados histológicos de necrose de coagulação, típicos da ECN.

Por outro lado, embora o NO desempenhe papel importante na homeostase do tracto gastrintestinal, em situações associadas a inflamação é produzido em elevadas concentrações, o que tem efeito citotóxico directo nos enterócitos.

Substrato

O crescimento e o desenvolvimento do tubo digestivo, assim como a sua capacidade em manter as funções de digestão e absorção, dependem do suprimento adequado em vários nutrientes. A arginina, aminoácido que pode ser sintetizado pelo enterócito, constitui a principal fonte de azoto para a produção local de óxido nítrico. Por sua vez, o óxido nítrico funcionando como mediador-indutor do relaxamento da musculatura lisa vascular, contribui para regular o tono basal arteriolar e, por consequência, o débito sanguíneo ao nível da mucosa intestinal.

A propósito, é importante mencionar estudos experimentais provocando hipóxia-isquémia, ou administrando toxinas ou factor de activação plaquetário; os mesmos demonstraram que a inibição da síntese de óxido nítrico se associou a maior intensidade da lesão tecidual. Por outro lado, comprovou-se que o suprimento exógeno de óxido nítrico contribuiu para atenuar tal efeito. Noutros estudos experimentais demonstrou-se também que a suplementação em arginina (por via oral ou por via endovenosa contínua) atenuava a lesão intestinal na sequência de eventos hipóxico-isquémicos seguidos de reoxigenação.

Por outro lado, há que atender ao facto de a imaturidade intestinal não permitir a absorção e digestão completas dos hidratos de carbono e gorduras do leite. Como consequência, os compostos não digeridos servem como substrato para a proliferação de bactérias entéricas, do que resulta acumulação de hidrogénio, ácidos orgânicos, caseína não digerida e ácidos gordos de cadeia longa no lume intestinal. Admite-se que exposição do epitélio intestinal a estas substâncias origine um processo de inflamação intestinal, conduzindo a lesão.

Imaturidade intestinal e alimentação entérica

Embora se admita classicamente que a colonização do tracto intestinal por germes microbianos constitua um pré-requisito para o desenvolvimento de ECN, a doença pode surgir em crianças sem terem sido alimentadas previamente (cerca de 5-7% dos casos).

O Quadro 1 resume algumas das características que permitem definir a imaturidade gastrintestinal (cuja expressão máxima se verifica no recém-nascido pré-termo) e as consequências que daí resultam.

QUADRO 1 – Imaturidade intestinal e consequências.

Défice de secreção gástrica e hipocloridria
Colonização bacteriana aberrante do tracto gastrintestinal superior; digestão proteica incompleta
Défice de enzimas proteolíticas
Défice de destruição das toxinas bacterianas; digestão proteica incompleta
Motilidade intestinal diminuída
Estase e hipercrescimento bacteriano
Défice de secreção de IgA
Alteração do mecanismo de defesa contra antigénios bacterianos
Redução do número de linfócitos T intestinais
Alteração do mecanismo de preservação da integridade do epitélio intestinal por incapacidade de destruição das células epiteliais infectadas
Hiperpermeabilidade da mucosa intestinal a proteínas, hidratos de carbono e bactérias
Acesso facilitado de bactérias e toxinas aos tecidos intestinais

 

Cabe referir que a alimentação com leite materno fresco constitui uma circunstância susceptível de proteger contra lesões do intestino, tendo em conta a multiplicidade de factores imunoprotectores que o referido leite veicula. De facto, diversos estudos têm demonstrado menor incidência de ECN em crianças alimentadas com leite materno. Estudos em recém-nascidos pré-termo também levaram à conclusão de que a modificação do leite não materno através, designadamente, da acidificação (pH entre 2,5 e 5,5) diminui a taxa de colonização bacteriana gástrica.

Microbiota e toxinas bacterianas

Relativamente a estes factores, importa realçar alguns aspectos:

  1. As bactérias intestinais comensais, de acção benéfica, que integram o microbioma intestinal, (Bifidobacterium, Lactobacillus e Bacteroides) mantêm a homeostase intestinal, a função imune e facilitam a digestão, ao mesmo tempo que protegem o intestino contra a inflamação e diversas agressões, já referidas.
    Nesta perspectiva, importa citar algumas situações que influenciam, atrasam ou comprometem tal colonização benéfica (RN pré-termo, alimentação com fórmula, antibioticoterapia empírica, parto por cesariana, entre outras) e referir que a par da taxa diminuída de colonização dos comensais, surge aumento da prevalência de Clostridium perfringens, Proteobacteria, Firmicutes e Enterobacter. Portanto, situação de disbiose.
    Ora, em diversos estudos, verificou-se que tal alteração no microbioma precede o surgimento da ECN.
    Quanto ao papel das enterobactérias Gram-negativas (E. Coli, Klebsiella, Proteus, etc.) admite-se que actuem:
    • Através de endotoxina com característica de fraca citotoxicidade directa, mas causando lesão tecidual difusa activando a cascata inflamatória; e, indirectamente,
    • Através da disfunção dum receptor para os Gram-negativos; tal receptor, reconhecendo o padrão molecular associado a tais agentes microbianos, como que “barra, faz barragem ou “trava”, como nas “portagens”, a invasão daqueles Gram-negativos. Daí a designação de “Toll-Like Receptor 4” ou TLR-4. Por consequência, a disfunção deste contribui para resposta inflamatória excessiva e lesiva para o intestino.* Pelo contrário, a microbiota comensal (Bifidobacterium, Lactobacillus e Bacteroides) tem efeito contrário, diminuindo a inflamação.

*O Toll-like receptor 4 (Receptor TLR-4) é uma proteína codificada pelo gene TLR4. Reconhecendo determinados compostos como por exemplo o lipopolissacárido (LPS), um componente presente em muitas bactérias Gram-negativas, é responsável pela activação do sistema imune inato.

  1. Os germes bacterianos mais frequentemente implicados como causa específica de ECN são algumas espécies de Clostridia (difficile, perfringens), as quais infectam com especial preferência o tecido isquémico, sendo relevante o papel de toxinas que produzem; de referir, no entanto, que as Clostridia fazem parte da microbiota do cólon do recém-nascido. A este propósito importa salientar que os RN pré-termo evidenciam uma resposta inflamatória excessiva aos micróbios luminais o que contribui para fragilizar a barreira protectora do intestino.
  2. Staphylococcus coagulase negativo e Staphylococcus aureus produzindo toxinas citolíticas (delta toxinas provocando lesão celular intestinal) têm sido considerados nalguns estudos importantes agentes patogénicos.
  3. Os germes microbianos isolados a partir do líquido peritoneal (bactérias e vírus, fungos) dos doentes com ECN são representativos, por um lado, da microbiota do cólon e, por outro, da transferência dos mesmos a partir do intestino lesado.
  4. Relativamente aos agentes víricos, cabe referir Coxsackie B2, Coronavirus e Rotavirus, descritos como desencadeadores de quadro de ECN.

Em suma, não se poderá responsabilizar determinado germe especificamente pelo desenvolvimento de ECN, embora se tenha demonstrado papel importante dalguns deles em circunstâncias de surtos epidémicos.

Mediadores inflamatórios

Uma referência sucinta ao papel dos mediadores inflamatórios locais cuja produção pode ser desencadeada pela colonização aberrante e pela inadequada neutralização de toxinas atrás referidas. Tal atipia do padrão de colonização, associada a imaturidade do epitélio intestinal, origina uma resposta inflamatória bacteriana com produção excessiva de citocinas pró-inflamatórias, sendo que parte desta resposta se relaciona com o sistema imune inato.

A resposta é iniciada com produtos moleculares derivados da parede celular bacteriana actuando sobre receptores presentes no epitélio intestinal iniciando-se a activação da cascata inflamatória na qual tomam parte mediadores inflamatórios como o PAF, TNF-alfa, interleucinas 1, 6, 8, 12, 18, NO, LPS, e radicais livres de oxigénio. Em doentes com ECN os níveis de citocinas estão elevados, correlacionando-se com a gravidade da doença.

O factor de activação das plaquetas (PAF ou platelet-activating factor, regulado pela enzima com efeito de degradação acetil-hidrolase PAF-AH), um fosfolípido, é produzido por células endoteliais, neutrófilos, macrófagos, próprias plaquetas, como resposta a endotoxinas e hipóxia.

O factor de necrose tumoral-alfa (TNF-alfa ou tumor necrosis factor-alpha) é uma citocina libertada por macrófagos sobre os quais actuam endotoxinas.

Ao nível do intestino, a produção de mediadores inflamatórios activando os neutrófilos, originando vasoconstrição, lesão dos vasos capilares intestinais e hipotensão, promove a libertação de radicais livres com consequente lesão intestinal que pode culminar em necrose. De acordo com diversos estudos, o PAF causa lesão intestinal por via dos radicais livres de oxigénio. (ver atrás – o papel dos Toll-like receptors-4: TLR-4)

Outro importante mediador é o chamado lipopolissacárido (LPS), a endotoxina componente das bactérias Gram-negativas, abundantes no tracto gastrintestinal. O mesmo altera a função da barreira gastrintestinal, promovendo a libertação doutros mediadores inflamatórios como NO, interferão – gama e cicloxigenase, com efeitos tóxicos directos sobre os enterócitos.

A fosfatase alcalina intestinal, enzima produzida pelos enterócitos destoxifica o LPS, tendo sido concluído em estudos diversos que a probabilidade de ECN é maior nos doentes em que a fosfatase alcalina (FA) intestinal é deficiente. Daí a especulação quanto ao eventual papel preventivo e terapêutico da mesma.

Lesão por isquémia-reperfusão e acção dos radicais livres de oxigénio

A isquémia seguida de reperfusão do intestino origina aumento da permeabilidade da membrana das células intestinais (atrás referida) e incremento de produção de radicais livres de oxigénio com consequente lesão da referida membrana através de processo de peroxidação lipídica.

Embora o recém-nascido evidencie capacidade limitada para a produção de radicais livres de oxigénio (através da acção das enzimas xantina-oxidase e NADPH-oxidase dos neutrófilos), a capacidade de destoxificação daqueles (através das enzimas catalase, superóxido – dismutase e glutationa – peroxidase) é ainda mais limitada, o que aumenta a probabilidade de lesão do intestino.

A lesão celular, ocorrendo também ao nível do endotélio vascular, pode resultar ainda em perda da integridade deste, agravando os fenómenos de isquémia nos territórios de circulação mesentérica de tipo terminal, como a observada na região ileal distal e da válvula íleo-cecal, a qual é irrigada pela artéria ileocólica, ramo terminal da artéria cólica direita.

Fármacos e substâncias tóxicas

Os fármacos e substâncias tóxicas mais frequentemente associados ao aparecimento de ECN (xantinas e metilxantinas, vitamina E, indometacina, etc.) comportam, de facto, um risco acrescido pela alteração do lábil equilíbrio hemodinâmico e vasomotor em recém-nascidos evidenciando grau importante de imaturidade, o que favorece o desencadeamento de fenómenos vasoclusivos.

Factor de crescimento epidérmico

Demonstrou-se que os factores de crescimento desempenham importante papel, não só no desenvolvimento do tracto gatrintestinal, como na resposta às agressões.

O chamado factor de crescimento epidérmico (FCE) é um péptido que pertence a uma família que inclui outros péptidos, responsável por um conjunto de respostas biológicas no tubo digestivo dizendo respeito, essencialmente, à regulação da replicação celular, e ao movimento e à sobrevivênvia das células.

Esta família de péptidos tem afinidade com receptores específicos (receptores do FCE) distribuídos em vários territórios do organismo e ao longo do tubo digestivo do feto e RN; mais concretamente, tais receptores localizam-se, respectivamente, no compartimento basolateral das células da epiderme e na membrana apical do epitélio viloso intestinal.

Estudos recentes relacionam tal FCE com a ECN verificando, designadamente, excreção urinária de FCE em RN com quadro de ECN, especulando-se que tal resulta de maior absorção de FCE no intestino lesado. Outros estudos, apontando a associação entre níveis baixos de FCE na saliva e no soro, e o aparecimento de ECN, levantam a hipótese de a administração daquele ter importância na prevenção e tratamento.

Como consequência anatomopatológica das diversas noxas descritas, o exame macroscópico das ansas revela que as mesmas estão distendidas e com paredes friáveis; a mucosa evidencia áreas hemorrágicas ulceradas e necrosadas, podendo estar cobertas por exsudado seroso. Faz parte do quadro a verificação de gás intramural (de localização subserosa ou submucosa) denominada pneumatose). A Figura 1 (achado intra-operatório) é elucidativa: imagens esféricas simulando “pequenos balões” ao nível da parede intestinal, os quais têm tradução radiológica. (ver adiante)

Pode verificar-se igualmente líquido peritoneal, claro, turvo ou hemorrágico, aspectos que variam em função do grau de inflamação.

O exame histológico da parede intestinal pode evidenciar aspectos variáveis: edema, áreas hemorrágicas e de necrose de coagulação, úlceras, áreas de trombose, e sinais de reparação tecidual. As áreas lesadas estão cobertas por células inflamatórias, fibrina, e epitélio necrótico que, conglomerados em camada, formam uma pseudomembrana. Nalgumas situações pode verificar-se gás no sistema porta. Como característica relevante, refere-se a concomitância de áreas de inflamação, necrose e reparação teciduais, o que testemunha as características evolutivas desta entidade clínica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Como factores predisponentes mais típicos nos RN pré-termo são referidos os seguintes: infecção materna, ruptura de membranas > 24 horas antes do parto, ductus arteriosus permeável e sintomático, asfixia perinatal, acidose, choque, alimentação entérica com fórmula, administração de ranitidina, etc..

Nos RN de termo e/ou de peso superior a 2.000 gramas apontam-se os seguintes factores predisponentes: asfixia perinatal, policitémia/ hiperviscosidade, problema respiratório, hipoglicémia, antecedentes de intervenção cirúrgica abdominal para correcção de defeitos da parede abdominal ou de lesões do tubo digestivo, cardiopatia congénita de baixo débito sanguíneo no território intestinal, etc..

O quadro clínico pode variar entre uma forma benigna, subclínica, com recuperação total sem sequelas, até uma forma grave, com sinais de sépsis, choque, peritonite generalizada, coagulopatia e falência multiorgânica.

Os sinais clínicos mais característicos incluem: distensão abdominal, dificuldade respiratória, resíduo gástrico, vómito bilioso, diarreia, rectorragia, dificuldade respiratória, labilidade hemodinâmica e térmica, e alterações inflamatórias da parede abdominal com eritema e rede venosa visível, indicativas de peritonite e de necrose intestinal subjacente.

A palpação abdominal pode evidenciar hiperestesia localizada com empastamento subjacente secundário a sofrimento de ansa abdominal ou massa abdominal, relacionável com aglomerado de ansas imóveis, o qual pode indiciar perfuração coberta ou abcesso intraperitoneal. A distensão extrema e a presença de sinais peritoneais generalizados são compatíveis com necrose transmural e perfuração de ansa, peritonite grave e pneumoperitoneu.

O diagnóstico radiológico de ECN está bem determinado, salientando-se os principais sinais: distensão de ansas; presença de gás intramural (pneumatose intestinal); ascite; pneumoperitoneu; presença de gás na circulação porta; ansa intestinal edematosa e fixa; diminuição de gás intrabdominal com presença de ansas assimétricas e distensão cólica. (Figuras 2 a 4)

Torna-se óbvio concluir que a vigilância imagiológica deve ser seriada para comparação evolutiva dos padrões anómalos identificados.

Como manifestações laboratoriais frequentemente associadas enumeram-se as mais importantes: neutropénia ou neutrofilia com aparecimento de formas imaturas no sangue periférico, trombocitopénia, perfil de coagulação anómalo, hiponatrémia de aparecimento súbito, acidose metabólica, hipoproteinémia, hiperglicémia, etc..

Sob o ponto de vista da evolução clínica e gravidade são descritos diversos estádios definidos por Bell (Critérios evolutivos de Bell) cuja identificação, valorizando de modo cumulativo sinais sistémicos, intestinais e imagiológicos, tem implicações práticas importantes quanto às decisões terapêuticas e ao prognóstico. (Quadro 2)

FIGURA 1. Aspecto macroscópico de pneumatose (gás intramural); distensão bolhosa. (NIHDE)

FIGURA 2. ECN – Imagem radiológica de pneumoperitoneu.

FIGURA 3. ECN – Imagem radiológica abdominal simples evidenciando distensão abdominal, edema e espessamento da parede das ansas e sinais de pneumatose (gás intramural); presença de gás na área hepática.

FUGURA 4. ECN – Imagem de radiografia abdominal simples com sinais de pneumatose e panecrose.

QUADRO 2 – Estádios Evolutivos de Bell na ECN.

I A – Suspeita de ECN
Instabilidade térmica, apneia, bradicardia, letargia
Resíduo gástrico aumentado, distensão abdominal ligeira, sangue oculto (+) nas fezes
Sinais radiológicos: distensão de ansas, íleo ligeiro

I B – Suspeita de ECN
Idem +
Rectorragia

II A – ECN definida (forma ligeira)
Idem +
Auscultação abdominal: ausência de ruídos (“silêncio”)
Hiperestesia abdominal
Sinais radiológicos: dilatação de ansas, íleo, pneumatose intestinal (ar intramural)

II B – ECN definida (forma moderada)
Idem +
Acidose metabólica ligeira, trombocitopénia ligeira
Celulite abdominal ou massa no quadrante inferior direito
Sinais imagiológicos de gás na veia porta (radiografia, ecografia), ascite

III A – ECN avançada (forma grave)
Manifestações clínicas de II B+ hipotensão, bradicardia, apneia grave, acidose mista, neutropénia e CID
Sinais intestinais: de II B + peritonite, distensão e defesa abdominais
Sinais imagiológicos: os de II B + ascite

III B – ECN avançada (forma grave com perfuração intestinal)
Manifestações clínicas de III A
Sinais intestinais de III A
Sinais imagiológicos de III A + pneumoperitoneu

Para avaliação do grau de oxigenação ao nível dos órgãos (designadamente SNC, intestino, e outros), com valor prognóstico, presentemente (2020), alguns centros dispõem de tecnologia aplicando espectroscopia próxima dos infra-vermelhos.

Prevenção

Ao delinear estratégias de prevenção torna-se fundamental entrar em conta com os mecanismos potencialmente envolvidos na etiopatogénese.

Ao longo do tempo têm sido preconizadas diversas estratégias, algumas das quais têm evoluído em função dos resultados da investigação científica, designadamente de meta-análises de uma multiplicidade de estudos.

Seguidamente são descritas diversas medidas, as quais foram estratificadas em função de critérios de segurança e eficácia, com base em estudos da Cochrane Library.

1 – Leite materno

O leite humano contém múltiplos factores tais como imunoglobulinas, interleucina-10, FCE, acetil-hidrolase, entre outros; por outro lado, o factor de activação plaquetária (PAF) que comparticipa a etiopatogénese da ECN evidencia concentrações elevadas em casos de ECN, enquanto os níveis da enzima que promove a sua hidrólise (acetil-hidrolase) estão diminuídos.

Ora, o leite humano contém níveis elevados de FCE e de acetil-hidrolase, factores que são protectores em relação à ECN. Daí a incidência cerca de 6 a 10 vezes menor de ECN em RN pré-termo alimentados com leite materno, em comparação com a verificada nos alimentados com fórmula, o que tem sido provado em estudos de meta-análise.

Trata-se duma medida segura, de eficácia comprovada. Deve ser iniciada nos primeiros 2-5 dias (a pausa alimentar > 5-7 dias, inicialmente recomendada é actualmente desaconselhada), recomendando-se nos primeiros dias alimentação entérica trófica com leite materno, não nutricional, com incrementos diários modestos e prudentes ~15 mL/kg/dia, em função da avaliação clínica caso a caso. (ver Parte sobre Neonatologia)

2 – Corticoterapia pré-natal

Uma vez que o nascimento antes do termo da gravidez constitui o factor de risco mais relevante de ECN, a possibilidade de indução medicamentosa da maturidade intestinal com a utilização de corticosteróide pré-natal tem sido estudada. A este propósito cabe referir que os resultados de estudos aleatórios multicêntricos não têm sido concordantes: nalguns demonstrou-se diminuição de incidência de ECN, enquanto noutros, precisamente o contrário.

Apesar destes achados aparentemente contraditórios, a utilização de corticóides pré-natais (betametasona) está hoje consagrada como uma importante medida para a redução da mortalidade e morbilidade relacionáveis com a imaturidade pulmonar e com a prematuridade em geral.

Esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

3 – Encerramento precoce do ductus arteriosus

A presença de canal arterial patente promove um desvio do volume sanguíneo para as artérias pulmonares na fase diastólica, o que tem como consequência a diminuição da perfusão do territórios esplâncnico, aumentando a probabilidade de ECN. Este dado fisiopatológico tem confirmação na prática clínica na sequência de estudos controlados e aleatórios em recém-nascidos pré-termo de peso inferior a 1.000 gramas submetidos a laqueação cirúrgica precoce do canal arterial.

A partir do início dos anos 80, a indometacina (inibidor das prostaglandinas) passou a ser usada profilacticamente, com eficácia demonstrada, para o encerramento do canal arterial e prevenção da hemorragia intracraniana. No entanto, estudos ulteriores identificaram efeitos colaterias, tais como diminuição do fluxo sanguíneo esplâncnico, aumento da incidência de ECN e perfuração intestinal, comprometendo a recomendação universal para o seu uso.

Noutros estudos demonstrou-se diminuição do fluxo sanguíneo esplâncnico menos marcada empregando outro fármaco, também inibidor das prostaglandinas – o ibuprofeno. Recentemente, dados da Cochrane Library provaram que o uso de indometacina não está associado a aumento de risco de ECN.

Esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

4 – Antibioticoterapia por via enteral

A análise de estudos da Cochrane Library empregando antibióticos por via enteral (aminoglicosídeos) sugere, de facto, que tal procedimento contribui para reduzir tanto a incidência, como a mortalidade por ECN. No entanto, face ao risco acrescido de selecção de estirpes com tal estratégia, tal procedimento não deve ser posto em prática.

Esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

5 – Probióticos

Na sequência do que foi referido no capítulo respeitante a esta área, importa acentuar que, em modelos experimentais e em estudos meta-analíticos na espécie humana, se comprovou a eficácia na prevenção no RN pré-termo, com redução da incidência e da mortalidade, recomendando-se o uso de duas ou mais espécies, incluindo designadamente Lactobacillus acidophilus e Bifidusbacterium spp. Contudo, os investigadores alertaram para o risco de sépsis em RN pré-termo com peso < 750 gramas.

Tendo em consideração que os estudos analisados adoptaram metodologias diversas, considera-se que esta medida é considerada de eficaz, embora de segurança questionável.

6 – Suplemento de arginina

Com base no achado anátomo-patológico de necrose de coagulação, resultante de eventos isquémicos locais ou sistémicos, o papel do óxido nítrico tem adquirido importância especial. Com efeito, o óxido nítrico é produzido durante a conversão enzimática da L-arginina em L-citrulina sob a acção da sintetase de NO. Embora os investigadores considerem o suplemento exógeno de arginina uma arma promissora na prevenção da ECN, esta medida é considerada de eficácia comprovada, embora de segurança questionável.

7 – Novos fármacos (anticitocinas e factores de crescimento)

Com estes fármacos, em fase de investigação, foi demonstrada eficácia em modelos animais, mas não na espécie humana.

8 – Pré-bióticos (derivados do leite humano e de plantas), glutamina, ácidos gordos ómega-3, receptores agonistas funcionando como barreira a compostos microbianos

Com estes compostos, também em fase de investigação, não foi demonstrada eficácia, razão pela qual são desaconselhados.

9 – Imunoglobulinas e bloqueadores H2 por via oral

Sabendo-se que no recém-nascido pré-termo são baixos os níveis séricos de imunoglobulinas, nomeadamente IgA secretória, diversos estudos aleatórios avaliaram o papel da utilização profiláctica de preparados de imunoglobulinas e de bloqueadores H2 por via oral na prevenção da ECN.

Embora alguns autores tivessem comprovado redução significativa da doença nos grupos tratados com os referidos compostos, de acordo com a meta-análise da Cochrane Library concluiu-se que são desaconselhados.

Tratamento

1 – Medidas gerais

Perante a suspeita de ECN há que pôr em execução um conjunto de medidas gerais prioritárias de carácter conservador, no pressuposto de que a avaliação, em centro especializado e em unidade de cuidados intensivos, deverá ser feita por equipa multidisciplinar: interrupção imediata de alimentação por via entérica, descompressão gástrica com introdução de sonda naso ou orogástrica, manutenção, após correcção, dos equilíbrios hidroelectrolítico, ácido-base, hemodinâmico, início de nutrição parentérica, início de antibioticoterapia de largo espectro para cobertura de germes gram-positivos, gram-negativos e anaeróbios (esquema empírico a modificar em função do contexto clínico-microbiológico: ampicilina + aminoglicosídeo ou cefalosporina de terceira geração + clindamicina ou metronidazol). No âmbito da avaliação de parâmetros hematológicos, haverá que manter hematócrito em torno de 40-45% e número de plaquetas acima de 40.000/mmc.

Nos casos com boa resposta às medidas gerais acima discriminadas, isto é, com diminuição da distensão abdominal, desaparecimento das imagens radiológicas de pneumatose, desaparecimento do resíduo gástrico e da perda de sangue nas fezes, mantém-se pausa alimentar total até ao 12º ou 14º dia de evolução, e reintroduzindo-se de modo muito cauteloso e progressivo, por fases, o suprimento entérico utilizando leite materno ou fórmula de aminoácidos hiposmolar.

Estas medidas, dum modo geral, aplicam-se aos estádios, de I A a II B (classificação de estádios evolutivos de Bell atrás descrita).

2 – Medidas específicas

Pelo contrário, nos casos em que se verifica progressão rápida do quadro clínico de ECN e agravamento global (correspondendo, em geral aos estádios III A e III B), para além de medidas gerais (mais agressivas, incluindo a administração de inotrópicos e a assistência ventilatória), devem ser ponderados dois procedimentos invasivos: paracentese abdominal para drenagem peritoneal simples e/ou laparotomia.

De referir que a decisão da necessidade e do momento adequado da laparotomia deve ser individualizada com base na análise evolutiva dos achados clínicos e imagiológicos. Uma vez que os doentes em causa evidenciam, na maior parte das vezes, estado crítico, a decisão deve ser tomada de preferência, por equipa multidisciplinar: cirurgião, anestesista e pediatra-neonatologista.

Reportando-nos aos estádios de Bell, a detecção de sinais de ascite (estádio II A), implicará, em princípio, drenagem peritoneal, enquanto a detecção de sinais de pneumoperitoneu – indicativo de perfuração de ansa – (estádio III B) implicará laparotomia exploradora com eventual ressecção do segmento afectado, seguida de anastomose primária ou enterostomias.

Nalguns centros cirúrgicos é realizada já laparotomia em presença do estádio III A (ascite sem evidência de pneumoperitoneu) sendo que a tendência actual, no estádio III A, segundo dados da literatura, seja reservar a drenagem peritoneal simples para os casos de idades gestacionais muito baixas e menor peso.

Para além do pneumoperitoneu, outros sinais mais frequentemente associados a perfuração, estabelecendo a indicação de laparotomia são: massa abdominal (indicativa de perfuração coberta ou de abcesso intraperitoneal), alterações inflamatórias da parede abdominal (indicativas de peritonite e de necrose intestinal subjacente), ansa intestinal em posição fixa nas radiografias simples seriadas e presença de ar no sistema porta.

As alterações laboratoriais indicativas de processo clínico em progressão que poderão estabelecer indicação de laparotomia são: alterações da coagulação, trombocitopénia, hiponatrémia e acidose metabólica persistente.

Igualmente, a detecção de germes na coloração pelo Gram no material obtido por paracentese abdominal previamente realizada, poderá constituir indicação para laparotomia.

Uma vez concretizada a ressecção intestinal, deve restabelecer-se, logo que possível, o trânsito intestinal, nomeadamente se em presença de estabilidade hemodinâmica, e na ausência de peritonite ou de ressecção jejunal muito proximal. Nalguns casos há que proceder a duas ou mais enterostomias descompressivas, utilizando os segmentos intestinais viáveis e funcionantes para o restabelecimento ulterior do trânsito intestinal.

No período pós-operatório, o doente deve ser submetido a programa de nutrição parentérica total, pelo que se torna necessário colocar uma via central de longa duração (cateter do tipo Hickman-Broviac).

Prognóstico

As complicações letais da ECN prendem-se com a progressão do processo patológico desencadeante, que pode culminar com o desenvolvimento da chamada síndroma de reacção inflamatória sistémica (SRIS) num contexto de sépsis e acidose metabólica irreversível.

Em cerca de 20 a 25% dos casos poderão desenvolver-se quadros de estenose (fibrose estenosante pós-inflamatória), mais frequente no território ileal distal e cólico; em tais circunstâncias há indicação para ressecção.

A síndroma de intestino curto constitui outra complicação não imediata surgindo como consequência de ressecções intestinais muito alargadas por necrose intestinal extensa.

A sépsis de cateter central, nomeadamente a sépsis por fungos, tem sido apontada como uma complicação relevante pela mortalidade significativa que comporta.

Em suma, os progressos da terapia intensiva e das técnicas operatórias permitem actualmente obter nos casos de ECN uma sobrevivência global > 85%.

Agradecimentos

Os autores e editor agradecem aos Drs. Micaela Serelha, Daniel Virella e Sérgio Pinto a cedência de dados estatísticos e imagiológicos referentes à UCIN-HDE.

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APENDICITE AGUDA

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A apendicite aguda constitui a causa mais frequente de dor abdominal aguda que conduz a intervenção cirúrgica de emergência na criança e adolescente. A sua maior incidência verifica-se no grupo etário entre 12 e 18 anos, sendo rara antes dos 5 anos (< 5%), e muito rara antes dos 3 anos (< 1%).

O diagnóstico desta situação na criança com < 5 anos é frequentemente difícil e muitas vezes tardio, o que acarreta complicações com risco de vida, tais como perfuração (~20% dos casos), podendo conduzir a peritonite e sépsis. Nos quadros de doença febril há, pois, que admitir o seu diagnóstico, nomeadamente perante doença febril de interpretação duvidosa, mesmo sem sinais abdominais muito exuberantes.

Etiopatogénese

A apendicite aguda é uma doença que poderá envolver múltiplos factores etiológicos, cujo resultado final é a invasão bacteriana da parede apendicular.

Admite-se como factor importante e primum movens da infecção apendicular a obstrução do respectivo lume por matéria fecal (fecalitos, muitas vezes em relação com regime alimentar pobre em fibra), caroços de fruta, parasitas/Ascaris, hiperplasia dos folículos linfóides da submucosa da parede (secundária a infecções víricas, ou outras causas), ou por compressão extraluminal (gânglios linfáticos ou tecido neoplásico). Na fibrose quística, afecção associada a maior viscosidade do muco, existe maior predisposição para a obstrução do lume apendicular.

O resultado final é o aumento da pressão intraluminal e a proliferação bacteriana com invasão da parede do apêndice induzindo processo inflamatório com edema, secreção de muco, distensão com compromisso circulatório (dificuldade de drenagem venosa e linfática numa primeira fase, e isquémia por compressão arterial, mais tardiamente); ulteriormente pode surgir ruptura por necrose, por vezes verificada cerca de 48-72 horas após início das manifestações clínicas.

A infecção entérica pode desempenhar também papel importante, na medida em que muitos casos se associam a ulceração da mucosa e invasão da parede apendicular por microrganismos como Salmonella e Shigella spp., e vírus (adenovírus e coxsackie B).

Poderão formar-se abcessos periapendiculares e peritonite generalizada (esta última facilitada pelo facto de o grande epíploo ser mais curto do que no adulto, dificultando a localização do abcesso inicial).

Manifestações clínicas

O diagnóstico de apendicite aguda é essencialmente clínico. O quadro de apresentação varia com a idade:

  • Recém-nascido
    Os sinais de apresentação são inespecíficos: letargia, irritabilidade, distensão abdominal e vómitos, massa abdominal palpável, eritema da parede abdominal, hipotensão, hipotermia e dificuldade respiratória.
    A apendicite aguda comporta elevada mortalidade neste grupo etário.
  • Lactente
    Até aos 2 anos de idade os sinais e sintomas mais frequentes são a dor, vómito, diarreia e febre. Pode haver irritabilidade, dificuldade respiratória e queixas localizadas na anca direita. É mais frequente a dor abdominal difusa do que a localizada, não sendo de estranhar que o diagnóstico seja geralmente tardio pela dificuldade de comunicação neste grupo etário. Daí a maior gravidade da situação e a maior incidência de peritonite em tal circunstância.
  • Pré-escolar
    Neste grupo etário são habituais dor abdominal, febre, anorexia, náuseas e vómitos; em regra, a dor é localizada na fossa ilíaca direita. O vómito precede a dor, geralmente.
  • Escolar
    A sintomatologia assemelha-se à clássica do adulto: inicialmente dor difusa ou periumbilical e, mais tarde, localizada na fossa ilíaca direita, com sinais de defesa abdominal/contractura da parede abdominal e dor à descompressão. A dor é função da localização anatómica do apêndice. As náuseas e os vómitos surgem por distensão apendicular, após início da dor.
  • Adolescente
    Neste período estão presentes os sinais e sintomas da apendicite do adulto com a sequência clássica: dor periumbilical inicial – náuseas – vómitos – dor localizada na fossa ilíaca direita, agravada pela descompressão rápida após palpação; esta última comprova defesa abdominal/contractura da parede. No sexo feminino impõe-se o diagnóstico diferencial com patologia ginecológica.

Diagnóstico diferencial

Quando o quadro não é evidente, haverá que admitir outras situações, tais como: gastrenterite, linfadenite mesentérica, diverticulite de Meckel, pancreatite, colecistite aguda, torção do epíploo, torção de quisto do ovário, doença inflamatória pélvica, infecção urinária, pneumonia (classicamente na localização lobar direita), etc..

É importante salientar a importância da anamnese e do exame objectivo global e rigoroso, e que os sinais clássicos poderão não estar presentes em caso de apêndice de localização retrocecal ou com localização anómala.

Determinadas situações provocando dor no quadrante inferior direito do abdómen merecem ser destacadas, nomeadamente pela eventual confusão estabelecida pela terminologia clássica da entidade “apendicite aguda”, objecto do presente capítulo:

  1. Apendicite crónica refere-se ao quadro de inflamação crónica do intestino com infiltração de monócitos, o que corresponde a ~1% dos apêndices inflamados;
  2. Apendicite recorrente refere-se à situação resultante de um episódio de inflamação apendicular com regressão espontânea, sem intervenção cirúrgica e consequente fibrose focal apendicular;
  3. Cólica apendicular (termo controverso não reconhecido em geral como entidade clínica específica) originando dor crónica recorrente em geral pela manhã e 5-20 minutos após ingestão de líquidos ou refeição, explicável por diversos factores como fecaloma, fibrose, corpo estranho, parasitose, carcinóide, hiperplasia linfóide, etc.;
  4. Tiflite ou enteropatia neutropénica correspondendo a um processo de inflamação e necrose da parte terminal do íleo, cego, e/ou apêndice, tendo como factores de risco doença neoplásica, infecção por VIH e quimioterapia.

Exames complementares

Reiterando que o diagnóstico provisório de apendicite aguda é essencialmente clínico, na maioria dos centros cirúrgicos, no que respeita a exames complementares para confirmação ou infirmação é hoje consensual que existe prioridade para os exames de imagem “à cabeceira do doente”. A ecografia tem evidenciado sensibilidade de 88% e especificidade de 94% na ausência de obesidade; nos casos duvidosos haverá que recorrer à TAC, com inconvenientes pela radiação, mas mais precisa que a ecografia. A RM, em centros com recursos e ponderando prioridades, poderá ser outra alternativa.

No que respeita a biomarcadores clássicos, salientam-se o hemograma e a proteína C reactiva (PCR). O hemograma proporciona fraco contributo (pode verificar-se neutrofilia), podendo ser útil no diagnóstico diferencial com linfadenite mesentérica (esta última revelando, em geral, linfocitose ou valor de leucócitos < 7.000/mmc). De acordo com estudos epidemiológicos, valor de leucócitos superior a 12.000/ mmc com desvio à esquerda poderá surgir em cerca de 85%-90% dos doentes com apendicite aguda, e em 90%-95% dos mesmos com apendicite perfurada. Valores de PCR > 3 mg/dL, em conjugação com a clínica sugestiva, poderão apontar para o diagnóstico.

Nalguns centros estão a ser utilizados novos biomarcadores, mais específicos e sensíveis que os clássicos, como o factor de crescimento dos granulócitos (G-CSF), uma glicoproteína (LRG ou leucine-rich alpha-2-glycoprotein) e doseamento sérico de citocinas.

A análise de urina pode ser útil para a detecção de infecção urinária. Outros exames e doseamentos a realizar (nas situações de contexto clínico mais complexo e grandes dúvidas) são: amilase, lipase, ALT, AST, GGT, radiografia do tórax, radiografia abdominal simples de pé e em decúbito.

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, de emergência. Durante a indução da anestesia deve proceder-se a antibioticoterapia endovenosa de largo espectro de modo a abranger o microbioma intestinal, para diminuir o risco de complicações infecciosas peri- e pós-operatórias.

No que respeita a esquemas de antibioticoterapia (a qual deverá ser dirigida contra as bactérias frequentemente encontradas no apêndice, incluindo anaeróbios e aeróbios gram-negativos) diversos têm sido descritos em estudos epidemiológicos demonstrando idêntica eficácia. Dado que os microrganismos gram-positivos são raros no cólon, é controversa a antibioticoterapia para cobrir enterococos, salvo em contextos clínicos específicos.

Descreve-se a seguir um dos protocolos utilizados:

  • Apendicite simples não perfurada: cefoxitina IV (1 dose pré-operatória e 1 dose 24 horas após intervenção);
  • Apendicite perfurada ou gangrenosa: antibioticoterapia tripla IV (ampicilina + gentamicina + clindamicina ou metronidazol) iniciada na data da operação (no pressuposto de intervenção emergente) e continuada durante 3-5 dias.

No caso de presença de pus na cavidade abdominal é fundamental a lavagem copiosa da mesma com soro fisiológico morno, até se obter líquido límpido, e encerrando a laparotomia sem deixar drenos; em tais circunstâncias torna-se obrigatória a continuação da antibioticoterapia pós-operatória.

Notas importantes:

    • Quando o cirurgião e a equipa têm experiência pode utilizar-se, em casos seleccionados, a cirurgia laparoscópica.
    • Nalguns centros, em casos seleccionados, procede-se a técnicas de drenagem percutânea com o apoio de especialistas em radiologia de intervenção associada a laparoscopia.

Complicações

Peritonite e abcessos intraperitoneais são as complicações mais frequentes da doença. Deiscência da laqueação do coto apendicular e hemorragia são complicações raras, mas podem ocorrer como complicação da intervenção cirúrgica, assim como abcessos da parede abdominal na zona da laparotomia. Com os devidos cuidados todas elas são evitáveis.

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DIVERTÍCULO DE MECKEL

Definição e etiopatogénese

Entre a 5ª e a 7ª semana de vida intra-uterina, o canal ônfalo-mesentérico (canal vitelino) regride, à medida que a placenta substitui o saco vitelino como fonte da alimentação do feto. Este canal estabelece a comunicação entre o saco vitelino e o intestino primitivo.

A não regressão ou a regressão insuficiente do canal leva ao aparecimento de várias anomalias, das quais a mais frequente é o divertículo de Meckel. Assim, o divertículo de Meckel é uma estrutura remanescente do canal ônfalo-mesentérico em forma de “dedo de luva” ou em ligação com o lume do íleo distal. (Figura 1)

Salienta-se que o desenvolvimento normal do tubo digestivo depende de interacções entre as camadas endoderme (epitélio tapetando internamente a parede intestinal), mesoderme (formação de músculo liso), e ectoderme (sistema nervoso entérico). Histologicamente o divertículo de Meckel é um verdadeiro divertículo integrando todas as camadas intestinais. A irrigação sanguínea é um vestígio da artéria vitelina primitiva, podendo ter papel proeminente nos casos em que se manifesta hemorragia.

FIGURA 1. Divertículo de Meckel (corte horizontal da parede abdominal em esquema). Ver figura 2 do capítulo sobre gastrosquise.

Trata-se da anomalia congénita gastrintestinal mais frequente, presente em cerca de 2%-3% da população, e predominando no sexo masculino com uma relação de 3-4/1. Pode estar associada a outros defeitos nas seguintes proporções: atrésia do esófago (12%), anomalia ano-rectal (11%), e onfalocele (25%).

O divertículo, de comprimento variável, situa-se no bordo anti-mesentérico do intestino delgado a distância variável da válvula íleo-cecal, embora possa ter localização mais proximal (em regra, a 50-90 cm). Contudo, para excluir a sua presença, a exploração intra-operatória do intestino deve ser levada a cabo até aos 150 cm.

No seu interior pode aparecer mucosa ectópica, geralmente gástrica ou tecido pancreático. O tecido ectópico gástrico no interior do divertículo pode causar ulceração da mucosa no íleo adjacente.

É clássico empregar, como mnemónica e com alguma aproximação (ver atrás), a chamada regra dos 2para caracterizar o defeito: surge em ~2% da população, a menos de 2 pés (cerca de 60 cm) da válvula íleo-cecal, com 2 tipos de mucosa ectópica (gástrica e pancreática), em crianças com mais de 2 anos de idade e anomalia com mais de 2 cm de comprimento.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na maioria dos casos, o divertículo de Meckel é assintomático.

Na generalidade dos casos sintomáticos, o divertículo está forrado interiormente por mucosa gástrica ectópica com secreção ácida que origina hematoquésia ou enterorragia segundo alguns autores (aparecimento de fezes com sangue “cor de tijolo ou em geleia de groselha”) por ulceração da mucosa ileal normal adjacente. Como resultado poderá surgir anemia.

Menos frequentemente, o divertículo de Meckel está associado a obstrução intestinal parcial ou total (invaginação intestinal, volvo, bridas fibrosas no contexto das estruturas remanescentes), sendo que a idade média dos doentes tendo como forma inicial de apresentação a obstrução, é inferior à dos doentes cuja forma inicial de apresentação é a hemorragia.

O divertículo pode também inflamar-se (diverticulite), com um quadro clínico que pode simular apendicite aguda. A diverticulite pode levar a perfuração e peritonite. Pode ainda ser sede de tumores carcinóides, de acumulação de corpos estranhos ou de parasitas intestinais.

Em caso de hemorragia com suspeita de ser provocada por divertículo de Meckel, está indicada cintigrafia com tecnécio (TC99m) a qual permitirá identificar a anomalia através da visualização de sinais de mucosa gástrica ectópica produzindo secreção ácida. Os sinais podem ser mais notórios (maior captação do isótopo) com administração de cimetidina, glucagom ou gastrina em dias anteriores. Outros métodos de detecção incluem ecografia abdominal e, em situações clínicas específicas, angiografia mesentérica superior, TAC abdominal e, laparoscopia exploradora.

Salienta-se que nos doentes com quadro de obstrução intestinal, ou sugestivo de apendicite aguda, o diagnóstico definitivo em geral é feito após laparotomia.

Tratamento

O tratamento consiste na ressecção do divertículo associada a ressecção segmentar do intestino adjacente (em especial nos casos de obstrução e de hemorragia).

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HEMORRAGIAS DO TUBO DIGESTIVO

Definição e importância do problema

A hemorragia do tubo digestivo pode ter origem em toda a extensão do mesmo, sendo a identificação do local que sangra um desafio para o clínico em termos de raciocínio diagnóstico.

Quando o sangue tem origem no esófago, estômago, ou duodeno, pode provocar hematemese, termo que significa vómito de sangue, independentemente da sede da hemorragia. O sangue eliminado e exposto às secreções gástricas ou intestinais escurece rapidamente (por digestão-sangue “digerido”) passando a ter cor castanha (tipo borras de café, ou com aspecto de alcatrão); se a hemorragia for maciça, o sangue com grande probabilidade mantém a cor vermelha viva.

Sangue eliminado pelas fezes, independentemente da cor (vermelha ou castanha) define o conceito (lato) de hematoquésia; a mesma pode ser o resultado de hemorragia maciça a montante do íleo distal no contexto de trânsito intestinal acelerado, ou a jusante do íleo distal.

O sangue resultante de hemorragia ligeira a moderada com origem a montante do íleo distal tende a originar fezes de cor castanha muito escura (tipo borras de café ou aspecto de alcatrão): é a melena (conceito restrito). As hemorragias major no duodeno ou a montante do duodeno podem também originar melena.

Rectorragia é a eliminação pelo ânus de sangue vivo proveniente do recto, misturado ou não com fezes (conceito restrito).

Algumas situações clínicas, em função do volume de sangue perdido, obrigam a tratamento de emergência.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

As hemorragias do tubo digestivo têm causas e consequências. No Quadro 1 são resumidos os principais problemas clínicos de base (os quais têm quadro clínico próprio, podendo originar hemorragias do tubo digestivo.

QUADRO 1 – Principais causas de hemorragia do tubo digestivo.

*Afecções mais frequentes no lactente
Sangue deglutido pelo RN*
Varizes esofágicas
Doença péptica
Anomalias vasculares
Refluxo gastresofágico
Gastropatia traumática de prolapso
Úlcera gástrica de estresse*
Úlcera duodenal
Alergia às proteínas do leite de vaca*
Fissura anal*
Polipose intestinal
Duplicação intestinal
Divertículo de Meckel*
Invaginação intestinal*
Volvo
Doença sistémica (leucemia, hiperplasia linfóide)
Iatrogénica (anti-inflamatórios não esteróides)
Gastrenterite bacteriana*
Enterocolite
Colite pseudomembranosa
Doença de Hirschprung
Doença inflamatória intestinal
Síndroma de Mallory-Weiss
Prolapso rectal
Púrpura de Schonlein-Henoch
Coagulopatia*

 

A lesão erosiva da mucosa do tracto gastrintestinal constitui a causa mais frequente de hemorragia. Outras causas importantes são:

  1. A gastropatia traumática de prolapso em que se verificam hemorragias subepiteliais no contexto de prolapso do estômago no esófago durante vómitos com esforço acentuado;
  2. A síndroma de Mallory-Weiss em que há lesões tipo ruptura da mucosa também associadas a vómitos;
  3. Anomalias vasculares;
  4. Varizes esofágicas.

Nos casos de perda crónica (micro-hemorragias que correspondem a “sangue oculto nas fezes” poderá surgir quadro de anemia ferripriva. A hemorragia gastrintestinal pode originar hipotensão e taquicárdia, por vezes na ausência de sintomatologia do foro digestivo; nos casos de surgimento agudo e de forma maciça, poderão surgir vómitos, náuseas e diarreia. A degradação dos componentes do sangue intraluminal poderá levar a hiperbilirrubinémia e a coma hepático em situações de disfunção hepática prévia.

Diagnóstico diferencial e exames complementares

Para o esclarecimento etiológico e avaliação da repercussão do evento sobre o estado geral, torna-se necessário, após anamnese e exame objectivo rigoroso, proceder a um conjunto de exames complementares a seleccionar em função do contexto clínico de cada caso.

No que respeita à anamnese, e perante a comprovação “fezes de cor vermelha” cabe salientar a importância de inquirir sobre a eventualidade de ingestão anterior de rifampicina, gelatina vermelha, ou framboesas.

Nos casos de “fezes de cor semelhante à das borras de café ou do alcatrão”, há que inquirir, designadamente, sobre a eventual ingestão de espinafres, chocos com tinta, salicilato de bismuto, medicamentos à base de ferro, e amoras.

  • Para esclarecimento etiológico e avaliação da repercussão sobre o estado geral, estão indicados os seguintes exames prioritários: hemograma com plaquetas, provas de coagulação (tempo de protrombina tempo de tromboplastina parcial), provas de citólise e de função hepáticas (ALT/ alanina, AST/ aspartato aminotransferase; GGT/ gama-glutamiltransferase, bilirrubinémia total e directa), pesquisa de sangue oculto nas fezes ou vómito, grupo sanguíneo, radiografia simples abdominal.
  • Nos casos de hematemese: endoscopia do tracto digestivo superior (clássica, ou microendoscopia empregando a cápsula endoscópica com câmara, previamente deglutida pelo doente, ou colocada por via endoscópica nas crianças mais pequenas), estudo radiológico do tracto superior com contraste nos casos de endoscopia inconclusiva ou indisponível.
  • Nas situações de rectorragia com fezes bem formadas: toque rectal.
  • Para excluir pólipos ou fissuras: sigmoidocolonoscopia.
  • Para detectar divertículo de Meckel: cintigrafia com tecnécio.
  • Para detecção de anomalia arteriovenosa: arteriografia da mesentérica ou microendoscopia com cápsula.
  • Nos casos de hemorragia com vómitos e sinais de oclusão intestinal: radiografias abdominais simples seriadas, clister opaco (para excluir invaginação intestinal), ecografia abdominal ou estudo com contraste do tracto superior.

Tratamento

A actuação em casos de hemorragia digestiva deverá corresponder ao tratamento da respectiva causa, para cuja identificação concorre a escolha judiciosa de exames a realizar. Nalgumas situações está indicado tratamento prioritário de emergência, procedendo a manobras de reanimação cárdio-circulatória (oxigenoterapia, entubação endotraqueal, estabelecimento de linha endovenosa para combate do choque e/ou terapêutica substitutiva com derivados sanguíneos (plasma fresco, concentrado eritrocitário, etc.).

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ANOMALIAS ANO-RECTAIS

Definição e importância do problema

A designação anomalias ano-rectais (AAR) engloba um conjunto diverso de defeitos congénitos gerados a partir da 5ª a 8ª semanas de gestação, incluindo o ânus imperfurado e suas variantes. O espectro de manifestações clínicas é também muito diverso, desde formas clínicas de gravidade diminuta a formas clínicas extremamente complexas e graves.

As anomalias ano-rectais, fazendo parte das síndromas de defeito de regressão caudal, surgem com uma frequência de cerca de 1/5.000 nascimentos, com predomínio no sexo masculino; as formas menos complexas verificam-se no sexo feminino.

Sistematização anatómica

No sexo masculino as anomalias ano-rectais são sistematizadas, por ordem crescente de complexidade, do seguinte modo:

  • AAR com ânus coberto (cobertura cutânea membranosa simples do orifício anal);
  • AAR com fístula perineal (trajecto fistuloso para a pele perineal ou rafe mediana escrotal);
  • AAR com atrésia rectal (atrésia da continuidade ano-rectal após a linha pectínea, com permanência do segmento cólico distal);
  • AAR com fístula para o aparelho urinário (contacto entre o aparelho digestivo e o aparelho urinário ao nível da uretra bulbar, prostática ou colo da bexiga).

No sexo feminino, as referidas anomalias podem apresentar-se clinicamente, também por ordem crescente de complexidade, do seguinte modo:

  • AAR com ânus coberto (cobertura cutânea simples do orifício anal);
  • AAR com fístula perineal (trajecto fistuloso para a pele perineal);
  • AAR com fístula vestibular (trajecto fistuloso para a forchette vaginal);
  • AAR com fístula vaginal (trajecto fistuloso para a parede posterior da vagina retro-himenal);
  • AAR com formação de cloaca (orifício perineal único, hipoplasia dos genitais externos, ausência de orifício anal, canal comum e sinus urogenital).

Manifestações clínicas e diagnóstico

O dado clínico fundamental desta anomalia é a ausência de orifício anal de forma e localização normal, o que é comprovado no âmbito do primeiro exame clínico sistemático do recém-nascido no pós-parto imediato.

No sexo masculino, pode ser acompanhada de períneo mal desenvolvido com sulco internadegueiro não proeminente, e presença de fístula para o aparelho urinário em cerca de 90% dos casos. No sexo feminino podem ser observados: presença de fístula para a pele perineal ou para a vagina, ou ainda, orifício perineal único, acompanhado de hipoplasia genital marcada.

As anomalias congénitas do aparelho urinário acompanham as anomalias ano-rectais em cerca de 48% dos casos. Outras anomalias frequentemente associadas incluem as cardíacas, digestivas e vertebrais (hemivértebras, disrafismo e agenésia sagrada). Associações possíveis de defeitos acompanhantes incluem as designadas pelas siglas VACTERL (defeitos: vertebral, anal, cardíaco, traqueal, esofágico, renal, membro/limb), e VATERR (defeitos: vertebral, anal, traqueal, esofágico, radial, renal). Como regra geral pode estabelecer-se que as anomalias associadas constituem o factor prognóstico mais importante das anomalias ano-rectais (por ex., boa correlação entre o grau de desenvolvimento do sacro e a futura função: ausência de sacro associa-se a incontinência fecal e urinária).

O diagnóstico de anomalia ano-rectal é fundamentalmente clínico. Os exames perineal e genital fornecem o diagnóstico, permitindo definir, na grande maioria das vezes, o tipo anatómico em causa.

Nos casos de exame clínico detectando “ânus imperfurado”, para avaliação da distância entre a solução de continuidade rectal e a superfície cutânea sem orifício anal, era clássico até há 2 décadas realizar radiografia abdominal simples colocando placa radiopaca de chumbo sobre o períneo (região anal). (Figura 1)

Decorrendo da probabilidade de associação doutras anomalias, como atrás foi referido, estão indicados os seguintes exames complementares:

estudo radiológico sumário da coluna dorso-lombossagrada (em dois planos); estudo ecográfico da coluna lombar para diagnóstico precoce de síndroma de medula ancorada ou de regressão caudal; ecografia do aparelho urinário, extremamente importante para o diagnóstico imediato de qualquer defeito estrutural renal e do aparelho excretor. Para o diagnóstico de defeitos de encerramento do tubo neural e em situações específicas poderá haver necessidade de RM.

Tratamento

As AAR têm sempre indicação operatória. O fundamento da intervenção cirúrgica é a criação de um orifício anal bem posicionado anatomicamente, normofuncionante e completamente separado do aparelho urinário e do aparelho genital.

A decisão terapêutica imediata mais importante prende-se com a eventual necessidade de construção de uma colostomia diversiva, no quadrante inferior esquerdo, utilizando um segmento de junção entre o cólon descendente e o cólon sigmoideu. Esta decisão terapêutica depende da definição anatómica e diagnóstica do tipo de anomalia ano-rectal, e deverá ser tomada após um intervalo de 16 a 24 horas depois do nascimento; com efeito, verificando-se neste período a progressão da massa meconial até zona mais distal do tubo digestivo, e a possibilidade de preenchimento de eventual trajecto fistuloso cutâneo existente, é possível tirar conclusões mais definitivas quanto à modalidade de tratamento.

FIGURA 1. RN com ânus imperfurado (placa de chumbo colocada na região anal para avaliar a distância entre a pele e a zona de interrupção anómala rectal (ausência de imagens gasosas). Actualmente, através da ecografia pode determinar-se o local onde se verifica interrupção do trânsito (Imagem radiográfica com interesse histórico).

Este aspecto é de extrema importância, porque um defeito não complexo, não necessitando de colostomia diversiva, poderá ser corrigido definitivamente no período neonatal. Pelo contrário, as anomalias mais complexas necessitam de colostomia diversiva para evitar a retenção fecal e a dilatação distal da bolsa cólica, com riscos de perfuração, de infecção urinária (que se pode complicar por um quadro de sépsis urinária) e de reabsorção de urina pela mucosa intestinal conducente a acidose metabólica. Estas situações constituem, efectivamente, risco de vida para qualquer recém-nascido afectado por uma forma complexa de anomalia ano-rectal com fístula recto-urinária.

Reportando-nos à sistematização anatómica descrita noutra alínea, referem-se agora as variedades anatómicas necessitando de colostomia.

No sexo masculino:

  • AAR com atrésia rectal;
  • AAR com fístula para o aparelho urinário.

No sexo feminino:

  • AAR com fístula vestibular;
  • AAR com fístula vaginal;
  • AAR com formação de cloaca.

Notas importantes:

    1. A correcção é realizada integralmente por via perineal no plano sagital, sendo denominada ano-rectoplastia sagital posterior mínima ou limitada.
    2. A colostomia diversiva destina-se, no sexo masculino, a evitar a contaminação do aparelho urinário por conteúdo fecal e a absorção de urina pela mucosa cólica devido ao refluxo de urina para o cólon distal; no sexo feminino, a referida técnica destina-se a evitar a contaminação do aparelho genital e a hipertrofia da bolsa rectal distal, por retenção fecal progressiva.
    3. O exame complementar fundamental, após a construção da colostomia e antes de realizar a cirurgia definitiva, é o colostograma. Este exame consiste no preenchimento do segmento distal do cólon, a jusante da colostomia, por contraste hidrossolúvel, permitindo a visualização da porção terminal do cólon esquerdo ou de qualquer trajecto fistuloso presente.
    4. A correcção cirúrgica definitiva é realizada por meio de uma ano-rectoplastia sagital posterior plena. Actualmente, a idade para a realização da cirurgia definitiva está a ser reduzida para as primeiras oito semanas de vida; exceptua-se a correcção cirúrgica da cloaca, em geral realizada entre os seis meses e o ano de idade.
    5. Após a realização da ano-rectoplastia sagital posterior torna-se necessário iniciar um programa de dilatação anal progressiva por meio dos chamados dilatadores de Hegar. Este programa é de extrema importância e o seu cumprimento constitui um pilar fundamental para o sucesso cirúrgico. A colostomia deverá ser encerrada após a conclusão do programa de dilatações anais.

Complicações pós-operatórias

As complicações resultam das múltiplas intervenções cirúrgicas a que os doentes com esta patologia são submetidos. As mais importantes são: deiscências de vários tipos, estenose, prolapso da mucosa cólica, má posição da anoplastia em relação aos limites do complexo muscular perineal e refistulização recto-urinária ou recto-vaginal.

Seguimento

Os doentes portadores de AAR, nomeadamente nas suas formas mais complexas, necessitam de um seguimento multidisciplinar em regime ambulatório, englobando designadamente diversas áreas como: enfermagem, fisioterapia, fisiatria, cirurgia pediátrica, pediatria médica, medicina familiar, nefrologia pediátrica, neurologia pediátrica e ginecologia pediátrica.

As situações clínicas mais problemáticas associadas ao seguimento da AAR são a obstipação pós-operatória, a incontinência fecal e a incontinência urinária. A obstipação pós-operatória é a sequela mais comum dos doentes com AAR. Paradoxalmente, é mais grave nas formas clínicas mais ligeiras. A obstipação deverá ser tratada agressivamente e de modo prolongado para evitar as suas consequências nefastas, como o megarrecto. A incontinência fecal, que pode surgir em cerca de 30% de todos os casos, implica a necessidade de programa de reeducação intestinal adaptado a cada doente. O seu fundamento é a utilização criteriosa e individualizada de laxantes, emolientes e clisteres de limpeza.

Prognóstico

O prognóstico dos doentes com AAR depende, não só do sucesso do acto cirúrgico a que foram submetidos, mas, principalmente, do tipo de AAR e da patologia subjacente e acompanhante da mesma.

Reiterando o que foi descrito anteriormente, os factores prognósticos fundamentais são: a evolução do status nefrológico e a capacidade de continência esfincteriana vesical e anal. Estes dois aspectos são os mais importantes na definição da qualidade de vida futura destes doentes.

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ESTENOSE HIPERTRÓFICA DO PILORO

Definição e importância do problema

A estenose hipertrófica do piloro (EHP), como o nome indica, é uma hipertrofia (e não hiperplasia) da camada interna das fibras musculares do piloro, acompanhada de certo grau de espasmo, de causa desconhecida. A mucosa não evidencia qualquer alteração.

Constituindo a causa cirúrgica mais comum de vómitos não biliosos no lactente, tal situação ocorre na proporção aproximada de 1-3/1.000 RN, com predomínio do sexo masculino na relação ~4/1 e, sobretudo, em crianças dos grupos sanguíneos B e 0. Os descendentes de progenitores com antecedentes de estenose hipertrófica do piloro comportam maior probabilidade de doença (~10%-20%).

Etiopatogénese

Embora a causa seja desconhecida, tem-se chamado a atenção para determinadas situações clínicas frequentemente associadas, tais como fístula traqueoesofágica, hipoplasia ou agenésia do freio do lábio inferior, síndroma de Zellweger, síndroma de Apert, trissomia 18, síndroma de Smith-Lemli-Opitz, síndroma de Cornelia de Lange, e administração prévia (cerca de 2 semanas) de eritromicina a RN. Esta última situação aumenta em 10 vezes o risco de surgimento de EHP.

Admite-se o papel de determinados factores como síntese aumentada de factor de crescimento epidérmico, inervação muscular anómala (por ex. falta de células intersticiais de Cajal), níveis séricos elevados de prostaglandinas E2 pós-infusão do fármaco, hipergastrinémia, e níveis reduzidos de NO (por défice de sintetase de NO nas fibras musculares do piloro).

Em estudos recentes foram identificados 2 genes em dois loci, respectivamente nos cromossomas 11q14-q22 e Xq23, com papel no funcionamento de canais iónicos e no controlo da musculatura lisa, conduzindo a hipertrofia.

Noutros estudos comprovou-se prevalência quatro vezes superior de EHP em bebés alimentados com biberão/fórmula relativamente aos alimentados com leite materno, especulando-se sobre o papel dos VIP, em concentração elevada no leite materno, promovendo relaxamento pilórico.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Os primeiros sinais da EHP surgem, geralmente entre a 2ª e 6ª semana de vida, numa criança que estava em plena saúde e a evoluir normalmente: vómitos projécteis não biliosos, cujo aparecimento pode ser de modo abrupto com progressão rápida. Em determinados casos, os vómitos poderão surgir de modo insidioso, logo a partir dos primeiros dias de vida.

Os vómitos aparecem 20 a 60 minutos após as refeições, sendo cada vez mais frequentes e volumosos, podendo ser acastanhados ou com sangue “vivo”, por esofagite. Após o vómito a criança fica “esfomeada”, e, por vezes aparenta “vomitar mais do que o que ingeriu antes” aplicando a linguagem expressiva de muitas mães.

Se a situação evoluir sem qualquer intervenção (evolução natural), as fezes tornam-se mais escassas e duras, semelhantes a fezes de ovelha, e a desidratação começa a instalar-se num quadro de alcalose hipoclorémica e hipopotassémica (por perda de suco gástrico, hidrogeniões e potássio).

Consequentemente pode haver diminuição do débito urinário com urina concentrada, estagnação do peso e, depois, desnutrição com perda de peso. Por vezes as ondas peristálticas são visíveis através da parede abdominal no epigastro durante a deglutição de leite.

Em menos de 5% dos casos verifica-se icterícia por hiperbilirrubinémia não conjugada resultante de insuficiente absorção de glucose e de incapacidade de manutenção da actividade da glucuronil transferase.

O diagnóstico pode ser mais difícil nas crianças com antecedentes de prematuridade e/ou baixo peso de nascimento, as quais evidenciam quadro clínico mais insidioso.

Com experiência, pode palpar-se a “oliva pilórica“; para tal pesquisa o observador deverá ficar colocado à esquerda do doente e com a mão esquerda “a rolar” o piloro sobre a coluna. Dados da literatura apontam para uma modificação actual do espectro de manifestações da EHP, com menor percentagem de casos com oliva palpável (~13% versus 50% há cerca de 45 anos), assim como de menor incidência de alterações hidroelectrolíticas e do equilíbrio ácido-base. Tal poderá traduzir menor valorização da semiologia clínica, mais precoce utilização de métodos imagiológicos (ver adiante) e maior suspeição do problema, levando a diagnóstico mais precoce.

Exames complementares

A ecografia (Figura 1) é o exame de eleição, sendo critérios de positividade o alongamento e espessamento do piloro traduzidos quantitativamente pelos seguintes valores (especificidade ~95%):

  • Espessura muscular > 4 mm; ou
  • Comprimento > 14 mm.

Se eventualmente tiver sido realizada radiografia abdominal simples tornam-se notórios: distensão gástrica importante, ultrapassando a linha média, e sinais de escassez de ar na área correspondente ao intestino.

A radiografia do estômago com contraste não tem hoje qualquer indicação sendo de salientar riscos e desvantagens. Deverá ficar reservada para casos duvidosos ou complexos.

Os achados laboratoriais clássicos incluem: pH > 7.45 com bicarbonato > 25 mEq/L e excesso de bases > +3; hipoclorémia (cloreto < 98 mEq/L); hipopotassémia (potássio < 4 mMol/L).

FIGURA 1. Achado ecográfico da região pilórica no contexto de EHP. (UCIN-HDE)

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, de urgência, mas não de emergência: piloromiotomia extramucosa (operação de Fredet von Ramstedt). Com efeito, haverá que proceder previamente à correcção do desequilíbrio hidroelectrolítico e metabólico (desidratação e alcalose hipoclorémica e hipopotassémica): bolus inicial de soro fisiológico seguido de soro fisiológico diluído a 1/2 com dextrose a 5% em água, a que se acrescenta potássio uma vez verificada a diurese.

A técnica referida é realizada por via laparoscópica nalguns centros de cirurgia pediátrica. Autores japoneses têm utilizado atropina IV.

A introdução da alimentação oral deve ser precoce e progressiva, a partir das 6 horas do pós-operatório.

Apesar de não ser rara a ocorrência de vómitos nos dias imediatamente a seguir à intervenção cirúrgica, esta situação é passageira.

Prognóstico

O prognóstico é excelente.

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SÍNDROMAS DE OCLUSÃO DO TUBO DIGESTIVO

Aspectos embriológicos e etiopatogénese

Pela 5ª semana da vida embrionária inicia-se uma fase de crescimento rápido do intestino médio (porção do tracto intestinal desde o duodeno até meio do cólon transverso). O intestino em crescimento dirige-se à cavidade celómica, e a respectiva porção distal liga-se ao canal onfalomesentérico.

Até à 10ª semana, continuando fora da cavidade abdominal do embrião, verifica-se aumento progressivo do comprimento do intestino, o qual é irrigado pela artéria mesentérica superior. A partir da 10ª semana o intestino reintroduz-se novamente na cavidade abdominal ao mesmo tempo que se verifica o processo de rotação que leva à sua fixação na parede abdominal posterior.

Não cabendo nos objectivos do livro uma descrição exaustiva do desenvolvimento embrionário do tubo digestivo, importa sintetizar que diversas perturbações verificadas neste processo podem ter várias consequências em termos de oclusão, ou de risco de oclusão, susceptível de se manifestar em diversos períodos da vida pós-natal. Eis alguns exemplos:

  • Má rotação ou rotação incompleta;
  • Atrésias intestinais explicáveis por diversos mecanismos, tais como: deformação de estruturas em desenvolvimento; acidentes vasculares intra-uterinos originando isquémia e necrose; volvo, encarceramento ou invaginação intestinais intra-uterinos;
  • Ausência de células ganglionares nos plexos mioentéricos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Os principais dados da anamnese que poderão sugerir a existência de quadro de oclusão incluem: hidrâmnio, baixo peso de nascimento, vómitos biliosos, complicações pulmonares, presença ou ausência de mecónio e suas características, anomalias congénitas associadas, etc..

A realização de ecografia pré-natal permite o diagnóstico de oclusão intestinal em número significativo de casos.

O exame objectivo do recém-nascido realizado de modo sistemático permite igualmente a recolha de dados fundamentais salientando-se: pesquisa da permeabilidade esofágica e da permeabilidade anal utilizando procedimentos simples como a introdução de sondas; observação atenta do abdómen no sentido de detectar, quer aumento de volume ou distensão (indiciando, por exemplo, oclusão de grau variável do tracto digestivo inferior), quer depressão (sugestiva, por exemplo, hérnia diafragmática de Bochdaleck por ocupação torácica de vísceras abdominais ou atrésia do esófago sem fístula tráqueo-esofágica). Outros dados a pesquisar são: edema da parede, sinais de onfalite e a existência de circulação colateral.

Em suma, vómitos, distensão abdominal e ausência de dejecções/parésia intestinal, em graus variáveis, são sinais comuns nas diversas formas de oclusão. Os vómitos serão biliosos se a obstrução se localizar abaixo da ampola de Vater, e não biliosos se acima desta; a distensão abdominal é tanto mais acentuada quanto mais baixo o nível de obstrução; quando a distensão é muito acentuada, a elevação do diafragma pode originar dificuldade respiratória; por sua vez, a perda de secreções gástrica, biliar, pancreática e intestinal pode originar quadros de desidratação, choque hipovolémico, desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base.

No que respeita a exames complementares indispensáveis, realça-se a radiografia abdominal simples (se possível em posição vertical) e a ecografia, os quais, na grande maioria das vezes permitem o diagnóstico.

Sistematização

Considerando os diversos quadros clínicos de oclusão do tracto digestivo numa perspectiva prática, neste capítulo procede-se a uma sistematização anatomofuncional das mesmas, com objectivo didáctico, no sentido craniocaudal (estômago, duodeno, jejuno-íleo e cólon-recto). Diversas entidades que se podem considerar abrangidas no conceito global de oclusão do tubo digestivo, como estenose hipertrófica do piloro, enterocolite necrosante e anomalias ano-rectais, integram capítulos específicos nesta Parte XXX do livro; o RGE e a doença de Hirschprung foram abordados em capítulos próprios.

ESTÔMAGO

Atrésia do piloro e outros defeitos do antro

Uma referência muito breve a uma situação rara – a atrésia do piloro – correspondendo (juntamente com outras anomalias obstrutivas do antro como “diafragmas” ou membranas) a 0,5% a 1% de todas as anomalias do tracto gastrintestinal. De acordo com a literatura, foram descritos casos familiares, admitindo-se transmissão hereditária autossómica recessiva. Tem sido associada à epidermólise bolhosa. Na maioria dos casos há antecedentes de poli-hidrâmnio. A ecografia pré-natal evidencia sinais de distensão gástrica.

As manifestações clínicas da atrésia do piloro são dominadas por distensão gástrica e vómitos não biliosos desde o primeiro dia de vida. Pela distensão gástrica impõe-se, pois, a aplicação de sonda gástrica para aspiração, obtendo-se como regra, > 20 mL de aspirado. Estão descritos casos de ruptura do estômago nas 1as 24 horas de vida. A ecografia e a radiografia abdominal simples feitas ao RN revelam sinais de distensão gástrica.

Nos casos de obstrução parcial (de grau variável) por membranas, o quadro manifesta-se mais tardiamente por vómitos, não progressão ponderal e dores abdominais. A endoscopia feita a crianças mais velhas permite evidenciar as pregas do antro.

O tratamento da síndroma de obstrução do antro gástrico inicia-se com a correcção do desequilíbrio hidroelectrolítico, desidratação e da alcalose hipoclorémica. Os vómitos persistentes obrigam a descompressão nasogástrica. Após estabilização do doente, procede-se à correcção (cirúrgica por laparotomia, ou por via endoscópica), em função do contexto clínico e idade.

Volvo gástrico

Este quadro verifica-se na sequência da torção do estômago sobre si mesmo superior a 180º; tal torção, que se pode concretizar segundo eixo longitudinal (volvo organoaxial) ou transversal (mesentérico-axial), resulta de ausência ou disfunção/hiperdistensão de determinados ligamentos de fixação gástrica (gastrofrénico, fazendo fixação segundo eixo transversal; e gastrosplénico, gastro-hepático e gastrocólico, segundo o eixo longitudinal).

Trata-se dum problema clínico raro, por vezes subdiagnosticado. Pode manifestar-se de forma aguda e crónica (esta última, mais frequente em crianças mais velhas); pode também estar associado a outros defeitos como má-rotação intestinal e asplenia.

As manifestações clínicas são inespecíficas, traduzindo-se por vómitos incoercíveis não biliosos e dor abdominal entre as refeições. O diagnóstico, uma vez suspeitado, obrigará a exames imagiológicos com contraste; verificam-se sinais de dilatação gástrica. Conforme o tipo de volvo, poderá observar-se sinal de nível líquido duplo com imagem “em bico” perto da junção gastresofágica no volvo mesentérico-axial, e de nível líquido simples sem o característico “bico” no volvo organoaxial.

O tratamento do volvo agudo constitui uma emergência cirúrgica, uma vez estabilizado o doente (gastropexia, precedida eventualmente por gastrostomia paliativa). Em casos seleccionados de volvo crónico, em doentes mais velhos (não lactentes), poderá estar indicado tratamento cirúrgico por via endoscópica. No pós-operatório está indicado tratamento médico anti-RGE.

Duplicação gástrica

Este defeito raro, explicável por falência da recanalização do intestino primitivo aquando do seu estádio “sólido, maciço ou acanalicular”, traduz-se pela existência de estruturas quísticas ou tubulares aderentes à parede interna do estômago (em geral de dimensões < 12 cm), em geral não comunicando com a cavidade gástrica. Em cerca de 35% dos casos há outros defeitos congénitos associados.

As manifestações clínicas são as de obstrução parcial ou completa da junção gastroduodenal (distensão gástrica e vómitos); nos casos de comunicação com a cavidade gástrica, poderão surgir ulceração, hematemeses e melenas. Por vezes, a estrutura anómala quística é palpável (~1/3 dos casos). Os exames de imagem (ecografia ou TAC) permitem esclarecer a situação clínica.

O tratamento consiste na excisão cirúrgica.

DUODENO

As oclusões localizadas no duodeno podem ser originadas por atrésia, estenose ou compressão extrínseca. Ao contrário das manifestações surgindo no contexto de oclusão jejunal ou ileal, nas oclusões duodenais não se verifica distensão abdominal e os vómitos não são biliosos (excepto quando o obstáculo é a jusante da ampola de Vater).

Atrésia e oclusão intrínseca e extrínseca do duodeno

Classificação e etiopatogénese

A oclusão do lume do duodeno pode ser completa ou incompleta, e de causa intrínseca ou extrínseca; de referir que poderão surgir diversos tipos de combinações das referidas modalidades de oclusão.

A oclusão incompleta ou parcial, de grau variável, surge como consequência de estreitamento ou estenose do lume duodenal e está, em geral, associada a compressão extrínseca do duodeno; pode ter várias causas:

  1. Bridas mesentéricas ou aderências peritoneais anómalas (bandas de Ladd) que acompanham situações de má rotação do cólon (oclusão extrínseca);
  2. Tecido pancreático aberrante, pâncreas anular, veia cava de localização pré-duodenal (oclusão extrínseca);
  3. Membrana ou diafragma parcialmente formados, ou fenestrados (oclusão intrínseca).

A causa mais frequente de compressão extrínseca é o pâncreas anular.

Na atrésia verifica-se oclusão total do lume duodenal, como resultado de anomalia do desenvolvimento embrionário (vacuolização incompleta do duodeno primitivo). Tal anomalia compreende três tipos:

  1. Diafragma ou membrana, completa e intacta (estrutura incluindo mucosa e submucosa);
  2. Cordão fibroso unindo dois “fundos de saco” os quais correspondem, respectivamente, aos segmentos proximal e distal do duodeno, sendo que o mesentério está intacto;
  3. Situação semelhante à anterior, mas sem cordão fibroso a unir os dois fundos de saco; neste tipo o mesentério está ausente.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Nos exames imagiológicos pré-natais, em qualquer das situações atrás descritas, é possível detectar em cerca de um terço dos casos, presença de hidrâmnio associado a dilatação bolhosa gastroduodenal. A atrésia do duodeno está por vezes associada a outras anomalias do tubo digestivo, salientando-se a associação muito frequente a síndroma de Down (em cerca de 30% dos casos).

O quadro clínico pós-natal manifesta-se essencialmente por sinais de obstrução intestinal alta, isto é, com resíduo biliar gástrico volumoso e/ou esvaziamento gástrico demorado e incompleto; reitera-se, mais uma vez, a ausência de distensão abdominal.

No recém-nascido a presença de resíduo gástrico bilioso é sempre suspeita de oclusão duodenal. A eliminação de mecónio dependerá da verificação de oclusão completa ou incompleta e de lesões obstrutivas baixas associadas.

O estudo imagiológico a realizar com prioridade é o radiograma simples do abdómen em posição ortostática permitindo identificar o sinal característico e patognomónico da “dupla bolha” relacionável com oclusão completa/atrésia duodenal: a primeira “bolha” corresponde à distensão gástrica, e a segunda, à dilatação da primeira porção do duodeno. Por outro lado, não são observados sinais de “ar” nas ansas intestinais a jusante. (Figura 1)

Seguidamente, poderá proceder-se a estudo gastroduodenal, com contraste hidrossolúvel. Este estudo pode fornecer informações mais pormenorizadas sobre a arquitectura duodenal, o local da interrupção luminal ou a eventual presença de modelagem duodenal por compressão extrínseca. A Figura 2 mostra a imagem de distensão gástrica no contexto de atrésia da junção duodenojejunal. A ecografia abdominal poderá fornecer dados sobre a emergência dos vasos mesentéricos e a sua orientação no caso de má rotação intestinal; o estudo ecográfico da área pancreática pode fornecer dados sugestivos de pâncreas anelar.

Tratamento

O diagnóstico de oclusão duodenal implica sempre, qualquer que seja a anomalia em causa, uma abordagem cirúrgica correctiva.

A intervenção destina-se a tornar permeável o lume duodenal. Uma vez que cerca de oitenta e cinco por cento das oclusões duodenais têm como origem a região periampola, a correcção cirúrgica é realizada por meio de uma derivação a esse ponto por duodenoduodenostomia laterolateral.

No caso de oclusão intrínseca incompleta pode ser realizada uma duodenotomia seguida de exploração endoluminal e excisão do obstáculo mucoso, quer seja um diafragma fenestrado, quer seja uma manga (wind-sock). Nos casos de compressão extrínseca, deverão ser libertadas todas as aderências peritoneais anómalas presentes. Na impossibilidade de retirar o obstáculo extrínseco, a derivação duodenal deverá ser construída mais proximalmente, com uma verdadeira derivação “by-pass” ao arco duodenal, por meio de uma gastroenterostomia laterolateral. Como principais complicações da derivação duodenal citam-se a deiscência da anastomose duodenal e a estenose cicatricial.

Seguimento

Pelas razões apresentadas anteriormente, a derivação duodenal implica a instituição de pausa alimentar, aspiração gástrica activa e nutrição parentérica total, durante um período ~ 10-14 dias. Após este período é introduzida a nutrição entérica, cuja progressão em concentração e quantidade, é feita de acordo com a tolerância demonstrada pelo doente.

Prognóstico

O prognóstico das situações de oclusão duodenal é na generalidade excelente na ausência de complicações cirúrgicas.

O prognóstico definitivo depende da eventual associação doutras anomalias, nomeadamente cardíacas.

JEJUNO E ÍLEO

Atrésia e estenose do jejuno e íleo

Classificação e etiopatogénese

Atrésia e estenose jejunoileal são defeitos congénitos em que se verifica, respectivamente, a obliteração completa ou parcial do lume intestinal no segmento respectivo.

A atrésia é responsável por cerca de um terço dos casos de oclusão intestinal no recém-nascido. A distribuição por sexos é similar, oscilando a frequência entre 1/1.300 a 1/5.000 nados-vivos.

A etiopatogénese de tais anomalias relaciona-se provavelmente com perturbações de vascularização e fenómenos isquémicos mesentérico-intestinais dando origem a défice da permeabilidade do intestino primitivo; tais alterações parecem explicar igualmente defeitos mesentéricos associados.

As atrésias jejunoileais são classificadas em quatro tipos:

Tipo 1: obliteração luminal por membrana com continuidade da parede e mesentério normal (cerca de 30%);

Tipo 2: cordão fibroso unindo os topos proximal e distal do intestino, em fundos de saco, sendo que o mesentério é normal (cerca de 25%);

Tipo 3a: semelhante ao tipo 2, sem cordão fibroso e fundos de saco separados; associado a defeito mesentérico em “V” (cerca de 15%);

Tipo 3b: obliteração luminal proximal e defeito mesentérico e vascular do território distal, sendo este vascularizado por um único vaso em circulação retrógada (apple-peel deformity ou atrésia em forma de árvore de Natal) (11%);

Tipo 4: múltiplas atrésias (cerca de 17%).

A atrésia jejunoileal pode estar associada a outras anomalias tais como síndroma de Down, defeitos cardíacos, a associação VACTERL, doença de Hirschsprung, gastrosquise e íleo meconial.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A ecografia pré-natal pode evidenciar sinais de hidrâmnio e de distensão gástrica fetal. Os sinais clássicos no recém-nascido são: vómitos biliosos, ausência de mecónio e distensão abdominal, tanto mais acentuada quanto mais distal o segmento em que se verifica a oclusão.

A radiografia simples do abdómen (realizada idealmente em posição vertical) evidencia sinais de ansas intestinais dilatadas com ou sem níveis hidroaéreos. (Figuras 3 e 4) Quando estes sinais são muito exuberantes, no diagnóstico diferencial haverá que incluir a doença de Hirschprung (Figura 5) e o íleo meconial. Em função do contexto clínico, poderá estar indicado o clister opaco.

FIGURA 1. Dupla bolha: Sinal radiológico de oclusão duodenal (completa). (URN-HDE)

FIGURA 2. Distensão gástrica por atrésia da junção duodenojejunal. Ausência de ar a jusante da zona de atrésia (radiografia tóraco-abdominal). (NIHDE)

FIGURA 3. Imagem de radiografia simples abdominal evidenciando distensão acentuada de ansas do jejuno no contexto de atrésia ileal. (UCIN-HDE)

FIGURA 4. Atrésia jejunoileal; imagem de radiografia simples do abdómen evidenciando distensão “gigante” de ansas do jejuno parecendo distensão cólica. (UCIN-HDE)

FIGURA 5. Oclusão intestinal baixa, evidenciando níveis hidroaéreos.

Tratamento

Uma vez confirmado o diagnóstico, está indicada intervenção cirúrgica cujo objectivo é promover a continuidade do trânsito intestinal, procedendo a anastomose digestiva directa, após remodelar o segmento dilatado. Se houver sinais de necrose intestinal, procede-se a ressecção da ansa afectada. Pressupõe-se a realização dum conjunto de cuidados pré-operatórios que dizem respeito, essencialmente a aspiração nasogástrica, e manutenção do equilíbrio hemodinâmico, hidroelectrolítico e ácido base.

É habitual surgir no período pós-operatório disfunção anastomótica resultante dos diferentes calibres de ansa, do tipo de sutura, da forma da anastomose, e da alteração da motilidade intestinal associada ao segmento pré-atrésia. Por estas razões, os doentes com tal patologia permanecem durante um período variável de tempo dependentes exclusivamente da nutrição parentérica veiculada, de preferência, através de cateter central de longa duração de tipo Hickman-Broviac.

Os aspectos chave do período pós-operatório são a aspiração nasogástrica activa e a nutrição parentérica. As complicações são decorrentes do tipo de atrésia encontrada, da exequibilidade ou não de reconstituição do trânsito intestinal e da técnica cirúrgica em si. Neste tipo de anomalia surge invariavelmente período mais ou menos prolongado de pseudo-obstrução intestinal com resíduo gástrico abundante que pode ser resultante de dismotilidade intestinal, designadamente.

Se se verificar deiscência anastomótica, torna-se obrigatória a reintervenção cirúrgica imediata. A existência de uma obstrução mecânica evidente por estenose cicatricial ou angulação da anastomose obriga também a efectuar uma revisão cirúrgica da situação.

Prognóstico

O prognóstico global destes doentes (cuja sobrevida é > 95%) é ditado pela precocidade do diagnóstico, pela presença de anomalias congénitas associadas, da imaturidade, da eventual necessidade de ventilação assistida prolongada, das complicações associadas ao tipo de atrésia intestinal, e da técnica cirúrgica utilizada.

Todo este quadro é agravado pela presença de atrésias de tipo 3 ou 4, complicadas de encurtamento intestinal, podendo originar síndroma de intestino curto.

Íleo meconial

Definição e etiopatogénese

Define-se íleo (ou ileum) meconial como a situação clínica de oclusão ileal distal por mecónio anormal, espesso e viscoso, devida a mucoviscidose/fibrose quística; em cerca de 10% dos casos é a primeira manifestação desta doença. A oclusão (intraluminal), surgindo em cerca de 10% a 20% dos recém-nascidos com tal doença, verifica-se na região pré-valvular (válvula ileocecal) numa extensão de cerca de 15 a 20 cm; a montante desta zona verifica-se dilatação do íleo.

Com efeito, na fibrose quística todas as glândulas secretoras de muco são anormais, sendo de referir que, para a anormalidade do mecónio, contribuem a insuficiência de enzimas pancreáticas proteolíticas e a secreção de mucoproteínas anormais pelas células caliciformes do intestino delgado; de facto, o mecónio destes doentes contém menor concentração de hidratos de carbono e maior de proteínas; a proteína mais abundante é a albumina, com uma concentração 5 a 10 vezes superior ao normal, o que explica a sua extrema viscosidade.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A apresentação clínica no período neonatal é caracterizada por distensão abdominal, resíduo gástrico, vómito de características biliosas e ausência de emissão de mecónio nas primeiras 48 horas de vida. A palpação abdominal permite delimitar, por vezes, as ansas distendidas, assim como massa depressível correspondendo ao mecónio espesso impactado. O ânus e recto têm calibre reduzido face à condição de microcólon de desuso.

O exame radiográfico abdominal simples permite demonstrar sinais de distensão intestinal do delgado, ausência de níveis hidro-aéreos e presença de imagens de “bolha de sabão” ou “vidro despolido” traduzindo a mistura gasosa e meconial no território ileal distal (quadrante inferior direito do abdómen).

O clister opaco demonstra a existência de microcólon de desuso (calibre muito estreito) devido à obstrução ileal distal, por vezes com presença de pequenas concreções meconiais mais espessas no cólon proximal e íleo distal.

As formas complicadas traduzem-se fundamentalmente por distensão abdominal progressiva, dificuldade respiratória, perfuração e peritonite no período pré-natal; igualmente poderão existir: sinais de compromisso de ansa intestinal como torção mesentérica e compromisso isquémico, volvo e/ou atrésia, efeito de massa sobre as ansas intestinais pela presença de um quisto meconial, e calcificações intra-abdominais secundárias a peritonite meconial pré-natal.

Diagnóstico diferencial

Com raras excepções, a situação compatível com íleo meconial, até prova em contrário, pode considerar-se um epifenómeno da fibrose quística. No entanto, haverá que atender às seguintes situações:

  • A fibrose quística pode manifestar-se no recém-nascido por atraso de eliminação de mecónio ou por eliminação de rolhão meconial espesso com oclusão transitória do cólon distal;
  • A chamada síndroma do rolhão meconial (situações de mecónio espesso de etiopatogénese diversa da associada à fibrose quística e mais frequente em recém-nascidos de baixo peso) poderá originar um quadro clínico semelhante ao íleo meconial propriamente dito (associado à fibrose quística).

Classificação e tratamento

O íleo meconial classifica-se em simples e complicado consoante a seu modo de apresentação e a sua resolução terapêutica (ver atrás).

  • O íleo meconial simples é tratado de forma não cirúrgica, por meio de clister de substâncias que se destinam a dissolver o mecónio impactado, favorecendo a sua expulsão por via rectal (gastrografina e acetilcisteína).
    A gastrografina é uma solução aquosa de diatrizoato de metilglucamina que, por mecanismo osmótico, promove a transferência de água no sentido células intestinais → lume intestinal, diminuindo a viscosidade do mecónio. A acetilcisteína é uma enzima proteolítica que promove a liquefação do mecónio, sendo em geral usada após o clister de gastrografina.
  • Nos casos de íleo meconial complicado (integrando situações atrás descritas, em que não é possível resolução pelo método de tratamento conservador), existe sempre indicação cirúrgica.
    – Nas formas sem compromisso de ansa intestinal, é realizada uma enterotomia para irrigação endoluminal com o objectivo de dissolver localmente o mecónio impactado.
    – Nas formas de apresentação com compromisso de ansa, isto é complicadas de torção de mesentério, volvo, perfuração in utero ou formação de peritonite meconial ou quisto meconial intra-abdominal, é necessário realizar uma ressecção segmentar do segmento afectado e, posteriormente, restabelecer a continuidade intestinal, ou derivar temporariamente o intestino, encerrando a enterostomia em segundo tempo cirúrgico.

A abordagem cirúrgica do íleo meconial obriga também à colocação de um cateter central de longa duração do tipo Hickman-Broviac para permitir a administração de nutrição parentérica.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias precoces mais frequentes resultam da enterotomia realizada para a irrigação endoluminal e da anatomose pós-ressecção segmentar de ansa que pode ser complicada por deiscência ou por obstrução mecânica.

As complicações tardias são devidas essencialmente a alterações da motilidade do segmento ileal distal obrigando, por vezes, à instituição de fármacos pró-cinéticos.

As complicações a longo prazo resultantes, sobretudo, da ressecção do segmento ileal distal, derivam da alteração do ciclo êntero-hepático e da necessidade de nutrição parentérica de longa duração: litíase biliar e doença hepática colestática.

Por fim, haverá que equacionar outras complicações inerentes à doença de base – a fibrose quística.

Seguimento e prognóstico

O seguimento destes doentes é de extrema importância e deverá ser efectuado em centros especializados dispondo de equipa multidisciplinar.

O prognóstico no primeiro ano de vida é decorrente da forma de apresentação da doença e do sucesso das opções terapêuticas tomadas. A sobrevivência no primeiro ano de vida nos casos não complicados é > 95% e, nos casos complicados, ~90%.

Má-rotação

Definição e etiopatogénese

A má rotação intestinal consiste num defeito de rotação e de fixação (não fixação), na cavidade peritoneal, da ansa primitiva em torno do eixo vascular que origina a artéria mesentérica superior. Esta anomalia integra, pois, também um componente vascular; tal explica a possibilidade de ocorrência concomitante de complicações graves resultantes de isquémia intestinal que podem surgir nos casos de má rotação complicada de volvo do intestino médio.

Trata-se dum problema clínico, com muitas variantes anatómicas, que pode ser assintomático; as formas sintomáticas, manifestando-se na sua maioria até ao 1 ano de idade (em especial no RN) surgem na proporção aproximada de 1/7.000 RN. Outros defeitos congénitos associados a má rotação incluem com maior frequência: atrésia duodenojejunal, onfalocele, gastrosquise e hérnia diafragmática.

Na má rotação completa (não rotação ou verdadeira má rotação) a totalidade do cólon e o íleo terminal localizam-se no lado esquerdo do abdómen, enquanto o duodeno e jejuno se situam no lado direito.

Existe um mesentério comum, não fixado à parede posterior abdominal, sendo que o cego se localiza nos quadrantes superiores ou em posição aproximada do centro do abdómen. Poderá verificar-se a existência de pregas ou fitas de peritoneu (as chamadas bandas ou bridas de Ladd) entre o cego e a parede póstero-lateral do abdómen, cruzando e comprimindo o duodeno, o que causa oclusão; a montante das bridas o duodeno está dilatado e, a jusante, atrófico. O íleo terminal está colado ao jejuno proximal por aderências ou bridas peritoneais anormais; esta anomalia de posição cria um pedículo intestinal estreito, o que predispõe a volvo intestinal (enrolamento ou torção sobre si mesmo ou em roda de ponto fixo – por não fixação do intestino –, com consequente oclusão e perturbação circulatória isquémica).

Outras variantes da chamada má rotação incluem as rotações incompletas e as fixações incompletas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As manifestações clínicas desta entidade podem ser muito variáveis.

A forma de apresentação mais frequente traduz-se por vómitos biliosos intermitentes no período neonatal, sugerindo obstrução duodenal. (Figura 6)*

A forma de apresentação mais grave é o volvo** do intestino médio, por vezes a primeira manifestação da anomalia: agravamento abrupto do estado geral com distensão abdominal, dores abdominais/cólicas no lactente, irritabilidade e, por vezes, eliminação de fezes com sangue, e sinais de choque hipovolémico; este quadro constitui uma emergência.

O exame físico poderá evidenciar ausência de distensão abdominal, ou distensão muito discreta nos casos de localização alta da obstrução.

A ocorrência de vómitos biliosos constitui, em geral, o evento que desencadeia a investigação etiológica. Perante a suspeita clínica de quadro oclusivo intestinal, a radiografia abdominal simples (realizada sempre como primeira prioridade para o diagnóstico) poderá revelar sinais de distensão acentuada de ansas (Figura 7) e, eventualmente, o sinal da “dupla bolha”, patognomónico da oclusão duodenal que, como foi referido, poderá ser um acompanhante da má rotação.

Se a radiografia simples do abdómen evidenciar sinais de duodeno dilatado e de presença de gás nos quadrantes inferiores do abdómen, está indicada a realização de trânsito gastroduodenal contrastado com bário, exame que permite demonstrar a posição do duodeno, a sua forma, e a localização do ângulo de Treitz. Nos casos de má-rotação, o duodeno tem uma forma espiralada, sem se verificar a sua curvatura harmoniosa para a esquerda, e o ângulo de Treitz não está definido no hipocôndrio esquerdo.

O clister opaco pode dar uma imagem indirecta de má-rotação pela posição anómala do cego, que geralmente se encontra em posição elevada nos quadrantes direitos do abdómen ou em posição central.

*Alta da maternidade às 48 horas de vida. Reinternamento aos 4 dias de vida por vómitos biliosos e intolerância alimentar progressiva. A laparotomia comprovou má-rotação de 270º, tendo sido realizada desrotação anti-horária, libertação do ângulo de Treitz, e bipartição do mesentério (operação de Ladd Gross). (caso clínico do Dr. Rui Alves)

**Recorda-se a definição de volvo (ou vólvulo): enrolamento ou torção de um órgão oco sobre si mesmo ou em torno de um ponto fixo, tendo como consequência obstrução e perturbações isquémicas graves por compromisso circulatório local.

A ecografia abdominal na sua variedade de doppler poderá evidenciar dados indirectos quanto à origem e direcção dos vasos mesentéricos, nomeadamente o sinal doppler em turbilhão (Whirlwind sign), típico da má-rotação intestinal.

FIGURA 6. Caso de obstrução intestinal alta. Vómitos alimentares alternando com períodos de boa tolerância alimentar. Imagem radiográfica tóraco-abdominal com contraste introduzido no estômago. (UCIN-HDE)*
A – Aparente posição normal da 1ª e 2ª porção do duodeno com interrupção do contraste a jusante da 2ª porção, sugerindo possível obstrução ao nível do ângulo de Treitz; B – Verificação de passagem livre do contraste cerca de 1 hora após radiografia A.

FIGURA 7. Volvo do intestino médio: sinais de distensão de ansas (radiografia abdominal simples. (UCIN-HDE)**

Tratamento

A chave do sucesso terapêutico é o elevado índice de suspeita diagnóstica para uma decisão rápida quanto à correcção cirúrgica, obrigatória. Com efeito, o atraso na obtenção do diagnóstico e na decisão terapêutica pode acarretar a perda extensa de segmentos intestinais por necrose isquémica; por outro lado, a correcção cirúrgica da situação contribui para a prevenção do volvo do intestino médio.

Como medidas gerais pré-operatórias são referidas a manutenção do equilíbrio hemodinâmico, hidro-electrolítico e ácido base, assim como a aplicação de sonda gástrica para descompressão do estômago e da primeira porção do duodeno dilatada.

A técnica cirúrgica utilizada (operação de Ladd-Gross cuja descrição ultrapassa o âmbito deste livro), essencialmente permite desfazer a rotação intestinal e libertar as “bandas de Ladd” e aderências peritoneais em geral.

Nos casos de volvo do intestino médio em que se pode verificar compromisso isquémico, muitas vezes irreversível, do território irrigado pela artéria mesentérica superior, o procedimento cirúrgico descrito, destina-se também a realizar a desrotação mesentérica e a permitir a perfusão terminal das ansas intestinais.

Prognóstico

O seguimento destes doentes, nos casos não complicados, não implica qualquer cuidado especial, quer sob o ponto de vista nutricional, quer sob o ponto de vista do desenvolvimento, uma vez que a cirurgia se pode considerar, em princípio, curativa. Contudo, em cerca de 10% dos casos, poderá verificar-se manutenção da sintomatologia obstrutiva no período pós-operatório imediato ou mais tardiamente; tal sintomatologia pode explicar-se por recorrência de torção parcial mesentérica, por bridas ou aderências, ou por dismotilidade intestinal.

Em cerca de 15% dos casos poderá surgir perda intestinal extensa por necrose isquémica secundária a volvo do intestino médio, conduzindo ao quadro de síndroma de intestino curto.

Nos casos de perda intestinal por isquémia (mais ou menos extensa), o prognóstico depende igualmente da qualidade funcional dos segmentos intestinais remanescentes e do respectivo capital de regeneração intestinal.

A mortalidade associada a esta anomalia varia entre 3% e 9% estando invariavelmente associada à ocorrência de volvo do intestino médio, à prematuridade e à extensão da necrose intestinal.

Invaginação intestinal

Definição

A invaginação intestinal é uma situação clínica resultante da penetração de um segmento proximal do intestino (intussusceptum) – como um telescópio ou à maneira de um dedo de luva do avesso – noutro segmento do intestino mais distal, que o recebe (intussuscepiens). (Figura 8)

FIGURA 8. Representação esquemática do mecanismo da invaginação intestinal. (consultar texto)

Aspectos epidemiológicos

Este problema clínico surge geralmente entre os 4 e os 10 meses, com um “pico” aos 7 meses, e limites entre os 3 meses e os 3 anos. O sexo masculino é cerca de 3 vezes mais afectado do que o feminino. O primum movens (ou “cabeça de invaginação”) desta mobilidade anómala do intestino poderá ser a hiperplasia linfóide (protusão para o lume do intestino das placas de Peyer, relacionada com infecção vírica), o que é demonstrado em cerca de 50% dos casos nalgumas séries.

Trata-se da causa mais frequente de obstrução intestinal no grupo etário atrás referido; a localização mais frequente é a íleo-ceco-cólica, o que é explicável pela maior riqueza de placas de Peyer nesta região do intestino.

No recém-nascido há que admitir possível duplicação intestinal como factor causal da invaginação (ver adiante). Na criança com mais de 3 anos é muito provável que haja certas lesões que sirvam de “cabeça“ da invaginação, tais como: divertículo de Meckel, apêndice ileocecal, pólipos, tumores carcinóides, lesões hemorrágicas da púrpura de Henoch-Schonlein, linfoma não Hodgkin, corpos estranhos, pâncreas ectópico ou mucosa gástrica ectópica. A incidência de lesões anatómicas que funcionam como “cabeça de invaginação” aumenta com a idade.

Manifestações clínicas

A anamnese, em geral, só por si, permite o diagnóstico. Na sua forma típica, no lactente, em plena saúde verifica-se início de um episódio de cólicas abdominais intensas e mal-estar, (traduzido por episódios de “dobrar” os membros inferiores sobre o abdómen de forma aflitiva), por vezes associado a vómitos, palidez e sudação intensa. O episódio, com a duração de alguns minutos, é intercalado por pausas de acalmia em que o bébé fica apático ou letárgico. Ao cabo de alguns minutos da referida acalmia, a aparência de dor e os restantes sinais voltam de novo e de modo súbito. Por vezes há emissão de fezes normais a que se segue, numa fase mais avançada, a emissão de fezes tingidas de sangue e, mais tarde, já só coágulos mucóides de cor vermelha escura exibindo o típico aspecto de “geleia de framboesa“.

O passo mais importante do exame objectivo é a palpação abdominal durante a qual é possível, na forma mais habitual – a invaginação íleo-cecocólica – encontrar a fossa ilíaca direita “vazia” (pois o cego subiu) e palpar massa em “chouriço” no hipocôndrio direito (correspondente à zona invaginada). Nas formas mais avançadas é possível que o intestino invaginado surja exteriorizado pelo ânus. Procedendo-se ao toque rectal torna-se possível palpar a cabeça da invaginação com o dedo explorador, o qual sairá “sujo” de sangue.

Existe uma forma especial de invaginação (invaginação intestinal pós-operatória, na sua grande maioria íleo-ileal) que pode surgir na sequência de intervenções cirúrgicas abdominais muito invasivas: manifesta-se cerca de 2 semanas depois da intervenção cirúrgica, essencialmente por distensão abdominal, vómitos biliosos e sinais de estase gástrica crescente.

Exames complementares

O exame de eleição para o diagnóstico é a ecografia; em caso de invaginação intestinal, a mesma revela sinais de duplo contorno do intestino invaginado que se traduz na clássica “imagem em alvo” (Figura 2 do Capítulo sobre Imagiologia na Parte II). Nalguns centros é utilizada a ecografia de modo contínuo durante um período de 24 horas.

A radiografia simples do abdómen mostra sinais de oclusão intestinal e o clister opaco permite a localização. Este último (sempre indicado excepto nos casos em que se verifiquem sinais de irritação peritoneal) poderá igualmente ter efeito terapêutico. De facto, se se elevar o frasco de contraste baritado com que se realiza o clister até um máximo de 70 cm acima do plano do doente em decúbito, poderá assistir-se à resolução do problema: desinvaginação causada pela pressão hidrostática da coluna de bário.

Tratamento

Perante uma suspeita de invaginação intestinal, a primeira atitude deve ser a introdução de tubo nasogástrico para aspiração e o estabelecimento de linha endovenosa de fluidoterapia para correcção da eventual desidratação relacionada com perdas por vómitos e para o terceiro espaço.

A ecografia poderá ser realizada antes de corrigido o desequilíbrio hidroelectrolítico.

Como foi antes referido, o clister opaco é, muitas vezes, terapêutico. Este procedimento deverá ser realizado com a presença do cirurgião; a eficácia do mesmo (desinvaginação) pode ser comprovada pela verificação do refluxo do contraste do cego para o íleo terminal, através da válvula ileocecal. Refira-se, no entanto, que este critério não é obrigatório, pois em cerca de 1/3 dos indivíduos a válvula ileocecal é continente.

Uma boa alternativa ao clister opaco convencional será a desinvaginação pneumática (introdução de ar sob pressão controlada com um esfigmomanómetro, em alternativa ao contraste baritado.

A intervenção cirúrgica está indicada quando se verificar:

  • Sintomatologia sugestiva de irritação peritoneal;
  • Obstrução intestinal;
  • Falência do clister opaco ou pneumático;
  • Recorrência de invaginação (a partir da terceira crise após 2 desinvaginações eficazes).

Durante a intervenção cirúrgica procede-se à desinvaginação manual por expressão cautelosa da ansa invaginada (e não por tracção que pode levar à ruptura), à ileocecopexia quando indicada, e à ressecção de segmento intestinal em caso de perfuração.

Quistos enterogénicos (Duplicação intestinal)

Definição e importância do problema

A chamada duplicação intestinal é uma anomalia tumoral quística ou tubular que faz parte, sob o ponto de vista da etiopatogénese, dum defeito mais vasto, com localização variável, desde a boca ao ânus (duplicação do tracto gastrintestinal); o local mais frequente de aparecimento da duplicação é o intestino delgado, principalmente o íleo.

Em exames necrópsicos a frequência apurada é cerca de 1/5.000.

Etiopatogénese

Segundo a teoria mais consensual sobre a etiopatogénese da duplicação intestinal, este defeito forma-se do seguinte modo: até cerca da 7ª semana de gestação o intestino tem forma cilíndrica maciça o que se deve à proliferação epitelial; a partir desta fase, ocorre um processo de vacuolização central (vacúolos interligando-se e comunicando) que leva a que o referido “cilindro maciço” se transforme em “tubo”; quando alguns vacúolos não se fundem, formam-se estruturas quísticas adjacentes ou duplicação “do tubo”, ocorrendo, por vezes, em mais de um segmento.

Reportando-nos à localização intestinal, o referido quisto localiza-se no respectivo bordo paramesentérico, compartilhando a irrigação sanguínea e evidenciando o mesmo epitélio do intestino adjacente. Em cerca de 30% dos casos o epitélio é de tipo gástrico, do que resulta a possibilidade de acumulação de secreção gástrica intraquística por deficiente drenagem, com inflamação, hemorragia e/ou perfuração consequentes.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na maioria dos casos, as manifestações surgem nos primeiros dois anos de vida, dependendo os sinais e sintomas da localização e das dimensões do defeito estrutural; de salientar que as duplicações de pequenas dimensões poderão ser assintomáticas.

As anomalias mais frequentemente associadas são: vertebrais, má rotação intestinal e nefrourológicas.

A tríade clássica (melena, hemorragia e massa abdominal móvel) surge nalgumas séries com uma frequência ~50%. Nos casos de duplicações jejuno-ileais os quadros inaugurais (de oclusão) poderão ser invaginação intestinal ou volvo.

No âmbito da vigilância pré-natal a ecografia pode identificar a anomalia.

Sempre que se suspeita de duplicação intestinal estão indicados exames imagiológicos. A ecografia constitui o exame de primeira linha; sempre que esta não é esclarecedora, deve proceder-se a tomografia axial computadorizada.

Nos casos de hemorragia digestiva, a cintilografia poderá ter utilidade para pesquisa de mucosa gástrica ectópica.

Cabe referir, a propósito, que na investigação de duplicações com outra localização estão indicados: estudo do trânsito gastrintestinal com contraste; endoscopia digestiva alta (estômago e duodeno); e clister opaco (cólon e recto).

Tratamento

O tratamento das duplicações do tracto gatrintestinal é cirúrgico, procedendo-se a ressecção completa pelo risco de desenvolvimento ulterior de neoplasia.

CÓLON E RECTO

A atrésia do cólon, mais frequente no cólon transverso, é muito rara, correspondendo a cerca de 6% das atrésias intestinais em geral. As atrésias múltiplas no cólon são também extremamente raras.

Doença de Hirschprung (megacólon congénito)

(consultar Parte sobre Gastrenterologia e Hepatologia)

Anomalias ano-rectais

(ver adiante)

Notas importantes:

    1. É impossível distinguir, com base apenas na radiografia abdominal simples, obstrução do intestino delgado ou do cólon.
    2. Nas situações duvidosas está indicado o estudo com contraste hidrossolúvel (por ex. gastrografina e acetilcisteína) para tal distinção.
    3. A visualização do cólon através do contraste evidenciando diminuição do diâmetro/largura (microcólon) sugere desuso do mesmo como resultado de obstrução a montante da válvula ileocecal. (Figura anexa – cortesia dos Drs. Paulo Casella e João Henriques).

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HÉRNIAS

Definição e importância do problema

A hérnia define-se como procidência ou saída de uma víscera (ou de uma parte de víscera) para fora dos seus limites normais, através das paredes enfraquecidas da cavidade que a contém, ou por um orifício (natural, acidental ou patológico). Este conceito abrange as hérnias externas (de que as mais frequentes são as verificadas através da parede abdominal, traduzindo-se em tumefacções redutíveis nas regiões: abdominal, abdominal-inguinal e escrotal), e as hérnias internas (de que é exemplo a hérnia diafragmática).

Neste capítulo é feita referência às hérnias da parede abdominal.

HÉRNIA INGUINAL

Importância do problema

A hérnia inguinal é uma das condições mais frequentemente observadas na idade pediátrica (ver alínea seguinte). Quando não devidamente diagnosticada e tratada, pode pôr em risco a vida ou resultar na perda de um órgão (como o ovário ou o testículo em caso de estrangulamento). Na população pediátrica ocorre em cerca de 3-5% dos indivíduos, sendo a proporção superior (10-30%) em crianças com antecedentes de prematuridade. É ~6-10 vezes mais frequente no sexo masculino, e 2 vezes mais frequente do lado direito, devido à descida testicular mais tardia deste lado. Cerca de metade dos casos surge no primeiro ano de vida, na sua maioria antes dos 6 meses.

A incidência de hérnias bilaterais é mais elevada no sexo feminino (~20-30%). Em cerca de 10% dos casos há antecedentes familiares.

Aspectos embriológicos e etiopatogénese

O testículo, no seu trajecto de descida do abdómen para a bolsa escrotal, através do canal inguinal, “empurra“ à sua frente um divertículo peritoneal – o canal peritoneovaginal (CPV) ou processus vaginalis – que se transformará na camada ou túnica vaginal do testículo. Na fase em que o testículo atinge o fundo da bolsa (por volta do 7º a 8º mês de gestação), o referido canal sofre involução (isto é, fica obliterado), deixando de haver comunicação entre o escroto e a cavidade abdominal. Quando se verifica anomalia desta involução, o CPV persiste (fica patente), criando-se condições para a constituição de hérnia inguinal.

  1. → Surge hérnia inguinal quando conteúdo intrabdominal se “escapa” da cavidade abdominal “entrando” na região inguinal através do CPV patente (sendo que nem em todos os doentes com CPV patente se desenvolve hérnia inguinal). Dependendo da extensão ou comprimento do CPV patente, assim a hérnia poderá ficar confinada à região inguinal, ou continuar a descer até atingir o escroto:
      • A obliteração distal do CPV (em torno do testículo), mantendo-se patente a porção proximal do mesmo, resulta em hérnia inguinal indirecta clássica (ou funicular), com protusão no canal inguinal (Figura 1-A);
      • A falência completa da obliteração do CPV, mantendo-se patente o CPV em toda a sua extensão (proximal+ distal), predispõe à formação da chamada hérnia inguinal completa, caracterizada por protusão do conteúdo intrabdominal no canal inguinal, podendo atingir o escroto (Figura 1-B).

As situações tipificadas nas Figuras 1-A e 1-B correspondem à maioria dos casos de hérnias inguinais (indirectas) no lactente e criança (~99%). Outros tipos de tumefacções redutíveis visíveis exteriormente ao nível da região inguinal incluem:

      • As hérnias inguinais directas (~0,5-1%), fazendo procidência ao nível, ou um pouco para baixo e para dentro do orifício superficial do canal inguinal, parecendo de localização superior à prega inguinal; resultam de defeito muscular ou de fraqueza do pavimento do canal inguinal; são geralmente consideradas adquiridas, podendo surgir como sequela de anterior correcção de hérnia inguinal indirecta;
      • As hérnias femorais ou crurais (< 0,5%) correspondendo a procidência ao nível da extremidade superior e interna do triângulo de Scarpa, mais lateralmente que as hérnias inguinais (consultar Glossário), e parecendo de localização inferior à prega inguinal; são mais frequentes no sexo feminino.
  1. → Se no CPV existir fluido seroso, gera-se o hidrocelo (ou a hidrocele), definido como acumulação de líquido seroso na túnica vaginal dos testículos ou no tecido que envolve o cordão espermático; se a tumefacção existir somente no escroto, constitui-se o hidrocelo escrotal; se ao longo do cordão espermático, a tumefacção verifica-se no próprio cordão espermático, constitui-se o hidrocelo do cordão espermático (também chamado quisto do cordão, correspondendo à situação de reabsorção incompleta do CPV); se se estender do escroto, através do canal inguinal até ao abdómen, constitui- se o hidrocelo abdominal-escrotal.
    O hidrocelo designa-se comunicante se o saco contendo fluido variar de dimensões (“enchendo-se ou esvaziando-se” no sentido cavidade peritoneal-escroto ou vice-versa). (Figuras 2-A, 2-B e 2-C)
    Em crianças mais velhas, determinadas condições como traumatismos, inflamação ou tumores do testículo podem originar hidrocelos secundários (adquiridos).

FIGURA 1. Representação esquemática de: A – Hérnia inguinal indirecta clássica (tipo funicular); B – Hérnia inguinal indirecta completa.

FIGURA 2. A – Situação normal: obliteração completa do CPV; B – Hidrocele devido a CPV patente; C – Hidrocele do cordão (ou quisto do cordão).

A incidência de hérnias é mais elevada em presença de determinados factores predisponentes como os sintetizados no Quadro 1. Nas situações de fibrose quística e de problemas urogenitais estão em causa alterações da embriogénese de estruturas vizinhas do abdómen e canal inguinal, como as derivadas dos canais de Wolff, entre outras.

QUADRO 1 – Factores predisponentes de hérnia.

Doença respiratória crónica
(fibrose quística)
Fluido intraperitoneal aumentado
(ascite, derivação ventriculoperitoneal, cateter de diálise peritoneal)
Pressão intrabdominal aumentada
(pós-correcção cirúrgica de defeitos da parede abdominal, ascite grave, peritonite meconial)
Doenças do tecido conectivo
(síndromas de Ehlers-Danlos, de Marfan, de Hunter- Hurler, etc.)
Prematuridade
Factores urogenitais
(hipospadia, epispadia, extrofia da bexiga, ambiguidade genital, criptorquidia)

Manifestações clínicas e diagnóstico

A hérnia inguinal traduz-se por aumento de volume intermitente na região inguinal, aumento que se pode estender ao escroto ou grande lábio em relação com o choro, tosse ou esforço correspondendo a aumento transitório da pressão intrabdominal. (Figura 2)

O diagnóstico de certeza somente pode ser obtido quando se palpa e se tenta reduzir a referida tumefacção. A criança deve ser examinada de pé, se necessário a encher um balão (o que tipifica a chamada manobra de Valsalva), ou a saltar. O exame deve também ser feito com a criança em decúbito dorsal com os membros superiores estendidos sobre a cabeça, e fazendo pressão sobre a zona púbica. No rapaz, as regiões inguinais devem ser palpadas após se verificar que os testículos estão nas bolsas. Nos recém-nascidos e lactentes o diagnóstico é mais difícil.

No âmbito do exame clínico de qualquer tumefacção redutível da região inguinoscrotal importa recordar algumas manobras semiológicas simples na perspectiva do diagnóstico diferencial: palpação do cordão espermático e palpação da região inguinal combinada com a do escroto.

Palpação do cordão espermático

Realiza-se apertando a raiz do escroto entre o indicador e polegar, o que torna fácil de apreciar o cordão espermático pela sua dureza relativa; nos casos de torção do testículo, a pressão exercida sobre o mesmo torna-se muito dolorosa. No caso de hérnia inguinal, uma vez reduzida, deve proceder-se à palpação cuidadosa e comparativa do cordão espermático de ambos os lados, o que permite comprovar o seu aumento de espessura no lado afectado pela presença do saco herniário; e igualmente, quando se tem experiência, uma sensação conhecida como sinal da ”luva de seda”, ou das várias camadas do saco herniário. Se a alteração for bilateral, pode ser mais duvidosa a interpretação dos achados.

Palpação da região inguinal e escroto

Palpando a região inguinal e o escroto, podem ser identificadas a hérnia escrotal e o quisto do cordão. A primeira pode reduzir-se e produzir ruídos hidroaéreos característicos (gorgolejo) na tentativa da mesma redução; o segundo é de consistência dura, mais que o hidrocelo, de superfície lisa, de forma invariável e não redutível. Quanto à palpação do anel inguinal externo, com importância para possíveis hérnias inguinais latentes, a mesma tem pouco valor no lactente pela abundância do panículo adiposo.

Na criança maior utiliza-se a seguinte técnica: o dedo indicador ou o mínimo, invaginando por empurramento o escroto no sentido escroto → anel inguinal, atinge e atravessa o referido anel inguinal na ausência de hérnia; havendo hérnia que, entretanto, foi reduzida, a manobra de esforço do doente permite que a extremidade do dedo sinta o fundo de saco da hérnia em movimento no sentido anel inguinal → escroto.

Perante tumefacção redutível na região inguinal, esta manobra também permite distinguir hérnia inguinal de hérnia femoral; se o canal inguinal estiver “vazio”, tratar-se-á de hérnia femoral e não de inguinal; por outro lado, a hérnia femoral localiza-se mais externamente (mais lateral) que as hérnias inguinais indirecta e directa (mais mediais). (ver atrás)

Para distinguir hérnia inguinoscrotal (caso em que o intestino chega ao escroto) de hidrocelo ou de quisto do cordão, faz-se a expressão da bolsa aumentada de volume; se a mesma se esvaziar tratar-se-á de hérnia. Caso tal não suceda o diagnóstico será hidrocelo ou quisto do cordão, desde que não haja encarceramento herniário (ver adiante). A transiluminação contribui também para esta diferenciação (difusão positiva em caso de hidrocelo). A ecografia poderá ser esclarecedora nos casos duvidosos.

A hérnia inguinal pode sofrer processos de encarceração (hérnia encarcerada), e de estrangulamento (hérnia estrangulada). O conteúdo da hérnia pode ser intestino delgado, apêndice, epíploo, cólon, ou raramente, divertículo de Meckel; no sexo feminino tal conteúdo poderá incluir também ovário ou trompas.

A encarceração consiste na impossibilidade de redução da hérnia para a cavidade abdominal (12-17% dos casos, sendo que ~ 2/3 das mesmas surgem no primeiro ano de vida). No estrangulamento, para além da encarceração, existe forte constrição ao nível da passagem pelo anel inguinal, o que comporta risco elevado de isquémia e gangrena das estruturas herniadas (sendo o risco tanto maior quanto menor o diâmetro do anel). Esta complicação, causa frequente de obstrução intestinal no lactente, manifesta-se por irredutibilidade da massa ou tumefacção na virilha ou escroto, edema e eritema da pele suprajacente, febre, irritabilidade, e choro relacionável com cólica abdominal. Os vómitos podem ser sinal indiciador de obstrução intestinal.

O diagnóstico diferencial de hérnia com adenopatias inguinais é fácil (pela irredutibilidade destas e diferente consistência) na ausência de encarceração herniária.

Tratamento

O tratamento é sempre cirúrgico, pois não se verifica resolução espontânea. Idealmente, a intervenção deverá ser electiva nas hérnias redutíveis (hérnia diagnosticada = hérnia a operar). Exceptuam-se os casos de prematuridade com doença pulmonar crónica grave cuja data de intervenção será ponderada tendo em conta o risco de estrangulamento em confronto com o risco anestésico. Em casos especiais (quando o adiamento comporta riscos acrescidos), poderá estar indicada anestesia local, a ponderar em função do contexto clínico e idade. A intervenção é simples, consistindo na laqueação alta do CPV, por vezes com reforço da parede posterior do canal; poderá ser feita em regime ambulatório.

Actualmente, em cada vez maior número de centros cirúrgicos, é utilizada a técnica minimamente invasiva, por via laparoscópica.

Notas importantes:

    1. O hidrocelo poderá evoluir espontaneamente para a regressão até aos 6-12 meses. Quando tal não acontecer, deve suspeitar-se de comunicação com a cavidade abdominal – hidrocelo comunicante; a estratégia de terapêutica cirúrgica é igual à aplicável à hérnia inguinal. No que respeita à data da intervenção, sugere-se a consulta do último capítulo desta Parte do livro.
    2. Situações de hérnia irredutível acompanhadas das manifestações atrás descritas deverão ser encaminhadas de imediato para centro cirúrgico, dadas as possibilidades de encarceração ou estrangulamento. A hérnia estrangulada constitui uma emergência cirúrgica; a hérnia encarcerada deverá ser reduzida ou operada, no máximo, até 24 horas.

HÉRNIA UMBILICAL

Importância do problema

Esta modalidade de hérnia surge quando o anel umbilical não se encerra após a separação do cordão umbilical. Verifica-se maior proporção de casos em crianças com antecedentes de prematuridade e/ou baixo peso de nascimento, síndroma de Down, síndroma de Beckwith-Wiedemann e hipotiroidismo congénito.

Manifestações clínicas

A hérnia umbilical manifesta-se por procidência da região umbilical, coincidindo com aumento da pressão abdominal. Esta modalidade raramente encarcera, verificando-se evolução natural para o encerramento espontâneo até cerca dos três anos de idade.

Tratamento

O tratamento cirúrgico está indicado nos casos de persistência para além dos 4 anos, tendo em conta a tendência para encerramento espontâneo.

HÉRNIA DA LINHA BRANCA

As hérnias da linha branca correspondem a tumefacções redutíveis por protusão de gordura pré-peritoneal ou de saco peritoneal através de fibras de entrecruzamento da linha branca. Conforme a localização, consideram-se as modalidades epigástrica, justa-umbilical e sub-umbilical.

Como exemplo será abordada a hérnia epigástrica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A hérnia epigástrica manifesta-se por uma ou mais tumefacções redutíveis (anteriormente descritas) na linha média em qualquer localização no trajecto entre o apêndice xifoideu e o umbigo, por vezes acompanhadas de dor. O estrangulamento é raro.

Este problema clínico não deve ser confundido com a chamada diastase dos rectos abdominais, situação considerada fisiológica nos lactentes (tumefacção rectilínea em toda a região da linha branca, mais notória quando a criança contrai o abdómen, com regressão espontânea com a idade).

Tratamento

O tratamento das hérnias epigástricas é cirúrgico electivo, sendo a idade de intervenção ponderada em função de eventuais queixas e da idade.

GLOSSÁRIO

Triângulo de Scarpa → Espaço da região inguinocrural, na face anterior e superior da coxa, limitado em cima pela arcada femoral, do lado externo pela saliência do músculo costureiro, e do lado interno pela saliência do músculo médio adutor da coxa. O triângulo de Scarpa é atravessado pelos vasos femorais, nervo crural e seus ramos.

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GASTROSQUISE E OUTROS DEFEITOS DA PAREDE ABDOMINAL

GASTROSQUISE

Definição e importância do problema

A gastrosquise é uma anomalia congénita da parede anterior do abdómen caracterizada por:

  • Ausência do encerramento da parede abdominal atingindo todas as camadas (fáscia-músculo-pele), na maioria das vezes à direita da inserção (normal) do cordão umbilical; e
  • Exteriorização, por esse defeito, da parede (que varia entre 0,5 e 3 cm), de conteúdo intrabdominal.

O conteúdo intrabdominal é constituído por vísceras ocas como estômago ou ansas intestinais, não cobertas por peritoneu ou membrana amniótica (ao contrário da onfalocele).

A incidência deste defeito é cerca de 1/5.000 a 1/10.000 nascimentos não se verificando predomínio de sexos. Actualmente, de acordo com estudos de várias séries internacionais, existe uma tendência de aumento progressivo da frequência desta anomalia; as razões deste facto são desconhecidas.

Etiopatogénese e anomalias associadas

A gastrosquise (surgindo, como regra, isoladamente, ao contrário da onfalocele) é de etiologia desconhecida. De acordo com alguns estudos epidemiológicos, especula-se sobre a acção teratogénica de certas substâncias, designadamente da cocaína.

Igualmente se tem demonstrado o efeito nocivo do líquido amniótico em contacto directo com as ansas intestinais, o que é relacionado com a acção de citocinas e mediadores pró-inflamatórios como a IL-6 e IL-8. Tal efeito, intensificado proporcionalmente à duração da gestação, e mais agressivo se o líquido amniótico contiver mecónio eliminado in utero, tem sido demonstrado ao nível do plexo nervoso mientérico e das células de Cajal.

A alteração da integridade da parede abdominal poderá ser decorrente de uma regressão prematura de uma das duas artérias onfalomesentéricas. Esta regressão vascular poderá ser responsável por alterações isquémicas da parede abdominal contribuindo para o defeito morfológico fáscio-músculo-cutâneo. Alguns investigadores não distinguem a patogénese da gastrosquise da da onfalocele. Assim, a gastrosquise poderia ser originada pela ruptura do saco peritoneal que recobre as ansas intestinais.

Após o nascimento verifica-se que as ansas intestinais, pelo contacto prolongado com o líquido amniótico, estão aderentes entre si, com consistência superior ao habitual, o que é explicável pela existência de exsudado gelatinoso que as recobre como pequena “carapaça” ou peel. Este fenómeno pode originar inflamação no peritoneu (peritonite meconial), edema da parede intestinal, formação duma película de fibrose assim como compressão das artérias mesentéricas e das fibras nervosas entéricas, sendo que o próprio orifício para-umbilical poderá também ter efeito compressivo sobre os vasos; como consequências, poderão surgir:

  • Ulterior desenvolvimento de volvo, estenose, atrésia e encurtamento intestinais por necrose isquémica extensa;
  • Dismotilidade intestinal;
  • Dificuldade na reintrodução das ansas na cavidade abdominal.

Torna-se, assim, fácil compreender as anomalias anatómicas e funcionais, sobretudo do foro digestivo que poderão acompanhar a gastrosquise, numa proporção ~10%. A má-rotação intestinal está, por definição, sempre presente na gastrosquise.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O diagnóstico pré-natal da gastrosquise pode ser obtido nos exames ecográficos realizados após a 12-14ª semana de gestação. A imagem de exteriorização amniótica de ansas intestinais por meio de um defeito para-umbilical, não contidas num saco peritoneal é muito sugestiva; de referir que a probabilidade de diagnóstico ecográfico pré-natal de defeitos da parede abdominal, designadamente no que se refere à gastrosquise, oscila entre 57 e 95%. Em função do contexto clínico, poderá estar indicado estudo citogenético pré-natal no líquido amniótico e/ou no sangue do cordão. (Figura 1)

O soro materno em situações de gastrosquise no período pré-natal evidencia em 100% dos casos valores séricos elevados de alfa-fetoproteína. A acetil colinesterase no líquido amniótico tem também valores elevados, ao contrário do que acontece na onfalocele.

A evidência ecográfica pré-natal de gastrosquise implica necessariamente a detecção doutras anomalias acompanhantes, nomeadamente cardíacas, embora estas sejam raras, ao contrário da onfalocele.

FIGURA 1. Gastrosquise (vísceras exteriorizadas sem saco) (Arq. JMVA, 1976).

O estudo ecográfico deverá incidir especialmente sobre a caracterização das ansas intestinais no que respeita ao espessamento da parede e permeabilidade do lume, aspectos que têm valor prognóstico quanto à evolução a curto, médio e longo prazo. Deverá igualmente ser realizado por amniocentese o estudo citogenético, designadamente para detecção de cromossomopatias associadas e/ou identificação de loci patológicos específicos.

Não está provado que o parto programado por via alta tenha vantagens relativamente ao parto vaginal.

No RN o diagnóstico é óbvio; contudo, deve inspeccionar-se cuidadosamente o orifício umbilical, dada a eventualidade de diagnóstico diferencial com onfalocele rota in utero (e no pressuposto de não se ter realizado ecografia pré-natal).

Sob o ponto de vista da prática clínica, a gastrosquise é habitualmente classificada utilizando uma escala de gravidade e de estratificação de risco (escala de Le Fort pontuando situações de I a IV). Com efeito, esta escala não se relaciona tanto com o diâmetro do orifício, mas com o estado de vitalidade e função global das ansas intestinais no que respeita a serosite, edema da parede, presença de atrésia e encurtamento intestinal por necrose extensa de ansa. Estes aspectos patológicos estão associados à exposição amniótica e urinária e às lesões isquémicas do intestino que podem ser originadas pela compressão vascular – mesentérica do orifício para-umbilical. (ver atrás)

A detecção de anomalias associadas deverá ser ponderada em função do contexto clínico.

Tratamento

Quanto à gastrosquise aplicam-se os mesmos princípios gerais, designadamente quanto a local do parto e cuidados pré-operatórios. Dados os efeitos lesivos do líquido amniótico e do mecónio eliminado in utero, em contacto permanente com as ansas fetais, efeitos que aumentarão com a idade gestacional, discute-se hoje sobre a decisão de antecipar o parto (segundo alguns para as 36-37 semanas) tendo em vista minorar os referidos efeitos atrás descritos.

No pós-parto imediato, a criança deve ser (também) colocada em decúbito lateral para evitar a angulação dos vasos do mesentério.

Na UCIN do Hospital de Dona Estefânia, o procedimento é o seguinte: as vísceras exteriorizadas são envolvidas com compressas esterilizadas molhadas em soro fisiológico aquecido, envolvendo-se depois aquelas num saco de plástico esterilizado ou em celofane esterilizado. Não se aplica qualquer desinfectante tópico.

O objectivo do tratamento cirúrgico da gastrosquise é a reintrodução das ansas intestinais e o encerramento primário da parede abdominal utilizando diversas técnicas que ultrapassam o âmbito deste livro.

Nos casos em que não é possível realizar o encerramento primário, pela presença de gastrosquise muito volumosa ou pelo endurecimento seroso das ansas intestinais, deverá ser proposta a contenção das ansas intestinais por meio de um saco de polímero de silastic, suturado à orla do orifício para-umbilical. Este método promove a restituição das ansas para a cavidade peritoneal por fases, com encerramento definitivo diferido.

O encerramento forçado da parede não deverá ser tentado pelos riscos apontados a propósito da onfalocele. Como particularidade relativamente à gastrosquise, cabe salientar que o encerramento sob extrema tensão, com ansas intestinais de parede edemaciada e pouco dúctil, poderá originar deiscência da sutura abdominal ou compromisso isquémico da ansa intestinal subjacente por compressão mesentérica.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias são decorrentes de aumento de pressão intrabdominal associadas ao encerramento primário forçado (já descritas anteriormente), ou decorrentes de complicações sépticas locais associadas à utilização de materiais heterólogos para o encerramento primário, ou secundário por fases.

É frequente verificar-se no período pós-operatório, face às alterações mecânicas, bioquímicas e neuroentéricas das ansas intestinais, um período de adaptação intestinal longo e difícil aos nutrientes por via entérica. A dependência da nutrição parentérica poderá ser prolongada, nomeadamente nos casos em que coexiste atrésia segmentar ou necrose isquémica extensa, conducente a encurtamento intestinal, com desenvolvimento de síndroma de intestino curto.

Devido à serosite parietal, poderão ocorrer com alguma frequência, quadros suboclusivos por aderências ou bridas. Estas manifestações, quando não têm resolução clínica conservadora, podem implicar terapêutica cirúrgica para excisão de bridas e aderências.

Prognóstico

O prognóstico depende fundamentalmente da existência de lesões e dismotilidade intestinais relacionadas com a eliminação de mecónio in utero, e de complicações graves de tipo mecânico, metabólico e neuroentérico. Nesta perspectiva realçam-se a síndroma de intestino curto e as complicações associadas ao cateterismo central de longa duração. A sobrevivência é actualmente cerca de 95%.

A presença de defeitos gastrintestinais associados, a prematuridade e a necessidade de introdução mais tardia da alimentação entérica por disfunção intestinal constituem factores de risco e de agravamento do prognóstico.

OUTROS DEFEITOS DA PAREDE ABDOMINAL

Aplasia da musculatura abdominal (Síndroma de Eagle Barrett)

Faz-se uma referência breve a esta síndroma rara (com uma incidência de cerca de 1/40.000 recém-nascidos), também chamada síndroma “prune belly” (aspecto de “barriga” em passa de ameixa ou de abrunho).

Trata-se da associação de aplasia da musculatura abdominal (determinando que o abdómen seja flácido e alargado para os lados, e a respectiva pele fique “engelhada”, com pregas ou ondulada), distopia testicular, e anomalias do tracto urinário relacionáveis com obstrução da uretra no período fetal: megabexiga, mega uréter, hidronefrose e graus diversos de displasia renal. Oligoâmnio e hipoplasia pulmonar constituem complicações frequentes no período perinatal. As costelas inferiores podem fazer saliência para fora, comprometendo a dinâmica respiratória, o que predispõe a infecções. As anomalias do úraco podem também fazer parte desta síndroma.

Em cerca de 10% dos casos verifica-se associação, também, a defeitos cardíacos e em 50% a anomalias do sistema músculo-esquelético. Na maioria dos casos (mais de 95%) os doentes são do sexo masculino.

Uma vez diagnosticada obstrução do uréter ou uretra, estão indicados procedimentos de drenagem emergente (vesicostomia ou pielostomia) para preservação da função renal, os quais são mantidos até à idade da intervenção cirúrgica reconstrutiva. O prognóstico depende do grau de hipoplasia pulmonar e de displasia renal. Em casos seleccionados poderá estar indicada transplantação renal.

Ectopia cardíaca (Ectopia cordis)

Esta anomalia rara traduz-se por “tumor” pulsátil situado entre o apêndice xifoideu, que é curto, e o umbigo. No sentido anatomofisiológico, a saliência pulsátil é uma hérnia cujo saco é formado pelo pericárdio. Poderá haver associação a defeitos cardíacos septais.

Úraco patente

A esta situação clínica foi feita referência no capítulo sobre Alterações da Bexiga. Recorda-se, a propósito, que úraco é a parte superior da alantoideia que se dirige para o umbigo; no embrião humano transforma-se precocemente num cordão fibroso que se estende como ligamento da bexiga ao umbigo. Excepcionalmente, essa estrutura inicialmente canalicular não se transforma em estrutura fibrosa, permitindo que, através do umbigo, seja eliminada urina; é o úraco patente. Por vezes formam-se dilatações quísticas no seu trajecto; são os quistos do úraco.

O úraco patente pode estar associado a divertículos da bexiga.

    1. Fístula completa do canal vitelino
    2. Divertículo de Meckel com filum terminale (banda filamentosa) entre o íleo e o umbigo
    3. Divertículo de Meckel
    4. Filum terminale
    5. Quisto forrado por mucosa no trajecto do filum terminale
    6. Quisto de Roser (subumbilical intraparietal)
    7. Fístula incompleta do canal vitelino
    8. Pólipo umbilical (eversão de fístula incompleta)

FIGURA 2. Defeitos relacionados com remanescências do canal onfalomesentérico.

Canal onfalomesentérico (ou vitelino) vestigial

Os vestígios do canal onfalomesentérico (estrutura que liga, entre a 5ª e 7ª semana de vida intra-uterina, o saco vitelino ao intestino primitivo, podem ter expressão clínica diversa ao nível da parede abdominal (Figura 2): canal patente simile fístula ligando o umbigo ao intestino delgado; corda fibrosa ligando a face interna da região umbilical ao intestino, provocando depressão ou fosseta ao nível do umbigo por retracção deste; pequeno pólipo no umbigo (cuja superfície é constituída por mucosa intestinal) associado a corda fibrosa anteriormente descrita; pequeno quisto forrado internamente por mucosa intestinal no trajecto do cordão fibroso antes referido; divertículo intestinal cujo lume comunica com intestino delgado ao nível do bordo antimesentérico, a distância variável da válvula ileocecal (divertículo de Meckel).

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ONFALOCELE

Definição e importância do problema

A onfalocele (sinónimo de exônfalo) é uma anomalia congénita na linha média da parede anterior do abdómen, caracterizada pelo alargamento do orifício umbilical e pela protusão, através do próprio defeito da parede (anel umbilical), de conteúdo intrabdominal, recoberto por saco ou película peritoneal (peritoneu e membrana amniótica), sem pele suprajacente. O cordão umbilical insere-se neste saco. O conteúdo intrabdominal pode ser constituído por vísceras maciças como o fígado, ou ocas, como estômago ou ansas intestinais. (Figura 1)

Considerando o diâmetro do orifício, a onfalocele classifica-se de major, se aquele for superior a 4 cm, e minor, se for inferior a tal valor.

A sua incidência é cerca de 1/3.000 a 1/10.000 nascimentos, sem predomínio de sexos.

Tratando-se de um erro da morfogénese, a onfalocele, ao contrário da gastrosquise (Capítulo 337), está mais frequentemente associada a outras anomalias congénitas (sobretudo na modalidade major: ~ 30-40%).

FIGURA 1. Aspecto de onfalocele com saco intacto. (URN-HDE)

Anomalias associadas

Estas anomalias associadas são de natureza muito lata abrangendo, desde alterações do tubo neural, a anomalias crânio-faciais, a atrésia intestinal, defeitos do diafragma, cardíacos e do aparelho génito-urinário. A má-rotação intestinal está, por definição, sempre presente.

A verificação de alterações graves da morfogénese dos sómitos laterais abdominais, pode concorrer para o surgimento de dois tipos de defeitos: por um lado, a onfalocele epigástrica, associada a hérnia diafragmática anterior, fenda esternal e anomalia cardíaca; e, por outro, a onfalocele hipogástrica, associada a extrofia da bexiga ou a fissura vésico-intestinal ou extrofia da cloaca.

Citam-se a seguir outros tipos de defeitos que costumam acompanhar a onfalocele: anomalias cromossómicas como trissomias 13, 18 e 21, síndroma de Beckwith-Wiedemann (macroglossia, gigantismo, hipoglicémia por hiperinsulinismo, microcefalia e nevus flameus congénito), e pentalogia de Cantrell (ectopia cordis, hérnia diafragmática, defeitos cardíacos, defeitos esternais e pericárdicos).

Manifestações clínicas e diagnóstico

No período pré-natal o diagnóstico de onfalocele pode ser obtido nos exames ecográficos endovaginais a partir das 10 semanas de gestação (diagnóstico pré-natal). A imagem de ausência de encerramento do orifício umbilical e a presença de exteriorização de ansas intestinais contidas num saco peritoneal é muito sugestiva.

Nos casos de ruptura do saco, observa-se o conteúdo abdominal flutuando na cavidade amniótica, tal como se verifica na gastrosquise (ver adiante); no entanto, no caso da onfalocele rota, o fígado pode estar exposto. O saco pode romper-se também durante ou após o parto.

Em função do contexto clínico, poderá realizar-se amniocentese para realização de cariótipo. A análise do líquido amniótico, tratando-se de onfalocele evidenciará valores normais de acetilcolinesterase, ao contrário do que acontece em situações de gastrosquise em que existe elevação de tal marcador biológico. De referir também que em 90% dos casos de onfalocele existe elevação dos valores de alfa-fetoproteína no soro materno.

Após o nascimento, o diagnóstico é óbvio: procidência (de grandes dimensões na modalidade major), em forma de saco esferóide de parede brilhante e transparente permitindo visualizar as vísceras, salientando-se que a cavidade abdominal aparenta ser de menores dimensões por conter menos vísceras.

Pelas razões apontadas, a entidade onfalocele, uma vez confirmada no RN, obriga à detecção doutras anomalias acompanhantes, nomeadamente cardíacas, independentemente de eventual estudo com tal objectivo realizado durante a gestação. Deverá ser realizado igualmente estudo citogenético na tentativa de detectar anomalias cromossómicas, ou identificar loci patológicos específicos. Esta metodologia deve ser levada a cabo após o nascimento nos casos em que não se tenha procedido ao estudo citogenético pré-natal por análise do líquido amniótico ou do sangue fetal.

Tratamento

Tratando-se duma situação clínica com indicação cirúrgica, importará abordar em primeiro lugar um conjunto de cuidados da responsabilidade da equipa de pediatria neonatal/perinatal, iniciados no bloco de partos e continuados na UCIN. Pressupõe-se que a criança nasce no hospital/maternidade dotado de equipa cirúrgica e UCIN, e que o diagnóstico pré-natal da situação determinou o transporte in utero. O transporte do bloco de partos à UCIN deve ser realizado em incubadora de transporte.

Os referidos cuidados, em ambiente de assépsia, têm como objectivo essencial promover a estabilização pré-operatória, com especial realce para a prevenção da hipotermia e da hipovolémia, garantindo função ventilatória eficaz, e evitando a infecção. Dependendo da clínica e dos resultados dos exames laboratoriais, poderá haver indicação para ventilação mecânica, mais provavelmente nos casos major.

No pós-parto imediato, na criança colocada em decúbito lateral, são realizados os seguintes procedimentos:

  • Aplicação de sonda nasogástrica (para drenagem do conteúdo gastrintestinal, facilitando a função respiratória) e de sonda de enteróclise (para diminuir a distensão abdominal);
  • Venoclise para fluidoterapia (para garantir o equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base);
  • Detecção de anomalias associadas;
  • Prevenção e detecção de hipoglicémia e correcção da mesma, caso se verifique;
  • Antibioticoterapia profiláctica com ampicilina e gentamicina.

Quanto a cuidados locais:

  • Na onfalocele rota: aplicação de compressas esterilizadas molhadas em soro fisiológico aquecido, por sua vez envolvendo as vísceras com compressas num saco de plástico esterilizado, ou de celofane esterilizado; não é aplicado qualquer desinfectante tópico (procedimento igual ao aplicado à gastrosquise;
  • Na onfalocele intacta: os cuidados são os mesmos que se aplicam ao coto do cordão umbilical normal, caso esteja prevista a cirurgia a curto prazo; se a cirurgia correctiva não for possível a curto prazo, promove-se a epitelização do cordão herniado com aplicação de solução alcoólica iodada.

Sempre que possível, dá-se preferência à modalidade de tratamento cirúrgico designada por encerramento primário da parede abdominal (desde que o mesmo não provoque elevação excessiva da pressão intrabdominal), utilizando várias técnicas cuja descrição ultrapassa o âmbito deste livro.

Nos casos de saco roto, a intervenção é considerada urgente; e electiva (nas primeiras 24 horas, uma vez garantida a estabilização hemodinâmica) em situação inversa.

Se o defeito não permitir, pela sua dimensão, o encerramento primário, deverá ser realizada a contenção do conteúdo da onfalocele por meio de um saco de polímero de silastic (designado, na gíria cirúrgica como silo), promovendo o encerramento ulterior (diferido, por fases – técnica de Schuster). Também poderão ser utilizados agentes escarificantes ou pensos biológicos até haver possibilidade de realizar com segurança a reintrodução do referido conteúdo, e de corrigir o defeito da parede abdominal, sem tensão pronunciada.

O encerramento forçado da parede não deverá ser tentado pelo risco de compressão da veia cava inferior (diminuição do retorno venoso, do débito cardíaco, hipotensão), de compressão da emergência das artérias renais (comprometendo a perfusão parenquimatosa renal, originando oligúria), e do aumento da pressão intrabdominal (comprometendo a motilidade diafragmática); trata-se da chamada síndroma compartimental que importa prevenir. Por outro lado, o encerramento sob extrema tensão pode originar deiscência da sutura da parede abdominal ou compromisso isquémico da ansa intestinal subjacente.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias são decorrentes de aumento de pressão intrabdominal associadas ao encerramento primário forçado (já descritas anteriormente), ou decorrentes de complicações sépticas locais associadas à utilização de materiais heterólogos para o encerramento primário ou secundário por fases de onfaloceles muito volumosas.

Em ambos os casos, é necessário efectuar uma revisão cirúrgica da situação com extracção do material heterólogo infectado ou promover a diminuição da pressão intrabdominal. O internamento poderá durar > 3 meses.

Seguimento

O período pós-operatório não é, em geral, problemático. Na ausência doutras anomalias ou de complicações cirúrgicas a evolução clínica é rápida e não acidentada.

O seguimento pós-operatório a médio ou longo prazo, não coloca problemas ao pediatra, uma vez que não há compromisso da permeabilidade do tracto digestivo, salientando-se que o início e a progressão da diversificação alimentar decorrem, em geral, sem problemas.

Prognóstico

O prognóstico destes doentes depende directamente da existência de anomalias associadas, nomeadamente cardíacas, assim como das complicações resultantes de infecção, oclusão, isquémia e perfuração intestinais. A longo prazo, pela repercussão anátomo-funcional (sequelas) no tubo digestivo, poderá surgir quadro de oclusão intestinal. A taxa de sobrevivência varia entre 75-80%.

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ATRÉSIA DO ESÓFAGO

Definição e importância do problema

A atrésia do esófago (AE) é uma anomalia congénita que consiste na interrupção da continuidade do esófago; na maioria dos casos (cerca de 85%-90% conforme as estatísticas) existe trajecto permeável entre a traqueia e o coto esofágico distal, estabelecendo-se, por isso, uma comunicação entre o aparelho digestivo e o aparelho respiratório.

A incidência da AE oscila entre 1/3.000 e 1/8.000 nascimentos com uma relação de 1,5/1 entre sexo masculino e sexo feminino. Trata-se da anomalia congénita do esófago mais frequente.

Etiopatogénese

Durante a embriogénese (por volta da 5ª semana de gestação), a partir do chamado tubo intestinal faríngeo (intestino primitivo), forma-se um divertículo ventral em “dedo de luva”, o qual origina a traqueia. Ulteriormente forma-se um septo que divide o tubo intestinal primitivo numa porção ventral – o tubo laringotraqueal – e, numa porção dorsal – o esófago.

A atrésia do esófago é precisamente a consequência de um desvio posterior do septo tráqueo-esofágico, sendo que o referido desvio provoca uma separação incompleta entre o esófago e o tubo laringotraqueal, surgindo, na maioria das vezes, uma comunicação (fístula) entre o esófago e a traqueia. A ocorrência de AE sem fístula é rara, sendo atribuída esta situação a não recanalização do esófago por volta da 8ª semana de gestação.

Classificação e aspectos epidemiológicos

Entre 1984 e 1993 (9 anos) foram hospitalizados na UCIN do Hospital Dona Estefânia-Lisboa, 2645 RN; esta amostra inclui 59 crianças com o diagnóstico de atrésia do esófago (AE) – (2,2% dos doentes).  

A classificação dos diversos tipos de AE decorre da verificação ou não de fístula e da respectiva localização.

Na referida amostra foram obtidos os seguintes dados: o tipo mais frequente (76,1% dos casos) é o que evidencia um coto proximal em fundo cego associado a fístula tráqueo-esofágica (FTE) distal; em geral a fístula comunica com a traqueia junto à carina; o segundo tipo mais frequente (13,1%) corresponde à forma de AE sem fístula; a seguir, surgem a fístula tráqueo-esofágica sem atrésia ou fístula em H (4,3%), a AE com fístula tráqueo-esofágica proximal (4,3%) e AE com dupla fístula (2%). (Figura 1)

FIGURA 1. Representação esquemática e prevalência da atrésia do esófago e defeitos tráqueo-esofágicos.

Anomalias associadas

Em cerca de 50% dos casos de AE existem outras anomalias associadas, em geral da linha média. Os defeitos cardíacos são os mais frequentemente encontrados; outros incluem: defeitos músculo-esqueléticos, do tracto urinário, digestivo, etc..

Cabe salientar, a propósito, a entidade clínica conhecida por associação VATER/VACTERL (sigla da língua inglesa que traduz a ocorrência associada das seguintes anomalias: V (vertebral), A (ano-rectal), C (cardíaca), TE (tráqueo-esofágica), R (renal), L (limb ou membro). Refira-se que a forma de AE sem fístula é a que mais frequentemente surge com anomalias associadas; situação contrária se verifica em relação à forma com fístula em H isolada.

Apesar da baixa incidência de casos familiares, está provado que os factores genéticos (mutações em genes, <> →) poderão desempenhar papel significante em determinadas síndromas integrando AE; é o que acontece com a síndroma de Feingold (→ N-MYC), a associação CHARGE (→ CHD7), e a síndroma anoftalmia-esófago-genital (→ SOX2).

Manifestações clínicas e diagnóstico

O diagnóstico provável de AE pode ser eventualmente realizado, já no período pré-natal, por meio de ecografia morfológica obstétrica evidenciando sinais de poli-hidrâmnio, de ausência de “bolha” gástrica e de distensão do topo esofágico superior (bolsão esofágico cervical).

No período pós-natal, a suspeita de AE é fundamentada pela verificação de um conjunto de sinais, mais valorizáveis se existirem os antecedentes pré-natais aludidos: sialorreia abundante com secreções “com bolhas de ar”, impossibilidade de deglutição, com ou sem dificuldade respiratória (cianose, retracção costal, cianose, etc.); de salientar que os sinais poderão regredir parcialmente após aspiração de secreções, recorrendo depois, por acumulação de saliva não deglutida, a qual provoca obstrução das vias respiratórias superiores.

Se existir fístula pode verificar-se aumento de volume abdominal nos quadrantes superiores explicável pela dilatação gástrica por acumulação de ar proveniente da via respiratória; nas situações não acompanhadas de fístula, pelo contrário, pode observar-se certo grau de depressão epigástrica.

Nos casos em que o diagnóstico não é realizado no período pós-parto imediato (hoje em dia, situação rara uma vez que a pesquisa de permeabilidade esofágica faz parte dos procedimentos sistemáticos do primeiro exame físico do recém-nascido em muitas maternidades), o quadro clínico de apresentação pode ser o de infecção respiratória relacionável com aspiração para a via aérea de saliva colectada no coto proximal e com refluxo gastresofágico provocado pelo volume gástrico, favorecido pela fístula tráqueo-esofágica.

Nos casos de fístula em H isolada (fístula tráqueo-esofágica sem atrésia do esófago), o diagnóstico poderá ser feito mais tardiamente, sobretudo quando aquela é longa e tem posição oblíqua.

O procedimento a realizar em casos de suspeita de atrésia do esófago (ou como atitude sistemática no âmbito do primeiro exame físico do recém-nascido) consiste em introduzir sonda oro ou nasogástrica nº 8 ou 10. Se a sonda chegar ao estômago em situação de esófago permeável, o líquido aspirado (gástrico, com pH ácido), em contacto com papel azul de tornesol, promove a viragem de cor deste para azul.

Nos casos em que se verifica resistência na progressão da sonda, existindo atrésia, a mesma dobra-se ou enrola-se em U, formando uma ansa que poderá ser evidenciada em radiografia tóraco-abdominal simples se for radiopaca (Figuras 2 e 3). Na radiografia, caso não exista FTE, não se verifica sinal de ar abdominal (em negativo, aspecto de abdómen “branco”).

Persistindo a suspeita diagnóstica deve proceder-se a radiografia simples do tórax e abdómen em posição póstero-anterior e em perfil com o doente em posição vertical, tanto quanto possível; a verificação de sinais de ar infradiafragmático leva à conclusão de que existe fístula tráqueo-esofágica, podendo ser igualmente conclusiva quanto à eventualidade de existirem anomalias do tracto digestivo associadas (tais como atrésia duodenal com o sinal da “dupla bolha”), cardíacas (por exemplo arco aórtico à direita), vertebrais, das costelas, sinais de pneumonia, etc.).

FIGURA 2. Imagem radiográfica tóraco-abdominal com visualização de sinais de ar infradiafragmático testemunhando comunicação tracto respiratório-digestivo.

FIGURA 3. Imagem radiográfica de sonda em U.

Nesta mesma radiografia tóraco-abdominal simples poderá comprovar-se a posição da sonda radiopaca enrolada em U atrás referida, (em geral entre as vértebras C7 e D3), o que tem implicações práticas para o cirurgião.

Até há cerca de 3 décadas, procedia-se à introdução, pela sonda, de meio de contraste radiopaco (hoje abandonado pelo risco de aspiração para a via respiratória); este procedimento permitia visualizar com precisão o fundo de saco cego do coto proximal do esófago.

Tratamento

Medidas gerais

A AE, é uma situação que deverá ser assistida em centro especializado do nível mais elevado de diferenciação, com possibilidade de terapia intensiva.

Tratando-se duma anomalia incompatível com a vida se não for corrigida, tem sempre indicação operatória. Porém, o procedimento operatório não constitui uma emergência cirúrgica; com efeito, para além de ser indispensável que o doente chegue ao bloco operatório em situação de estabilização hemodinâmica, a probabilidade de anomalias associadas implica a realização prévia de um conjunto de estudos diagnósticos complementares (por exemplo estudo ecográfico cardíaco, nefro-urológico) para detecção da patologia de que se suspeita; entretanto, poderá ser submetido a ventilação mecânica e nutrição parentérica.

Exemplificando, se concomitantemente ocorrerem outros problemas clínicos que exijam solução prioritária como problemas respiratórios graves, anomalias cardíacas ou do tracto urinário, a intervenção cirúrgica esófagica será diferida de modo electivo e controlado.

As medidas gerais dizem respeito, essencialmente, à aspiração de secreções, fluidoterapia endovenosa para garantia de equilíbrio hídro-electrolítico e ácido-base, nutrição parentérica, manutenção de oxigenação adequada e eventual assistência ventilatória. A antibioticoterapia empírica inicial constitui outro aspecto das medidas gerais cujo esquema depende do contexto clínico individualizado.

Nalguns casos poderá estar indicada gastrostomia prévia para evitar refluxo e garantia de melhores condições operatórias.

Tratamento cirúrgico

A correcção cirúrgica da AE consiste fundamentalmente numa abordagem por toracotomia lateral pelo 4º ou 5º espaço intercostal direito (esquerdo se existir arco aórtico à direita), acesso ao mediastino posterior por via extrapleural, laqueação da crossa da veia de ázigos, laqueação selectiva da fístula tráqueo-esofágica e esófago-esofagostomia término-terminal.

Actualmente, nalguns centros (designadamente no Hospital de Braga/ por um de nós – JCP) está a ser utilizada a técnica por via toracoscópica, com bons resultados a curto e longo prazo.

Complicações pós-operatórias

As complicações associadas a esta técnica cirúrgica prendem-se com a segurança da laqueação da fístula tráqueo-esofágica e a possibilidade de realização de esófago-esofagostomia término-terminal sem tensão.

A deiscência parcial da anastomose esofágica e a estenose no local da anastomose são complicações que podem ocorrer entre 5% e 15% dos casos, sendo que, na maior parte destes, a respectiva resolução é possível com terapêutica conservadora.

Nos casos em que existe deiscência total da anastomose esofágica ou refistulização tráqueo-esofágica, é necessário realizar uma revisão cirúrgica da complicação, com correcção da refistulização tráqueo-esofágica e reanastomose esofágica directa ou, optar por construir uma derivação esofágica cervical com gastrostomia descompressiva temporária. Posteriormente, será necessário reconstruir o segmento esofágico por meio de reanastomose directa ou por cirurgia substitutiva esofágica com estômago ou segmento intestinal ileal ou cólico.

Seguimento

O seguimento pós-operatório destes doentes é de extrema importância devido à prevalência de traqueomalácia e de refluxo gastresofágico (RGE) acompanhantes.

A traqueomalácia deve-se à própria natureza embrionária da lesão como já foi referido anteriormente. O RGE é originado pelo invariável encurtamento esofágico obtido após a anastomose, e também pelos mecanismos anti-refluxo deficitários tais como o alargamento do ângulo de His, incompetência do cárdia e peristaltismo pós-anastomótico ineficaz.

O seguimento relacionado com o impacte no sistema respiratório deverá incluir uma vigilância rigorosa de episódios de estridor laríngeo e traqueal (devido, sobretudo à traqueomalácia) e de dificuldade respiratória (devido essencialmente a RGE grave com risco de aspiração com desencadeamento de quadros de pneumonite de repetição e de hipoxémia). Uma das complicações é a doença do refluxo gastresofágico.

Quanto ao sistema digestivo, está indicada a endoscopia digestiva alta, a realizar depois da terceira semana pós-operatória, para detecção de esofagite e de estenose anastomótica com eventual necessidade de dilatação. Para além do RGE, é habitual o atraso do esvaziamento gástrico.

Importa igualmente especial atenção para a possibilidade de deformidades da grelha costal e da coluna tóraco-lombar associadas aos antecedentes de toracotomia para correcção cirúrgica.

Prognóstico

O prognóstico da AE pode ser classicamente definido em três patamares ou classes, segundo os Critérios de Spitz. De acordo com este autor, as classes prognósticas valorizam o peso de nascimento e a presença de anomalia cardíaca como os factores preponderantes para o prognóstico final dos RN portadores de AE.

Assim, os RN com peso < 1.500 gramas e anomalia cardíaca têm o pior prognóstico, com 22% de sobrevivência. Pelo contrário, os RN com peso de nascimento > 1.500 gramas e sem anomalia cardíaca têm o melhor prognóstico, com cerca de 97% de sobrevivência. Actualmente, na unidade de cuidados intensivos neonatais do Hospital Dona Estefânia a sobrevivência global é > 90%, dado comparável ao divulgado por outros centros europeus e americanos.

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EVENTRAÇÃO DIAFRAGMÁTICA

Definição e importância do problema

A eventração diafragmática consiste numa elevação marcada do diafragma, uni ou bilateral, susceptível de originar respiração paradoxal. Esta alteração, mais frequente no lado esquerdo, pode ser congénita ou adquirida. (Figura 1)

Na forma congénita, o diafragma tem menor espessura por hipodesenvolvimento da componente muscular e maior desenvolvimento do tecido fibroso. Pode igualmente resultar de anormal desenvolvimento dos nervos frénicos. Não existindo em geral associação a hipoplasia pulmonar, a mesma poderá verificar-se relativamente a cardiopatia congénita, trissomias e sequestração pulmonar.

A forma adquirida poderá resultar de lesão iatrogénica do nervo frénico associada a intervenção cirúrgica, ou a lesão traumática do mesmo nervo relacionável com o parto distócico.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas integram essencialmente um quadro de dificuldade respiratória (taquipneia, retracção costal, cianose) de gravidade variável, menos exuberante do que na hérnia diafragmática póstero-lateral (de Bochdalek).

Existem formas clínicas assintomáticas e ainda formas reconhecidas por pneumonia recorrente em relação com o compromisso ventilatório verificado no pulmão do lado diafragmático afectado.

O exame físico poderá identificar hipomobilidade do hemitórax do lado afectado e, por radioscopia, o chamado movimento paradoxal da porção

afectada do diafragma: elevação na inspiração e abaixamento na expiração (ao contrário da normalidade). (Figura 2)

Tratamento

Nos casos assintomáticos o tratamento é conservador; nos casos sintomáticos poderá haver necessidade de assistência ventilatória. Nas formas graves está indicada a intervenção cirúrgica (plicatura).

FIGURA 1. Eventração diafragmática em esquema: secção parassagital direita.

FIGURA 2. Radiograma PA do tórax em RN: aspecto de eventração congénita diafragmática; elevação do fígado e cúpula direita (forma unilateral). (URN-HDE)

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HÉRNIA DIAFRAGMÁTICA CONGÉNITA

Definição e importância do problema

A designação de hérnia diafragmática (HDC) refere-se à comunicação/orifício de dimensões variáveis, entre as cavidades abdominal e torácica, com ou sem presença de vísceras abdominais na cavidade torácica. Tal defeito, que pode estar associado a grau variável de hipoplasia pulmonar e a outras anomalias, pode ter diversas localizações no diafragma, sendo a póstero-lateral a mais frequente (~90%), designada “hérnia de Bochdalek”. Assim, na maior parte das vezes quando nos referimos a hénia diafragmática congénita, admitimos em perincípio que se trata de hérnia de Bochdalek, a qual é objecto de estudo mais pormenorizado neste capítulo.

Sobre as outras localizações do orifício diafragmático, procede-se à respectiva descrição noutra alínea, adiante.

Verificando-se a presença de vísceras abdominais na cavidade torácica, considera-se que a hipoplasia pulmonar e a má-rotação intestinal, fazendo parte da entidade clínica, não são consideradas anomalias associadas.

A incidência da hérnia de Bochdalek é variável, sendo relatada em diversas séries a proporção de 1/2.000 a 5.000 nascimentos. Com os progressos da terapia intensiva ao longo dos anos, a taxa de sobrevivência nos países com recursos sofisticados passou de ~50% para >90%.

Aspectos embriológicos

A maioria dos casos de HDC/hérnia de Bochdalek ocorre de modo esporádico e, aparentemente, sem incidência familiar. No entanto, há descritos casos familiares, por vezes associados a síndromas, como é o caso da síndroma de Fryns, o que leva a admitir o possível papel de factores genéticos. Por outro lado, em cerca de 6% dos RN com HDC foram identificadas anomalias cromossómicas. Entretanto, foram identificados dois genes (NR2F2 e CHD2) localizados na região 15q26.1-15q26.2, possivelmente implicados na patogénese da HDC.

O desenvolvimento do diafragma realiza-se entre a 4ª e 12ª semana de gestação, resultando da formação de quatro esboços:

  • Porção anterior, que representa a maior parte do septum transversum crescendo no sentido ântero-posterior;
  • Pregas dorsolaterais ou pleuroperitoneais que se originam na parede lateral e crescem em direcção ao dorso;
  • Porção única dorsal e média derivada da mesoderme esofágica; e
  • Porções circulares que tapetam a periferia das membranas pleuroperitoneais.

O encerramento dos canais pleuroperitoneais realiza-se entre a 9ª e 10ª semana, para tal contribuindo as chamadas membranas ou pregas pleuroperitoneais de dupla camada, constituídas por peritoneu de um lado, e por pleura, do outro. A última parte a encerrar-se é a posterior e, sobretudo, o lado esquerdo onde persiste por mais tempo um orifício triangular.

Qualquer defeito no desenvolvimento dum ou mais componentes embrionários do diafragma, ou a falta de fusão duma das suas porções, condiciona o aparecimento de hérnia. Se a anomalia se verificar numa fase mais precoce, os órgãos herniados ficam em contacto directo com o parênquima pulmonar; se a reintegração for mais tardia, uma vez já verificada a junção dos dois folhetos peritoneal e pleural, estes são empurrados pelas vísceras abdominais através do foramen de Bochdalek, originando uma hérnia com saco; se o diafgragma estiver formado ao verificar-se a reintegração, não é possível a constituição da hérnia. Neste último caso, a única anomalia possível é uma insuficiência qualitativa ou quantitativa das fibras musculares do diafragma, conduzindo à chamada eventração diafragmática afectando toda a superfície duma cúpula cuja tradução funcional é o relaxamento ou hipotonia do músculo em questão. A eventração diafragmática é abordada em capítulo próprio.

No âmbito da embriologia, importa uma referência especial a certos factores determinantes do crescimento e desenvolvimento in utero do sistema respiratório em geral, e em especial do diafragma, os quais nos ajudam a compreender certas medidas de prevenção e tratamento da HDC, quer in utero, quer ex utero.

De acordo com a investigação nas últimas décadas, demonstrou-se que:

  • A magnitude do incremento do líquido pulmonar fetal, expandindo o pulmão fetal é um importante determinante do crescimento pulmonar fetal. O líquido pulmonar fetal é segregado pelo epitélio pulmonar (pneumatócitos de tipo I) para o lume do tracto respiratório, fluindo dos pulmões para o líquido amniótico, através da traqueia;
  • Que a hipoplasia pulmonar precede o defeito diafragmático, e que se a traqueia for obstruída, o líquido pulmonar não eflui, ocorrendo maior grau de expansão pulmonar. Este fenómeno constitui um potente estímulo para o crescimento pulmonar fetal, aumentando o peso pulmonar, bem como o ADN e o conteúdo proteico. Concomitantemente aumenta o diâmetro alveolar, a sua área e o número de alvéolos;
  • Os glucocorticóides têm um efeito favorável no desenvolvimento e distensibilidade alveolar (compliance) e na diminuição do espessamento dos vasos pulmonares, em modelos animais com HDC; para além disso, promovem a produção de surfactante, o que é importante no tratamento da HDC, uma vez que estudos bioquímicos indicam que estes pacientes apresentam deficiência secundária de surfactante;
  • A vitamina A, embora seja um agente teratogénico, constitui um indutor do crescimento pulmonar em fetos com HDC, promovendo a ramificação brônquica e dando ao pulmão embrionário um potencial de crescimento adicional, nos estádios de desenvolvimento seguinte;
  • A grelina, ligando endógeno para o receptor secretagogo de hormona de crescimento – GHS-R, parece estar envolvida no crescimento pulmonar fetal (principalmente no estádio pseudoglandular de maturação pulmonar);
  • A angiotensina II, sendo um regulador da morfogénese pulmonar, poderá explicar o facto de a administração de IECA e de antagonistas dos receptores da angiotensina durante a gravidez induzir hipoplasia pulmonar fetal.

Tipos de hérnia diafragmática

As HDC no sentido lato podem classificar-se de acordo com:

  • Localização do orifício ou solução de continuidade;
  • Constituição da referida hérnia.

Quanto à localização do orifício, distinguem-se:

A – Hérnias das cúpulas

Surgem em cerca de 80%-90% dos casos no lado esquerdo; as hérnias bilaterais, podendo ocorrer em cerca de 0,5%-1% dos casos, são na maioria dos casos fatais. As dimensões da solução de continuidade são muito variáveis (desde pequeno orifício a agenésia completa. Subdividem-se nos seguintes tipos:

  1. Hérnias póstero-laterais, as mais frequentes (designadas classicamente por hérnias de Bochdalek); (Figuras 1(A) 2- , 1(B))
  2. Hérnias por aplasia completa do hemidiafgagma, de prognóstico muito grave;
  3. Hérnias anterolaterais das cúpulas, mais raras, surgindo em idêntica proporção à direita e à esquerda.
B – Hérnias retrocostoxifoideias (anteriores)

São ainda chamadas hérnias pela fenda de Larrey ou pelo foramen de Morgagni; na realidade, trata-se de hérnias por aplasia (transformação das duas fendas de Larrey num orifício único, anterior, mediano e retrosternal, com diâmetro transverso superior ao ântero-posterior). Habitualmente são designadas por hérnias de Morgagni (correspondendo a cerca de 2-6% das hérnias HDC). (Figura 1(A) 3-)

C – Hérnias paresofágicas

São raras e diferentes das verdadeiras hérnias hiatais. Trata-se, de facto, de hérnias por deslizamento, estando o orifício herniário situado na vizinhança do orifício hiatal (ver adiante). Com efeito, na hérnia hiatal verdadeira o orifício herniário é comum com o orifício hiatal uma vez que existe agenesia do pilar direito do diafragma e da fita muscular pertencente ao anel muscular do orifício esofágico. (Figura 1(A) 1)

FIGURA 1. A) Secção horizontal esquemática do diafragma; B) Secção parassagital esquerda (hérnia póstero-lateral).

Quanto à constituição da hérnia, há que distinguir:

A – As hérnias com e sem saco

Na maior parte dos casos não há saco, continuando-se a pleura com o peritoneu.

Em função do conteúdo, pode afirmar-se que todas as vísceras abdominais, excepto o duodeno, pâncreas e parte terminal da sigmoideia podem estar presentes na cavidade torácica; o intestino delgado, cólon direito e transverso estão sempre implicados.

As hérnias das cúpulas ou póstero-laterais são as que se manifestam de modo mais precoce e exuberante desde os primeiros momentos da vida extrauterina com um quadro de insuficiência respiratória obrigando a medidas de terapia intensiva do recém-nascido (RN).

Notas importantes:

    • Reitera-se, assim, que na prática clínica corrente a designação de hérnia diafragmática se reporta, em geral, à hérnia das cúpulas ou hérnia diafragmática propriamente dita (de Bochdalek), entidade que é abordada com realce neste capítulo;
    • Salienta-se que o diagnóstico pré-natal ultrassonográfico de HDC é possível desde as 15-16 semanas de gestação, o que tem implicações quanto às estratégias de abordagem pré-natal, inclindo medidas de tratamento in utero.

Fisiopatologia

A partir da década de 90 do século XX, o conhecimento da fisiopatologia da HDC evoluiu significativamente, demonstrando-se que a principal causa de dificuldade respiratória e mortalidade pós-natal era a hipoplasia pulmonar associada a uma anormal muscularização arteriolar, conduzindo a hipertensão pulmonar (HTP) mantida no período pós-natal.

A hipoplasia vascular resulta duma diminuição efectiva dos ramos arteriais, bem como da diminuição da área de secção das arteríolas pré-acinares pequenas e intra-acinares, devido a um fenómeno de hipermuscularização. Esta hipoplasia vascular é responsável, por si só, pela manutenção da HTP no RN.

A hipoplasia alveolar resultante da diminuição da ramificação normalmente existente, coincidindo com a maturação pulmonar, perturba a capacidade ventilatória do RN. Tal resulta em hipóxia e hipercápnia mantidas.

A hipóxia, por sua vez, contribui para acentuar a vasoconstrição pulmonar, o que contribui para a manutenção e agravamento progressivo da HTP.

Mantendo-se a HTP no RN com HDC, a derivação circulatória direita-esquerda através do ductus arteriosus mantém-se concomitantemente, com consequente mistura de sangue mais oxigenado com menos oxigenado, o que leva a hipóxia tecidual caudal.

Esta hipóxia gera, além de vasoconstrição pulmonar, vasodilatação periférica, que desencadeia o conhecido fenómeno de “ruptura capilar” e consequente edema; este último origina compromisso da oxigenação dos tecidos, facilitando o metabolismo anaeróbio e consequente produção de lactato.

Instala-se seguidamente acidose metabólica a qual intensifica a vasoconstrição pulmonar provocada pela hipóxia. Com esta vasoconstrição é, então, mantida a HTP.

Entra-se, assim, num círculo vicioso difícil de reverter, o qual tende para falência multiorgânica.

Em suma, compreende-se que esta anomalia congénita comprometa a adaptação do feto à vida extrauterina. (Figura 2)

FIGURA 2. Fisiopatologia da adaptação do feto com HDC à vida extra-uterina.

Diagnóstico pré-natal

Como foi referido antes, o diagnóstico pré-natal ultrassonográfico de HDC é possível desde as 15-16 semanas de gestação. Por outro lado, a RM fetal pode estabelecer o diagnóstico diferencial com outras anomalias congénitas, como a malformação adenomatóide cística congénita, o sequestro pulmonar, o teratoma cístico mediastínico, os cistos broncogénicos, os tumores neurogénicos e o sarcoma pulmonar primário.

Uma vez confirmado o diagnóstico pré-natal de HDC, importa proceder ao rastreio de cromossomopatias/anomalias associadas (Figura 3). Para tal, deve realizar-se amniocentese e ecocardiografia fetal. Na verdade, a presença de cromossomopatias e de defeitos estruturais em geral, está associada a mau prognóstico, com mortalidade de ~90%.

Na ausência de alterações genéticas atrás referidas, e excluindo as condições que se consideram constituir a síndroma de HDC (hipoplasia pulmonar, ductus arteriosus e foramen ovale persistentes, e má-rotação), aproximadamente um terço dos RN com HDC tem outras anomalias associadas, das quais a maioria corresponde a defeitos cardíacos estruturais ou génito-urinários.

No caso de serem detectadas anomalias cromossómicas ou anomalias congénitas major, vários autores propõem interrupção médica da gravidez (IMG). Nos restantes há que estratificar o prognóstico, por forma a seleccionar aqueles que previsivelmente terão uma boa capacidade de adaptação pós-natal e aqueles cuja adaptação pós-natal será problemática beneficiando, por isso, de tratamento antenatal.

FIGURA 3. Algoritmo de abordagem de fetos com diagnóstico pré-natal de HDC. As setas a tracejado representam estratégias sob investigação experimental. IMG: interrupção medicamente assistida; LHR: right lung area to head circumference ratio.

Manifestações clínicas e exames complementares

Hérnia de Bochdalek

No período pós-natal, a expressão clínica da hérnia de Bochdalek é muito variável, o que está em relação com um amplo espectro de variantes anatómicas do próprio defeito; salienta-se que nem sempre existe uma relação directa entre a magnitude da hérnia e a sintomatologia.

Os sinais clínicos dependem essencialmente da hipoplasia pulmonar, da hipertensão pulmonar, e do défice ou disfunção do surfactante pulmonar.

Na sua forma mais típica de apresentação, o pós-parto imediato é caracterizado por má adaptação cardiorrespiratória à vida extrauterina (depressão respiratória neonatal, taquipneia, retracção costal, cianose, insuficiência respiratória progressiva na ausência de manobras de ressuscitação imediata e ventilação mecânica subsequente).

Verifica-se abdómen escavado, diminuição ou ausência do murmúrio vesicular do lado da hérnia e ruídos cardíacos audíveis no lado direito nos casos de hérnia póstero-lateral esquerda. Por vezes, auscultam-se no hemitórax correspondente ao lado do defeito, ruídos hidroaéreos. No entanto, há formas clínicas em que o diagnóstico é realizado mais tardiamente, pelo segundo ou terceiro dia de vida, quando o preenchimento gasoso progressivo do tracto intestinal passa a comprimir significativamente a cavidade torácica, exercendo efeito de massa sobre o mediastino ou sobre o pulmão contralateral.

O exame radiológico tóraco-abdominal é em geral suficiente para o diagnóstico, designadamente nos casos em que não se tenha realizado a vigilância pré-natal.

Podem ser observados sinais de preenchimento torácico por estômago ou ansas intestinais, vísceras sólidas como fígado ou baço, assim como de parênquima pulmonar não totalmente expandido, unicamente arejado no ápex, com empurramento do mediastino para o lado oposto. (Figura 4)

Em caso de dúvida, poderá introduzir-se tentativamente uma sonda radiopaca por via oral no estômago, avaliando ulteriormente a posição da respectiva extremidade: tórax ou abdómen.

A ecografia tóraco-abdominal permite definir a ausência de integridade diafragmática e a confirmação de presença de vísceras maciças no toráx, como o baço na hérnia diafragmática esquerda, e o fígado na hérnia diafragmática direita.

O ecocardiograma deverá ser efectuado na admissão na UCIN, às 24 horas de vida, antes da cirurgia, antes da alta (para documentar o valor de pressão pulmonar) e sempre que clinicamente se justificar (por exemplo face a agravamento hemodinâmico para avaliação funcional e da pressão arterial pulmonar).

Com efeito, um valor de pressão arterial pulmonar superior a 2/3 da pressão arterial sistólica sistémica, medida em simultâneo, sugere HTP grave, salientando-se, no entanto, que se trata duma avaliação indirecta da pressão arterial pulmonar, com limitações relacionadas, sobretudo, com a compressão cardíaca pelas vísceras abdominais em posição torácica.

Têm sido publicados diferentes estudos demonstrando o valor do doseamento do fragmento N terminal do péptido natriurético do tipo B (NT-pro BNP) na hipertensão pulmonar do adulto e do RN. Os níveis séricos deste péptido, produzido no miocárdio ventricular em resposta ao aumento da pós-carga causado por HTP, correlacionam-se com o valor de pressão na artéria pulmonar.

Os valores séricos no RN são habitualmente mais elevados do que no adulto, não estando absolutamente definido o intervalo de referência normal nesse grupo etário. No entanto, mais do que a medição instantânea do NT-proBNP, a sua avaliação seriada permite prever a evolução da HTP.

Assim, recomenda-se o doseamento de NT-proBNP às 24 horas de vida e, seriadamente, durante o período de estabilização, até à intervenção cirúrgica.

FIGURA 4. Aspecto radiográfico de HD de Bochdalek à esquerda. (UCIN-HDE)

Hérnia de Morgagni

Com este tipo de hérnia, dum modo geral, os doentes estão assintomáticos fazendo-se o diagnóstico após o período neonatal quando a criança é submetida a radiografia do tórax por qualquer razão.

A radiografia póstero-anterior evidencia uma estrutura sobreposta à sombra cardíaca; e a de perfil localiza uma imagem de massa retrosternal.

A TAC confirma o diagnóstico.

Os sinais clínicos, quando ocorrem, traduzem-se por infecções respiratórias recorrentes, tosse e/ou vómitos. Em casos raros pode surgir encarceramento do conteúdo herniário.

Hérnia paresofágica (peri-hiatal)

A hérnia paresofágica distingue-se da hérnia do hiato porque a junção gastresofágica está em localização normal. A herniação (do estômago em direcção à cavidade torácica, ou de parte do estômago adjacente à região gastresofágica) poderá conduzir a encarceração, estrangulamento ou perfuração. (Figura 5)

FIGURA 5. Aspecto radiográfico de hérnia peri-hiatal (contraste esofágico). (NIHDE)

Abordagem pré-natal

Técnicas

Numa perspectiva histórica importa uma referência à obstrução da traqueia aplicada em fetos humanos, técnica denominada PLUG (Plug the Lung Until it Grows). Para isso tem-se procurado desenvolver estratégias que permitam ocluir a traqueia, utilizando-se desde clips externos (~pinças), até balões intratraqueais.

Inicialmente, dado que a PLUG provocava elevada taxa de morbilidade e mortalidade, devida a problemas resultantes da histerotomia (parto pré-termo), desenvolveu-se outra, aparentemente menos traumática, designada pela sigla FETENDO (Video-Assisted Fetal Endoscopy), a qual permitia realizar a oclusão da traqueia sem histerotomia.

Os resultados do FETENDO, no entanto, têm sido contraditórios. Enquanto a escola americana não valorizou os resultados obtidos, segundo a escola europeia a FETENDO poderá ter utilidade na abordagem dos RN com HDC.

Foi neste contexto que surgiu a necessidade de investigar estratégias farmacológicas dirigidas ao feto com o objectivo de promover o crescimento e a maturação pulmonares.

Fármacos

De acordo com a investigação experimental, a utilização de glucocorticóides baseava-se no efeito favorável quanto ao desenvolvimento e distensibilidade alveolares (compliance) e à diminuição do espessamento dos vasos pulmonares; acrescentava-se ainda o efeito de produção de surfactante com base na verificação de deficiência secundária de surfactante em modelos animais com HDC.

Na espécie humana, no entanto, os benefícios da administração pré-natal de glucocorticóides no contexto pré-natal de hérnia de Bochdalek não se confirmaram.

Quanto à vitamina A, valorizou-se o efeito indutor do crescimento pulmonar em fetos com HDC, promovendo a ramificação brônquica e dando ao pulmão embrionário um potencial de crescimento adicional nos estádios de desenvolvimento seguintes.

Contudo, a administração profiláctica de vitamina A às grávidas não é viável, pois esta vitamina e os outros retinóides têm efeito teratogénico.

Correcção cirúrgica

O primeiro caso de correcção cirúrgica pré-natal de HDC, num feto humano, foi descrito em 1990. Desde então, a técnica praticada sofreu várias modificações. Inicialmente, realizava-se uma histerotomia e reparava-se o defeito diafragmático.

Posteriormente, numa perspectiva de avaliação dos resultados, a estratégia passou a considerar dois grupos de fetos com HDC: – com liver-down (fígado abdominal); e – com liver-up (fígado torácico).

Dado que em ambas as circunstâncias, os resultados foram desastrosos, os investigadores têm continuado a estudar métodos alternativos no âmbito da terapia pré-natal.

Abordagem pós-natal

Dando ênfase à HDC (Bochdalek), importa reter as seguintes noções:

Cuidados gerais

Para o êxito do tratamento dum problema clínico complexo como a HDC torna-se obrigatório o cumprimento dum conjunto de requisitos, destacando-se:

  1. Equipa especializada multidisciplinar;
  2. UCIN num hospital com centro de cirurgia neonatal, no pressuposto de que o parto foi planeado e realizado na respectiva instituição após transferência atempada da grávida;
  3. Vigilância pré-natal adequada.

Alguns destes aspectos, da maior relevância, são analisados na Parte sobre Neonatologia.

Antigamente, a HDC era entendida como uma emergência cirúrgica, ou seja, admitia-se que a insuficiência respiratória pós-natal era secundária à compressão pulmonar pelos órgãos herniados para o hemitórax. Assim, a redução da hérnia permitiria a reexpansão pulmonar.

Estando hoje estabelecido que a principal causa de dificuldade respiratória e mortalidade pós-natal é a hipoplasia pulmonar associada a hipertensão pulmonar (HTP), a correcção cirúrgica deve ser protelada até ao momento em que for atingida estabilidade hemodinâmica e ventilatória.

Nesta perspectiva e tendo em consideração os objectivos e características deste livro, é dada ênfase ao tratamento pré-operatório.

  • Na sala de partos, a prestação de cuidados ao RN, nomeadamente a sua reanimação, deve estar a cargo da equipa de neonatologia.
    É responsabilidade desta, estabelecer as funções dos respectivos componentes com o objectivo de actuar rapidamente e com estratégia coordenada; contudo, torna-se obrigatório que todos os gestos e atitudes terapêuticas sejam providenciados com extremo cuidado e manuseamento mínimo face ao risco de os estímulos mecânicos externos agravarem a hipertensão pulmonar.
  • Após admissão na UCIN deve realizar-se ecocardiograma. (ver alínea anterior)
  • O RN deve ser entubado imediatamente após o nascimento, com um tubo orotraqueal e sonda orogástrica (8 F), assegurando-se a monitorização cardiorrespiratória. Após a colocação de acesso vascular (de preferência cateter percutâneo – epicutâneo-cava), deverá ser iniciada perfusão de soluto glicosado, com um suprimento hídrico a programar em função do balanço hídrico e da diurese; dum modo geral, até realização da intervenção cirúrgica, não deverá ser ultrapassado o suprimento de fluidos para além de 80 mL/kg/dia. Tal justifica-se pela necessidade de evitar a sobrecarga cardíaca, o edema associado à fuga de fluidos por via transcapilar e a disfunção cardíaca. (ver atrás)
    A utilização de colóides está contraindicada, nomeadamente a utilização de albumina. Exceptua-se o sangue ou seus derivados, que serão ministrados de forma a manter Hb com valor ~14 g/dL.
  • Deve proceder-se ao cateterismo da artéria umbilical para determinação de pH e gasometria sanguíneos e à colocação de dois sensores cutâneos de oxímetro de pulso, respectivamente em território pré e pós-ductal.
  • A acidose metabólica deve ser corrigida se pH < 7,2.
  • Utiliza-se dopamina ao ritmo de 3 mcg/kg/min, independentemente da pressão arterial.

Não sendo objectivo da abordagem terapêutica da hérnia de Bochdalek pormenorizar o protocolo utilizado nas UCIN, são referidos apenas os aspectos essenciais.

Ventilação mecânica

Esta tem como objectivo diminuir a HTP e/ou rendibilizar as trocas gasosas minorando simultaneamente os barotrauma, volutrauma e atelectrauma pulmonares induzidos pela ventilação artificial. É neste contexto que se têm desenvolvido técnicas de ventilação cada vez mais sofisticadas, menos invasivas, a que se faz referência em capítulo próprio. (Parte de Parinatologia/Neonatologia – Problemas respiratórios)

  • No sentido de reduzir o barotrauma, a pressão inspiratória (PIP) é cuidadosamente monitorizada, mantendo-a a < 25 cm H2O, e adopta-se estratégia de hipercápnia permissiva (PaCO2 de 45 a 60 mmHg), mantendo pH > 7,3. Salienta-se que os factores que contribuem para HTP são fundamentalmente hipóxia, acidose e hipotermia, devendo obviamente ser evitados.

De modo sucinto, salienta-se que actualmente são utilizados ventiladores de nova geração designados “com volume garantido/VG”, significando que, com moderna tecnologia de automatismo do ventilador, a PIP aumenta ou diminui de forma a manter um volume corrente aproximado do volume-alvo inicial marcado, desejável em função da situação clínica.

No caso da HDC, em RN de termo, o volume corrente inicial programado no ventilador é ~4-5 mL/kg/ciclo.

  • No pré-termo com idade gestacional ≤ 34 semanas de gestação e/ou nos casos em que o padrão radiográfico do tórax sugira imaturidade pulmonar, está indicada a administração de surfactante.
  • Deve ser evitada a utilização por rotina de morfina e vecurónio, estando estes fármacos reservados para situações particulares: i) o vecurónio poderá ser ponderado se houver dificuldade na ventilação; ii) nos RN muito reactivos está indicada a sedação com midazolam e, eventualmente, a administração de vecurónio, para o transporte para a UCIN, se a actividade motora e a agitação interferirem na ventilação.
  • Se o RN evidenciar má perfusão periférica e/ou hipotensão arterial, está indicado bolus de soro fisiológico (10 mL/kg), que poderá ser repetido uma vez, se necessário. No entanto, é fundamental evitar o excesso de volume, ajustando-se, se necessário, a perfusão de dopamina.
  • A ventilação é considerada adequada se saturação periférica de Hb-O2 pré-ductal (SpO2) > 95%, PaO2 pré-ductal > 75 mmHg e PaCO2 pós-ductal < 65 mmHg.

Nas situações de PaCO2 > 65 cm H2O, com aumento mantido, está indicado recorrer à ventilação de alta frequência (HFOV). Nos casos de HTP/hipoxémia refractária à ventilação mecânica e ao uso de surfactante, torna-se necessário recorrer a fármacos ou a técnicas ventilatórias que promovam diminuição de tal resistência.

  • Recomenda-se a utilização de dobutamina nos casos de disfunção ventricular esquerda, demonstrada por ecocardiografia, ao ritmo de 5-10 mcg/kg/min.
  • Nas situações de hipotensão associada a disfunção ventricular grave determinada por ecocardiografia, pode ser ponderada a utilização de milrinona.
  • Se se verificar hipotensão resistente aos vasopressores, ou a outras modalidades de ventilação (alta-frequência ou por per-fluido-carbonetos), deverá ser ponderada a instituição de ECMO (sistema de oxigenação por membrana e circulação extracorporal) nos centros em que esteja disponível.

Notas complementares:

    • Dada a dificuldade em controlar farmacologicamente a HTP, o tratamento ideal destina-se a prevenir o seu aparecimento e/ou agravamento; torna-se, por isso, fundamental controlar os factores desencadeantes, minorando a manipulação e procedendo a aspirações do tubo endotraqueal suaves, e apenas quando efectivamente necessárias.
    • A acidose, a hipercápnia excessiva (> 60 mmHg, admitindo-se, como foi dito, a hipercápnia permissiva ou ~45-60 mmHg) e a hipóxia devem ser identificadas e tratadas precocemente.
    • O efeito vasodilatador pulmonar do oxigénio justifica a oxigenoterapia com FiO2 elevada, até a pressão arterial pulmonar estimada por ecocardiografia atingir valor < 2/3 ao da pressão arterial sistémica.
    • Apesar de não ser consensual, nalguns centros tem sido utilizado óxido nítrico inalado (iNO) na abordagem da HTP grave. O iNO tem uma acção vasodilatadora pulmonar específica pelo aumento dos níveis de cGMP no músculo liso das artérias pulmonares, promovendo o seu relaxamento.

São critérios para iniciar terapêutica com iNO:

  • HTP grave documentada por ecocardiografia e instabilidade hemodinâmica;
  • Diferencial significativo entre SpO2 pré e pós-ductal (pós-ductal 10 pontos percentuais menor do que a pré-ductal); e
  • PaO2 pós-ductal < 100 mmHg com FiO2 100%.

Se, ao fim de 6-12 horas de terapêutica, não se verificar resposta, o iNO deve ser suspenso. Nos RN em que se verifica resposta vasodilatadora, o iNO deve ser mantido até a pressão arterial pulmonar sistólica estimada ser inferior a 2/3 da pressão arterial sistémica e, eventualmente, até à correcção cirúrgica do defeito diafragmático.

Outra opção terapêutica válida no tratamento da HTP poderá ser o sildenafil (Viagra®). Este fármaco é um inibidor da fosfodiesterase tipo 5, responsável pela degradação do cGMP, pelo que promove a vasodilatação pulmonar. Pondera-se a sua utilização na HTP grave confirmada por ecocardiografia e, muitas vezes, na fase de interrupção da terapêutica com iNO. A sua utilização na criança não está autorizada, pelo que exige sempre o consentimento esclarecido por parte dos pais.

Correcção cirúrgica

Hérnia de Bochdalek

A HDC (Bochdalek) tem sempre indicação operatória; o objectivo da intervenção cirúrgica é a redução do conteúdo herniário e a correcção do defeito anatómico diafragmático. De referir que nalguns centros (entre eles, o de JCP) está actualmente a ser aplicada a técnica correctiva do defeito, minimamente invasiva, por via laparoscópica ou toracoscópica (também padrão de ouro). A correcção cirúrgica faz-se habitualmente por laparotomia transversa ou oblíqua no hipocôndrio direito.

Recentemente, no entanto, há relatos que descrevem a abordagem minimamente invasiva laparoscópica ou toracoscópica como uma opção possível. Em Portugal, segundo Jorge Correia Pinto (Universidade do Minho, em Braga), liderando equipa pioneira, a correcção consiste na redução das vísceras herniadas para o abdómen e encerramento do defeito diafragmático com suturas não absorvíveis, sendo nalguns casos necessário recorrer ao uso de prótese.

Os critérios para a correcção cirúrgica são os seguintes:

  • Período de 24 horas de ventilação com parâmetros de FiO2 < 50%, PIP < 25 cm H2O ou MAP < 12 cm H2O (se, em HFOV);
  • Sinais de resolução da hipertensão pulmonar (gradiente pré vs pós-ductal da SpO2 < 10 mmHg, pressão pulmonar estimada e NT-proBNP a diminuirem de modo mantido);
  • Ausência de sinais de desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base;
  • Pressão sistémica estável; e
  • Valor de Hb > 14 g/dL.

Os peritos no âmbito do CDH-EURO-Consortium, adoptaram os seguintes critérios para a referida intervenção:

  • Pressão arterial normal para a idade gestacional;
  • SpO2 pré-ductal entre 85% e 95% com FiO2 < 50%;
  • Lactato sérico < 3 mmol/L;
  • Diurese > 2 mL/kg/hora.

De acordo com estudos de metanálise, com a aplicação da técnica minimamente invasiva por toracoscopia na própria UCIN, concluiu-se que as taxas de recorrência e o tempo operatório são superiores em comparação com a técnica cirúrgica clássica, embora as taxas de sobrevivência sejam semelhantes.

Hérnia de Morgagni

O tratamento é cirúrgico, uma vez feito o diagnóstico. A abordagem por via laparoscópica está a ser progressivamente considerada padrão de ouro.

Hérnia paresofágica (peri-hiatal)

O tratamento é cirúrgico logo que a situação seja diagnosticada. A abordagem por via laparoscópica está também a ser progressivamente considerada padrão de ouro.

Prognóstico

Aspectos gerais

Após a alta, a maioria das crianças tem um neurodesenvolvimento próximo do normal. No entanto, existe uma maior propensão para o desenvolvimento de problemas respiratórios (bronquiolite), displasia broncopulmonar, problemas neurocognitivos e sensoriais (designadamente nos doentes anteriormente submetidos a ECMO), atraso de crescimento, escoliose, pectus excavatum e doença do refluxo gastresofágico.

Nesta perspectiva, com a coordenação do médico assistente, as crianças deverão ser encaminhadas para consultas de subespecialidade em função do contexto clínico para resolução de eventuais problemas surgidos ou previstos, pelo menos, durante os dois primeiros anos de vida.

Aspectos específicos

Desde cedo se percebeu que a sobrevivência associada à cirurgia fetal não superava a obtida com o tratamento pós-natal.

Perante estes resultados desastrosos, procurou-se desenvolver métodos alternativos para o tratamento pré-natal de fetos com prognóstico reservado ou mau.

Para além das cromossomopatias e/ou de anomalias malformativas associadas, são vários os factores de prognóstico que têm sido propostos para seguimento dos fetos com HDC: a presença do fígado no tórax, a razão área pulmonar-área transversa do tórax pequena, a presença do estômago no tórax, a diminuição dos componentes do surfactante no líquido amniótico, o lado e o tamanho do defeito, a hipoplasia da cavidade abdominal, a hipoplasia ventricular esquerda, a impedância da artéria pulmonar esquerda, a razão do tempo de aceleração/tempo de ejecção do VD, a diminuição do espaço morto e aumento da distensibilidade (compliance) dinâmica, mães com índice de massa corporal pré-concepcional igual ou menor que 19, e a idade materna (mulheres com 38 ou mais anos). Contudo, muitos destes índices não têm sido universalmente aceites.

De acordo com os resultados de estudos com grandes séries, os factores de prognóstico mais relevantes são: a posição do lobo hepático esquerdo, a avaliação ecográfica da razão entre a área pulmonar direita e o perímetro cefálico (LHR – right lung area to head circumference ratio), a idade gestacional aquando do diagnóstico pré-natal, coexistência de poli-hidrâmnio e o desvio acentuado do mediastino.

De um modo genérico, apontam-se os seguintes valores: a ausência de herniação hepática permite prever um bom prognóstico, com 93% de sobrevivência, enquanto a herniação hepática está associada apenas a 43% de sobrevivência.

A importância destes índices de prognóstico reside no facto de se poder estratificar com certa confiabilidade o prognóstico dos fetos com diagnóstico de HDC, de forma a seleccionar aqueles cujo prognóstico, com o tratamento pós-natal existente na actualidade, é previsivelmente insatisfatório.

Assim, é para este grupo de fetos que o tratamento antenatal surge como uma esperança e um estímulo para a investigação. Como perspectivas futuras, a terapia génica in utero (transferência de determinados genes para o feto), tendo como alvo preferencial o pulmão em desenvolvimento.

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FÍSTULAS E QUISTOS DA CABEÇA E PESCOÇO

Sistematização

Neste capítulo, para além das entidades clínicas de origem embriológica branquial (fístulas e quistos da cabeça e pescoço propriamente ditos), incluem-se outras situações de etiopatogénese diversa, mas com certas afinidades morfológicas (quistos, fossetas, apêndices pré-auriculares, alterações da morfologia e posição dos pavilhões auriculares, quisto do canal tiroglosso, e quistos dermóide e epidermóide).

ANOMALIAS DA FENDA BRANQUIAL

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Durante a 4ª e 8ª semanas de gestação, no embrião humano desenvolvem-se:

  • A partir da mesoderme, quatro pares de arcos branquiais;
  • A partir da ectoderme, quatro pares de fendas intermédias;
  • A partir da endoderme, quatro pares de bolsas faríngeas.

São estes esboços ou primórdios que dão origem futuramente às estruturas da cabeça, faringe e do pescoço.

Não cabendo no âmbito deste livro uma descrição exaustiva das alterações da morfogénese que determinam tais defeitos, cabe sintetizar que a deficiente maturação e a persistência aberrante de determinadas estruturas embrionárias precursoras do desenvolvimento da cabeça, da faringe e do pescoço, se traduzem pela presença de determinados defeitos tais como depressões ou fossetas ou seios, fístulas, quistos e resíduos cartilaginosos.

Na perspectiva do desenvolvimento embriológico pode estabelecer-se a seguinte correspondência com a clínica:

  • As anomalias do 1º arco branquial são raras e apresentam-se como quistos, fossetas ou fístulas (anteriores, posteriores, ou inferiores em relação ao pavilhão auricular, ou na região submaxilar). Cerca de 1/3 abre-se no canal auditivo externo e o trajecto atravessa a parótida; devido à proximidade do nervo facial haverá que ter grande cuidado na sua excisão. As fossetas e as fístulas passam muitas vezes despercebidas, sendo somente notadas quando se verifica uma pequena descarga de secreção mucóide pelo microrifício exterior.
  • As anomalias do 2º arco branquial (quistos branquiais) são mais frequentes e localizam-se ao longo do bordo anterior do músculo esternocleidomastoideu (em geral no 1/3 superior), provenientes da zona do osso hióide. São bilaterais em 10% dos casos. Podem manifestar-se muitas vezes:
  • Pela formação de abcessos, devido à incapacidade de drenagem espontânea para o exterior; ou
  • Drenando através da pele, deixando sair um líquido claro e levemente bronzeado, sem a viscosidade que é notada no conteúdo do quisto tiroglosso, mas com abundantes cristais de colesterol (ver adiante); ou
  • Evidenciando “poro” de saída, o qual é assinalado por vezes por uma prega cutânea ou por um resíduo de cartilagem, podendo palpar-se o trajecto subcutâneo. (Figura 1)
  • As anomalias do 3º arco branquial muito raras, seguindo um trajecto semelhante às do 2º arco; desembocam no seio piriforme.
  • As fístulas e quistos do 4º arco são extremamente raras e de diagnóstico diferencial difícil com os laringoceles, por exemplo.

FIGURA 1. Quisto do 2° arco branquial à direita. (NIHDE)

Diagnóstico diferencial

As fístulas e fossetas são fáceis de diagnosticar com base apenas nos dados semiológicos clínicos.

Os quistos, traduzidos semiologicamente por tumores esferóides laterais do pescoço, impõem o diagnóstico diferencial com situações clínicas com as quais partilham algumas características morfológicas: tumores da zona mandibular, adenopatias, higromas quísticos do pescoço (linfangiomas), quistos dermóides, quistos sebáceos, condromas, quistos ou tumores da parótida e lesões linfáticas neoplásicas primárias ou metastáticas.

Para esclarecimento etiológico poderá recorrer-se à transiluminação e à ecografia (de preferência doppler) para identificação de estruturas vasculares associadas.

Tratamento

A excisão cirúrgica completa deve ser levada a cabo quando feito o diagnóstico e antes de surgir infecção. Se esta última constituir a primeira manifestação, deve proceder-se a antibioticoterapia e drenagem quando indicada, somente tentando a excisão quando o processo inflamatório tiver regredido. Nesta situação a intervenção cirúrgica exigirá mais cuidado com os nervos adjacentes (facial, em especial).

No caso das fístulas, todo o trajecto deve ser excisado após visualização com azul de metileno.

ANOMALIAS DAS ORELHAS INCLUINDO QUISTOS, FOSSETAS,
E APÊNDICES PRÉ-AURICULARES

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Quistos, fossetas e apêndices, de localização pré-auricular, não são de origem branquial, antes traduzem a existência de restos ou inclusões ectodérmicos relacionados com o desenvolvimento aberrante dos tubérculos auditivos. As fossetas têm um trajecto curto e terminação cega. Não comunicam com o ouvido externo nem com a trompa de Eustáquio.

São geralmente descobertos pelos pais ou pelo médico logo após o nascimento. Raramente evidenciam drenagem de líquido sebáceo, que é de cheiro intenso; a presença do referido líquido traduz, em princípio, comunicação provável com quistos subcutâneos.

As anomalias congénitas verificadas nas orelhas (ou pavilhões auriculares) traduzem-se fundamentalmente por alterações da morfologia, das dimensões, da implantação (baixa ou normal), do ângulo de inserção, e associação a defeitos na área limítrofe e/ou do canal auditivo externo, ou do ouvido em geral. Discriminam-se a seguir a microtia e o hellix valgum.

Microtia

Microtia ou orelhas de dimensões reduzidas associa-se em geral a outros defeitos morfológicos e funcionais do foro ORL. Em geral fazem parte de síndromas plurimalformativas hereditárias. Após exame clínico rigoroso, a criança deve ser encaminhada para ORL para avaliação funcional auditiva. Em geral, torna-se necessária a cooperação doutros especialistas e profissionais de saúde.

Hellix valgum

Esta situação traduz-se por afastamento exagerado das orelhas da região mastoideia, dando o aspecto “em apagador de velas”.

Tratamento

É cirúrgico devendo ser levado a cabo antes que haja infecção, o que agrava o prognóstico (intervenção mais difícil e possível formação de cicatriz inestética). Neste tipo de defeitos raramente é evidenciada drenagem de líquido sebáceo; se surgir, a excisão é prioritária dada a eventualidade de infecção secundária (em geral por estafilococo).

Poderá verificar-se recidiva.

QUISTO DO CANAL TIROGLOSSO

Etiopatogénese e importância do problema

O quisto do canal tiroglosso é uma tumefacção redonda na zona do osso hióide, correspondendo a um resíduo ectodérmico; desenvolve-se junto à linha de descida da glândula tiroideia, da base da língua para o lobo piramidal da referida glândula.

A porção média do canal permanece como um tubo microscópico descontínuo, de epitélio indiferenciado, que passa através do osso hióide, ou que não ultrapassa o periósteo deste.

Trata-se da massa cervical mais frequente da linha média do pescoço, raramente se manifestando na data do nascimento; é observado com mais frequência entre os 2 e 10 anos. Em cerca de 30% dos casos pode ser identificado no referido quisto tecido tiroideu ectópico e, em 10%, tecido adenocarcinomatoso papilar.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O referido quisto pode desenvolver-se desde a base da língua até à zona retrosternal. O exame físico revela, na linha média do pescoço, massa quística lisa, mole e indolor (excepto quando se verifica infecção secundária), a qual se movimenta com a deglutição ou exteriorização da língua (no caso de quisto dermóide não se verifica tal mobilidade). Como resultado da infecção verifica-se na pele.

O diagnóstico diferencial deve fazer-se, para além do quisto dermóide, com a tiroideia ectópica, com o tumor da tiroideia e com a linfadenite submentoniana. A ecografia pode dar contributo importante.

Para evitar a ressecção inadvertida de tecido tiroideu ectópico no âmbito da tentativa de ressecção do quisto tiroglosso, está indicada a realização em casos seleccionados de estudo funcional da tiroideia, incluindo cintigrafia.

Tratamento

Uma vez feito o diagnóstico, deve proceder-se à excisão do quisto e do trajecto até à base da língua, englobando a porção média do osso hióide (operação de Sistrunk). Como em toda a cirurgia do pescoço, deve ser deixado um dreno fino que se retira às 24 horas.

Está indicada antibioticoterapia nos casos com infecção.

QUISTOS DERMÓIDE E EPIDERMÓIDE

Estas estruturas nodulares ou semi-esferóides (com algumas características comuns quanto à etiopatogénese, e sempre com indicação cirúrgica), têm tamanhos variáveis, consistência elástica, e desenvolvem-se por inclusão de restos de células epidérmicas, na derme ou epiderme. Em ambas as situações se pode verificar infecção secundária e/ou fistulização.

Os quistos epidermóides (também chamados quistos de inclusão epidérmica) constituem as lesões nodulares mais frequentes na idade pediátrica. Podem resultar, quer da oclusão dos folículos pilo-sebáceos, quer da implantação de células epidérmicas na derme como resultado de lesão traumática da epiderme, quer a partir de restos de células epidérmicas. A sua parede (que pode sofrer ruptura e levar a infecção secundária, designadamente por S. aureus) deriva do infundíbulo folicular, sendo que o conteúdo da cavidade está preenchido por material queratinizado semelhante a queijo.

Os quistos dermóides têm a particularidade de estarem localizados na linha média, alinhados com as suturas ósseas do crânio, o que implica o diagnóstico diferencial com situações relacionadas com defeitos do tubo neural e, designadamente com encefalocele, fibroma, glioma e meningocele. Tal característica implica cuidado especial ao decidir por intervenção cirúrgica, obrigando a aplicar a regra semiológica muito simples, mas muito importante: toda e qualquer tumefacção da linha média, desde o nariz até ao cóccix, até prova em contrário, poderá estar relacionada com defeito de encerramento do tubo neural.

Nos dois tipos de quistos, a infecção secundária implica obviamente antibioticoterapia (em princípio, antiestafilocócica).

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ANOMALIAS BUCOFACIAIS

Sistematização

Neste capítulo são abordados dois tópicos fundamentais:

  1. Fenda labial e fenda alvéolo-palatina; e
  2. Anomalias da boca.

As anomalias das orelhas constam do capítulo seguinte.

1. FENDA LABIAL E FENDA ALVÉOLO-PALATINA

Aspectos epidemiológicos 

Estes defeitos, considerados entidades distintas, têm afinidades embriológicas, funcionais e genéticas. Por vezes usa-se o termo de “lábio leporino” (ou semelhante ao do coelho) como sinónimo de fenda labial.

Podem surgir isoladamente ou associados. A incidência de fenda labial, com ou sem fenda alvéolo-palatina, é cerca de 1/800 RN caucasianos, com predomínio no sexo masculino; quanto à fenda palatina, surgindo isoladamente, a incidência é cerca de 1/2.500 RN caucasianos. Estudos epidemiológicos apontam para incidências mais elevadas na Ásia, e menos em África.

São descritos os seguintes padrões:

  1. Fenda isolada ao nível do palato mole (podendo manifestar-se apenas por úvula bífida);
  2. Fenda labial com ou sem fenda do palato duro, podendo envolver, ou não, a arcada alveolar do maxilar superior.

As anomalias descritas podem ser unilaterais ou bilaterais, e completas ou incompletas. A fenda palatina isolada está mais frequentemente associada a outras anomalias congénitas, designadamente dentes deformados, supranumerários ou ausentes. A combinação de fenda palatina e de fenda labial predomina no sexo masculino.

Etiopatogénese

Estão descritas diversas teorias sobre o processo embriológico que origina tais defeitos. Relativamente à fenda labial admite-se, como explicação mais provável, hipoplasia do folheto mesenquimatoso, com falência de fusão dos processos maxilar e nasal mediais. A fenda palatina parece resultar de não aproximação ou fusão das placas palatinas direita e esquerda, no sentido lateral       medial.

A testemunhar a forte componente genética desta anomalia é a demonstração de risco elevado de recorrência (que pode ser da ordem de 50%), havendo antecedentes em familiares do primeiro grau afectados. Há, com efeito, casos descritos dos referidos defeitos, herdados de modo dominante (síndroma de van der Woude).

Por outro lado, a demonstrar o papel possível do factor ambiente, tem sido verificado o efeito teratogénico de determinadas substâncias, tais como fenitoína, ácido valpróico, talidomida, álcool, tabaco, dioxinas, certos herbicidas, etc..

Os referidos defeitos podem também estar associados a determinadas síndromas com ou sem anomalias cromossómicas (Parte III).

Manifestações clínicas

A existência de fenda labial e de fenda alvéolo-palatina pode repercutir-se em diversas funções e no processo de erupção dentária, o que pode ser agravado pela associação a outros defeitos.

Assim, pode verificar-se:

  • Interferência na função de sucção – deglutição, determinando dificuldade de alimentação, sobretudo nos primeiros meses (o que implica frequentemente o uso de tetinas especiais e, inclusivamente, o recurso a gastrostomia nos casos mais complexos);
  • Nos casos de fenda palatina, sobretudo do palato duro, havendo comunicação entre as cavidades oral e nasal, interferência na fonação e audição.

São considerados factores agravantes, a bilateralidade, a existência de defeitos associados, tais como deformação e assimetria do maxilar superior e hipoplasia muscular e óssea regionais.

Nota importante: a verificação dos defeitos em análise não constitui contra-indicação para alimentação ao peito, embora tal acto implique vigilância e cuidados especiais, assim como aprendizagem por parte da mãe lactante, designadamente quanto a riscos existentes (por ex. aspiração de leite para a via respiratória, hipóxia, etc.). Assim, na fase inicial deste processo está indicada a vigilância da oxigenação tecidual através da oximetria de pulso (% de saturação em oxigénio, transcutânea).

Tratamento

Para além dos cuidados gerais inerentes aos vários tipos de disfunção descritos antes, no que respeita à correcção cirúrgica, obviamente indicada, a mesma deverá ser efectuada em centro especializado de cirurgia pediátrica.

Como se pode depreender, a prestação de cuidados implica a colaboração de uma vasta equipa multidisciplinar de enfermeiros, médicos (no âmbito da Pediatria Geral, Medicina Familiar, Cirurgia Pediátrica, Estomatologia, Ortodôncia, Cirurgia Maxilofacial, Otorrinolaringologia, Fisiatria, Genética, etc.), psicólogos, terapeutas da fala, etc..

O seguimento em ambulatório pode ser levado a cabo em instituições com menor nível de diferenciação, a cargo do médico assistente, sendo desejável uma interligação harmoniosa, sem esquecer o papel cooperante e imprescindível da família.

A idade para intervenção cirúrgica é abordada adiante, noutro capítulo, em comparação com a indicada para outros problemas do foro cirúrgico pediátrico.

Complicações

As complicações mais frequentes relacionam-se, sobretudo, com cicatrizes inestéticas, má-oclusão dentária, rinolália, défice auditivo, dificuldades da fala (implicando, por vezes terapia específica), e maior probabilidade de otite média recorrente.

2. ANOMALIAS BUCAIS

Sistematização

O exame objectivo da cavidade bucal (pela inspecção e palpação) permite, na maior parte das vezes, o diagnóstico, não só de alterações congénitas, como adquiridas.

Na perspectiva do cirurgião pediátrico, as principais situações clínicas (algumas correspondendo a variantes fenotípicas) identificadas pelo pediatra ou médico de família que poderão requerer consultadoria ou, eventualmente, intervenção cruenta, são discriminadas a seguir. Dum modo geral, ao encaminhar o caso ao cirurgião, não será necessário proceder a exames complementares.

Rânula

A rânula (do latim Rana = rã) é uma tumefacção esferóide de cor rósea-azulada, que corresponde a quisto de localização sublingual, de dimensões variáveis (tamanho de pequena ervilha ou maior); pode estar em relação com obstrução de canal excretor da glândula sublingual ou de glândula mucosa.

O tratamento é cirúrgico electivo.

Mucocele

A mucocele é uma bolsa quística das glândulas salivares, resultante de obliteração do orifício excretor do canal de Wharton. Pode igualmente tratar-se de quisto com muco acumulado por dificuldade de drenagem de glândula mucosa.

Não tem indicação cirúrgica por ser auto-limitado. (Figura 3)

FIGURA 1. Lábio leporino bilateral.

FIGURA 2. Fenda palatina.

FIGURA 3. Mucocele do lábio inferior.

Anquiloglóssia

Esta variante fenotípica consiste no encurtamento exagerado do freio do lábio inferior impedindo a protusão da língua para além do bordo labial. Sob o aspecto estritamente médico não constitui um verdadeiro problema; contudo, origina certo grau de ansiedade na família pelo facto de “poder dificultar a fala”, o que é controverso. Há casos descritos em que foi demonstrada certa dificuldade na amamentação. Nos casos em que o esforço de protusão origina aspecto de bifidez intermitente da extremidade da língua (desaparecendo quando a mesma se recolhe dentro da boca), nalguns centros, por razões de psicoterapia anti-ansiedade da criança e família, procede-se à incisão do referido freio.

Inserção baixa do freio labial superior

Nesta variante fenotípica, o freio do lábio superior pode ter base de inserção atingindo o bordo gengival superior, o que leva ao afastamento dos incisivos superiores (diastema). Em geral a situação corrige-se até à erupção da dentição definitiva.

No caso de tal não acontecer, nalguns centros procede-se à incisão do freio, o que contribuirá para diminuir ou corrigir completamente o diastema.

Nota importante: poderá verificar-se tumefacção ou dilatação global da glândula sublingual (a glândula que mais directamente está em relação com a cavidade bucal) resultante de obstrução (recorrente) do canal excretor por cálculo. Esta situação, que é mais frequente na submaxilar e parótida (não em relação directa com a mucosa bucal), poderá estabelecer a indicação de sialografia. Como medida simples, está indicado que a criança chupe pastilhas e faça exercícios de mastigação (obviamente em idades apropriadas) no sentido de estimular o débito da secreção salivar; pode proceder-se a massagem/compressão da glândula e, em caso de infecção, a antibioticoterapia.

BIBLIOGRAFIA

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O´Neill Jr JA, Rowe MI, Grosfeld JL, et al (eds). Pediatric Surgery: Philadelphia: Elsevier, 2017

AMEBÍASE

Definição e importância do problema

A amebíase é uma doença parasitária provocada por diferentes espécies do género Entamoeba, com elevada prevalência a nível mundial. Trata-se dum protozoário flagelado não móvel, correspondendo a espécie E. histolytica o principal agente implicado.

Tal afecção constitui a terceira causa mundial de morte por infecções parasitárias.

Aspectos epidemiológicos

A E. histolytica é responsável a nível mundial por cerca de 50 milhões de infecções sintomáticas e de 100.000 mortes /ano.

As zonas do globo mais atingidas, com baixo nível socioeconómico e sanitário e prevalência superior a 50%, correspondem ao Sueste Asiático, Índia, América Central, América do Sul e África.

Etiopatogénese

O tracto intestinal é colonizado por diferentes espécies do género Entamoeba. Embora se considere classicamente que a E. histolytica é a única espécie patogénica, em estudos recentes foi admitida a possível comparticipação doutras como E. dispar e E. moshkowskii.

A infecção produz-se pela ingestão de quistos presentes na água, alimentos ou mãos contaminadas, ou por contacto fecal-oral. Na mucosa intestinal, a ruptura dos quistos leva à libertação de trofozoítos (formas intraluminais de trofozoítos). Não estão descritos casos de transmissão vertical.

Numa pequena proporção, pela lesão da mucosa intestinal, poderá verificar-se disseminação de trofozoítos por via hematogénica, atingindo o fígado e outros órgãos, ocasionando quadro de doença invasiva (formas invasoras de trofozoítos). A gravidade da situação depende sobretudo da susceptibilidade do hóspede e da virulência do parasita.

Manifestações clínicas

Salientando que, na sua maioria, as infecções amebianas são assintomáticas, a sintomatologia mais habitual é a de diarreia de intensidade moderada e de dor abdominal. Com base no esquema etiopatogénico atrás descrito, são descritas duas formas clínicas: amebíase intestinal e amebíase extraintestinal.

Amebíase intestinal

Após um período de incubação de 2 a 4 semanas, surge febre, tenesmo, dor abdominal e diarreia ligeira a grave, com muco e sangue, durando entre 1 e 3 semanas e levando a perda de peso. A desnutrição e a corticoterapia contribuem para incrementar a susceptibilidade.

Poderão surgir raramente complicações, descrevendo-se perfuração intestinal, colite fulminante e peritonite. No caso de surgir diarreia crónica, as características do quadro clínico aproximam-se das de doença inflamatória intestinal.

Amebíase extraintestinal

Forma clínica mais rara, as respectivas manifestações decorrem sobretudo de patologia hepática, pulmonar, cardíaca ou do SNC.

Exames complementares

Fundamentalmente, os métodos de diagnóstico incluem exame microscópico das fezes para detecção de quistos e trofozoítos, detecção antigénica para diferenciação morfológica das diversas espécies com especificidade > 90%, serologia para detecção de anticorpos e técnicas moleculares para detecção de ADN por PCR.

A colonoscopia tem indicação em situações selecionadas.

Os exames de imagem estão indicados no âmbito da amebíase extraintestinal. A ecografia tem grande utilidade para avaliar a resposta ao tratamento do abcesso amebiano.

Tratamento

Com o tratamento pretende-se a eliminação das formas invasoras de trofozoítos e das formas intraluminais intestinais.

Como regras gerais, importa salientar:

  • o metronidazol, o tratamento de primeira linha, deve associar-se sempre a fármaco amebicida com actividade intraluminal;
  • o regime terapêutico poderá variar em função da sintomatologia e não em função da espécie;
  • a infecção por E. histolytica deve tratar-se independentemente da sintomatologia.

Situações específicas

Infecção assintomática

O metronidazol não é efectivo contra os quistos de Entamoeba. Neste contexto, deve administrar-se um amebicida com actividade intraluminal como a paramomicina (25-35 mg/kg/dia em três doses, durante 7 dias) e o iodoquinol (30-40 mg/kg/dia em três doses, durante 20 dias) ou, em alternativa, o furoato de diloxanida (20 mg/kg/dia em três doses, durante 10 dias).

Amebíase invasiva (intestinal e extraintestinal)

O tratamento de eleição é o metronidazol (35-50 mg/kg/dia em três doses, durante 7-10 dias). Como alternativas, citam-se: o tinidazol, o ornidazol, o secnidazol, a cloroquina e a nitazoxanida. Como foi referido, ao metronidazol deve associar-se sempre um fármaco amebicida com actividade intraluminal.

O tratamento cruento/cirúrgico poderá estar indicado nos casos de ausência de resposta ao tratamento e nos casos de complicações. Verificando-se abcesso amebiano, está indicada punção e drenagem com o apoio ecográfico.

Prevenção

Não existindo ainda vacinas, são reforçadas as medidas gerais de higiene pessoal, de saneamento básico e de boa qualidade da água para consumo público.

Salienta-se que os quistos são resistentes às concentrações de cloro para o tratamento da água potável.

Os viajantes para zonas endémicas devem evitar o consumo de água não tratada, de comida não cozinhada e de verduras e frutos lavados com água não tratada.

BIBLIOGRAFIA

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Ximenes C, Cerritos R, Rojas L, et al. Human amebiasis: breaking the paradigm? Int J Environ Public Health 2010; 7: 1105-1120

MALÁRIA

Definição e importância do problema

A malária (palavra sinónima de paludismo ou sazonismo) é uma doença potencialmente fatal, causada pelo parasita protozoário Plasmodium spp. e transmitida ao ser humano pela picada de algumas espécies de mosquitos do género Anopheles. Existem cinco espécies de Plasmodium que infectam o ser humano: P. falciparum, P. vivax, P. ovale, P. malariae e P. knowlesi. Esta última espécie, causadora de malária em macacos, foi descrita como sendo causa de doença em humanos no Sueste Asiático.

A afecção que faz parte deste capítulo caracteriza-se fundamentalmente por paroxismos de febre, sudação, fadiga, anemia e esplenomegália. Pelo facto de anualmente ocorrerem em todo o mundo cerca de 216 milhões de casos com 445.000 mortes, e por ser endémica em aproximadamente 100 países, é considerada a doença parasitária com maior impacte a nível global.

Por fim, salientando que a África subsaariana continua a ser a região com mais casos de malária (88% dos casos), sendo responsável por 90% das mortes, e que cerca de 70% das mortes em termos globais ocorreu em crianças com menos de cinco anos de idade, é legítimo concluir que metade da população mundial vive exposta ao risco de a contrair.

Aspectos epidemiológicos

As principais áreas de transmissão correspondem a África, Ásia e América do Sul, entre latitudes de 40ºN e 30ºS.

A quase totalidade dos casos de malária grave relaciona-se com a espécie P. falciparum, a qual predomina na África ao sul do Saara; contudo, também é a espécie predominante no Bangladesh, Camboja, Filipinas, Haiti, Índia, Indonésia, Laos, Myanmar, Papua Nova Guiné e Timor-Leste.

Nas regiões temperadas, nomeadamente na América Central, Afeganistão e Paquistão predomina a espécie P. vivax. Em conjunto, P. vivax e P. falciparum predominam no Sueste da Ásia, América do Sul e Oceania. P. ovale, a espécie menos comum, ocorre quase exclusivamente em África. A transmissão é mais propícia durante a estação das chuvas nos climas tropicais; contudo, na região equatorial ocorre durante todo o ano.

A transmissão da malária foi praticamente eliminada nos EUA e Canadá, Europa, Austrália, Chile, Japão, Coreia, Israel, Líbano e Taiwan. (Figura 1)

Nos países ocidentais a doença tem surgido sobretudo em viajantes ou imigrantes de áreas endémicas. Em Portugal, a doença é de declaração obrigatória; de acordo com as estatísticas (que se referem a “malária importada”), no quadriénio 2009-2012 foram notificados 217 casos (média anual de 54,2), correspondendo quatro a idades < 14 anos, e doze a idades entre 15-24 anos. No Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, foram observados 79 casos no decénio 1998- 2007, sem ocorrência de óbitos.

Etiopatogénese

O parasita é transmitido ao homem pela picada da fêmea do mosquito do género Anopheles. Na África subsaariana, o vector mais importante na transmissão pertence à espécie Anopheles gambiae. A malária pode também ser transmitida através da transfusão de sangue ou derivados, transplantes, agulhas de seringas com sangue contaminado, e de modo vertical, durante a gravidez via transplacentar mãe-feto (pré-natal), ou intraparto (perinatal).

FIGURA 1. Distribuição geográfica da malária e estádios evolutivos. (Tirada de OMS, Global Malaria Mapper, 2016)

O ciclo de vida do protozoário em análise é complexo, estando adaptado à sobrevivência em diferentes meios celulares, quer no hospedeiro humano (na fase assexuada), quer no mosquito vector (na fase sexuada, com produção de gâmetas). Em termos quantitativos, a reprodução traduz-se no incremento de número de protozoários no organismo humano, da ordem de ~102 para ~1014, em duas fases (1ª fase, nas células parenquimatosas hepáticas – fase exoeritrocitária; e 2ª fase, nos eritrócitos – fase eritrocitária).

A fase exoeritrocitária começa com a picada do mosquito (entre o anoitecer e amanhecer), o qual injecta pequena quantidade de saliva contendo esporozoítos. Em minutos, os esporozoítos veiculados pelo sangue entram nos hepatócitos, onde se multiplicam assexuadamente (esquizontes ou esporozoítos em fase de multiplicação assexuada); cerca de 1-2 semanas depois os esporozoítos, transformando-se em merozoítos, provocam rupturas nos hepatócitos, libertam-se e entram na circulação sanguínea. A invasão dos eritrócitos ocorre através de receptores de superfície dos eritrócitos, específicos para cada uma das espécies de Plasmodium.

A fase eritrocitária inicia-se com a entrada nos eritrócitos de merozoítos, provenientes do fígado. O crescimento dos parasitas nos eritrócitos leva ao consumo do conteúdo eritrocitário, fundamentalmente a hemoglobina. No caso de P. falciparum, este começa a exibir após algumas horas nos eritrócitos, a proteína Plasmodium falciparum erythrocyte membrane protein 1 (PfEMP1), no exterior da superfície dos eritrócitos infectados, que medeia a ligação dos eritrócitos ao endotélio vascular; este mecanismo está associado às formas mais graves.

Uma vez no interior dos eritrócitos, os parasitas assumem a forma em anel, o qual aumenta de dimensões – é a evolução para trofozoítos (trofozoítos em fase precoce). Por sua vez, os trofozoítos multiplicam-se assexuadamente nos eritrócitos para produzirem um pequeno número de merozoítos eritrocitários os quais são libertados para a corrente sanguínea com a ruptura da membrana eritrocitária; esta invasão do sangue é acompanhada de febre.

Com o tempo, alguns merozoítos libertados dos eritrócitos diferenciam-se sexualmente, com formação de microgâmetas (gametócitos macho/M) e macrogâmetas (gametócitos fêmea/F), que são ingeridos durante uma refeição de sangue, através da picada do hospedeiro humano pela fêmea do mosquito Anopheles. No estômago do mosquito os microgâmetas penetram os macrogâmetas, dando origem ao zigoto que, após transformações sucessivas, origina os esporozoítos que migram para as glândulas salivares. O mosquito está agora em condições de inocular esporozoítos no próximo hospedeiro aquando da picada para se alimentar de sangue deste, completando o ciclo de vida de Plasmodium spp. Como particularidades deste ciclo há a referir que algumas formas de P. vivax e P. ovale – os hipnozoítos – poderão permanecer no fígado durante longos períodos e provocar recidivas, meses ou anos mais tarde.

Este processo biológico complexo gera alterações patológicas (febre, anemia, distúrbios imunopatológicos e hipóxia tecidual), as quais permitem compreender as manifestações clínicas.

A febre – como atrás foi dito – surge quando se verifica ruptura eritrocitária e libertação de merozoítos na circulação. A anemia explica-se pela hemólise, sequestração de eritrócitos no baço e outros órgãos, assim como pela repercussão sobre as células progenitoras eritropoiéticas da medula óssea dos mediadores libertados inflamatórios. Os distúrbios imunopatológicos associados à malária incluem essencialmente activação policlonal com diversas consequências: hipergamaglobulinémia, formação de imunocomplexos, imunodepressão, e excessiva formação de citocinas pró-inflamatórias (especialmente o factor de necrose tumoral alfa (TNF-α), interferão gama (IFN-γ) e interleucina-1 (IL-1)) com efeito patogénico multiorgânico incluindo hipóxia tecidual.

A adesão dos eritrócitos infectados ao endotélio vascular – ocorrendo mais frequentemente com P. falciparum – pode levar a obstrução do lume vascular e diminuição do débito sanguíneo, assim como a ruptura capilar com extravasão de sangue/plasma, fuga proteica e hipóxia tecidual. Como resultado da hipóxia, o metabolismo em anaerobiose origina hipoglicémia e acidose láctica.

Em suma, o conjunto destas alterações fisiopatológicas repercute-se em vários territórios com risco elevado de disfunção multiorgânica (designadamente ao nível do cérebro, coração, intestino e fígado).

A imunidade para a malária pode ser inata (isto é, geneticamente determinada), ou adquirida. A imunidade inata contribui para a destruição dos parasitas, através do baço, dos macrófagos e monócitos, principalmente os macrófagos da zona marginal do baço, através:

  • de receptores de reconhecimento de padrões (PRR), como os Toll-like receptors (TLR) e NOD-like receptors (NLR), que reconhecem padrões moleculares associados ao patogénio altamente conservados;
  • do papel activo do sistema complemento.

A imunidade adquirida pode ser passiva ou activa; a passiva pode ser devida à passagem transplacentar (mãe-feto) de anticorpos IgG anti-plasmódio; a activa desenvolve-se lentamente como resposta à infecção por plasmódios.

Nos mecanismos de imunidade contra plasmódios intracelulares têm papel fundamental os mediados por células (linfócitos T, macrófagos, polimorfonuclares, sistema reticuloendotelial do baço, etc.), enquanto os relacionados com anticorpos IgM, IgG e IgA (imunidade humoral) actuam fundamentalmente nos plasmódios extracelulares.

A imunidade após infecção por Plasmodium é incompleta, possibilitando ao hospedeiro evitar, até certo ponto, formas graves de doença, mas não a eliminação do parasita ou prevenir futuras infecções. Nalguns casos, a circulação de parasitas em pequeno número, na ausência de multiplicação rápida durante tempo prolongado, poderá originar formas clínicas não graves. No entanto, é possível que surjam episódios repetidos de doença, quando o parasita cria respostas imunes invasivas, tais como replicação intracelular, adesão eritrocitária ao endotélio vascular impedindo a sua passagem pelo baço, rápida variação antigénica e supressão ou depressão da resposta imune do hospedeiro.

Os eritrócitos contendo Hb S, Hb F, os que não têm antigénios do sistema Duffy, assim como os ovalócitos, são mais resistentes à malária.

Manifestações clínicas

O período médio de incubação da malária, considerando as várias espécies, é respectivamente: P. falciparum: 9-14 dias; P. knowlesi: 1-12 dias; P. vivax: 12-17 dias; P. ovale: 16-18 dias; P. malariae: 18-40 dias. Contudo, estes períodos podem ser mais longos, por vezes meses ou mesmo anos. Os grupos populacionais de maior risco são: crianças com idade inferior a cinco anos, grávidas e viajantes provenientes de áreas não endémicas.

Nalguns doentes ocorre um período prodrómico de 2-3 dias antes de os parasitas serem detectados no sangue, constituído por cefaleias, mialgias, febre ligeira, dor torácica e abdominal, artralgias e mal-estar geral. As manifestações clínicas da malária não grave, comuns nas cinco espécies, dependem do estado imunitário prévio dos pacientes e da idade. A maioria dos casos graves de malária ocorre em crianças entre os seis meses e os três anos de idade. Os sintomas mais leves ocorrem em crianças mais velhas e adultos, cuja parasitémia é geralmente mais baixa.

Na sua forma clássica, a malária tem um quadro de apresentação que raramente é observado noutras doenças infecciosas: paroxismos (com febre alta, arrepios, sudação intensa, cefaleias, dificuldade respiratória, mialgias, dores lombares e abdominais, anorexia, náuseas, vómitos, diarreia, palidez e icterícia), alternando com períodos de relativo bem-estar, embora com certo grau de fadiga.

Os referidos paroxismos coincidem com a ruptura dos esquizontes que ocorre com intervalos de 48 horas nos casos de P. vivax e P. ovale, e de que resultam “picos febris” em dias alternados; nos casos de P. malariae a referida ruptura ocorre com intervalos de 72 horas, com consequentes “picos febris” de 3-3 ou de 4-4 dias. A periodicidade torna-se menos aparente com P. falciparum, P. knowlesi e infecções mistas.

Os doentes com infecção primária, tais como viajantes provenientes de regiões não endémicas, podem também ter episódios sintomáticos irregulares durante 2-3 dias antes do início dos paroxismos regulares. Nas crianças com mais de dois meses não imunes, as manifestações clínicas de malária podem variar muito, entre febrícula e cefaleia, e febre alta associada a vómitos, diarreia, palidez, cianose, anemia, hepatoesplenomegália, trombocitopénia, leucopénia, por vezes em combinação.

As manifestações mais frequentes de malária grave (em geral associadas a P. falciparum) são alterações do estado de consciência que podem culminar no coma, dificuldade respiratória e anemia. Outras manifestações de gravidade incluem acidose metabólica, desidratação e sinais neurológicos (convulsões focais, rigidez de descerebração ou de descorticação, opistótono, reflexos plantares anormais, reflexos abdominais ausentes, etc.).

Quando a alteração do estado de consciência nos casos de malária por P. falciparum não pode ser explicada por hipoglicémia, convulsões ou qualquer outra causa, utiliza-se o termo de malária cerebral.

Descreve-se hoje um quadro de retinopatia da malária, não observável noutras infecções: áreas discretas de “branqueamento” da retina e aspecto de pequenos vasos de cor prateada, alaranjada ou esbranquiçada, em pequenos focos dispersos.

Outro aspecto particular ligado à malária por P. falciparum é a chamada esplenomegália hiperreactiva (associada a elevação de IgM, títulos elevados de anticorpos antimaláricos e a linfocitose sinusal hepática).

O Quadro 1 descreve a frequência relativa das manifestações clínicas e laboratoriais associadas a valor prognóstico, segundo critérios da OMS.

A recrudescência após ataque primário pode ocorrer devido à sobrevivência de formas eritrocitárias na corrente sanguínea. A recaída a longo prazo é provocada pela libertação de merozoítos a partir de fonte exoeritrocitária no fígado (P. vivax e P. ovale), ou persistência eritrocitária (P. malariae). A verificação de sintomatologia típica várias semanas após retorno de viajante de zona endémica é a favor de infecção por P. vivax, P. ovale ou P. malariae.

A malária por P. falciparum associada a mais intensa parasitémia corresponde, como foi referido, à forma mais grave, implicando medidas médicas de emergência. Com efeito, nesta forma a parasitémia em termos quantitativos relativos pode ser > 60% (explicável por infectar eritrócitos maturos e imaturos); em comparação, a parasitémia considerando em conjunto P. ovale e P. vivax (infectando somente eritrócitos imaturos), e P. malariae, (infectando somente eritrócitos maturos), é muito menor: < 2%.

Quadro 1 – Frequência relativa das principais manifestações de malária grave em crianças e adultos (valor prognóstico).

Fonte: OMS 2000; *Escala de relevância; +→++→+++;+/- = achado pouco frequente
Valor prognóstico*

 

Manifestações clínicas e laboratoriais

Frequência*
criançasadultoscriançasadultos
+?prostração++++++
+++++alteração da consciência+++++
++++++dificuldade respiratória++++
+++convulsões++++
++++++colapso circulatório++
++++++edema pulmonar+/-+
+++++hemorragia+/-+
+++icterícia++++
++hemoglobinúria+/-+
++anemia grave++++
++++++hipoglicémia++++
++++++acidose+++++
++++++hiperlactacidémia+++++
+/-++hiperparasitémia+++
++++alteração da função renal++++

De salientar, ainda, as particularidades seguintes:

  1. A malária por P. vivax, embora menos grave do que a malária por P. falciparum, comporta maior risco de ruptura do baço;
  2. A malária por P. malariae tem como características fundamentais a maior benignidade, e também a maior tendência para a cronicidade, estando descritas formas com recrudescimento vários anos após ataque agudo;
  3. A malária por P. ovale é a forma mais rara, mais frequentemente associada a P. falciparum, e evidenciando-se de modo semelhante à provocada por P. vivax.

A passagem transplacentar de Plasmodium spp, com taxas de transmissão entre 10% e 54%, é comum em áreas endémicas.

Em mães não imunes, a malária congénita, mais comum, pode ser relacionada com qualquer espécie de Plasmodium. Os sinais surgem em geral entre os 10 e 30 dias de vida (com ampla variação entre 14 horas e vários meses): irritabilidade, febre, vómitos, dificuldade alimentar, diarreia, cianose e hepatoesplenomegália.

Surgindo a malária durante a gravidez, o quadro mórbido verificado na grávida poderá ter repercussões sobre o feto ou RN pela infecção da placenta, independentemente de haver, ou não, transmissão mãe🡪filho.

Diagnóstico

Como regra, pode presumir-se que qualquer caso de criança ou adolescente com febre e sinais de doença sistémica, e que tenha viajado para ou residido em zonas endémicas de malária há menos de um ano, possa estar afectada por malária, mesmo que tenha sido submetida a quimioprofilaxia. (ver adiante)

Nos casos com uma ou mais das seguintes condições, existe elevada probabilidade de etiologia pela espécie P. falciparum:

  1. Os sintomas ocorrendo < 1 mês após o regresso;
  2. Parasitémia > 2%;
  3. Parasitas em forma de anel (trofozoítos precoces);
  4. Eritrócitos infectados com mais de um parasita.

Para que haja maior probabilidade de detectar os parasitas, deve colher-se o sangue durante os ataques febris e antes da administração de qualquer agente terapêutico. Devem ser examinadas as preparações de sangue em gota espessa, em três ocasiões diferentes (por vezes, é necessário repetir o procedimento cada 4 horas/dia, sendo que o diagnóstico só deve ser excluído após um mínimo de três pesquisas negativas, com intervalo de 12 horas), procedendo-se à coloração pelo método de Giemsa (superior ao de Wright ou de Leishman). Os parasitas da malária apresentam-se como corpos corados de vermelho (material nuclear) e de azul (citoplasma) com grânulos negros ou castanhos, nas últimas fases de desenvolvimento, que ocorrem no interior dos eritrócitos.

Outros métodos (não dispensando o descrito exame microscópico, de primeira linha) que podem ser utilizados são:

  • Detecção de anticorpos da malária através da imunofluorescência indirecta (IFA) e do imunoensaio enzimático (ELISA);
  • Prova com anticorpo monoclonal;
  • Estudo molecular por PCR (reacção em cadeia da polimerase);
  • Detecção de antigénios da malária, sendo o mais significativo a imunocromatografia, que é a base dos testes de diagnóstico rápido comerciais disponíveis actualmente.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da malária faz-se com larga série de doenças víricas ou bacterianas (sépsis, meningite, encefalite, endocardite, brucelose, febre recorrente, febre tifóide, etc.), doença de Hodgkin, colagenoses, entre outras.

Tratamento

O tratamento da malária consiste fundamentalmente em:

  • Medidas gerais de suporte;
  • Medidas específicas (farmacoterapia antimalárica); e
  • Tratamento das complicações, descritas adiante.

A base do tratamento da malária simples ou não complicada por P. falciparum, recomendada pela OMS, são as combinações dos derivados da artemisinina (ACT). Como alternativa, poderá ser utilizada a combinação atovoaquona/proguanil, a mefloquina ou o quinino. A cloroquina é o fármaco indicado para malária não falciparum. (Quadros 2 e 3)

O fármaco recomendado pela OMS no tratamento inicial da malária grave é o artesunato endovenoso ou intramuscular durante, pelo menos, 24 horas, até que haja tolerância oral.

As alternativas existentes são o artemeter e o quinino em associação à doxiciclina ou clindamicina, por via endovenosa, durante sete dias. O quinino, por via parentérica deve ser substituído, logo que possível, pela via oral. A doxiciclina não deverá ser utilizada em crianças com menos de oito anos de idade.

QUADRO 2 – Fármacos recomendados pela OMS para o tratamento da malária não complicada, 2015.

Fármaco Dose e número de tomas
1ª linha
Arteméter + lumefantrina  (1 comprimido <> 20 mg de arteméter + 120 mg de lumefantrina) Via oral: 5 e 15 kg – 1cp 12/12h, 3 dias; 15 e 25 kg – 2 cp 12/12h, 3 dias; 25 e 35 Kg – 3 cp 12/12h, 3 dias; > 35 kg – 4cp 12/12h 3 dias. Nota: existem esquemas alternativos para administração em 60 h
Artesunato + amodiaquina 4 mg/kg/dia de artesunato e 10 mg/kg/dia de amodiaquina, 1id, 3 dias
Artesunato + mefloquina 4 mg/kg/dia de artesunato, 1id, 3 dias e 25 mg/kg de mefloquina, que poderá ser divido em 2 dias em 15 mg/kg e 10 mg/kg ou em 3 dias com 8,3 mg/kg/dia, 1id, 3 dias
Artesunato + sulfadoxina-pirimetamina 4 mg/kg/dia de artesunato, 1id, 3 dias e uma administração única de 25/1,25 mg/kg sulfadoxina-pirimetamina em D1
Artenimol + piperaquina 5 e 7 kg: 10 mg de artenimol + 80 mg de piperaquina; 7 e 13 kg: 20 mg de artenimol + 160 mg de piperaquina; 13 e 24 kg: 1 comprimido (1 comprimido <> 40 mg de artenimol + 320 mg de piperaquina); 24 e 36 kg: 2 cp (1 cp <> 40 mg de artenimol + 320 mg de piperaquina); Administrar durante 3 dias consecutivos num total de 3 doses
2ª linha
Artesunato + tetraciclina ou doxiciclina ou clindamicina artesunato (2 mg/kg, 1id ) tetraciclina (4 mg/kg, 6/6h) doxiciclina (3,5 mg/kg, 1id) clindamicina (10 mg/kg, 2id) tempo de tratamento: 7 dias
Quinino + tetraciclina ou doxiciclina ou clindamicina tetraciclina (4 mg/kg, 6/6h) doxiciclina (3,5 mg/kg, 1id) clindamicina (10 mg/kg, 2id) tempo de tratamento: 7 dias

QUADRO 3 – Fármacos recomendados pela OMS para o tratamento da malária grave, 2015.

Fármaco Dose e número de tomas
Artesunato 2,4 mg/kg por via endovenosa ou intramuscular na admissão e depois às 12h e às 24h após a admissão, seguido de uma dose diária nos restantes dias de tratamento
Artemeter 3,2 mg/kg por via intramuscular na admissão e depois 1,6 mg/kg/dia
Quinino (associado à Clindamicina ou Doxiciclina) 20 mg do sal/kg na admissão por via endovenosa ou dividido em duas doses por via intramuscular, seguido de 10 mg/kg cada 8h

Complicações

Para além da referência já feita à malária cerebral, cabe referir de modo sucinto outras complicações, em geral sistematizadas como manifestações clínicas de malária grave:

  • Anemia, complicação frequente da malária grave em crianças, sendo a etiopatogénese de natureza multifactorial: – 1. destruição de eritrócitos parasitados e não parasitados e da redução da sua deformabilidade; – 2. diminuição de reticulocitose por disfunção da resposta da medula óssea por uma eritropoiese ineficaz e produção inadequada de eritropoietina; – 3. efeitos sistémicos da inflamação na eritropoiese; – 4. infecções bacterianas concomitants; e – anormalidades nutricionais prévias;
  • Insuficiência renal, complicação frequente no contexto de malária por falciparum, surge por hemoglobinúria maciça no contexto de hemólise grave com deposição de Hb nos túbulos renais, associada a diminuição do débito sanguíneo renal;
  • Edema pulmonar, complicação associada à doença (pelo aumento da permeabilidade capilar) e também iatrogénica em relação com fluidoterapia excessiva; no entanto, é mais comum nos adultos do que nas crianças;
  • Hipoglicémia, frequentemente associada à doença e ao tratamento com quinino;
  • Trombocitopénia, por vezes integrada no contexto de CIVD;
  • Ruptura esplénica, já referida; por vezes iatrogénica ao proceder-se a palpação intempestiva num quadro de esplenomegália importante;
  • Choque e síndroma de disfunção multiorgânica.

Prevenção

Os aspectos gerais da prevenção, incluindo os relacionados com a quimioprofilaxia e protecção contra insectos foram descritos no capítulo sobre Viagens, sugerindo-se a respectiva consulta. A este respeito é importante reforçar: 1 – o papel protector da roupa contra o mosquito, cobrindo a totalidade do corpo; 2 – a utilização, sempre que viável, de ambiente com ar condicionado, de mosquiteiros impregnados com permetrina durante a dormida, assim como de repelentes cujo composto padrão é DEET (N-N- dietil-m-toluamida), sendo considerados equivalentes os produtos contendo picaridina (icaridina) ou IR3535.

O desenvolvimento duma vacina eficaz é o grande desafio para o controlo da doença. Como dificuldade na sua fabricação cita-se designadamente a grande variedade antigénica do parasita nas fases eritrocitária e exoeritrocitária.

De salientar a investigação levada a cabo no CISM (Centro de Investigação em Saúde de Manhiça, com o patrocínio da Fundação Bill Gates) em Moçambique (Vacina RTS.S/ASO2A). Com o composto, utilizando um antigénio da fase pré-eritrocitária – a proteína CSP – demonstrou-se um efeito protector de 35% contra a malária clínica em crianças entre 1 e 4 anos, prevendo-se uma redução em 40% das formas mais graves e em 65% da incidência em recém-nascidos.

Considerando os casos de mães que amamentam e submetidas a medicação com antimaláricos, cabe referir que o teor do fármaco transferido mãe-filho por esta via não envolve risco para o bébé, mas não permite neste último a profilaxia da malária.

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Doença de Chagas

Generalidades sobre tripanossomíases

As tripanossomíases (T) são doenças provocadas por tripanossomas, protozoários flagelados com corpo fusiforme alongado, parasitas do sangue de grande número de animais e do Homem, fáceis de identificar por terem diâmetro maior do que dos elementos constituintes do sangue.

São descritos dois grandes grupos de tripanossomíase (T):

  1. T. africana (doença do sono) causada pelas espécies: – Trypanosoma brucei gambiense, explicando 98% das T. africanas, relacionada com a Gâmbia e estendendo-se na África Central e Ocidental; – Trypanosoma brucei rhodesiense, relacionada com a antiga Rodésia e estendendo-se na África do Sul e Oriental. A região do Uganda é a única zona africana onde coexistem as duas espécies. A T. Africana é transmitida pela picada da mosca tsé-tsé e evolui após um estado febril com lesões cutâneas (tripanides), adenopatias generalizadas, lesões viscerais e meningoencefalite difusa associada a sonolência permanente. Daí, o nome da doença;
  2. T. americana (doença de Chagas) causada pela espécie: – Tyipanosoma cruzi. Esta tripanossomíase tem como principais vectores os insectos da família Reduviidae, subfamília Triatominae, incluindo Triatoma infestans, Rhodinius prolixus e Panstronylus megistus – genericamente chamados triatominas.

Neste capítulo é dada ênfase à doença de Chagas.

Definição e importância do problema

A doença de Chagas ou tripanossomíase americana é uma antropozoonose causada, como foi referido, pelo parasita protozoário Trypanosoma cruzi (T. cruzi). A transmissão ocorre geralmente através de vector (insecto hematófago), ou por via transplacentar (partindo de mulheres grávidas com infecção crónica por T. cruzi); outras modalidades são adiante discriminadas.

Esta patologia afecta mais de 120 milhões de pessoas na América Latina (~ 25%).

A primeira descrição desta doença emergente (com três fases clínicas: aguda, indeterminada e crónica) foi feita por Carlos Chagas em 1909, o qual identificou o vector e o parasita (agente etiológico) como uma causa da doença febril aguda de trabalhadores brasileiros de caminhos-de-ferro. A OMS coloca-a no grupo das 17 doenças tropicais negligenciadas porque:

– afecta preferencialmente populações vulneráveis, com baixos rendimentos;

– constitui uma das principais causas de morbilidade crónica e mortalidade nos países afectados.

Embora historicamente não tenha sido considerada prioritária na atribuição de recursos por governos e organizações, para a investigação e prevenção, na última década foi uma das doenças emergentes mais estudadas. Na ausência de tratamento eficaz, a infecção persiste toda a vida.

Aspectos epidemiológicos

A doença de Chagas estende-se desde o Sul dos Estados Unidos ao Chile e Argentina; a par da maior prevalência no Brasil, Argentina, Bolívia e Venezuela, regista-se inexistência de casos nas Caraíbas, Belize, Suriname e Guiana.

Considerando globalmente a América Latina, em 2010 foi estimada uma prevalência da infecção por T. cruzi de 5,7 milhões, na sequência de valores anteriores de 18 milhões de doentes em 1991.

No entanto, apesar dos progressos ao longo dos anos, a doença de Chagas mantém-se como a doença parasitária ocidental mais importante, sendo responsável pela perda de anos de vida ajustados à incapacidade, 7 vezes superior à malária.

Em cerca de 20%-30% dos doentes infectados existe a probabilidade de desenvolvimento de doença crónica com risco de vida, a qual pode ser tipificada por casos de miocardiopatia e distúrbios gastrintestinais graves.

Para melhor compreensão dos modos de transmissão, importa uma referência ao ciclo de vida do agente Trypanosoma cruzi, implicando eventualmente repetição de conceitos.

Ciclo de vida

O ciclo de vida do parasita T. cruzi* compreende duas fases: de vector e humana. Importa salientar que o vector (insecto hematófago) pode parasitar diferentes animais domésticos e selvagens.

(*) No hospedeiro mamífero, o agente T. cruzi evidencia 3 fases morfogenéticas: amastigotas, tripomastigotas e epimastigotas. Os amastigotas são formas intracelulares encontradas nos tecidos dos mamíferos, esféricas com um curto flagelo, assumindo a forma oval dentro dos tecidos infectados. Os tripomastigotas são formas extracelulares, fusiformes, encontrando-se no sangue e sendo responsáveis pela transmissão da infecção ao insecto vector e pela disseminação da infecção de célula a célula. Os epimastigotas encontram-se no intestino do insecto vector, multiplicando-se no intestino médio e recto dos artrópodes, diferenciando-se em formas metacíclicas. Os tripomastigotas metacíclicos são as formas infecciosas para os humanos, sendo libertados sobre a sua pele ao serem defecados na proximidade da zona da picada, entrando através da pele lesada ou das membranas mucosas. Os tripomastigotas no interior das células do hospedeiro diferenciam-se em amastigotas e replicam-se, diferenciando-se depois em tripomastigotas que, após lise celular, se difundem de novo para a corrente sanguínea.

 

A fase de vector inicia-se quando o vector ingere tripomastigotas no sangue de um hospedeiro mamífero infectado. Os tripomastigotas diferenciam-se em epimastigotas (estádio replicativo nos invertebrados) no intestino médio e migram para o intestino posterior, onde se diferenciam em tripomastigotas infecciosos metacíclicos para serem excretados nas fezes.

A fase humana ocorre quando os tripomastigotas entram através de um local de inoculação ou membrana mucosa intacta e invadem células nucleadas. No citoplasma diferenciam-se em amastigotas intracelulares e replicam-se (tempo de duplicação de 12 horas num período de quatro a cinco dias) até:

  • se transformarem em tripomastigotas e;
  • a lise celular provocar a sua libertação para a circulação sanguínea.

Os tripomastigotas circulantes, não só perpetuam o ciclo de invasão e replicação celular, como podem infectar vectores.

Modos de transmissão

Na fase aguda o parasita transmite-se de diversos modos.

  • Transmissão por vector (mais frequente)
    Trata-se de insectos hematófagos ingerindo tripomastigotas presentes no sangue de mamíferos infectados. De acordo com o ciclo de vida antes descrito, passando aqueles a tripomastigotas metacíclicos, são excretados com as fezes e urina, entrando ulteriormente no corpo humano através da pele, lesada com picada ou abrasão, ou mucosa.
    A transmissão por vector, limitada ao continente americano, é tipicamente rural. Os triatomídeos alimentam-se no período nocturno e podem viver numa variedade de ambientes próximos das habitações, incluindo fendas e buracos nas paredes, tectos e andares de estruturas habitacionais precárias.
    Sabe-se que a transmissão por fezes de um vector infectado não é muito eficaz; contudo, em contexto endémico, a transmissão contínua resulta num aumento significativo da prevalência ao longo do tempo. Tal facto, associado à persistência da infecção para toda a vida, explica que nalgumas regiões da América Central e do Sul, consideradas livres dos vectores domésticos, a seroprevalência de T. cruzi permaneça elevada em adultos.
  • Transmissão congénita/transplacentar (vertical)
    Este modo de transmissão, seguindo-se em frequência ao anterior, ocorre nos países da América Latina onde a doença de Chagas é prevalente em mulheres em idade reprodutiva. Apontam-se percentagens oscilando entre menos de 1% no Brasil e 7% ou mais na Bolívia, Chile e Paraguai.

A maioria das mulheres com infecção por T. cruzi não evidencia sintomas, sendo grande parte das infecções congénitas não diagnosticada com base na apresentação clínica.
O principal determinante biológico do risco de transmissão é a parasitémia materna; quanto maior a carga parasitária em circulação, maior o risco de transmissão materno-fetal. A idade jovem materna tem sido apontada como factor de alto risco segundo alguns estudos (embora outros não corroborem tal), assim como a proveniência de meio rural.
Existem dados limitados que sugerem uma taxa de transmissão superior em mulheres coinfectadas com VIH, o que pode estar relacionado com parasitémia mais elevada (habitual em doentes coinfectados), imunossupressão materna ou ambos. Também as crianças coinfectadas com VIH e T. cruzi têm maior probabilidade de apresentar sintomas, principalmente neurológicos.
Portanto, a determinação da verdadeira taxa de transmissão só é possível através de estudos prospectivos de grávidas infectadas. Em cerca de 20 estudos de coorte desde 1980, a prevalência de infecção por T. cruzi entre mulheres grávidas varia entre 0,7% e 54%. O risco global estimado de infecção por T. cruzi em crianças nascidas de mães infectadas ronda os 5%. A Organização de Saúde Pan-Americana estima mais de 15.000 casos de infecção congénita por ano na América Latina.

 

  • Transfusão de hemoderivados
    Nesta modalidade, o risco de transmissão é ~ 25%. Nesta perspectiva, a migração de pessoas infectadas para países onde não existe a patologia em análise, é uma ameaça. De acordo com a literatura, referem-se as seguintes seroprevalências avaliadas em dadores de sangue (anos de 2001 e 2002), quanto a positividade para T cruzi: Bolívia- 99/1000; Equador- 1,5/1000; USA- 0,01% a 0,20%.
  •  Ingestão de alimentos e bebidas contaminados (por ex. leite)
    De referir que existe a possibilidade (rara) de transmissão através do leite materno em lactantes infectadas. Na fase aguda da infecção materna, o aleitamento está contra-indicado até se verificar a cura pós-tratamento.

Na fase crónica, a interrupção do aleitamento materno não é recomendada na generalidade em mães; deverá, sim, ser ponderada perante parasitémia elevada (fase aguda ou reactivação) ou a presença de fissuras mamilares.

Nalguns casos, pode ser considerado o tratamento térmico do leite materno extraído antes da sua administração. A localização geográfica (e, consequentemente, a estirpe do parasita) foi apontada como factor de risco, dada a variação das taxas de transmissão. No entanto, os resultados de estudos ainda não demonstraram diferenças entre estirpes infectando mães que transmitem, ou não, a infecção.

 

  • Outras formas de transmissão
    Incluem: por transplantação de órgãos sólidos ou de medula óssea, e manipulação de animais infectados ou de material de laboratório, no contexto de doentes previamente infectados por VIH ou de imunossupressão.

Patogénese

No momento da infecção por T. cruzi, existe um período de parasitémia que, com oscilações, pode durar até 2 anos. Após este período, o parasita localiza-se nos tecidos, onde permanece toda a vida.

Existem períodos de parasitémia transitória coincidentes com situações de imunodepressão (por ex. alterações hormonais ao nível do eixo hipotálamo-suprarrenal, tratamentos com imunossupressores, gravidez, etc.).

Tal como foi referido anteriormente, quanto à história natural da doença, podemos distinguir três fases ou estádios evolutivos, os quais têm correspondência com a clínica: aguda, indeterminada e crónica.

Como resultado da resposta imunitária da fase aguda da infecção por T. cruzi, verifica-se o controlo da replicação parasitária, a resolução sintomática espontânea e o desaparecimento da parasitémia.

A sobrevivência na fase aguda depende, pois, da resposta inflamatória, a qual envolve as células imunes inatas e os macrófagos activados pelo interferão-gama e factor de necrose tumoral α.

Na fase crónica, existindo uma falha na contrarregulação da resposta inflamatória, influenciada por factores do parasita e do hospedeiro, a imunidade mediada por células T mantém a replicação parasitária.

Os resultados de estudos sugerem que a resposta imunitária inflamatória do hospedeiro constitui o maior determinante da progressão de doença, sendo a virulência de T. cruzi e o tropismo tecidual possíveis factores contribuintes.

O papel da resposta imunitária materna e neonatal também tem sido investigado, admitindo-se que a activação imune neonatal possa conferir protecção parcial de infecção congénita.

Assim, a patogénese da doença de Chagas, complexa e não totalmente compreendida, parece resultar da combinação de:

    • Lesão celular e neuronal, mediada directamente pelo parasita vivo e;
    • Lesão indirecta, causada pela resposta imunitária contra o parasita e antigénios do hospedeiro.

Outros factores, tais como os genéticos do hospedeiro e do parasita, a carga parasitária, o modo de transmissão, o número de reinfecções e a resposta imunitária inicial e tardia do hospedeiro, poderão influenciar o início, a gravidade e o espectro de manifestações clínicas.

Manifestações clínicas

A doença de Chagas integra diversas formas clínicas dependendo da fase evolutiva de tal patologia (aguda, indeterminada e crónica) e do modo de transmissão. Efectivamente, para um correcto planeamento diagnóstico e terapêutico, importa uma correcta classificação clínica de cada caso.

São esboçadas a seguir as particularidades de cada fase:

    • Fase aguda: pós-infecção, parasita no sangue, duração de 4-8 semanas, assintomática, geralmente evoluindo em 90%-95% dos casos para a fase seguinte, indeterminada e, em 5%-10% dos casos, para a fase crónica;
    • Fase indeterminada: entre 2 e 4 meses após a infecção, parasita quiescente nos tecidos, com parasitémias transitórias, duração de 10-30 anos, assintomática (excepto nos períodos de parasitémia), evoluindo em 30%-40% dos casos para a fase crónica, ou permanecendo nesta fase toda a vida, em 60%-70% dos casos;
    • Fase crónica: entre 4 meses e 30 anos pós-infecção, sintomatologia relacionada com a replicação tecidual crónica, salientando-se tipicamente sintomatologia cardíaca, esofágica e intestinal.

Transpondo os conceitos básicos da epidemiologia e patogénese para a clínica, distinguem-se dois grandes grupos fisiopatológicos de Doença de Chagas:

  • Forma aguda (vectorial, congénita, oral, transfusão e transplante, reactivação no caso de infecção prévia por VIH ou de imunossupressão); e
  • Forma crónica, traduzindo fundamentalmente as repercussões da infecção ao nível tecidual cardíacas, gastrintestinais e indeterminadas).

Pela importância epidemiológica e de saúde pública da modalidade aguda congénita, a mesma é individualizada, resultando, assim, três entidades:

Doença de Chagas Aguda

Após o período de incubação de uma a duas semanas (também referido na literatura entre 5 e 40 dias), inicia-se a fase aguda com a duração de quatro a oito semanas. A maioria dos doentes infectados apresenta sintomas e sinais moderados e inespecíficos, como febre, dor abdominal, anorexia, mal-estar geral, linfadenopatia, hepatoesplenomegália e linfocitose atípica. Contudo, poderá verificar-se ausência de sintomatologia, razão pela qual muitos infectados não são diagnosticados.

Nalguns doentes, poderá verificar-se exantema morbiliforme e ser visível o local de inoculação: uma lesão edematosa, pouco dolorosa, eritematoviolácea, de consistência elástica com adenomegália satélite, designada chagoma. Surge habitualmente na face e extremidades; por vezes, podem ser observados parasitas na lesão.

A inoculação na conjuntiva origina o chamado sinal de Romana (constituído por constelação de achados: edema indolor unilateral característico das pálpebras superior e inferior de coloração violácea, com hiperemia conjuntival e frequentemente associado a linfadenopatia pré-auricular).

O coração, SNC, gânglios periféricos e SRE poderão ser parasitados, determinando gravidade do quadro clínico; o coração é o órgão afectado em primeiro lugar, com inflamação e dilatação das quatro câmaras traduzindo miocardite difusa, a que se associa alteração na condução e sequela de fibrose. Tal pode acontecer em 30% dos casos nesta fase aguda. Pode igualmente verificar-se anemia, linfocitose e trombocitopénia.

Em menos de 1% dos infectados poderá ocorrer derrame pericárdico ou meningoencefalite. A taxa de mortalidade é de 5%-10% na fase aguda, particularmente em crianças pequenas.

Doença de Chagas Congénita

A transmissão de T. cruzi materno-fetal transplacentar pode ocorrer em 0,7%-10% dos casos de grávidas infectadas em qualquer fase da gestação, mais provavelmente no terceiro trimestre.

Da infecção congénita poderá resultar abortamento espontâneo, morte fetal e parto prematuro. No RN vivo com este tipo de infecção congénita, poderá verificar-se anemia, hepatoesplenomegália, púrpura petequial, diátese hemorrágica, icterícia, cardiomegália associada a diminuição da espessura da parede ventricular e mionecrose, e convulsões relacionadas com menigoencefalite. O prognóstico deste quadro é altamente reservado, com sequelas neurológicas diversas, com sobrevivência que raramente ultrapassa a puberdade. O esófago e o cólon, também frequentemente afectados, evidenciam sinais de dilatação e disfunção na motilidade em relação com destruição das células gangliónicas do músculo. Não existe indicação para parto por cesariana nas grávidas com infecção por T. cruzi.

Doença de Chagas Crónica

A manifestação mais frequente de doença de Chagas crónica é a cardiomiopatia crónica, ocorrendo em 30%-40% dos doentes, sobretudo após a puberdade. Os respectivos sinais e sintomas são secundários a insuficiência cardíaca, arritmia, alterações endomiocárdicas e complicações embólicas por arteriolite necrosante da microvasculatura. Os aneurismas apicais ventriculares esquerdos são patognomónicos da doença de Chagas.

As alterações ao nível do sistema gastrintestinal, ocorrendo com mais baixa frequência (8%-10%), envolvem, designadamente, lesão nos neurónios da cadeia parassimpática do plexo intramural da musculatura lisa. Na prática, verificam-se disfunções várias e, mais frequentemente, a existência de megaesófago e megacólon, disfagia, obstipação crónica, odinofagia, tosse, pneumonia de aspiração, entre outra sintomatologia do foro digestivo e respiratório.

Diagnóstico

Na fase aguda, o elevado nível de parasitémia permite a detecção de tripomastigotas móveis por exame microscópico de sangue fresco não coagulado ou em camada leucoplaquetária. Podem também ser visualizados em esfregaços de sangue corados com Giemsa e, em meios específicos, proceder-se a hemocultura.

O nível de parasitémia diminui após 90 dias, mesmo na ausência de tratamento. A reacção em cadeia da polimerase (PCR), evidenciando elevada sensibilidade na fase aguda, é o melhor método para a detecção precoce de infecção num receptor de órgão transplantado de dador infectado, ou após exposição acidental. Os resultados positivos por PCR surgem dias a semanas antes da detecção de tripomastigotas por microscopia.

O diagnóstico da infecção crónica assenta nos testes serológicos IgG, por técnicas ELISA de imunofluorescência indirecta (IFA). Nenhum teste isolado na fase crónica tem sensibilidade e especificidade suficientes; assim, a confirmação diagnóstica exige resultados positivos em dois testes distintos, de preferência de antigénios diferentes (lisado de parasita completo e antigénio recombinante).

A PCR tem sido usada em investigação e monitorização. A sua sensibilidade é muito variável, dependendo designadamente da carga parasitária, do processamento da amostra, das características da população, dos primers e dos métodos de PCR. Por outro lado, um resultado negativo não exclui a infecção.

Os testes quantitativos são úteis na monitorização da reactivação, uma vez que o aumento da carga parasitária ao longo do tempo é o indicador mais precoce e sensível.

No contexto de infecção congénita, o diagnóstico assume aspectos particulares, conforme ocorra antes ou após os nove meses de vida. Nos primeiros seis a nove meses de vida, a demonstração dos parasitas em sangue venoso periférico ou do cordão umbilical por microscopia directa tem elevada especificidade.

Por outro lado, os métodos de concentração revelam maior sensibilidade; entre eles, situa-se o método de micro-hematócrito, amplamente usado na América Latina. Embora tais métodos requeiram uma pequena quantidade de sangue (0,5 mL) e menor processamento, são, no entanto, necessárias amostras repetidas para obter melhoria da sensibilidade (limiar de detecção de 40 parasitas/mL). Esta limitação, em parte explicada pelo aumento progressivo dos níveis de parasitémia nos doentes infectados após o nascimento, com um pico máximo aos 30-60 dias de vida, nem sempre é aceite pelos pais e dificulta um rastreio em larga escala.

As técnicas de biologia molecular apresentam maior sensibilidade, permitindo o diagnóstico de infecções congénitas mais precocemente.

Admite-se que a PCR (reacção em cadeia da polimerase) venha a ser o método padrão para o diagnóstico da doença congénita, logo que a técnica esteja mais disponível, nomeadamente, com o desenvolvimento de kits comerciais.

Nos recém-nascidos sintomáticos, outros exames complementares de diagnóstico recomendados são: hemograma completo, parâmetros de bioquímica, análise sumária de urina, radiografia de tórax, electrocardiograma, ecocardiograma, ecografias abdominal e transfontanelar, fundoscopia e potenciais evocados.

Na ausência de diagnóstico na data do nascimento, recomenda-se o diagnóstico por serologia IgG após os seis a nove meses de idade, período em que se verifica o desaparecimento dos anticorpos maternos em circulação e a passagem à fase crónica.

Segundo as recomendações espanholas, após o primeiro ano de vida, deve pesquisar-se doença de Chagas em qualquer criança proveniente de área endémica ou recém-nascido de mãe com doença de Chagas, em que não se verificou seguimento no período neonatal.

Tratamento

Os únicos fármacos aprovados com eficácia comprovada na doença de Chagas são o benznidazol e o nifurtimox. (Quadro 1)

Na fase aguda e nos casos de infecção congénita diagnosticada precocemente, ambos reduzem a gravidade dos sintomas, diminuem o curso clínico da doença e reduzem a duração da parasitémia detectável.

Na referida fase aguda, estima-se uma taxa de cura de 80% a 90% (e de 90% a 100% nos casos de infecção congénita), antes do primeiro ano de vida. Após o primeiro ano, e até aos 15 anos, a eficácia ronda os 60%. Quanto mais precoce for a instituição de terapêutica na criança, maior será a taxa de seroconversão.

Na fase crónica sintomática, a taxa de sucesso é de 10%-20%; contudo, continua por esclarecer se existe benefício no tratamento para a forma indeterminada.

Os estudos observacionais confirmaram que nas mulheres infectadas, tratadas antes da gravidez, existe um risco significativamente menor de transmitir a infecção por T. cruzi à descendência do que nas mulheres não tratadas. O paradigma actual assenta essencialmente no diagnóstico precoce e no tratamento de crianças, assim como no tratamento de adolescentes e mulheres em idade reprodutiva.

Os referidos fármacos estão contraindicados na gravidez, com base em estudos de animais que apontam para teratogenicidade. Contudo, a exposição acidental não constitui critério para interrupção da gravidez.

Em relação ao aleitamento materno, os dados são limitados para ambos os fármacos (discutido adiante). Habitualmente, o tratamento de mulheres em fase crónica é protelado até ao final da lactação.

QUADRO 1 – Esquema posológico para o tratamento da Doença de Chagas em crianças e adolescentes.

Benznidazol (2x dia, per os, 60 dias)
Idade < 12 anos5-7,5 mg/kg/dia
Idade 12 anos ou >5-7 mg/kg/dia
Nifurtimox (3 a 4 tomas, per os, 90 dias)
Idade < 12 anos15-20 mg/kg/dia
Idade 12 – 17 anos12,5-15 mg/kg por dia
Idade > 17 anos8-10 mg/kg por dia

 

Benznidazol

Derivado nitroimidazol, constitui o tratamento de primeira linha pelas suas propriedades tripanossomicidas superiores ao nifurtimox e pelo perfil de efeitos secundários.

A dosagem recomendada para crianças encontra-se descrita no Quadro 1. Em relação ao tratamento da infecção congénita, num ensaio aleatorizado de tratamento de curta duração com benznidazol (7,5 mg/kg em dose única, durante 30 dias, versus a posologia padrão) confirmou-se a eficácia de ambas as estratégias terapêuticas.

Benznidazol encontra-se disponível apenas sob a forma de comprimidos de 50 ou 100 mg. A sua fraca solubilidade impede a obtenção de formulação de solução oral; assim, para uso na população pediátrica, habitualmente os comprimidos são divididos, esmagados e dispensados em pacotes para dispersão em sumo de fruta ou leite; contudo estes procedimentos podem condicionar erros de dosagem, dissolução incompleta e risco de efeitos adversos.

Recentemente foi desenvolvida uma suspensão líquida oral, com 1% de benznidazol, a partir dos comprimidos, com excipientes seguros e passível de ser preparada em farmácia hospitalar: trata-se, pois, duma alternativa que garante a eficácia, segurança e confiança do tratamento.

Os efeitos secundários mais frequentes são os dermatológicos, em especial a erupção cutânea que regride com administração de anti-histamínico. No entanto, pode progredir para dermatite grave, ou esfoliativa, ou associada a febre e linfadenopatia.

A neuropatia periférica é dose-dependente e ocorre após tratamento prolongado, enquanto a supressão de medula óssea é rara.

Todos os efeitos graves descritos devem motivar a suspensão da terapêutica. Dados recentes sugerem que o benznidazol poderá ser compatível com o aleitamento devido à limitada transferência para o leite materno.

Nifurtimox

Este fármaco é um nitrofurano que inibe a síntese de ácido pirúvico e interrompe o metabolismo glucídico de T. cruzi. A dosagem varia com a idade, conforme foi referido no Quadro 1. Por vezes, são utilizadas doses mais elevadas nas crianças mais pequenas; a tolerância na idade pediátrica é superior à que se verifica nos adultos.

Os efeitos secundários são sobretudo gastrintestinais e neurológicos (sobretudo, anorexia, perda ponderal, tremores, irritabilidade e insónia). Poderão também ocorrer reacções graves, como neuropatia periférica, psicose e anemia hemolítica associada a deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase; tais reacções são dose-dependentes, surgem na fase final do tratamento; habitualmente há reversão interrompendo o fármaco.

Num estudo incidindo sobre série de casos de crianças com infecção congénita, os efeitos adversos foram comuns, na sua maioria, moderados (recusa alimentar em 24%, irritabilidade em 14,5% e vómitos em 6,5% dos casos); em cerca de 5% verificou-se leucopénia e trombocitopénia reversíveis.

A exposição da criança ao nifurtimox parece ser baixa durante o aleitamento materno, embora o risco não esteja bem estabelecido na espécie humana.

Avaliação do tratamento

Durante o tratamento, e quatro semanas após a interrupção terapêutica, a criança deverá ser monitorizada clínica e laboratorialmente, apresentando-se o Quadro 2.

QUADRO 2 – Monitorização clínica e analítica durante a terapêutica.*

*Adaptado de MI González-Tomé et al. Enferm Infecc Microbiol Clin 2013;31(8):535-542
Dias de tratamento15 3045607590
Clínica
Geral: peso, adenopatias, mialgias, artralgias, cansaçoXXXX  
Gastrintestinais: vómitos, anorexia, dor abdominal, diarreiaXXX   
SNC: cefaleia, insónia, alucinações, parestesias, polineuropatiaXXXXXX
Dermatológicas: dermatite, vesículas, erupção cutânea, púrpura, edemaXX    
Análises
Hemograma: anemia, leucopénia, trombocitopéniaXXXXXX
Bioquímica: hipoglicémia, perfil hepático e renalXXXXX 

 

A resposta à terapêutica traduz-se na diminuição dos títulos de anticorpos específicos, a qual se deverá manter após o tratamento. Para demonstração de seroconversão negativa devem ser realizados dois testes com antigénios diferentes. Quer se trate de recém-nascidos tratados, quer de lactentes com início de terapêutica após os nove meses, a seroconversão negativa deve manter-se em, pelo menos, dois resultados negativos, com intervalos de 6 a 12 meses.

Em paralelo, deve ser realizada a detecção de parasitémia por exame parasitológico ou por micro-hematócrito, assim como por testes moleculares. Habitualmente, na primeira semana após o tratamento, desaparece a parasitémia; um resultado positivo indica a persistência do parasita, o que implica o prolongamento ou substituição da terapêutica.

Um mês após o final do tratamento, a obtenção de resultado positivo (testes parasitológicos ou PCR positivos) relaciona-se com falência terapêutica.

No caso de imunodepressão, os resultados dos testes parasitológicos são os únicos relevantes para o seguimento após o tratamento.

Seguimento

Na forma congénita está recomendado um seguimento mínimo de 12 meses para o diagnóstico de transmissão de T. cruzi. Na maioria dos estudos em países endémicos realça-se:

  • Uma diminuição de seguimento da ordem de 80% após os seis meses;
  • Que em menos de 50% dos casos de infecção congénita o diagnóstico e tratamento são correctos.

O seguimento clínico após o tratamento depende da fase da doença, aquando do início da terapêutica. No caso de doença na forma indeterminada, recomenda-se a realização de electrocardiograma e radiografia de tórax, anualmente, até à cura. Quando existe lesão orgânica ou imunodepressão, o seguimento deverá ser individualizado.

Prognóstico

O prognóstico depende da fase clínica e das suas complicações. Na fase aguda, em crianças com menos de 2 anos, é mais reservado, e fatal perante quadro de meningoencefalite, cardiomiopatia e insuficiência cardíaca. A infecção simultânea com VIH agrava ambas as situações.

Os critérios de cura são a eliminação do parasita em circulação, o desaparecimento de anticorpos e a evolução clínica favorável. Em indivíduos com infecção em fase crónica recente (adolescentes) e em adultos, após tratamento, o critério de cura recai sobretudo sobre a seroconversão negativa, com diminuição de, pelo menos, três vezes o título de anticorpos.

Prevenção

Em 2010, a OMS recomendou a promoção do desenvolvimento de medidas de saúde pública em países endémicos e não-endémicos, com especial enfoque nas áreas endémicas, para a prevenção da transmissão por transfusão sanguínea e por transplantação de órgãos, e para a detecção precoce da transmissão congénita.

As medidas de saúde pública para controlo da doença de Chagas congénita assentam em três pilares: prevenção primária, secundária e terciária.

A prevenção primária incide na prevenção da infecção materna, pelo que os programas de controlo de vectores são essenciais. Além disso, o rastreio e tratamento de crianças do género feminino com infecção por T. cruzi pode diminuir o risco de transmissão congénita na idade adulta.

A prevenção secundária baseia-se no rastreio pré-natal para identificação de mulheres seropositivas e respectivo tratamento. De acordo com as recomendações espanholas (país não endémico), deve ser realizado o rastreio:

  • Às grávidas de origem latino-americana (à excepção das Caraíbas);
  • Às grávidas que residiram em zonas endémicas (sobretudo áreas rurais) durante um período prolongado; e
  • Às grávidas nascidas de mães da América do Sul, mesmo que o parto tenha ocorrido numa região não-endémica.

Caso a grávida seja seropositiva, deve ser realizado um exame completo para avaliação de envolvimento visceral (alguns exames poderão ter de ser protelados para o período pós-parto).

No caso de doença materna, o seguimento deverá ser efectuado em consulta de alto risco. Também deve ser realizado o rastreio aos restantes filhos da mãe infectada.

A prevenção terciária, mais promissora, é consubstanciada pelo diagnóstico e tratamento de recém-nascidos infectados, considerando as elevadas taxas de cura. Porém, a inexistência de um teste sensível, específico e prático de rastreio dos recém-nascidos constitui um obstáculo.

A abordagem actual para o rastreio baseia-se na identificação de grávidas seropositivas e no exame parasitológico directo dos recém-nascidos ou lactentes por técnica do micro-hematócrito no cordão umbilical; e, nos casos não diagnosticados, na serologia convencional após os nove meses de idade. Desta abordagem decorrem vários obstáculos, como a sensibilidade do método de micro-hematócrito e a perda de seguimento no primeiro ano de vida, o que dificulta o rastreio sistemático em países endémicos.

Torna-se necessário desenvolver:

    • Melhores testes diagnósticos para permitir o rastreio da infecção congénita;
    • Uma vacina eficaz;
    • Fármacos mais eficazes, seguros e com posologias mais adequadas para o tratamento, em especial na fase crónica.

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CALAZAR (Leishmaniose visceral)

Generalidades sobre leishmanioses

As leishmanioses constituem um grupo heterogéneo de doenças causadas por protozoários do género Leishmania, parasitas intracelulares das células endoteliais ou dos leucócitos do sangue. Existem múltiplas espécies provocando doença no Homem, com expressão clínica na pele, mucosas e sistema reticuloendotelial de diversos órgãos.

Cada forma clínica tem particularidades em relação com: a distribuição geográfica, a espécie do agente implicado, a ecologia, os mamíferos como reservatórios e os insectos hematófagos como vectores, e o estado imunitário do paciente. Assim, o agente Leishmania pode provocar infecção numa larga gama de vertebrados e, em particular, em canídeos, roedores, e primatas, incluindo humanos.

São descritas as seguintes formas clínicas de Leishmaniose: Cutânea localizada, Cutânea difusa, Disseminada no contexto de imunodeficiência, Mucosa e Sistémica visceral.

A doença cutânea é ligeira, podendo originar sequelas com repercussão cosmética. As formas de leishmaniose mucosa e visceral, pelo contrário, comportam maior grau de morbilidade.

Neste capítulo é abordada apenas a forma clínica visceral, a qual predomina na idade pediátrica.

Definição e aspectos epidemiológicos

A forma de Leishmaniose Visceral, designada classicamente como Calazar ou Kala-azar é uma doença infecciosa sistémica não contagiosa que afecta sobretudo crianças com < 5 anos de idade. O termo calazar significa “febre negra” de acordo com a descrição da doença na Índia em 1903 pelos investigadores Leishman e Donovan.

A leishmaniose visceral é considerada uma zoonose na maior parte das zonas do globo, uma vez que a doença também afecta diversas espécies animais como cães e raposas; com efeito, há que referir que nalgumas zonas como a Índia e África Oriental o Homem também poderá ser o reservatório do protozoário. Os vectores de Leishmania são insectos hematófagos com escassa autonomia de voo, Phlebotomus ou Lutzomyia. O contágio inter-humano é possível mas raro, podendo ocorrer por transfusões de sangue, partilha de seringas e transmissão materno-fetal.

Em Portugal, o cão é o principal reservatório; o protozoário transmite-se de cão a cão, ou de cão ao Homem (hospedeiro final). Ou seja, o cão tem um papel relevante na disseminação e manutenção da infecção humana.

De acordo com a OMS, surgem em todo o mundo cerca de 300.000 novos casos anuais, dos quais resultam 20.000 mortes; cerca de 90% dos casos fatais ocorrem em apenas seis países, incluindo Índia, Bangladesh, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Brasil.

Assim, a leishmaniose é considerada a terceira doença parasitária mais frequente a seguir à toxoplasmose a criptosporidiose. A distribuição da doença coincide com a distribuição do vector acometendo populações pobres, vulneráveis, subnutridas e habitando em zonas sem saneamento básico e sem acesso a cuidados preventivos de saúde.

Em Portugal Continental, com base em estudos de seroprevalência, podem ser consideradas zonas endémicas Trás-os-Montes e Alto Douro, Cova da Beira (entre as serras da Estrela e da Gardunha), regiões de Lisboa e Vale do Tejo (onde actualmente existe o maior número de casos) e Alto Alentejo.

Há décadas, o calazar era considerado tradicionalmente uma doença das zonas rurais, de ocorrência endémica e esporádica. Actualmente este panorama modificou-se à mercê de um conjunto de circunstâncias tais como:

  • Fenómenos migratórios de populações não imunes para áreas em que o vector está presente;
  • A urbanização/domesticação dos focos zoonóticos naturai

Segundo dados do INSA e da DGS, em Portugal entre 2008 e 2013 foram notificados 42 casos de leishmaniose, na sua maioria afectando crianças entre 1 e 4 anos de idade e do sexo masculino. A incidência real deverá ser superior, dada a subnotificação desta doença. Actualmente, têm sido relatados casos de coinfecção com o VIH em zonas de elevada prevalência das duas situações.

Etiopatogénese

São descritas três espécies de Leishmania que causam leishmaniose visceral:

  • donovani, prevalente sobretudo na Ásia;
  • infantum, prevalente sobretudo na Europa (incluindo Portugal), Ásia e África;
  • chagasi, prevalente nas Américas.

Após inoculação do protozoário no organismo verifica-se disseminação hematogénica, salientando-se o viscerotropismo do agente etiológico; ou seja, a doença comporta-se como doença sistémica afectando as células do sistema reticuloendotelial (SRE) de todos os órgãos, com especial relevância para fígado, baço, medula óssea, e gânglios linfáticos.

A infecção por Leishmania, no ciclo evolutivo, pode assumir duas formas: uma, arredondada ou ovóide, de escassa mobilidade, sem flagelo, designada amastigota, residente no interior das células do SRE/fagócitos mononucleares dos vertebrados, onde se replica; e outra, alongada, com flagelo e grande mobilidade, designada promastigota, e presente no tubo digestivo dos insectos vectores; isto é, a forma promastigota, ao entrar no macrófago, transforma-se em amastigota.

A transmissão da leishmaniose visceral dá-se quando o flebótomo/vector adquire o protozoário ao picar um reservatório infectado (como se referiu atrás, na maioria dos casos um animal) e, após completado o ciclo parasitário no vector, transmite o referido protozoário (formas promastigotas na saliva) ao hospedeiro definitivo humano através de picada. As formas promastigotas são fagocitadas pelos macrófagos do referido hospedeiro, onde resistem ao estresse oxidativo dentro de vacúolos. Isto condiciona uma activação do sistema imunitário, nomeadamente através do eixo IL12-IFN gama numa tentativa de aumentar a capacidade oxidativa dos fagócitos.

A ineficácia e hiperactivação do sistema imunitário conduz a:

  • Redução progressiva da produção de eritrócitos, granulócitos e plaquetas;
  • Aumento de dimensões do fígado e baço com áreas de inflamação, necrose e ulterior fibrose, explicável pela própria proliferação dos macrófagos.

Nas formas graves verifica-se a presença de histiócitos (o elemento fundamental do tecido reticuloendotelial, dotado de grande poder fagocitário), contendo Leishmanias em todos os órgãos (miocárdio, rim, pulmões, etc.).

As características genéticas do hospedeiro influenciam o desenvolvimento da doença. Em particular, mutações no gene NRAMP1 desempenham um papel fundamental na susceptibilidade para doença visceral. Outros factores que determinam o grau de expressão clínica são a virulência e magnitude do inóculo do parasita, assim como o genótipo do vector.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de leishmaniose visceral são, de um modo geral, semelhantes nas zonas endémicas, independentemente da área geográfica.

O período de incubação do calazar varia entre 10 dias e 2 anos, com um período médio de 2 a 6 meses. Em regra, o início da sintomatologia é abrupto nas crianças pequenas, e insidioso nas crianças maiores; acompanha-se de sinais inespecíficos como adinamia, anorexia, mal-estar geral, perda de peso e palidez. A febre prolongada, oscilando entre 37,5ºC e 40ºC, pode evidenciar diversos padrões em termos de periodicidade e intermitência, os quais não são característicos da doença.

À medida que a doença evolui são notórios os seguintes sinais, evoluindo progressivamente: palidez, emagrecimento, adenomegálias e aumento do volume abdominal. Este aumento do volume abdominal explica-se sobretudo por esplenomegália indolor de consistência elástica ou ligeiramente dura, a qual pode atingir proporções enormes ultrapassando por vezes a cicatriz umbilical; acompanha-se em geral de hepatomegália importante, embora mais discreta. Uma pequena minoria pode apresentar uma úlcera no local da picada do insecto (Leishmanioma). (Figura 1)

Outras manifestações associadas incluem insuficiência renal, diarreia, vómitos, obstipação, hemorragias (epistaxe, petéquias, gengivorragias), sinais respiratórios sobreponíveis aos verificados em infecções víricas comuns, dificuldade respiratória, artralgias, mialgias, etc.. Existem por vezes manifestações neurológicas, como neuropatia periférica ou de pares cranianos em relação com degenerescência axonal e desmielinização.

Dado que as alterações provocadas por Leishmania são de natureza sistémica, em zona endémica, perante quadro de febre prolongada, anemia, espleno-hepatomegália e manifestações hemorrágicas, deverá ser evocada a hipótese diagnóstica de calazar.

Estão descritas, no entanto, formas assintomáticas, oligossintomáticas ou subclínicas, que se poderão traduzir fundamentalmente por febre, ou tosse, ou diarreia, hipersudorese, adinamia, ou hepatomegália e esplenomegália ligeiras, etc..

Este quadro, se não tratado, poderá persistir durante 3 a 6 meses evoluindo, ou no sentido de regressão espontânea, ou de calazar dito clássico, atrás referido.

Duas notas importantes acerca da leishmaniose visceral surgindo em situações de imunodeficiência:

  • Em doentes infectados com o VIH/SIDA, salientam-se esplenomegália e envolvimento do tracto gastrintestinal, pulmão, esófago menos frequentes;
  • Nos casos de doença granulomatosa crónica ou de defeitos do eixo interferão gama–IL 12, evolução mais grave e prolongada, com frequentes recaídas e compromisso multiorgânico.

No que respeita a complicações, cabe uma referência especial a dois quadros clínicos:

FIGURA 1. Calazar: Hepatoesplenomegália. (NIHDE)

Síndroma hemofagocítica

Trata-se duma das complicações mais graves desta doença, sobretudo em lactentes, consideradas como o reflexo de uma resposta imunológica ineficaz. A “explosão” de citocinas conduz a um quadro sistémico com as seguintes características: febre alta, agravamento da esplenomegália e da pancitopénia, ferritina elevada, hipertrigliceridémia, hipofibrinogenémia, muitas vezes em associação a instabilidade hemodinâmica e insuficiência renal. Apesar de habitualmente se verificar resposta à terapêutica dirigida para a parasitose, por vezes é necessário frenar a resposta imune com fármacos imunossupressores ou imunomoduladores.

Dermatose por Leishmania pós-calazar

Esta complicação pode surgir até 3 anos após o calazar, consistindo em máculas hipopigmentadas e/ou pápulas/nódulos generalizados. Não se associam a morbilidade ou mortalidade mais elevadas, mas podem ter um importante impacte cosmético. Ocorre muito mais frequentemente após infecção com L. donovani.

Exames complementares

Existe frequentemente pancitopénia, citólise hepática, elevação da gama-GT, da fosfatase alcalina, e hipergamaglobulinémia policlonal, evidente na electroforese de proteínas. As alterações nefrológicas podem traduzir-se por hematúria e proteinúria.

Quanto ao contributo dos vários exames complementares para o diagnóstico, procedeu-se à sistematização que se segue, e à elaboração do Quadro 1.

Diagnóstico parasitológico

Decorre da demonstração de formas amastigotas em esfregaços de tecido (gânglio linfático, medula óssea ou baço, com sensibilidades crescentes, 55%, 70% e 95%) obtidos por punção aspirativa e coloração pelo método de Giemsa.

Continua a ser o método “padrão de ouro”, embora evidenciando uma sensibilidade baixa.

Diagnóstico serológico

Baseia-se na detecção de antigénios do parasita ou de anticorpos contra a Leishmania. Existem vários testes com diferentes sensibilidades e especificidades.

Diagnóstico molecular

Actualmente, as técnicas de biologia molecular como a da reacção em cadeia da polimerase (PCR), com especificidade e sensibilidade elevadas, permitem a identificação do material genético de parasitas em amostras de punção biópsia, e também de sangue periférico. A sensibilidade é maior nos tecidos (por exemplo, baço ou medula óssea); e é variável no sangue periférico, provavelmente porque a carga de parasitas no sangue varia com a gravidade da doença. Não estão disponíveis na maior parte dos países com doença endémica.

Teste cutâneo (Leishmania Skin Test)

Este teste, também conhecido como prova de Montenegro, testa a hipersensibilidade tardia. Sendo positivo somente ~ 2-4 meses após a cura, não tem qualquer interesse diagnóstico.

Relativamente aos exames complementares, importa destacar:

  • Teste de aglutinação directa, onde é feita a incubação do soro do doente contra o antigénio do promastigota. Ao final de 18 horas existe aglutinação visível no caso de existirem anticorpos no soro. A possibilidade de leitura a “olho nu” promove a sua utilização em países em vias de desenvolvimento;
  • ELISA: detecta a presença de anticorpos, salientando-se que a sua sensibilidade depende do antigénio usado. A utilização de antigénios solúveis tem sido insatisfatória, sendo que actualmente se usam antigénios recombinantes, de que o antigénio K28 é o mais utilizado. Os maiores problemas do teste são a possibilidade de, em zonas endémicas, pessoas com infecção assintomática evidenciarem teste positivo e o facto de os títulos, permanecendo positivos após o tratamento, não poderem ser utilizados como monitorização da resposta à terapêutica;
  • Testes rápidos: apesar de usados de forma generalizada nos países endémicos, a sensibilidade varia muito de acordo com a localização e com os antigénios usados. A sua elevada sensibilidade permite a sua utilização como teste de rastreio, apesar de se dever sempre confirmar a doença com outro método;
  • Aglutinação em látex: permite a detecção do antigénio na urina. Tem uma elevada especificidade (desde que a urina seja fervida durante 5 minutos), mas a sensibilidade é baixa, limitando a sua utilização.

Nota Importante – Dado que os testes serológicos evidenciam menor sensibilidade, deverá ser dada preferência aos métodos de diagnóstico parasitológico ou de biologia molecular.


O Quadro 1 permite elucidar com pormenor sobre um largo espectro de exames complementares.

Quadro 1 – Leishmaniose visceral e exames complementares.

 MétodosAmostra utilizadaTempo exigidoDificuldade

Sensibilidade

(%)

Especificidade

(%)

Diagnóstico parasitológico

 

Biópsia aspirativa esplénicaTecido de baçoHorasAlta93-99100
Biópsia aspirativa medularMedula ósseaHorasAlta53-86100
Biópsia ganglionarGânglio linfáticoHorasAlta53-65100
CulturaBaço ou medula ósseaDiasMédia97-100100
Diagnóstico serológicoIFATSoro/plasmaHorasAlta80-10096-100
Teste de aglutinação directaSoro/plasmaDiasMédia94,8097,10
ELISASoro/plasmaHorasMédia93-10097-98
SalivaHorasMédia83,3088,6-100
Tira de teste rápidoSoroMinutosBaixa96,3-10090,1-100
SangueMinutosBaixa96-10090,8-100
SalivaMinutosBaixa82,5084,6-91,48
UrinaMinutosBaixa96,4066,2-100
Ensaio de immunoblottingSoro/plasmaHorasMédia83-9490
IFN- 𝛾 release assay (IGRA)Sangue totalDiasMédia80-85100
Aglutinação em látexUrinaHorasMédia48-8789-100
Diagnóstico molecularPCRSangue totalHorasAlta70-10085-99
Zaragatoa bucalHorasAlta8390,56
UrinaHorasAlta88100
Medula ósseaHorasAlta95,3092,60
PCR ELISASangue totalHorasAlta83,90100
qPCRSangue totalHorasAlta91,3-10095-100
Oligo C-testSangue totalHorasAlta96,290
Gânglio linfáticoHorasAlta96,8NA
Medula ósseaHorasAlta96,9NA
LAMPSangue totalHorasMédia8398
Buffy coatHorasMédia90,7100
Diagnóstico imunológico IFAT
Teste de aglutinação directa
ELISA
Tira de teste rápido
Ensaio de immunoblotting
IFN- 𝛾 release assay (IGRA)
Aglutinação em látex

Tratamento

Aplicam-se as medidas gerais de suporte em casos de doenças febris com compromisso do estado geral (anemia, síndroma hemorrágica, leucopénia, etc.). Neste capítulo é dada ênfase ao tratamento farmacológico específico anti-Leishmania;

As alternativas terapêuticas disponíveis incluem a anfotericina B, os antimoniais pentavalentes, a paromomicina e o miltefosine. A sensibilidade a cada um deles varia de região para região em todo o globo.

Anfotericina B

A anfotericina B convencional, apesar de eficaz, deixou de ser utilizada pelo melhor perfil de segurança da anfotericina B lipossómica.

Pode ser usada em diversos esquemas mas a dose cumulativa preconizada pela OMS é de 20 mg/Kg. A grande diversidade de esquemas terapêuticos reflecte provavelmente o facto de o fármaco se acumular nas vísceras e ser depois libertado progressivamente.

Antimoniais pentavalentes

Em todo o mundo os fármacos mais utilizados são os antimoniais pentavalentes (Sb v) cujo mecanismo de acção se relaciona provavelmente com o efeito leishmanicida intramacrófago. Os dois sais mais frequentemente disponíveis e empregues são o estibogluconato de sódio (Pentostam®) e o antimoniato de N-metil-glucamina (Glucantime®), este último o mais utilizado em Portugal. A eficácia e perfil de segurança são comparáveis.

Ambos os compostos podem ser administrados por via IM ou IV. De acordo com recomendações da OMS, deverá ser administrada a dose de 20 mg/kg/dia numa ou duas doses diárias durante 28-30 dias seguidos. Se, após esta série, se verificar a existência de sinais clínicos ou a presença de parasitas na medula óssea, deverá proceder-se a novo curso terapêutico com igual duração.

Dados os efeitos adversos do tratamento (cardiotoxicidade, hepatotoxicidade, pancreatite, artralgias etc.), o mesmo deverá ser acompanhado de vigilância clínica rigorosa, laboratorial e electrocardiográfica (para detecção de possíveis alterações da repolarização, inversão da onda T e aumento do intervalo Q-T).

Está descrita resistência aos antimoniais em cerca de 1% a 2% dos casos.

Miltefosine

É o único componente oral aprovado para o tratamento da doença em adolescentes e adultos com peso mínimo de 30 kg. A dose é de 2,5 mg/kg/dia durante 28 dias.

Apesar de ter um perfil de segurança aceitável, não pode ser utilizado na grávida; por outro lado, em percentagem significativa de doentes (20% a 65%) pode surgir diarreia e vómitos. As transaminases surgem com valores alterados.

A semivida prolongada e a potencial baixa adesão ao tratamento, levanta questões relativamente à possível emergência de resistências.

Paromomicina

Este aminoglicosídeo apresenta actividade contra o parasita, mas os esquemas posológicos variam de acordo com a região (e respectiva Leishmania prevalente). Mais frequentemente a dose usada é de 15 mg/kg/dia durante 21 dias.

Todos os doentes deverão ser seguidos clinicamente durante 1 ano para detecção de eventuais recorrências que poderão surgir, em geral, até 6 meses após conclusão da terapêutica.

Prognóstico

Excluindo as formas subclínicas e assintomáticas, na ausência de tratamento o calazar tem evolução fatal em cerca de 80% dos casos, sendo o risco mais elevado em crianças com menos de 5 anos (síndroma de disfunção multiorgânica traduzido fundamentalmente por edema, síndroma hemorrágica, anemia, insuficiência hepática, pancitopénia e infecções associadas).

Prevenção

As medidas preventivas correspondem, afinal, à intervenção em vários pontos do elo protozoário🡪 reservatório🡪 vector: tratamento dos casos identificados, diminuindo o contacto do homem com o vector, e destruindo os reservatórios e os vectores. Este desiderato é concretizado através de medidas de saneamento e de educação para a saúde coordenadas, identificando as zonas de risco. Na prática, os repelentes e os insecticidas têm papel importante. A vacina aplicada a humanos ainda não está disponível, mas já existe para administração a caninos.

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PARASITOSES. ABORDAGEM GLOBAL

Definições

Considera-se parasita o organismo que, durante uma parte ou a totalidade da sua existência, se nutre permanente ou temporariamente com substâncias produzidas por outro ser vivo, excepto nos casos relativamente raros em que os parasitas são excessivamente numerosos. Parasitismo pode definir-se genericamente de três modos: 1) condição de um organismo que vive como parasita de outro organismo; 2) estado de um organismo infestado por parasitas; 3) presença de parasitas num ser vivo ou em certos órgãos (parasitismo intestinal, hepático, sanguíneo, etc.).

Noutra perspectiva, mais específica, surge o termo de simbiose, ligado à relação íntima e obrigatória entre dois organismos. Esta associação pode ser benéfica para ambos (mutualismo), benéfica para um e quase indiferente para o outro (comensalismo) ou benéfica para um em detrimento do outro (parasitismo). O organismo em que o parasita vive chama-se hospedeiro (definitivo ou intermediário), sendo o parasita, habitualmente, dependente deste. Por vezes, para manter o ciclo de vida do parasita, é necessária a acção de um vector (transportando o parasita de um hospedeiro para outro).

Parasitose é, pois, qualquer afecção devida a parasitas e o conjunto de manifestações patológicas que aqueles provocam. Na natureza, praticamente todos os animais estão parasitados.

A este respeito convém uma referência ao termo infestação por contraposição a infecção. Infestação corresponde a parasitose externa (pele e faneras), enquanto no termo infecção estão abrangidas as parasitoses internas (por ex. ascaridiose, filariose, esquistossomose, etc.).

Os parasitas constituem uma enorme variedade de organismos, com ciclos de vida mais ou menos complexos e com tamanhos que podem variar entre 5 μm a mais de 20 metros. Ao longo dos séculos, adaptando-se a todos os tipos de ambientes e de hospedeiros, podem viver fora das células do hospedeiro como no intestino, sangue, linfa ou no seu interior, como glóbulos vermelhos, músculo, etc..

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A distribuição geográfica das parasitoses é muito heterogénea salientando-se que as regiões mais afectadas são as tropicais e subtropicais. Globalmente, a mais importante é a malária que será descrita noutro capítulo. As estimativas para outras parasitoses não são, no entanto, mais optimistas. No mundo deverão existir 230 milhões de pessoas infestadas com Schistosoma, 120 milhões com filariose linfática, seis milhões com tripanossomose americana e dois biliões com nemátodos intestinais. No ocidente, ao longo dos últimos anos, a prevalência de parasitoses na população pediátrica diminuiu de forma muito acentuada.

Em Portugal, apesar da ausência de estudos epidemiológicos recentes em larga escala, as parasitoses mais frequentes são devidas ao protozoário Giardia lamblia e aos helmintas Enterobius vermicularis, Ascaris lumbricoides e Trichuris trichiura. Mais raramente poderão ser encontrados Strongyloides stercoralis, Ancylostoma duodenale, Taenia solium e Taenia saginata. Num estudo datado de 2001 na região de Lisboa, num grupo de crianças entre os 5 e 14 anos foi encontrada uma taxa de parasitismo intestinal por helmintas de 5,1%, excluindo Enterobius vermicularis. Os helmintas identificados foram: Trichuris trichiura (3,3%), Ascaris lumbricoides (1,9%), ancilostomídeos (1,4%), Strongyloides stercoralis (0,9%) e céstodes (0,5%); a taxa de poliparasitismo foi de 2,8%. As crianças filhas de emigrantes foram a população mais afectada.

Na região de Coimbra, mais recentemente (2008), excluindo também Enterobius vermicularis, a taxa de parasitismo intestinal em idade pediátrica foi inferior a 4%, exclusivamente por Giardia lamblia.

No entanto, a prevalência das parasitoses poderá ser muito diferente de umas regiões para outras, podendo existir focos endémicos e/ou epidémicos em determinadas zonas do país. Por outro lado, o incremento das viagens transcontinentais poderá levar à importação de parasitoses próprias de outras regiões do mundo e, eventualmente, à (re)introdução de algumas delas no País.

Em Portugal, apenas duas parasitoses são doenças de declaração obrigatória: leishmaniose visceral (provocada por protozoário) e equinococose (provocada por helminta). No período de 2008 a 2012, foram registados em Portugal até aos 15 anos de idade, 17 casos de leishmaniose visceral e nenhum caso de equinococose.

O objectivo deste capítulo é abordar, de modo integrado e sucinto, aspectos clínicos de doenças provocadas por protozoários e helmintas.

1. PROTOZOÁRIOS

Nomenclatura e características biológicas

Os protozoários são um tipo muito heterogéneo de organismos unicelulares, com morfologia mais diversificada do que as bactérias, com formas de replicação sexuada ou assexuada, possuindo organelos destinados a funções determinadas; citam-se como exemplos: os pseudópodos, flagelos, cílios ou membranas ondulantes para a locomoção; e pseudópodos ou sistemas pinocitóticos para a ingestão de alimentos. Podem apresentar duas formas: trofozoíto (forma adulta) e latente (quisto). Compreendem seis classes, havendo em todas elas membros que são patogénicos para o Homem. Muitos são saprófitas e, por vezes isolados das fezes humanas (por ex. Entamoeba coli, Endolimax nana). No Quadro 1 são descritas as classes de protozoários patogénicos, com exemplos.

QUADRO 1 – Classificação dos protozoários patogénicos (Classe: alguns exemplos).

Amebae: Entamoeba histolytica, Naegleria, Acanthamoeba, Blastocystis hominis

Ciliados: Balantidium coli

Flagelados: Giardia lamblia, Chilomastix mesnili, Leishmania spp, Trypanosoma spp, Trichomonas vaginalis

Coccidia: Cryptosporidium, Cyclospora, Isospora, Toxoplasma gondii

Sporozoa: Plasmodium spp, Babesia spp

Microsporidia: Enterocytozoon bieneusi, Encephalitozoon spp

Etiopatogénese, síntese clínica e tratamento

No que respeita à localização no organismo, são considerados dois grupos: os protozoários intestinais e os protozoários sanguíneos e teciduais. Nos primeiros, a transmissão faz-se pela via fecal-oral, e nos segundos, através da picada de um insecto vector. A excepção é a tripanossomose americana, cuja transmissão ocorre pela exposição a fezes contaminadas do insecto vector.

Os protozoários mais importantes para a espécie humana estão sistematizados no Quadro 2. A leishmaniose visceral (calazar), a malária, a giardiose, a tripanossomose americana (doença de Chagas) e a pneumocistose são descritas com mais pormenor em capítulos próprios.

QUADRO 2 – Protozoários que parasitam o Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Amebiose E. histolytica Mundial (endémica em África, América Latina e Índia) Fecal-oral Intestinal: assintomática, diarreia com muco e sangue, tenesmo. Hepática: febre, dor abdominal, hepatomegália dolorosa. Paromomicina, furoato de diloxanida, metronidazol, tinidazol.
Meningoencefalite amebiana Naegleria, Acanthamoeba, Balamuthia Mundial Inalação/aspiração Aguda: cefaleias, náuseas, vómitos, meningite e encefalite. Granulomatosa: défices focais, convulsões, alteração de comportamento e do estado de consciência. Anfotericina B. pentamidina, cetoconazol, flucitosina.
Criptosporidiose Cryptosporidium spp. Mundial Fecal-oral, interpessoal, animal-homem Assintomática, diarreia aquosa, cólicas, fadiga, anorexia, perda de peso. Diarreia crónica em imunodeprimidos. Nitazoxanida, paromomicina com azitromicina.
Giardiose G. lamblia Mundial Fecal-oral Assintomática, diarreia aguda ou crónica, dor abdominal, anorexia, malabsorção, perda de peso, atraso de crescimento. Metronidazol, tinidazol, albendazol, paromomicina.
Leishmaniose visceral Leishmania donovani, Leishmania spp. Regiões tropicais, subtropicais e temperadas Phlebotumus Febre, anorexia, perda de peso, hepatoesplenomegália, anemia, leucopénia, trombocitopénia, hipergamaglobulinémia. Anfotericina B lipossómica, antimoniais pentavalentes, miltefosina.
Leishmaniose cutânea Leishmania spp. Bacia mediterrânica, América do Sul Phlebotumus Mácula, nódulo, úlcera indolor em áreas expostas da pele. Leishmaniose cutânea difusa: rara.
Leishmaniose mucosa Leishmania spp. América do Sul Lutzomya Eritema, edema, epistaxe, úlcera com mutilação do septo nasal, palato, lábios, faringe e laringe.
Malária Plasmodium spp. Região intertropical Anopheles spp. Febre, anemia, disfunção respiratória, alterações do estado de consciência. Derivados da artemisinina, quinino, atovaquona-proguanil cloroquina, primaquina.
Pneumocistose Pneumocystis Mundial Respiratória Febre, tosse, taquipneia, dispneia, hipóxia. TMP-SMX, primaquina + clindamicina.
Toxoplasmose Toxoplasma gondii Mundial Oral Assintomática. Febre, adenopatias, exantema, hepatomegália, coriorretinite. Infecção congénita: assintomática, SGA, prematuridade, icterícia exantema, adenopatias, hepatoesplenomegália, trombocitopénia, convulsões, microcefalia, hidrocefalia, coriorretinite, calcificações cerebrais. Pirimetamina-sulfadiazina, espiramicina, leucovirina.
Tripanossomose africana (Doença do sono) T. b. gambiense T. b. rhodesiense África ocidental Glossina palpalis Cancro de inoculação. Fase hemolinfática: febre, cefaleias, adenopatia cervical posterior, exantema. Fase neurológica: irritabilidade, sonolência e insónia, alterações de comportamento, alucinações, tremor, rigidez, ataxia, caquexia. Pentamidina, suramina, eflornitina, melarsoprol.
África oriental Glossina morsitans
Tripanossomose americana (Doença de Chagas) T. cruzi América do Sul e Central Triatoma, Rhodnius, Panstrongylus Doença aguda: cancro de inoculação (chagoma), febre, adenopatias, hepatoesplenomegália, miocardite, meningoencefalite. Doença crónica: cardiomiopatia, megaesófago, megacólon. Benznidazol, nifurtimox.

2. HELMINTAS

Nomenclatura e características biológicas

A palavra helminta (derivada do Grego helmins significando verme) representa uma classe de parasitas muito complexos. Os helmintas são organismos cujo tamanho varia, de menos de um milímetro (Taenia canis) a vários metros (T. saginata).

Os dois principais grupos de helmintas são: nemátodos (vermes cilíndricos) e platelmintas (vermes achatados). Os nemátodos são parasitas que possuem aparelho digestivo completo e cujos sexos são separados. Na sua maioria, parasitam vertebrados e, alguns deles, o Homem. Como exemplos de nemátodos parasitas de animais (cão, gato, etc.) que acidentalmente infectam o Homem, citam-se Ancylostoma braziliense, Toxocara canis, Toxocara cati. Os platelmintas compreendem duas classes: 1) céstodes; com a forma de fita, são segmentados (segmentos ou proglótides) no estado adulto, desprovidos de tubo digestivo e munidos de órgãos de fixação (ventosas e ganchos) na sua extremidade cefálica (escólex). Cada segmento ou anel é hermafrodita e contém órgãos genitais dos dois sexos. 2) tremátodos; com corpo não segmentado, provido de tubo digestivo sem ânus, têm uma ou mais ventosas. Incluem-se nesta ordem os distómios (fascíolas).

Etiopatogénese, síntese clínica e aspectos gerais do diagnóstico

Os nemátodos, céstodes e tremátodos mais importantes para o Homem estão sistematizados nos Quadros 3, 4, 5, 6 e 7, com referência a aspectos essenciais da etiopatogénese, clínica e tratamento. Duma forma geral não se reproduzem no hospedeiro e a sua transmissão pode ser por via oral, penetração através da pele ou pela picada de um vector.

Sendo os nemátodos os parasitas que mais frequentemente infectam a espécie humana, designadamente os intestinais, é dada ênfase nesta alínea ao referido grupo, descrevendo nas alíneas seguintes aspectos específicos do diagnóstico e tratamento de algumas parasitoses referidas em quadros anteriores.

O verme adulto localiza-se no intestino; no seu ciclo de vida, alguns deles limitam-se ao tubo digestivo (Enterobius vermicularis, Trichuris trichiura), enquanto outros migram através do pulmão (Ascaris lumbricoides, Toxocara), ou através da pele (Ancylostoma duodenale, Necator americanus, Strongyloides stercoralis).

QUADRO 3 – Nemátodos cujo verme adulto reside no intestino.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Ascaridiose A. lumbricoides Mundial Fecal-oral Assintomática. Pneumonite, febre e eosinofilia (Síndroma de Loffler), obstrução intestinal. Albendazol, mebendazol, pamoato de pirantel.
Ancilostomose A. duodenale, N. americanus Ásia, África, América, Sul da Europa Larva penetra a pele sã Dor e prurido no local da penetração pela pele, dor abdominal, diarreia, anemia, malnutrição.
Enterobiose E. vermicularis Mundial Fecal-oral Assintomática. Prurido anal.
Strongiloidose S. stercoralis Regiões tropicais e subtropicais Fecal-oral, autoinfecção Pápulas pruriginosas, pneumonite, dor abdominal, diarreia, malabsorção, perda de peso, lesões perianais, eosinofilia. Pode ocorrer disseminação em imunodeprimidos. Ivermectina, albendazol, tiabendazol.
Trichuris Trichuris thrichiura Mundial Fecal-oral Dor abdominal, tenesmo, diarreia sanguinolenta, prolapso rectal, anemia, má progressão ponderal. Albendazol, mebendazol, ivermectina.


As filárias são nemátodos que sobrevivem no Homem durante muitos anos produzindo uma enorme quantidade de microfilárias que infectam o mosquito vector aquando da picada. As horas do dia em que estas se encontram no sangue ou em determinadas áreas da pele é diferente nas várias regiões, denotando uma adaptação positiva aos hábitos de picada do vector. O verme adulto não se multiplica no Homem.

Dracunculus medinensis transmite-se pela ingestão do hospedeiro intermediário; a sua erradicação seria possível se fosse utilizada água potável. O Quadro 4 refere-se aos nemátodos cujo verme adulto reside no sangue, sistema linfático ou tecido subcutâneo.

QUADRO 4 – Nemátodos cujo verme adulto reside no sangue, sistema linfático ou tecido celular subcutâneo.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Filariose linfática Wuchereria bancrofti Brugia malayi Brugia timori Regiões tropicais e subtropicais Culex, Aedes, Anopheles Febre, cefaleias, mialgias, linfadenite recorrente, linfadenopatias, edema progressivo dos membros e genitais (elefantíase). Síndroma da hipereosinofilia pulmonar tropical. Dietilcarbamazina.
Sudoeste da Ásia e Índia
Indonésia, Timor
Loose Loa loa África Central e Ocidental Chrysops spp. Edema migratório (Edema de Calabar), doloroso e pruriginoso, conjuntivite com edema palpebral. Dietilcarbamazina
Oncocercose Onchcerca volvulus África e América Simulium Nódulos subcutâneos, dermatite pruriginosa crónica e generalizada, ceratite, uveíte, coriorretinite e cegueira. Ivermectina
Dracunculose Dracunculus medinensis África Central e Ocidental e subcontinente Indiano Oral (água contaminada com Cyclops) Úlcera dolorosa no pé ou perna provocada pela saída do verme adulto. Extracção do verme, metronidazol, mebendazol.

 

Nalguns casos são as larvas, e não os parasitas adultos, que causam doença no Homem. Este é hospedeiro intermediário e a sua infestação não interfere com o ciclo de vida do parasita. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Formas larvares de nemátodos que causam doença no Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Toxocarose
Toxocara canis,
Toxocara catis
Mundial Fecal-oral Assintomática. Larva migrans visceral: febre, pieira, hepatomegália, anemia, leucocitose, eosinofilia. Larva migrans ocular: perda de visão unilateral, dor ocular, estrabismo, endoftalmite, leucocoria. Albendazol, mebendazol.
Triquinose
Trichinella spiralis
Ásia, África e América Oral (carne crua ou mal cozida) Diarreia, dor abdominal, febre, edema periorbitário, urticária, mialgias, fadiga, dispneia, miocardite. Albendazol, mebendazol.
Larva migrans cutânea
Ancylostoma braziliense,
Ancylostoma caninum
Regiões tropicais e subtropicais Larva penetra na pele sã Pápula no local da penetração e erupção pruriginosa causada pela migração do parasita. Tiabendazol, Mebendazol.

A Figura 1 mostra aspecto de Ascaris lumbricoides eliminada por via rectal.

A Figura 2 mostra um aspecto de dermatite pruriginosa ao nível da nádega numa criança de 6 anos contactando com cães – lesão cutânea de larva migrans provocada por Ancylostoma caninum – edema, rubor e lesão filiforme e serpiginosa provocada pelo avanço subcutâneo da respectiva larva penetrando na pele, proveniente do intestino.

Os tremátodos necessitam dum caracol específico (hospedeiro intermediário) para o seu desenvolvimento, sendo este a principal condicionante da sua distribuição geográfica. As larvas penetram através da pele ou são ingeridas com alimentos migrando até aos locais onde se encontram os parasitas adultos (sangue venoso, intestino, sistema biliar e pulmão). (Quadro 6)

QUADRO 6 – Tremátodos mais importantes que parasitam o Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Esquistossomose ou Bilharziose Schistosoma mansoni, S. intercalatum, S. japonicum, S. mekongi, S. hematobium Regiões tropicais Larva penetra através da pele sã Dermatite pruriginosa. Forma aguda: febre, arrepios, adenopatias, hepatoesplenomegália, eosinofilia. Forma crónica: disúria, hematúria, uropatia obstrutiva (S. hematobium), dor abdominal, diarreia, hepatoesplenomegália, fibrose hepática com hipertensão portal, hematemeses. Praziquantel, oxamniquina.
Fasciolose Fasciola hepatica Mundial Oral Febre, dor no hipocôndrio direito, icterícia, eosinofilia, hepatomegália, fibrose e cirrose. Triclabendazol.
Paragonimiose Paragonimus spp. Ásia, África, América Central e do Sul Oral Tosse, dispneia, dor torácica, suores nocturnos, hemoptises, fibrose pulmonar. Praziquantel, triclabendazol.

FIGURA 1. Ascaris lumbricoides. (NIHDE)

FIGURA 2. Larva migrans. (NIHDE)

Os céstodes no estado adulto são parasitas do tubo digestivo, vivendo no respectivo lume; no estado larvar fixam-se às vísceras (Quadro 7). Trata-se de parasitas prevalentes em todos os continentes, excepto na zona Antárctica, salientando-se que não existem sinais nem sintomas que se possam atribuir de modo distintivo a qualquer das formas no estádio de adulto, excepto no que toca ao Diphyllobothrium latum. Os estádios intermédios de alguns céstodos tais como Taenia solium e Echinococcus são invasivos e formam estruturas quísticas que produzem lesões em diversos tecidos por efeito de massa ou por reacção inflamatória.

Assim, as formas adultas podem ser facilmente diagnosticadas pelo achado de ovos ou de segmentos destacados nas fezes; para o diagnóstico das formas intermediárias/larvares, dada a sua localização em diversos tecidos, recorre-se a técnicas imagiológicas ou serológicas. (ver adiante)

De modo sucinto, e sem pormenorizar os respectivos ciclos evolutivos, para melhor compreensão das manifestações clínicas (com implicações no tratamento), recordam-se algumas noções fundamentais (cisticercose, hidátide e hidatidose ou doença hidática).

QUADRO 7 – Principais céstodes que parasitam o Homem.

Doença/Parasita Distribuição Transmissão Clínica Tratamento
Teniose Taenia solium, T. saginata, Diphyllobothrium latum, Hymenolepis nana Mundial Oral (porco, vaca, peixe) Assintomática. Astenia, dor abdominal, diarreia, perda de peso, deficiência em vitamina B12 (D. latum).   Praziquantel, niclosamida, nitazoxanida.
Cisticercose T. solium Mundial Fecal-oral Neurocisticercose: cefaleias, mialgias, eosinofilia, “encefalite”, convulsões, hidrocefalia, sinais de hipertensão intracraniana. Medular: radiculopatia, mielite transversa. Ocular: dor, escotomas, visão turva, descolamento da retina. Albendazol, praziquantel.
Hidatidose Echinococcus granulosus, Echinococcus multilocularis Mundial Hemisfério Norte Oral Assintomáticos, desconforto abdominal, náuseas, vómitos, hepatomegália, massa abdominal. Tosse, hemoptises, pleurisia. Hipertensão intracraniana, convulsões, hidrocefalia. Pode ocorrer ruptura ou sobreinfecção bacteriana do cisto. Cada escólex pode originar um novo quisto. Albendazol. Remoção cirúrgica.
  • Cisticercose → Infecção causada por cisticercos (larvas de vermes do género Taenia), que sobrevém após ingestão de ovos embrionados presentes nos alimentos crus (nomeadamente nos legumes contaminados por matérias fecais), cujos embriões, libertados no tubo digestivo, penetram em diversos tecidos e órgãos (olho, cérebro, coração, etc.), provocando lesões graves. Trata-se da forma parasitária mais comum e mais grave do SNC como resultado da infecção com a forma intermediária de solium, o céstode do porco. Este parasita, ao contrário de T. saginata, infecta a espécie humana e invade preferencialmente o SNC. T. solium pode existir também em água ou alimentos contaminados, não necessariamente carne de porco.
  • Hidátide → Fase larvar dos céstodos Echinococcus granulosus ou Echinococcus multilocularis que tem a forma de uma vesícula mais ou menos volumosa, com forma esférica, cheia de líquido incolor, e que contém cabeças/proto-escólexes dos mesmos. (Figura 3)
  • Hidatidose, equinococose ou doença hidática → Zoonose transmitida através de ovos de granulosus ou E. multilocularis existentes no intestino/fezes de animais domésticos/cães, gado, ou selvagens diversos. O Homem é contaminado ingerindo água ou alimentos contaminados com ovos, ou por contacto directo com cães infectados.

Existem duas formas clínicas de doença hidática:

  1. Doença quística hidática por E. granulosus;
  2. Doença alveolar, mais maligna, por E. multilocularis.

Após ingestão, as formas intermediárias penetram no tubo digestivo e, por via sanguínea ou linfática, atingem o fígado, pulmões e, menos frequentemente, outros tecidos. (Figs. 4, 5 e 6)

Nestes tecidos formam-se hidátides durante anos, sendo que o hospedeiro delimita a formação inicial que, entretanto, vai crescendo, formando-se, no caso de E. granulosus, um invólucro fibroso. Interiormente, o parasita produz uma camada celular germinal que produz milhares de parasitas ligados à parede interior da estrutura quística ou flutuando em líquido incolor, aquoso, no seu interior.

Tratando-se de E. multilocularis, a estrutura inicial não é tão delimitada, o que permite que os parasitas cresçam para o exterior, se disseminem nas estruturas vizinhas, tecidos e vasos, e metastizem, conferindo a esta forma clínica, características de malignidade.

Diagnóstico de algumas parasitoses intestinais

Exceptuando nos casos em que o parasita é visualizado, poderá ser necessário recorrer a exames complementares, designadamente laboratoriais, incluindo técnicas de biologia molecular. São referidos aspectos práticos relativamente a alguns parasitas (protozoários e helmintas).

  1. A observação microscópica das fezes permitirá a detecção de ovos, quistos ou trofozoítos. A colheita deve ser feita em três dias consecutivos, idealmente com intervalo de 48 horas, conservando-se as amostras no frigorífico a 4ºC até serem entregues no laboratório. Havendo diarreia, haverá maior probabilidade de detecção de trofozoítos. No caso de suspeita de Ascaris lumbricoides bastará uma amostra.
  2. Enterobius vermicularis pode ser detectado ocasionalmente nas fezes, mas os respectivos ovos em apenas ~ 5% dos casos. A forma mais simples de fazer o diagnóstico é identificar os ovos colocando uma fita-cola sobre a região anal durante a noite (período em que as fêmeas fazem a postura dos ovos); sendo retirada a fita-cola pela manhã, a mesma é colada a uma lâmina de microscópio para se proceder à visualização em microscópio.
  3. Tendo em conta distinguir entre Entamoeba histolytica e E. dispar (esta última mais frequente, mas não invasiva), podem ser utilizadas técnicas PCR ou enzimáticas.
  4. Cryptosporidium: os oócistos podem ser visualizados nas fezes ou na superfície de tecido de biópsia; contudo torna-se necessário proceder a técnicas específicas de coloração (por ex. Ziehl-Neelsen). Há também a possibilidade de utilizar técnicas de imunofluorescência (IFA), imunoenzimáticas (EIA) e de biologia molecular.
  5. Ténias: a visualização das proglótides é sinal patognomónico.
  6. Strongyloides stercoralis: as larvas poderão ser procuradas nas fezes (cultura de larvas durante 1 a 7 dias), no conteúdo duodenal e na expectoração.
  7. A colheita de sangue tem escassa utilidade, sendo clássica a eosinofilia (> 500 eosinófilos/mmc) ou hipereosinofilia (> 1.500 eosinófilos/mmc) associada a helmintíases com envolvimento tecidual. Pode verificar-se anemia por espoliação (por ex. nos casos de ancilostomose, ou por carência de vitamina B12 e folato (por ex. em parasitação por Strongyloides stercoralis).

Tratamento de situações específicas

Nesta alínea, em relação com o tratamento antiparasitário, é dada ênfase às parasitoses adiante discriminadas; de salientar que a giardiose, a doença de Chagas, a leishmaniose visceral e a malária integram capítulos próprios.

Amebiose

Quer se trate de doença invasiva (colite ou abcesso hepático), quer de colonização intestinal assintomática, utiliza-se o seguinte esquema: de início, metronidazol ou tinidazol, seguido de paromomicina ou iodoquinol.

– metronidazol → 35-50 mg/kg/dia, em 3 doses, durante 7-10 dias; – tinidazol → 50 mg/kg/dia, 1 dose, durante 3 dias (na colite), ou 5 dias (no abcesso hepático); – paromomicina → 25-35 mg/kg/dia, em 3 doses, durante 7 dias; – iodoquinol → 30-40 mg/kg/dia, em 3 doses, durante 20 dias.

Criptosporidiose (Cryptosporidium spp)

– nitazoxanida → 100 mg PO, duas doses diárias, (se 1-3 anos de idade), ou 200 mg (se 4-11 anos), ou 500 mg (se > 11 anos), durante período de diarreia; ou

– paromomicina → 25-35 mg/kg/dia, em 3 doses + azitromicina → 10 mg/kg/dia, 1 dose diária, durante 4 semanas, seguindo-se monoterapia com paromomicina durante mais 8 semanas (no contexto de infecção por VIH).

Toxoplasmose adquirida (Toxoplasma gondii)

– pirimetamina → 2 mg/kg/dia (dose de impregnação: 2 dias), seguindo-se 1 mg/kg/dia, (dose máxima de 50 mg/dia) + sulfadiazina (se > 1 ano de idade) → 100 mg/kg/dia (dose máxima de 4 g/dia) + leucovirina → 5-20 mg, 3 vezes/semana, durante 4-6 semanas.

Notas importantes:

    • as formas clínicas tendo como única manifestação linfadenopatias, sem compromisso de órgãos, como globo ocular/coriorretinite, miocárdio/miocardite, não necessitam de tratamento específico;
    • a toxoplasmose congénita é abordada na Parte referente a Perinatologia.

Ascaridiose (Ascaris lumbricoides)

– albendazol → 400 mg PO, dose única; ou
– mebendazol → 100 mg PO, duas doses diárias, durante 3 dias.

FIGURA 3. Aspecto de hidátide. (NIHDE)

FIGURA 4. Hidatidose pulmonar. Opacidade redonda ocupando o ⅓ superior do campo pulmonar esquerdo (Radiografia póstero-anterior). (NIHDE)

FIGURA 5. Hidatidose hepática. Observação de frente (A) e perfil direito (B) do hipocôndrico direito e epigastro permitindo visualizar procidência da parede abdominal por estrutura quística subjacente com superfície lisa palpável. (NIHDE)

FIGURA 6. Imagens redondas de limites bem definidos (estruturas quísticas) no parênquima hepático relacionadas com hidatidose. A) TAC; B) Ecografia. (NIHDE)

Enterobiose (Enterobius vermicularis)

– albendazol → 400 mg PO, dose única (repetir 2 semanas depois); ou
– mebendazol → 100 mg PO, dose única (repetir 2 semanas depois).

Ancilostomose (Ancylostoma duodenale, Necator americanus)

– albendazol → 400 mg PO, dose única; ou
– mebendazol → 100 mg PO, duas doses diárias, durante 3 dias.

Estrongiloidose (Strongyloides stercoralis)

– ivermectina → 200 mcg/kg/dia PO, 1 dose diária, durante 1-2 dias; ou
– tiabendazol → 25 mg/kg/dia PO, 2 doses diárias, até dose máxima de 3 g/dia na síndroma de hiperinfecção durante 7-10 dias.

Tricuriose (Trichuris thrichiura)

– albendazol → 400 mg PO, durante 1-3 dias ; ou
– mebendazol → 100 mg PO, duas doses diárias, durante 3 dias, ou 500 mg PO em dose única; ou
– nitazoxanida → 100 mg PO, duas doses diárias, (se 1-3 anos de idade), ou 200 mg (se 4-11 anos), ou 500 mg (se > 11 anos), durante 3 dias.

Toxocarose (Toxocara canis e Toxocara catis)

– albendazol → 400 mg duas vezes por dia PO, durante 5 dias; ou
– mebendazol → 100-200 mg duas vezes por dia PO, durante 5 dias;
– corticosteróide associado (prednisolona → 1 mg/kg/dia durante 2-4 semanas).

Triquinose (Trichinella spiralis)

– albendazol → 400 mg duas vezes por dia PO, durante 8-14 dias; ou
– mebendazol → 200-400 mg três vezes por dia PO, durante 3 dias, seguindo-se → 400-500 mg três vezes por dia, durante 10 dias.

Larva migrans cutânea (Ancylostoma braziliense e Ancylostoma caninum)

– albendazol → 400 mg PO, durante 1-3 dias; ou
– ivermectina → 200 mcg/kg/dia PO, 1 dose diária, durante 1-2 dias.

Esquistossomose (Schistosoma)

– praziquantel → 40 mg/kg/dia PO, em duas doses diárias, durante 1 dia para S. heamatobium, S. mansoni e S. intercalatum; 60 mg/kg/dia para S. japonicum e S. mekongi.

Fasciolose (Fasciola hepatica)

– triclabendazol → 10-20 mg/kg/dia PO, 1 ou 2 doses diárias até total de 10-15 doses; ou
– bitionol → 30-50 mg/kg/dia PO, dose diária única, em dias alternados, até 10-15 doses.

Paragonimiose (Paragonimus spp)

– praziquantel → 75 mg/kg/dia PO, em três doses diárias, durante 2 dias.

Teniose (Taenia solium, T. saginata, Diphyllobothrium latum, Hymenolepis nana)

– praziquantel → 5-10 mg/kg PO, dose única; ou
– niclosamida → 50 mg/kg PO, dose única.

Cisticercose (Taenia solium)

– albendazol → 15 mg/kg/dia PO em duas doses diárias durante 28 dias, até dose máxima de 800 mg/dia; ou
– praziquantel → 50-100 mg/kg/dia PO em três doses diárias durante 28 dias; poderá equacionar-se a associação a corticóides, iniciados 2-3 dias antes da 1ª dose de praziquantel, e a cimetidina – inibidor do sistema citocrómio P450 – o que poderá contribuir para a eficácia do tratamento.

Hidatidose ou Equinococose (E. granulosus, E. multilocularis)

– albendazol → 15 mg/kg/dia PO, em duas doses diárias, durante 1-6 meses;
– como alternativa ao tratamento cirúrgico de remoção do quisto hidático, e em associação ao tratamento com albendazol, alguns centros aplicam a estratégia, conhecida pela sigla PAIR, nos casos de quistos mais acessíveis (aspiração percutânea, instilação de soro salino hipertónico ou outro agente que provoque destruição do escólex, e re-aspiração).

Notas importantes:

De salientar, que nem todos os parasitas intestinais são patogénicos: 1) Amibas: Entamoeba dispar, Entamoeba coli, Entamoeba hartmani, Entamoeba moshkoushii, E chattoni, Endolimax nana, Iodamoeba buetschilii, Entamoeba gingivalis, Entamoeba polecki; 2) Protozoários flagelados: Trichomonas hominis, Chilomastix mesnili, Embadomonas intestinalis, Enteromonas hominis, Dientamoeba fragilis, Trichomonas tena; 3) Nemátodes: Capillaria hepatica, Dioctophima enale, Dipatelonema streptocerca, Mansonella ozzardi, Syngamus larnygeus, Ternides deminutus.

Prevenção

  1. Os aspectos da prevenção de infecções e infestações descritos noutros capítulos e, designadamente, no Capítulo sobre Viagens, fundamentam-se na interrupção do ciclo epidemiológico; tal é conseguido, essencialmente, através de: medidas de higiene individual, saneamento público básico, controlo de vectores, quimioprofilaxia e uso de vacinas.
  2. No caso especial de crianças imigrantes, provenientes de áreas endémicas para certos parasitas, está indicado o exame parasitológico das fezes, mesmo na ausência de sintomas.
  3. De acordo com recomendações da OMS, apenas nos países com taxas de prevalência de parasitismo intestinal superiores a 20% está indicada a administração profiláctica de rotina com anti-helmínticos (albendazol ou mebendazol). Salienta-se que em Portugal não se justificam as “desparasitações de rotina” se não estiver provado o estado de parasitação do paciente.
  4. A quimioterapia em massa é também uma importante medida de prevenção para parasitoses como a filariose linfática (dietilcarbamazina) e a oncocercose (ivermectina).
  5. Vacinas. Nos últimos anos têm sido feitos progressos no sentido de desenvolver vacinas contra algumas das parasitoses mais importantes (nomeadamente para malária, esquistossomose, leishmaniose, giardiose e helmintíases intestinais). No entanto, com excepção da malária, vacinas eficazes não deverão estar disponíveis nos próximos anos.

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