Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A apendicite aguda constitui a causa mais frequente de dor abdominal aguda que conduz a intervenção cirúrgica de emergência na criança e adolescente. A sua maior incidência verifica-se no grupo etário entre 12 e 18 anos, sendo rara antes dos 5 anos (< 5%), e muito rara antes dos 3 anos (< 1%).

O diagnóstico desta situação na criança com < 5 anos é frequentemente difícil e muitas vezes tardio, o que acarreta complicações com risco de vida, tais como perfuração (~20% dos casos), podendo conduzir a peritonite e sépsis. Nos quadros de doença febril há, pois, que admitir o seu diagnóstico, nomeadamente perante doença febril de interpretação duvidosa, mesmo sem sinais abdominais muito exuberantes.

Etiopatogénese

A apendicite aguda é uma doença que poderá envolver múltiplos factores etiológicos, cujo resultado final é a invasão bacteriana da parede apendicular.

Admite-se como factor importante e primum movens da infecção apendicular a obstrução do respectivo lume por matéria fecal (fecalitos, muitas vezes em relação com regime alimentar pobre em fibra), caroços de fruta, parasitas/Ascaris, hiperplasia dos folículos linfóides da submucosa da parede (secundária a infecções víricas, ou outras causas), ou por compressão extraluminal (gânglios linfáticos ou tecido neoplásico). Na fibrose quística, afecção associada a maior viscosidade do muco, existe maior predisposição para a obstrução do lume apendicular.

O resultado final é o aumento da pressão intraluminal e a proliferação bacteriana com invasão da parede do apêndice induzindo processo inflamatório com edema, secreção de muco, distensão com compromisso circulatório (dificuldade de drenagem venosa e linfática numa primeira fase, e isquémia por compressão arterial, mais tardiamente); ulteriormente pode surgir ruptura por necrose, por vezes verificada cerca de 48-72 horas após início das manifestações clínicas.

A infecção entérica pode desempenhar também papel importante, na medida em que muitos casos se associam a ulceração da mucosa e invasão da parede apendicular por microrganismos como Salmonella e Shigella spp., e vírus (adenovírus e coxsackie B).

Poderão formar-se abcessos periapendiculares e peritonite generalizada (esta última facilitada pelo facto de o grande epíploo ser mais curto do que no adulto, dificultando a localização do abcesso inicial).

Manifestações clínicas

O diagnóstico de apendicite aguda é essencialmente clínico. O quadro de apresentação varia com a idade:

  • Recém-nascido
    Os sinais de apresentação são inespecíficos: letargia, irritabilidade, distensão abdominal e vómitos, massa abdominal palpável, eritema da parede abdominal, hipotensão, hipotermia e dificuldade respiratória.
    A apendicite aguda comporta elevada mortalidade neste grupo etário.
  • Lactente
    Até aos 2 anos de idade os sinais e sintomas mais frequentes são a dor, vómito, diarreia e febre. Pode haver irritabilidade, dificuldade respiratória e queixas localizadas na anca direita. É mais frequente a dor abdominal difusa do que a localizada, não sendo de estranhar que o diagnóstico seja geralmente tardio pela dificuldade de comunicação neste grupo etário. Daí a maior gravidade da situação e a maior incidência de peritonite em tal circunstância.
  • Pré-escolar
    Neste grupo etário são habituais dor abdominal, febre, anorexia, náuseas e vómitos; em regra, a dor é localizada na fossa ilíaca direita. O vómito precede a dor, geralmente.
  • Escolar
    A sintomatologia assemelha-se à clássica do adulto: inicialmente dor difusa ou periumbilical e, mais tarde, localizada na fossa ilíaca direita, com sinais de defesa abdominal/contractura da parede abdominal e dor à descompressão. A dor é função da localização anatómica do apêndice. As náuseas e os vómitos surgem por distensão apendicular, após início da dor.
  • Adolescente
    Neste período estão presentes os sinais e sintomas da apendicite do adulto com a sequência clássica: dor periumbilical inicial – náuseas – vómitos – dor localizada na fossa ilíaca direita, agravada pela descompressão rápida após palpação; esta última comprova defesa abdominal/contractura da parede. No sexo feminino impõe-se o diagnóstico diferencial com patologia ginecológica.

Diagnóstico diferencial

Quando o quadro não é evidente, haverá que admitir outras situações, tais como: gastrenterite, linfadenite mesentérica, diverticulite de Meckel, pancreatite, colecistite aguda, torção do epíploo, torção de quisto do ovário, doença inflamatória pélvica, infecção urinária, pneumonia (classicamente na localização lobar direita), etc..

É importante salientar a importância da anamnese e do exame objectivo global e rigoroso, e que os sinais clássicos poderão não estar presentes em caso de apêndice de localização retrocecal ou com localização anómala.

Determinadas situações provocando dor no quadrante inferior direito do abdómen merecem ser destacadas, nomeadamente pela eventual confusão estabelecida pela terminologia clássica da entidade “apendicite aguda”, objecto do presente capítulo:

  1. Apendicite crónica refere-se ao quadro de inflamação crónica do intestino com infiltração de monócitos, o que corresponde a ~1% dos apêndices inflamados;
  2. Apendicite recorrente refere-se à situação resultante de um episódio de inflamação apendicular com regressão espontânea, sem intervenção cirúrgica e consequente fibrose focal apendicular;
  3. Cólica apendicular (termo controverso não reconhecido em geral como entidade clínica específica) originando dor crónica recorrente em geral pela manhã e 5-20 minutos após ingestão de líquidos ou refeição, explicável por diversos factores como fecaloma, fibrose, corpo estranho, parasitose, carcinóide, hiperplasia linfóide, etc.;
  4. Tiflite ou enteropatia neutropénica correspondendo a um processo de inflamação e necrose da parte terminal do íleo, cego, e/ou apêndice, tendo como factores de risco doença neoplásica, infecção por VIH e quimioterapia.

Exames complementares

Reiterando que o diagnóstico provisório de apendicite aguda é essencialmente clínico, na maioria dos centros cirúrgicos, no que respeita a exames complementares para confirmação ou infirmação é hoje consensual que existe prioridade para os exames de imagem “à cabeceira do doente”. A ecografia tem evidenciado sensibilidade de 88% e especificidade de 94% na ausência de obesidade; nos casos duvidosos haverá que recorrer à TAC, com inconvenientes pela radiação, mas mais precisa que a ecografia. A RM, em centros com recursos e ponderando prioridades, poderá ser outra alternativa.

No que respeita a biomarcadores clássicos, salientam-se o hemograma e a proteína C reactiva (PCR). O hemograma proporciona fraco contributo (pode verificar-se neutrofilia), podendo ser útil no diagnóstico diferencial com linfadenite mesentérica (esta última revelando, em geral, linfocitose ou valor de leucócitos < 7.000/mmc). De acordo com estudos epidemiológicos, valor de leucócitos superior a 12.000/ mmc com desvio à esquerda poderá surgir em cerca de 85%-90% dos doentes com apendicite aguda, e em 90%-95% dos mesmos com apendicite perfurada. Valores de PCR > 3 mg/dL, em conjugação com a clínica sugestiva, poderão apontar para o diagnóstico.

Nalguns centros estão a ser utilizados novos biomarcadores, mais específicos e sensíveis que os clássicos, como o factor de crescimento dos granulócitos (G-CSF), uma glicoproteína (LRG ou leucine-rich alpha-2-glycoprotein) e doseamento sérico de citocinas.

A análise de urina pode ser útil para a detecção de infecção urinária. Outros exames e doseamentos a realizar (nas situações de contexto clínico mais complexo e grandes dúvidas) são: amilase, lipase, ALT, AST, GGT, radiografia do tórax, radiografia abdominal simples de pé e em decúbito.

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, de emergência. Durante a indução da anestesia deve proceder-se a antibioticoterapia endovenosa de largo espectro de modo a abranger o microbioma intestinal, para diminuir o risco de complicações infecciosas peri- e pós-operatórias.

No que respeita a esquemas de antibioticoterapia (a qual deverá ser dirigida contra as bactérias frequentemente encontradas no apêndice, incluindo anaeróbios e aeróbios gram-negativos) diversos têm sido descritos em estudos epidemiológicos demonstrando idêntica eficácia. Dado que os microrganismos gram-positivos são raros no cólon, é controversa a antibioticoterapia para cobrir enterococos, salvo em contextos clínicos específicos.

Descreve-se a seguir um dos protocolos utilizados:

  • Apendicite simples não perfurada: cefoxitina IV (1 dose pré-operatória e 1 dose 24 horas após intervenção);
  • Apendicite perfurada ou gangrenosa: antibioticoterapia tripla IV (ampicilina + gentamicina + clindamicina ou metronidazol) iniciada na data da operação (no pressuposto de intervenção emergente) e continuada durante 3-5 dias.

No caso de presença de pus na cavidade abdominal é fundamental a lavagem copiosa da mesma com soro fisiológico morno, até se obter líquido límpido, e encerrando a laparotomia sem deixar drenos; em tais circunstâncias torna-se obrigatória a continuação da antibioticoterapia pós-operatória.

Notas importantes:

    • Quando o cirurgião e a equipa têm experiência pode utilizar-se, em casos seleccionados, a cirurgia laparoscópica.
    • Nalguns centros, em casos seleccionados, procede-se a técnicas de drenagem percutânea com o apoio de especialistas em radiologia de intervenção associada a laparoscopia.

Complicações

Peritonite e abcessos intraperitoneais são as complicações mais frequentes da doença. Deiscência da laqueação do coto apendicular e hemorragia são complicações raras, mas podem ocorrer como complicação da intervenção cirúrgica, assim como abcessos da parede abdominal na zona da laparotomia. Com os devidos cuidados todas elas são evitáveis.

BIBLIOGRAFIA

Bence CM, Densmore JC. Neonatal and infant appendicitis. Clin Perinatol 2020; 47: 183-196

Benjamin IS, Patel AG. Managing acute appendicitis. BMJ 2002; 325: 505-506

Brown CV, Abrishami M, Muller M, et al. Appendiceal abscess: immediate operation or percutaneous drainage? Am Surg 2003; 69: 829-832

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Hennelly KE, Bachur R. Appendicitis update. Curr Opin Pediatr 2011; 23: 281-285

Humes DJ, Simpson J. Acute appendicitis. BMJ 2006; 333: 530-534

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kosloske AM, Love CL, Rohrer JE, et al. The diagnosis of appendicitis in children: outcomes of a strategy based on pediatric surgical evaluation. Pediatrics 2004; 113: 29-34

Lawton B, Goldstein H, Davis T, et al. Diagnosis of appendicitis in the pediatric emergency department: un update. Curr Pediatr 2019; 31: 312-316

McIntosh N, Helms P, Smyth R, Logan S (eds). Forfar and Arneil´s Textbook of Pediatrics. London: Churchill Livingstone, 2008

Neufeld D, Vainrib M, Buklan G, et al. Management of acute appendicitis: an imaging strategy in children. Pediatr Surg Int 2010; 26: 167-171

O’Neill JrJA, Rowe MI, Grosfeld JL, et al. Pediatric Surgery. Philadelphia: Elsevier, 2017

Prada-Arias M, Gómez-Veiras J, Vázquez JL, et al. Appendicitis or non-specific abdominal pain in pre-school children: When to request abdominal ultrasound? J Paed Child Health 2020; 56: 367-371

Smink DS, Finkelstein JA, Pena BMG, et al. Diagnosis of acute appendicitis in children using a clinical practice guideline. J Pediatr Surg 2004; 39: 458-463

Taylor GA. Suspected appendicitis in children: in search of a single best diagnostic test. Radiology 2004; 231: 293-295

Ziegler MM. The diagnosis of appendicitis: an evolving paradigm. Pediatrics 2004; 113: 130-132