ANEMIAS HEMOLÍTICAS POR DEFEITOS ENZIMÁTICOS

Introdução

O eritrócito, para manter a sua integridade como transportador de oxigénio e dióxido de carbono durante cerca de 120 dias, possui um sistema metabólico. Durante o processo de maturação, perde a maioria das vias metabólicas características de qualquer outra célula, mantendo apenas as imprescindíveis para se defender dos agentes oxidantes e obter energia: – a via de Embden-Meyerhoff; – a via das pentoses-fosfato e; – a via dos nucleóticos.

  1. Via de Embden-Meyerhoff (glicólise anaeróbia): permite a obtenção de ATP e NADH a partir de degradação sucessiva da glicose, fonte de energia única e essencial para manter a integridade da membrana citoplasmática e o gradiente osmótico de sódio/potássio entre os espaços intra e extracelular. Esta dependência da glicólise anaeróbia resulta da inexistência de mitocôndrias onde decorre o ciclo do ácido tricarboxílico (ciclo de Krebs) e a fosforilação oxidativa. A obtenção de NADH garante que a meta-hemoglobina redutase mantenha o ferro hemoglobínico na forma ferrosa (Fe2+) e não na sua forma oxidada, férrica (Fe3+);
  2. Via das pentoses-fosfato: protege a hemoglobina da desnaturação oxidativa através da obtenção de NADPH. Este composto intermédio deriva da metabolização alternativa da glicose em 6-fosfogluconato pela glucose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). O NADPH mantém o glutatião, responsável pela reversão do dano oxidativo sobre a hemoglobina e outras proteínas eritrocitárias, na sua forma reduzida;
  3. Via dos nucleóticos: contribui para o balanço energético do eritrócito já que promove a produção de adenosina monofosfato (via das purinas) e a degradação de ribonucleótidos (via das pirimidinas).

A disfunção das várias enzimas envolvidas nestas vias metabólicas pode provocar anemia hemolítica congénita não esferocítica. Neste capítulo são descritos os défices enzimáticos (enzimopatias eritrocitárias) mais frequentes na população e com maior impacte na clínica, tendo em conta a sua relativa raridade.

As enzimopatias eritrocitárias com maior impacte clínico são o défice da glucose-6-fosfato desidrogenase, enzima representativa do metabolismo antioxidante, e o défice da piruvato-cinase, representativa da glicólise anaeróbia.

1. DÉFICE DE GLUCOSE-6-FOSFATO DESIDROGENASE

Importância do problema e genética

O défice de G6PD (também conhecido por favismo) é o defeito do metabolismo eritrocitário encontrado com maior frequência no mundo, afectando > 400 milhões de pessoas. Apesar disso, a maioria das isoenzimas com actividade reduzida associa-se apenas a um risco moderado para a saúde, não tendo impacte significativo na longevidade.

O défice de G6PD é o defeito enzimático mais frequente do eritrócito, do que resulta maior susceptibilidade aos oxidantes, relacionável com perda total ou parcial da capacidade redutora da referida enzima. Estima-se que mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo estejam afectadas, sendo na sua maioria assintomáticas.

Esta doença, também conhecida por “favismo” tem uma distribuição universal com maior prevalência nas regiões tropicais e subtropicais do Oriente, entre negros africanos Bantús, países da bacia oriental do Mediterrâneo e Médio Oriente (valores médios entre 8 e 30%).

Esta distribuição sobrepõe-se, em parte, às zonas endémicas de malária, o que é explicado pela vantagem de sobrevivência dos indivíduos com défice de G6PD infectados com Plasmodium falciparum com consequente selecção das variantes patogénicas.

Portugal é um país de baixa prevalência (cerca de 0,5%) sendo mais elevada nos distritos de Castelo Branco, Setúbal, Faro e Lisboa.

A hereditariedade é de tipo recessivo, ligada ao cromossoma X; assim, os indivíduos afectados são geralmente do sexo masculino.

O défice de G6PD, que se intensifica com o envelhecimento dos eritrócitos, resulta de mutações (em número > 100) dum gene altamente polimórfico localizado no braço longo do cromossoma X (locus Xq28); tal explica a maior prevalência no sexo masculino (hemizigotia).

Contudo, de acordo com o fenómeno aleatório de lionização (inactivação do cromossoma X), nas mulheres portadoras foram demonstradas duas populações de eritrócitos, uma normal, e outra com défice de G6PD. A expressão clínica é, portanto, dependente da percentagem de cromossomas X afectados que sofrem inactivação.

Estão descritas mais de 400 variantes genéticas da G6PD, sistematizadas de acordo com o grau de inactivação enzimática que provocam. Estas variantes resultam habitualmente de mutações pontuais ao longo das 18Kb que constituem o gene, provocando substituições de aminoácidos com impacte funcional variável sobre a enzima. A inexistência de grandes deleções ou mutações frameshift sugere que a ausência total de G6PD é incompatível com a vida.

Etiopatogénese

No eritrócito, célula anucleada sem mitocôndrias nem outros organelos, a G-6PD (aliás presente em todas as células) assume um papel particularmente importante: cataliza a oxidação da glicose-6-fosfato em 6-fosfoglicerato, reduzindo concomitantemente a nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADP) em NADPH.

A NADPH, cofactor utilizado em muitas reacções biossintéticas, mantém o glutatião na sua forma reduzida (GSH).

Assim, o glutatião reduzido nos eritrócitos, actuando na neutralização de agentes que potencialmente oxidam a hemoglobina (Hb) ou os componentes da membrana eritrocitária, tem acção preventiva contra lesões resultante de oxidação, sendo que os eritrócitos estão frequentemente sujeitos a estresse oxidante.

Se não se formar o glutatião reduzido, a Hb precipita formando-se os chamados corpúsculos de Heinz; a membrana eritrocitária é lesada, com consequente diminuição da vida média do eritrócito predispondo a destruição prematura ou hemólise. A hemólise é principalmente intravascular nas formas agudas, e extravascular nas formas crónicas.

Uma noção importante a reter é a seguinte: a tendência para a hemólise e a gravidade da doença dependem do grau do defeito enzimático; por outro lado, há que atender ao facto de existirem muitas variantes genéticas (mais de 400) de G6PD a que correspondem actividades enzimáticas variáveis e espectro de manifestações clínicas também variáveis (desde exuberantes até mínimas ou irrelevantes). As variantes da G6PD são distinguidas com base na sua mobilidade electroforética.

A forma normal da enzima corresponde à variante B (Wild Type).

Entre mais de 400 variantes anormais identificadas, as mais comuns são as chamadas variantes A(-), A(+), e B(-) ou mediterrânicas.

A forma mediterrânica B(-), com genótipo designado por Gd Med/(B-), é mais comum em indivíduos originários de Portugal, da bacia do Mediterrâneo (sobretudo Grécia e Itália, Médio Oriente), do Irão, Índia e Paquistão. Nesta forma a actividade enzimática de indivíduos do sexo feminino homozigóticos e do sexo masculino hemizigóticos é inferior a 5%; os indivíduos do sexo feminino heterozigóticos evidenciam uma taxa de actividade enzimática entre 30-50%.

A forma A(-), com genótipo designado por Gd (A-), é mais frequente nos indivíduos originários de África, os quais evidenciam actividade enzimática entre 8-20%.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a relação entre o grau de actividade enzimática e o grau de hemólise é classificada do seguinte modo:

  • Tipo I – Défice enzimático acentuado e anemia hemolítica crónica; situação rara;
  • Tipo II – Défice enzimático acentuado e hemólise intermitente;
  • Tipo III – Défice enzimático ligeiro a moderado e hemólise intermitente desencadeada por infecções, cetoacidose diabética, ingestão de favas, e por exposição a fármacos ou determinados agentes químicos;
  • Tipo IV – Défice enzimático inexistente.

Factores etiológicos de lesão oxidativa e hemólise

Nas crianças a infecção e a ingestão de favas (favismo) constituem os principais eventos precipitantes, sobretudo em pacientes com a variante A(-). Os agentes infecciosos mais frequentemente implicados são E. coli, Salmonella, Streptococcus β-hemolítico, vírus Influenza, CMV e vírus das hepatites A, B, C, D, entre outros. No contexto de infecção, o efeito oxidativo da hipertermia e dos produtos da activação imune parecem estar na base da hemólise aguda. Admite-se que os eritrócitos deficientes em G6PD sejam menos resistentes à hipertermia mantida, não tolerando o aumento do teor de oxidantes produzidos pelos granulócitos durante o processo de fagocitose.

Os efeitos da ingestão de favas/Vicia faba (favismo) verificam-se na variante mediterrânica ou B(-). O grau de hemólise é variável de exposição para exposição, sendo mais susceptíveis a esta situação os indivíduos mais jovens, sobretudo se existir infecção concomitante. São comuns em locais onde o défice de G6PD é acentuado e onde as favas são um alimento popular (Sul da Europa, Médio Oriente e Sudeste Asiático).

A hemólise induzida por fármacos foi inicialmente descrita associada à primaquina.

Entretanto, outros fármacos ou agentes químicos foram implicados: analgésicos e antipiréticos, antimaláricos, drogas cardiovasculares, citotóxicos e antibacterianos, sulfonamidas e sulfonas, naftalina, azul de toluidina, trinitrotolueno, etc.. O risco e a gravidade relacionam-se com o tipo de substância em causa, dose e duração da actuação. Na sua forma clássica, a hemólise inicia-se com a exposição ao agente desencadeante.

De acordo com o Quadro 1, os efeitos dos fármacos e substâncias dependem do tipo de fármaco ou substância, e do tipo de défice de G6PD.

QUADRO 1 – Perfil de segurança de vários fármacos e substâncias usados em doentes com défice de G6FD

Fármacos/substâncias provavelmente lesivas no contexto de G6FD moderado a grave (Tipo I-III)
Anti-infecciososDapsona, Nitrofurantoína, Primaquina
DiversosAzul de metileno, Azul de toluidina, Rasburicase
Exposições químicas e alimentosCorantes de anilina, Naftaleno, Favas, Compostos de Henna (e corantes relacionados)
Fármacos previamente considerados lesivos, mas provavelmente não lesivos nas doses terapêuticas usadas no contexto de G6FD (Tipo II-III)*
AnalgésicosParacetamol, Ácido acetilsalicílico, Aminofenazonas (Metamizol)
Anti-infecciososAntimaláricos (Cloroquina, Quinino), Fluoroquinolonas (Ciprofloxacina, Levofloxacina, Norfloxacina, Ofloxacina), Sulfonamidas (Trimetoprim-Sulfametoxazol), Cloranfenicol, Isoniazida
DiversosÁcido ascórbico, Glibenclamida, Hidroxicloroquina, Dinitrato de isosorbida, Mesalazina, Sulfasalazina
Fármacos geralmente considerados não lesivos nas doses terapêuticas usadas no contexto de G6FD (Tipo II-III)*
DiversosColchicina, Doxorubicina, Levodopa, Carbidopa, Ácido para-aminobenzóico, Fenacetina, Procainamida, Pirimetamina, Estreptomicina, Vitamina K
Nota: não lesivo <> acção moderada quanto a provocar crises hemolíticas; lesivo <> acção intensa idem

Manifestações clínicas

Na grande maioria, os portadores da deficiência enzimática de G-6PD são “aparentemente saudáveis”; nalguns casos surgem crises agudas de anemia hemolítica relacionáveis com a exposição a determinados agentes atrás referidos, a administração de fármacos, ingestão de favas ou outras leguminosas, ou a verificação de certos estados mórbidos, designadamente infecções.

A gravidade da hemólise depende da variante em causa, do nível de actividade enzimática nos eritrócitos e do tipo e intensidade da agressão oxidativa (ou oxidante). As formas clínicas de apresentação podem ser as seguintes:

1. Anemia hemolítica aguda

Nesta situação, típica da forma mediterrânica A(-), verifica-se crise de hemólise intravascular desencadeada por estresse oxidante (por exemplo, exposição a agentes oxidantes como primaquina, sulfamidas, entre outros, ou por ingestão de favas).

Salienta-se, em plena saúde aparente, o aparecimento de irritabilidade, letargia, febre, sintomas gastrintestinais e colúria (urina de cor de vinho do Porto).

O exame objectivo evidencia palidez, icterícia, taquicárdia e, nos casos mais graves, evolução aguda para choque hipovolémico ou, menos frequentemente, insuficiência cardíaca. Destaca-se ainda a presença de hepatosplenomegália moderada.

Através dos exames laboratoriais comprova-se anemia normocrómica e normocítica, moderada a extremamente grave (Hb atingindo, por vezes, valores de 2,5 a 4 g/dL) com anisocitose e poiquilocitose marcadas. A reticulocitose acentuada (por vezes ultrapassando 30%) torna-se evidente como resposta eritropoiética por volta do 5º-7º dia após início do quadro de hemólise aguda.

A presença de corpúsculos de Heinz nos eritrócitos (complexos de Hb desnaturada) é patognomónica. No entanto, a sua observação é, em geral, transitória, já que os respectivos eritrócitos são rapidamente removidos da circulação. A análise sumária da urina revela colúria e hemoglobinúria.

A principal complicação é a insuficiência renal aguda por necrose tubular.

O grau de hemólise traduz a gravidade da doença, variando, como foi dito, com o tipo e intensidade da exposição ao agente desencadeante e com a gravidade de deficiência enzimática.

Habitualmente trata-se de situação autolimitada com tendência para a regressão espontânea, com normalização do valor de Hb entre três a seis semanas; com efeito, com a regeneração eritrocitária pós-crise reticulocitária atrás mencionada, verifica-se, como atrás foi referido, que a actividade da G6PD é mais elevada nos eritrócitos mais jovens.

2. Icterícia neonatal

Trata-se duma forma de apresentação possível no recém-nascido (RN), ocorrendo, na sua maioria, na ausência de exposição a agentes oxidantes.

No entanto, a ingestão de drogas oxidantes pela grávida (situação por vezes não inquirida na anamnese) poderá originar manifestações no feto/RN deficiente em G6PD.

Assim, o défice de G6PD neste período etário, associado a outros factores que se somam e também predispõem à hemólise (baixos níveis de vitamina E e da redutase da metemoglobina) pode traduzir-se de duas formas:

  • Forma predominantemente ictérica: trata-se de quadro de icterícia de grau variável, em geral surgindo entre o 2º e 3º dia de vida (raramente nas primeiras 24 horas), mais importante do que a anemia; no entanto, a hiperbilirrubinémia não conjugada, se for muito acentuada e não correctamente tratada (exsanguinotransfusão), poderá originar encefalopatia (kernicterus). Esta forma ocorre em diversas variantes;
  • Forma predominantemente anémica: o quadro clínico é o de anemia aguda por hemólise relacionável com exposição a agente (incluindo naftalina na roupa), medicamento, ou infecção; uma variante descrita resulta da exposição a favas ou fármacos oxidantes ingeridos pela grávida.

Numa e noutra forma a hepatosplenomegália poderá não estar presente.

3. Anemia hemolítica congénita crónica

Esta forma de apresentação (surgindo inicialmente como icterícia inexplicada), em pacientes com a variante mediterrânica (B-), ocorre invariavelmente no sexo masculino. No período neonatal poderá estabelecer a indicação de exsanguinotransfusão. Como particularidade em relação à forma anterior, importa salientar que, após a exsanguinotransfusão, a anemia reaparece e a icterícia não regride (hiperbilirrubinémia crónica).

Em muitos casos, o diagnóstico faz-se mais tarde, face à verificação de litíase biliar.

A anemia normocrómica, associada a reticulocitose acentuada é variável, não se observando alterações da morfologia dos eritrócitos.

Exames complementares

Uma vez realizados a anamnese (com ênfase para os antecedentes familiares) e o exame objectivo, importa salientar como noções genéricas, as seguintes: o diagnóstico da maioria das enzimopatias eritrocitárias em geral é, em parte, de exclusão, baseando-se: na prova de Coombs directa negativa, na prova de avaliação da fragilidade osmótica normal, na ausência de anomalias morfológicas eritrocitárias, designadamente esferócitos (excepto identificação de degmócitos – ver adiante), e na ausência de hemoglobinas anormais.

Para o diagnóstico de portadores da deficiência de G6PD podem utilizar-se técnicas qualitativas ou quantitativas com as quais é possível demonstrar diminuição ou ausência da actividade enzimática.

O doseamento da actividade enzimática é efectuado por medição da cinética enzimática. Pela avaliação directa, tal actividade em indivíduos afectados é igual ou inferior a 10%. Para tal avaliação importa conhecer os valores absolutos de referência:

  • 4,5 a 8,5 UI/g de Hb até um ano de idade.
  • 3,5 a 5,5 UI/g de Hb após um ano de idade.

Diferentes estudos de biologia molecular permitem conhecer a sequência de ADN do gene que codifica a G6PD para identificação das variantes. A identificação de uma mutação patogénica estabelece o diagnóstico definitivo, permite aconselhamento genético e, em casos graves, o diagnóstico pré-natal.

No estudo da morfologia do sangue periférico podem ser identificados os chamados eritrócitos “mordidos” ou degmócitos. Poderá existir ou não anemia e reticulocitose.

A colheita de sangue não deve ser efectuada durante as crises hemolíticas ou processos infecciosos, uma vez que, em tais circunstâncias, a destruição dos eritrócitos mais deficientes em G6PD, a elevação do número de reticulócitos e de leucócitos (células ricas na enzima em causa) podem alterar os resultados; igualmente acontece após transfusão de sangue (dador contendo G6PD com actividade normal).

Tratamento e prevenção

Não existe tratamento específico. A transfusão de concentrado eritrocitário apenas está indicada no favismo agudo e nas situações em que se verifique repercussão hemodinâmica da anemia.

No período neonatal importa seguir as normas de actuação em caso de hiperbilirrubunémia. (Parte XXXI)

A esplenectomia apenas está indicada em presença de hiperesplenismo, contudo, não está provado o seu benefício.

No que respeita à prevenção, importa evitar as fontes potenciais de agentes oxidantes (nomeadamente ingestão de favas), incluindo as relacionadas com o tratamento das infecções; de salientar que a evicção daqueles contribui para a prevenção e/ou para reverter a situação.

No contexto da variante A(-), em que surge infecção, o uso de doses usuais de ácido acetilsalicílico (AAS) e TMP-SMX não provocam hemólise importante. No entanto, doses de AAS para tratamento da febre reumática (60-100 mg/kg/dia) podem originar episódio hemolítico grave. (ver Quadro 1)

O rastreio no recém-nascido apenas se justifica nos países com elevada prevalência do defeito enzimático.

Na forma clínica de anemia hemolítica crónica, em geral não é requerido o suporte transfusional. No entanto, há que atender à necessidade de vigilância clínica rigorosa, implicando nomeadamente o alerta para a eventualidade de intercorrência oxidativa (infecção ou ingestão de certos fármacos) susceptível de agravar a anemia. Nos casos com esplenomegália não está provado benefício da esplenectomia.

2. DÉFICE DE PIRUVATO CINASE (PK)

Importância do problema e hereditariedade

O défice de piruvatocinase (PK) é a enzimopatia mais frequente, a seguir ao défice de G6PD. No cômputo geral das anemias hemolíticas hereditárias, é a mais frequente, a seguir à esferocitose.

A sua frequência média é estimada em cerca de 5 casos por milhão de habitantes de raça caucasiana, com predomínio nos países do norte da Europa e em comunidades com elevada consanguinidade.

O mecanismo de transmissão é autossómico recessivo, sem predomínio de sexos; a expressão da doença observa-se sobretudo em indivíduos homozigóticos ou de dupla heterozigotia, isto é, portadores de dois genes com diferente tipo de mutação; a possibilidade de combinações muito variadas de genes alterados explica a variabilidade de manifestações (conhecidas mais de 220 mutações do gene PKLR associado a défice de PK).

Não parece existir relação entre a localização da mutação no gene, a actividade residual da PK, o grau de hemólise e a gravidade do quadro clínico. (ver adiante)

Do défice de PK resulta aumento do 2,3-DPG (2,3-difosfoglicerato) eritrocitário com consequente incremento na distribuição de oxigénio aos tecidos, desligando-se da Hb. Este fenómeno (diminuição da afinidade O2-Hb) tem implicações clínicas: menor fadiga e maior tolerância ao esforço, apesar da anemia.

Manifestações clínicas

O quadro clínico associado a esta patologia é altamente variável: desde hemólise crónica compensada, a anemia hemolítica grave com icterícia e esplenomegália, dependente de suporte transfusional. No RN a apresentação pode ser uma forma grave, com hiperbilirrubinemia e hidropisia. Em cerca de 80% dos casos a apresentação verifica-se em idade pediátrica, sendo que nalgumas crianças a anemia melhora com o crescimento.

As complicações são as próprias da hemólise crónica: maior incidência de litíase biliar, sobrecarga férrica, designadamente em doentes não transfundidos, anemia normocrómica e macrocítica, crises aplásticas transitórias, eritroblastopenia, défice de folatos, etc..

No sexo feminino, o quadro clínico inicial manifesta-se, por vezes, no decurso da gravidez ou de infecção intercorrente, realçando-se que nesta doença a hemólise não é desencadeada por estresse oxidante.

Exames complementares

O exame hematológico clássico revela parâmetros compatíveis com anemia hemolítica não esferocítica e reticulocitose acentuada.

O estudo morfológico do sangue periférico evidencia ocasionalmente macrócitos, eritrócitos espiculados e raros acantócitos, ovalócitos, eliptócitos e policromasia.

Dada a possibilidade de crises aplásticas, poderá ser identificado quadro compatível com pancitopénia.

O diagnóstico definitivo baseia-se na demonstração da actividade enzimática (PK) diminuída (5‑40% na maioria dos doentes, tipicamente < 25%). No entanto nos casos de heterozigotia e de algumas variantes, a actividade é normal ou pouco reduzida in vitro. O diagnóstico nestes casos depende da caracterização genética de uma mesma mutação patológica em homozigotia ou de 2 mutações patológicas diferentes.

Como os leucócitos têm actividade normal da PK, devem ser eliminados do hemolisado quando se pretende determinar a actividade da referida enzima eritrocitária.

Tratamento

A exsanguinotransfusão está indicada nas situações de hiperbilirrubinémia neonatal grave.

Nos casos de anemia crónica e grave com necessidade de regime transfusional frequente (cada 4 a 8 semanas), está indicada a esplenectomia, a realizar após os 5-6 anos. Salienta-se o efeito benéfico da esplenectomia: redução franca, ou até eliminação, da necessidade transfusional e subida da hemoglobina basal em 1-3 g/dL; é ainda notado um aumento da reticulocitose (que pode atingir 40-60%), possivelmente por redução da apoptose eritróide no baço. (ver atrás)

Nos casos de crises aplásticas estão indicados os procedimentos descritos a propósito deste tópico.

A mortalidade relacionada com a sépsis pneumocócica, meningocócica ou por Hemophilus influenzae pós-esplenectomia, torna obrigatória a aplicação das respectivas imunizações (hoje correntes) e a profilaxia com penicilina após a esplenectomia.

3. DÉFICE DE PIRIMIDINA-5’-NUCLEOTIDASE

A deficiência hereditária de pirimidina-5’-nucleotidase (P5N) é a terceira enzimopatia hemolítica mais frequente. Esta enzima integra a via metabólica dos nucleótidos (especificamente das pirimidinas) participando na degradação de ARN no reticulócito. No défice de P5N verifica-se acumulação de nucleótidos pirimidínicos que formam agregados insolúveis visíveis sob a forma de ponteado basofílico no esfregaço de sangue periférico.

Este achado não é específico, uma vez que a intoxicação por chumbo, um potente inibidor da P5N, também se associa à presença de ponteado basofílico nos eritrócitos. É fundamental distinguir estas entidades devido ao carácter reversível da segunda.

O défice de P5N é transmitido de forma autossómica recessiva e provoca anemia hemolítica crónica ligeira a grave, esplenomegália e icterícia. Vários métodos estão descritos para determinar a actividade eritrocitária de P5N. No entanto estes não são reprodutíveis, não sendo usados na prática clínica.

Uma prova de rastreio baseia-se no doseamento de nucleótidos purínicos e pirimidínicos. Um ratio purinas/pirimidinas reduzido pode ser sugestivo de défice de P5N. De salientar, contudo, que apenas a caracterização genética confirma o diagnóstico. Na ausência de tratamento específico, a actuação é sobreponível à das restantes anemias hemolíticas crónicas.

4. OUTRAS ENZIMOPATIAS RARAS

As restantes enzimopatias associadas à via glicolítica, raras, incluem-se no grupo das anemias hemolíticas congénitas não esferocíticas.

O esfregaço de sangue periférico é habitualmente incaracterístico. Estas enzimopatias eritrocitárias, sobretudo as mais raras, resultam em fenótipos muito diversos que se associam não apenas a anemia hemolítica, mas também a metemoglobinemia, policitemia e a alterações neurológicas e do neurodesenvolvimento.

Tal pode ser explicado pelo facto de estas enzimas glicolíticas terem várias funções não enzimáticas, como regulação da transcrição, estimulação da motilidade celular e controlo da apoptose. Outra explicação possível é o facto de os mesmos genes codificarem também isoenzimas com expressão e função noutros tecidos.

O Quadro 2 sintetiza as características clínicas mais típicas associadas a estas enzimopatias.

QUADRO 2 – Enzimopatias raras da via de Embden-Meyerhoff

Defeito enzimático

Prevalência

Hereditariedade

Anemia hemolítica

Outras manifestações

Hexocínase (HK)
(níveis enzimáticos falsamente normais na reticulocitose)

Rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico

Redução 2,3 DPG com fraca tolerância à anemia; Malformações congénitas e atraso psicomotor nalguns doentes, sem relação provada com o défice de HK

Glicose fosfato isomerase

O segundo defeito da via glicolítica mais comum

Autossómica recessiva

Sim

Leucopenia e trombocitopenia
Alterações neurológicas
Hemólise agravada no contexto de infecção, estresse oxidativo

Fosfofrutocinase (Doença de Tauri ou Glicogenose tipo VII

Rara

Autossómica recessiva

Variável

Miopatia agravada com o exercício
Hiperuricémia, artropatia
Heterogeneidade do quadro clínico (disfunção do SNC, cardiomiopatia)

Aldolase

Muito rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico

Miopatia
Rabdomiólise
Atraso psicomotor

Triosefosfato isomerase

Rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico, ocasionalmente esferoequinócitos

Doença grave com envolvimento frequente de outros órgãos e alterações neuromusculares, cardíacas e infecciosas frequentes

Fosfoglicerato cinase

Rara

Ligada ao X

Sim, habitualmente
Esfregaço incaracterístico

Atraso de desenvolvimento com disfunção neurológica e perturbações comportamento
Miopatia

Enolase

Muito rara

Autossómica dominante

Sim
Presença de esferócitos no esfregaço

Agravamento da anemia com estresse oxidativo

Desidrogenase láctica

Muito rara

Autossómica recessiva

Não

Miopatia

 Adaptado de Dario Tavazzi, et al, 2008

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ESFEROCITOSE HEREDITÁRIA

Definição e importância do problema

A esferocitose hereditária (EH) – segundo as primeiras descrições, anemia de Minkowski – Chauffard – a anemia hemolítica congénita mais frequente, é uma doença muito heterogénea (quer sob o ponto de vista genético, quer sob o ponto de vista de expressão clínica) dado que compreende diferentes tipos de alterações funcionais e estruturais da membrana do eritrócito; é uma membranopatia eritrocitária (ME).

Caracteriza-se pela existência de eritrócitos de forma esférica (microesferócitos), de fragilidade osmótica aumentada, com deformabilidade e elasticidade alteradas, o que confere maior probabilidade de sequestração no baço.

Aspectos epidemiológicos

Apesar de descrita na maioria dos grupos étnicos, é mais frequente no Norte da Europa, com uma incidência de 200-300/1.000.000 nascimentos. Está provavelmente subestimada por existirem casos mais ligeiros não diagnosticados. As formas clínicas de gravidade moderada são as mais frequentes. Existem essencialmente duas formas de transmissão genética na EH: autossómica dominante (AD – 75% dos casos) e autossómica recessiva (AR) ou por mutações de novo, nos restantes casos. A forma autossómica recessiva homozigótica é clinicamente mais grave do que a heterozigótica.

Etiopatogénese

A membrana eritrocitária (cuja estrutura é mais bem conhecida do que a função) é formada por 50% de proteínas, 40% de lípidos e 10% de hidratos de carbono. As metades hidrofóbicas das duas camadas de lípidos estão orientadas para o exterior e a sua região hidrofílica para o interior.

A estrutura lipídica da membrana é formada por fosfolípidos e colesterol, sendo composta por duas cadeias de ácidos gordos unidos ao glicerol. A própria estrutura da membrana é o elemento crítico que regula a troca bidireccional através da dupla camada lipídica e influi na organização estrutural e morfológica da membrana.

FIGURA 1 – Estrutura molecular da membrana dos eritrócitos focando aspectos fundamentais

Nos seres humanos, a membrana eritrocitária apresenta duas camadas: uma externa, dupla, lipídica (colesterol e fosfolípidos); e uma interna constituída por um citoesqueleto à base de espectrina citoplasmática (espectrina α e β). A camada interna é atravessada por proteínas que contactam as superfícies externa e interna da bicamada lipídica – banda 3 (canal de transporte ou permuta de aniões) e as glicoproteínas (glicoforina). Entre as de banda 3, a glicoforina e a espectrina existem outras proteínas designadas por 4.2, 4.1 e anquirina.

Toda esta estrutura condiciona a forma e flexibilidade dos eritrócitos. Dado que as duas camadas não contactam directamente entre si considera-se que serão os seus movimentos sincronizados que regulam a deformabilidade e elasticidade do eritrócito em circulação. (Figura 1 em que se pode observar a distribuição horizontal das proteínas de membrana, espectrina α e β, e sua interacção com as proteínas verticais (proteínas 3, 4.1 , 4.2 , anquirina e actina).

Na esferocitose hereditária as anomalias da membrana eritrocitária podem envolver os componentes lipídicos ou as proteínas (défices quantitativos ou qualitativos por ex. por mutações dos genes da anquirina, da α e β-espectrina, e da banda 3).

As anomalias estruturais alteram a flexibilidade dos eritrócitos tornando-os mais pequenos, esféricos e rígidos, com a usência da parte central menos pigmentada, em vez de bicôncavos e deformáveis, com menor capacidade de atravessar a microvasculatura. A nível do baço, o pH mais ácido e o baixo teor em oxigénio desencadeiam uma maior instabilidade e fragilidade da membrana do eritrócito causando a sua ruptura, destruição e remoção pelos macrófagos.

Os esferócitos afectados são muito permeáveis ao sódio (Na) e outros catiões. Daí uma hiperactividade da bomba Na-K para “lutar” contra a entrada acrescida de Na.

Acontece também que no baço o baixo teor de glicose necessária para o funcionamento da referida bomba contribui para a claudicação desta por défice de energia/ATP, o que também favorece a hemólise.

A gravidade clínica da EH, muito variável, é relativamente uniforme na mesma família. O défice grave de uma das proteínas de membrana ou o défice combinado de várias (ex. banda 3 e anquirina) condicionam uma anemia hemolítica mais grave que os défices parciais. A excepção é o défice parcial em espectrina que também se relaciona com um fenótipo clínico moderado a grave. Outros factores podem condicionar a clínica, como é o caso das mutações que afectam a função do transportador aniónico da banda 3 e que condicionam uma maior gravidade da hemólise.

Os genes que codificam as proteínas membranares do citoesqueleto eritrocitário são conhecidos (Quadro 1). A forma autossómica dominante (AD) da EH apresenta frequentemente mutações primárias nos genes da anquirina (ANK1), da banda 3 (SLC4A1), ou da β-espectrina (SPTB) associadas a défice proteico. A maioria das mutações genéticas proteicas conhecidas é específica de uma família ou está presente em algumas famílias e países diferentes. A identificação da mutação genética não influencia o seguimento clínico ou a terapêutica. Mutações de novo são maioritariamente encontradas na EH recessiva, associadas a mutações ANK1 e SPTB. As mutações do gene da anquirina (no cromossoma 8p) são transmitidas de forma dominante.

A diversidade de mutações possíveis traduz-se em variabilidade de manifestações clínicas embora se verifique heterogeneidade das mesmas entre indivíduos com idêntica mutação.

Manifestações clínicas

A EH apresenta grande variabilidade de expressão clínica, desde ausência de manifestações (portador assintomático) até hemólise grave. A tríade sintomática clássica consiste em anemia hemolítica, icterícia e esplenomegália.

A anemia tanto pode estar ausente, como ser ligeira, moderada ou grave, podendo classificar-se a EH da seguinte forma (Quadro 1):

  • EH ligeira (20-30% dos casos): muitas vezes não existe anemia, apenas reticulocitose ligeira e esplenomegália ou icterícia. A presença de microesferócitos e reticulocitose conduz ao diagnóstico, muitas vezes só realizado na adolescência ou em idade adulta.
  • EH moderada (60-75%): anemia moderada (níveis de hemoglobina -Hb: 8-12 g/dL), reticulocitose evidente e aumento das concentrações séricas de bilirrubina. Podem ser necessárias transfusões ocasionais. O diagnóstico é geralmente feito na infância ou em idade escolar.
  • EH grave (5%): hemólise marcada, anemia, hiperbilirrubinémia, esplenomegália e necessidade regular de transfusões eritrocitárias. O padrão de hereditariedade é quase sempre recessivo.

A esplenomegália, cujo grau é independente da gravidade da doença, é frequente na criança e no adulto (> 75% doentes), mas tem pouco significado clínico. As dimensões do baço per se, não são indicação para esplenectomia, não havendo um maior risco de ruptura esplénica na população com EH.

Os doentes com EH, tal como os portadores de outras anemias hemolíticas crónicas, apresentam frequentemente episódios de dor abdominal difusa, náuseas, vómitos que caracterizam as crises de hemólise (agravamento da anemia, icterícia, esplenomegália e reticulocitose).

No período neonatal, o diagnóstico pode ser difícil, pois a morfologia eritrocitária é muitas vezes atípica e a prova da fragilidade osmótica duvidosa. A concentração média de Hb (CHGM) > 35 g/dL é um indicador útil no diagnóstico. Neste período a hiperbilirrubinémia e anemia podem ser graves pela intensa hemólise, obrigando a medidas correctivas como fototerapia e exsanguinotransfusão (ver Parte XXXI). Contudo, esta forma de apresentação não se encontra directamente relacionada com a subsequente gravidade da doença. Alguns lactentes com EH podem tornar-se dependentes de transfusões por hipofunção medular com resposta eritropoiética inadequada no 1º ano de vida. A eritropoietina (EPO) pode ser benéfica na redução da necessidade de transfusões, sendo normalmente descontinuada a partir dos 9 meses.

Exames complementares

A EH é diagnosticada com base no hemograma, morfologia do sangue periférico (MSP) e contagem de reticulócitos. A MSP revela a existência, em número variável, de esferócitos. A sua morfologia depende, em parte, do defeito genético associado, existindo algumas variantes: esferócitos com entalhes ou pinçados (deficiência de banda 3), esferócitos acantócitos (deficiência de espectrina), disfunção densa e irregularidade da forma (deficiência combinada de espectrina/anquirina), e esferócitos eliptócitos (eliptocitose esferocítica).

De acordo com os exames laboratoriais, há a referir os seguintes achados: anemia normocítica ou microcítica – volume globular médio (VGM) normal/ligeiramente diminuído – com CHGM aumentada (> 35 g/dL). O estudo da MSP evidencia esferócitos, com menor diâmetro, parecendo ser hipercrómicos pelo valor da CHGM. O número de reticulócitos está sempre aumentado, mesmo fora dos períodos de crise hemolítica.

Os restantes parâmetros de hemólise que estão aumentados são a lactato desidrogenase (LDH), a bilirrubina indirecta e a haptoglobina. A prova de Coombs é importante para o diagnóstico diferencial com anemia hemolítica autoimune.

Doentes com história familiar de EH, manifestações clínicas e alterações laboratoriais típicas, não necessitam de avaliação complementar adicional. Se existirem dúvidas, devem ser realizados outros exames: prova de crio-hemólise e citometria de fluxo (EMA binding test) que permitem estudar as proteínas. Em casos atípicos, a análise por electroforese da membrana eritrocitária (SDS PAGE) pode ser utilizada.

A prova da fragilidade osmótica (FO), não estando recomendada por rotina, constitui uma prova diagnóstica importante por demonstrar o aumento da fragilidade osmótica na presença de soluções salinas hipotónicas. Em 10-20% dos doentes, contudo, a resistência globular é normal. Quando se incubam os eritrócitos a 37ºC, a sensibilidade da prova aumenta para cerca de 100%. Na presença de esferócitos no sangue periférico, a prova não permite o diagnóstico diferencial com outras situações que cursam com esferócitos no sangue periférico (certas anemias autoimunes, isoimunização AB0 no RN, anemia diseritropoiética congénita tipo II).

A prova da FO tem limitações quando realizada no período neonatal pelo facto de os eritrócitos do recém-nascido serem mais resistentes à citólise osmótica e terem um elevado teor em hemoglobina fetal (Hb F). Neste período etário prefere-se a citometria de fluxo. A prova da lise pelo glicerol é simples e permite confirmar o diagnóstico nas formas ligeiras ou nas heterozigotias, não sendo influenciada pela esplenectomia.

Quanto a exames radiológicos podem ser verificados sinais ósseos de hiperplasia eritropoiética (alargamento da medular dos ossos longos e adelgaçamento da cortical, crânio em “escova”, etc.), em relação com a gravidade do quadro hematológico.

Os exames complementares obtidos em conjunto permitem determinar a gravidade da EH (Quadro 2).

Complicações

Nas formas graves existe maior probabilidade de complicações:

  1. Crise hemolítica – relacionada com infecções sobretudo víricas; manifesta-se por agravamento da icterícia, reticulocitose e esplenomegália com hiperesplenismo;
  2. Crise aplástica – com consequente supressão medular transitória por infecção por parvovírus B19 ou a outros agentes;
  3. Crise de anemia megaloblástica – por défice de ácido fólico secundário à estimulação da hematopoiese, sobretudo em crianças desnutridas;
  4. Litíase biliar (rara com < 10 anos de idade, atinge 50% dos doentes adultos, sobretudo se EH grave): o risco é superior quando se associa à síndroma de Gilbert – por co-herança do defeito genético associado à menor actividade da conjugação da bilirrubina pela enzima uridina difosfato;
  5. Atraso do desenvolvimento sexual e do crescimento e alterações esqueléticas em relação com o elevado grau de hematopoiese;
  6. Úlceras de perna e hematopoiese extramedular (na adolescência e idade adulta).

Diagnóstico diferencial

O Quadro 3 resume as situações em que se estabelece o diagnóstico diferencial com a EH. A co-hereditariedade de outras anemias hemolíticas como a β-talassémia e a hemoglobinopatia SC, dificultam o diagnóstico pelas alterações clínicas. A carência em ferro, vitamina B12 e ácido fólico podem modificar também os resultados dos achados laboratoriais. A hiperbilirrubinémia conjugada, por alterar a composição dos lípidos da membrana, contribui também para alterar a morfologia dos eritrócitos.

 Tratamento

Na EH moderada a grave está indicada suplementação com ácido fólico. A esplenectomia só está indicada em casos graves ou na presença de complicações. A esplenectomia, embora melhore a anemia e a hemólise, não resolve o defeito intrínseco dos eritrócitos. Sempre que possível, não deverá ser realizada antes dos 6 anos, de forma a diminuir o risco de infecção, sobretudo por bactérias capsuladas como S. pneumoniae e H. influenzae. Todas as crianças deverão ser imunizadas pré-esplenectomia segundo as recomendações e receber antibioticoterapia profiláctica após esplenectomia.

A esplenectomia parcial está, teoricamente, associada à diminuição do risco de sépsis pós-intervencão; no entanto não é habitual ser realizada pela probabilidade de recorrência de manifestações graves da EH e/ou de colelitíase com necessidade de reintervenção. Apesar do aparente maior risco trombótico associado à esplenectomia na EH, a profilaxia antitrombótica por rotina não está indicada.

Nas formas graves de doença, sobretudo nos primeiros 9 meses de vida, cerca de 70-80% dos lactentes mantém-se dependente de transfusões pela incapacidade medular de aumentar a produção de eritrócitos. Após esse período apenas 30% irá necessitar de suporte transfusional.

De acordo com um estudo demonstrou-se que a utilização de eritropoietina humana recombinante (EPOr) e suplemento de ferro diminuem a necessidade transfusional, nesta faixa etária, com sucesso.

QUADRO 1 – Tipos de mutações génicas, cromossomas e defeitos das proteínas de membrana associados à esferocitose hereditária

ProteínaGeneMutações detectadas
(número e identificação)
Exemplos seleccionados de défices proteicos parciais
(SDS PAGE)
Cromossoma
α-espectrinaSPTA1Splicing/skipping (1) –
SpaLEPRAallele
(i) Défice de α-espectrina
(ii) Défice marcado de espectrina (α e β) com pais sem doença
1q22-q23
β-espectrinaSPTBNull mutations (10)
Nonsense ou non-coding sequence (10) Missense (5)
Polimorfismo (1)
Défice de β espectrina14q23-q24.1
AnquirinaANK1Frameshift (17)
Nonsense (8)
Anormal splicing (4)
Missense (4)
Região promotora (2)
(i) Défice combinado de espectrina e proteína 4Æ2
(ii) Défice de Anquirina e espectrina
(iii) Défice de Anquirina
(recessive HS)
8p11.2
Banda 3SLC4A1Missense(23)
Nonsense/frameshift(18)
Larger mutant protein (3)
Polimorfismo (5)
Défice de Banda 3 (redução parcial de banda 6 também nalguns casos de EH)17q21-q22
Proteína 4.2EPB42Missense (4)
Nonsense ou deleção (3)
Splicing (2)
(i) Défice total proteína 4.2 (fenótipo nulo)
(ii) Défice parcial de proteína 4.2
15q15-q21
Adaptado de Bolton-Maggs PH, et al (2011)

QUADRO 2 – Classificação da esferocitose e indicação para esplenectomia

Adaptado de Bolton-Maggs PH, et al (2011)
Classificação Traço Ligeira Moderada Grave
Hemoglobina (g/dL) Normal 11-15 8-12 6-8
Reticulócitos (%) Normal (< 3%) 3-6 > 6 > 10
Bilirrubina (mg/dL) 0-1 1-2 ≥ 2 ≥ 3
Moléculas de Espectrina /eritrócito (% do normal) 100 80-100 50-80 40-60
Morfologia sangue periférico Normal Esferocitose moderada Esferocitose Esferocitose e Poiquilocitose
Fragilidade osmótica    
· Sangue fresco Normal ou ligeiramente↑ Normal ou ligeiramente↑ Muito aumentada Muito aumentada
· Sangue incubado Aumentada Muito aumentada Muito aumentada Muito aumentada
Esplenectomia Não requer Maioria sem necessidade Necessária em idade escolar Necessário Atrasar até aos 6 anos

QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial com esferocitose hereditária

Isoimunização ABO em recém-nascidos Picnocitose infantil
Anemia hemolítica autoimune Ovalocitose
Anemia diseritropoiética tipo II Estomatocitose hereditária

BIBLIOGRAFIA

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Anemias Hemolíticas – Generalidades

Definições e etiopatogénese

Anemia hemolítica é definida como a anemia resultante de destruição excessiva de eritrócitos. Este grupo de doenças hematológicas partilha uma característica comum: o encurtamento da vida média do eritrócito a qual, em condições de normalidade, é cerca de 120 dias. Quando se verifica diminuição do tempo de vida média, o sistema hematopoiético incrementa a actividade, não surgindo anemia até que tal capacidade compensadora seja ultrapassada. Quando, em circunstâncias de hemólise, os valores de hemoglobina (Hb) e de eritrócitos (E) se mantêm dentro dos limites da normalidade, utiliza-se o termo de hemólise compensada; por outro lado, quando tais valores diminuem, utiliza-se o termo de anemia hemolítica.

Existem dois tipos de hemólise: extravascular e intravascular; o primeiro consiste num aumento (patológico) do processo natural ou fisiológico e crónico de destruição eritrocitária nos macrófagos do fígado e baço (SRE) e acompanha-se de esplenomegália; o segundo corresponde a um fenómeno patológico, em geral agudo, cursando com hemoglobinúria.

Recordam-se os principais mecanismos responsáveis pela hemólise: causa intrínseca ou anomalia intraglobular (alterações da membrana eritrocitária, da hemoglobina, das enzimas eritrocitárias), e causa extrínseca ou por mecanismo extraglobular.

Destes mecanismos decorre a classificação, abordada na alínea seguinte.

Classificação

O Quadro 1 discrimina as principais entidades clínicas que fazem parte do grupo “causa intrínseca” realçando-se que, na sua grande maioria, se

trata de situações hereditárias. As anemias hemolíticas de causa extrínseca (acção de agentes externos actuando sobre eritrócitos estruturalmente normais) são doenças adquiridas, independentemente de se manifestarem no recém-nascido (congénitas, embora adquiridas in utero). É difícil elaborar uma classificação totalmente satisfatória dos pontos de vista etiopatogénico e semiológico, porquanto, na génese dos processos mórbidos em geral e dos processos anémicos em especial, só raramente intervém um mecanismo isolado; por outro lado a expressão sintomática dos vários quadros intrinca-se e, com frequência, é próxima da de processos de génese totalmente distinta.

Com esta ressalva, apresenta-se o Quadro 2 que discrimina as principais entidades clínicas que fazem parte deste grupo. A CID e SHU são abordadas noutros capítulos. Nos capítulos seguintes são abordadas de modo sequencial, com base nos Quadros 1 e 2, as patologias com as quais o clínico mais frequentemente se defronta

QUADRO 1 – Anemias hemolíticas de causa intrínseca (intraglobular)

Hereditárias
– Defeitos da membrana
Anomalias morfológicas específicas da membrana
• Esferocitose hereditária
• Eliptocitose hereditária
• Estomatocitose hereditária
• Anemia hemolítica congénita com eritrócitos desidratadosAlteração da composição dos fosfolípidos (aumento da lecitina)

Defeitos secundários da membrana
• Abetalipoproteinémia

– Defeitos enzimáticos
Défice da desidrogenase da glucose-6-fosfato
Défice de piruvatoquinase
Défice de hexoquinase
Défice de fosfofrutoquinase
Défice de triosefosfatoisomerase
Défice de fosfogliceratoquinase
– Defeitos da hemoglobina

Heme
• Porfíria congénita eritropoiética

Globina
• Qualitativos: hemoglobinopatias de estrutura/

Síndromas falciformes
• Quantitativos: hemoglobinopatias de síntese/

Síndromas talassémicas

Não hereditárias
– Hemoglobinúria paroxística nocturna

QUADRO 2 – Anemias hemolíticas de causa extrínseca (extraglobular)

Anemia hemolítica isoimune
Anemia hemolítica autoimune
Anemia hemolítica adquirida não autoimune
· Microangiopatia trombótica (CID, PTT, SHU, etc.)
· Prótese valvular em cirurgia cardíaca
· Síndroma de Kasabach-Merritt
· Dislipoproteinémias
· Carência em vitamina E
· Toxinas
· Infecções e parasitoses
Abreviaturas: CID = coagulação intravascular disseminada; SHU = síndroma hemolítica urémica; PTT = púrpura trombocitopénica trombótica.

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ANEMIA MEGALOBLÁSTICA​

Definição e importância do problema

A anemia megaloblástica engloba um conjunto de situações em que existe uma alteração na síntese de ácido desoxirribonucleico (ADN). De tal anomalia resultam alterações nos precursores das três séries hematopoiéticas (eritróides, granulocíticos e megacariocíticos), com a seguinte tradução no esfregaço do sangue periférico: anemia macrocítica, macro-ovalócitos, anisocitose, poiquilocitose, anéis de Cabot, corpos de Howell-Joly, ponteado basófilo nos eritrócitos, atraso na maturação do núcleo em relação ao citoplasma nos eritroblastos da medula óssea (dissociação nucleocitoplásmica), leucopénia, polissegmentação dos neutrófilos e trombocitopénia.

A dissociação nucleocitoplásmica origina apoptose celular intramedular por eritropoiese ineficaz, hiperplasia eritróide, aumento da bilirrubina indirecta, da desidrogenase láctica, do ferro e das transaminases séricas.

Os referidos precursores eritróides evidenciam dimensões aumentadas (megaloblastose) com núcleo grande e imaturo. A megaloblastose é explicável por três grupos de factores: falência medular, diminuição da produção de eritropoietina e anomalia do processo de maturação medular.

 A polissegmentação dos neutrófilos é definida como a verificação de um ou mais neutrófilos com cinco lóbulos bem definidos por cada 100 neutrófilos segmentados.

Os défices de vitamina B12 (ou cobalamina) e/ou de ácido fólico, dois nutrientes interagindo e com vias metabólicas comuns e essenciais para a síntese de ADN, são os factores etiológicos mais frequentes (~95%) de anemia megaloblástica.

A prevalência de tais situações carenciais tem diminuído ao longo do tempo devido à suplementação dos alimentos quase universal; contudo, ainda ocorre nas populações mais pobres, mais idosas e com excessivo consumo de álcool.

Outros factores podem estar envolvidos: micronutrientes além dos já citados, síndromas mielodisplásicas e defeitos adquiridos da síntese de ADN como, por exemplo, os induzidos pela quimioterapia.

Salienta-se a importância do diagnóstico e tratamento precoces, designadamente das formas mais frequentes) tendo em consideração a possibilidade de lesões neurológicas irreversíveis caso tal não se verifique.

Neste capítulo são consideradas como sinónimas as designações de cobalamina e de vitamina B12.

Etiopatogénese

 Metabolismo da vitamina B12 (cobalamina)

As necessidades diárias recomendadas de cobalamina segundo a OMS são 1 mcg para adultos saudáveis, 1,3-1,4 mcg para grávidas ou lactantes, e 0,1 mcg para lactentes.

A vitamina B12 actua como cofactor de duas enzimas (metionina sintetase e l-metil-malonil-coenzima A mutase), interferindo em duas vias metabólicas:

  1. Transferência de um grupo metil do metil-tetra-hidrofolato (MTHF) para a homocisteína, formando metionina e reduzindo os níveis de homocisteína, tóxica para as células; e a desmetilação do tetra-hidrofolato (THF);
  2. A conversão de propionil-coenzima A em metilmalonil-coenzima A e, finalmente, em succinil-coenzima A, cujo significado biológico não se encontra ainda estabelecido. O THF, por sua vez, é fundamental para a formação de diversos cofactores que intervêm na síntese da timidina-trifosfato, essencial para síntese de ADN.

A absorção da vitamina B12 ao nível do íleo terminal (implicando a sua ligação prévia ao factor intrínseco – FI segregado pelas células parietais do estômago, do que resulta a formação de um complexo FI-vitamina B12), pressupõe à partida cinco requisitos fundamentais:

  1. Suprimento adequado (a vitamina B12 encontra-se presente exclusivamente em produtos de origem animal, como carne ou leite);
  2. Mucosa gástrica com adequada acidez e presença de pepsinas (que libertam a cobalamina das proteínas de transporte e permitem a sua ligação à haptocorrina- produzida na saliva e glândulas esofágicas);
  3. Presença de proteases pancreáticas (responsáveis pela quebra da ligação da cobalamina à haptocorrina, permitindo a ligação da cobalamina ao factor intrínseco – FI);
  4. Adequada secreção gástrica de FI funcionante;
  5. Presença de receptores do complexo cobalamina – FI (cubulina) funcionantes no íleo.

O complexo cobalamina-FI ligando-se aos receptores específicos no bordo apical dos enterócitos no íleo distal, entra a seguir nas células por endocitose. Dentro do enterócito, depois da libertação do FI, a cobalamina une-se à transcobalamina, passando a circular no sangue sob esta forma (cobalamina-transcobalamina). Somente a cobalamina-transcobalamina está disponível para ser incorporada nas células, excepto nos hepatócitos.

A cobalamina excreta-se na bílis, une-se ao FI no intestino delgado, e reabsorve-se (circulação entero-hepática).

Carência de vitamina B12

A carência de vitamina B12 pode explicar-se por diversos factores.

Anomalias da absorção

As anomalias da absorção, congénitas ou adquiridas, são os factores etiológicos mais frequentes. Como exemplos citam-se:

  • Ausência ou défice de FI (respectivamente anemia perniciosa congénita e anemia perniciosa juvenil de causa autoimune, raras em idade pediátrica), a principal causa de carência de vitamina B12 em adultos; verifica-se destruição autoimune, mediada por linfócitos, das células parietais do estômago, produtoras de FI. Os doentes apresentam autoanticorpos dirigidos contra células parietais do estômago e contra o FI e, por vezes, contra a gastrina e pepsinogénio. Pode haver associação a outras doenças autoimunes.
  • Síndroma de Imerslund-Gräsbeck, entidade clínica de hereditariedade AR em que, por mutação do gene AMN ou CUBN do receptor ileal de cobalamina-FI existe um defeito congénito selectivo de absorção da cobalamina ao nível do íleo terminal;
  • defeito de entrada de vitamina B12 nas células (endocitose), congénito (autossómico recessivo), explicável pela deficiência do principal transportador fisiológico da vitamina B12, a transcobalamina II (TC-II) – raro;
  • Infecção por Helicobacter pylori, Giardia lamblia, Dyphyllobotrium latum, status pós-ressecção do íleo terminal, disfunção ileal (síndroma de ansa cega, intestino curto, doença de Crohn, pancreatite, doença de Whipple, etc.) – também situações raras.
Ingestão insuficiente ou inadequada

A ingestão insuficiente, designadamente em dietas vegetarianas estritas e em crianças amamentadas por mães com défice vitamínico, também contribui para a carência. As carências nutricionais de vit. B12 são mais raras que as de ácido fólico, pois aquela é a única vitamina hidrossolúvel armazenada no corpo humano. Assim, são necessários entre 3 e 5 anos para que se desenvolva a respectiva carência após suspensão do suprimento.

Anomalias metabólicas

Existem ainda doenças hereditárias do metabolismo da cobalamina que podem ser a causa do seu défice, tais como a acidúria metilmalónica – doença autossómica recessiva causada por um défice completo ou parcial da enzima metilmalonil-coenzima A mutase e a homocistinúria, em que existe um defeito na enzima N5-metiltetra-hidrofolato-homocisteína metiltransferase (MTR, metionina sintetase) que se traduz numa diminuição da produção de metilcobalamina. Citam-se ainda a carência em transcobalamina comprometendo o transporte da cobalamina, e factor adquirido, relacionado com intoxicação por óxido nitroso.

Metabolismo do ácido fólico

Os folatos encontram-se na natureza na forma de poliglutamatos. Absorvendo-se na primeira porção do duodeno, são transportados ao fígado, onde se convertem em 5-metiltetra-hidrofolato, a forma principal do folato circulante. A conversão de ácido fólico em di-hidrofolato e de di-hidrofolato em tetra-hidrofolato é catalisada pela enzima tetra-hidrofolato-redutase.

O tetra-hidrofolato é uma forma reduzida do ácido fólico, que intervém como coenzima em diferentes reacções do metabolismo dos aminoácidos e ácidos nucleicos.

O folato abunda em vegetais, frutas e carne (fígado e rim). Os folatos reduzidos da dieta são lábeis à luz e à oxidação, sendo que o calor na preparação de cozinhados origina a sua destruição nos alimentos.

As necessidades diárias recomendadas pela OMS são 3,6 mcg/kg/dia (< 1 ano); 3,3 mcg/kg/dia (1-6 anos); e 3,1 mcg/kg/dia (> 6 anos). As doses indicadas para grávidas ou lactantes são 300-1.000 mcg/dia.

Carência de ácido fólico

Salientando-se que, ao contrário do que acontece com a cobalamina, não existem no organismo reservas significativas de ácido fólico, a carência deste micronutriente pode explicar-se por diversos factores.

Ingestão insuficiente

Trata-se do factor mais frequentemente associado a carência de ácido fólico, a qual é geralmente acompanhada de quadro clínico de má-nutrição energético-proteica e de outros micronutrientes. Pode associar-se igualmente a carência materna em folatos, alimentação exclusiva com leite de cabra, amamentação por mães com estados carenciais, repercutindo-se especialmente no RN pré-termo.

Anomalias da absorção

Citam-se como exemplos – anomalia ao nível do terço superior do intestino delgado, doença celíaca, doença de Crohn, anomalias infiltrativas do intestino delgado (doença de Whipple ou linfoma), antibioticoterapia de largo espectro, etc..

Aumento das necessidades

Por exemplo, gravidez, lactação, anemia hemolítica, síndroma de Lesch-Nyhan, prematuridade, tratamento anticonvulsante, designadamente com fenobarbital, excreção aumentada (carência de vit. B12, diálise crónica), destruição aumentada (excesso de suplementos oxidantes), etc..

Inibidores do folato

Antifólicos (metotrexato, pirimetamina, trimetoprim), sulfonas.

Outras causas incluindo doenças hereditárias do metabolismo

Défice de di-hidrofolato redutase, défice de metionina sintetase (MTR) e défice de metileno-tetra-hidrofolato redutase, anomalia da síntese de purinas e pirimidinas (acidúria orótica), défice de 3-fosfoglicerato-desidrogenase, anemia que responde a tiamina ou anemia que responde a piridoxina, infecções de repetição, hepatopatias crónicas, dermatoses exfoliativas, tumores malignos, etc..

Miscelânea

Esta alínea pode ser tipificada pela anemia megaloblástica induzida por fármacos actuando por diversos mecanismos, alguns dos quais já citados.

  • Interferência na absorção intestinal de cobalamina (antiácidos, inibidores da bomba de protões) ou de ácido fólico (cloranfenicol, ácido aminossalicílico);
  • Alteração no metabolismo dos folatos (metformina, fenitoína);
  • Efeito directo a nível medular (hidroxicarbamida, azatioprina);
  • Síntese de ADN reduzida pelo bloqueio da conversão de di-hidrofolato em tetra-hidrofolato (aminopterina ou metotrexato /MTX);
  • Inibição da conversão dos ribonucleótidos em desoxirribonucleótidos (hidroxicarbamida, utilizada em determinadas síndromas mieloproliferativas e na anemia de células falciformes.

Manifestações clínicas

A anemia megaloblástica, rara em idade pediátrica, tem manifestações multissistémicas; com efeito, células não hematopoiéticas como as da mucosa gastrintestinal e uterina também podem evidenciar também características megaloblásticas.

As manifestações clínicas associadas a anemia megaloblástica por carência de cobalamina e/ou ácido fólico progridem insidiosamente dependendo a sua exuberância da duração da carência. Os sintomas podem ter início nos primeiros meses de vida dependendo das reservas maternas durante a gestação, período de lactação e tipo de alimentação do lactente.

A sintomatologia, manifestando-se habitualmente quando a anemia se torna grave, inclui astenia, palpitações, fadiga, cefaleias, dispneia de esforço. Pode ocorrer icterícia por hemólise intramedular e extravascular; a leucopenia e a trombocitopenia estão geralmente presentes, embora sem expressão clínica relevante.

Na carência de cobalamina (vitamina B12), além dos sinais e sintomas já descritos, surgem manifestações neurológicas: irritabilidade, perda de sensibilidade proprioceptiva, ataxia espástica, parestesias simétricas, diminuição da força muscular e hipo ou híper-reflexia. A designação de degenerescência combinada subaguda medular traduz a desmielinização e degenerescência dos cordões laterais e posterior da medula espinhal conjuntamente com neuropatia periférica; esta última é mais grave nos membros inferiores do que nos superiores.

Estão descritas igualmente alterações neuropsiquiátricas (demência, amnésia, depressão, etc.), bem como casos mais raros de depressão, atrofia óptica, anosmia, disgeusia, por vezes não acompanhadas de alterações hematológicas. A disfunção autonómica pode estar presente (hipotensão postural, incontinência e impotência). Em crianças mais pequenas as manifestações neurológicas podem ser mais subtis: atraso do neurodesenvolvimento, ou regressão do mesmo, dificuldades alimentares, hipotonia, letargia, irritabilidade, convulsões, tremores, mioclonias ou movimentos coreoatetósicos.

Salienta-se que em situações de carência de cobalamina a administração de ácido fólico pode mascarar as manifestações hematológicas ao mesmo tempo que ocorre progressão das manifestações neurológicas.

Na alínea sobre Etiopatogénese foi feita referência a duas entidades clínicas clássicas associadas a carência de cobalamina: síndroma de Imerslund-Grasbeck e anemia perniciosa.

Na carência de ácido fólico verifica-se a presença de sinais e sintomas semelhantes aos da anemia megaloblástica por carência de cobalamina; contudo ao contrário do que acontece na carência de cobalamina: – não se verifica quadro neurológico; e, – pela não existência de reservas significativas de ácido fólico no organismo, as manifestações poderão surgir mais precocemente, logo após um mês de interrupção do suprimento de referido micronutriente.

O quadro clínico integra tipicamente anemia, desnutrição, glossite, úlceras e atrofia das mucosas com repercussão no tubo digestivo (má-absorção, anorexia, vómitos, diarreia); a icterícia sugere hemólise por eritropoiese ineficaz.

A carência materna de ácido fólico no período periconcepcional explica mais de 50% dos casos de defeitos do tubo neural, incluindo spina bifida, mielomenigocele e anencefalia.

Exames complementares

A suspeita de anemia megaloblástica, perante a verificação de alguns dos sintomas e sinais descritos, poderá fundar-se no seguinte quadro hematológico: anemia macrocítica (VGM/volume globular médio > 100 fL e CHGM normal), reticulocitopénia, trombocitopénia, neutropénia, anisocitose e poiquilocitose, hipersegmentação do núcleo dos neutrófilos e mielograma evidenciando processo de maturação megaloblástica.

Para o diagnóstico definitivo de anemia megaloblástica por carência de cobalamina e/ou ácido fólico torna-se fundamental proceder a determinadas provas diagnósticas.

Provas diagnósticas de carência de cobalamina

Relativamente aos valores de normalidade, importa considerar os seguintes parâmetros: cobalamina sérica (valor normal: 140-800 uug ou pg/mL), excreção urinária de ácido metilmalónico (valor normal: 0-3,5 mg/24 horas).

O diagnóstico definitivo de carência de cobalamina baseia-se nos seguintes critérios laboratoriais: anemia megaloblástica, cobalamina sérica diminuída < 100 uug ou pg/mL {considerando-se valores-limite entre 200 e 400 uug ou ng/mL}, homocisteína plasmática total elevada, ácido metilmalónico plasmático e urinário elevados, holotranscobalamina II diminuída e resposta ao tratamento com cobalamina (observando-se desaparecimento das manifestações hematológicas, bioquímicas e neurológicas após injecção de 10 mcg de cianocobalamina).

A homocisteína plasmática total elevada (tal como na carência em ácido fólico) pode também verificar-se na homocistinúria clássica, no hipotiroidismo e na insuficiência renal.

O diagnóstico de má-absorção de cobalamina estabelece-se com a prova de Schilling (administração de cobalamina oral, radioactiva; previamente injecta-se 1 mg de cobalamina por via IM para saturar a transcobalamina, valorizando-se a absorção pela determinação da percentagem de cobalamina radioactiva e previamente ingerida, na urina; considera-se absorção normal o valor de 5-35% em 24 horas.

Para o diagnóstico etiológico da má-absorção importa realizar os seguintes exames:

  • Pesquisa de anticorpos anti-FI;
  • Determinação dos níveis de gastrina ou pentagastrina I;
  • Determinação dos níveis de transcobalamina I por imunoanálise.

Provas diagnósticas de carência de ácido fólico

Relativamente aos valores de normalidade do ácido fólico, importa considerar: folato sérico (valor normal: 5-20 ng/mL), e folato eritrocitário (valor normal: 150-600 ng/mL).

O diagnóstico definitivo de carência de ácido fólico baseia-se nos seguintes critérios laboratoriais: anemia megaloblástica, níveis de folato sérico < 3 ng/mL, folato eritrocitário < 150 ng/mL {considerando-se valores-limite do folato sérico entre 4 e 8 ng/mL}, ácido forimiminoglutâmico (FIGLU) na urina aumentado, homocisteína total plasmática aumentada e ácido metilmalónico normal.

A homocisteína plasmática total elevada (tal como na carência em cobalamina) pode também verificar-se na homocistinúria clássica, no hipotiroidismo e na insuficiência renal.

Os achados explicáveis pela eritropoiese ineficaz são: elevação da bilirrubinémia não conjugada, desidrogenase láctica (LDH), ferritina e saturação da transferrina.

Formas clínicas raras

Reportando-nos à alínea sobre Etiopatogénese, em que foi referido que cerca de 95% das situações caracterizadas por anemia megaloblástica se relacionam com carência de cobalamina e ou ácido fólico, citam-se a seguir de modo sucinto outras formas raras, explicando cerca de 5% dos casos de anemia megaloblástica.

Estas formas raras de anemia megaloblástica devem ser consideradas no diagnóstico diferencial de anemia megaloblástica refractária ao tratamento com ácido fólico e cobalamina (ver adiante), uma vez excluídas todas as outras causas.

Acidúria orótica

Esta entidade clínica foi abordada na Parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo, enquadrada nas doenças do metabolismo das pirimidinas. Trata-se duma doença autossómica recessiva afectando a síntese do ácido nucleico e surgindo geralmente no primeiro ano de vida e manifestada com hipocrescimento, atraso do neurodesenvolvimento, anemia megaloblástica e excreção urinária aumentada de ácido orótico. Na sua forma usual verifica-se deficiência em todos os tecidos do corpo da fosfororribosil transferase e da orotidina-5-fosfato descarboxilase.

O diagnóstico é sugerido pela verificação de anemia megaloblástica associada a níveis séricos normais de cobalamina, folato, excreção urinária aumentada de ácido orótico, sem evidência de défice de transcobalamina e associada. Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental contudo, demonstrar os défices enzimáticos a que nos referimos.

A anemia é refractária ao tratamento com cobalamina e ácido fólico, mas responde prontamente à administração de uridina.

Anemia megaloblástica respondente à tiamina (síndroma de Rogers)

A anemia megaloblástica com resposta à tiamina é uma doença autossómica recessiva rara tipicamente associada principalmente a diabetes, surdez neurossensorial, hipocrescimento, alterações visuais, arritmia e defeitos cardíacos.

A medula óssea, para além das alterações megaloblásticas, evidencia sideroblastos em forma de anel. Admite-se que esta entidade, relacionada com mutação no gene SCL9A2 no cromossoma 1, codificando a proteína de transporte da tiamina, se traduza num defeito no mecanismo de transporte transmembrana da mesma, o que determina uma diminuição da síntese de ácidos nucleicos, com consequente bloqueio celular e apoptose medular.

As alterações respondem à terapêutica com tiamina com melhoria da diabetes e da anemia sendo, no entanto, a surdez neurossensorial avançada, irreversível.

Diagnóstico diferencial

Importa uma referência breve a três situações clínicas que, por certas particularidades do quadro clínico-laboratorial, poderão dificultar o diagnóstico de alteração megaloblástica.

Anemia megaloblástica e anemia microcítica coexistente

Na presença de anemia microcítica por ferropénia, traço talassémico ou doença crónica, as características de megaloblastose na medula óssea e no sangue periférico poderão tornar-se menos evidentes. No sangue periférico poderá verificar-se anisocitose marcada, VGM normal, com RDW muito aumentado.

Ao nível da medula óssea, observam-se megaloblastos intermédios na medula, de menores dimensões do que as células megaloblásticas habituais, a par de metamielócitos gigantes. E, através do exame do esfregaço do sangue periférico, são notórios os neutrófilos hipersegmentados característicos no ESP e os na medula.

Anemia megaloblástica grave versus leucemia aguda e mielodisplasia

Em determinadas circunstâncias associadas a anemia megaloblástica grave, a verificação de medula hipercelular, com sinais de displasia e morfologia “bizarra”, poderá levar a diagnóstico erróneo, confundindo-se eventualmente o quadro morfológico descrito com o de leucemia aguda ou mielodisplasia. Como se pode concluir, são fundamentais a realização de história clínica rigorosa, um elevado nível de suspeita de carência de micronutrientes vitamínicos.

Anemia megaloblástica atenuada

No contexto de quadro clínico de anemia de etiologia a esclarecer, e mais uma vez relevando o valor da história elaborada com rigor, o clínico deverá estar alertado para a hipótese de ser realizado mielograma após início de suplementação com cobalamina ou ácido fólico, o que contribuirá para alterações megaloblásticas atenuadas.

Ou seja, dado que as alterações megaloblásticas podem melhorar cerca de 36-48 horas após o início do tratamento, a anemia manter-se-á até que haja uma adequada resposta medular, o que pode dificultar o diagnóstico.

Tratamento

Carência de cobalamina

Uma vez que na maioria dos casos há diminuição da absorção, é frequentemente necessária administração substitutiva de vitamina B12 por via parentérica, ou oral em doses elevadas.

As formulações parentéricas (cianocobalamina ou hidroxicobalamina) são recomendadas em diferentes esquemas terapêuticos.

Nas formas acompanhadas de anemia grave, a fim de evitar complicações metabólicas como hipopotassémia, são administradas doses baixas (0,2 mcg/kg/dia) da formulação parentérica de vitamina B12 (por ex. cianocobalamina) por via subcutânea durante dois dias, juntamente com suplementos de potássio, oxigénio, diuréticos e transfusão lenta de concentrado eritrocitário.

O tratamento convencional consiste na administração de 1.000 mcg/dia de cianocobalamina ou hidroxicobalamina durante 1 semana, seguindo-se 100 mcg semanais e, posteriormente, mensais. (1 mg <> 1.000 mcg ou µg).

Nos casos de má-absorção de vitamina B12 (anomalias do FI ou da incorporação ileal) o esquema consiste em administrar 100 mcg de vitamina B12 por via subcutânea mensal.

Perante quadro comprovado de défice de transcobalamina, torna-se necessário proceder à administração de doses mais elevadas de vitamina B12: 1.100 mcg – 2 a 3 vezes por semana por via intramuscular.

A anemia perniciosa e as situações decorrentes de má-absorção obrigam a tratamento durante toda a vida.

Carência de ácido fólico

A anemia responde a pequenas doses de ácido fólico (200-500 mcg/dia). Antes de administrar ácido fólico deve excluir-se carência em vitamina B12.

Nos casos de carência de ácido fólico, a suplementação com 1-5 mg/dia (ou 1.000-5.000 µg/dia) por via oral, geralmente é adequada para corrigir a anemia. A formulação parentérica (5 mg ou 5.000 µg/mL) deve ser utilizada apenas em doentes com défice de absorção.

Durante a gravidez, a dose necessária de folato é cerca de 400 µg/dia. Mães com carência nutricional grave ou má-absorção podem ser medicadas com 1.000 mcg de vit. B12 (via parentérica) de 3-3 meses para evitar a carência em vitamina B12 neste período.

Salienta-se que o doseamento sérico de ácido fólico sérico e de cobalamina é obrigatório no tratamento da anemia megaloblástica, pois a monoterapia com folato podendo corrigir parcialmente as alterações hematológicas associadas à carência de cobalamina, não corrige, no entanto, as alterações neurológicas.

Nos doentes sob quimioterapia e com doses elevadas de metotrexato (MTX), tendo em conta o mecanismo de acção deste fármaco (ver atrás – Etiopatogénese-Miscelânea) – deve ser administrado ácido folínico, 3-6 mg/dia. É uma opção frequente em doentes sob quimioterapia com doses elevadas de MTX.

Seguimento

Nos casos de carência de vitamina B12 após suplementação adequada verifica-se uma melhoria da anemia e dos sintomas neurológicos.

Com efeito, a resposta hematológica é rápida, com um aumento do valor dos reticulócitos numa semana, e uma melhoria rápida da megaloblastose medular com normalização em 36-48 horas após o início do tratamento.

As formas granulocíticas “gigantes” persistem durante 1-2 semanas e a neutropenia e trombocitopenia (quando presentes) melhoram em regra em 1 semana. A anemia regride por completo em 6-8 semanas.

O efeito do tratamento nas manifestações neurológicas depende da gravidade e do tempo de evolução.

Nos casos em que se verifique suspensão inadvertida do tratamento, o quadro neurológico recidiva geralmente ao cabo de 6 meses, e a anemia megaloblástica após cerca de 1 ano.

A suplementação com vitamina B12 é sempre recomendada após gastrectomia total, mas não após gastrectomia parcial. Contudo, reitera-se a noção de que as alterações megaloblásticas poderão não ser detectadas no contexto de ferropénia concomitante.

Prevenção

Como medidas gerais apontam-se, essencialmente:

  • Detecção dos grupos de risco (indivíduos em que são identificados factores etiopatogénicos atrás discriminados);
  • Regime alimentar, incluindo designadamente frutas e vegetais crus;
  • Determinação dos níveis séricos de vitamina B12 e ácido fólico em vegetarianos estritos;
  • Evitamento do leite de cabra (não habitual no nosso país, mas mencionado apenas por razões didácticas e históricas).

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ANEMIA FERROPÉNICA

Definições e aspectos epidemiológicos

O ferro (Fe) é um importante constituinte do organismo humano, essencial quanto a funções e desenvolvimento. O défice ou carência de Fe, representa a carência nutricional mais frequente no mundo e a principal causa de anemia.

As crianças pequenas e os jovens constituem o principal grupo de risco, o que é explicável pelo rápido crescimento e consequente consumo do referido micronutriente em tal contexto.

Na actualidade consideram-se as seguintes definições:

Anemia: concentração de hemoglobina ([Hb]) dois desvios-padrão (2DP) abaixo do valor de referência para a idade e género;

Défice (ou carência) de ferro, sideropenia ou ferropenia (Fp): teor de Fe corporal insuficiente para manter as funções fisiológicas; tal pode resultar, quer do insuficiente suprimento e/ou absorção de Fe, quer do excessivo consumo metabólico;

Anemia ferropénica (AF): anemia secundária ao défice mantido de Fe.

Em 2010 a prevalência mundial estimada de anemia era de 32,9% (mais de 2,2 mil milhões de pessoas afectadas), sendo a anemia ferropénica (AF) a causa mais comum. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que entre 1993 e 2005 a prevalência de anemia era 24,8% na população global, com as seguintes correspondências: – 47,4% dos casos em crianças até aos 5 anos; – 30,2% em mulheres e 47,4% na gravidez. Entre 2005 e 2011 estes valores diminuíram 4-5% nas crianças até aos 5 anos. Nos EUA a AF atinge 4,5-18% da população; na Ásia Central ~ 64,7% e, no sul da Ásia ~ 54,8%.

A elevada frequência da ferropenia como causa da anemia tem levado a que alguns autores usem o termo “anemia” como sinónimo de ferropenia; outros consideram que a nível mundial se poderá considerar que 50% dos casos de anemia são causados por ferropenia.

Importância do problema

Durante os primeiros 15 anos de vida é necessária a aquisição diária de 1 mg de ferro elementar (o equivalente ao existente em 1 mL de eritrócitos) para suprir as necessidades inerentes ao crescimento e compensar as perdas decorrentes da esfoliação mucocutânea. No intuito de manter um balanço positivo, e uma vez que a taxa de absorção é de apenas 10%, o regime alimentar diário deverá conter aproximadamente 10 mg deste elemento.

Múltiplos estudos demonstraram uma diversidade de consequências funcionais decorrentes da carência de Fe no organismo, citando-se como principais as seguintes: hipodesenvolvimento cognitivo, dificuldades na aprendizagem e na aquisição de competências psicomotoras e sensoriais, diminuição da força muscular, compromisso do processo de regulação térmica, diversos tipos e graus de imunodeficiência com repercussão nos macrófagos, na fagocitose, nas células T, nas interleucinas, e na virulência de agentes patogénicos intracelulares.

Metabolismo do Ferro

Património de ferro

O Fe está presente em todas as células humanas, ligado a proteínas; salienta-se que no estado livre é tóxico.

O organismo de um feto de 1 kg de peso contém cerca de 64 mg de Fe; um recém-nascido com peso de 3 kg contém aproximadamente cerca de 75 mg/kg deste mineral (o património mais elevado da vida), e o de um adulto contém cerca de 3.000-5.000 mg.

Esquematicamente, a distribuição de Fe total no organismo processa-se do seguinte modo: maioria, existente na hemoglobina (70 a 90%), cerca de 5% na mioglobina, e cerca de 15% sob a forma de ferritina (proteína que contém Fe) como depósitos ou reservas, designadamente no baço, fígado e medula óssea.

Salienta-se o papel doutra proteína (beta-2 globulina) chamada transferrina (ou siderofilina) que, existindo em fraca quantidade no plasma sanguíneo, tem a capacidade de fixar reversivelmente o Fe e o transportar até à medula óssea. A sua capacidade normal de fixação é ~350 mg de Fe/100 mL de soro; tal capacidade varia em função de determinados estados patológicos.

Uma pequena proporção (cerca de 0,1%) faz parte de cofactores de múltiplas enzimas, heme e não heme, nomeadamente, oxidases citocrómicas, catalases, redutases de ribonucleotídeos e peroxidases.

Esta distribuição, assim como as necessidades em Fe varia ao longo da idade pediátrica, isto é, durante o período de crescimento e desenvolvimento.

Em crianças com < 1 ano, estimam-se em 6-10 mg/dia; entre 1 e 11 anos, em 10 mg/dia e, em adolescentes, 12-15 mg/dia.

Dado que o património em Fe depende do peso corporal, nos RN de baixo peso, com reservas mais escassas em função do peso e, maiores necessidades pelas particularidades do crescimento, importa assegurar um suprimento de 2-4 mg/kg/dia no primeiro mês.

Recorde-se que o composto heme é sintetizado nas mitocôndrias dos eritroblastos a partir de uma sequência de precursores; o último destes precursores é a protoporfirina III à qual se pode ligar o Fe, constituindo-se, assim, o referido heme.

Graças à capacidade de coexistir em duas formas estáveis de oxidação (Fe2+ ou ferroso; Fe3+ ou férrico), desempenha inúmeras funções vitais como catalizador redox, dando e recebendo electrões de forma reversível.

Quando diluído em soluções aquosas, o ião ferroso é rapidamente oxidado em sais férricos insolúveis a pH fisiológico e, por conseguinte, sem utilidade biológica. Para que a solubilidade possa ser mantida, é necessária a sua ligação a agentes proteicos, quelantes cruciais para o ciclo metabólico.

Absorção

O ferro é absorvido principalmente no duodeno e jejuno proximal, e tanto mais quanto maior a carência no organismo. Contrariamente, quando as reservas estão repletas, o ferro existente nas células da mucosa é devolvido ao lume através da descamação. Nenhum órgão tem como função a excreção deste elemento, sendo a absorção a única forma fisiológica de ajustar a homeostase.

Admite-se que a absorção seja comparticipada, pelo menos, por cinco reguladores fisiológicos:

  1. O conteúdo em Fe no regime alimentar; após uma refeição rica em ferro, a acumulação intracelular diminui a taxa de absorção subsequente, independentemente da existência de deficiência sistémica;
  2. A depleção dos depósitos; quando tal se verifica, existe capacidade de aumentar 2 a 3 vezes a taxa de absorção; admite-se, efectivamente, que a saturação da transferrina interfira com os locais de ligação do ferro nos enterócitos duodenais em desenvolvimento;
  3. A eritropoiese; nas situações em que esta é ineficaz (por exemplo, na talassémia ou na anemia sideroblástica), e através de mecanismo ainda não esclarecido, a absorção é altamente incrementada, mesmo na presença de excesso de ferro no organismo; no entanto, tal não acontece nos casos de destruição periférica, como é o caso das anemias autoimune ou falciforme.
  4. e 5. A hipóxia e a inflamação; a travessia do Fe pela barreira celular do tubo digestivo depende ainda da integridade da mucosa do intestino delgado superior relacionável com hipóxia e inflamação.

O processo de regulação antes referido [de 2 a 5] parece fazer-se através duma molécula efectora (péptido/hormona segregada pelo fígado) chamada hepcidina ou regulador negativo da absorção de Fe e da libertação de Fe dos macrófagos, sendo a expressão desta dependente do estado de repleção ou esgotamento dos depósitos de Fe: repleção ou sobrecarga das reservas em Fe resultam em aumento da expressão da hepcidina; em situações de carência ocorre o contrário.

Por sua vez, o aumento da expressão da hepcidina resulta em sequestração celular do Fe, e em diminuição do Fe sérico. Na prática, a elevação do nível sérico da hepcidina traduz-se em diminuição do Fe sérico. Os níveis de hepcidina:

  1. Aumentam também em resposta à inflamação e à actividade física;
  2. Diminuem em situações de eritropoiese intensa, hipóxia e de alterações hormonais (testosterona, estrogénios e factores de crescimento).

No que respeita ao mecanismo de absorção, existem dois tipos de ferro, heme e não-heme, os quais utilizam receptores e vias de passagem distintos (Ferro ligado ou não ao composto heme).

O Fe heme, presente na carne e no peixe, constitui 5 a 10% do ferro ingerido diariamente nos países desenvolvidos. De elevada biodisponibilidade (2 a 3 vezes superior à do não-heme), é absorvido independentemente do pH local e do ciclo da transferrina (ver adiante), sendo pouco influenciado pelas reservas reticuloendoteliais. O cálcio constitui o único factor com interferência negativa. Depois de retirado do complexo pela heme-oxigenase, o ferro elementar é libertado no plasma.

O Fe não-heme está presente nos alimentos de origem vegetal, nos ovos e nos suplementos medicinais, sendo que, na passagem pelo estômago, a diminuição do pH reduz a forma férrica a ferrosa, mais eficazmente absorvida. Assim, compostos como o ácido ascórbico, o ácido cítrico e os aminoácidos da alimentação facilitam a absorção.

Inversamente, os fitatos (cereais integrais e leguminosas), os fosfatos (leite de vaca em natureza), os oxalatos (espinafres e beterraba), os taninos (chá, café e chocolate) e os polifenóis (certos legumes) dificultam a absorção; igualmente, o cálcio, o cobalto, o chumbo, o manganês, o estrôncio e o zinco, catiões bivalentes próximos do ferro, ao competirem com este pelos mesmos receptores celulares, limitam a sua absorção.

Distribuição

Aproximadamente 0,1% do ferro corporal total circula no plasma ligado à transferrina. Reitera-se que esta proteína tem uma capacidade normal de fixação de 350 mg de Fe por 100 mL de soro, variando tal capacidade em função de determinados estados patológicos (capacidade aumentada nas anemias ferropénicas, capacidade normal ou reduzida nas anemias associadas a processos inflamatórios). (ver adiante)

A transferrina aumenta a solubilidade do Fe, previne a formação de radicais livres nefastos e amplifica o suprimento celular do mesmo Fe. Todavia, a sua grande afinidade para o Fe diminui a eficácia dos quelantes (desferroxamina) utilizados em situações de toxicidade.

Transporte e armazenamento

Os complexos Fe-transferrina são captados por receptores de transferrina localizados nas membranas celulares de todas as células nucleadas. Na fase seguinte, os referidos complexos Fe-transferrina ligam-se a organelos celulares (ligandos, com porção intracelular e porção extracelular, mais abundantes na medula óssea, fígado e baço, e tanto mais quanto maior a carência daquele).

Ocorrida a ligação, inicia-se um processo de invaginação com formação de vesículas de endocitose para incorporação do Fe na célula. Quando o pH é inferior a 6, a transferrina desliga-se do Fe, fixando-se avidamente ao respectivo receptor antes de retornar à circulação.

Refira-se que também a porção extracelular destes ligandos é libertada no plasma pelos reticulócitos em maturação, pelo que o seu doseamento sérico pode ser correlacionado com a taxa de eritropoiese.

Cerca de 70 a 90% do metal contido nos endossomas corresponde a uma forma activa (Fe2+), maioritariamente para ser incorporado na hemoglobina. O restante é armazenado de modo inactivo (Fe3+) no sistema reticuloendotelial [células de Kupfer do fígado e macrófagos da medula óssea], incorporado em proteínas – a ferritina (lábil e rapidamente acessível) ou a hemossiderina (estável e insolúvel).

Também de acordo com o que foi referido antes, a ferritina reflecte as reservas de Fe no fígado, baço e medula óssea; apenas é identificável por microscópio electrónico. [1 ng/mL de ferritina <> 8 mg de Fe das reservas ou depósitos]. A hemossiderina pode ser identificada por microscopia óptica pela coloração dos eritrócitos (siderócitos) do esfregaço obtido por aspiração da medula com “azul da Prússia” (reacção de Perls, detectando grânulos na periferia dos referidos siderócitos).

Reciclagem

Por último, os eritrócitos senescentes sofrem um processo de destruição (lise) plasmática ou de retenção nos macrófagos esplénicos (hemocaterese).

A hemoglobina e grupos heme livres ligam-se, respectivamente, à haptoglobina e hemopexina, sendo posteriormente transportados até ao fígado.

Após processamento, o complexo [Fe2+ – transferrina] é reposto em circulação, para ulterior reutilização.

Apesar de muitos dos mecanismos ainda não estarem suficientemente esclarecidos, a captação de ferro, a produção de globina e a biossíntese do heme ocorrem, em circunstâncias fisiológicas, de maneira coordenada. Vias reguladoras subjacentes permitem aos precursores eritróides rendibilizar a formação de hemoglobina, sem que para isso sobrevenha um excesso de proteína, iões férricos livres ou compostos intermediários derivados da protoporfirina, que são tóxicos.

Fisiopatologia

Aspectos gerais

A carência em ferro no organismo processa-se em 3 fases sucessivas, de gravidade crescente:

  1. Numa fase inicial verifica-se a depleção das reservas, a qual é traduzida pela diminuição progressiva do valor da ferritina sérica e da hemossiderina nos macrófagos da medula óssea;
  2. Numa segunda fase, mais tardia e de carência mais acentuada, quando a ferritina atinge valor < 12 μg/L (ou < 12 ng/mL), ocorre a situação de défice de ferro sérico; esta fase traduz-se por diminuição do Fe sérico (quanto maior a carência em Fe, mais este é veiculado para a eritropoiese e reservas), diminuição da saturação da transferrina com aumento consequente da capacidade total de fixação do ferro aos receptores da mesma transferrina, e aumento da protoporfirina eritrocitária livre.

Refira-se, a propósito, que normalmente a taxa de transferrina alcança cerca de 0,27 g/dL, e aproximadamente 1/3 encontra-se saturada com o chamado ferro sérico (22-184 μg/dL). Costuma denominar-se transferrina não saturada, ou simplesmente transferrina, a fracção correspondente aos restantes 2/3 da proteína sérica. A máxima capacidade de transporte ou capacidade total de fixação do ferro (CTFF) corresponde, de facto, à transferrina total (soma das duas fracções).

O aumento da protoporfirina eritrocitária livre traduz acumulação no sangue de precursores do heme, o seu não aproveitamento, e diminuição ou impossibilidade de síntese de Hb.

  1. Numa terceira fase, de carência extrema de Fe, a que corresponde suprimento deste à medula óssea, mínimo ou nulo, verifica-se diminuição do VGM e do conteúdo eritrocitário em Hb (CHGM), atingindo-se o estádio caracterizado por produção de eritrócitos hipocrómicos e microcíticos, ou seja, de anemia ferropénica.

Concomitantemente, diminui também a síntese de outras metaloenzimas essenciais.

Ferro no organismo fetal

Um feto pesando cerca de 1 kg contém cerca de 64 mg de Fe, calculando-se que são incorporados nos tecidos fetais cumulativamente ao longo da gravidez, cerca de 65-75 mg/kg. Este elemento provém exclusivamente da placenta, que o remove da circulação materna independentemente da existência de défice. Necessidades crescentes promovem, não só o aumento do número de receptores de transferrina neste órgão, mas também uma maior absorção intestinal na grávida. Parece existir, assim, um sistema regulador subjacente à unidade feto-placenta-enterócitos, que favorece o ser em desenvolvimento.

Desta forma, a anemia neonatal decorrente de ferropénia materna é pouco frequente, sendo observada apenas nos raros casos de carência extrema. Contudo, estes revestem-se de marcada gravidade face à imaturidade do tracto gastrintestinal, com passagem ineficaz de nutrientes.

O recém-nascido de termo (com > 37 semanas completas) possui reservas de ferro suficientes para os primeiros 4 a 6 meses. Durante este período, em virtude do acelerado crescimento e da expansão do volume sanguíneo, a sua taxa de utilização é consideravelmente elevada, diminuindo o armazenamento para 50%.

A prematuridade, a restrição do crescimento fetal e a gemelaridade constituem situações de menor acumulação de Fe, com precária formação de depósitos ou reservas. Por outro lado, sendo a velocidade de crescimento pós-natal mais acentuada, tais reservas esgotam-se, mais rapidamente, em cerca 2 a 3 meses.

A anemia observada nos primeiros 60 a 90 dias de uma criança de termo (ou nos primeiros 30 a 60 dias de uma pré-termo) decorre da destruição eritrocitária fisiológica e não da deficiência de ferro. Pelo contrário, este é armazenado e gradualmente reutilizado.

Etiopatogénese

Nos países menos desenvolvidos a insuficiência deste mineral é atribuída maioritariamente a carências nutricionais, agravadas por perdas sanguíneas crónicas motivadas por infecções parasitárias gastrintestinais e pela malária. Nas nações industrializadas um regime alimentar pobre em ferro constitui o factor etiológico principal.

No Quadro 1 encontram-se enumerados os principais factores etiopatogénicos de anemia ferropénica em idade pediátrica; dos mesmos se podem deduzir os factores de risco de carência em Fe.

QUADRO 1 – Causa de anemia ferropénica em idade pediátrica

1. Ingestão inadequada Fe (mais frequente)

      • AM exclusivo após os 6 meses de idade
      • Fórmula para lactentes não suplementado com Fe (< 7-12 mg Fe/L)
      • Leite de vaca antes dos 12 meses de idade
      • Consumo de produtos lácteos superior a 0,5 L por dia após o 1º ano de vida
      • Hábitos alimentares com défice de suprimento e Fe
      • Elevado consumo de chás com ↓ proteínas animais
      • Dieta vegetariana estrita

2. Necessidades fisiológicas

      • Prematuridade/Baixo peso
      • Hipoxémia crónica

3. Alteração do transporte plasmático do Fe (raramente)

      • Atransferrinémia congénita
      • Defeitos da transferrina
      • Ac. anti-receptores transferrina

4. Perdas hemáticas/Má-absorção

Perinatais
– Transfusão feto-fetal e feto-materna
– Flebotomias múltiplas
Gastrintestinais
– Parasitose intestinal (Giardia)
– Doença celíaca/DII
– Alergia às proteínas do leite de vaca
– Infecção por Helicobacter pylori/Úlcera péptica
– Divertículo de Meckel
– Esofagite de refluxo
Ginecológicas (adolescentes)
Urinárias
– Hemossiderinúria (hemólise intravascular)
Pulmonares
– Hemossiderose pulmonar idiopática
Outras
– Trauma grave/cirurgias múltiplas
– Infecção/inflamação crónica
– Fármacos (↓ absorção Fe): IBP

Ac. – anticorpos; IBP – inibidores da bomba de protões

Regime alimentar

Em geral, a anemia ferropénica é mais frequente entre os 6 meses e os 2 a 3 anos de idade, essencialmente por motivos relacionados com o padrão alimentar. Apesar de o leite humano e o leite de vaca terem a mesma concentração deste elemento (0,5 mg/L), a sua biodisponibilidade é de 50% e 10%, respectivamente. Os motivos desta diferença são mal compreendidos, podendo ser parcialmente explicados pelo facto de o primeiro conter menos cálcio e mais ácido ascórbico e lactoferrina.

As fórmulas enriquecidas possuem em média 10 a 13 mg/L, mas a sua taxa de absorção é inferior a 5%. Nos primeiros 4 meses a alimentação com leite materno e fórmulas de fabrico industrial preenchem os requisitos de ferro necessários.

Contudo, crianças que permaneçam em aleitamento exclusivo após os 6 meses de vida apresentam risco crescente de depleção. Situação semelhante ocorre quando o leite de vaca é introduzido antes de a criança completar o ano de idade; este, para além de fornecer uma quantidade insuficiente de ferro, pode provocar perdas hemáticas gastrentéricas, agravando ainda mais o estado deficitário.

Na idade pré-escolar ocorre uma desaceleração do crescimento, e com ela uma diminuição das necessidades de ferro para cerca de metade. A adolescência constitui outra das fases de aumento da susceptibilidade, não só pelo incremento da massa corporal, mas também pelas características restritivas de comportamento alimentar inerentes a tal período. As suas consequências são ainda exacerbadas por possíveis perdas urinárias e gastrintestinais decorrentes do exercício de competição e, após a menarca, pelas perdas periódicas relacionadas com a menstruação (depleção mensal ~ 20 mg).

 Hemorragia e má-absorção

O aparelho digestivo é o local hemorrágico mais frequente, sendo a presença parasitária um dos principais motivos de consideráveis perdas sanguíneas microscópicas assintomáticas. As infecções por Necator americanus e Ancylostoma duodenale são endémicas em várias regiões tropicais e subtropicais. Trichuris trichiura é também um agente a ter em consideração nestas áreas geográficas, especialmente dos 2 aos 10 anos de idade.

Entre nós, é frequente a infestação por Giardia lamblia. A enteropatia induzida pelo leite de vaca e as lesões estruturais locais (nomeadamente as anomalias artério-venosas, o divertículo de Meckel e a úlcera péptica) são outras causas importantes de perdas de sangue.

Entre as causas de FP e AF por má-absorção, destacam-se a doença celíaca (causa mais frequente) e a colonização gástrica por Helicobacter pylori como as mais frequentes; mais raramente, a ressecção intestinal extensa, a gastrite atrófica e o hipercrescimento bacteriano. A pica, comportamento compulsivo de ingestão de substâncias sem valor nutricional (papel, argila, terra, vidro ou areia) e a pagofagia ou necessidade compulsiva de comer gelo, podem levar a má-absorção.

Alguns fármacos podem originar AF por reduzirem a absorção do metal (ex.: inibidores da bomba de protões/IBP, antagonistas dos receptores H2).

A AF é frequentemente reportada em doenças crónicas, incluindo doença inflamatória do intestino (DII), insuficiência cardíaca, doença renal crónica, neoplasias, síndromas autoinflamatórias e obesidade. A presença de parâmetros inflamatórios persistentemente elevados altera a homeostasia do Fe.

A anemia ferropénica provocada por hematúria renal é infrequente, sendo a doença de Berger e a síndroma de Goodpasture as mais bem caracterizadas. A última, juntamente com a hemossiderose pulmonar, provoca ainda perdas respiratórias.

Doenças hereditárias do metabolismo

A atransferrinémia é uma deficiência de transferrina transmitida de modo autossómico recessivo, na qual o ferro absorvido pelos enterócitos circula no plasma de forma livre ou precariamente ligado a outras proteínas séricas; tal leva à deposição do referido elemento noutros tecidos, nomeadamente nos hepatócitos.

A síntese de moléculas de transferrina de estrutura anómala e, por isso, disfuncionais, tem consequências metabólicas sobreponíveis.

Níveis muito elevados de hepcidina (híper-hepcidinémia) podem relacionar-se com fenómeno paraneoplásico ou doença hereditária do metabolismo.

A European Network of Rare Congenital Anaemias – ENERCA (Rede Europeia de Anemias Congénitas Raras) é composta por mais de 60 subtipos de anemias raras, muitas causadas por mutações genéticas – envolvimento de genes que controlam a absorção duodenal de Fe (ex. SLC11A2), a sua homeostasia (ex. TMPRSS6) ou a sua absorção e utilização pelas células eritróides. Um exemplo é a anemia ferropénica refractária ao Fe (iron refractory iron deficiency anemia – IRIDA), com uma prevalência inferior a 1 por milhão de doentes, que é causada por um defeito no gene TMPRSS6 codificador da matriptase-2, uma proteína essencial para a supressão da síntese de hepcidina. Ao estar mutada, condiciona uma concentração de hepcidina sérica persistentemente elevada com consequente ferropenia. A administração de Fe oral é ineficaz e a resposta ao Fe parentérico (EV) é parcial e mais lenta que nos doentes com AF adquirida. 

Manifestações clínicas

Os sinais e sintomas de sideropénia variam com a gravidade do défice, sendo habitualmente inespecíficos e inexistentes nos casos ligeiros. Em situações de carência moderada a palidez mucocutânea é o primeiro sinal, podendo ainda existir irritabilidade, astenia, anorexia e náuseas. Nos casos graves surge progressivamente dispneia, diaforese, taquicárdia, palpitações, sopro sistólico de ejecção e cardiomegália.

A anemia pode ainda provocar manifestações clínicas gerais associadas à carência de ferro, entre elas as cefaleias, as parestesias, a estomatite angular, a gastrite atrófica e a cor azulada das escleróticas (fruto do espessamento provocado por alterações na síntese do colagénio). A síndroma de Plummer-Vinson (glossite, membrana esofágica pós-cricoideia e disfagia), a atrofia cutânea e a coiloníquia são exemplos de complicações raras.

Existem numerosas situações comprovadamente associadas à sideropénia, especialmente se esta ocorrer nos dois primeiros anos de vida.

Primeiramente, o atraso de desenvolvimento é devido, não só a um défice encefálico de ferro, mas também à redução de neurotransmissores e a efeitos sistémicos da hipóxia. Em segundo lugar e paralelamente, ocorre uma redução da velocidade de crescimento.

Noutros casos surge perturbação do foro alimentar, sob a forma de geofagia ou pica. Esta, aliada à estimulação da absorção, pode aumentar a plumbémia, pela eventual ingestão de substâncias com chumbo, exacerbando ainda mais a clínica neurológica.

Por último, o défice de ferro afecta de modo adverso a função imunitária ao provocar uma diminuição da mieloperoxidase e do número de linfócitos T circulantes, prejudicando a resposta mitogénica e a actividade das células NK.

Na idade pré-escolar e escolar, a carência em ferro pode ter repercussão negativa no desenvolvimento cognitivo e, na adolescência, igualmente no desempenho físico e desportivo.

Estudos recentes demonstraram associação entre índice de massa corporal elevado e carência em Fe entre 1 e 3 anos de idade.

Diagnóstico laboratorial

Considerada a definição de anemia atrás explanada, cabe referir que o exame-padrão para a identificação da etiologia de carência em ferro é a biópsia medular permitindo identificar ausência de coloração dos eritrócitos pelo azul da Prússia.

O exame da medula óssea evidencia hipercelularidade, com hiperplasia eritróide. Porém, pelo seu carácter invasivo não pode ser empregue por rotina, havendo a necessidade de recorrer a exames indirectos. Desta forma, são utilizados vários parâmetros hematológicos e bioquímicos. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Marcadores hematológicos e bioquímicos de sideropénia

 NormalDepleção das reservasDeficiência de ferro plasmáticoAnemia ferropénica
Hb (g/dL)≥ 11≥ 11 ≥ 11 < 11*
VGM (fL)70-10070-100 70-100 < 75*
RDW (%)< 15< 15 < 15 ≥ 15
CHr (pg)≥ 29≥ 29 < 29< 29
Rt (%)1-51-5 1-5 < 1
Ferritina (μg/L)100±60< 20≤10< 10
Ferro sérico (μg/dL)115±50< 115 < 30< 30
CTFF (μg/dL)330±30360-390 390-410N/↑> 410
Tsat (%)35±15< 30 < 20< 10i
sTR (nmol/L)< 35≥ 35≥35≥35
PEL(μg/dL)< 40< 40 40-70> 70
* Valores para idades compreendidas entre os 6 e os 24 meses
Adaptado: Wu AC, 2002

O hemograma evidenciará diminuição do número de eritrócitos assim como do valor de Hb abaixo do valor esperado para cada faixa etária, de acordo com os valores especificados anteriormente.

O volume globular médio eritrocitário (VGM) e a concentração de hemoglobina globular média (CHGM) encontram-se diminuídos (microcitose ou VGM < 75 fl) e hipocromia ou CHGM < 25%), enquanto o índice de dispersão globular) (RDW) está aumentado (anisocitose ou RDW > 14%).

O número relativo de reticulócitos é normal ou discretamente elevado, mas a sua contagem absoluta apresenta-se reduzida, indicando resposta insuficiente à anemia. A diminuição da concentração de hemoglobina reticulocitária (CHr) (< 29 pg) constitui um indicador precoce de deficiência de ferro, superando a Hb, VGM, RDW, o ferro sérico e a saturação de transferrina.

O número de leucócitos habitualmente é normal, sendo, por outro lado, frequente a trombocitose (valor de plaquetas entre 500.000-700.000/μL) secundária à estimulação megacariocítica pela eritropoietina.

Todavia, nos casos muito graves pode existir trombocitopénia.

A ferritina é o indicador mais precoce de carência de ferro, reflectindo os depósitos do mesmo no fígado, baço e medula óssea. Em geral valores < 10 μg/L (ou < 10 ng/mL) acima dos 5 anos estão associados à referida carência, devendo ter-se em consideração a ampla variabilidade fisiológica interindivíduos e a circunstância de o respectivo valor sérico estar aumentado em determinadas situações tais como processos inflamatórios, doença hepática, infecção, neoplasia, pois se trata de um reagente da fase aguda.

Valores baixos de ferritina também poderão verificar-se em casos de défice de vitamina C e de hipotiroidismo.

O nível do ferro sérico não é suficientemente fidedigno para o diagnóstico, pois somente se verificam valores baixos em estádios avançados de carência, após esgotamento dos depósitos; por outro lado, sofre uma variação diurna cíclica (valores 30% mais elevados de manhã em relação à tarde) e a influência de inúmeros factores (regime alimentar, inflamação, infecção); assim o seu valor poderá não traduzir com fidelidade o estádio de armazenamento.

Na prática, e tendo em conta tais limitações que deverão ser ponderados caso a caso, considera-se carência se o ferro sérico for < 30 μg/dL.

A capacidade total de fixação do ferro (CTFF) mede a disponibilidade dos locais de captação deste elemento existentes nas moléculas circulantes de transferrina sendo, por conseguinte, um valor indirecto dos níveis séricos da proteína de transporte (transferrina).

O Quadro 2 elucida sobre os respectivos valores de referência, concluindo-se que os mesmos vão aumentando à medida que a carência se vai acentuando e se considera anemia ferropénica se os respectivos valores forem > 410 μg/dL. (Nas situações inflamatórias, no entanto, a CTFF diminui atingindo valores < 200 μg/dL).

Por outro lado, (e de acordo com o referido na Fisiopatologia) a saturação da transferrina (TSAT ou razão – em % – entre a concentração de ferro sérico e a CTFF), indica a proporção de locais de ligação do ferro à transferrina. Consultando os valores de referência do Quadro 2, (valor normal de 35±15%), salienta-se que em situação já de depleção de depósitos ou reservas, a saturação ainda é muito próxima do normal, o que constitui uma limitação. Quando se atingem valores mais baixos (< 10%) atingiu-se já a fase de anemia.

Com a deficiência tecidual de ferro ocorre um aumento paralelo na quantidade de receptores de transferrina. Assim, a medição da porção sérica destes ligandos (sTR) em nmol/L é útil, não só como marcador precoce de deficiência em ferro, mas também na distinção entre esta situação e a anemia das doenças com hipoproliferação eritrocitária medular.

Sendo o valor normal de sTR < 35 nmol/L, o critério para o diagnóstico, quer de estado de depleção de reservas, quer de carência de ferro sérico, quer de anemia ferropénica, é a verificação de sTR = > 35 nmol/L. Salienta-se que nos estados de hipoproliferação eritrocitária medular o valor de sTR é inferior a 35 nmol/L.

Nas situações de sideropénia há quantidade insuficiente de ferro para se combinar com a protoporfirina e formar o grupo heme da hemoglobina; consequentemente, verifica-se acumulação de protoporfirina nos eritrócitos (protoporfirina eritrocitária livre ou PEL). Valores superiores a 70 μg/dL são considerados indicativos de carência em ferro. De acordo com o Quadro 2 pode verificar-se que o valor normal é < 40 μg/dL, e que este valor se mantém ainda na fase de depleção de reservas.

A protoporfirina eritrocitária está também elevada nas situações de carência de vitamina C, infecção/inflamação e intoxicação crónica pelo chumbo.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial de anemia ferropénica inclui situações hematológicas caracterizadas por microcitose e hipocromia. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial de anemia ferropénica

    • Síndromas talassémicas
    • Doenças Crónicas
      • Infecciosas
      • Neoplásicas
      • Inflamatórias
      • Renais
    • Intoxicação por chumbo
    • Deficiência de vitamina B6
    • Deficiência de cobre
    • Anemia sideroblástica (alguns casos)

Talassémia

Esta situação deve ser considerada especialmente em crianças provenientes de regiões endémicas, nomeadamente Mediterrâneo, África e Sudeste Asiático.

Os exames laboratoriais evidenciam incremento no número de eritrócitos, valores normais ou aumentados do ferro e ferritina séricos, e CTFF dentro dos parâmetros fisiológicos. A proporção de células hipocrómicas é inferior à de microcíticas e o RDW habitualmente está diminuído. Trata-se de microcitose resistente ao tratamento com ferro.

No caso do traço β-talassémico os estudos electroforéticos evidenciam um pico de HbA2.

Doença crónica

A anemia no contexto de doença crónica (também chamada de inflamação crónica) é classicamente normocítica/normocrómica. No entanto, cerca de 20 a 30% evolui para microcítica/hipocrómica devido ao encurtamento da sobrevida eritrocitária, à dificuldade na mobilização do ferro existente nos macrófagos (com consequente prejuízo na sua reutilização) e à diminuição da absorção deste nutriente.

Em tais circunstâncias RDW e sTR são normais, a CTFF diminui, e a ferritina sérica aumenta. As doenças crónicas sem componente inflamatório não produzem geralmente este tipo de anemia.

Prevenção e tratamento    

Generalidades

A prevenção e o tratamento da anemia ferropénica envolve dois conceitos com áreas de sobreposição:

  • A prevenção da ferropenia (Fp) em crianças e adultos saudáveis (dirigida às populações de maior risco); e
  • A suplementação terapêutica nos doentes com AF comprovada.

Trata-se, pois, de duas abordagens distintas, com o mesmo objectivo a longo prazo – evitar a Fp e a AF.

No âmbito da prevenção, grupos de investigação internacional recomendam o consumo de alimentos ricos em Fe tais como produtos animais – carne, vísceras (de bovinos, aves, peixes) – e não animais – legumes e vegetais de folha verde.

Recomenda também:

  • A ingestão de produtos ricos em ácido ascórbico por aumentarem a biodisponibilidade do Fe; e
  • A evicção de determinados alimentos que inibem a sua absorção, por ex. cálcio, fitatos (cereais), taninos (chá e café) – às principais refeições;
  • A administração de probióticos com o objectivo de aumentar a absorção intestinal de Fe.

Apesar da baixa sensibilidade e baixa especificidade, o inquérito nutricional pode ter utilidade para identificar situações de carência, ou de alto risco de FP e ou AF: < 5 refeições semanais de carne, cereais, legumes e fruta; > 500 mL/dia de leite de vaca; ingestão diária de snacks, doces e refrigerantes, etc..

A Academia Americana de Pediatria recomenda o rastreio universal (Hb e hematócrito):

  • Entre os 9 e os 12 meses de vida, e novamente 6 meses mais tarde, em comunidades com elevada prevalência de anemia ferropénica;
  • Na restante população, tal rastreio deverá ser realizado nas mesmas idades, mas dirigido aos grupos de risco (recém-nascidos com antecedentes de prematuridade, restrição de crescimento fetal e/ou baixo peso de nascimento, alimentados com fórmulas não enriquecidas, crianças com mais de 6 meses alimentadas com leite materno e regime alimentar pobre em ferro, crianças alimentadas com leite de vaca completo antes dos 12 meses ou consumindo-o em quantidades diárias superiores a 700 mL);
  • Depois dos 2 anos, a realização de exames complementares justifica-se apenas nos casos de anemia ferropénica prévia, regime alimentar pobre em ferro e em situações especiais (infecção ou problema inflamatório crónico, hemorragias e administração de fármacos que diminuem a absorção do ferro, por ex.: fitatos, oxalatos, fosfatos, carbonatos, fibras, taninos, etc.).

Outras medidas úteis têm sido a introdução de fontes adicionais de Fe nos lactentes exclusivamente amamentados após os primeiros 6 meses de vida e a desparasitação de indivíduos de determinadas populações de risco;

  • Todos os adolescentes devem ser avaliados, aconselhando-se rastreio anual nas jovens menstruadas;
  • Nos lactentes com antecedentes de prematuridade, e nos de termo alimentados com leite materno exclusivamente, deve iniciar-se suplemento de ferro oral, respectivamente aos 1-2 e 4 meses até que a alimentação diversificada proporcione suprimento em Fe, designadamente através de cereais enriquecidos. Nos primeiros, a dose de Fe elementar depende do peso de nascimento, variando entre 2-4 mg/kg/dia (máximo de 15 mg/dia); nos últimos a dose é 1 mg/kg/dia;
  • Nas crianças alimentadas com fórmulas até aos 12 meses, as mesmas devem ser suplementadas em ferro (10-12 mg de Fe elementar/L).

Tratamento com ferro oral

No que se refere à suplementação com Fe, as formulações orais constituem uma forma prática de tratar a maioria dos casos de Fp e AF. A dose terapêutica de Fe elementar aconselhada é de 5-6 mg/kg/dia (idade pediátrica) até um máximo de 150-200 mg/dia (idade adulta), dividida em 1-3 administrações diárias.

Deve ter-se em conta que a absorção duodenal de Fe elementar tem limites. Em situações normais é de cerca de 1 mg/dia (10% do Fe não-heme ingerido) aumentando até um máximo de 25 mg/dia na presença de Fp.

Existem diferentes formulações de Fe oral: hidróxido férrico-polimaltose, sais ferrosos (sulfato ferroso, gluconato ferroso), proteinossuccinilato de Fe ou pirofosfato férrico sendo os primeiros dois os mais frequentemente utilizados. (Quadro 4)

O hidróxido férrico-polimaltose é um complexo macromolecular hidrossolúvel de ferro e polimaltose, não ionizado e estável em meio ácido. Possui boa absorção intestinal (duodeno e jejuno) e não sofre interferência com a dieta, podendo ser administrado numa toma diária, em jejum ou às refeições. Tem menos efeitos secundários gastrintestinais que os sais ferrosos, e menos interacções medicamentosas.

Dos sais ferrosos (de mais baixo custo e maior biodisponibilidade), o sulfato é o mais frequentemente utilizado. Dado que os alimentos interferem com a sua absorção, aqueles compostos devem ser administrados nos intervalos das refeições. Embora o ácido ascórbico aumente a biodisponibilidade do Fe, o aumento do [Fe] ferroso no sistema gastrintestinal poderá originar ou agravar os efeitos adversos – desconforto gástrico, náuseas, diarreia e obstipação.

De salientar que o escurecimento das fezes, ocorrendo com frequência, não contraindica manter a terapêutica. Quando os efeitos adversos do Fe são difíceis de tolerar, o mesmo pode passar a ser administrado às refeições, embora tal estratégia conduza a redução da sua absorção em 40%. É possível também reduzir a dose e aumentar a sua frequência ou substituir o sulfato ferroso por outras formulações (por ex. hidróxido férrico-polimaltose).

A resposta à suplementação com Fe oral é habitualmente rápida. Aos quatro dias de terapêutica verifica-se um aumento do valor dos reticulócitos, atingindo o seu valor máximo entre o 7º e 10º dia.

A partir da segunda semana de terapêutica ocorre uma subida da [Hb], considerando-se resposta adequada a subida > 1-2 g/dL de Hb após 4 semanas de terapêutica.

Se houver boa resposta, o Fe oral deve ser mantido durante 3 meses após a correcção da anemia e da Fp de forma a garantir o preenchimento das reservas de Fe (ferritina sérica utilizada como marcador).

Tratamento com ferro por via parentérica (EV)

Se não se verificar resposta ao Fe oral, importa admitir essencialmente três hipóteses:

  • Questionar a adesão à terapêutica;
  • Reforçar a correcção dos hábitos alimentares; e, eventualmente,
  • Repensar o diagnóstico.

Se tais circunstâncias forem excluídas, importa admitir a possibilidade de síndromas de má-absorção (por ex.: doença celíaca, ressecção intestinal ou infecção por Helicobacter pylori).

A administração de Fe endovenoso (Fe EV) está indicada em situações muito específicas:

  • Síndromas de má-absorção congénitas ou adquiridas;
  • Perdas hemáticas excessivas não compensadas;
  • Patologia sistémica (inflamatória) crónica;
  • Ausência de resposta à terapêutica oral ou;
  • Incapacidade de tolerância dos efeitos adversos.

Entre as formulações de Fe EV destaca-se:

  • O óxido férrico com sacarose (sacarosado); e
  • A carboximaltose férrica (composto aprovado somente para pacientes com > 14 anos).

A dose pode ser calculada através da seguinte fórmula:
Ferro (mg) a administrar = Défice de Hb (g/dL) x Peso corporal (Kg) x 0,22
Nota: não ultrapassar 7 mg/Kg em cada administração.

Ciclo do ferro administrado

O composto de ferro que se administra, processado pelo sSRE , é depois libertado e armazenado sob a forma de ferritina, ou exportado de volta para o plasma, através da ferroportina. A cinética da libertação do Fe depende da formulação.

Em determinadas situações, tais como, pós-parto imediato, doença inflamatória do intestino e doença renal crónica, o Fe administrado por via endovenosa preenche as reservas de forma mais eficaz do que o Fe administrado por via oral.

Seguimento

Na sequência do tratamento da AF, e atingidos os valores de Hb dentro dos limites desejados, está indicado o seguimento dos doentes, com realce para a realização de exames complementares, tais como hemograma e restantes parâmetros anteriormente mencionados. A British Society of Gastroenterology recomenda avaliações mensais durante os primeiros 3 meses e, depois, trimestrais durante um ano. Se os sintomas persistirem, deverá ser repetido o hemograma de 3-3 meses durante mais um ano, continuando-se, a par, a administração de suplementos de Fe. Se os resultados analíticos não se mantiverem estáveis, a situação clínica implicará ulteriores estudos.

Apesar de ainda não estar disponível o doseamento da hepcidina, a mesma poderá vir a ser útil na distinção entre anemia ferropénica e anemia da doença crónica. Para além de dado laboratorial suceptível de avaliação, poderá vir a ser também um alvo terapêutico: com efeito, a sua inactivação por via medicamentosa, poderá prevenir a retenção de ferro no SRE.

QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial de anemia ferropénica

Substância activaMarca©FormulaçõesSal de ferro (mg/unidade)Ferro elementar
Hidróxido férrico polimaltose

Maltofer

Ferrum Hausmann

Ferrum Hausmann

Ampolas 5 mL

Comprimidos

Solução oral

357 mg/ampola

357 mg/comp.

178,6 mg/mL
(1 mL = 18 gotas)

100 mg/ampola 5 mL

100 mg/comp.

50 mg/mL
(1 mL = 18 gotas)

Proteinossuccinilato de ferro

Legofer

Fervit

Fetrival

Ampolas 15 mL

Ampolas 15 mL

Ampolas 15 mL

800 mg/ampola

800 mg/ampola

800 mg/ampola

40 mg/ampola

40 mg/ampola

40 mg/ampola

Sulfato ferroso

Ferro Gradumet

Ferro Tardyferon

Comprimidos de libertação prolongada

Comprimidos de libertação prolongada

329,7 mg/comp.

256,3 mg/comp.

105 mg/comp.

80 mg/comp.

Gluconato ferrosoHemototalAmpolas 10 mL300 mg/ampola 10 mL35 mg/ampola 10 mL
Pirofosfato férrico

Fisiogen Ferro Forte

Fisiogen Ferro

Cápsulas

Cápsulas

30 mg/cápsula

14 mg/cápsula

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ANEMIAS – GENERALIDADES

Definição

A anemia (não uma doença em si, mas manifestação de vários processos mórbidos) define-se (sob o ponto de vista quantitativo) como o valor de Hb inferior ao percentil 5 ou a 2 desvios-padrão (DP) em relação ao valor médio normal da população da mesma idade e do mesmo sexo.

Reportando-nos ao capítulo anterior e respectivo Quadro 2, cabe referir que o valor normal de Hb na data de nascimento é cerca de 17 g/dL, diminuindo depois até atingir o valor mínimo de 11 g/dL, aumentando depois até cerca da idade de 1 ano, atingindo ~12 g/dL; depois, o valor vai aumentando até à puberdade, sendo que na adolescência os valores de Hb são mais elevados no sexo masculino do que no feminino devido à acção dos androgénios.

Sob o ponto de vista funcional é importante referir que pode haver situações de anemia com valores de Hb dentro dos limites da normalidade: é o caso das cardiopatias cianóticas ou de doenças pulmonares crónicas em que a Hb tem elevada afinidade para o oxigénio, isto é, menor capacidade de libertação de oxigénio ao nível dos tecidos; de facto, a causa do défice de oxigenação tecidual (critério funcional) nos últimos exemplos citados, é diversa da que resulta das situações associadas a Hb deficitária (critério de definição quantitativa).

Na prática, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, e excluído o recém-nascido (ver Parte XXXI) são estabelecidos os seguintes critérios de definição de anemia:

  • Entre 7 meses e 5 anos: Hb < 11 g/dL;
  • Entre 6 e 9 anos: Hb < 11,5 g/dL;
  • Adolescentes: Hb < 12 g/dL (sexo feminino) e Hb < 12,5 g/dL (sexo masculino).

Adaptação fisiológica à anemia

Embora a redução do teor de Hb circulante diminua a capacidade de transporte do oxigénio, dum modo geral somente surge palidez da pele e mucosas quando a Hb atinge valor < 7-8 g/dL. Verifica-se, pois, um fenómeno de adaptação compensatória do organismo, traduzido nomeadamente por incremento do débito cardíaco, e da libertação do oxigénio ligado à Hb no sentido de maior oferta daquele (O2) aos tecidos de órgãos vitais, explicada pelo aumento da concentração de difosfoglicerato eritrocitário (2,3-DPG) com consequente desvio para a direita da curva de dissociação do oxigénio.

Outro fenómeno de adaptação é a elevação do nível de eritropoietina (EPO), que contribui para aumentar a produção de eritrócitos (eritropoiese), evidenciada no sangue periférico pelo aumento de reticulócitos circulantes (IPR↑ ou índice de produção reticulocitária). Salienta-se, no entanto, que nalguns tipos de anemia não se verifica tal estimulação de EPO.

Nos casos em que se verifica resposta reticulocitária, esta associa-se, em geral, a policromatofilia (eritrócitos corados com 2 ou mais corantes).

Os receptores de transferrina também aumentam no sangue nalgumas situações, tais como anemia por carência de ferro, eritropoiese ineficaz (talassémia, anemia megaloblástica); tal não acontece nos casos de medula hipoproliferativa.

Diagnóstico diferencial

Dada a grande variedade de anemias com mecanismos etiopatogénicos diversos, antes da abordagem de entidades específicas nos capítulos seguintes, será importante apresentar a respectiva classificação (Quadro 1), valorizando para o diagnóstico diferencial os parâmetros hematimétricos que fazem parte do hemograma, já referidos no capítulo anterior, e excluindo também o período de recém-nascido.

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica da anemia

IPR <2

a) Microcítica, hipocrómica
Anemia ferropénica, Talassémia, Doença inflamatória crónica, Carência em cobre, Intoxicação pelo chumbo, Intoxicação pelo alumínio, Anemia sideroblástica, Hemoglobina CC, Piropoiquilocitose hereditária, etc..

b) Normocítica, normocrómica
Doença infiltrativa maligna da medula óssea, Aplasia/hipoplasia da medula, Infecção por vírus da imunodeficiência humana (VIH), Síndroma hemofagocitária, Hemorragia recente, Doença renal crónica, Doença inflamatória crónica (conectivites, doença inflamatória intestinal), Eritroblastopénia transitória, etc..

c) Macrocítica
Carência em ácido fólico (hemólise crónica, má-nutrição, má absorção, antimetabolitos, fenitoína, trimetoprim-sulfametoxazol), Carência em vitamina B12 (regimes vegetarianos, anemia perniciosa, ressecção do íleo, transporte intestinal anómalo, défice congénito de factor intrínseco, etc.), Hipotiroidismo, Acidúria orótica, Doença crónica hepática, Síndroma de Lesch-Nyhan, Síndroma de Down, Insuficiência medular (mielodisplasia, anemia de Fanconi, anemia aplástica, etc.), Fármacos (álcool, zidovudina, etc.).

IPR >3

a) Hemorragia

b) Doença hemolítica
Hemoglobinopatia (Hb SS,S-C, S-β talassémia), Enzimopatia (défice da desidrogenase da glucose 6-fosfato/G6PD, défice da cinase do piruvato/PK), Membranopatia (esferocitose hereditária, eliptocitose, ovalocitose), Anemia hemolítica de causa imune (autoimune, isoimune, provocada por fármacos), Outras causas (síndroma hemolítica urémica, púrpura trombocitopénica trombótica, coagulação intravascular disseminada), Abetalipoproteinémia, Doença de Wilson, Carência em vitamina E, Queimaduras.

Eis, então, a interpretação dos parâmetros:

  • Microcitose: VGM < 75 fL;
  • Macrocitose: VGM > 100 fL;
  • Hipocromia: CHGM < 25% (ou g/dL);
  • IPR > 3: sugestivo de produção eritrocitária aumentada por hemólise ou por perda de sangue;
  • IPR < 2: sugestivo de produção eritrocitária diminuída ou ineficaz relativamente ao grau de anemia; poderá também explicar-se por destruição de reticulócitos na medula por anticorpos, por doença da medula óssea ou por atraso na resposta da medula óssea face a situações de anemia aguda. Valores entre 2 e 3 podem ser considerados inconclusivos;
  • Índice de Mentzer > 13,5 sugere anemia ferropénica;
  • Índice de Mentzer < 11,5 sugere traço talassémico;

Valor entre 11,5-13,5: inconclusivo;

  • RDW normal (11,5-14,5%) pode surgir no traço talassémico, hemorragia aguda e anemia aplástica;
  • RDW elevado pode surgir em anemia ferropénica, anemia hemolítica, megaloblástica, CID, SHU.

A situação de anemia hipocrómica microcítica traduz deficiente produção de Hb; como causas mais importantes citam-se a anemia por carência de ferro (ferropénica ou ferripriva) e talassémia (forma de hemoglobinopatia).

A situação de anemia macrocítica é, em geral, causada por carência de vitamina B12 e ácido fólico. A situação de anemia normocítica associa-se, em geral, a doença sistémica com consequente défice de produção eritrocitária na medula óssea. Como se pode depreender, os parâmetros laboratoriais devem ser interpretados em função da clínica e não isoladamente. Nos capítulos seguintes são abordadas as situações clínicas do foro hematológico com que o pediatra e o clínico geral mais frequentemente se confrontam. Realça-se a elevada prevalência da anemia ferropénica, cuja prevenção e tratamento são da competência do pediatra (não subespecialista em hematologia), em colaboração com o clínico geral; outras, no entanto, obrigarão a internamento hospitalar, sendo importante que o clínico exercendo actividade em ambulatório esteja sensibilizado para a respectiva identificação e encaminhamento em tempo oportuno para centros especializados. O tópico Leucemias foi abordado na Parte XVII.

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SÍNDROMAS HEMATOLÓGICAS EM IDADE PEDIÁTRICA

Sistematização

Em clínica pediátrica os problemas hematológicos mais frequentes dizem respeito, essencialmente, a alterações dos elementos figurados (anemia, policitémia, neutropénia, trombocitopénia) e a alterações da coagulação (coagulopatia e fenómenos trombóticos).

Cabe igualmente uma referência às anomalias da função das plaquetas, abordadas em capítulo especial.

O Quadro 1, cujo conteúdo releva a importância da anamnese e do exame objectivo, sintetiza as manifestações clínicas que determinarão os exames complementares a realizar para se obter o diagnóstico definitivo. Nesta perspectiva, torna-se fundamental ter em consideração os principais valores de referência hematológicos do recém-nascido, criança e adolescente.

QUADRO 1 – Síndromas hematológicas

SíndromaManifestações ClínicasEntidades
AnemiaPalidez, Icterícia, astenia, insuficiência cardíacaCarência em ferro, ácido fólico, vitamina B12, anemia hemolítica
PolicitémiaCianose, irritabilidade, convulsões, cefaleia, icterícia, acidente vascular cerebralCardiopatia cianótica, mucoviscidose, RNMD
NeutropéniaFebre, estomatite, faringite, linfadenopatia, bacteriémiaNeutropénia congénita ou adquirida (por fármacos), leucémia
TrombocitopéniaEquimoses, petéquias, epistaxe, HGIPTI, leucémia
PancitopéniaInfecção, hemorragias, anemiaAplasia medular, LHH
Coagulopatia e
Trombose
Trombose venosa, embolia pulmonar, hematoma, hemorragias das mucosas, hemartroseLúpus, défice de factores de coagulação (antitrombina III, proteínas C,S), factores anómalos (V Leiden, protrombina 20210),
hemofilia, doença de Von Willebrand, CID, doença hemorrágica do RN
Abreviaturas: RNMD: recém-nascido de mãe diabética; HGI: hemorragia gastrintestinal; PTI: púrpura trombocitopénica idiopática; CID: coagulação intravascular disseminada; LHH: linfohistiocitose hemofagocitária (primária/genética ou secundária/adquirida).

Valores de referência e parâmetros hematimétricos

Os Quadros 2 e 3 sintetizam alguns valores de referência dizendo respeito à série vermelha, parâmetros hematimétricos relacionados, e à série branca. Os aspectos referentes a plaquetas e factores de coagulação são abordados no âmbito dos respectivos capítulos.

QUADRO 2 – Valores de referência da série vermelha e hematimetria

Hb (g/dL) Ht (%) VGM (fL) CHGM (% ou g/dL) Rt (%)
Criança Média Limites Média Limites Mínimo Média
Cordão umbilical 16,8 13,7-20,1 55 45-65 110 31-37 5,0
2 semanas 16,5 13,0-20,0 50 42-66 1,0
3 meses 12,0 9,5-14,5 36 31-41 25-35 1,0
6 meses – 6 anos 12,0 10,5-14,0 37 33-42 70-74 25-30 1,0
7 – 12 anos 13,0 11,0-16,0 38 34-40 76-80 25-33 1,0
Adulto
Sexo feminino 14,0 12,0-16,0 42 37-47 80 26-34 1,6
Sexo masculino 16,0 14,0-18,0 47 42-52 80 26-34 1,6
Valores de referência de hemoglobina (Hb), hematócrito (Ht), volume globular médio (VGM) em fentolitros (fL), concentração média de hemoglobina globular (CHGM) em % ou g/dL, e reticulócitos (Rt) em diferentes idades. (Adaptado de Rudolph CD et al, 2011)

QUADRO 3 – Valores de referência de leucócitos em diferentes idades

  Leucócitos/mm3 Neutrófilos (%)Linfócitos (%)Eosinófilos (%)Monócitos (%)
CriançaMédiaLimitesMédia Limites Média Média Média
Cordão umbilical180009000-300006140-803126
2 semanas120005000-2100040 4839
3 meses120006000-1800030 6325
6 meses – 6 anos100006000-1500045 4825
7 – 12 anos80004500-1350055 3825
Adulto       
Sexo feminino75005000-100005535-703537
Sexo masculino16,05000-100005535-703537
A presença de linfócitos indiferenciados (grandes, espiculados, polimorfos, hiperbasófilos) no sangue periférico na proporção de > 4% dos leucócitos totais sugere estimulação por processo infeccioso por vírus (LUC ou Lymphocyte Undifferentiated Cells).
Adaptado de IM Hann et al, e de A Galdó et al (bibliografia).

Seguidamente é estabelecida a definição de determinados parâmetros hematimétricos que permitem classificar as anemias, (abordadas no próximo capítulo):

  • O volume globular médio (VGM) medido em fentolitros (1 fL= 1ì3) obtém-se pelo quociente:
    Ht (volume ocupado pelos eritrócitos ou hematócrito) x 10 / nº de eritrócitos em milhões por mm3.
  • A concentração de hemoglobina globular média (CHGM), em % ou g/dL, obtém-se pelo quociente: Hb (em g/dL) x 100 / Ht (em %).
  • A hemoglobina globular média (HGM), expressa em picogramas (pg), corresponde ao peso médio de Hb contido em cada eritrócito; obtém-se pelo quociente: Hb (em g/dL) / nº de eritrócitos em milhões por mm3. Ao contrário da CHGM, varia não somente em função do conteúdo de Hb por unidade de volume, mas também em função do volume globular: quanto maior o eritrócito, maior o conteúdo de Hb em concentração igual.
  • O valor da contagem de reticulócitos indica a presença de células da série vermelha formadas nas 48 horas anteriores à colheita de sangue; corresponde a cerca de 0,5-1,5% do total de eritrócitos (50.000-75.000/mm3) em situações de normalidade. O chamado índice de produção de reticulócitos (IPR) calcula-se através da fórmula: Nº de reticulócitos por mil eritrócitos x Hb (em g/dL) observada / Hb normal x 0,5. O valor de IPR > 3 sugere hemorragia ou hemólise. (Capítulo 137).
  • Considerando a relação células nucleadas / 100 leucócitos, o valor é zero a partir dos 3 meses, variando entre 3 e 10 pelos 15 dias de vida, sendo ~7 no sangue do cordão.
  • O índice RDW (range deviation width), o índice de dispersão das dimensões eritrocitárias, utilizado para detectar anisocitose (normal entre 11,5 e 14,5%). Deverá estabelecer-se a relação entre VGM e RDW. Este parâmetro, elevado tipicamente em contexto de anemia, constitui também um marcador de inflamação: valor elevado, por ex. nos casos de doenças autoimunes/febre mediterrânica, sépsis, cardite reumática, apendicite, insuficiência cardíaca, etc..
  • O índice de Mentzer obtém-se através do quociente: VGM/eritrócitos (em milhões/mm3). O valor > 13,5 sugere anemia por carência de ferro; < 11,5 sugere traço talassémico; valor entre 11,5-13,5: inconclusivo.
  • O estudo do esfregaço do sangue periférico permite avaliar a morfologia eritrocitária.

Hemostase

A hemostase* no sentido lato é um mecanismo fisiológico complexo destinado a garantir a fluidez do sangue e a impedir a sua saída do leito vascular em caso de lesão vascular.

Este processo dinâmico implica a interacção das plaquetas, da parede vascular, de determinadas proteínas plasmáticas (factores de coagulação e inibidores, de produção hepática ou endotelial) e um sistema fibrinolítico.

As células endoteliais intactas inibem a adesão das plaquetas através da produção de NO e prostaglandina I, que também tem efeito vasodilatador.

As referidas células produzem igualmente factores teciduais (FT), inibidor de FT(TFPI), activador do plasminogénio tecidual(t-PA), antitrombina (AT), trombomodulina, prostaciclina, assim como a proteína de superfície para a activação da proteína C(PC).

Em condições de normalidade é mantida a fluidez sanguínea mediante equilíbrio acção-inibição do sistema hemostático.

No caso de formação de coágulo na sequência de alteração da superfície vascular, existem acções destinadas a evitar a propagação do trombo e a possibilitar o seu desaparecimento uma vez restabelecida a continuidade do endotélio vascular.

Ainda que os distintos mecanismos estejam perfeitamente ligados, sob o ponto de vista de compreensão didáctica é possível a subdivisão em hemostase primária, hemostase secundária/coagulação, e fibrinólise.

A chamada hemostase primária tem como função fundamental a formação do rolhão de plaquetas ou “tampão” hemostático que se gera rapidamente (em 3-5 minutos), especialmente eficaz em vasos de pequeno calibre. Especificando, são então verificados os eventos a seguir referidos.

Nota: *Homeostase (diferente de hemostase) significa tendência do organismo para manter constantes as condições fisiológicas.

Após ruptura da superfície interna do vaso surge vasoconstrição para deter a saída de sangue do vaso; neste processo de vasoconstrição participam as plaquetas mediante a libertação de potentes vasoconstritores (designadamente serotonina e tromboxano A2). Por outro lado, as células endoteliais produzem factor de von Willebrand (FvW), necessário para a adesão das plaquetas à superfície vascular lesada. Após a adesão, as plaquetas são activadas continuando a libertar grânulos contendo ADP, tromboxano A2 e outras proteínas, o que leva à agregação das mesmas. Uma das proteínas da matriz subendotelial contendo colagénio, libertadas pela lesão vascular – o factor tecidual ou FT – liga-se às plaquetas e ao factor VII.

A partir desta fase é activada a chamada cascata da coagulação, a que corresponde a fase da hemostase secundária em que os factores de coagulação, designados em números romanos, são activados. As Figuras 1 e 2 descrevem de modo conciso o processo da hemostase (primária e secundária), o qual pode ser compreendido pela leitura deste texto. O Quadro 4 discrimina a designação dos factores de coagulação.

FIGURA 1 – Hemostase primária: participação fundamental das plaquetas em número e função, e dos microvasos

FIGURA 2 – Hemostase secundária (consultar texto e Quadro 2): participação fundamental dos factores de coagulação

QUADRO 4 – Factores de coagulação

I
II
III
3 PL
IV
V
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII

Fibrinogénio
Protrombina
Tromboplastina, protrombinase, tromboplastina tecidual
Factor 3 plaquetário
Cálcio
Pró-acelerina, factor lábil
Pró-convertina, factor estável
Globulina anti-hemofílica ou factor anti-hemofílico
Componente tromboplastínico do plasma (PTC) – factor de Christmas
Factor de Stuart-Power
Antecedente tromboplastínico do plasma (PTA)
Factor de Hageman
Factor estabilizador da fibrina

Nota: os factores (F) activados são designados pela adição da letra (a), por ex. IIa.

A coagulação é, pois, a transformação duma proteína solúvel (fibrinogénio) numa proteína insolúvel (fibrina), o que implica que a trombina – resultante da transformação da protrombina, activada pelo factor 3 plaquetário e pelo cálcio – actue sobre o fibrinogénio. Neste processo actuam os chamados factores intrínsecos (via intrínseca ou endógena), os factores extrínsecos (via extrínseca ou exógena) e factores comuns às duas vias. Virtualmente todas as proteínas procoagulantes estão em equilíbrio com uma proteína anticoagulante que regula ou inibe a função procoagulante. Há 4 anticoagulantes naturais principais que regulam a extensão do processo de coagulação: antitrombina III (AT-III), proteína C, proteína S, e o TFPI/tissue factor pathway inhibitor ou inibidor da via dos factores teciduais. A AT-III é um inibidor das proteases leucocitárias que regula predominantemente o factor Xa (X activado); em menor grau são igualmente inibidores os factores IXa, XIa e XIIa.

Quando a trombina no sangue circulante contacta com o endotélio intacto, liga-se à trombomodulina, o seu receptor endotelial. O complexo trombina-trombomodulina actua sobre a proteína C que passará à forma activada. Em presença do cofactor proteína S, a proteína C activada promove a proteólise e inactivação do factor Va e factor VIIIa. O factor Va, uma vez inactivado é, de facto, um anticoagulante funcional que inibe a coagulação. O inibidor final é o TFPI, que impede a activação do factor X pelo factor VII e factor tecidual (TF), e desvia o local de activação do TF e do factor VII para o factor IX.

Uma vez formado o coágulo fibrina/plaquetas, o sistema fibrinolítico limita a sua extensão e provoca a lise do mesmo (fibrinólise) restabelecendo a integridade vascular. A plasmina, gerada a partir do plasminogénio, degrada o coágulo de fibrina, do que resulta a formação de produtos de degradação da referida fibrina. A via fibrinolítica é regulada pelos inibidores do activador do plasminogénio e pela alfa-2 antiplasmina. No fígado os complexos de factores de coagulação activados são desmembrados e novas proteínas pró- e anticoagulantes são sintetizadas para manter o equilíbrio do processo descrito.

Alterações da hemostase e semiologia clínica

A alteração de qualquer dos componentes deste complexo sistema pode ocasionar uma doença hemorrágica ou trombótica.

A doença hemorrágica pode resultar de afecção dos vasos, das plaquetas ou dos factores de coagulação. As doenças dos vasos e das plaquetas podem surgir associadas e, sob o ponto de vista semiológico, ambas se manifestam predominantemente ao nível dos pequenos vasos; sob o ponto de vista clínico-etiopatogénico integram, respectivamente, as chamadas púrpuras vasculares (vasculopatias) e púrpuras plaquetares. Ambas traduzem anomalias da hemostase primária. A designação de “púrpura” deriva da cor verificada ao nível da pele.

As púrpuras vásculo-plaquetárias manifestam-se por alterações na coloração da pele ou mucosas, secundárias ao extravasamento de eritrócitos nesses locais. Consideram-se petéquias as lesões hemorrágicas minúsculas, menores que 2 mm, ao nível da derme; e equimoses as maiores que 2 mm, ao nível da hipoderme.

Poderão surgir igualmente epistaxes, gengivorragias, hematúria, hematemeses, melenas, etc..

As púrpuras de causa vascular (não hematológica) traduzem-se por petéquias predominantemente nos membros inferiores, (muitas vezes agravadas pela posição ortostática) e/ou exantema eritemato-papuloso com sede preferente na superfície de extensão dos membros inferiores (mas sem poupar outras regiões), de distribuição simétrica nalgumas formas clínicas.

Como exemplos de púrpuras de causa vascular não hematológica citam-se a vasculite de causa imunoalérgica (por ex. púrpura de Schonlein-Henoch), a associada a lesões traumáticas (por exemplo síndroma da criança maltratada), a associada a síndroma de Ehlers-Danlos, e a telangiectasia, angiodisplasia, varizes, etc.. A abordagem destas situações é feita nas Partes sobre Reumatologia e Osteocondrodisplasias.

Como exemplos de púrpuras de causa hematológica citam-se as situações de trombocitopénia, primárias ou secundárias, abordadas em capítulo especial.

O défice congénito ou adquirido de determinada proteína procoagulante, originando também doença hemorrágica, integra as chamadas coagulopatias ou anomalias da coagulação, traduzindo alteração da hemostase secundária; manifestam-se predominantemente ao nível de grandes vasos. Como tradução clínica, surgem os chamados hematomas (derrames sanguíneos no tecido celular subcutâneo e massas musculares), sufusões (derrames sanguíneos em larga superfície do tecido celular subcutâneo), hemartroses (hemorragias na cavidade articular) e/ou hemorragias viscerais e intracavitárias.

Como exemplos citam-se as coagulopatias primárias (hemofilia, défice de função plaquetária e doença de von Willebrand) e as secundárias (coagulação intravascular disseminada, ingestão de fármacos anticoagulantes, anticonvulsantes maternos, insuficiência hepática, insuficiência renal, doença hemorrágica do recém-nascido por défice de vitamina K, etc.).

De salientar que nas doenças adquiridas da hemostase há frequentemente problemas múltiplos associados. No caso de infecção sistémica com choque e acidose concomitantes verifica-se activação da coagulação e da fibrinólise com impossibilidade de garantir a função hemostática normal. No caso de septicémia grave verifica-se consumo de factores procoagulantes e de anticoagulantes com consequente desequilíbrio da hemostase pendendo, ou para hemorragia excessiva, ou para coagulação excessiva.

O défice congénito ou adquirido de anticoagulante predispõe a trombose ou doença trombótica.

O Quadro 5 resume os exames complementares fundamentais para a avaliação do processo de hemostase com menção, respectivamente, das funções avaliadas e dos valores de referência. (consultar Figura 2)

QUADRO 5 – Avaliação laboratorial nas alterações da hemostase

    • Contagem de plaquetas → Número e morfologia das plaquetas → 150.000-400.000/mmc
    • Fibrinogénio → Fase 3 da coagulação → 200-400 mg/dL
    • Tempo de hemorragia (TH) → Qualidade/função das plaquetas → até 8 minutos
    • Tempo de coagulação (TC) → Vias intrínseca e comum → 3-10 minutos
    • Tempo de tromboplastina parcial activada (PTTa) → idem (factores VIII, IX, X, XI, XII) → 40-50 segundos
    • Tempo de protrombina (PT) → idem (factores V, VII, X, protrombina, fibrinogénio) → 12-15 segundos (#)
    • Tempo de trombina → Fase 3 da coagulação → 10-12 segundos
    • Tempo de lise da euglobina → Acção da plasmina → 90-300 minutos
    • Produtos de degradação do fibrinogénio → Actividade fibrinolítica → até 6,5 μg/mL
      • Na púrpura trombocitopénica: TH → >; Plaquetas → <; PTT → N; TP → N
      • Na púrpura não trombocitopénica: TH → N ou >; Plaquetas → N; PTT → N; TP → N
      • Na coagulopatia primária: TH → N; Plaquetas → N; PTT → >; TP → N ou >

(#) O PT é a prova de coagulação utilizada para avaliar a anticoagulação com varfarina. De acordo com recomendações actuais, deve utilizar-se o chamado INR (International Normalized Ratio) que permite a comparação do PT utilizando larga variedade de reagentes ou instrumentos, e de determinações laboratoriais. No âmbito do tratamento padronizado da doença trombótica o valor a obter para o INR é 2,0-3,0; nos casos de forma homozigótica do défice de proteína C, ou de doentes com próteses valvulares, o valor a atingir para o INR é 3,0-4,0. (ver Capítulo Hipercoagulabilidade e doença trombótica).
> = aumentado; < = diminuído; N = normal
Nota: 1) PT e PTT são siglas em inglês, correspondentes às abreviaturas em português, respectivamente TP e TTP. 2) Para a compreensão dos parâmetros a avaliar sugere-se a revisão da Figura 2 (relação entre parâmetros a medir e factores implicados).

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HEMATOPOIESE

Introdução

A hematopoiese (termo sinónimo de hemopoiese ou hemocitopoiese) é um processo contínuo responsável pela produção dos elementos celulares do sangue e reposição dos elementos senescentes. Com efeito, devido ao mesmo processo, é possível manter um número estável de células circulantes e substituir as que entram em apoptose ou se destroem.

Diariamente são produzidos 200 biliões de eritrócitos, 10 biliões de leucócitos e 400 biliões de plaquetas. Trata-se dum processo dinâmico regulado pelo microambiente ou estroma circundante, formado por elementos celulares produtores de citocinas e factores de crescimento, e por moléculas de adesão que permitem a interacção entre célula e célula e entre célula e matriz extracelular. Factores como infecção, hemorragia, inflamação ou alergia poderão também exercer influência.

Tal processo de desenvolvimento envolve uma série de etapas que se iniciam numa célula com potencialidades de diferenciação – a chamada célula hematopoiética pluripotencial ou estaminal; com efeito, as células estaminais, diferenciando-se, constituem os primórdios de todos os elementos celulares sanguíneos (eritrócitos, vários tipos de granulócitos, monócitos, plaquetas) e de células do sistema imunitário.

Reforçando o que foi dito antes, cabe salientar que existem essencialmente duas ordens de factores que determinam a diferenciação no sentido de determinada linhagem celular: factores moleculares intracelulares (intrínsecos) e factores externos ou extrínsecos (factores de crescimento hematopoiético englobando interleucinas, eritroproietina, trombopoietina e factores de crescimento de colónias de macrófagos e de granulócitos).

A ontogenia e a diferenciação das células hematopoiéticas são controladas, a nível molecular, por numerosos factores de transcrição (SCL, LMO2, FLI1, GATA1, GATA2, RUNX1, CBFB, C-MYB e PU.1). Entre estes, SCL e RUNX1 actuam de forma sequencial na diferenciação precoce para célula precursora endotelial e hematopoiética. As alterações de alguns destes factores de transcrição estão ligadas ao ulterior desenvolvimento de neoplasias hematológicas.

O conhecimento actual sobre a hematopoiese assenta na hipótese de que as células hematopoiéticas pluripotenciais são capazes de se auto-renovar e diferenciar em qualquer linhagem.

Neste capítulo, são descritos aspectos básicos da hematopoiese para melhor compreensão dos problemas clínicos que integram a Parte sobre Hematologia.

Locais de hematopoiese

Durante o desenvolvimento embrionário, o local onde ocorre a hematopoiese varia ao longo do tempo.

A primeira fase é essencialmente extraembrionária (mesoblástica), tendo o saco vitelino um papel fundamental. Esta fase inicia-se entre o 10º e o 14º dia de gestação e consiste essencialmente na produção de progenitores eritróides ou precursores dos eritrócitos de forma a facilitar a oxigenação do embrião em crescimento.

Após o seu desenvolvimento nos ilhéus do saco vitelino, os progenitores eritróides primitivos entram na vasculatura do embrião (fase embrionária), onde continuam a dividir-se. Estes progenitores diferenciam-se produzindo quantidades crescentes de hemoglobina (Hb) e tornando-se progressivamente menos basofílicos.

Na fase seguinte – hepática – esplénica (existe proliferação da linhagem eritróide e mielóide (predomínio eritróide- eritróide/mielóide de 5:1). Durante esta fase, as células progenitoras definitivas migram do saco vitelino para o fígado fetal onde se multiplicam e maturam. O fígado assume esta função a partir da 6ª-8ª semana de gestação e, poucas semanas depois, o baço, mantendo a coexistência das duas localizações até à 20ª-24ª semana.

A migração de progenitores hematopoiéticos para a placenta permite que este órgão, em concomitância, tenha um papel adjuvante na produção de células sanguíneas.

Após a fase hepática/esplénica, o processo passa a ser mais complexo: derivando predominantemente das células pluripotenciais produzidas na região aorta-gónada-mesonéfrica e placenta, a partir do fígado fetal, verifica-se colonização do timo e, por fim, da medula óssea (MO).

A colonização da MO (fase medular, a partir das 22-24 semanas) é feita pela formação de grupos (pools) de células pluripotenciais responsáveis pela manutenção da hematopoiese durante toda a vida, definitiva. A MO fetal começa a produzir leucócitos e plaquetas, só produzindo eritrócitos pelas 28-30 semanas. Assim, no recém-nascido muito imaturo verifica-se hematopoiese extramedular.

No recém-nascido de termo (> 37 semanas), a MO (suporte estrutural e microambiente para a hematopoiese) da quase totalidade dos ossos, constitui o principal local de produção de eritrócitos. Com o crescimento, apenas a MO do esqueleto axial – vértebras, costelas, crânio, ossos da bacia e fémur proximal – mantém actividade hematopoiética (medula vermelha).

Após a puberdade, a hematopoiese fica praticamente restrita ao esqueleto axial. Nos outros ossos, embora com espaço medular preenchido predominantemente por tecido adiposo (medula amarela), é mantida a capacidade hematopoiética.

Na vida adulta, a hematopoiese medular é suficiente para cobrir as necessidades em condições de normalidade. Em caso de doença da MO com insuficiência funcional (por exemplo infecção ou neoplasia), a actividade hematopoiética extramedular pode desenvolver-se novamente (designadamente no fígado e baço).

Etapas da hematopoiese

As células estaminais pluripotenciais encontram-se nos locais de hematopoiese numa proporção de uma célula estaminal para 104 células medulares, podendo ser encontradas em pequena proporção no sangue periférico. As referidas células pluripotenciais, dividindo-se, dão origem a células com uma linhagem de crescimento restrita.

Dois tipos principais de células derivam da célula estaminal pluripotencial:

  • A célula progenitora linfóide que dá origem aos diferentes tipos de linfócitos;
  • A célula mielóide ou progenitora de granulócitos, eritrócitos, monócitos e megacariócitos, que dá origem aos restantes elementos celulares sanguíneos.

Estas células perdem a capacidade de autorrenovação e originam uma linhagem celular específica. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Diferenciação da célula estaminal

Célula estaminal pluripotencial
Célula mielóide: Células progenitoras para cada tipo celular → neutrófilo    
        → Monócito → macrófago
→ Eosinófilo
→ Eritrócito
→ Megacariócito
→ Mastócito
→ Basófilo
Célula linfóide: → progenitor B → precursor B → LB maduro → Plasmócito
" Célula B memória
  → progenitor T → precursor Tc → Tc maduro → Célula T citotóxica
→ Célula T memória
    → precursor Th → Th maduro → Th1
→ Th2
Abreviaturas: LB – linfócito B; Tc – célula T; Th – T helper

As células hematopoiéticas crescem e adquirem estádios de maturação numa rede de células do estroma não hematopoiéticas que incluem adipócitos, células endoteliais, fibroblastos e macrófagos. Com a comparticipação de factores de crescimento é assim criado um microambiente favorável à hematopoiese. A capacidade de determinada célula progenitora se diferenciar no sentido de determinada linhagem depende da aquisição de resposta a certos factores de crescimento, sendo que o microambiente particular no qual a célula progenitora se incorpora contribui para a regulação de tal diferenciação.

Factores de crescimento hematopoiético

Foram identificados vários factores de crescimento hematopoiético:

  • Factor estimulador de colónia multilinhagem (multi – CSF/colony stimulating factor ou IL-3/interleucina – 3);
  • Factor estimulador de colónia de granulócitos e macrófagos (GM -CSF/granulocyte-macrophage – colony stimulating factor);
  • Factor estimulador de colónia de macrófagos (M – CSF/macrophage-colony stimulating factor);
  • Factor estimulador de colónia de granulócitos (G – CSF/granulocyte-colony stimulating factor);
  • Eritropoietina (EPO) que induz o desenvolvimento da chamada EC-FU/erythroid colony-forming unit ou unidade formadora de colónia eritróide, conduzindo sequencialmente à formação dos eritrócitos e regulando a produção dos mesmos;
  • Factor da célula estaminal que, originada na matriz medular, promove a proliferação das células progenitoras de determinada linhagem;
  • Interleucinas (IL), numeradas de 1 a 23, que estimulam a diferenciação de vários tipos celulares;
  • Trombopoietina (TPO) que estimula o crescimento e diferenciação dos progenitores plaquetários.

Estes factores são biologicamente activos, mesmo em concentrações muito baixas.

Os CSF (citocinas produzidas no microambiente da MO por macrófagos, células endoteliais e fibroblastos reticulares) actuam por etapas, induzindo a maturação adequada.

A IL-3 actua precocemente, ao nível da célula pluripotencial, para induzir a formação dos eritrócitos, monócitos, granulócitos (neutrófilos, eosinófilos, basófilos) e megacariócitos. O GM – CSF actua num estádio ulterior e os MCSF e G – CSF, ainda mais tarde.

De referir que a diferenciação de uma célula progenitora verifica-se paralelamente ao processo de expressão progressiva de receptores de membrana celular que são específicos para determinadas citocinas.

Eritrocitopoiese

A eritrocitopoiese (ou eritropoiese) corresponde à produção e desenvolvimento de glóbulos vermelhos maduros (eritrócitos). Inicia-se, tal como todas as outras células, com a célula estaminal pluripotencial.

A primeira célula que é reconhecida e pré-determinada para conduzir especificamente ao desenvolvimento de eritrócitos, é o pró-eritroblasto (citoplasma basófilo, cromatina laxa e nucléolos). Com o desenvolvimento, o respectivo núcleo torna-se mais pequeno e o citoplasma mais basófilo devido à presença de ribossomas.

Nesta fase a célula, diminuindo progressivamente de dimensões, é designada por eritroblasto basófilo. Posteriormente, o citoplasma capta coloração básica e eosina, pelo que a mesma se passa a chamar eritroblasto policromatófilo (maior condensação cromatínica, citoplasma de tonalidade intermédia entre a basófila e a acidófila). O citoplasma torna-se, entretanto, mais eosinofílico e a célula passa a chamar-se eritroblasto ortocromático (máxima condensação cromatínica, citoplasma acidófilo); perdendo o seu núcleo, entra na circulação como reticulócito, sendo que o citoplasma se mantém acidófilo.

A designação de reticulócito é explicada pelo aspecto de redes de polirribossomas que exibe; de referir que tal precursor altamente especializado do eritrócito tem papel fundamental na formação de cadeias de globina, de heme e de enzimas glicolíticas; o ferro acoplado à transferrina, ligando-se aos receptores desta no mesmo reticulócito, é incorporado no heme que, por sua vez, se combina com a globina (com 4 cadeias de polipéptidos designadas por letras do alfabeto grego: alfa, beta, delta, gama, ou α, β, δ, γ) para formar a hemoglobina. Perdendo os ribossomas, o reticulócito torna-se glóbulo vermelho maduro (eritrócito).

Durante a vida embrionária e fetal os genes da globina são sequencialmente activados e inactivados. A hemoglobina (Hb), produzida durante o período de eritropoiese operada no saco vitelino, é mais tarde substituída pela hemoglobina fetal (hemoglobina F- com cadeias de globinas; 2α e 2γ) na fase de eritropoiese hepática. Durante o terceiro trimestre da gestação, diminuindo a produção de cadeias gama, estas são substituídas por cadeias β, do que resulta a hemoglobina A, com 2 cadeias α, e 2 cadeias β. Nos casos de gravidez decorrendo com diabetes materna poderá verificar-se atraso na produção de cadeias beta. Os eritrócitos fetais são diferentes dos eritrócitos das crianças maiores quanto a teor em enzimas (menor) e quanto a deformabilidade (menor) da respectiva membrana.

O tempo de vida médio do eritrócito em circulação no adulto e crianças mais velhas é 100 a 120 dias; na criança mais pequena tal período é inferior; no recém-nascido de termo, 60 a 90 dias, e no pré-termo, 35 a 50 dias. Estas diferenças ocorrem por imaturidade metabólica. No final deste período a célula é removida para o baço e submetida a fagocitose.

Todo este processo é, como foi referido, regulado pela eritropoietina, hormona (glicoproteína) produzida no rim como resposta à hipóxia dos tecidos; no feto, o valor elevado de hemoglobina resulta da produção de eritropoietina (no fígado, neste caso), como resposta ao valor baixo da pressão do oxigénio (PO2) durante a vida intrauterina.

Durante os primeiros meses da vida pós-natal o crescimento rápido, a vida média encurtada dos eritrócitos e o processo de menor actividade da eritropoiese, originam um declínio progressivo dos níveis de hemoglobina, atingindo-se os valores mais baixos por volta das 8-10 semanas; é o chamado nadir fisiológico, o qual é mais precoce e mais acentuado se o parto tiver ocorrido prematuramente (gravidez encurtada).

Como resposta à diminuição da hemoglobina e ao consequente défice de oxigenação tecidual, verifica-se uma “retoma” da eritropoiese por estimulação da eritropoietina; tal “retoma” é traduzida pelo aumento do número de reticulócitos circulantes, aumentando, entretanto, de modo gradual o nível de hemoglobina com incremento de produção de Hb A (que compreende o tipo A1 e o tipo A2). Pelos seis meses de idade, nas crianças saudáveis, a síntese de cadeias gama (γ) (que faz parte da Hb F) é vestigial. (ver adiante)

Notas importantes:

  • As células eritróides dos embriões humanos contêm hemoglobinas chamadas Gower 1, Gower 2, e Portland cujas propriedades funcionais não estão completamente desclarecidas. Ambas as hemoglobinas Gower predominam entre a quarta e oitava semana, desaparecendo no final do primeiro trimestre, quando a síntese de HbF (2 alfa e 2 gamaà α2 γ2) se inicia;
  • Admite-se que a HbF embrionária facilita a transferência transplacentária de oxigénio durante a vida intrauterina dada a elevada afinidade para o oxigénio relativamente à HbA;
  • O papel da HbF na transferência de oxigénio no feto em crescimento tem sido amplamente estudado;
  • Os níveis de Hb F diminuem ao longo do primeiro ano de vida. Contudo tal declínio poderá não se verificar em situações anómalas, as quais serão abordadas noutros capítulos;
  • Por outro lado, determinadas alterações estruturais da Hb estão na base de determinadas entidades clínicas, também objecto de descrição adiante.

Em resumo, em situações de normalidade a proporção das várias hemoglobinas, numa perspectiva cronológica, é a seguinte: no recém-nascido: Hb F 50-88% e Hb A1 20-40%; neste momento é excepcional a presença de Hb A2. Por volta dos 5 meses encontra-se 3-15% de Hb F, no segundo semestre cerca de 2,9%, no segundo ano 1,8%, no terceiro ano 1%, e no quarto ano 0,8%. À medida que a Hb desce, verifica-se aumento progressivo de Hb A1 em cada eritrócito. Por volta do quarto ano, a composição hemoglobínica do indivíduo é a seguinte: Hb A1 – 96 a 98%; Hb A2 – 1 a 3%; Hb F – vestigial.

Recorde-se também a designação das cadeias de globinas nas várias hemoglobinas normais segundo o critério cronológico atrás definido: todas as Hb normais têm 2 cadeias α; Hb A1: α2 e β2 – (fórmula: α2 β2); a Hb F possui 2 cadeias α e 2 γ – (fórmula: α2 γ2); a Hb A2 possui duas cadeias α e duas cadeias δ – (fórmula: α2 δ2).

Linfocitopoiese

O progenitor linfóide comum consegue gerar todas as células linfóides (T, B e NK).

A primeira célula morfologicamente reconhecível como pertencente à linhagem linfóide é o linfoblasto. Este divide-se 2 a 3 vezes para formar o promielócito. O promielócito diferencia-se em linfócito B ou T maduro.

As células da estirpe B são reconhecíveis no fígado fetal a partir da 9ª semana de gestação. A diferenciação do progenitor B até ao estádio de linfócito maduro completa-se na medula óssea com migração ulterior para órgãos linfáticos (gânglios linfáticos, baço e amígdalas). Somente ocorre diferenciação em plasmócito ou célula B de memória após exposição antigénica.

Até à semana 15, cerca de 70% dos linfócitos hepáticos são CD34+, CD10+, e alguns deles coexpressam CD5. A expressão de CD19 e CD20 é ulterior.

As células da estirpe T surgem no fígado até à 7ª semana (CD7+ e CD3+); as mesmas colonizam o timo entre a 7ª e 9ª semanas, e o baço e medula óssea (MO) pelas 13ª e 14ª semanas. Neste momento produz-se um aumento dos linfócitos T no sangue periférico e no fígado fetal, o que reflecte a maturação do timo.

A expressão de CD4 e CD8 produz-se entre as 12ª e 16ª semanas.

Aspectos cronológicos importantes:

  • O timo surge por volta das 8 semanas. Os linfócitos constituem 95% das células tímicas por volta da 10ª semana;
  • Os gânglios linfáticos surgem cerca das 11 semanas. Os primeiros linfócitos migram para os gânglios linfáticos cerca de 1 semana depois;
  • As NK surgem no fígado na quinta semana. Por volta da sexta semana 5-8% das células hepáticas são linfócitos NK, aumentando para 15-25% pela 18ª semana;
  • Cerca de 10-15% dos linfócitos do cordão são NK. Efectivamente, o fígado fetal contém células precursoras capazes de produzir todas as células do sistema imunitário.

Granulocitopoiese

A granulocitopoiese corresponde ao processo de desenvolvimento dos glóbulos brancos granulócitos – neutrófilos, eosinófilos e basófilos.

O primeiro precursor identificável ou elemento diferenciado no sentido da granulocitopoiese é o mieloblasto. Seguem-se os estádios de promielócito, mielócito, metamielócito e bastonete (núcleo em crescente ou em U).

A maturação dos neutrófilos dura aproximadamente sete a oito dias. As células maduras permanecem na medula durante cinco dias, sendo posteriormente libertadas para a circulação sanguínea. Após circularem durante cerca de seis horas, migram para os tecidos periféricos onde sobrevivem dois a cinco dias (nesta fase maturativa verifica-se segmentação do núcleo: polissegmentos ou lobos (formação do granulócito segmentado).

Salienta-se que somente os bastonetes e os neutrófilos maduros têm capacidade funcional plena com respeito à fagocitose, quimiotaxia e destruição bacteriana.

Quando se verifica aumento do número de bastonetes diz-se que há “desvio à esquerda”.

A partir da 14ª semana, e até ao nascimento, o granulócito mais frequente na MO é o neutrófilo. Os factores estimuladores de colónias de granulócitos e dos macrófagos começam a ser expressos na MO às 6 semanas, e no fígado às 8 semanas.

O sangue do feto tem escassez de neutrófilos até ao terceiro trimestre.

Pelas 20 semanas o valor de neutrófilos situa-se entre 0 e 500/mm3. De salientar que a produção fetal do G-CSF é baixa, embora o número de receptores no RN seja igual em número e afinidade aos do adulto.

Monocitopoiese

A primeira célula identificável “destinada” ao desenvolvimento de monócitos é o monoblasto. Este evolui para promonócito e, posteriormente, para monócito maduro. O monócito maduro, pouco depois de ser formado, entra em circulação onde permanece três dias. Posteriormente, migra para os tecidos, não voltando à corrente sanguínea.

Trombocitopoiese

A primeira célula identificável que dá origem às plaquetas é o megacarioblasto. Este duplica o seu núcleo e citoplasma até 7 vezes, sem que ocorra divisão celular. Forma-se, assim, o megacariócito.

O megacariócito é uma célula gigante, com pseudópodos, a qual se identifica como célula maior num aspirado de medula; é multinucleada, sendo o seu conteúdo em ADN superior, cerca de 15 a 30 vezes, ao conteúdo de ADN numa célula em geral.

As plaquetas derivam dos megacariócitos, formando-se por invaginação da respectiva membrana celular com ulterior fragmentação do citoplasma, do qual se destacam. Tal como os reticulócitos, não têm núcleo, sendo o tempo de vida médio em circulação, também, de sete a dez dias.

As plaquetas aderem ao endotélio lesado com o concurso de receptores, factor de von Willebrand e fibrinogénio; para o processo de adesão e agregação também concorrem grânulos específicos libertados pelas mesmas plaquetas.

 Apoptose

A hematopoiese é um processo contínuo ao longo da vida. A produção de células sanguíneas maduras é equivalente à sua perda. Este processo é regulado por mecanismos complexos. A divisão e diferenciação celulares durante a hematopoiese equilibra-se com o processo da chamada apoptose (morte celular programada), para garantir a normalidade funcional do organismo.

Durante a apoptose há diminuição do volume celular, alteração do citoesqueleto com mudança na conformação da membrana, condensação da cromatina, degradação do ADN, aparecimento de corpos apoptóticos e fagocitose rápida dos mesmos para evitar a inflamação. Quando a apoptose falha desenvolve-se um estádio leucémico. (Parte XVII)

Volume sanguíneo (Volémia)

O valor da volémia no recém-nascido de termo e pré-termo é respectivamente 85 mL/kg e 90 mL/kg. Após o 6º mês de vida extrauterina são atingidos valores semelhantes aos de crianças maiores e adultos: 75-77 mL/kg.

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TUMORES DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL

Aspectos epidemiológicos

Os tumores cerebrais primários, originando-se em células progenitoras do cérebro ou espinhal medula, no seu conjunto são a segunda neoplasia mais frequente em idade pediátrica, logo a seguir às leucemias. A sua incidência ronda os 40 novos casos por 1.000.000 de menores de 15 anos.

No seu todo, podemos encontrar neoplasias de baixo grau de malignidade, e outras de uma agressividade tal que se colocam entre as mais malignas em Oncologia.

Determinadas síndromas hereditárias, incluindo neurofibromatose (tipos 1 e 2), síndroma de Li-Fraumeni, esclerose tuberosa, síndroma de Turcot e síndroma de von Hippel-Lindau comportam risco elevado de tumor do SNC.

O sistema nervoso central na idade pediátrica apresenta particularidades, entre as quais se destacam o seu crescimento e maturação, decorrendo daqui uma diferença fundamental entre as patologias e terapêuticas nesta idade e na idade adulta. A radioterapia, por exemplo, terapêutica habitual nos adultos, poderá não ter indicação formal nesta população considerando os efeitos secundários que determina a nível cognitivo.

Manifestações clínicas e exames complementares

No âmbito da avaliação clínica, a anamnese e o exame físico (incluindo exame neurológico com fundoscopia e estudo dos campos visuais) são fundamentais.

As cefaleias são o sintoma mais frequente numa criança com tumor cerebral. No entanto, dada a frequência desta queixa na população em geral, torna-se muito importante reconhecer as suas características específicas que são as da hipertensão intracraniana: cefaleias em regra nocturnas ou matinais; por vezes associadas a irritabilidade e prostração; melhorando ao longo do dia e repetindo-se diariamente. Ao progredirem, são quase sempre acompanhadas de vómitos matinais, tipicamente pré-prandiais.

A identificação de sinais de localização do tumor, tais como hemiparésia ou afasia, não é habitual nesta população. Por exemplo, um dos tumores mais frequentes, o glioma das vias ópticas, manifesta-se por perda da acuidade visual unilateral. No entanto, a idade não permite que a criança colabore no diagnóstico, já que a maior incidência do referido tumor se verifica abaixo dos 3 anos.

A crise epiléptica como forma de apresentação clínica não é frequente. Tal manifestação traduz-se geralmente por crises parciais, por vezes com uma semiologia atípica, como sejam as crises uncinadas (sensação de cheiro desagradável) dos tumores da face interna do lobo temporal.

Os tumores do cerebelo estão associados a ataxia e alteração na coordenação.

O Quadro 1 resume os sinais típicos de hipertensão intracraniana (HIC).

QUADRO 1 – Sinais de HIC

• Vómitos matinais
• Edema da papila
• Cefaleias nocturnas /matinais
• Estrabismo (paralisia do VI par)
• Nistagmo
• Ataxia

Perante a suspeita de lesão expansiva do SNC considera-se hoje a ressonância magnética cranioencefálica o exame de imagem de eleição. Em situação de emergência, pela maior facilidade de execução, a TAC cranioencefálica constitui uma alternativa. Nos casos de suspeita de HIC, qualquer destes exames de imagem deverá preceder obrigatoriamente uma eventual punção lombar (indicada para estudo do LCR, designadamente no âmbito da avaliação histológica/citocentrifugação, para detecção de doença metastática).

O exame de imagem revela, em mais de metade dos casos, sinais de tumor localizado na fossa posterior, condicionando hidrocefalia aguda.

Nos casos de tumores com elevada potencialidade metastática, como o meduloblastoma (ver adiante), torna-se necessário proceder ao estudo imagiológico cranioencefálico e espinhal total, assim como a estudos imagiológicos sistémicos (radiografia do tórax e ecografia abdominal).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial das situações que se comportam clinicamente como massas intracranianas inclui tumores benignos e malignos do SNC, malformações arteriovenosas, aneurisma, cisticercose, doenças granulomatosas (tuberculose, sarcoidose), hemorragia intracraniana, pseudotumor cerebri, e tumor metastático.

Tratamento e tipos histológicos

Meduloblastoma

É o tumor mais frequente na criança, com localização na fossa posterior, no vermis do cerebelo. O seu nome tem origem na célula pluripotencial, seu ponto de partida.

Histologicamente, faz parte dos tumores de células pequenas redondas e azuis, como os tumores da família dos sarcomas de Ewing/PNET extracranianos.

A abordagem terapêutica actual destes tumores, de elevada malignidade, passa por uma remoção cirúrgica, o mais alargada possível, seguida de radioterapia sobre o leito tumoral e todo o SNC (cérebro e medula espinal) e, finalmente, quimioterapia. Com esta abordagem, é possível uma sobrevivência aos cinco anos de cerca de 70%.

Observam-se, frequentemente, sequelas importantes nos sobreviventes, sobretudo a nível endócrino e no desempenho cognitivo, tanto mais acentuadas quanto mais novos forem os doentes.

Astrocitoma pilocítico

Trata-se de um tumor com múltiplas localizações no SNC. Se histologicamente é um tumor de baixo grau de malignidade, na clínica a sua malignidade advém do facto de se encontrar em certas localizações que o tornam irressecável. As duas localizações mais frequentes ilustram este aspecto: se, por um lado, a localização cerebelosa permite uma remoção total sem sequelas major e a cura, já a localização nas vias ópticas torna impossível uma cirurgia eficaz sob pena de défices inaceitáveis.

Globalmente, a sobrevivência média aos cinco anos ultrapassa os 70%.

Também nestes tumores a terapêutica passa por longos protocolos de quimioterapia (são tumores de crescimento lento), cirurgia e, por vezes , radioterapia.

Importa assinalar a associação muito frequente deste tipo histológico, na localização das vias ópticas, com a neurofibromatose de tipo I.

Ependimoma

Este tumor, cuja célula de base é a célula do revestimento do sistema ventricular, tem a sua localização mais frequente na fossa posterior (IV ventrículo). Por isso, confunde-se imagiologicamente com o meduloblastoma. Existem diversos graus de malignidade, sendo mais frequentes os tumores menos anaplásicos, o que não invalida o facto de poderem metastizar, tal como o meduloblastoma.

A abordagem terapêutica actual assenta, em primeiro lugar, numa tentativa de remoção total, seguida de radioterapia sobre o leito tumoral, ou sobre todo o SNC se houver disseminação leptomeníngea; e quimioterapia.

É difícil avaliar a sobrevivência média porque nas séries mais antigas a definição de remoção total era complicada pela ausência de métodos de imagem precisos, como é o caso da ressonância magnética. A importância duma remoção total como principal factor prognóstico leva muitos neurocirurgiões a tentarem uma segunda abordagem cirúrgica quando a ressonância magnética revela tumor residual depois de uma primeira intervenção.

Glioma maligno

Este é, sem dúvida, o grupo de tumores com pior prognóstico.

Com origem nas células da glia – astrócito e oligodendrócito – existem vários tipos histológicos. Trata-se de um grupo com clara tendência para a indiferenciação pelo que, com a evolução no tempo, todos atingem o tipo histológico mais maligno de glioblastoma multiforme. Na data do diagnóstico pode encontrar-se um astrocitoma, um astrocitoma anaplásico, um glioblastoma multiforme, um oligodendroglioma, um oligodendroglioma anaplásico, ou tumores mistos com ou sem anaplasia, na grande maioria de localização supratentorial.

A abordagem terapêutica com cirurgia, radioterapia e quimioterapia resulta em sobrevivências de 1 a 3 anos. Existem dúvidas quanto à terapêutica dos tumores de menor grau de malignidade. O risco de recidiva é grande, dado o carácter infiltrativo que dificulta a remoção total.

Uma breve referência aos gliomas do tronco cerebral, de evolução rápida, conduzindo a défices neurológicos graves, evidentes já no momento do diagnóstico. Trata-se, em regra, de glioblastomas que, pela sua localização, não se biopsiam. Até ao momento, apesar das múltiplas terapêuticas experimentais, não se conseguiu alterar um dos prognósticos mais sombrios, em que a sobrevivência é, em regra, inferior a um ano.

Tumores de células germinativas

Têm como base células da linhagem germinativa que se podem encontrar no SNC em duas localizações típicas: hipotálamo/quiasma óptico e glândula pineal.

Dividem-se em dois grupos: germinomas puros e tumores secretores – coriocarcinoma, carcinoma embrionário, tumor do saco endodérmico e teratoma. A designação « secretora » deve-se ao facto de estes tumores produzirem marcadores (alfa-fetoproteína e beta HCG) que se encontram no soro e liquor. O germinoma é menos agressivo, sendo também o mais frequente (2/3 dos casos).

A terapêutica convencional do germinoma é a radioterapia do tumor e de todo o SNC. Quanto aos tumores secretores, tem-se tentado combinações de quimioterapia seguida de radioterapia, com resultados menos animadores.

Notas finais sobre o tratamento dos tumores do SNC

  1. O tratamento deste tipo de patologia deve ser individualizado em função da localização, histologia, dimensões e sintomatologia associada.
  2. Em muitos casos, a administração imediata de dexametasona em doses elevadas, após confirmação diagnóstica, pode ser eficaz quanto à redução do edema acompanhante do tumor.
  3. No âmbito da terapêutica cirúrgica, o objectivo é proceder à excisão completa do tumor, o mais radical possível.
  4. A correcta caracterização histológica é fundamental para definir estratégias terapêuticas.
  5. No âmbito de recentes avanços no diagnóstico e tratamento, importa salientar duas linhas de investigação em fase experimental: 1-imunoterapia, com base no efeito citotóxico do sistema imune, utilizando células T activadas, que atravessam a barreira hematoencefálica; e 2 -biologia molecular, permitindo maior rigor no diagnóstico e personalização da terapêutica.

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TUMOR DE WILMS E OUTROS TUMORES RENAIS

1. TUMOR de WILMS

Definição e aspectos epidemiológicos

O tumor de Wilms, descrito em 1899 pelo cirurgião alemão Max Wilms, também designado nefroblastoma, é o tumor renal e o tumor abdominal maligno mais frequente na criança, representando cerca de 5% dos tumores pediátricos. É um tumor de origem embrionária, histologicamente formado por três elementos (estroma, blastema e elementos epiteliais, em proporções variáveis), e com um grau de maior ou menor malignidade. Pode ser detectado no RN.

Atinge o pico de incidência pelos dois a três anos de idade, embora se possa encontrar em qualquer outro grupo etário pediátrico.

Etiopatogénese

Em cerca de 1-2% dos casos existem antecedentes familiares desta patologia (hereditariedade autossómica dominante). Em cerca de 20% dos casos foram demonstradas mutações no gene WT1 localizado em 11p 13.

Este tumor, considerado um exemplo da teoria de Kudsen, origina-se por perda funcional de alguns antioncogenes que actuariam frente à activação de determinados oncogenes.

As mutações produzindo inactivação do gene WT2 podem provocar a perda de restos nefrogénicos que, por mecanismos ainda desconhecidos, se podem transformar em tumor de Wilms.

Outros genes em 11p15 (WT2)WTX no cromossoma X, e nos 16q, 1p, e 7p têm também sido implicados. Contudo, a predisposição genética para tumor de Wilms é heterogénea. Uma característica genética designada pela sigla LOH (do inglês – loss of heterozygosity ou perda de heterozigotia), se verificada ao nível dos cromossomas 1p ou 16q, está asociada a maior risco de recaídas, agravando o prognóstico.

Cabe referir, a propósito, entre outras, 3 síndromas associadas a tumor de Wilms, por sua vez acompanhadas de anomalias cromossómicas e génicas que se relacionam com o mesmo tumor:

  1. Síndroma de Beckwith – Wiedemann (macroglóssia, hemi-hipertrofia, onfalocele, visceromegália) em que existe risco (de 3-5%) de tumor de Wilms; uma das anomalias consiste em deleção 11p 15.5 (locus WT2);
  2. Síndroma de Denys – Drash (insuficiência renal precoce associada a esclerose mesangial, pseudo-hermafroditismo masculino) associada a mutações no gene WT1;
  3. Síndroma WAGR (atraso mental, aniridia, anomalias génito-urinárias) associada a deleção 11p 13 (loci WT1), onde também se localiza o gene PAX6).

Manifestações clínicas

Muitas vezes o tumor é assintomático, sendo a mãe ao cuidar do filho, ou o médico em exame de rotina, que palpa o tumor localizado num dos flancos, de consistência dura e de limites precisos. Com localização inicial lombar, desenvolve-se rapidamente no sentido póstero-anterior, simulando por vezes hepatomegália ou esplenomegália. Em cerca de 5% dos casos desenvolve-se bilateralmente. O tumor, que está contido pela cápsula do rim, é friável, pelo que a palpação deve ser cuidadosa.

Quando sintomático, a dor e a hematúria macroscópica são as manifestações mais frequentes.

A hipertensão arterial associa-se frequentemente ao tumor de Wilms pelas alterações vasculares renais por ele provocadas; contudo, raramente é manifestação responsável pelo diagnóstico. Salienta-se que pode ainda aparecer associado a alterações morfológicas como criptorquídia, hipospádia, aniridia ou hemi-hipertrofia.

Diagnóstico

Perante uma criança com dois ou três anos de idade com um tumor abdominal, o diagnóstico diferencial é feito, principalmente, entre tumor de Wilms e neuroblastoma. Os estudos de imagem são geralmente conclusivos porque: – o tumor de Wilms é, em regra, um tumor intrarrenal, mais lateral; e – o neuroblastoma abdominal, tendo como ponto de partida a suprarrenal ou os gânglios simpáticos para vertebrais, é mais central com tendência para expansão centrífuga.

No tumor de Wilms os estudos de imagem mais informativos são: – a ecografia abdominal com doppler; – a tomografia axial computadorizada (TAC) abdominal; e – a radiografia do tórax.

ecografia confirma a existência de um tumor renal, informa sobre a sua estrutura sólida ou quística, detecta a existência de calcificações (em ~15% dos casos), de adenomegálias regionais ou de metástases hepáticas. Permite também verificar o grau de permeabilidade dos grandes vasos, assim como a eventual presença de trombo na veia renal e na veia cava inferior.

TAC com injecção de produto de contraste confirma a existência do tumor e permite uma definição mais precisa da sua localização e dos seus limites, bem como da capacidade funcional do rim atingido. Permite, igualmente, examinar o rim oposto, excluindo a existência de tumor bilateral.

radiografia do tórax permite detectar sinais de metástases nos pulmões que, com o fígado, constituem os locais mais frequentes de metastização. Alguns centros oncológicos privilegiam a TAC torácica em detrimento da radiografia convencional para detecção de metastização pulmonar, já que o seu poder de resolução é maior, embora o risco de falsos positivos seja significativo.

ressonância magnética (RM) tem adquirido importância crescente por não empregar radiações ionizantes. Sobre as vantagens em relação com a TAC, apontam-se: o maior poder de resolução permitindo distinguir tumores de alta ou baixa celularidade (com a RM quantitativa); e a possibilidade de detecção de lesões de nefroblastomatose e de tecido necrótico em função da captação do contraste.

SIOP (Société Internationale d’Oncologie Pédiatriqueconsidera três grupos de risco (baixo, intermédio e alto) em função do tipo histológico: – Baixo: nefroma mesoblástico; nefroblastomas quístico diferenciado em parte; e nefroblastoma necrótico por completo; – Intermédio: nefroblastomas de tipos epitelial, estromal, misto, regressivo e com anaplasia focal; – Alto: nefroblastomas de tipo blastémico ou com anaplasia difusa; sarcoma renal de células claras; e tumor rabdóide.

Tratamento

O tumor de Wilms é quimio e radiossensível. A terapêutica é, como na generalidade dos tumores sólidos, constituída por cirurgia, quimioterapia e, por vezes, radioterapia.

Na maioria dos centros oncológicos dos EUA a cirurgia é a primeira atitude terapêutica. Na UE em geral, a cirurgia só é inicial em lactentes com menos de 6 meses, em que a probabilidade de se tratar de tumor renal benigno é grande, ou quando, por qualquer razão, há dúvida sobre o diagnóstico. Se assim não for, a terapêutica inicia-se com quimioterapia, sendo a cirurgia protelada (quimioterapia neoadjuvante). Esta estratégia, entre outras vantagens, permite prioritariamente reduzir o volume tumoral, tornando a cirurgia mais fácil.

A radioterapia é hoje reservada para os estádios mais avançados em que, após a cirurgia, se verificou tumor residual, ou em que houve ruptura da cápsula do rim, ou ainda para os tumores cujo tipo histológico é desfavorável.

Prognóstico

A probabilidade de cura de uma criança com tumor de Wilms é actualmente de 90%, sendo preocupação dos protocolos actuais de tratamento a redução da toxicidade, sem prejudicar estes excelentes resultados. (ver alínea Etiopatogénese – critério genético LOH associado a prognóstico mais reservado).

De acordo com a SIOP foi estabelecida uma classificação em estádios – de I a V) (estadiamento) dependendo da localização do tumor e da sua invasão das estruturas vizinhas. No estádio I o tumor está localizado ao rim; o estádio IV corresponde à existência de sinais de metástases por via hematogénica (pulmão, fígado, osso, SNC), ou ganglionar (região abdominopélvica); o estádio V corresponde à verificação de tumores renais bilaterais no momento do diagnóstico, sendo que, a cada um dos tumores, poderá ser atribuída a classificação segundo o tipo histológico (ver atrás).

As possibilidades de cura de uma criança com tumor de Wilms nos EUA e UE, e nos países ditos desenvolvidos em geral, é cerca de 90%.

2. OUTROS TUMORES RENAIS

Os restantes tumores malignos do rim são muito raros em idade pediátrica. Em breve síntese cabe uma referência aos seguintes: sarcoma de células claras, tumor rabdóide, nefroma mesoblástico congénito e carcinoma renal.

Sarcoma de células claras

Trata-se do segundo tumor renal mais frequente, correspondendo a cerca de 5% das neoplasias renais. Predominando no sexo masculino, é mais comum apresentar-se nas primeiras idades (2-3 anos).

Dum modo geral, o prognóstico é mais reservado relativamente ao tumor de Wilms, o que obriga a regimes terapêuticos mais intensivos. Na sua forma clínica mais típica, metastiza no osso e SNC.

Tumor rabdóide

Tal como no anterior, surge nas primeiras idades. O seu nome deriva do facto de o citoplasma celular ser predominantemente acidófilo, com semelhanças ao dos rabdomioblastos. Contudo, não evidencia positividade para os marcadores imuno-histoquímicos dos miócitos esqueléticos.

Na sua base etiopatogénica está a inactivação do gene HSNF5/IN11 do cromossoma 22q11-12, do que resulta ausência da proteína IN11, a qual intervém na desregulação do ciclo celular. Podendo ter outras localizações para além da renal, este tipo de tumores obriga a quimioterapia e radioterapia intensivas.

Nefroma mesoblástico congénito

Este tumor aparece predominantemente em lactentes, dum modo geral com comportamento benigno. Com três padrões histológicos (formas clássica, variante celular, e mista), tem indicação cirúrgica.

Carcinoma renal

Mais frequente no adulto, corresponde na idade pediátrica a 5% dos tumores malignos, com início de manifestações mais tardias relativamente ao tumor de Wilms, cerca dos 10 anos de idade.

Em cerca de 30% dos doentes com esta afecção, foi identificada translocação genética implicando o gene TFE3 do cromossoma Xp11.2 ou do gene TFEB no cromossoma 6p21.

Como esta neoplasia é resistente à quimioterapia e radioterapia, está indicada a cirurgia como tratamento.

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NEUROBLASTOMA

Introdução

Os tumores neuroblásticos (neuroblastoma, ganglioneuroblastoam e ganglioneuroma) derivam das células pluripotenciais da crista neural que emigram no período embrionário para formar os gânglios simpáticos e a medula suprarrenal. Daí, a sua grande diversidade quanto a localizações anatómicas e a manifestações clínicas.

Definição e aspectos epidemiológicos

O neuroblastoma é, pois, uma neoplasia de origem embrionária com ponto de partida nas células da crista neural. Com uma prevalência de 1/7.000 nados-vivos, constitui o tumor sólido mais frequente no lactente, e o segundo na primeira década da vida, logo depois dos tumores do SNC. Representa cerca de 10% dos tumores malignos na idade pediátrica.

O uso sistemático da ecografia durante a gravidez e no período pós-natal tem permitido o diagnóstico pré-natal e pós-natal imediato dum número crescente de neuroblastomas.

Etiopatogénese

A etiopatogénese do neuroblastoma é desconhecida. De referir a ocorrência de mutações no gene PHOX2B (regulador do desenvolvimento neuronal autonómico), em casos de associação deste tipo de tumores a situações caracterizadas por alterações do desenvolvimento da crista neural (neurocristopatias), como neurofibromatose do tipo 1, síndroma de hipoventilação central e doença de Hirschprung, as quais poderão ser consideradas factores predisponentes.

Por outro lado, mutações genéticas no cromossoma 6p22 estão associadas a risco aumentado de neuroblastoma.

Reportando-nos à teoria de Knudson (ver atrás), cabe referir que a maioria dos casos familiares/hereditários se relaciona com mutações no gene ALK.

A diversidade do comportamento evolutivo do neuroblastoma (adiante salientada) poderá ser explicada pela expressão dos receptores de neurotrofina, determinada geneticamente.

Os grupos de investigação sobre o neuroblastoma consideram importante para o prognóstico – adiante abordado – valorizar a eventual amplificação do oncogene N-myc.

Manifestações clínicas

O espectro clínico é muito variável, existindo muitas interrogações pelo seu comportamento, por vezes, enigmático.

Na verdade, enquanto alguns neuroblastomas metastizados, com repercussão grave inicial sobre o estado geral do doente, podem regredir, espontaneamente ou tratados com quimioterapia de curta duração, pelo contrário, outros neuroblastomas, em estádios mais localizados e sem aparente repercussão geral podem progredir inexoravelmente, apesar dos tratamentos efectuados.

E, quando se fala em evolução do neuroblastoma, importa ainda salientar a evolução possível, quer para ganglioneuroma, benigno, quer para doença com metástases.

De acordo com a sua origem embrionária, o tumor primitivo localiza-se ao longo das estruturas nervosas simpáticas; mais frequentemente no abdómen, na glândula suprarrenal ou ao longo da goteira paravertebral; outras vezes, no tórax, mediastino posterior; mais raramente, na região cervical ou pélvica.

No abdómen, o tumor pode atingir dimensões apreciáveis antes de originar sinais e sintomas. Os mais frequentes são a dor e a distensão abdominal que se manifestam numa criança em regra emagrecida e com aspecto de doença grave, já que, geralmente, a doença se apresenta num estádio avançado.

No tórax, as manifestações são respiratórias, circulatórias ou neurológicas (síndroma de Claude Bernard Horner, por exemplo), devido à compressão das estruturas anatómicas pelo tumor. Nalguns casos, porém, poderá ser um achado ocasional numa radiografia do tórax.

Na região cervical, uma massa tumoral, associada ou não a dor, é o sinal mais frequente.

Como resultado da localização na pelve, surgem alterações do trânsito intestinal ou queixas urinárias, resultantes da compressão do recto ou da bexiga.

Mas, independentemente das localizações anatómicas anteriormente referidas, tratando-se de um tumor paravertebral, pode sempre manifestar-se inicialmente por sinais neurológicos de gravidade variável, quer por compressão das raízes nervosas, quer por invasão do canal medular. Neste último caso, o tratamento torna-se verdadeiramente urgente a fim de evitar sequelas neurológicas graves.

Para além destas manifestações relacionadas com o tumor primitivo, outras podem surgir resultantes da metastização tumoral: dor óssea, por invasão óssea; anemia e trombocitopenia, por invasão da medula óssea; nódulos cutâneos, por invasão da pele; proptose e equimoses palpebrais, por infiltração da órbita; e, em fases muito avançadas da doença, pode assistir-se a metastização pulmonar ou no SNC.

Uma forma peculiar de apresentação que merece referência é a síndroma de Pepper: surge no lactente e caracteriza-se por um tumor localizado na suprarrenal havendo, simultaneamente, infiltração maciça do fígado. A hepatomegália resultante é então a primeira manifestação da doença, observando-se um lactente com estado geral em regra bom, com abdómen volumoso em que se palpa o fígado aumentado de volume.

Algumas vezes esta hepatomegalia é de tal forma exuberante, que se instala um quadro de dificuldade respiratória, e/ou edema do escroto e membros inferiores, e/ou vómitos frequentes e má-nutrição, explicáveis por compressão exercida pelo fígado aumentado de volume sobre as estruturas vizinhas.

Em cerca de 1 a 3% dos doentes podem fazer parte das manifestações clínicas 3 tipos de síndromas paraneoplásicas por:

  1. VIP (Vasoactive intestinal peptide) – por secreção tumoral de VIP [diarreia secretora intratável, hipopotassémia, distensão abdominal, desidratação, etc.. Está em geral associada a ganglioneuroma ou ganglioneuroblastoma];
  2. OMA (opsomioclonus-mioclonus-ataxia) – associada a autoanticorpos antineuronais [abalos mioclónicos erráticos, movimentos oculares descontrolados e “olhos e pés dançarinos”, por vezes, ataxia cerebelosa];
  3. SEC (secreção excessiva de catecolaminas) [taquicárdia, HTA, palpitações, sudação profusa, crises de rubor, sintomatologia que é clássica no feocromocitoma].

Enquanto a patogénese da HTA, no caso de neuroblastoma, tem forte componente de causa renovascular, no feocromocitoma é, sobretudo, comparticipada pelas catecolaminas com um abdómen muito volumoso, em que se palpa o fígado aumentado de volume.

Sob o ponto de vista semiológico, o neuroblastoma apresenta-se frequentemente como uma massa abdominal de consistência endurecida, com superfície lisa, lobulada, fixa, ultrapassando a linha média, ocupando a loca renal e deslocando o rim para baixo e para fora. O diagnóstico diferencial pode fazer-se com o tumor de Wilms, salientando-se que, nesta última situação, a massa não ultrapassa a linha média, sendo em cerca de 5% dos casos bilateral.

Para avaliar o estádio ou grau de extensão da doença (“estadiamento”), diversos grupos cooperativos de investigação a nível mundial consideram fundamentalmente dois critérios: – o International Neuroblastoma Staging System relativo ao estadiamento pós-cirúrgico (estádios 1, 2A, 2B, 3, 4, 4S); e – o International Neuroblastoma Risk Group Staging System relativo ao estadiamento pré-cirúrgico (estádios L1, L2, M, MS).

Para avaliar a resposta ao tratamento consideram-se os critérios internacionais designados por International Neuroblastoma Response Criteria considerando as respostas adiante definidas pelas siglas RC, MBRP, RP, RM, EE, PE.

Dadas as características generalistas desta obra e considerando que os critérios em pormenor podem ser consultados através da bibliografia, apenas se resumem os estádios 1, L1, MS, e RC:

  • 1: Tumor localizado com excisão macroscópica completa, com doença residual microscópica ou sem ela; gânglios linfáticos ipsilaterais microscopicamente negativos para o tumor.
  • L1: Tumor localizado não afectando estruturas vitais .
  • MS: Doença metastática em menores de 18 meses com metástases confinadas à pele, fígado e ou medula óssea.
  • RC: Resposta completa: desaparição total do tumor, sem indícios de doença; concentrações normais de ácido vanilmandélico/VMA e de ácido homovanílico/HVA.

O Quadro 1 resume as manifestações clínicas mais e menos frequentes do neuroblastoma. A Figura 1 mostra um lactente com distensão abdominal e hepatomegália.

QUADRO 1 – Clínica do Neuroblastoma

Manifestações frequentes
    • Dor óssea
    • Marcha claudicante
    • Hepatomegália
    • Massa abdominal (a partir da supra-renal)
    • Palidez
    • Emagrecimento
Manifestações raras
    • Nódulos cutâneos
    • Proptose
    • Equimoses periobitárias
    • Adenomegálias
    • Paraplegia
    • Síndromas paraneoplásicas (VIP, OMA,SEC) – consultar texto

FIGURA 1. Lactente com distensão abdominal por hepatomegália relacionada com neuroblastoma (NIHDE).

Exames complementares e diagnóstico diferencial

Dada a diversidade de manifestações clínicas do neuroblastoma, tal situação poderá ser confundida com outras neoplasias ou situações não neoplásicas. As dificuldades poderão ser maiores nos casos de neuroblastomas que não produzem catecolaminas em excesso, e em cerca de 1% dos casos em que não é obvia a identificação de tumor primário.

As síndromas VIP podem ser confundidas com doença inflamatória intestinal, e os casos com manifestações de OMA poderão corresponder a uma situação neurológica primária.

As equimoses periorbitárias poderão levantar a hipótese de maus tratos/abuso, pelo que a anamnese se torna fundamental. A verificação de anemia, neutropénia, ou trombocitopénia pode levar, em função do contexto clínico ao diagnóstico diferencial com leucemia.

O estudo imagiológico do doente por TAC ou TAC com emissão de positrões (PET) e ou ressonância magnética (RM) revela um tumor de localização e dimensões variáveis, muitas vezes com calcificações, as quais são sugestivas do diagnóstico.

As Figuras 2 e 3 exibem imagens de neuroblastoma de localização intratorácia.

FIGURA 2. Imagem opaca arredondada paravertebral torácica superior de neuroblastoma desviando o esófago visualizado com contraste. (NIHDE)

FIGURA 3. Imagem de TAC torácica de perfil evidenciando tumor esférico pré-vertebral (neuroblastoma) ocupando praticamente o terço superior da cavidade torácica. (NIHDE)

Na Figura 2 (radiografia de tórax), em incidência póstero-anterior, observa-se opacidade para vertebral de contorno arredondado ao nível de D1-D4 desviando o esófago contrastado.

A Figura 3 mostra a imagem de um neuroblastoma de localização pré-vertebral superior intratorácia (D2-D7) de contorno arredondado e grandes dimensões (TAC de perfil).

O estudo isotópico com injecção de metaiodobenzilguanidina (MIBG), metabólito que é fixado electivamente pelas células do neuroblastoma, permite determinar com precisão a localização do tumor primitivo e suas metástases, tendo também importância no seguimento dos doentes.

Tratando-se de um tumor produtor de catecolaminas (em 90% dos casos), estas podem ser doseadas na urina, encontrando-se, em geral, aumentadas no início da doença, normalizando com o tratamento. Os ácidos vanilmandélico (VMA) e homovanílico (HVA) são assim importantes, não só no diagnóstico, mas também no estudo evolutivo.

[Nota: valores de referência: VMA (urina): 83±26µg/kg/dia (ou 2-12µg/mg de creatinina); HVA (urina): 3-16µg/mg de creatinina; catecolaminas totais (urina): 0,4-2µg/kg/dia].

O mesmo se aplica à enolase sérica e LDH, marcadores que, não sendo específicos, se encontram elevados nas formas mais avançadas da doença.

O diagnóstico é confirmado por exame citológico ou histológico do tumor, obtido por citologia por agulha fina ou por biópsia, colhendo-se igualmente material para estudos genéticos (para classificação genómica).

Actualmente, utilizam-se marcadores genéticos com valor prognóstico, tais como:

  • deleção do cromossoma 1, amplificação e mutações no cromossoma 6p22 ;
  • amplificação do oncogene N myc.

Em síntese: os requisitos mínimos para estabelecer o diagnóstico de neuroblastoma são:

  • diagnóstico anatomopatológico do tecido tumoral com imuno-histoquímica ou sem ela, microscopia electrónica ou elevação do nível de catecolaminas urinárias;
  • infiltração da medula óssea (aspirado ou biópsia) por células tumorais e aumento da excreção urinária de catecolaminas.

Tratamento

O neuroblastoma é um tumor quimio radiossensível. O tratamento é programado de acordo com os critérios que definem o prognóstico do doente no início. Entre estes destacam-se: a idade (inferior ou superior a um ano); o estádio do tumor (localizado e ressecável, localizado e irressecável, disseminado); os marcadores genéticos (N-mys, CHD5 ); e o tipo histológico (favorável, desfavorável).

Assim, alguns doentes serão apenas sujeitos a cirurgia; outros serão submetidos a quimioterapia e cirurgia; outros, ainda, após quimioterapia e cirurgia serão sujeitos a megaterapia com auto transplantação com células estaminais, complementada posteriormente com radioterapia sobre o leito tumoral.

Alguns protocolos prevêem ainda terapia sobre a doença residual persistente após os tratamentos anteriormente referidos, a qual se ensaia com o uso de anticorpos monoclonais, ou com indutores da maturação do neuroblasto (como a isotretinoína), ou ainda com terapia com radioisótopos.

Prognóstico

A probabilidade de cura depende dos vários factores prognósticos acima descritos:

  • muito elevada nos estádios localizados sem marcadores genéticos de mau prognóstico e, ao invés,
  • reduzida nos estádios avançados ou com marcadores genéticos desfavoráveis, apesar das terapêuticas intensivas a que estes últimos doentes são actualmente sujeitos.

Como marcadores citogenéticos de prognóstico mais reservado de neuroblastoma citam-se:

  • a amplificação do proto-oncogene MYCN (ou N-myc) e
  • a identificação do gene supressor CHD5 relacionado com deleção 1p36.1.

Relacionando tais noções com a classificação por estadiamento anteriormente descrita, importa destacar alguns dados decorrentes de estudos realizados:

  • a amplificação do oncogene N-myc localizado em 2p24 é evidenciada em 20% dos neuroblatomas, sobretudo em formas avançadas (33%) e, em menor proporção, nos estádios 1, 2, 3 e 4S ;
  • nos pacientes com neuroblastoma no estádio L1 de qualquer idade e no estádio MS, todos eles sem amplificação do gene N-myc, o prognóstico é excelente; nestes casos é requerido tratamento mínimo, em geral, apenas cirurgia, exceptuando na eventualidade de sintomatologia de compressão medular ou compromisso hepático.

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LINFOMA DE HODGKIN

Definição e aspectos epidemiológicos

O linfoma de Hodgkin, tradicionalmente designado como doença de Hodgkin, designação abandonada pela OMS, tem o nome do médico que primeiro o descreveu, no início do século XIX. Trata-se dum processo maligno do sistema linforreticular de localização ganglionar, evidenciando escassez de células neoplásicas no gânglio afectado; neste, predomina uma população maioritariamente (90-99%) de células reactivas não neoplásicas, linfócitos, macrófagos e eosinófilos.

Constituindo cerca de 5% dos casos de cancro em idade pediátrica, surge nos países industrializados com um primeiro pico de incidência por volta dos vinte anos, e outro, a partir dos cinquenta anos. Raro antes dos 7 anos de idade, ao contrário dos outros linfomas, surge principalmente na pré-adolescência ou adolescência.

As relações entre esta doença e o vírus de Epstein Barr são conhecidas, já que, como foi referido anteriormente, o genoma do vírus se encontra com grande frequência na célula neoplásica.

O linfoma de Hodgkin é mais frequente em crianças com imunodeficiência, tendo sido descrito o seu aparecimento em “epidemias” familiares, porventura relacionadas com infecções víricas.

Manifestações clínicas

FIGURA 1. Linfoma de Hodgkin: opacidade esferóide “gigante” com ponto de partida mediastínico ocupando o campo pulmonar direito (NIHDE).

Clinicamente, caracteriza-se por ter um início insidioso, com aparecimento de adenomegálias principalmente cervicais, supraclaviculares ou mediastínicas. Mais raramente, a localização é infradiafragmática. Os gânglios são elásticos, não dolorosos, sem sinais inflamatórios, de crescimento muito lento. Por vezes, apresentam regressão espontânea durante algum tempo, no que o linfoma de Hodgkin se distingue da generalidade dos outros linfomas. Em fases mais avançadas, as adenomegálias podem confluir, formando conglomerados mais ou menos volumosos.

As adenomegálias do mediastino são assintomáticas de início, podendo ser um achado ocasional em radiografia. Mais tarde, os gânglios comprimem as estruturas vizinhas, podendo originar dispneia, disfagia e rouquidão (Figura 1). A progressão da doença faz-se, em regra, por via linfática, atingindo sucessivamente os territórios ganglionares vizinhos.

A presença de várias manifestações sistémicas (temperatura superior a 38ºC durante pelo menos três dias, emagrecimento superior a 10% do peso nos últimos seis meses, prurido e sudação nocturna), está associada a prognóstico mais reservado, o que obriga a terapêutica mais intensiva.

Diagnóstico

O diagnóstico é feito por biópsia de um gânglio que revela as células de Reed-Sternberg e suas variantes, num fundo de células inflamatórias (linfócitos, plasmócitos, eosinófilos, histiócitos), com fibrose. As células de Reed-Sternberg, de origem desconhecida durante muito tempo, foram identificadas imunologicamente como células linfóides de linhagem B, englobando-se esta doença actualmente no grupo dos linfomas.

As referidas células têm grande diâmetro (15-45 µm) e são multinucleadas ou com núcleo multilobulado. Reiterando o que foi referido antes, no linfoma de Hodgkin, ao contrário de outras neoplasias, as células neoplásicas correspondem a não mais do que 1% das células que se encontram nos gânglios atingidos, sendo as restantes células inflamatórias; tal particularidade poderá dificultar o diagnóstico.

De acordo com as células predominantes no gânglio e o grau de fibrose, classifica-se o linfoma de Hodgkin em: – com predomínio linfocitário; – com esclerose nodular; – com celularidade mista; e – com depleção linfocitária (classificação de Rye).

esclerose nodular, com um excelente prognóstico, e surgindo em geral sob a forma localizada, predomina em adolescentes e adultos jovens; por sua vez, corresponde ao tipo histológico mais habitual entre nós e nos países desenvolvidos.

A celularidade mista predomina em crianças mais jovens.

depleção linfocitária surge associada a formas generalizadas da doença, de prognóstico mais reservado.

Após o diagnóstico, é indispensável a caracterização do estádio evolutivo para programar a terapêutica. Usa-se habitualmente a classificação de Ann Arbor, englobando quatro estádios, em função:

  • do número e localização dos territórios ganglionares afectados e;
  • da eventual infiltração de estruturas não linfóides, como o pulmão, o fígado, ou a medula óssea.

Pormenorizando:

  • o estádio I corresponde a compromisso de um único gânglio ou de um só órgão ou local extralinfático; e que;
  • os estádios II e III correspondem ao compromisso ganglionar (2 ou mais gânglios), e/ou de órgão ou tecido extraganglionar, respectivamente, dum lado ou dos dois lados do diafragma, o qual serve como referência topográfica.
  • o estádio IV corresponde à forma disseminada, com vários órgãos ou tecidos extralinfáticos afectados, com ou sem compromisso ganglionar.

Para determinação do estádio, usam-se várias técnicas imagiológicas como ecografia, tomografia axial computadorizada (incluindo a de alta definição, com emissão de positrões), ressonância magnética e ou estudos isotópicos como as cintigrafias com gálio e tecnécio. Trata-se de técnicas complementares, que adicionam à informação anatómica outros dados sobre a actividade da doença.

Salienta-se que tais técnicas sofisticadas permitem a identificação relativamente rigorosa do estádio, sem necessidade de recurso a técnicas invasivas como a linfangiografia ou a laparotomia exploradora, que pertencem ao passado.

Tratamento

A terapêutica é planeada de acordo com o estádio do doente e a existência ou não, de manifestações associadas a pior prognóstico.

Na idade pediátrica, usam-se esquemas combinados de quimioterapia e radioterapia, com excelentes resultados. Estes esquemas têm vindo a adaptar-se progressivamente, de forma a reduzir a intensidade da quimioterapia e a dose e os campos da radioterapia, sem diminuir a probabilidade de cura. Hoje, é possível obter a cura de doentes usando apenas quimioterapia, com base nos critérios de resposta imagiológica e metabólica aos ciclos inicias de quimioterapia.

Nos casos em que tal resposta não é completa, a terapêutica é complementada com radioterapia, usando doses que não ultrapassam os 20 – 25 Gy, por oposição aos 35 – 40 Gy usados anteriormente. (Nota: 1 unidade de radiação (1 GYY) = 100 rads)

A probabilidade de cura é grande (80 a 90%), mesmo para os estádios mais avançados, com as modalidades modernas de tratamento: duas a seis faixas de quimioterapia, consoante a extensão da doença, seguidas, ou não, de radioterapia.

Os efeitos secundários da quimioterapia são os referidos no capítulo sobre tratamento; considerando-se mais temíveis os efeitos traduzidos pelo aparecimento de neoplasias secundárias, principalmente cancro da tiroideia e da mama, importa, contudo, referir que a sua incidência no contexto de linfoma de Hodgkin é superior à verificada em doentes com outras neoplasias. Este facto parece ser devido ao surgimento e persistência de imunodeficiência celular após cura deste tipo de linfoma.

A este efeito somam-se os efeitos secundários da radioterapia: atrofia das partes moles; perturbações do crescimento ósseo; disfunção da tiroideia; e transformação neoplásica dos tecidos irradiados. Tal significa que estes doentes devem ser seguidos cuidadosamente durante muitos anos numa perspectiva de detecção atempada dos problemas surgidos.

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LINFOMAS NÃO HODGKIN

Introdução aos linfomas

Os linfomas na sua generalidade, representando cerca de 15% do total de tumores na idade pediátrica, constituem o terceiro grupo de doenças neoplásicas mais frequentes, depois das leucemias e dos tumores do SNC.

A incidência aumenta ao longo da vida, salientando-se a sobrevivência de > 80% nos países industrializados. Pouco frequentes em menores de 4 anos, alcançam uma incidência anual ~5,7 casos por milhão de menores de 15 anos, e de ~ 34,7 casos por milhão de adolescentes entre 15 e 18 anos.

Dividem-se em dois grandes grupos: Linfomas não Hodgkin e Linfomas de Hodgkin.

Neste capítulo são abordados os linfomas não Hodgkin.

Definição e aspectos epidemiológicos

Os linfomas não Hodgkin são neoplasias de linfócitos maduros ou de células precursoras dos linfócitos que, por mutação genética, perderam as capacidades de maturação e de apoptose, ou seja, de autodestruição. Ao contrário dos linfomas não Hodgkin do adulto, são de grande agressividade.

Os linfomas não Hodgkin são muito menos frequentes na criança do que no adulto, aumentando a incidência de forma progressiva, com a idade. Podem encontrar-se, no entanto, em crianças muito jovens, por vezes lactentes.

Classificação

A caracterização imunológica dos linfócitos patológicos veio originar uma classificação simples dos linfomas não Hodgkin da criança, o que tem vindo a permitir abandonar progressivamente as inúmeras classificações clássicas, baseadas na morfologia e nas características citoquímicas, pouco claras e em regra sem grande relação com a clínica.

De forma resumida, os linfomas não Hodgkin pediátricos classificam-se actualmente, de acordo com a linhagem linfóide afectada, em linfomas B de linfócitos maduros, linfomas T de linfócitos maduros, e linfomas pré T ou pré B que, como o nome indica, são linfomas de células precursoras não maduras de linhagem T ou B.

Aos linfomas B de células maduras correspondem, na classificação da Organização Mundial de Saúde, uma das classificações antigas mais usadas, as categorias histológicas de linfoma de Burkitt, Burkitt like e linfoma B de grandes células.

Aos linfomas T de células maduras corresponde a categoria histológica de linfoma anaplásico de grandes células na mesma classificação; e aos linfomas pré T ou pré B, a categoria de linfoma linfoblástico.

Como sucede com outras neoplasias, são descritas algumas situações predisponentes de linfomas, em geral relacionadas com imunodeficiência congénita ou adquirida. No entanto, para a maioria dos casos diagnosticados, não se consegue encontrar uma causa, como sucede para a generalidade das neoplasias da criança.

1. LINFOMAS B: Linfoma de Burkitt, Linfoma Burkitt like e Linfoma B de grandes células

Definição

O linfoma de Burkitt é, como se referiu, uma neoplasia de linfócitos B maduros que se apresenta morfologicamente como um linfoma de pequenas células redondas, não clivadas.

É muito provavelmente o tumor pediátrico com multiplicação celular mais rápida e crescimento mais veloz.

Formas clínicas

A sua forma endémica foi a primeira a ser descrita, na década de 50, na África equatorial, pelo cirurgião irlandês Burkitt, de quem recebeu o nome. É o tumor mais frequente naquela região de África. Caracteriza-se pela localização preferencial no maxilar superior, podendo atingir igualmente o abdómen e o SNC. Mais tarde, relacionou-se este tumor com o vírus de Epstein-Barr, cujo genoma se encontra quase constantemente no núcleo do linfócito B neoplásico e, também, com a malária, já que a área endémica desta doença é também a área endémica do linfoma de Burkitt.

Admite-se que a infecção pelo plasmódio facilite, pela imunossupressão que lhe é inerente, a proliferação incontrolada dos linfócitos B infectados pelo vírus de Epstein-Barr, causando a doença.

Na União Europeia e nos EUA, esta neoplasia é muito menos frequente, sendo a forma típica de apresentação clínica a de um tumor abdominal de crescimento muito rápido, localizado de início na fossa ilíaca direita e estendendo-se rapidamente a todo o abdómen, o qual se apresenta muito distendido e doloroso. À palpação, encontram-se várias formações tumorais de consistência dura. A ecografia ou a TAC revelam várias massas tumorais intrabdominais, por vezes com infiltração nodular do fígado, baço, ou rins, e adenomegalias mesentéricas e retroperitoneais. Pode haver ascite e derrame pleural.

Com menos frequência, a massa linfóide tumoral, que se localiza de início, preferencialmente, na região terminal do íleo, pode originar um íleo mecânico, que é então a manifestação clínica inaugural. Neste caso, é a cirurgia para resolução do íleo que permite o diagnóstico.

Em estádios avançados o linfoma pode atingir o SNC, com massas tumorais que se localizam principalmente no espaço epidural, e também na medula óssea (comportando-se então como LLA de linfócitos B maduros). Menos frequentemente, o linfoma de Burkitt pode surgir com outras localizações: mediastino; gânglios linfáticos cervicais; e anel de Waldeyer.

Diagnóstico

O diagnóstico é feito por estudos morfológicos, citoquímicos, imunológicos e genéticos. Os dois primeiros revelam a existência de um tumor de pequenas células redondas, não clivadas; os métodos imunológicos permitem a detecção de marcadores de maturidade do linfócito B; e a genética revela as translocações típicas: t (8;14), t(2;8) e t(8;22). O material para estes estudos pode obter-se por citologia do tumor por agulha fina, ou por estudo das células existentes em suspensão no líquido ascítico ou no derrame pleural.

Tratamento

FIGURA 1. Linfoma B difuso de grandes células; radiografia do tórax:adenomegalia mediastínica

O tratamento do linfoma de Burkitt/LLA B constitui um dos maiores sucessos da oncologia moderna. Actualmente, com os modernos protocolos de quimioterapia intensiva, a probabilidade de cura é superior a 90%.

É importante, para além do diagnóstico, caracterizar o estádio da doença, já que os protocolos de quimioterapia possuem vários ramos de intensidade crescente.

Os estádios intermédios tratam-se durante cerca de 4 meses, e as formas mais graves, em que há invasão da medula óssea ou do SNC, durante cerca de 8 meses. Os resultados finais acabam por ser semelhantes.

O linfoma B de grandes células e o linfoma Burkitt like são variantes histológicas na classificação da Organização Mundial de Saúde, mas são igualmente neoplasias de linfócitos B maduros.

Surgem em crianças de grupo etário superior e caracterizam-se pelo aparecimento, não de grandes massas tumorais, como no linfoma de Burkitt, mas de gânglios linfáticos aumentados (adenomegálias) em territórios periféricos ou profundos (intrabdominais e/ou torácicos).

A localização mediastínica (Figura 1) é mais frequente na forma de linfoma B de grandes células do que no linfoma de Burkitt. Este último é tipicamente abdominal, como foi dito.

Embora haja diferenças morfológicas entre estes linfomas B e o linfoma de Burkitt, o tratamento é semelhante e os resultados são igualmente bons.

2. LINFOMAS PRÉ T e PRÉ B: Linfoma linfoblástico

O linfoma pré T, constituído por linfoblastos precursores de linhagem T, é tipicamente supra diafragmático, atingindo o mediastino numa grande percentagem de casos, e também os gânglios dos territórios cervicais, supra claviculares e axilares. Dor torácica, dispneia e disfagia por compressão das vias aéreas ou do esófago, edema e estase venosa do pescoço e parte superior do tórax por compressão da veia cava superior – síndroma da veia cava são as manifestações mais frequentes. (Figura 1)

Em estádios mais avançados, pode haver invasão do SNC ou da medula óssea. Esta última põe problemas de diagnóstico diferencial entre linfoma e leucemia. Por convenção será linfoma se o número de linfoblastos na medula óssea for inferior a 30%.

O linfoma pré B, constituído por linfoblastos precursores de linhagem B, atinge igualmente os territórios linfáticos periféricos, ou profundos, toracoabdominais, não havendo aqui, contudo, volumosas massas tumorais, como sucede no linfoma de Burkitt. Pode, igualmente, em fases avançadas, atingir o SNC ou a medula óssea, pondo iguais problemas de diagnóstico diferencial com leucemia.

A distinção entre leucemia e linfoma é importante já que existem diferenças nos protocolos de tratamento em relação à quimioterapia e à radioterapia.

3. LINFOMA T: Linfoma anaplásico de grandes células

Trata-se de uma entidade nova, durante muito tempo confundida com o linfoma de Hodgkin, hoje diferenciada pelas características imunológicas e genéticas da célula neoplásica.

Manifesta-se por adenomegálias nos territórios periféricos ou toracoabdominais sem, contudo, haver formação de grandes massas tumorais, ao contrário do que sucede com o linfoma de Burkitt, ou o linfoma linfoblástico (o primeiro no abdómen, o segundo no tórax). Pode infiltrar certos órgãos como a pele, o pulmão ou o osso, mas raramente atinge o SNC ou a medula óssea. É, sobretudo, a evolução lenta, com períodos de regressão espontânea, e a repercussão no estado geral, com febre e emagrecimento, que diferenciam este linfoma dos outros e o aproximam do linfoma de Hodgkin.

Não há unanimidade na terapêutica ideal, mas têm sido referidos bons resultados com quimioterapia muito semelhante à utilizada para o linfoma de Burkitt.

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LEUCEMIAS

Definição e aspectos epidemiológicos

As leucemias podem ser definidas como um grupo de doenças malignas provocadas por anomalias genéticas de células precursoras hematopoiéticas, do que resulta proliferação clonal anárquica, com diferenciação e maturação anormais (clone leucémico). Poderá tratar-se de uma célula precursora hematopoiética da linhagem linfóide, T ou B (leucemia linfoblástica aguda, LLA T ou LLA B), ou da linhagem mielóide (leucemia mieloblástica aguda, LMA).

As células que constituem o clone leucémico têm uma taxa aumentada de proliferação e uma taxa diminuída de apoptose espontânea, o que leva a disfunção e falência da medula óssea.

As leucemias agudas (LA) representam cerca de um terço das neoplasias da criança.

Cerca de três quartos das leucemias das crianças são linfoblásticas agudas, sendo as restantes mieloblásticas agudas. As leucemias mielóides crónicas são muito raras na criança. As leucemias linfocíticas crónicas não se verificam.

A incidência anual de novos casos de leucemia aguda nos países ocidentais é cerca de 40 por milhão de crianças com menos de quinze anos. No nosso País estima-se que haverá cerca de 60 a 70 casos novos por ano. Destes, aproximadamente 50 serão leucemias linfoblásticas agudas.

O gráfico que integra a Figura 2 do capítulo 128 mostra a casuística do Serviço de Pediatria do IPOFG de Lisboa referente a 3 anos.

A LLA tem um pico de incidência máximo entre os 2 e os 4 anos, que corresponde a uma forma particular de leucemia com características fenotípicas (linhagem B, CALLA +) e de quimiossensibilidade particulares, que lhe conferem um bom prognóstico. São menos frequentes antes ou depois deste grupo etário. No adolescente, a LLA de linhagem T é mais habitual. Pelo contrário, no lactente predomina a LLA de linhagem B muito indiferenciada e, em regra, de mau prognóstico.

A LMA tem um pico de incidência ao longo dos dois primeiros anos de vida, altura em que é quase tão frequente como a LLA, tornando-se depois menos frequente (15 a 25% das LA), e só voltando a aumentar de frequência na adolescência.

Etiopatogénese

O capítulo dedicado ao Ambiente e Genética resume os conhecimentos actuais sobre a oncogénese em geral, referindo os aspectos particulares relacionados com as leucemias. Como foi aí referido, para a generalidade das neoplasias e também para a generalidade das leucemias não há uma causa identificada. Em situações muito pontuais, identificam-se certos agentes microbianos víricos, químicos, e radiações ionizantes, bem como alterações genéticas, que se encontrarão envolvidos na génese das leucemias.

A proliferação incontrolada do clone leucémico num espaço fechado (como é aquele em que está contida a medula óssea), a sua incapacidade de diferenciação e maturação em células hematopoiéticas normais, e a disseminação por via sanguínea com fixação noutros orgãos, traduzem-se nas manifestações típicas das leucemias agudas descritas a seguir.

Manifestações clínicas e exames de imagem nas LA

As manifestações clínicas das LA são, fundamentalmente:

  • Dor: tipicamente nos ossos longos ou na região lombar (corresponde à localização da medula óssea). A criança tem alguma dificuldade em a localizar com precisão. Não está relacionada com os movimentos e as articulações não apresentam, em regra, sinais inflamatórios. Por vezes é incapacitante e pode ser a única manifestação durante algum tempo, levando ao diagnóstico diferencial com doenças reumáticas.
  • Diátese hemorrágica: é a tradução clínica da trombocitopénia; valores plaquetários inferiores a 10.000/mm3 são responsáveis por hemorragias nas mucosas oral e/ou nasal (gengivorragia e/ou epistaxe); valores entre 10000 e 50000/mm3, por petéquias (pequenas hemorragias punctiformes de origem capilar), equimoses (hemorragias multipetéquiais) e hematomas (hemorragias volumosas) intramusculares ou subcutâneos.

Por vezes, outras causas podem associar-se a este mecanismo de hemorragia, tornando a etiologia da diátese mais complexa, como a falência hepática por infiltração leucémica, ou a libertação pelas células neoplásicas de proteínas com actividade anticoagulante, como sucede nalgumas formas particulares de LMA, em especial a leucemia promielocítica (LMA M3). (*) Nestes casos, o início da quimioterapia, com destruição maciça dos promieloblastos e libertação destas proteínas, pode originar uma diátese hemorrágica devastadora.

* M3, M4, M5 (ver explicação adiante)

  • Anemia: traduz uma progressiva diminuição do número de glóbulos vermelhos e da hemoglobina por falência de produção. Manifesta-se por palidez da pele e mucosas, taquicardia, tonturas, etc.. De referir que os valores de hemoglobina encontrados são, por vezes, muito baixos (3 ou 4 g/dL) mas relativamente bem tolerados, devido à lenta instalação da anemia.
  • Febre, em regra não muito elevada, está relacionada com os mecanismos fisiopatológicos da leucemia: libertação de pirogénios pelos blastos ou pelos macrófagos e linfócitos que procuram controlar o clone leucémico. Desaparece com o início do tratamento. No entanto, pode ser consequência de infecção, facilitada pela redução do número de leucócitos normofuncionantes. 
    Na verdade, muitas crianças podem ter, como uma das primeiras manifestações da doença, infecções recorrentes ou de evolução arrastada, mais habitualmente do foro ORL, que respondem mal à antibioticoterapia.
  • Organomegália que traduz a infiltração de vários órgãos pelos blastos circulantes: hepatomegália; esplenomegália; e adenomegálias (gânglios linfáticos maiores que 1 cm) localizadas ou generalizadas, e de dimensões variáveis, são encontradas com frequência no exame objectivo da criança. Numa radiografia do tórax pode encontrar-se uma massa mediastínica, o que é muito sugestivo de LLA de fenótipo T, mais habitual no adolescente do sexo masculino. Tal traduz infiltração do timo ou dos gânglios linfáticos dos hilos pulmonares.
    Nas LMA não é raro haver infiltração cutânea inicial pelas células neoplásicas (leucemia cutis). Esta infiltração também se pode encontrar nas LLA, mas em formas terminais.
  • Cloromas: são massas tumorais de tamanho variável que se encontram com relativa frequência nas LMA, principalmente de tipo M4 e M5 (ver adiante – classificação das LMA). Localizando-se preferencialmente na região periorbitária ou ao longo da coluna vertebral, podem então originar manifestações neurológicas. Algumas vezes, estes cloromas precedem o diagnóstico de leucemia, tendo sido descritos em crianças ainda antes de haver envolvimento da medula óssea.
    Ainda nas LMA M4 ou M5, pode haver hiperplasia gengival por infiltração.
  • SNC: encontra-se igualmente atingido, muitas vezes, no início da doença pela migração dos blastos que, por via sanguínea, se vão fixar preferencialmente na pia-máter. O número de células neoplásicas é, no entanto, insuficiente para originar sintomas na generalidade dos casos. É a chamada doença subclínica do SNC. Mas se houver infiltração maciça, particularmente a partir dos plexos coroideus, especialmente ricos em vasos sanguíneos, podem surgir sinais de hipertensão intracraniana, tais como cefaleias e vómitos, ou sinais neurológicos focais.
  • Exames de imagem, como a ecografia ou a tomografia axial computadorizada mostram igualmente que outros órgãos como os rins ou os ovários estão frequentemente infiltrados no início da doença, apresentando-se de dimensões aumentadas.
    No sexo masculino, embora raramente, pode detectar-se, no início da doença, aumento do volume testicular que é indolor, sem sinais inflamatórios, sendo os testículos de consistência dura.

Diagnóstico das LLA

O hemograma revela alterações sugestivas: anemia normocítica e normocrómica; quase sempre trombocitopenia; e leucopénia ou leucocitose. O exame do esfregaço do sangue periférico pode mostrar a existência de blastos circulantes. Por vezes, em cerca de 10% dos casos, não há alterações significativas no hemograma.

O diagnóstico é feito a partir de colheita de medula óssea, em geral numa crista ilíaca. As células assim obtidas são sujeitas a exame morfológico e citoquímico usando os corantes clássicos, a tipagem imunológica através de painéis de anticorpos monoclonais, a estudos de genética convencional para determinação de alterações no número e estrutura dos cromossomas e, mais modernamente, a estudos de genética molecular, mais sensíveis e específicos que os anteriores.

Assim, é possível diagnosticar uma leucemia se o número de blastos na medula óssea for superior a 30% da celularidade totale classificá-la recorrendo aos estudos morfológicos e imunológicos, de acordo com a linhagem afectada (linfoblástica, de linhagem B ou T). As alterações genéticas encontradas, quer em cariótipo convencional, quer em genética molecular, confirmam o diagnóstico, já que muitas são específicas de um tipo de leucemia e estabelecem, também, o prognóstico. Por exemplo, um clone leucémico hiperdiplóide, em que o número de cromossomas é superior a 50, é particularmente sensível à quimioterapia com citostáticos do grupo dos antimetabólitos, sendo de bom prognóstico. Por outro lado, o achado da translocação (t) (9; 22), o chamado cromossoma de Philadelphia, a que corresponde a fusão molecular BCR-ABL, indica só por si, a necessidade de recorrer a transplantação de medula óssea (TMO) uma vez obtida a remissão, já que os resultados obtidos com quimioterapia convencional são maus. Da mesma forma a t (4;11) com alterações envolvendo o gene MLL, frequentemente encontrada em lactentes com LLA, implica um prognóstico ominoso, que não parece sequer melhorar com TMO. Ao invés, a t (12;21) envolvendo os genes TEL-AML1 parece conferir à LLA, pelo menos com alguns protocolos de quimioterapia, um prognóstico mais favorável.

Diagnosticada a leucemia, torna-se imprescindível detectar a existência de blastos no SNC, um dos factores prognósticos mais importantes, o que se consegue por exame morfológico, citoquímico e, se necessário, imunológico, das células encontradas no liquor após centrifugação. Em geral, não há blastos detectáveis. Um número de blastos superior a cinco por campo implica pior prognóstico e obriga a uma terapêutica mais intensiva para obtenção de melhores resultados. Este achado é mais frequente em adolescentes do sexo masculino com LLA de fenótipo T, ou em lactentes com LLA hiperleucocitária de linhagem B muito indiferenciada. O achado de um número de blastos inferior a cinco por campo tem actualmente um significado não totalmente compreendido, dividindo-se os centros oncológicos sobre a necessidade de intensificar ou não o tratamento.

Tratamento das LLA

O tratamento das LLA é uma história de sucesso que se foi construindo ao longo dos últimos cinquenta anos. Actualmente é possível curar cerca de 85% das crianças com LLA.

Os protocolos de quimioterapia, com algumas variações subtis, compreendem uma fase inicial de indução de remissão que dura cerca de um mês. No final, a criança deve estar assintomática, com observação normal, e com percentagem de blastos inferior a 5% na medula óssea. Seguem-se uma fase de terapêutica profiláctica do SNC, uma fase de intensificação/consolidação, e um período final de manutenção. Globalmente, a terapêutica dura cerca de dois anos.

Muito esquematicamente, a evolução da terapêutica ao longo dos anos, até à obtenção dos excelentes resultados actuais, foi a seguinte:

  • no final de década de 40, iniciaram-se as primeiras tentativas terapêuticas com citostáticos em monoterapia, tendo o pediatra Farber, em Boston, obtido pela primeira vez uma remissão de curta duração usando um antimetabólito, a aminopterina;
  • na década de 50, foram induzidas associações de fármacos: antimetabólitos, vincristina, prednisolona e asparaginase. As remissões obtidas eram mais longas, mas a doença recidivava passados alguns meses, sendo metade das recidivas a nível do SNC;
  • iniciou-se então, na década de 60, a terapêutica profiláctica do SNC com radioterapia crânio-encefálica e do neuro-eixo numa primeira fase e, posteriormente, apenas craniana, associada a quimioterapia intratecal, o que permitiu a redução do número de recidivas no SNC para cerca de 5%;
  • na década de 70, utilizavam-se sistematicamente esquemas terapêuticos com indução, profilaxia do SNC e manutenção. Surgiu a definição de grupos de risco, percebendo-se que a doença não tinha sempre a mesma gravidade. Estes grupos baseavam-se, principalmente, em critérios clínicos, como a idade e a organomegália, e em critérios laboratoriais, como o número de leucócitos iniciais, e a classificação imunológica, ainda que rudimentar, dos blastos;
  • na década de 80, aperfeiçoaram-se os critérios que definem estes grupos de risco, principalmente com os progressos na classificação imunológica do clone leucémico e, posteriormente, com o advento da biologia molecular.

À definição destes grupos de risco corresponde uma adaptação da intensidade da quimioterapia, de forma a obter os melhores resultados com a menor toxicidade. Na década de 90, ensaiaram-se métodos imunológicos e genéticos para detecção da doença mínima residual em fases determinadas do tratamento, procurando determinar o seu significado prognóstico.

Assim, actualmente, após o diagnóstico é imprescindível definir o grupo de risco do doente, o qual condicionará a escolha da terapêutica.

Em linhas gerais, consideram-se de alto risco:

  • os grupos etários inferiores a 1 ano, ou superior a 10 anos; – a LLA de linhagem T; – a LLA de linhagem B com mais de 50.000 glóbulos brancos/mm3; e
  • a LLA com invasão do SNC.

Consideram-se de muito alto risco: – a LLA que não está em remissão no final da indução ou cuja doença mínima residual avaliada por biologia molecular é significativa (> 0,001); – a LLA com t (9;22) ou com rearranjos do gene MLL (no cromossoma 11); e – a LLA acompanhada de hipodiploidia (menos de 44 cromossomas).

Os doentes destes grupos de alto e muito alto risco são sujeitos a quimioterapia mais intensiva que permite, no final, obter resultados sensivelmente idênticos ao grupo de risco standard.

Consideram-se de risco standard os outros casos, ou seja, as LLA de linhagem B com menos de 50.000 glóbulos brancos/mm3 no sangue periférico, em crianças com mais de um ano e menos de dez, e sem invasão inicial do SNC.**

Em situações especiais de muito alto risco, assim como naqueles em que se verifica recaída, poderá estar indicado o transplante alogénico de progenitores hematopoiéticos.

**A síndroma mielodisplásica(SMD) e a síndroma mieloproliferativa (SMP) correspondem a um grupo heterogéneo de alterações hematopoiéticas clonais explicando menos de 10% das doenças malignas de origem mielóide. Na SMD, que representa um estado pré-leucémico (no sentido de LMA em meses, ou anos), verifica-se hematopoiese ineficaz, maturação displásica dos progenitores mielóides da medula óssea, aumento da apoptose e hipercelularidade. Existe pancitopénia e predisposição para infecções relacionável com neutropénia. A hipercelularidade e as anomalias cromossómicas como deleção do cromossoma 5q, trissomia 8 ou monossomia 7 permitem a destrinça com anemia aplástica grave. Na SMP verifica-se abundante proliferação e maior sobrevivência dos progenitores hematopoiéticos, do que resulta elevado número de eritrócitos, leucócitos e plaquetas no sangue periférico. Neste âmbito, destacam-se as entidades trombocitémia essencial e policitémia vera associadas a mutações genéticas.

Diagnóstico das LMA

O diagnóstico das LMA é feito através da colheita de medula óssea, em regra efectuada por punção da crista ilíaca. Ao contrário do que acontece com as LLA, convencionou-se ser necessário um número de blastos superior a 20% e não a 30%, para a sua confirmação.

O procedimento para a caracterização dos blastos é semelhante em ambos os tipos de LA: estudos morfológicos, imunocitoquímicos, de fenotipagem e genéticos. A classificação das LMA é mais complexa que a das LLA, já que mais linhagens celulares podem ser afectadas, sendo a classificação morfológica FAB (Franco-Americana-Britânica) a mais usada internacionalmente: M1 e M2 (mieloblástica), M3 (promielocítica), M4 (mielomonocítica), M5 (monocítica), M6 (eritroleucemia), M7 (megacariocítica) e M0 (indiferenciada). A designação M corresponde, pois, a tipos morfológicos.

Embora os estudos de genética não tenham actualmente o impacte no diagnóstico e no prognóstico que têm nas LLA, algumas alterações são já devidamente valorizadas: t (8;21), inv (16) e t (15;17) implicam um prognóstico mais favorável, e são específicas de certos tipos de LMA; a monossomia do cromossoma 7 ou do cromossoma 5, a del (5) e o rearranjo do gene MLL associam-se a pior prognóstico e são considerados factores de alto risco.

Tratamento das LMA

Ao contrário das LLA, com o tratamento das LMA não são obtidos tão bons resultados. Globalmente, a probabilidade de cura ronda os 65%. Isto porque os blastos se revelam pouco quimiossensíveis e o aparecimento de resistências é frequente.

O número de citostáticos realmente eficazes é pequeno, reduzindo-se aos grupos das antraciclinas (doxorrubicina, daunorrubicina, idarrubicina, mitoxantrona), epipodofilotoxinas (VP16, VM26) e alguns antimetabólitos (Ara C). A terapêutica de manutenção, tão útil na generalidade das LLA, não parece ter tanto interesse nesta forma de leucemia, preferindo-se, na maioria dos centros, proceder antes a quimioterapia intensiva que se prolonga por seis a oito meses, com associações de citostáticos, alguns em altas doses, e originando longos períodos de aplasia medular.

Nalgumas formas de LMA, em função da resposta à quimioterapia, existe indicação para transplante de medula óssea.

Duas formas particulares de LMA são, contudo, excepção neste panorama pessimista.

A primeira diz respeito a crianças com Trissomia 21 (síndroma de Down) que adoecem com LMA que é, em regra, M7 (classificação FAB). Os megacarioblastos destas crianças são particularmente sensíveis ao Ara C por razões genéticas, tendo estes doentes uma elevada probabilidade de cura com quimioterapia não muito intensiva.

A segunda diz respeito à LMA M3 (promielocítica) que apresenta, quase sempre, a t (15;17), a que corresponde um arranjo genético envolvendo os genes PML e RARA. É hoje possível induzir, no início do tratamento, a maturação dos promieloblastos típicos desta forma de LMA com a administração de ácido transretinóico, o que permite reduzir o risco de coagulopatia característico da fase inicial da terapêutica, já que a destruição dos blastos induzida pelos citostáticos liberta grandes quantidades de proteínas anticoagulantes. O uso de ácido transretinóico ao longo da indução e, posteriormente, na manutenção, nesta forma particular de LMA, adquiriu grande importância permitindo uma probabilidade de cura vizinha dos 90%.

A LMA M3 é, pois, um bom exemplo dos progressos registados no tratamento das neoplasias com a utilização de fármacos que actuam, não por destruição celular como é típico dos citostáticos, mas induzindo a maturação do clone neoplásico. Esta forma de LA é também um bom exemplo da importância que a monitorização genética tem no prognóstico dos doentes, já que a fusão PML-RARA deverá deixar de ser detectada a partir de determinada fase do tratamento. A sua persistência, ou reaparecimento, prenuncia uma má evolução.

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ASPECTOS BÁSICOS DO TRATAMENTO ONCOLÓGICO

Introdução

Os progressos realizados nas últimas décadas no âmbito do tratamento do cancro em idade pediátrica foram muito importantes. Na União Europeia, a mortalidade por neoplasias diminuiu cerca de 60% entre os anos de 1960 e 1990, proporção que corresponde a cerca de 4.500 mortes anuais evitadas.

Tais progressos devem-se essencialmente a três factores: 1- descoberta de novos fármacos e moléculas; 2 – adopção de estratégias terapêuticas em obediência a normas de orientação clínica rigorosas e cientificamente controladas (as chamadas guidelines); 3 – tratamento dos pacientes com patologia do foro oncológico em centros de referência especializados, com todos os recursos técnicos e humanos, conduzindo a superioridade de resultados relativamente aos obtidos em serviços de pediatria geral.

Generalidades

As leucemias e linfomas são tratados, geralmente, apenas com quimioterapia.

Os tumores sólidos tratam-se, em regra, com quimioterapia numa fase inicial e, posteriormente, com terapia local: cirurgia e/ou radioterapia.

A quimioterapia inicial, com o seu efeito sistémico, tem a dupla vantagem de destruir precocemente focos de micrometástases normalmente existentes (reduzindo assim o risco de recidiva) e de diminuir as dimensões do tumor primitivo, permitindo uma remoção cirúrgica mais fácil e com menos sequelas. Da mesma forma, a quimioterapia inicial permite que os campos a irradiar sejam menores, caso seja necessário recorrer à radioterapia.

A cirurgia será realizada numa fase inicial apenas quando o tumor, pelas suas dimensões ou localização, for facilmente extirpável, ou nas situações em que não haja necessidade de outras formas de tratamento.

O tratamento de uma criança com doença oncológica e o apoio necessário à sua família devem envolver um enorme grupo de especialistas, para além dos técnicos de saúde habituais. Assim, assistentes sociais, educadores de infância, professores, técnicos de animação, voluntários, são hoje imprescindíveis, fazendo parte integrante do grupo de técnicos existente nos centros oncológicos.

Pela sua importância, apresentamos alguns conceitos básicos de quimioterapia e radioterapia, referindo os seus efeitos secundários mais frequentes, com os quais o médico oncologista e o médico da criança têm que saber lidar.

Quimioterapia

A quimioterapia consiste na administração de fármacos citotóxicos que interferem no ciclo de vida celular. Pode ser utilizada como única forma de terapêutica de doenças neoplásicas ou em combinação com radioterapia e/ou cirurgia. Em geral, quanto maior for o índice mitótico das células tumorais, maior é a sensibilidade e resposta à quimioterapia, verificando-se o contrário nos tumores que se apresentam com uma percentagem significativa de células em fase G0, ou seja, “inactivas”.

Os fármacos utilizados em quimioterapia podem ser subdivididos em dois grandes grupos:

  1. fármacos que actuam em determinadas fases específicas do ciclo celular (por exemplo, alcalóides da vinca, metotrexato, 6-mercaptopurina, citosina arabinosido e etoposido)
  2. fármacos sem especificidade de fase (por ex. agentes alquilantes, 5-fluorouracilo e actinomicina).

É comum o protocolo de quimioterapia incluir fármacos de diferentes grupos, de forma a potenciar os mecanismos de acção sobre as células tumorais. Faz-se referência aos mais utilizados.

1. Alcalóides da vinca

(vincristina, vimblastina, vindesina, vinorelbina)

Os alcalóides da vinca são derivados da planta Vinca rosea e a sua acção citotóxica resulta da capacidade de se ligarem à tubulina. Esta proteína é fundamental na formação do fuso mitótico, ao longo do qual os cromossomas migram durante a mitose. Os alcalóides da Vinca interferem com a função do fuso mitótico, impedindo a conclusão da mitose.

Os efeitos secundários mais comuns, resultantes da sua administração, integram a seguinte sintomatologia: obstipação, podendo mesmo ocorrer situações de íleo paralítico, e neurotoxicidade periférica (com perda dos reflexos aquilianos e rotulianos, dificuldade na marcha e “pé pendente”). Regra geral, estes efeitos são reversíveis com a interrupção da terapêutica. A vimblastina é menos neurotóxica, mas, ao contrário da vincristina, causa mielossupressão.

2. Antimetabólitos

(metotrexato, citosina-arabinosido, 6-mercaptopurina, 6-tioguanina)

Trata-se de fármacos estruturalmente semelhantes a determinados compostos essenciais às células tumorais e que competem com, ou inibem, esses mesmos compostos.

2.1. Metotrexato (MTX)

É semelhante ao ácido fólico e inibe a di-hidrofolato redutase, a enzima responsável pela manutenção de níveis adequados de tetra-hidrofolatos intracelulares. A utilização de MTX causa uma acumulação de folatos na sua forma oxidada inactiva, conduzindo à morte celular. Após a administração de MTX em doses elevadas, ou seja, superiores a 1 g/m2, os níveis séricos deste fármaco devem ser vigiados durante, pelo menos 48 horas, sendo necessária a administração de ácido folínico de forma a permitir a sobrevivência das células não tumorais. O MTX é hepatotóxico e, em altas doses, nefrotóxico. Em dose baixa, administra-se em regime ambulatório como parte integrante dos esquemas de manutenção.

2.2. Citosina-arabinosido (Ara C)

É semelhante à desoxicitidina e inibe a polimerase do DNA, pelo que interfere com a replicação e transcrição do DNA. Utiliza-se, tal como o MTX, em doses muito variáveis que, nos protocolos mais intensivos, podem chegar a vários gramas por metro quadrado por dia, durante alguns dias.

2.3. 6-Mercaptopurina e 6-tioguanina

São compostos semelhantes aos nucleótidos hipoxantina e guanina. Quando incorporados no DNA, provocam alterações na sua estrutura comprometendo a transcrição. São administrados por via oral, fazendo parte dos esquemas de manutenção de quimioterapia.

3. Antibióticos

(antraciclinas, bleomicina, actinomicina D)

Estes fármacos têm uma origem bacteriana ou fúngica e possuem uma actividade simultaneamente antimicrobiana e antitumoral.

3.1. Antraciclinas

(daunorrubicina; doxorrubicina; epirrubicina; idarrubicina)

A acção citotóxica destes fármacos resulta de vários mecanismos, incluindo a inibição da actividade da topoisomerase II (e consequente interferência na leitura do DNA) e a formação de radicais livres de oxigénio, capazes de causar lesão tecidual directa. São potencialmente cardiotóxicas, sobretudo se utilizados em doses cumulativas superiores a 200 mg/m2. Nos doentes submetidos a esquemas terapêuticos que incluam doses elevadas de antraciclinas, deve realizar-se uma avaliação prévia da função cardíaca, mantendo, posteriormente, um esquema regular de vigilância com ecocardiograma.

3.2. Bleomicina

Consiste numa mistura de glicopéptidos de origem fúngica, capazes de degradar o DNA. Pode causar toxicidade pulmonar.

3.3. Actinomicina D

Interfere com a síntese de DNA e RNA por ruptura e distorção da dupla hélice de DNA. Tal como as antraciclinas, pode potenciar a toxicidade das radiações ionizantes, pelo que estes fármacos não devem ser utilizados simultaneamente com a radioterapia.

4. Agentes alquilantes

(ciclofosfamida, ifosfamida, clorambucil, melfalan, busulfan)

Formam ligações covalentes com as bases no DNA, pelo que alteram a sua integridade estrutural impedindo a transcrição. A ifosfamida e a ciclofosfamida são especialmente tóxicas a nível renal e vesical, pelo que a sua administração deve incluir vigilância da função renal, e medidas de hiper-hidratação e protecção da mucosa vesical.

5. Compostos de platina

(cisplatina, carboplatina)

Tal como os agentes alquilantes, alteram a estrutura do DNA e inibem a sua síntese. Os efeitos secundários mais frequentes são: diminuição da taxa de filtração glomerular e diminuição da acuidade auditiva para frequência elevadas, sobretudo com a utilização da cisplatina. Estes efeitos adversos são mais frequentes quando os referidos fármacos são utilizados em crianças com menos de 5 anos de idade.

6. Epipodofilotoxinas

[etoposido – (VP 16), teniposido – VM 26)]

Estes fármacos são derivados sintéticos da podofilotoxina, um composto da planta de mandrake. São inibidores da topoisomerase II, interferindo com a transcrição do DNA. Podem provocar alterações leucemogénicas na medula óssea e conduzir ao aparecimento de síndromas mielodisplásicas ou leucemias secundárias, sobretudo nos dez anos seguintes à sua administração.

7. Outros

(Asparaginase, hidroxiureia, corticosteróides, anticorpos monoclonais)

A asparaginase degrada a asparagina sérica em ácido aspártico e amónia. Tem uma actividade antitumoral específica atendendo a que, ao contrário das células normais, os linfoblastos não possuem a capacidade de sintetizar asparagina, pelo que dependem do seu fornecimento exógeno. É, ainda hoje, um dos citostáticos mais importantes no tratamento das leucemias linfáticas agudas (LLA).

Os seus efeitos secundários mais frequentes são pancreatite aguda, disfunção hepática, incluindo alterações na síntese dos factores de coagulação, dislipidémia, hipoalbuminémia, e reacção de sensibilização.

A hidroxiureia, substância análoga da ureia, impede a síntese do DNA por inibição do sistema enzimático da redutase dos ribonucleótidos.

Os corticóides são frequentemente utilizados em neoplasias hematológicas, atendendo a mecanismos ainda não bem esclarecidos, mas que parecem envolver a existência de receptores para estes fármacos nas células tumorais. Os referidos fármacos são igualmente incluídos em diversos protocolos terapêuticos no alívio de determinados sintomas, tais como quadros de hipertensão intracraniana e dores ósseas.

Os inibidores da tirosina-cinase (por ex. imatimib e dasatinib) são exemplos de terapia molecular dirigida, evidenciando ausência da toxicidade nos tecidos normais. A sua utilização na terapêutica das leucemias mielóides crónicas e nas leucemias agudas que expressam a t (9;22) tem permitido aumentar drasticamente a sobrevivência destes doentes.

Os anticorpos monoclonais são um grupo novo e promissor de fármacos. Cabe aqui destacar o bortezomib (inibidor proteassómico) e o blinatumomab (uma molécula que medeia a toxicidade celular ao estabelecer uma ligação entre as células leucémicas que expressam o antigénio CD19 e as células T citotóxicas). Estas duas moléculas têm mostrado resultados muito promissores na terapêutica de recaídas em conjugação com os fármacos de quimioterapia convencional.

Efeitos secundários da quimioterapia

Os efeitos secundários da quimioterapia são, em geral, proporcionais à intensidade do tratamento, ou seja, ao número de citostáticos usados, às doses administradas e ao intervalo com que as faixas da quimioterapia são prescritas.

As náuseas e os vómitos constituem os efeitos secundários mais frequentes. Por outro lado, podem conduzir a desequilíbrio hidro-electrolítico grave e a má-nutrição.

Há, todavia, antieméticos muito potentes que ultrapassam estas complicações com relativa facilidade. Preferencialmente, a terapêutica antiemética deve ser instituída antecipadamente, antes da quimioterapia, e não apenas após o início dos sintomas. Os antieméticos mais utilizados em oncologia pediátrica são os antagonistas da serotonina e a metoclopramida, podendo combinar-se com a dexametasona e uma benzodiazepina de forma a obter potenciação de efeitos. A duração da terapêutica antiemética deve prolongar-se, pelo menos 24 horas após a administração de citostáticos muito emetizantes, como sejam a cisplatina, a ifosfamida e o melfalan.

mucosite, sobretudo a nível da orofaringe, esófago e mucosa intestinal, é um dos efeitos secundários mais vulgarmente observados; manifesta-se por secura e palidez das mucosas, aparecimento de placas esbranquiçadas, ulcerações, disfagia, dores abdominais, diarreia e proctite.

Os fármacos mais frequentemente implicados são as antraciclinas, a citosina-arabinosido, a actinomicina D e o metotrexato em alta dose. Nos doentes com pancitopénia, a lesão da mucosa do tubo digestivo pode funcionar como “porta de entrada” de microrganismos, gerando infecções oportunistas potencialmente graves, sobretudo fúngicas e bacterianas (E. coli, Klebsiella e Pseudomonas).

É importante que as crianças submetidas a quimioterapia mantenham hábitos regulares de higiene oral, com utilização de escovas suaves e dentífricos adequados. A terapêutica com nistatina tópica é eficaz nas situações de mucosite fúngica por Candida, podendo ser necessário, em casos mais graves, utilizar antifúngicos sistémicos, antibióticos e antivíricos nas crianças com neutropénia febril.

As queixas álgicas causadas pela mucosite não devem ser negligenciadas, uma vez que podem perturbar francamente o bem-estar da criança e o seu estado nutricional. Devem ser utilizados analgésicos, de acordo com a gravidade da situação clínica: incluem, desde anestésicos tópicos, até perfusões sistémicas de opiáceos. Deve, igualmente, ser instituída uma dieta de consistência e conteúdo adequados. (ver adiante)

depressão medular pode resultar da progressão da doença oncológica em si (como no caso das leucemias) ou ser consequência da quimioterapia. A incidência de infecções aumenta de forma inversamente proporcional ao número de neutrófilos, considerando-se risco grave de infecção se se verificar número absoluto de neutrófilos inferior a 0,5 x 109/L.

As infecções são a complicação mais grave e a principal causa de morte durante a quimioterapia, exigindo um elevado nível de suspeição clínica, atendendo a que os sinais e sintomas inflamatórios clássicos poderão estar ausentes em doentes neutropénicos. Sempre que o nível de neutropénia o justifique, estes doentes devem ser isolados, evitando-se o contacto com fontes exógenas potencialmente infectantes.

Como foi já referido anteriormente, a integridade da mucosa digestiva deve ser preservada através de uma correcta higiene oral e peri-rectal. É igualmente importante evitar a utilização de termómetros por via rectal, assim como a administração de enemas em doentes neutropénicos.

Nas crianças com cateteres venosos centrais, os cuidados de assépsia devem ser rigorosos em todas as manipulações do cateter; aplica-se o mesmo princípio em todos os procedimentos que impliquem lesão da barreira cutânea, como punções venosas, lombares ou biópsias ósseas.

imunossupressão a que estão sujeitas pela quimioterapia impede que estas crianças sejam imunizadas, particularmente com vacinas vivas.

Quando as crianças frequentam escolas (e devem ser incentivadas a fazê-lo fora dos períodos de neutropénia), os pais e médicos responsáveis devem ser imediatamente avisados sobre o contacto com crianças com varicela, (doença que pode ter um efeito devastador), a fim de serem tomadas medidas de suporte adequadas.

Nas situações de trombocitopénia grave, sobretudo se o número de plaquetas for inferior a 10-15 x 109/L, o risco de hemorragia gastrintestinal e do sistema nervoso central é elevado. Estas crianças devem evitar actividades físicas que possam causar traumatismos, assim como fármacos que interfiram com o número e actividade das plaquetas, como o ácido acetilsalicílico e o ibuprofeno. Sempre que se julgue necessário, a trombocitopénia deve ser corrigida através da transfusão de concentrado plaquetário (geralmente, 1 Unidade / 10 kg de peso). A transfusão de plaquetas associa-se com frequência a reacções caracterizadas por febre e tremores, o que se obvia com a irradiação sistemática do material transfundido e com a utilização de terapêutica prévia com hidrocortisona e clemastina. (ver Parte Hematologia)

anemia é um problema comum nas crianças com doença neoplásica sob tratamento. A decisão de transfundir (geralmente, 10 ml de concentrado eritrocitário / kg peso) deve ter em conta, não só os critérios definidos por cada instituição, mas também os sinais e sintomas que a criança apresente, tais como: hemorragia activa, cansaço extremo ou dispneia. Devem ser tomados os mesmos cuidados de irradiação do produto a transfundir e de terapêutica prévia atrás indicados.

alopécia é um dos efeitos secundários da quimioterapia mais frequentemente observados (sobretudo com as antraciclinas, a actinomicina, o etoposido e os agentes alquilantes). Habitualmente, é reversível com o fim da terapêutica citotóxica.

Tem sido descrito o aparecimento de tumores secundários, principalmente após a administração de citostáticos alquilantes, epipodofilotoxinas e antraciclinas, alguns anos após a utilização destes fármacos. São, habitualmente, leucemias mieloblásticas agudas, por vezes precedidas por síndromas mielodisplásicas, ou linfomas não Hodgkin. O prognóstico é, geralmente, muito reservado.

síndroma de lise tumoral é uma emergência oncológica grave e potencialmente fatal, resultante da destruição maciça de células malignas com elevado potencial mitótico associada à quimioterapia. Como resultado surgem: hiperuricémia; hiperpotassémia; hiperfosfatémia; e hipocalcémia (poderá surgir hipercalcémia em contexto de destruição óssea).

A síndroma de lise tumoral não tratada pode conduzir à insuficiência renal e morte. As medidas profilácticas e terapêuticas incluem hiper-hidratação, alcalinização da urina (mantendo um pH entre 7 e 8), alopurinol, ou, em alternativa, rasburicase (um análogo da urato oxidase, uma enzima que não existe no Homem, e que cataboliza a transformação de ácido úrico em alantoína, solúvel na urina).

Radioterapia

A radioterapia consiste na administração de radiações ionizantes com o objectivo de destruir as células tumorais, por lesão directa a nível do ADN, e por acção indirecta através da ionização da água intracelular, o que causa a formação de radicais livres tóxicos.

Pode ser administrada externamente (a forma mais habitual) sendo o feixe de radiações emitido a uma determinada distância do doente, ou internamente (braquiterapia), a partir de uma fonte de radiações colocada no tumor.

Um terceiro tipo de técnica consiste na administração sistémica de um radioisótopo que é captado preferencialmente pelas células tumorais, como é exemplo a 131I-metaiodobenzilguanidina (MIBG terapêutica) em certos estádios de neuroblastoma.

Efeitos secundários da radioterapia

As radiações ionizantes lesam todas as células, tumorais e não tumorais, dentro do território irradiado. Os efeitos secundários dependem do tipo de radiação, da dose, da duração do tratamento, da região anatómica, do volume corporal exposto e da tolerância individual. A pele, o couro cabeludo, a medula óssea e o tracto gastrintestinal são especialmente sensíveis às radiações. No entanto, os efeitos adversos tendem a desaparecer após o término da radioterapia, pela capacidade de renovação/cicatrização destes tecidos. Pelo contrário, órgãos com limitada replicação celular, como o encéfalo, a medula espinal, o coração e os rins, podem sofrer lesões que tendem a aparecer mais tardiamente e a ser irreversíveis. A idade da criança é igualmente um factor importante, já que quando um órgão é irradiado durante a sua fase de crescimento, as sequelas são mais graves. São exemplos as assimetrias de crescimento dos ossos irradiados antes do encerramento das cartilagens de conjugação, ou a radioterapia do sistema nervoso central antes dos cinco anos de idade, podendo provocar défice cognitivo e disfunção endócrina central.

As complicações agudas mais frequentes, dependendo da área irradiada, são: mal-estar geral; anorexia; náuseas e vómitos; disfagia; diarreia; cólicas abdominais; cistite; e alopécia. A irradiação do sistema nervoso central pode causar edema cerebral e uma síndroma de sonolência, fadiga, meningismo e febre podendo ocorrer até 6 a 8 semanas depois do início daquela.

A pele dos territórios irradiados torna-se especialmente sensível, exibindo lesões que podem ir, desde um vulgar eritema difuso, a queimaduras graves com descamação. Os doentes devem evitar o uso de roupas apertadas e utilizar, com regularidade, cremes hidratantes, protectores solares e, eventualmente, anti-inflamatórios tópicos.

A irradiação da medula óssea (como acontece na radioterapia da coluna vertebral) pode provocar pancitopenia transitória.

A longo prazo, e como já referido anteriormente, a radioterapia pode provocar alterações no crescimento e maturação de tecidos e órgãos, e induzir o aparecimento de segundas neoplasias.

Cuidados paliativos

Os cuidados paliativos a prestar aos doentes oncológicos são uma componente obrigatória do respectivo tratamento, com o objectivo fundamental de aliviar a dor, mal-estar e sofrimento daqueles, assim como da família e dos próprios prestadores dos cuidados.

Assim, assistentes sociais, psicólogos, educadores de infância, professores, técnicos de animação, voluntariado, são hoje imprescindíveis, fazendo parte integrante do grupo de profissionais existente nos centros oncológicos. É também importante uma boa articulação entre a unidade de Oncologia e outros Serviços de Saúde, permitindo o apoio local possível; tal estratégia contribui para a racionalização dos meios.

No que respeita a medidas gerais de promoção do máximo (possível) conforto, torna-se fundamental a presença dos pais e a atitude de humanização de todos os profissionais da equipa assistencial.

A dor nos doentes com cancro pode resultar da lesão do órgão afectado, de lesão óssea secundária a metástases, ou de compromisso neuropático. Pode ser combatida com fármacos opióides e não opióides de acordo com protocolos que ultrapassam o âmbito do capítulo. Entre os não opióides são utilizados o paracetamol e AINE.

Devem ser utilizados analgésicos de acordo com a gravidade da situação clínica: incluem, desde anestésicos tópicos (com lidocaína, por exemplo), até perfusões sistémicas de opiáceos. Neste caso, é frequente o uso de sulfato de morfina em perfusão contínua IV, começando por uma dose de 0,6 mg/kg/dia. Podem administrar-se em SOS bolus de 10% da dose da morfina nas horas seguintes, para se obter uma analgesia adequada. O somatório dos bolus após 24 h é então adicionado à dose inicial nos dias seguintes. Também podem ser usados adesivos de fentanil, de absorção transdérmica, que têm uma duração de cerca de três dias, e que obviam à necessidade de haver uma veia canalizada. Existem tabelas que permitem converter as doses de morfina em fentanil. Deve, igualmente, ser instituída uma dieta de consistência e conteúdo adequados.

Os capítulos sobre “Analgesia” e “Dor no RN” (Partes XXVIII e XXXI) proporcionam uma informação complementar.

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ASPECTOS BÁSICOS DO DIAGNÓSTICO ONCOLÓGICO

O processo diagnóstico

O processo diagnóstico duma neoplasia maligna inicia-se no momento em que o clínico levanta a suspeita. Uma vez que o diagnóstico precoce contribui para melhorar o prognóstico, o doente deverá ser dirigido o mais brevemente possível para um serviço especializado em oncologia pediátrica tendo em perspectiva e probabilidade de realização de exames complementares. Efectivamente, o atraso no diagnóstico conduzirá a estádios mais avançados da doença e, por isso, a menor possibilidade de cura.

Sendo uma patologia pouco frequente e curável na globalidade dos casos, é de boa prática concentrar as crianças com cancro num número reduzido de centros oncológicos, detentores dos meios cada vez mais sofisticados de diagnóstico e tratamento.

Manifestações clínicas

Os sinais e sintomas dos tumores da criança são em geral incaracterísticos, pelo que poderá haver um período de latência relativamente longo entre o início das manifestações e o diagnóstico, o qual pode ser de semanas ou, nalguns casos, de meses.

Uma das características da maioria dos tumores da criança é a de serem embrionários, derivados da mesoderme ou da neuroectoderme sendo, por isso, do ponto de vista histológico, sarcomas. Por este facto, a sua localização raramente se verifica num órgão específico, ao contrário do que acontece com os tumores do adulto, que são predominantemente carcinomas de um determinado órgão. Há, naturalmente, excepções, como o retinoblastoma, quase sempre localizado no globo ocular, ou o osteossarcoma que é o tumor ósseo mais frequente, ou ainda o tumor de Wilms, localizado habitualmente num rim. Mas o rabdomiossarcoma e outros sarcomas das partes moles, o sarcoma de Ewing/PNET, o neuroblastoma, os teratomas e muitos outros tumores designados por “sólidos” podem ter topografia diversa, sendo a sua sintomatologia variável consoante a sua localização.

Nestes tumores sólidos, a primeira manifestação resulta, em regra, de um efeito de massa que o tumor exerce sobre as estruturas adjacentes: assim, o crescimento do tumor provoca dor, quer por compressão das raízes nervosas vizinhas, quer por estiramento da cápsula do órgão que o contém; pode induzir alterações neurológicas focais, quer por lesão de raízes nervosas, quer por compressão da medula espinhal por crescimento intracanal através dos buracos de conjugação; pode originar estase venosa por compressão vascular; pode induzir dificuldade respiratória por compressão das vias aéreas. Todos estes sinais e sintomas dependem, assim, da topografia do tumor e não do seu tipo.

Se o tumor for intracraniano, crescendo numa caixa pouco distensível, manifesta-se inicialmente por sinais de hipertensão intracraniana, de que as cefaleias matinais persistentes ou que acordam a criança de noite e que aliviam com o vómito são o paradigma. Outras vezes, convulsões não febris e sinais neurológicos focais que variam com a localização do tumor são as manifestações inaugurais. Qualquer destes sinais e sintomas deverá levar a um exame neurológico cuidadoso e urgente.

Os tumores torácicos originam, em regra, sintomas e sinais mais precocemente que os tumores abdominais, devido à menor elasticidade da caixa torácica: dificuldade respiratória (quer por compressão das vias aéreas, quer por derrame pleural, quer, ainda, por efeito mecânico sobre o diafragma); síndroma da veia cava superior por compressão venosa; ou síndroma de Claude Bernard Horner (ptose palpebral, miose, endoftalmia). Se a localização do tumor for o mediastino posterior, as manifestações inaugurais serão muito provavelmente neurológicas por compressão de raízes nervosas ou da espinhal-medula, podendo também haver, se o tumor atingir grandes dimensões, outras manifestações acima referidas.

Os tumores abdominais podem atingir grande volume antes de provocarem sintomas e a sua primeira manifestação pode ser apenas distensão abdominal, ou massa que se palpa mas que é assintomática, como sucede com frequência no tumor de Wilms, muitas vezes detectado pela mãe ao dar banho ao filho, ou pelo médico em observação de rotina. Outras vezes, a distensão abdominal é extrema e dolorosa, como acontece com o linfoma de Burkitt. Mais raramente, são as manifestações à distância, devidas a focos metastáticos, que levam a procurar o tumor primitivo, como sucede com frequência no neuroblastoma abdominal que pode revelar-se, por exemplo, por metastização óssea causadora de dor, ou cutânea, com o aparecimento de nódulos.

Os tumores pélvicos manifestam-se, em regra, por perturbação da micção e/ou defecação por compressão directa da bexiga ou do recto, ou por perturbação do funcionamento dos esfíncteres por compressão de nervos. Outras vezes, as primeiras manifestações são as parestesias dos membros inferiores por compressão radicular.

Se o tumor se localizar no osso, uma dor persistente sem história de traumatismo, uma massa tumoral palpável, ou uma fractura patológica, são os sinais e sintomas habituais, quer nos tumores primitivos (como o osteossarcoma ou o sarcoma de Ewing), quer nos metastáticos (como o neuroblastoma).

Nos restantes tumores (leucemias e os linfomas), as manifestações mais comuns são o aumento das dimensões dos gânglios linfáticos (adenomegálias), do fígado (hepatomegália), do baço (esplenomegália), febre, diátese hemorrágica e dor óssea. O que se torna difícil é valorizar correctamente estas manifestações. Na verdade, com excepção da diátese hemorrágica, que é menos habitual e mais preocupante, devendo levar à realização de exames complementares de diagnóstico urgentes (começando por um hemograma), as outras manifestações confundem-se com patologias infecciosas víricas ou bacterianas, de fácil resolução.

Assim, adenomegálias (gânglios linfáticos com diâmetro superior a 1 cm) na região cervical superior ou submandibular são geralmente secundárias a focos infecciosos bacterianos regionais, tão frequentes na criança, ou infecções víricas (Epstein Barr, citomegalovírus – CMV), ou outras, como a toxoplasmose. Caracterizam-se por regredirem facilmente com antibioticoterapia, ou espontaneamente, podendo reaparecer perante novo foco infeccioso. Será a sua persistência ou um aumento progressivo, apesar dos tratamentos habituais, que deverá levantar a hipótese de uma causa neoplásica (leucemia, linfoma, rabdomiossarcoma, carcinoma da nasofaringe, neuroblastoma), obrigando a um exame mais cuidadoso.

As adenomegálias cervicais inferiores, supra claviculares ou axilares têm, em regra, um significado mais ominoso, sendo mais frequentemente de origem neoplásica que infecciosa. São persistentes e têm consistência firme. Não têm sinais inflamatórios, não são dolorosas, e podem fundir-se em conglomerados. Deverão evocar, entre outros, o diagnóstico de neuroblastoma num lactente ou numa criança muito jovem, de linfoma não Hodgkin numa criança em idade pré-escolar ou escolar, ou de linfoma de Hodgkin em crianças mais velhas.

Por outro lado, as adenomegálias generalizadas com ou sem febre, acompanhadas ou não de hepatosplenomegália, deverão evocar o diagnóstico de infecção, muito provavelmente vírica (Epstein Barr, CMV, etc.). Também aqui será a não confirmação do respectivo diagnóstico, a persistência das manifestações, e o eventual aparecimento de sinais e sintomas mais preocupantes, como diátese hemorrágica ou dor óssea, que levarão a admitir a hipótese diagnóstica de leucemia/linfoma.

Há, contudo, alguns sinais/sintomas que são preocupantes ab initio, e devem orientar o médico para um diagnóstico urgente. Enumeram-se os principais (cuja identificação implica o encaminhamento atempado da criança para centro especializado):

  • O aparecimento de massa tumoral nas partes moles do tronco ou membros, num lactente ou criança jovem, sem história de traumatismo, é sugestivo de rabdomiossarcoma, sarcoma de Ewing/PNET, ou neuroblastoma.
  • A instalação de estrabismo fixo num lactente, ou o achado de leucocória (opacificação esbranquiçada na pupila), também designada como “olho-de-gato”, obrigarão a uma observação urgente por oftalmologista, com fundoscopia, de preferência sob anestesia, com a forte suspeita de retinoblastoma.
  • Convulsões não febris, cefaleias persistentes que acordam a criança de madrugada e que aliviam com o vómito, sinais neurológicos focais, são manifestações que sugerem fortemente neoplasia do SNC, tornando fundamental uma observação cuidadosa por neurologista.
  • Manifestações de opsomioclonus (mioclonias associadas a movimentos erráticos dos globos oculares) devem evocar a possibilidade de neuroblastoma.
  • A instalação da síndroma de Claude Bernard Horner (ptose palpebral, miose, endoftalmia) poderá ser o primeiro sinal de um tumor cervical ou do tórax superior.
  • O diagnóstico de miastenia gravis deve evocar a possibilidade de timoma ou neuroblastoma.
  • Diarreia crónica pode ser a primeira manifestação de neuroblastoma ou de histiocitose de células de Langerhans.
  • Diabetes insípida pode preceder o diagnóstico de histiocitose de células de Langerhans ou de tumor do SNC.
  • Diátese hemorrágica (equimoses/petéquias/epistaxes/gengivorragias, etc.) podem traduzir patologia da medula óssea.
  • Síndroma febril indeterminada e/ou perda de peso poderão ser as únicas manifestações de uma neoplasia oculta durante muito tempo, impondo esclarecimento.

Caracterização do estádio evolutivo (estadiamento)

Colocada a hipótese diagnóstica de neoplasia, duas providências se tornam urgentes: confirmar o diagnóstico e caracterizar o estádio evolutivo da doença, ou seja, determinar a grau de extensão da mesma.

Todas as crianças com cancro têm, à partida, uma determinada probabilidade de cura que varia, naturalmente, com o tipo de tumor e o respectivo estádio evolutivo. Tal probabilidade é superior à da generalidade dos adultos com cancro, já que os tumores da criança são mais químio-sensíveis e rádio-sensíveis que os do adulto.

No entanto, para serem atingidos os bons resultados actuais, é necessário um diagnóstico e uma caracterização do estádio correctos, que permitam optar pelo protocolo terapêutico mais adequado. Deste último dependerá, finalmente, o sucesso do tratamento.

O diagnóstico das neoplasias da criança tem sofrido nos últimos anos uma grande evolução. Ao exame macroscópico, à microscopia óptica e à citoquímica tradicionais, juntaram-se os estudos de microscopia electrónica, de imunologia, de genética e de biologia molecular. Contudo, pela sua complexidade e custos, não são exequíveis em centros sem diferenciação oncológica.

Por isso, adoptando uma política de saúde quanto a concentração de recursos, existem actualmente no nosso País apenas quatro centros oncológicos pediátricos, localizados dois no Porto, no Hospital de S. João e Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, um em Coimbra no Hospital Pediátrico, e um em Lisboa no Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, onde são assistidas para diagnóstico, tratamento e seguimento, as cerca de 300 crianças que surgem anualmente com cancro.

As hipóteses diagnósticas são equacionadas de acordo com os dados colhidos e com a idade da criança: alguns tumores são mais frequentes na criança muito jovem, como o neuroblastoma e o tumor de Wilms; outros no adolescente, como o linfoma de Hodgkin, o osteossarcoma, ou o sarcoma de Ewing.

Os exames complementares são solicitados com base nas hipóteses diagnósticas mais pertinentes, partindo sempre dos mais simples, para os mais complicados, por exemplo do hemograma para o mielograma.

A este respeito cabe referir os chamados biomarcadores tumorais, substâncias encontradas em teores anormais em diversos fluidos orgânicos (sangue, urina, LCR, exsudados, transudados) ou em tecidos, os quais podem contribuir para o diagnóstico, caracterização do estádio evolutivo e para a avaliação dos resultados do tratamento.

Os dois mais comuns em Oncologia Pediátrica são glicoproteínas: a alfa-fetoproteína (AFP) e a beta-gonadotrofina coriónica humana (b-HCG), salientando-se, no entanto, que a elevação sérica dos mesmos poderá surgir em situações não neoplásicas (por ex, a AFP em doença hepática aguda, atrésia das vias biliares extra-hepáticas, hepatite, ataxia telangiectásia e tirosinémia).

Citam-se outros, alguns dos quais identificados por metabolómica e proteómica:

LDH, fosfatase alcalina, homocisteína, galectina-3, IGF-1(factor de crescimento), VEGF (factor de crescimento endotelial vascular) e endostatina, micro RNA, células tumorais circulantes, etc..

De referir igualmente que, ao contrário do que acontece no âmbito da medicina de adultos, em que os marcadores podem ser utilizados como rastreio (designadamente, dos cancros colo-rectal e da mama), em Pediatria a utilização dos marcadores tumorais deverá ser selectiva, estando em geral reservada para determinadas síndromas genéticas que predispõem a cancro (por ex. síndroma de Beckwith-Wiedemann, comportando risco elevado de hepatoblastoma e de tumor de Wilms).

ácido vanilmandélico e o ácido homovanílico, metabólitos da norepinefrina e dopamina, são marcadores tumorais do neuroblastoma, o mais frequente tumor sólido extracraniano em idade pediátrica.

Como marcadores citogenéticos de prognóstico de neuroblastoma, citam-se a amplificação do proto-oncogene MYCN (ou N-myc) e a identificação do gene supressor CHD5, relacionado com deleção 1p36.1.

Os estudos de imagem a realizar para diagnóstico e definição do estádio (as radiografias convencionais, a ecografia, o ecodoppler, a tomografia axial computadorizada, a ressonância magnética, os estudos isotópicos com gálio, tálio, tecnécio, metaiodobenzilguanidina, ou crómio, a tomografia com emissão de positrões / de alta definição) têm as suas indicações precisas, que devem ser conhecidas e aplicadas criteriosamente.

A colheita de material para diagnóstico é combinada com os especialistas que vão processar o material, o qual deverá ser conservado em meios apropriados tendo em conta a realização de estudos subsequentes.

Esta colheita pode ser feita por punção do tumor por agulha fina (citologia aspirativa), com anestesia local, e realizada no próprio gabinete de consulta se o tumor tiver localização superficial. O número de células assim obtido é relativamente reduzido, mas os progressos operados ultimamente quanto ao processamento e ao estudo do material permitem, muitas vezes, um diagnóstico seguro. Nos tumores de localização profunda, esta punção terá que ser feita com controlo imagiológico e o doente anestesiado.

Nos tumores sólidos, a citometria de fluxo utiliza-se em especial para determinar o conteúdo de ADN como marcador prognóstico, sobretudo nos tumores cerebrais e medulares. Nos últimos anos verificou-se que tal técnica é de grande utilidade no diagnóstico de neuroblastoma e sarcoma de Ewing. E, com a incorporação de novos anticorpos monoclonais e sondas, espera-se alargar a aplicação e utilidade da referida técnica a outros tumores pediátricos.

Nalguns casos, a colheita de líquido ascítico ou pleural permite obter um número suficiente de células neoplásicas para se fazer o diagnóstico, como sucede frequentemente nos linfomas. Outras vezes, o material obtido é insuficiente e torna-se necessário recorrer a biópsia.

Por qualquer destes meios, o material colhido é estudado em microscopia óptica e caracterizado por técnicas de imunofenotipagem, de genética e biologia molecular e, por vezes, de microscopia electrónica. Desta forma, é possível obter informações conducentes a um diagnóstico seguro e identificar factores prognósticos que permitam optar pela terapêutica mais adequada.

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TUMORES, AMBIENTE E GENÉTICA

Influência do ambiente

É consensual que os factores ambientais têm um papel preponderante na génese dos tumores do adulto e do idoso. A importância das radiações ionizantes, das substâncias químicas e das infecções víricas na oncogénese é bem conhecida. São numerosos os exemplos de exposições repetidas ao longo de anos que acabam por originar a neoplasia. O tabaco é um paradigma dessa situação.

Na criança, o primeiro ano de vida é o que corresponde a incidência de neoplasias é maior, reduzindo-se aquela progressivamente nos anos seguintes, para voltar a aumentar no início da adolescência. Assim sendo, se os factores ambientais têm alguma importância na génese dos tumores pediátricos, deduz-se que eles terão que actuar muito precocemente, por vezes ainda in utero ou até antes, a nível das gónadas dos progenitores.

Sendo um tema ainda controverso, apresentam-se seguidamente três exemplos que ilustram tal noção.

O primeiro diz respeito a pais que desempenharam profissões, antes ainda da concepção, em que houve exposição a determinados metais ou radiações, e em cujos filhos se tem descrito maior incidência de neoplasias.

O segundo exemplo é relativo a certas formas de leucemia mieloblástica da criança, diagnosticadas no primeiro ano de vida, as quais parecem ser devidas a uma exposição in utero a determinadas substâncias químicas do grupo dos inibidores da topoisomerase II. Estas leucemias caracterizam-se por rearranjos genéticos específicos no clone leucémico envolvendo o gene MLL, muitas vezes apenas detectado em genética molecular e não em genética convencional. Sucede que estes mesmos rearranjos genéticos são descritos como característicos de neoplasias secundárias da criança mais velha e do adulto, que foram tratados alguns anos antes, para uma primeira neoplasia, com citostáticos dos grupos das epipodofilotoxinas ou das antraciclinas. O que há de comum entre as epipodofilotoxinas e as antraciclinas é que são ambas inibidoras da topoisomerase II. Ora, algumas substâncias químicas entram, ainda que em pequenas doses, na indústria alimentar, e alguns antibióticos de uso corrente, do grupo dos inibidores da topoisomerase II, poderão fazer parte da dieta ou da prescrição medicamentosa da grávida. Naturalmente que nem todas as grávidas que se expõem a estas substâncias durante a gestação terão um filho com leucemia. Admite-se ter de haver uma predisposição genética na mulher grávida, que a tornará particularmente sensível a estes fármacos.

O terceiro exemplo diz respeito a substâncias químicas que, consumidas ou usadas durante a gravidez, são implicadas no aparecimento de neoplasias no filho, tais como a marijuana, o álcool, o benzeno e os pesticidas.

À semelhança do adulto, também algumas infecções víricas estão na origem de certas formas de cancro na criança: são bem conhecidas as relações entre a infecção pelo vírus da hepatite B e o carcinoma hepatocelular; pelo vírus do papiloma (HPV) e o cancro do colo do útero; e as relações entre o vírus de Epstein Barr e o linfoma de Burkitt africano ou a doença de Hodgkin.

Finalmente, a relação entre as radiações ionizantes e as neoplasias é conhecida desde o final do século XIX (Marie Curie terá falecido com leucemia). Ficaram tristemente célebres as crianças que, após irradiação do crânio para tratamento de infestação por pediculus capitis, surgiram com tumores do SNC ou que, após irradiação dum timo hiperplásico, surgiram com tumores deste órgão.

Actualmente, é bem conhecido o risco de incidência de tumores das partes moles, do osso, ou do SNC, em crianças previamente irradiadas para tratamento de neoplasias anteriores.

Por outro lado, estudos recentes encontraram uma relação entre o emprego de óxido nítrico (NO) aplicado em ventilação neonatal e cancro na idade pediátrica.

Se os factores ambientais acima referidos são hoje associados à génese das neoplasias da criança, convém notar, contudo, que estes casos são excepcionais e que para a maioria dos tumores pediátricos a relação com supostos factores ambientais não se conseguiu ainda estabelecer.

Genética

Na génese dos tumores intervêm fundamentalmente três tipos de genes: 1) os genes supressores (ou antioncogenes) dos tumores; 2) os oncogenes, derivados dos proto-oncogenes, que promovem a transformação maligna de determinadas células; e 3) os genes que promovem a estabilidade e a reparação do ADN.

Os genes supressores dos tumores (GST ou TSG) em situações de normalidade controlam a proliferação celular e promovem a apoptose (morte celular programada). Se houver inactivação de ambos os alelos de um TSG por mutação ou deleção, surgirá proliferação celular descontrolada, contribuindo para a formação de tumores.

Os oncogenes normalmente potenciam a proliferação celular, sendo que a mutação de um só alelo é suficiente para produzir crescimento celular descontrolado. Por outro lado, os genes de reparação e estabilidade do ADN, se forem inactivados, permitirão que as células portadoras de ADN alterado se transformem em células malignas e proliferem.

Abordando aspectos básicos de genética associados à oncologia, terá interesse para o clínico conhecer o significado da sigla da língua inglesa – MEN, muitas vezes citada na literatura: neoplasia endócrina múltipla. Tal conceito integra 3 diferentes doenças: MEN tipo 1 (MEN 1) causada por mutação no gene supressor; e MEN 2A e MEN 2B, causadas por mutações no proto-oncogene (designado RET). Como exemplo prático, e relativamente ao feocromocitoma, a situação de MEN 2A comporta um risco deste tumor ~ 50%, e a de MEN 2B superior a 50%.

Há tumores de transmissão hereditária em que é possível encontrar história familiar: é o caso do retinoblastoma e de certos adenocarcinomas da tiroideia de tipo medular em que, (40%, e 50 a 80% dos casos, respectivamente), há antecedentes de doença igual num dos progenitores.

Há famílias em que a incidência de determinadas neoplasias é muito superior à da população em geral. Cita-se a síndroma de Li-Fraumeni, em que a frequência de leucemia, de tumores das partes moles, nomeadamente rabdomiossarcoma, e de carcinoma da mama é, em várias gerações da mesma família, muito superior à habitual.

Há crianças com determinadas alterações genéticas em que há maior incidência de neoplasias. É o que sucede na trissomia 21 em que o risco de aparecimento de leucemia é vinte vezes superior ao das outras crianças. É também o caso da síndroma de WAGR, síndroma caracterizada por aniridia e atraso do desenvolvimento intelectual, em que é muito grande a probabilidade de tumor do rim (tumor de Wilms). É ainda o que sucede nas síndromas de instabilidade cromossómica como a síndroma de Bloom, a ataxia-telangiectasia ou a anemia de Fanconi, em que a ocorrência de linfomas é superior à da população pediátrica em geral.

Em todos os casos acima referidos há alterações genéticas que predispõem para o aparecimento de neoplasias por mecanismos ainda mal conhecidos.

Nas últimas décadas, têm sido descritas alterações genéticas nas células tumorais, não verificadas nas células normais. Algumas dessas alterações são aleatórias, traduzindo apenas uma grande instabilidade genética e, portanto, sem significado particular. Outras são, no entanto, específicas e têm hoje importância no diagnóstico, prognóstico e compreensão da génese do tumor.

A primeira alteração genética característica de uma neoplasia foi descrita na década de sessenta do século passado. Trata-se de uma translocação entre o cromossoma 9 e o cromossoma 22 no clone celular da leucemia mielóide crónica. Este cromossoma recebeu o nome de Philadelphia em homenagem à cidade onde foi inicialmente descrito. Muitas outras alterações cromossómicas estruturais (translocações, deleções) e quantitativas, ou seja, com variação do número de cromossomas, foram sendo descritas posteriormente, com maior frequência na última década, em leucemias, linfomas e tumores sólidos.

Com o advento da genética molecular percebeu-se que estas alterações são responsáveis por rearranjos do material genético, típicos de cada tumor, e com importância na oncogénese. Os progressos obtidos nesta nova ciência tornaram-se tão importantes que, actualmente, muitos diagnósticos são feitos, não pelos métodos clássicos da morfologia e imunocitoquímica, mas por Genética.

À medida que os conhecimentos em Genética vão progredindo, novas noções sobre oncogénese vão surgindo, ultrapassando o âmbito deste capítulo.

Justifica-se, no entanto, fazer referência à teoria de Greaves, pela visão global que lança sobre as eventuais causas de uma forma “nova” de leucemia aguda da criança, que poderá ser considerada como paradigma da oncogénese.

Nos países ocidentais regista-se um pico de incidência de leucemia aguda linfoblástica na criança entre os dois e os quatro anos de idade, não descrito noutras zonas do mundo. Trata-se de uma leucemia particularmente quimiossensível e, portanto, de melhor prognóstico. Curiosamente, esta forma particular de leucemia da criança, descrita pela primeira vez na Grã-Bretanha no final da década de 40, só foi encontrada nos EUA na década de 60, primeiro nas crianças de raça branca, e só depois nas crianças de raça negra, tendo atingido, apenas nos anos 80, o Japão.

teoria de Greaves admite como possível uma relação entre o aparecimento deste tipo novo de leucemia e alterações registadas na vida das crianças destes países, a partir do final da segunda guerra mundial. Assim, o parto hospitalar em condições de assepsia em substituição do parto no domicílio, o curto período de aleitamento materno e sua substituição por leites dietéticos, a redução das fratrias e a substituição precoce do ambiente familiar pelo ambiente do infantário, condicionariam uma anormal estimulação de um sistema imunitário ainda imaturo que levaria à neoplasia.

Mais recentemente, verificou-se que muitas crianças com este tipo «novo» de leucemia apresentam no seu clone leucémico uma translocação (t) envolvendo os cromossomas 12 e 21, a t (12;21), o que condiciona uma fusão dos genes TEL e AML1.

Greaves demonstrou, através do exame do sangue destas crianças armazenado nos cartões de papel de filtro, (usados para o diagnóstico precoce de certas doenças no período neonatal, contendo sangue capilar), que esta t (12;21) era já detectável à nascença, ou seja, 2 a 4 anos antes de as mesmas adoecerem. Verificou-se, posteriormente, que apenas cerca de 1% das crianças nas quais é detectada esta translocação no período neonatal irá adoecer, de facto, com leucemia, admitindo-se, assim, ser necessário outro ou outros factores (infecciosos, na teoria de Greaves) para continuar o processo de oncogénese.

A teoria multifactorial desenvolvida por este autor para explicar a génese deste tipo de leucemia já era aplicada a outras neoplasias, como o retinoblastoma. Na verdade, segundo a teoria de Knudson, são necessárias duas deleções sucessivas no cromossoma 13 para que o retinoblastoma surja. Se ambas as mutações ocorrerem numa célula somática da retina, o tumor é esporádico, unilateral e mais tardio. Se a primeira mutação se der na célula progenitora, e a segunda na célula somática da retina, o tumor é hereditário, muitas vezes bilateral, e surge muito precocemente nos primeiros meses de vida.

Reportando-nos ao papel dos genes, (oncogenes e genes supressores) cabe referir que o HPV 19 induz transformação maligna inactivando o gene supressor do tumor.

O desenvolvimento do cancro pode ainda estar ligado ao imprinting do genoma, e que consiste na inactivação selectiva de um de dois alelos de certo gene.

Verifica-se, assim, haver uma relação entre Genética e Ambiente, aspecto subjacente na oncogénese da generalidade dos tumores pediátricos, desconhecendo-se, no entanto, muitos dos mecanismos íntimos de tal relação.

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INTRODUÇÃO À ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Importância do problema

Poucas áreas da Medicina sofreram tantas alterações nos últimos anos como a Oncologia Pediátrica. A maioria dos cancros em Pediatria tornou-se tratável. Doenças que eram incuráveis, como a leucemia linfoblástica aguda, atingiram probabilidades de cura superiores a 80%. Estes resultados devem-se, não só aos progressos no diagnóstico e tratamento, mas também à melhoria dos meios de suporte. As terapêuticas são cada vez mais estratificadas, de acordo com os diversos critérios de risco. Os conhecimentos adquiridos em ciências básicas como a Imunologia e a Genética, vieram abrir novas perspectivas no campo do diagnóstico e do tratamento. Os protocolos cooperativos internacionais permitiram acrescentar experiências, obtendo-se cada vez melhores resultados. Cirurgias e outras terapêuticas que causavam mutilações graves foram substituídas por técnicas que poupam a função e a estética. O objectivo deixou de ser o de “tratar a todo o custo”, para o de “tratar ao menor custo possível”.

Sendo a Oncologia Pediátrica uma subespecialidade ou ramo da Pediatria, este capítulo limitar-se-á a uma apresentação genérica de tópicos que, pela sua importância, deverão ser do conhecimento de todos os médicos.

Numa primeira parte, os mesmos serão abordados dando especial ênfase aos conceitos fundamentais sobre oncogénese, semiologia, diagnóstico e tratamento; e, numa segunda parte, aos grupos mais representativos da Oncologia Pediátrica: hemopatias malignas (leucemias, linfomas) e tumores sólidos (neuroblastoma e tumor de Wilms).

O retinoblastoma é abordado na parte referente à Oftalmologia, noutro volume do livro.

Aspectos epidemiológicos

A doença oncológica é rara na idade pediátrica. No entanto, no mundo ocidental o cancro representa a principal causa de morte em tal faixa etária. A incidência anual de novos casos é cerca de 16 por cada 100.000 crianças com menos de 15 anos, sendo um pouco mais elevada (21 por cada 100.000) até aos 18 anos.

Em Portugal, de acordo com o INE, há cerca de um milhão e setecentas mil crianças e jovens com idade inferior a quinze anos, estimando-se que o número de novos casos por ano atinja a cifra de cerca de trezentos e cinquenta.

Nas Figuras 1 e 2 e Quadro 1 são discriminadas, respectivamente, as neoplasias mais habituais na criança, segundo os dados estatísticos do National Cancer Institute (NCI) dos EUA, e do Serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia de Lisboa.

FIGURA 1 – Distribuição percentual dos diferentes tipos de cancro em crianças com < 15 anos. SEER (Surveillance, Epidemiology, and End Results program), 1973-2010

FIGURA 2 – Incidência de cancro em idade pediátrica ao longo das últimas décadas. SEER (Surveillance, Epidemiology, and End Results program), 1975-2012

QUADRO 1 – Neoplasias mais frequentes no Serviço de Pediatria do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil, Lisboa

Anos201620152014
LEUCEMIAS375029
TUMORES DO SNC274532
LINFOMAS232515
NEUROBLASTOMAS14812
SARCOMAS121517

Em ambas as quantificações se poderá verificar que as leucemias agudas e os tumores do sistema nervoso central (SNC) representam cerca de 50% da totalidade dos casos. Os linfomas (doença de Hodgkin e linfoma não Hodgkin) representam cerca de 10% dos tumores.

As restantes neoplasias, designadas vulgarmente por tumores sólidos, constituem um leque vasto de tumores diferentes, destacando-se, por ordem decrescente de frequência: neuroblastoma; sarcoma das partes moles; tumor de Wilms; e tumores ósseos.

A frequência dos vários tumores nos diferentes grupos etários é muito característica e serve para orientação diagnóstica. O neuroblastoma, o tumor de Wilms, a leucemia mieloblástica aguda, os tumores do SNC e os tumores das partes moles, principalmente o rabdomiossarcoma, são as neoplasias predominantes nos primeiros cinco anos de vida.

Por outro lado, a doença de Hodgkin, o osteossarcoma e o sarcoma de Ewing são mais frequentes na pré-adolescência e adolescência. As leucemias linfoblásticas agudas têm um “pico” de incidência entre os dois e os quatro anos de idade.

A incidência das neoplasias em Pediatria tem vindo a aumentar gradualmente ao longo dos anos. Os estudos epidemiológicos mostram um aumento de 11,5% em vinte anos, ou seja, um aumento anual rondando os 0,5%.

Esta evolução não se verificou, no entanto, de igual modo em todas as neoplasias. Com maior relevância nas leucemias, tumores do SNC, osteossarcomas e hepatoblastomas, as variações são difíceis de interpretar e as opiniões dividem-se:

  • reflexo de um maior acesso das populações ao serviços de saúde?
  • melhoria nos meios de diagnóstico? ou
  • verdadeiro aumento do número absoluto de casos?

Seguimento e resultados globais

A maioria das crianças com cancro vai sobreviver cinco ou mais anos após o diagnóstico. A percentagem global de sobrevida ronda os 80 % nos diagnósticos depois de 2004. Este aumento de sobrevida foi especialmente relevante nas leucemias linfoblásticas agudas, o cancro mais frequente em Pediatria, passando de 0% na década de 50 para os cerca de 85% na actualidade. No entanto, noutros casos, a mortalidade continua a ser muito elevada e inaceitável, como é o caso de alguns tumores do sistema nervoso central.

Uma interrogação frequente é saber sobre o que sucede aos sobreviventes. Estudos que envolvem grandes grupos de sobreviventes mostram que existe uma incidência cumulativa crescente de risco de morbilidade e mortalidade, em comparação com os mesmos indicadores na população em geral. O risco de morte prematura é maior nas primeiras décadas após o diagnóstico, diminuindo com os anos. Estas mortes devem-se, sobretudo, a recaídas tardias, a segundas neoplasias, e a patologias cardio-vasculares ou respiratórias.

Os doentes tratados mais recentemente evidenciam melhores resultados em termos de morbilidade e mortalidade, reflectindo as melhorias das terapêuticas antineoplásicas, quer em termos de eficácia, quer em termos de menor grau de efeitos secundários tardios.

Em suma, o acompanhamento a longo prazo destes sobreviventes tem permitido:

  • um reconhecimento e tratamento precoces de sequelas comprometendo a qualidade de vida; e
  • uma aquisição de conhecimentos sobre como continuar a melhorar os tratamentos das crianças com cancro.

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PANCREATITE

Definição e importância do problema

A pancreatite (processo inflamatório do pâncreas caracterizado pela presença de edema intersticial, infiltração por células inflamatórias e vários graus de necrose) é uma doença que afecta todas as idades, sem predomínio de sexo. Por ser pouco frequente em idade pediátrica é muitas vezes esquecida e subdiagnosticada. A noção actual de que o trauma e a doença multissistémica podem causar pancreatite, bem como o reconhecimento crescente desta efecção como causa de dor abdominal e vómitos, têm contribuído para aumento da incidência da pancreatite aguda nos últimos 10 a 15 anos.

Classificação

Recentemente, foram publicados pelo “International Study Group of Pediatric Pancreatitis: In Search for a Cure (INSPPIRE)” as definições das 3 formas de pancreatite em Pediatria.

pancreatite aguda (PA) é um processo inflamatório agudo da glândula pancreática.

pancreatite crónica, rara na criança, é definida pela presença de lesões inflamatórias crónicas caracterizadas pela destruição do tecido exócrino, presença de fibrose e, num estado avançado da doença, lesão do tecido endócrino. É diagnosticada na presença de: (1) dor abdominal típica mais achados imagiológicos característicos ou (2) insuficiência exócrina e achados imagiológicos ou (3) insuficiência endócrina e achados imagiológicos.

A pancreatite crónica inclui fundamentalmente a pancreatite hereditária (mutações no gene PRSS1), a pancreatite tropical juvenil e a pancreatite autoimune (podendo cursar com elevação de gamaglobulinas, de IgG ou IgG4 e a presença de autoanticorpos). Descrevem-se igualmente formas obstrutivas pancreático-biliares e tóxico-metabólicas, de etiopatogénese comum com as formas agudas (ver adiante).

A chamada PA recorrente é observada em cerca de 10% dos casos após um primeiro episódio de PA, sendo mais frequente em crianças com alterações estruturais, ou associada a doença sistémica (lúpus eritematoso, fibrose quística, pancreatites genéticas). Estão descritos casos idiopáticos.

Etiopatogénese

Na pancreatite a autodigestão da glândula pelas suas próprias enzimas constitui um dos mecanismos essenciais. Em condições de normalidade o pâncreas está protegido deste fenómeno pelas seguintes razões:

  1. armazenamento das enzimas em grânulos de zimogénio;
  2. secreção da maior parte das enzimas em forma de precursores que se activam exclusivamente a nível duodenal;
  3. cossecreção de inibidores das proteases.

Efectivamente, a ruptura de um destes mecanismos de protecção leva a activação prematura das enzimas no próprio pâncreas, estando demonstrado experimentalmente que as enzimas activadas provocam:

  • destruição proteolítica do tecido pancreático;
  • necrose dos vasos sanguíneos com consequente hemorragia;
  • necrose gorda pelas enzimas lipolíticas, e
  • reacção inflamatória.

Salienta-se que, após actuação do factor etiológico, há libertação de citocinas com consequente deplecção de antioxidantes e ulterior activação de pró-enzimas.

Estas alterações ocorrem em graus variáveis, desde a doença ligeira (necrose gorda peripancreática e edema intersticial) à doença grave (necrose gorda peri e intrapancreática, necrose do parênquima e hemorragia) associada a choque e falência multiorgânica.

O envolvimento pancreático pode ainda ser localizado ou difuso, com consequentes alterações, quer da função exócrina, quer da endócrina. Estudos mais recentes usando ratinhos knock-out evidenciam outras vias de lesão pancreática para além da tripsina, que poderá ser apenas uma das “peças do puzzle“. Distúrbios na via da autofagia e disfunção lisossomial das células acinares pancreáticas compreendem outros mecanismos patológicos inter-relacionados na génese da PA.

Na idade pediátrica a etiopatogénese é muito mais variada do que no adulto, em que cerca 80% dos casos de PA estão associados ao alcoolismo e a doença do tracto biliar. (Quadro 1 descrevendo por ordem decrescente de frequência, as principais causas implicadas na idade pediátrica).

Em cerca de 8-35% dos casos não é possível estabelecer a causa da pancreatite.

QUADRO 1 – Factores etiológicos de pancreatite aguda na idade pediátrica

Comuns
    • Alterações biliares
    • Medicamentos
    • Idiopáticas
    • Doenças sistémicas
Menos comuns
    • Traumatismos
    • Infecção
    • Doenças metabólicas
    • Doenças genéticas/hereditárias
Raros
    • Mecanismos autoimunes
  1. As anomalias das vias biliar e pancreática (por ex. quistos do colédoco, os coledococeles, pâncreas anular, disfunção do esfíncter de Oddi e canal pancreático-biliar comum (pancreatite biliar) surgem em todas as séries pediátricas como uma das três primeiras causas de pancreatite, comparticipando esta em cerca de 30%. A obstrução da via biliar, podendo dever-se a obstrução por cálculo em mais de 50% das situações, tem como factores predisponentes doenças hemolíticas, obesidade, fibrose quística, antecedentes de reacção do íleo, e hepatopatias em geral. A formação de “lama” ou “rolhão” biliar descreve-se nas pancreatites biliares no contexto de nutrição parenteral ou do emprego de certos fármacos. As anomalias estruturais do pâncreas, mais raras, estão em geral associadas a pâncreas divisum. Um procedimento que pode comparticipar em cerca de 2-7% a pancreatite é a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE).
  2. Uma grande diversidade de fármacos pode provocar PA na criança, sendo os mais frequentemente implicados o valproato de sódio (o mais referido na literatura), a L-asparaginase, a prednisolona e a 6-mercaptoprurina. Os mecanismos em causa, discutíveis, por vezes estão associados. Admite-se toxicidade directa, hipersensibilidade e hiperlipidémia ou hipercalcémia secundárias à administração dos mesmos.
  3. Depois das formas idiopáticas, nas várias séries publicadas nos últimos anos, os casos de PA associada a doenças multissistémicas graves têm aumentado. Destas, a síndroma hemolítica urémica é a principal responsável (em cerca de 35% dos casos), admitindo-se o papel da ureia, da hemólise ou de um possível factor pancreático lesivo como mecanismos possíveis da pancreatite, isoladamente ou em associação. Outras causas de doença sistémica são a sépsis, o choque, o LES e a doença inflamatória intestinal.
  4. trauma é também uma causa comum de PA na criança (entre 10-40% ). Na maioria dos casos trata-se de situação acidental (por exemplo queda sobre o guiador da bicicleta); no entanto, os casos descritos resultantes de maus tratos são cada vez mais frequentes.
  5. As infecções surgem em menos de 10% dos pacientes com pancreatite, relevando-se os vírus como os agentes infecciosos mais frequentes, e colocando-se em primeiro lugar o vírus da parotidite. Contudo outros podem estar implicados como: enterovírus, vírus de Epstein-Barr (VEB), das hepatites A e E, rotavírus, adenovírus, citomegalovírus (CMV), da rubéola, coxsackie, herpes-varicela-zoster, do sarampo e influenza. Nos países do terceiro mundo e nas regiões tropicais, a obstrução do canal de Wirsung pelo parasita Ascaris lumbricoides tem sido associada a casos de PA.
  6. As causas metabólicas de PA são menos frequentes; incluem situações diversas, como cetoacidose diabética, hipertrigliceridémnia e hipercalcémia (a qual poderá ser secundária a hiperparatiroidismo). Mais raramente, há casos associados a aminoacidémias e a doenças do ciclo da ureia.
  7. As pancreatites hereditárias e outras formas afins de pancreatite que ocorrem em famílias com uma incidência de PA superior à da população em geral, enquadram-se no grupo de pancreatites agudas menos comuns, com etiopatogénese do foro genético; segundo alguns autores, estas formas integram igualmente as classificações das pancreatites crónicas e ou recorrentes. Com efeito, nos últimos anos têm sido descritas diversas entidades de pancreatites associadas a mutações em diversos genes, designadamente:
    • mutações no gene que codifica o CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator);
    • mutações no gene que codifica o tripsinogénio catiónico (PRSS1);
    • mutações no gene que codifica o inibidor da tripsina pancreática (serine protease inhibitor, Kazal type 1- SPINK1). Tais mutações foram identificadas como importantes na génese da pancreatite aguda recorrente e crónica.

    Mais recentemente foram descritas mutações no gene do quimiotripsinogénio (CTRC) e no gene receptor sensor de cálcio (CASR) como factores causais de pancreatites genéticas. De salientar que há casos descritos em que foi demonstrada associação de genes mutantes, por ex. SPINK1 e CFTR.
    Todas estas mutações geram uma activação prematura do tripsinogénio a nível da célula acinar, ou desregulação nos mecanismos de protecção que controlam a actividade da tripsina.
    Com o desenvolvimento da genética, torna-se lógico admitir que a proporção de casos idiopáticos tenderá a diminuir.

  8. As pancreatites autoimunes são causa de pancreatite recorrente aguda ou crónica. Subdividem-se em: do tipo 1 (associada a hipergamaglobulinémia e aumento IgG4); e do tipo 2, geralmente relacionada com outras doenças autoimunes, por exemplo a doença inflamatória intestinal.

Manifestações clínicas

A dor abdominal é o sintoma mais frequente. Geralmente de início súbito, intensa e localizada ao epigastro, pode, contudo, ser gradual, constante ou intermitente, e difusa ou localizada noutros quadrantes. A irradiação típica para o dorso referida nos adultos é observada somente em cerca de 1,6-5,6% dos casos. Como sintomatologia comum citam-se: irritabilidade (a valorizar em crianças que não verbalizam), distensão abdominal, ausência ou diminuição da peristalse, defesa abdominal e febre, vómitos, náuseas e anorexia. As refeições são um factor agravante da dor e dos vómitos.

O achado mais frequente é a dor à palpação do epigastro. O abdómen pode estar distendido, com diminuição dos ruídos hidro-aéreos (quadro de íleo paralítico). A criança assume muitas vezes uma posição anti-álgica, com flexão dos joelhos e das ancas /posição “em gatilho”. Febre baixa, taquicárdia, hipotensão e icterícia, podem estar presentes. Equimoses nos flancos (sinal de Gray Turner) ou na região periumbilical/coloração “azulada da pele” (sinal de Cullen), são raramente observadas nas pancreatites hemorrágicas graves.

Diagnóstico

O diagnóstico de PA é clínico, laboratorial e imagiológico. Na ausência de um exame complementar específico que confirme o diagnóstico, a elevação da amilase ou da lipase séricas (pelo menos 3 vezes o limite superior do normal), constitui ainda o parâmetro biológico mais clássico. No entanto, em cerca de 10-15% dos casos, ambas as enzimas podem evidenciar inicialmente níveis normais coincidindo com evidência clínica e radiológica de PA. De referir que valores mais elevados não estão relacionados com a etiologia.

A amilasémia, elevada quando surgem os primeiros sintomas, assim permanece na maioria dos casos durante 5 a 10 dias. No entanto, tal parâmetro, com semi-vida mais curta que a lipase, pode normalizar mais precocemente que esta. Por sua vez, o doseamento urinário da amilase está aumentado em todas as situações de hiperamilasémia; mas tal aumento é mais tardio.

Sendo a lipase quase exclusivamente sintetizada pelo pâncreas, as respectivas sensibilidade e especificidade são superiores às da amilase. Aquela, aumentada no início da pancreatite, permanece elevada durante mais tempo (respectivamente 8-14 dias versus 1-4 dias). Como em determinada proporção de casos, até 10%, apenas a lipase está elevada, ambos os marcadores devem ser doseados na suspeita de pancreatite. Os níveis de amilase e lipase numa PA podem ser tanto mais baixos quanto menor a idade da criança.

Salienta-se, a propósito, que a amilasémia pode estar aumentada nas seguintes situações: parotidite, doença inflamatória intestinal, anorexia nervosa, bulimia, litíase biliar, perfuração de úlcera péptica, e certas doenças sistémicas (acidose metabólica, insuficiência renal, queimadura, traumatismo craniano).

Outras enzimas, como a fosfolipase A2, a tripsina, a elastase, a proteína específica do pâncreas (PASP), e a proteína associada à pancreatite (PAP), embora com valores elevados na PA, não têm superioridade diagnóstica em relação à amilase ou à lipase.

Observa-se frequentemente leucocitose, hiperglicémia, hipocalcémia, hiperbilirrubinémia, assim como valores elevados das transaminases, da fosfatase alcalina e da glutamil transpeptidase (GGT).

A ecografia e a tomografia computadorizada (TAC) abdominais são os exames mais usados para documentar a PA, determinar a gravidade e identificar complicações. Os achados ecográficos mais frequentes são o aumento de volume do pâncreas, traduzindo edema, e a diminuição da ecogenicidade. A TAC, o exame radiológico de escolha para avaliar a gravidade e detectar complicações quando a doença se prolonga, só será necessária em cerca de 1/3 dos casos. De salientar que uma TAC com contraste, realizada precocemente no início da doença, poderá diminuir o fluxo sanguíneo às áreas já isquémicas e, deste modo, aumentar as regiões de necrose.

A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) ou a colangiopancreatografia por ressonância magnética (MRCP), de preferência com estimulação com secretina, devem ser realizadas apenas nos casos de episódios recorrentes de pancreatite, na suspeita de defeito estrutural, de distorção ou ruptura ductal e, nalguns casos, de pancreatite litiásica.

Em 30% dos casos, a radiografia simples do abdómen evidencia o clássico sinal da “ansa sentinela”.

Tratamento

O tratamento da PA, essencialmente de suporte, depende da gravidade da doença.

Os critérios de gravidade estabelecidos para os adultos não são aplicáveis na idade pediátrica. Recentemente, o Midwest Multicenter Pancreatic Study Group, baseado nos critérios de Ranson e Glasgow, propôs um índice de gravidade (score PAPS) para a criança, atribuindo 1 ponto a cada um dos seguintes parâmetros: idade (< 7 anos), peso (<23 Kg), leucocitose (>18.500/mmc), lactato-desidrogenase (>2.000 IU/L), sequestração de fluidos durante 48 horas (>75 ml/kg/48h), calcémia às 48h (<8,3 mg/dl), albumina às 48h (<2,6 g/dl) e subida da ureia em 48h (>5 mg/dl). O valor de corte (cutt of) indiciando mau prognóstico corresponde à verificação de mais de 3 critérios presentes.

Das crianças com 0 a 2 pontos, 8,6% têm PA grave com mortalidade de 1,4%. Com 2 a 4 pontos, 38,5% têm PA grave e mortalidade de 5,8%. Com 5 a 7 pontos 80% têm PA grave e mortalidade de 10%.

Num estudo retrospectivo sobre PA na idade pediátrica concluiu-se que um valor sérico de lipase >7 vezes o normal nas primeiras 24h era factor previsível de PA grave, com uma sensibilidade de 85% e especificidade de 54%.

As crianças com pancreatite grave devem ser tratadas em unidades de cuidados intensivos.

A terapêutica nas formas ligeiras a moderadas inclui: analgesia (paracetamol, cetorolac e analgésicos opióides), anti-eméticos, fluidos endovenosos e “descanso” da glândula.

A ressuscitação com fluidos deve ser precoce e agressiva (suprimento ~1,5 x as necessidades hídricas).

O início precoce de alimentação entérica é actualmente recomendado. Nos adultos, verificou-se que a alimentação entérica precoce reduz as complicações da pancreatite aguda.

Entre 1-3 dias após o início de pancreatite aguda pode iniciar-se alimentação entérica (por via oral, nasogástrica ou nasojejunal). A dieta pode ser regular, contrastando com recomendações mais antigas de dietas hipolipídicas.

A alimentação parentérica geralmente não está indicada, a menos que haja intolerância à entérica, fístula pancreática ou síndroma compartimental abdominal.

Os antibióticos devem ser reservados para os casos de necrose infectada, não estando recomendados profilacticamente.

Vários tipos de terapêutica estão a ser actualmente investigados em adultos em situações de pancreatite aguda. São exemplos os estudos pré-clínicos e clínicos utilizando diversos tipos de fármacos: anti-secretores pancreáticos (ex. glucagom, atropina, somatostatina/octreótido); inibidores das proteases (ex. aprotinina, mesilato de gabexato e o nafomostato); imunomoduladores (ex. análogos da proteína C); AINE (ex. indometacina, actualmente aprovada por via rectal imediatamente após CPRE); antioxidantes (ex. acetilcisteína, metionina, betacaroteno, selénio, ácido ascórbico, alfa-tocoferol e vitamina A); e antifibrinolíticos (ex. ácido epsilon-aminocapróico).

Na maioria dos estudos, os resultados são controversos e os fármacos ainda não estão aprovados para aplicação na prática clínica.

De referir ainda a transplantação de células Beta (em fase de investigação), e os estudos em que se procedeu ao isolamento e diferenciação de células pancreáticas ductais com a potencialidade de secreção de insulina.

Complicações e prognóstico

Nos casos de pancreatite aguda não complicada verifica-se em geral recuperação em 4-5 dias.

Durante a primeira semana, as potenciais complicações são em geral as sistémicas: hiperglicémia, hipocalcémia, hiperlipidémia, hipercaliémia, acidose metabólica e coagulação intravascular disseminada.

As complicações tardias ocorrem após a segunda semana de doença e incluem os pseudoquistos (definidos como uma colecção homogénea rica em enzimas pancreáticas, sem revestimento epitelial, contidos por uma membrana de tecido de granulação), e os abcessos. O risco de se desenvolver quisto ou pseudoquisto é maior nas pancreatites causadas por traumatismo abdominal (39%) do que nas relacionadas com outras causas (5%).

As manifestações clínicas dos pseudoquistos são dores abdominais com náuseas e vómitos e, mais raramente, icterícia. Muitas vezes é palpável uma massa epigástrica. A ecografia permite o diagnóstico.

A remissão espontânea dos pseudoquistos é frequente, mas estão descritas complicações: abcesso, hemorragia, fístulas e ruptura. A punção percutânea sob controlo ecográfico poderá permitir a evacuação definitiva do quisto; por vezes, é necessário tratamento endoscópico ou cirúrgico.

No campo da pancreatite crónica, há a registar a possível evolução para insuficiência pancreática endócrina e exócrina. Por outro lado, determinados estudos apontam para o risco de cancro pancreático futuro.

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TRANSPLANTAÇÃO HEPÁTICA

História e estado da arte

A transplantação (ou transplante) é a intervenção pela qual se procede à transferência de um tecido ou de um órgão para outra parte do mesmo indivíduo (autotransplante), ou para um indivíduo diferente (alotransplante).

A transplantação hepática (TH) mudou dramaticamente o prognóstico dos doentes com hepatopatia crónica, de 100% de mortalidade para 90% de sobrevida. Foi tentada pela primeira vez em 1963, em Denver, Boston e Paris, sem sucesso. Nessa altura a imunossupressão disponível incluía apenas azatioprina e soro anti-linfócito. De 1967 a 1978 a sobrevida em adultos e crianças que tinham um dador anatomicamente compatível não ultrapassava 40% e a transplantação era encarada como terapia experimental.

Em 1978 R. Calne introduziu na prática da transplantação a ciclosporina associada aos corticoides em altas doses e, na década seguinte, a sobrevida dos doentes atingiu 80%. Assim, o interesse pela TH ressurgiu simultaneamente em vários centros Europeus e dos EUA. Actualmente é um procedimento terapêutico bem estandardizado com critérios alargados a doentes com hepatopatia crónica ou aguda /fulminante e a muitos tipos de tumores. Os critérios foram ao longo do tempo modificados para se adaptarem à escassez crescente de dadores e para garantir uma distribuição de órgãos mais equitativa.

As crianças só vieram a beneficiar deste procedimento na década de 90, quando tecnicamente foi possível reduzir fígados de dadores adultos, de modo a obter um enxerto de dimensões adaptáveis a crianças, mesmo para as que tinham peso inferior a 10 Kg e que até aí eram praticamente excluídas da transplantação. Este primeiro marco na história da transplantação pediátrica permitiu reduzir a mortalidade em lista de espera de 60% para menos de 20% na maioria dos centros de TH.

Esta percentagem continuava, contudo, a ser inaceitável e novas técnicas começaram a ser divulgadas como o Split Liver (bipartição do enxerto em dois fragmentos para utilização em dois recetores) e o uso de Dadores Vivos. Na última década o TH de crianças a partir de dador vivo (DV) parental tornou-se a variante técnica mais promissora, com maior sobrevida e menor lesão do enxerto. Curiosamente, a incidência de rejeição celular aguda não diminuiu como seria de esperar, dada a maior proximidade imunológica do dador e receptor.

Um programa de DV envolve custos mais elevados, risco de morte do dador (5 /10000), e morbilidade acentuada (15 a 20%).

Inicialmente foi aceite pelas Comissões de Ética como um procedimento a efectuar apenas em crianças com doença crónica e relativamente electivas para permitir uma decisão do dador mais amadurecida, sem as pressões inerentes às situações de morte iminente. Progressivamente foi alargada a situações urgentes (hepatites fulminantes ou falência aguda em contexto de hepatopatia crónica algo que ainda é alvo de polémica nalguns centros. Com efeito, o uso de dadores vivos contraria um princípio ético básico em Medicina – primum num nocere, já que constitui uma mutilação induzida em pessoa saudável com risco de morte. Eticamente a transplantação com DV é aceitável se:

  • O TH for a única opção terapêutica;
  • A possibilidade de obter um dador cadáver em tempo útil for baixa;
  • O receptor tiver uma probabilidade elevada de sobreviver ao TH, com qualidade de vida;
  • O risco de morte para o dador for inferior a 1% e a morbilidade previsível inferior a 10%;
  • Nenhum tipo de pressão deve ser exercida sobre o potencial dador nos diálogos de decisão (o que na prática é utópico).

A lei previa inicialmente a doação entre indivíduos com graus de parentesco até ao 3º grau, mas foi revista recentemente (Lei nº 22/2007 de 29 de Junho), permitindo a doação entre casais ou entre pessoas com laços de proximidade.

Fígado auxiliar e transplante de células

Ambas são modalidades de transplante, exclusivas de Centros de Transplante Pediátrico de referência.

O TH com “fígado auxiliar” é tecnicamente mais complexo e aplicável a 2 tipos de situação:

  1. Hepatites fulminantes, permitindo recuperar a catástrofe metabólica instalada na insuficiência
    hepática e substituir o fígado nativo até que haja recuperação total. A recuperação total foi demonstrada em pequenas séries, ocorrendo em 60 % dos doentes e permitindo em média, ao fim de um ano, abandonar a imunossupressão face à regeneração do fígado nativo. O enxerto sofre processo de atrofia e não necessita de ser removido. O paciente, ainda que de forma diferida, recupera o estado clínico e imunológico de normalidade;
  2. Doenças metabólicas, em que o défice enzimático no fígado provoca lesões graves extrahepáticas, mas não há lesão hepática progressiva. O fígado auxiliar substitui a enzima deficiente e permite reter o fígado nativo até surgir a cura pela terapia génica (por exemplo: síndroma de Crigler-Najjar 1, acidémia propiónica, etc.).

Nos últimos 20 anos a ausência de avanços na terapia génica tornou questionável o uso de fígado auxiliar (porque tecnicamente mais complexo e menos acessível aos doentes em geral) e este procedimento tende a ser abandonado. Para patologias com deficiências enzimáticas de expressão hepática maioritária, novas técnicas como o transplante de hepatócitos ou de células progenitoras hepáticas (ainda mais promissora mas em início de investigação) são actualmente mais defensáveis.

Transplante de hepatócitos e células progenitoras hepáticas – stem-cells 

Estas alternativas ao transplante ortotópico clássico destinam-se essencialmente ao grupo de doenças metabólicas cujo defeito enzimático é predominantemente hepático não determinando cirrose avançada. Embora teoricamente possa ser usada em todas as doenças hepáticas, na prática os doentes com cirrose e hipertensão portal estabelecida obterão apenas, com este procedimento uma “ponte” para o transplante definitivo.

Até à data foram efectuados transplantes de hepatócitos num número reduzido de doentes pediátricos com as seguintes patologias: doença de Crigler-Najjar, acidémias orgânicas e hepatites fulminantes.

Tecnicamente é um procedimento simples, seguro e pouco invasivo para o doente, já que é apenas necessário inserir um cateter na veia porta para injecção diária de uma suspensão de hepatócitos (máximo 1×108 células/kg peso da criança). Na prática a fundamentação é baseada na verificação de que em poucos dias os hepatócitos injectados no fígado receptor proliferam e são capazes de substituir a função dos hepatócitos nativos.

A médio-longo prazo esperava-se que as células injectadas se tornassem a população dominante, assumindo as funções metabólicas deficitárias.

Tal como no transplante clássico, é necessário usar imunossupressão em esquemas sobreponíveis.

De referir que a procura de fígados para obter hepatócitos viáveis enferma dos problemas da TH clássica, embora permita utilizar alguns segmentos de parênquima que seriam eliminados por anomalias biliares ou vasculares. No transplante de hepatócitos o laboratório de células é uma estrutura fundamental e o maior investimento a ter em conta quando se opta por aceder a esta técnica em determinada instituição. Por este motivo, raros centros na Europa a iniciaram, mantendo uma actividade clínica e de investigação nesta área. Uma década passada sobre o uso deste procedimento em vários centros não permite manter a euforia inicial já que vários mecanismos impedem a fixação prolongada dos hepatócitos de modo a libertar o doente totalmente da sua terapia de base seja a fototerapia (C. Najjar 1) ou as dietas restritivas no caso de doenças metabólicas. Espera-se que as células progenitoras hepáticas contornem este problema de manutenção e proliferação de uma massa hepatocitária saudável e permanente.

TH em Portugal na idade pediátrica

Em Portugal o TH pediátrico foi iniciado em 1994 em Coimbra pela equipa de Transplantação dos Hospitais da Universidade de Coimbra, chefiada por A. Linhares Furtado. Até 2012 foram transplantadas 155 crianças, a que correspondem 180 transplantes; estes incluem, desde 2001, 24 casos com DV. A sobrevida global actual é de 84%, com um seguimento em mediana de 10 anos. O processo de transição para os adultos é efectuado entre os 17 e 18 anos, salientando-se que a maioria destes jovens tem uma boa qualidade de vida e uma integração social plena.

Indicações e contraindicações

A atrésia das vias biliares extra-hepáticas (AVBEH) constitui 40-50% das indicações para TH em idade pediátrica (80% se considerarmos a faixa etária abaixo dos 2 anos). A falência hepática aguda representa 10-15%, e o grupo das doenças metabólicas, cerca de 20%. Os restantes 20% englobam várias situações como colestases progressivas intra-hepáticas, tumores, hepatites víricas, hepatites autoimunes.

As contraindicações absolutas têm vindo a diminuir ao longo do tempo e actualmente dizem respeito a: coexistência de sépsis e falência multiorgânica nos casos de insuficiência hepática aguda ou crónica agudizada, disseminação metastática tumoral e lesão neurológica grave associada. Os dados são ainda insuficientes para validar a indicação em doenças com envolvimento multissistémico como nas deleções de DNA mitocondrial de expressão inicial hepática. Os doentes com infecção pelo vírus VIH e as síndromas portopulmonares têm vindo a ser incluídos com critérios restritos.

No Quadro 1 estão representadas as principais indicações de TH em três centros europeus.

QUADRO 1 – Indicações de TH em 3 centros europeus

1Londres; 2Bruxelas; 3Coimbra

ETIOLOGIAKing’s College1Saint-Luc2H.P.C. – H.U.C.3
Doença Hepática Crónica82%91%84%
Falência Hepática Aguda15%6%16%
Tumores3%3%3%
AVBEH41%66%30%
Colestase intra-hepática12%11%13%
Doença hepática metabólica16%9%30%
Outros13%5%8%

A avaliação pré-TH, peri e pós-operatória

A avaliação pré-TH pressupõe um diálogo dinâmico entre a instituição que referencia a criança e o centro que procede à transplantação, tentando prever em cada doente um ponto em que o risco do referido problema é inferior ao da espera em lista. Constitui ainda uma oportunidade de revisão diagnóstica, identificação de possíveis contraindicações, melhoria do estado nutricional e avaliação psicossocial da família. O estado nutricional dos receptores condiciona grande parte da morbilidade e mortalidade pós-TH, sendo fundamental a intervenção nesta área enquanto se aguarda a cirurgia.

A cirurgia de transplantação é complexa, prolongada (8-15 horas), inevitavelmente invasiva e seguida de várias complicações, com um padrão previsível no tempo. No entanto a maioria dos Centros demonstra uma curva de aprendizagem que reflecte sobretudo um menor tempo cirúrgico e de isquémia do enxerto, a par da diminuição da necessidade de transfusão, factores que, em conjunto, permitem atingir 98 a 100% de sobrevida no primeiro ano pós transplante e uma quase ausência de PNF, acrónimo que significa ausência primária de função de enxerto.

Complicações

As complicações precoces (até 3 meses) podem subdividir-se em 2 períodos:

  • Fase de estadia em UCI, reflectindo o grau de função do enxerto, avaliada em termos de recuperação neurológica, valor de protrombinémia, alcalose ou acidose. Podem ainda ocorrer insuficiência renal, hipertensão arterial grave, sépsis e falência multiórgão.
  • Fase pós-UCI, até 3 meses30% dos doentes são reoperados por: problemas vasculares (4 a 20%), biliares (15 a 30%), perfuração intestinal e peritonite ou drenagem de coleções ou hematomas. As infecções com ponto de partida abdominal ou relacionadas com cateteres centrais são também muito frequentes (pelo menos um episódio em 60% dos doentes), apesar da profilaxia antibiótica de largo espectro instituída na primeira semana.

As complicações tardias (>3 meses): – Para além da rejeição e das hepatites auto/aloimunes de novo (a que será feita referência especial a seguir) os principais problemas a destacar são:

  • A incidência de tumores em particular os relacionados com primoinfecção ou reactivação do vírus de Epstein-Barr (EBV). Este agente pode induzir, sobretudo nas crianças com menos de 5 anos, a síndroma de proliferação desregulada de linfócitos B, ou síndroma linfoproliferativa (acrónimo PTLD). A incidência tem diminuído de 12 a 20% (máximo registado na década de 90) para 2 a 4% graças ao uso de imunossupressão mais reduzida e a uma atitude de vigilância intensiva da carga vírica de EBV. A mortalidade é muito baixa quando comparada com outros linfomas utilizando uma estratégia de abordagem baseada na suspensão da imunossupressão (excepto corticóides) uso de valgangiclovir por períodos prolongados e protocolos modificados de quimioterapia.
  • RejeiçãoA última década foi marcada por enormes avanços na área da imunossupressão. Na maioria dos centros os doentes pediátricos recebem imunossupressão dupla geralmente tacrolimus (CNi, inibidor da calcineurina) e corticoide ou anticorpos monoclonais (anti-receptor da IL2) e tacrolimus em dose diminuída, não usando corticóide. A evicção dos corticóides tem vantagens óbvias nos pacientes pediátricos mas os estudos mais recentes dividem-se quanto à possibilidade de terapias universais sem corticóide. Na verdade, enxertos estáveis aos 5 anos, que passam a monoterapia com tacrolimus, podem agravar a fibrose nos 5 anos seguintes.
    Estudos multicêntricos aleatorizados são fundamentais para clarificar esta questão, bem como para uma melhor racionalização na prescrição dos novos imunossupressores disponíveis. A chamada e proclamada imunossupressão por medida” continua a ter protocolos pouco baseados na evidência sobretudo pela falta de marcadores biológicos e imunológicos que traduzam, de forma mantida e confiável, o estado de imunossupressão de cada paciente individual.
    Apesar de persistirem algumas limitações na compreensão e suporte teórico dos protocolos actuais de imunossupressão assiste-se a uma redução da taxa de rejeição celular aguda nas primeiras 6 semanas (de 50 para 30%), e a uma melhor abordagem da disfunção crónica de enxerto de causa desconhecida/imune. A taxa de rejeição crónica mantém-se na taxa 3-5%, mas a necessidade de retransplante precoce (< 6 meses) por rejeição crónica em doentes com boa adesão terapêutica é substancialmente menor.
  • Hepatites auto/aloimunes de novoEm 4% dos doentes pode surgir no 2º ano pós TH uma disfunção de enxerto, similar serológica e histologicamente à hepatite autoimune. Designa-se como autoimune de novo embora na verdade seja um processo aloimune. Pouco se sabe ainda da sua fisiopatologia, sendo o seu tratamento sobreponível ao usado na hepatite autoimune (essencialmente reforço da corticoterápia e reintrodução da azatioprina ou de micofenolato de mofetil).

Seguimento

Em ambulatório as crianças são observadas semanalmente nos primeiros 3 meses. Progressivamente as consultas vão sendo alargadas, realizando-se em mediana, de 3 – 3 meses a partir do 1º ano pós cirurgia. Uma larga maioria (>80%) tem uma vida activa e “quase normal” abstraindo que se mantém a doença crónica, nomeadamente o “fantasma” da rejeição ou da disfunção crónica do enxerto. As famílias têm muitas vezes muito receio da integração escolar e social dos pequenos transplantados. Tratando-se de crianças imunodeprimidas, salienta-se que as banais infecções da comunidade, não se manifestam com incidência mais elevada.

As vacinas de vírus vivo e vivo atenuado têm sido contraindicadas pós-transplante. Deve ser feito um esforço de cumprir/antecipar o programa de vacinação no 1º ano de vida quando se prevê que o transplante ocorra entre os 12 e 18 meses.

Em suma, o TH é uma terapia curativa para mais de 80% das crianças com diversas hepatopatias e, simultaneamente, uma nova doença crónica com inúmeras complicações. Consegue-se, apesar de tudo, uma sobrevida de 90% a 95% no 1º ano pós-cirurgia, estimando-se um acréscimo de mortalidade/ano de 0,5 % nos anos subsequentes. O objectivo primordial em termos de investigação é criar um imunossupressor que, actuando nas primeiras horas ou dias pós-cirurgia permite uma interacção “quimérica” vitalícia na relação enxerto/receptor. Viver sem imunossupressão e melhores marcadores desta relação imunológica parece ainda ser utópico quando relemos e revemos tudo o que se publica nesta área. É aparentemente um Futuro distante, mas a ciência surpreende-nos sempre.

Do ponto de vista prático os grandes avanços e preocupações na área da transplantação já não são técnicos, mas sim estabelecer modelos de intervenção que melhorem a qualidade de vida dos pequenos sobreviventes. Falamos de integração e sucesso escolar, de métodos para facilitar a adesão terapêutica (tão preocupante nos adolescentes), de fertilidade e de procriação. No fundo, a medicina de transplantação foi crescendo com os seus pequenos doentes e atingiu a idade adulta. Mais uma vez construir esta ponte é uma preocupação e um trabalho dos Pediatras. Sobreviver é uma realidade crescente, mas é fundamental ajudar a sobreviver (Viver) com qualidade e plena integração social e laboral. Parte deste trabalho é extrahospitalar e vai exigir o apoio da comunidade onde o doente reside. Para tal há que ter tempo para formação e sensibilização desta segunda rede de cuidados, tão essencial como a hospitalar.

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