Definição e importância do problema

A anemia megaloblástica engloba um conjunto de situações em que existe uma alteração na síntese de ácido desoxirribonucleico (ADN). De tal anomalia resultam alterações nos precursores das três séries hematopoiéticas (eritróides, granulocíticos e megacariocíticos), com a seguinte tradução no esfregaço do sangue periférico: anemia macrocítica, macro-ovalócitos, anisocitose, poiquilocitose, anéis de Cabot, corpos de Howell-Joly, ponteado basófilo nos eritrócitos, atraso na maturação do núcleo em relação ao citoplasma nos eritroblastos da medula óssea (dissociação nucleocitoplásmica), leucopénia, polissegmentação dos neutrófilos e trombocitopénia.

A dissociação nucleocitoplásmica origina apoptose celular intramedular por eritropoiese ineficaz, hiperplasia eritróide, aumento da bilirrubina indirecta, da desidrogenase láctica, do ferro e das transaminases séricas.

Os referidos precursores eritróides evidenciam dimensões aumentadas (megaloblastose) com núcleo grande e imaturo. A megaloblastose é explicável por três grupos de factores: falência medular, diminuição da produção de eritropoietina e anomalia do processo de maturação medular.

 A polissegmentação dos neutrófilos é definida como a verificação de um ou mais neutrófilos com cinco lóbulos bem definidos por cada 100 neutrófilos segmentados.

Os défices de vitamina B12 (ou cobalamina) e/ou de ácido fólico, dois nutrientes interagindo e com vias metabólicas comuns e essenciais para a síntese de ADN, são os factores etiológicos mais frequentes (~95%) de anemia megaloblástica.

A prevalência de tais situações carenciais tem diminuído ao longo do tempo devido à suplementação dos alimentos quase universal; contudo, ainda ocorre nas populações mais pobres, mais idosas e com excessivo consumo de álcool.

Outros factores podem estar envolvidos: micronutrientes além dos já citados, síndromas mielodisplásicas e defeitos adquiridos da síntese de ADN como, por exemplo, os induzidos pela quimioterapia.

Salienta-se a importância do diagnóstico e tratamento precoces, designadamente das formas mais frequentes) tendo em consideração a possibilidade de lesões neurológicas irreversíveis caso tal não se verifique.

Neste capítulo são consideradas como sinónimas as designações de cobalamina e de vitamina B12.

Etiopatogénese

 Metabolismo da vitamina B12 (cobalamina)

As necessidades diárias recomendadas de cobalamina segundo a OMS são 1 mcg para adultos saudáveis, 1,3-1,4 mcg para grávidas ou lactantes, e 0,1 mcg para lactentes.

A vitamina B12 actua como cofactor de duas enzimas (metionina sintetase e l-metil-malonil-coenzima A mutase), interferindo em duas vias metabólicas:

  1. Transferência de um grupo metil do metil-tetra-hidrofolato (MTHF) para a homocisteína, formando metionina e reduzindo os níveis de homocisteína, tóxica para as células; e a desmetilação do tetra-hidrofolato (THF);
  2. A conversão de propionil-coenzima A em metilmalonil-coenzima A e, finalmente, em succinil-coenzima A, cujo significado biológico não se encontra ainda estabelecido. O THF, por sua vez, é fundamental para a formação de diversos cofactores que intervêm na síntese da timidina-trifosfato, essencial para síntese de ADN.

A absorção da vitamina B12 ao nível do íleo terminal (implicando a sua ligação prévia ao factor intrínseco – FI segregado pelas células parietais do estômago, do que resulta a formação de um complexo FI-vitamina B12), pressupõe à partida cinco requisitos fundamentais:

  1. Suprimento adequado (a vitamina B12 encontra-se presente exclusivamente em produtos de origem animal, como carne ou leite);
  2. Mucosa gástrica com adequada acidez e presença de pepsinas (que libertam a cobalamina das proteínas de transporte e permitem a sua ligação à haptocorrina- produzida na saliva e glândulas esofágicas);
  3. Presença de proteases pancreáticas (responsáveis pela quebra da ligação da cobalamina à haptocorrina, permitindo a ligação da cobalamina ao factor intrínseco – FI);
  4. Adequada secreção gástrica de FI funcionante;
  5. Presença de receptores do complexo cobalamina – FI (cubulina) funcionantes no íleo.

O complexo cobalamina-FI ligando-se aos receptores específicos no bordo apical dos enterócitos no íleo distal, entra a seguir nas células por endocitose. Dentro do enterócito, depois da libertação do FI, a cobalamina une-se à transcobalamina, passando a circular no sangue sob esta forma (cobalamina-transcobalamina). Somente a cobalamina-transcobalamina está disponível para ser incorporada nas células, excepto nos hepatócitos.

A cobalamina excreta-se na bílis, une-se ao FI no intestino delgado, e reabsorve-se (circulação entero-hepática).

Carência de vitamina B12

A carência de vitamina B12 pode explicar-se por diversos factores.

Anomalias da absorção

As anomalias da absorção, congénitas ou adquiridas, são os factores etiológicos mais frequentes. Como exemplos citam-se:

  • Ausência ou défice de FI (respectivamente anemia perniciosa congénita e anemia perniciosa juvenil de causa autoimune, raras em idade pediátrica), a principal causa de carência de vitamina B12 em adultos; verifica-se destruição autoimune, mediada por linfócitos, das células parietais do estômago, produtoras de FI. Os doentes apresentam autoanticorpos dirigidos contra células parietais do estômago e contra o FI e, por vezes, contra a gastrina e pepsinogénio. Pode haver associação a outras doenças autoimunes.
  • Síndroma de Imerslund-Gräsbeck, entidade clínica de hereditariedade AR em que, por mutação do gene AMN ou CUBN do receptor ileal de cobalamina-FI existe um defeito congénito selectivo de absorção da cobalamina ao nível do íleo terminal;
  • defeito de entrada de vitamina B12 nas células (endocitose), congénito (autossómico recessivo), explicável pela deficiência do principal transportador fisiológico da vitamina B12, a transcobalamina II (TC-II) – raro;
  • Infecção por Helicobacter pylori, Giardia lamblia, Dyphyllobotrium latum, status pós-ressecção do íleo terminal, disfunção ileal (síndroma de ansa cega, intestino curto, doença de Crohn, pancreatite, doença de Whipple, etc.) – também situações raras.
Ingestão insuficiente ou inadequada

A ingestão insuficiente, designadamente em dietas vegetarianas estritas e em crianças amamentadas por mães com défice vitamínico, também contribui para a carência. As carências nutricionais de vit. B12 são mais raras que as de ácido fólico, pois aquela é a única vitamina hidrossolúvel armazenada no corpo humano. Assim, são necessários entre 3 e 5 anos para que se desenvolva a respectiva carência após suspensão do suprimento.

Anomalias metabólicas

Existem ainda doenças hereditárias do metabolismo da cobalamina que podem ser a causa do seu défice, tais como a acidúria metilmalónica – doença autossómica recessiva causada por um défice completo ou parcial da enzima metilmalonil-coenzima A mutase e a homocistinúria, em que existe um defeito na enzima N5-metiltetra-hidrofolato-homocisteína metiltransferase (MTR, metionina sintetase) que se traduz numa diminuição da produção de metilcobalamina. Citam-se ainda a carência em transcobalamina comprometendo o transporte da cobalamina, e factor adquirido, relacionado com intoxicação por óxido nitroso.

Metabolismo do ácido fólico

Os folatos encontram-se na natureza na forma de poliglutamatos. Absorvendo-se na primeira porção do duodeno, são transportados ao fígado, onde se convertem em 5-metiltetra-hidrofolato, a forma principal do folato circulante. A conversão de ácido fólico em di-hidrofolato e de di-hidrofolato em tetra-hidrofolato é catalisada pela enzima tetra-hidrofolato-redutase.

O tetra-hidrofolato é uma forma reduzida do ácido fólico, que intervém como coenzima em diferentes reacções do metabolismo dos aminoácidos e ácidos nucleicos.

O folato abunda em vegetais, frutas e carne (fígado e rim). Os folatos reduzidos da dieta são lábeis à luz e à oxidação, sendo que o calor na preparação de cozinhados origina a sua destruição nos alimentos.

As necessidades diárias recomendadas pela OMS são 3,6 mcg/kg/dia (< 1 ano); 3,3 mcg/kg/dia (1-6 anos); e 3,1 mcg/kg/dia (> 6 anos). As doses indicadas para grávidas ou lactantes são 300-1.000 mcg/dia.

Carência de ácido fólico

Salientando-se que, ao contrário do que acontece com a cobalamina, não existem no organismo reservas significativas de ácido fólico, a carência deste micronutriente pode explicar-se por diversos factores.

Ingestão insuficiente

Trata-se do factor mais frequentemente associado a carência de ácido fólico, a qual é geralmente acompanhada de quadro clínico de má-nutrição energético-proteica e de outros micronutrientes. Pode associar-se igualmente a carência materna em folatos, alimentação exclusiva com leite de cabra, amamentação por mães com estados carenciais, repercutindo-se especialmente no RN pré-termo.

Anomalias da absorção

Citam-se como exemplos – anomalia ao nível do terço superior do intestino delgado, doença celíaca, doença de Crohn, anomalias infiltrativas do intestino delgado (doença de Whipple ou linfoma), antibioticoterapia de largo espectro, etc..

Aumento das necessidades

Por exemplo, gravidez, lactação, anemia hemolítica, síndroma de Lesch-Nyhan, prematuridade, tratamento anticonvulsante, designadamente com fenobarbital, excreção aumentada (carência de vit. B12, diálise crónica), destruição aumentada (excesso de suplementos oxidantes), etc..

Inibidores do folato

Antifólicos (metotrexato, pirimetamina, trimetoprim), sulfonas.

Outras causas incluindo doenças hereditárias do metabolismo

Défice de di-hidrofolato redutase, défice de metionina sintetase (MTR) e défice de metileno-tetra-hidrofolato redutase, anomalia da síntese de purinas e pirimidinas (acidúria orótica), défice de 3-fosfoglicerato-desidrogenase, anemia que responde a tiamina ou anemia que responde a piridoxina, infecções de repetição, hepatopatias crónicas, dermatoses exfoliativas, tumores malignos, etc..

Miscelânea

Esta alínea pode ser tipificada pela anemia megaloblástica induzida por fármacos actuando por diversos mecanismos, alguns dos quais já citados.

  • Interferência na absorção intestinal de cobalamina (antiácidos, inibidores da bomba de protões) ou de ácido fólico (cloranfenicol, ácido aminossalicílico);
  • Alteração no metabolismo dos folatos (metformina, fenitoína);
  • Efeito directo a nível medular (hidroxicarbamida, azatioprina);
  • Síntese de ADN reduzida pelo bloqueio da conversão de di-hidrofolato em tetra-hidrofolato (aminopterina ou metotrexato /MTX);
  • Inibição da conversão dos ribonucleótidos em desoxirribonucleótidos (hidroxicarbamida, utilizada em determinadas síndromas mieloproliferativas e na anemia de células falciformes.

Manifestações clínicas

A anemia megaloblástica, rara em idade pediátrica, tem manifestações multissistémicas; com efeito, células não hematopoiéticas como as da mucosa gastrintestinal e uterina também podem evidenciar também características megaloblásticas.

As manifestações clínicas associadas a anemia megaloblástica por carência de cobalamina e/ou ácido fólico progridem insidiosamente dependendo a sua exuberância da duração da carência. Os sintomas podem ter início nos primeiros meses de vida dependendo das reservas maternas durante a gestação, período de lactação e tipo de alimentação do lactente.

A sintomatologia, manifestando-se habitualmente quando a anemia se torna grave, inclui astenia, palpitações, fadiga, cefaleias, dispneia de esforço. Pode ocorrer icterícia por hemólise intramedular e extravascular; a leucopenia e a trombocitopenia estão geralmente presentes, embora sem expressão clínica relevante.

Na carência de cobalamina (vitamina B12), além dos sinais e sintomas já descritos, surgem manifestações neurológicas: irritabilidade, perda de sensibilidade proprioceptiva, ataxia espástica, parestesias simétricas, diminuição da força muscular e hipo ou híper-reflexia. A designação de degenerescência combinada subaguda medular traduz a desmielinização e degenerescência dos cordões laterais e posterior da medula espinhal conjuntamente com neuropatia periférica; esta última é mais grave nos membros inferiores do que nos superiores.

Estão descritas igualmente alterações neuropsiquiátricas (demência, amnésia, depressão, etc.), bem como casos mais raros de depressão, atrofia óptica, anosmia, disgeusia, por vezes não acompanhadas de alterações hematológicas. A disfunção autonómica pode estar presente (hipotensão postural, incontinência e impotência). Em crianças mais pequenas as manifestações neurológicas podem ser mais subtis: atraso do neurodesenvolvimento, ou regressão do mesmo, dificuldades alimentares, hipotonia, letargia, irritabilidade, convulsões, tremores, mioclonias ou movimentos coreoatetósicos.

Salienta-se que em situações de carência de cobalamina a administração de ácido fólico pode mascarar as manifestações hematológicas ao mesmo tempo que ocorre progressão das manifestações neurológicas.

Na alínea sobre Etiopatogénese foi feita referência a duas entidades clínicas clássicas associadas a carência de cobalamina: síndroma de Imerslund-Grasbeck e anemia perniciosa.

Na carência de ácido fólico verifica-se a presença de sinais e sintomas semelhantes aos da anemia megaloblástica por carência de cobalamina; contudo ao contrário do que acontece na carência de cobalamina: – não se verifica quadro neurológico; e, – pela não existência de reservas significativas de ácido fólico no organismo, as manifestações poderão surgir mais precocemente, logo após um mês de interrupção do suprimento de referido micronutriente.

O quadro clínico integra tipicamente anemia, desnutrição, glossite, úlceras e atrofia das mucosas com repercussão no tubo digestivo (má-absorção, anorexia, vómitos, diarreia); a icterícia sugere hemólise por eritropoiese ineficaz.

A carência materna de ácido fólico no período periconcepcional explica mais de 50% dos casos de defeitos do tubo neural, incluindo spina bifida, mielomenigocele e anencefalia.

Exames complementares

A suspeita de anemia megaloblástica, perante a verificação de alguns dos sintomas e sinais descritos, poderá fundar-se no seguinte quadro hematológico: anemia macrocítica (VGM/volume globular médio > 100 fL e CHGM normal), reticulocitopénia, trombocitopénia, neutropénia, anisocitose e poiquilocitose, hipersegmentação do núcleo dos neutrófilos e mielograma evidenciando processo de maturação megaloblástica.

Para o diagnóstico definitivo de anemia megaloblástica por carência de cobalamina e/ou ácido fólico torna-se fundamental proceder a determinadas provas diagnósticas.

Provas diagnósticas de carência de cobalamina

Relativamente aos valores de normalidade, importa considerar os seguintes parâmetros: cobalamina sérica (valor normal: 140-800 uug ou pg/mL), excreção urinária de ácido metilmalónico (valor normal: 0-3,5 mg/24 horas).

O diagnóstico definitivo de carência de cobalamina baseia-se nos seguintes critérios laboratoriais: anemia megaloblástica, cobalamina sérica diminuída < 100 uug ou pg/mL {considerando-se valores-limite entre 200 e 400 uug ou ng/mL}, homocisteína plasmática total elevada, ácido metilmalónico plasmático e urinário elevados, holotranscobalamina II diminuída e resposta ao tratamento com cobalamina (observando-se desaparecimento das manifestações hematológicas, bioquímicas e neurológicas após injecção de 10 mcg de cianocobalamina).

A homocisteína plasmática total elevada (tal como na carência em ácido fólico) pode também verificar-se na homocistinúria clássica, no hipotiroidismo e na insuficiência renal.

O diagnóstico de má-absorção de cobalamina estabelece-se com a prova de Schilling (administração de cobalamina oral, radioactiva; previamente injecta-se 1 mg de cobalamina por via IM para saturar a transcobalamina, valorizando-se a absorção pela determinação da percentagem de cobalamina radioactiva e previamente ingerida, na urina; considera-se absorção normal o valor de 5-35% em 24 horas.

Para o diagnóstico etiológico da má-absorção importa realizar os seguintes exames:

  • Pesquisa de anticorpos anti-FI;
  • Determinação dos níveis de gastrina ou pentagastrina I;
  • Determinação dos níveis de transcobalamina I por imunoanálise.

Provas diagnósticas de carência de ácido fólico

Relativamente aos valores de normalidade do ácido fólico, importa considerar: folato sérico (valor normal: 5-20 ng/mL), e folato eritrocitário (valor normal: 150-600 ng/mL).

O diagnóstico definitivo de carência de ácido fólico baseia-se nos seguintes critérios laboratoriais: anemia megaloblástica, níveis de folato sérico < 3 ng/mL, folato eritrocitário < 150 ng/mL {considerando-se valores-limite do folato sérico entre 4 e 8 ng/mL}, ácido forimiminoglutâmico (FIGLU) na urina aumentado, homocisteína total plasmática aumentada e ácido metilmalónico normal.

A homocisteína plasmática total elevada (tal como na carência em cobalamina) pode também verificar-se na homocistinúria clássica, no hipotiroidismo e na insuficiência renal.

Os achados explicáveis pela eritropoiese ineficaz são: elevação da bilirrubinémia não conjugada, desidrogenase láctica (LDH), ferritina e saturação da transferrina.

Formas clínicas raras

Reportando-nos à alínea sobre Etiopatogénese, em que foi referido que cerca de 95% das situações caracterizadas por anemia megaloblástica se relacionam com carência de cobalamina e ou ácido fólico, citam-se a seguir de modo sucinto outras formas raras, explicando cerca de 5% dos casos de anemia megaloblástica.

Estas formas raras de anemia megaloblástica devem ser consideradas no diagnóstico diferencial de anemia megaloblástica refractária ao tratamento com ácido fólico e cobalamina (ver adiante), uma vez excluídas todas as outras causas.

Acidúria orótica

Esta entidade clínica foi abordada na Parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo, enquadrada nas doenças do metabolismo das pirimidinas. Trata-se duma doença autossómica recessiva afectando a síntese do ácido nucleico e surgindo geralmente no primeiro ano de vida e manifestada com hipocrescimento, atraso do neurodesenvolvimento, anemia megaloblástica e excreção urinária aumentada de ácido orótico. Na sua forma usual verifica-se deficiência em todos os tecidos do corpo da fosfororribosil transferase e da orotidina-5-fosfato descarboxilase.

O diagnóstico é sugerido pela verificação de anemia megaloblástica associada a níveis séricos normais de cobalamina, folato, excreção urinária aumentada de ácido orótico, sem evidência de défice de transcobalamina e associada. Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental contudo, demonstrar os défices enzimáticos a que nos referimos.

A anemia é refractária ao tratamento com cobalamina e ácido fólico, mas responde prontamente à administração de uridina.

Anemia megaloblástica respondente à tiamina (síndroma de Rogers)

A anemia megaloblástica com resposta à tiamina é uma doença autossómica recessiva rara tipicamente associada principalmente a diabetes, surdez neurossensorial, hipocrescimento, alterações visuais, arritmia e defeitos cardíacos.

A medula óssea, para além das alterações megaloblásticas, evidencia sideroblastos em forma de anel. Admite-se que esta entidade, relacionada com mutação no gene SCL9A2 no cromossoma 1, codificando a proteína de transporte da tiamina, se traduza num defeito no mecanismo de transporte transmembrana da mesma, o que determina uma diminuição da síntese de ácidos nucleicos, com consequente bloqueio celular e apoptose medular.

As alterações respondem à terapêutica com tiamina com melhoria da diabetes e da anemia sendo, no entanto, a surdez neurossensorial avançada, irreversível.

Diagnóstico diferencial

Importa uma referência breve a três situações clínicas que, por certas particularidades do quadro clínico-laboratorial, poderão dificultar o diagnóstico de alteração megaloblástica.

Anemia megaloblástica e anemia microcítica coexistente

Na presença de anemia microcítica por ferropénia, traço talassémico ou doença crónica, as características de megaloblastose na medula óssea e no sangue periférico poderão tornar-se menos evidentes. No sangue periférico poderá verificar-se anisocitose marcada, VGM normal, com RDW muito aumentado.

Ao nível da medula óssea, observam-se megaloblastos intermédios na medula, de menores dimensões do que as células megaloblásticas habituais, a par de metamielócitos gigantes. E, através do exame do esfregaço do sangue periférico, são notórios os neutrófilos hipersegmentados característicos no ESP e os na medula.

Anemia megaloblástica grave versus leucemia aguda e mielodisplasia

Em determinadas circunstâncias associadas a anemia megaloblástica grave, a verificação de medula hipercelular, com sinais de displasia e morfologia “bizarra”, poderá levar a diagnóstico erróneo, confundindo-se eventualmente o quadro morfológico descrito com o de leucemia aguda ou mielodisplasia. Como se pode concluir, são fundamentais a realização de história clínica rigorosa, um elevado nível de suspeita de carência de micronutrientes vitamínicos.

Anemia megaloblástica atenuada

No contexto de quadro clínico de anemia de etiologia a esclarecer, e mais uma vez relevando o valor da história elaborada com rigor, o clínico deverá estar alertado para a hipótese de ser realizado mielograma após início de suplementação com cobalamina ou ácido fólico, o que contribuirá para alterações megaloblásticas atenuadas.

Ou seja, dado que as alterações megaloblásticas podem melhorar cerca de 36-48 horas após o início do tratamento, a anemia manter-se-á até que haja uma adequada resposta medular, o que pode dificultar o diagnóstico.

Tratamento

Carência de cobalamina

Uma vez que na maioria dos casos há diminuição da absorção, é frequentemente necessária administração substitutiva de vitamina B12 por via parentérica, ou oral em doses elevadas.

As formulações parentéricas (cianocobalamina ou hidroxicobalamina) são recomendadas em diferentes esquemas terapêuticos.

Nas formas acompanhadas de anemia grave, a fim de evitar complicações metabólicas como hipopotassémia, são administradas doses baixas (0,2 mcg/kg/dia) da formulação parentérica de vitamina B12 (por ex. cianocobalamina) por via subcutânea durante dois dias, juntamente com suplementos de potássio, oxigénio, diuréticos e transfusão lenta de concentrado eritrocitário.

O tratamento convencional consiste na administração de 1.000 mcg/dia de cianocobalamina ou hidroxicobalamina durante 1 semana, seguindo-se 100 mcg semanais e, posteriormente, mensais. (1 mg <> 1.000 mcg ou µg).

Nos casos de má-absorção de vitamina B12 (anomalias do FI ou da incorporação ileal) o esquema consiste em administrar 100 mcg de vitamina B12 por via subcutânea mensal.

Perante quadro comprovado de défice de transcobalamina, torna-se necessário proceder à administração de doses mais elevadas de vitamina B12: 1.100 mcg – 2 a 3 vezes por semana por via intramuscular.

A anemia perniciosa e as situações decorrentes de má-absorção obrigam a tratamento durante toda a vida.

Carência de ácido fólico

A anemia responde a pequenas doses de ácido fólico (200-500 mcg/dia). Antes de administrar ácido fólico deve excluir-se carência em vitamina B12.

Nos casos de carência de ácido fólico, a suplementação com 1-5 mg/dia (ou 1.000-5.000 µg/dia) por via oral, geralmente é adequada para corrigir a anemia. A formulação parentérica (5 mg ou 5.000 µg/mL) deve ser utilizada apenas em doentes com défice de absorção.

Durante a gravidez, a dose necessária de folato é cerca de 400 µg/dia. Mães com carência nutricional grave ou má-absorção podem ser medicadas com 1.000 mcg de vit. B12 (via parentérica) de 3-3 meses para evitar a carência em vitamina B12 neste período.

Salienta-se que o doseamento sérico de ácido fólico sérico e de cobalamina é obrigatório no tratamento da anemia megaloblástica, pois a monoterapia com folato podendo corrigir parcialmente as alterações hematológicas associadas à carência de cobalamina, não corrige, no entanto, as alterações neurológicas.

Nos doentes sob quimioterapia e com doses elevadas de metotrexato (MTX), tendo em conta o mecanismo de acção deste fármaco (ver atrás – Etiopatogénese-Miscelânea) – deve ser administrado ácido folínico, 3-6 mg/dia. É uma opção frequente em doentes sob quimioterapia com doses elevadas de MTX.

Seguimento

Nos casos de carência de vitamina B12 após suplementação adequada verifica-se uma melhoria da anemia e dos sintomas neurológicos.

Com efeito, a resposta hematológica é rápida, com um aumento do valor dos reticulócitos numa semana, e uma melhoria rápida da megaloblastose medular com normalização em 36-48 horas após o início do tratamento.

As formas granulocíticas “gigantes” persistem durante 1-2 semanas e a neutropenia e trombocitopenia (quando presentes) melhoram em regra em 1 semana. A anemia regride por completo em 6-8 semanas.

O efeito do tratamento nas manifestações neurológicas depende da gravidade e do tempo de evolução.

Nos casos em que se verifique suspensão inadvertida do tratamento, o quadro neurológico recidiva geralmente ao cabo de 6 meses, e a anemia megaloblástica após cerca de 1 ano.

A suplementação com vitamina B12 é sempre recomendada após gastrectomia total, mas não após gastrectomia parcial. Contudo, reitera-se a noção de que as alterações megaloblásticas poderão não ser detectadas no contexto de ferropénia concomitante.

Prevenção

Como medidas gerais apontam-se, essencialmente:

  • Detecção dos grupos de risco (indivíduos em que são identificados factores etiopatogénicos atrás discriminados);
  • Regime alimentar, incluindo designadamente frutas e vegetais crus;
  • Determinação dos níveis séricos de vitamina B12 e ácido fólico em vegetarianos estritos;
  • Evitamento do leite de cabra (não habitual no nosso país, mas mencionado apenas por razões didácticas e históricas).

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