Introdução

O eritrócito, para manter a sua integridade como transportador de oxigénio e dióxido de carbono durante cerca de 120 dias, possui um sistema metabólico. Durante o processo de maturação, perde a maioria das vias metabólicas características de qualquer outra célula, mantendo apenas as imprescindíveis para se defender dos agentes oxidantes e obter energia: – a via de Embden-Meyerhoff; – a via das pentoses-fosfato e; – a via dos nucleóticos.

  1. Via de Embden-Meyerhoff (glicólise anaeróbia): permite a obtenção de ATP e NADH a partir de degradação sucessiva da glicose, fonte de energia única e essencial para manter a integridade da membrana citoplasmática e o gradiente osmótico de sódio/potássio entre os espaços intra e extracelular. Esta dependência da glicólise anaeróbia resulta da inexistência de mitocôndrias onde decorre o ciclo do ácido tricarboxílico (ciclo de Krebs) e a fosforilação oxidativa. A obtenção de NADH garante que a meta-hemoglobina redutase mantenha o ferro hemoglobínico na forma ferrosa (Fe2+) e não na sua forma oxidada, férrica (Fe3+);
  2. Via das pentoses-fosfato: protege a hemoglobina da desnaturação oxidativa através da obtenção de NADPH. Este composto intermédio deriva da metabolização alternativa da glicose em 6-fosfogluconato pela glucose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). O NADPH mantém o glutatião, responsável pela reversão do dano oxidativo sobre a hemoglobina e outras proteínas eritrocitárias, na sua forma reduzida;
  3. Via dos nucleóticos: contribui para o balanço energético do eritrócito já que promove a produção de adenosina monofosfato (via das purinas) e a degradação de ribonucleótidos (via das pirimidinas).

A disfunção das várias enzimas envolvidas nestas vias metabólicas pode provocar anemia hemolítica congénita não esferocítica. Neste capítulo são descritos os défices enzimáticos (enzimopatias eritrocitárias) mais frequentes na população e com maior impacte na clínica, tendo em conta a sua relativa raridade.

As enzimopatias eritrocitárias com maior impacte clínico são o défice da glucose-6-fosfato desidrogenase, enzima representativa do metabolismo antioxidante, e o défice da piruvato-cinase, representativa da glicólise anaeróbia.

1. DÉFICE DE GLUCOSE-6-FOSFATO DESIDROGENASE

Importância do problema e genética

O défice de G6PD (também conhecido por favismo) é o defeito do metabolismo eritrocitário encontrado com maior frequência no mundo, afectando > 400 milhões de pessoas. Apesar disso, a maioria das isoenzimas com actividade reduzida associa-se apenas a um risco moderado para a saúde, não tendo impacte significativo na longevidade.

O défice de G6PD é o defeito enzimático mais frequente do eritrócito, do que resulta maior susceptibilidade aos oxidantes, relacionável com perda total ou parcial da capacidade redutora da referida enzima. Estima-se que mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo estejam afectadas, sendo na sua maioria assintomáticas.

Esta doença, também conhecida por “favismo” tem uma distribuição universal com maior prevalência nas regiões tropicais e subtropicais do Oriente, entre negros africanos Bantús, países da bacia oriental do Mediterrâneo e Médio Oriente (valores médios entre 8 e 30%).

Esta distribuição sobrepõe-se, em parte, às zonas endémicas de malária, o que é explicado pela vantagem de sobrevivência dos indivíduos com défice de G6PD infectados com Plasmodium falciparum com consequente selecção das variantes patogénicas.

Portugal é um país de baixa prevalência (cerca de 0,5%) sendo mais elevada nos distritos de Castelo Branco, Setúbal, Faro e Lisboa.

A hereditariedade é de tipo recessivo, ligada ao cromossoma X; assim, os indivíduos afectados são geralmente do sexo masculino.

O défice de G6PD, que se intensifica com o envelhecimento dos eritrócitos, resulta de mutações (em número > 100) dum gene altamente polimórfico localizado no braço longo do cromossoma X (locus Xq28); tal explica a maior prevalência no sexo masculino (hemizigotia).

Contudo, de acordo com o fenómeno aleatório de lionização (inactivação do cromossoma X), nas mulheres portadoras foram demonstradas duas populações de eritrócitos, uma normal, e outra com défice de G6PD. A expressão clínica é, portanto, dependente da percentagem de cromossomas X afectados que sofrem inactivação.

Estão descritas mais de 400 variantes genéticas da G6PD, sistematizadas de acordo com o grau de inactivação enzimática que provocam. Estas variantes resultam habitualmente de mutações pontuais ao longo das 18Kb que constituem o gene, provocando substituições de aminoácidos com impacte funcional variável sobre a enzima. A inexistência de grandes deleções ou mutações frameshift sugere que a ausência total de G6PD é incompatível com a vida.

Etiopatogénese

No eritrócito, célula anucleada sem mitocôndrias nem outros organelos, a G-6PD (aliás presente em todas as células) assume um papel particularmente importante: cataliza a oxidação da glicose-6-fosfato em 6-fosfoglicerato, reduzindo concomitantemente a nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADP) em NADPH.

A NADPH, cofactor utilizado em muitas reacções biossintéticas, mantém o glutatião na sua forma reduzida (GSH).

Assim, o glutatião reduzido nos eritrócitos, actuando na neutralização de agentes que potencialmente oxidam a hemoglobina (Hb) ou os componentes da membrana eritrocitária, tem acção preventiva contra lesões resultante de oxidação, sendo que os eritrócitos estão frequentemente sujeitos a estresse oxidante.

Se não se formar o glutatião reduzido, a Hb precipita formando-se os chamados corpúsculos de Heinz; a membrana eritrocitária é lesada, com consequente diminuição da vida média do eritrócito predispondo a destruição prematura ou hemólise. A hemólise é principalmente intravascular nas formas agudas, e extravascular nas formas crónicas.

Uma noção importante a reter é a seguinte: a tendência para a hemólise e a gravidade da doença dependem do grau do defeito enzimático; por outro lado, há que atender ao facto de existirem muitas variantes genéticas (mais de 400) de G6PD a que correspondem actividades enzimáticas variáveis e espectro de manifestações clínicas também variáveis (desde exuberantes até mínimas ou irrelevantes). As variantes da G6PD são distinguidas com base na sua mobilidade electroforética.

A forma normal da enzima corresponde à variante B (Wild Type).

Entre mais de 400 variantes anormais identificadas, as mais comuns são as chamadas variantes A(-), A(+), e B(-) ou mediterrânicas.

A forma mediterrânica B(-), com genótipo designado por Gd Med/(B-), é mais comum em indivíduos originários de Portugal, da bacia do Mediterrâneo (sobretudo Grécia e Itália, Médio Oriente), do Irão, Índia e Paquistão. Nesta forma a actividade enzimática de indivíduos do sexo feminino homozigóticos e do sexo masculino hemizigóticos é inferior a 5%; os indivíduos do sexo feminino heterozigóticos evidenciam uma taxa de actividade enzimática entre 30-50%.

A forma A(-), com genótipo designado por Gd (A-), é mais frequente nos indivíduos originários de África, os quais evidenciam actividade enzimática entre 8-20%.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a relação entre o grau de actividade enzimática e o grau de hemólise é classificada do seguinte modo:

  • Tipo I – Défice enzimático acentuado e anemia hemolítica crónica; situação rara;
  • Tipo II – Défice enzimático acentuado e hemólise intermitente;
  • Tipo III – Défice enzimático ligeiro a moderado e hemólise intermitente desencadeada por infecções, cetoacidose diabética, ingestão de favas, e por exposição a fármacos ou determinados agentes químicos;
  • Tipo IV – Défice enzimático inexistente.

Factores etiológicos de lesão oxidativa e hemólise

Nas crianças a infecção e a ingestão de favas (favismo) constituem os principais eventos precipitantes, sobretudo em pacientes com a variante A(-). Os agentes infecciosos mais frequentemente implicados são E. coli, Salmonella, Streptococcus β-hemolítico, vírus Influenza, CMV e vírus das hepatites A, B, C, D, entre outros. No contexto de infecção, o efeito oxidativo da hipertermia e dos produtos da activação imune parecem estar na base da hemólise aguda. Admite-se que os eritrócitos deficientes em G6PD sejam menos resistentes à hipertermia mantida, não tolerando o aumento do teor de oxidantes produzidos pelos granulócitos durante o processo de fagocitose.

Os efeitos da ingestão de favas/Vicia faba (favismo) verificam-se na variante mediterrânica ou B(-). O grau de hemólise é variável de exposição para exposição, sendo mais susceptíveis a esta situação os indivíduos mais jovens, sobretudo se existir infecção concomitante. São comuns em locais onde o défice de G6PD é acentuado e onde as favas são um alimento popular (Sul da Europa, Médio Oriente e Sudeste Asiático).

A hemólise induzida por fármacos foi inicialmente descrita associada à primaquina.

Entretanto, outros fármacos ou agentes químicos foram implicados: analgésicos e antipiréticos, antimaláricos, drogas cardiovasculares, citotóxicos e antibacterianos, sulfonamidas e sulfonas, naftalina, azul de toluidina, trinitrotolueno, etc.. O risco e a gravidade relacionam-se com o tipo de substância em causa, dose e duração da actuação. Na sua forma clássica, a hemólise inicia-se com a exposição ao agente desencadeante.

De acordo com o Quadro 1, os efeitos dos fármacos e substâncias dependem do tipo de fármaco ou substância, e do tipo de défice de G6PD.

QUADRO 1 – Perfil de segurança de vários fármacos e substâncias usados em doentes com défice de G6FD

Fármacos/substâncias provavelmente lesivas no contexto de G6FD moderado a grave (Tipo I-III)
Anti-infecciososDapsona, Nitrofurantoína, Primaquina
DiversosAzul de metileno, Azul de toluidina, Rasburicase
Exposições químicas e alimentosCorantes de anilina, Naftaleno, Favas, Compostos de Henna (e corantes relacionados)
Fármacos previamente considerados lesivos, mas provavelmente não lesivos nas doses terapêuticas usadas no contexto de G6FD (Tipo II-III)*
AnalgésicosParacetamol, Ácido acetilsalicílico, Aminofenazonas (Metamizol)
Anti-infecciososAntimaláricos (Cloroquina, Quinino), Fluoroquinolonas (Ciprofloxacina, Levofloxacina, Norfloxacina, Ofloxacina), Sulfonamidas (Trimetoprim-Sulfametoxazol), Cloranfenicol, Isoniazida
DiversosÁcido ascórbico, Glibenclamida, Hidroxicloroquina, Dinitrato de isosorbida, Mesalazina, Sulfasalazina
Fármacos geralmente considerados não lesivos nas doses terapêuticas usadas no contexto de G6FD (Tipo II-III)*
DiversosColchicina, Doxorubicina, Levodopa, Carbidopa, Ácido para-aminobenzóico, Fenacetina, Procainamida, Pirimetamina, Estreptomicina, Vitamina K
Nota: não lesivo <> acção moderada quanto a provocar crises hemolíticas; lesivo <> acção intensa idem

Manifestações clínicas

Na grande maioria, os portadores da deficiência enzimática de G-6PD são “aparentemente saudáveis”; nalguns casos surgem crises agudas de anemia hemolítica relacionáveis com a exposição a determinados agentes atrás referidos, a administração de fármacos, ingestão de favas ou outras leguminosas, ou a verificação de certos estados mórbidos, designadamente infecções.

A gravidade da hemólise depende da variante em causa, do nível de actividade enzimática nos eritrócitos e do tipo e intensidade da agressão oxidativa (ou oxidante). As formas clínicas de apresentação podem ser as seguintes:

1. Anemia hemolítica aguda

Nesta situação, típica da forma mediterrânica A(-), verifica-se crise de hemólise intravascular desencadeada por estresse oxidante (por exemplo, exposição a agentes oxidantes como primaquina, sulfamidas, entre outros, ou por ingestão de favas).

Salienta-se, em plena saúde aparente, o aparecimento de irritabilidade, letargia, febre, sintomas gastrintestinais e colúria (urina de cor de vinho do Porto).

O exame objectivo evidencia palidez, icterícia, taquicárdia e, nos casos mais graves, evolução aguda para choque hipovolémico ou, menos frequentemente, insuficiência cardíaca. Destaca-se ainda a presença de hepatosplenomegália moderada.

Através dos exames laboratoriais comprova-se anemia normocrómica e normocítica, moderada a extremamente grave (Hb atingindo, por vezes, valores de 2,5 a 4 g/dL) com anisocitose e poiquilocitose marcadas. A reticulocitose acentuada (por vezes ultrapassando 30%) torna-se evidente como resposta eritropoiética por volta do 5º-7º dia após início do quadro de hemólise aguda.

A presença de corpúsculos de Heinz nos eritrócitos (complexos de Hb desnaturada) é patognomónica. No entanto, a sua observação é, em geral, transitória, já que os respectivos eritrócitos são rapidamente removidos da circulação. A análise sumária da urina revela colúria e hemoglobinúria.

A principal complicação é a insuficiência renal aguda por necrose tubular.

O grau de hemólise traduz a gravidade da doença, variando, como foi dito, com o tipo e intensidade da exposição ao agente desencadeante e com a gravidade de deficiência enzimática.

Habitualmente trata-se de situação autolimitada com tendência para a regressão espontânea, com normalização do valor de Hb entre três a seis semanas; com efeito, com a regeneração eritrocitária pós-crise reticulocitária atrás mencionada, verifica-se, como atrás foi referido, que a actividade da G6PD é mais elevada nos eritrócitos mais jovens.

2. Icterícia neonatal

Trata-se duma forma de apresentação possível no recém-nascido (RN), ocorrendo, na sua maioria, na ausência de exposição a agentes oxidantes.

No entanto, a ingestão de drogas oxidantes pela grávida (situação por vezes não inquirida na anamnese) poderá originar manifestações no feto/RN deficiente em G6PD.

Assim, o défice de G6PD neste período etário, associado a outros factores que se somam e também predispõem à hemólise (baixos níveis de vitamina E e da redutase da metemoglobina) pode traduzir-se de duas formas:

  • Forma predominantemente ictérica: trata-se de quadro de icterícia de grau variável, em geral surgindo entre o 2º e 3º dia de vida (raramente nas primeiras 24 horas), mais importante do que a anemia; no entanto, a hiperbilirrubinémia não conjugada, se for muito acentuada e não correctamente tratada (exsanguinotransfusão), poderá originar encefalopatia (kernicterus). Esta forma ocorre em diversas variantes;
  • Forma predominantemente anémica: o quadro clínico é o de anemia aguda por hemólise relacionável com exposição a agente (incluindo naftalina na roupa), medicamento, ou infecção; uma variante descrita resulta da exposição a favas ou fármacos oxidantes ingeridos pela grávida.

Numa e noutra forma a hepatosplenomegália poderá não estar presente.

3. Anemia hemolítica congénita crónica

Esta forma de apresentação (surgindo inicialmente como icterícia inexplicada), em pacientes com a variante mediterrânica (B-), ocorre invariavelmente no sexo masculino. No período neonatal poderá estabelecer a indicação de exsanguinotransfusão. Como particularidade em relação à forma anterior, importa salientar que, após a exsanguinotransfusão, a anemia reaparece e a icterícia não regride (hiperbilirrubinémia crónica).

Em muitos casos, o diagnóstico faz-se mais tarde, face à verificação de litíase biliar.

A anemia normocrómica, associada a reticulocitose acentuada é variável, não se observando alterações da morfologia dos eritrócitos.

Exames complementares

Uma vez realizados a anamnese (com ênfase para os antecedentes familiares) e o exame objectivo, importa salientar como noções genéricas, as seguintes: o diagnóstico da maioria das enzimopatias eritrocitárias em geral é, em parte, de exclusão, baseando-se: na prova de Coombs directa negativa, na prova de avaliação da fragilidade osmótica normal, na ausência de anomalias morfológicas eritrocitárias, designadamente esferócitos (excepto identificação de degmócitos – ver adiante), e na ausência de hemoglobinas anormais.

Para o diagnóstico de portadores da deficiência de G6PD podem utilizar-se técnicas qualitativas ou quantitativas com as quais é possível demonstrar diminuição ou ausência da actividade enzimática.

O doseamento da actividade enzimática é efectuado por medição da cinética enzimática. Pela avaliação directa, tal actividade em indivíduos afectados é igual ou inferior a 10%. Para tal avaliação importa conhecer os valores absolutos de referência:

  • 4,5 a 8,5 UI/g de Hb até um ano de idade.
  • 3,5 a 5,5 UI/g de Hb após um ano de idade.

Diferentes estudos de biologia molecular permitem conhecer a sequência de ADN do gene que codifica a G6PD para identificação das variantes. A identificação de uma mutação patogénica estabelece o diagnóstico definitivo, permite aconselhamento genético e, em casos graves, o diagnóstico pré-natal.

No estudo da morfologia do sangue periférico podem ser identificados os chamados eritrócitos “mordidos” ou degmócitos. Poderá existir ou não anemia e reticulocitose.

A colheita de sangue não deve ser efectuada durante as crises hemolíticas ou processos infecciosos, uma vez que, em tais circunstâncias, a destruição dos eritrócitos mais deficientes em G6PD, a elevação do número de reticulócitos e de leucócitos (células ricas na enzima em causa) podem alterar os resultados; igualmente acontece após transfusão de sangue (dador contendo G6PD com actividade normal).

Tratamento e prevenção

Não existe tratamento específico. A transfusão de concentrado eritrocitário apenas está indicada no favismo agudo e nas situações em que se verifique repercussão hemodinâmica da anemia.

No período neonatal importa seguir as normas de actuação em caso de hiperbilirrubunémia. (Parte XXXI)

A esplenectomia apenas está indicada em presença de hiperesplenismo, contudo, não está provado o seu benefício.

No que respeita à prevenção, importa evitar as fontes potenciais de agentes oxidantes (nomeadamente ingestão de favas), incluindo as relacionadas com o tratamento das infecções; de salientar que a evicção daqueles contribui para a prevenção e/ou para reverter a situação.

No contexto da variante A(-), em que surge infecção, o uso de doses usuais de ácido acetilsalicílico (AAS) e TMP-SMX não provocam hemólise importante. No entanto, doses de AAS para tratamento da febre reumática (60-100 mg/kg/dia) podem originar episódio hemolítico grave. (ver Quadro 1)

O rastreio no recém-nascido apenas se justifica nos países com elevada prevalência do defeito enzimático.

Na forma clínica de anemia hemolítica crónica, em geral não é requerido o suporte transfusional. No entanto, há que atender à necessidade de vigilância clínica rigorosa, implicando nomeadamente o alerta para a eventualidade de intercorrência oxidativa (infecção ou ingestão de certos fármacos) susceptível de agravar a anemia. Nos casos com esplenomegália não está provado benefício da esplenectomia.

2. DÉFICE DE PIRUVATO CINASE (PK)

Importância do problema e hereditariedade

O défice de piruvatocinase (PK) é a enzimopatia mais frequente, a seguir ao défice de G6PD. No cômputo geral das anemias hemolíticas hereditárias, é a mais frequente, a seguir à esferocitose.

A sua frequência média é estimada em cerca de 5 casos por milhão de habitantes de raça caucasiana, com predomínio nos países do norte da Europa e em comunidades com elevada consanguinidade.

O mecanismo de transmissão é autossómico recessivo, sem predomínio de sexos; a expressão da doença observa-se sobretudo em indivíduos homozigóticos ou de dupla heterozigotia, isto é, portadores de dois genes com diferente tipo de mutação; a possibilidade de combinações muito variadas de genes alterados explica a variabilidade de manifestações (conhecidas mais de 220 mutações do gene PKLR associado a défice de PK).

Não parece existir relação entre a localização da mutação no gene, a actividade residual da PK, o grau de hemólise e a gravidade do quadro clínico. (ver adiante)

Do défice de PK resulta aumento do 2,3-DPG (2,3-difosfoglicerato) eritrocitário com consequente incremento na distribuição de oxigénio aos tecidos, desligando-se da Hb. Este fenómeno (diminuição da afinidade O2-Hb) tem implicações clínicas: menor fadiga e maior tolerância ao esforço, apesar da anemia.

Manifestações clínicas

O quadro clínico associado a esta patologia é altamente variável: desde hemólise crónica compensada, a anemia hemolítica grave com icterícia e esplenomegália, dependente de suporte transfusional. No RN a apresentação pode ser uma forma grave, com hiperbilirrubinemia e hidropisia. Em cerca de 80% dos casos a apresentação verifica-se em idade pediátrica, sendo que nalgumas crianças a anemia melhora com o crescimento.

As complicações são as próprias da hemólise crónica: maior incidência de litíase biliar, sobrecarga férrica, designadamente em doentes não transfundidos, anemia normocrómica e macrocítica, crises aplásticas transitórias, eritroblastopenia, défice de folatos, etc..

No sexo feminino, o quadro clínico inicial manifesta-se, por vezes, no decurso da gravidez ou de infecção intercorrente, realçando-se que nesta doença a hemólise não é desencadeada por estresse oxidante.

Exames complementares

O exame hematológico clássico revela parâmetros compatíveis com anemia hemolítica não esferocítica e reticulocitose acentuada.

O estudo morfológico do sangue periférico evidencia ocasionalmente macrócitos, eritrócitos espiculados e raros acantócitos, ovalócitos, eliptócitos e policromasia.

Dada a possibilidade de crises aplásticas, poderá ser identificado quadro compatível com pancitopénia.

O diagnóstico definitivo baseia-se na demonstração da actividade enzimática (PK) diminuída (5‑40% na maioria dos doentes, tipicamente < 25%). No entanto nos casos de heterozigotia e de algumas variantes, a actividade é normal ou pouco reduzida in vitro. O diagnóstico nestes casos depende da caracterização genética de uma mesma mutação patológica em homozigotia ou de 2 mutações patológicas diferentes.

Como os leucócitos têm actividade normal da PK, devem ser eliminados do hemolisado quando se pretende determinar a actividade da referida enzima eritrocitária.

Tratamento

A exsanguinotransfusão está indicada nas situações de hiperbilirrubinémia neonatal grave.

Nos casos de anemia crónica e grave com necessidade de regime transfusional frequente (cada 4 a 8 semanas), está indicada a esplenectomia, a realizar após os 5-6 anos. Salienta-se o efeito benéfico da esplenectomia: redução franca, ou até eliminação, da necessidade transfusional e subida da hemoglobina basal em 1-3 g/dL; é ainda notado um aumento da reticulocitose (que pode atingir 40-60%), possivelmente por redução da apoptose eritróide no baço. (ver atrás)

Nos casos de crises aplásticas estão indicados os procedimentos descritos a propósito deste tópico.

A mortalidade relacionada com a sépsis pneumocócica, meningocócica ou por Hemophilus influenzae pós-esplenectomia, torna obrigatória a aplicação das respectivas imunizações (hoje correntes) e a profilaxia com penicilina após a esplenectomia.

3. DÉFICE DE PIRIMIDINA-5’-NUCLEOTIDASE

A deficiência hereditária de pirimidina-5’-nucleotidase (P5N) é a terceira enzimopatia hemolítica mais frequente. Esta enzima integra a via metabólica dos nucleótidos (especificamente das pirimidinas) participando na degradação de ARN no reticulócito. No défice de P5N verifica-se acumulação de nucleótidos pirimidínicos que formam agregados insolúveis visíveis sob a forma de ponteado basofílico no esfregaço de sangue periférico.

Este achado não é específico, uma vez que a intoxicação por chumbo, um potente inibidor da P5N, também se associa à presença de ponteado basofílico nos eritrócitos. É fundamental distinguir estas entidades devido ao carácter reversível da segunda.

O défice de P5N é transmitido de forma autossómica recessiva e provoca anemia hemolítica crónica ligeira a grave, esplenomegália e icterícia. Vários métodos estão descritos para determinar a actividade eritrocitária de P5N. No entanto estes não são reprodutíveis, não sendo usados na prática clínica.

Uma prova de rastreio baseia-se no doseamento de nucleótidos purínicos e pirimidínicos. Um ratio purinas/pirimidinas reduzido pode ser sugestivo de défice de P5N. De salientar, contudo, que apenas a caracterização genética confirma o diagnóstico. Na ausência de tratamento específico, a actuação é sobreponível à das restantes anemias hemolíticas crónicas.

4. OUTRAS ENZIMOPATIAS RARAS

As restantes enzimopatias associadas à via glicolítica, raras, incluem-se no grupo das anemias hemolíticas congénitas não esferocíticas.

O esfregaço de sangue periférico é habitualmente incaracterístico. Estas enzimopatias eritrocitárias, sobretudo as mais raras, resultam em fenótipos muito diversos que se associam não apenas a anemia hemolítica, mas também a metemoglobinemia, policitemia e a alterações neurológicas e do neurodesenvolvimento.

Tal pode ser explicado pelo facto de estas enzimas glicolíticas terem várias funções não enzimáticas, como regulação da transcrição, estimulação da motilidade celular e controlo da apoptose. Outra explicação possível é o facto de os mesmos genes codificarem também isoenzimas com expressão e função noutros tecidos.

O Quadro 2 sintetiza as características clínicas mais típicas associadas a estas enzimopatias.

QUADRO 2 – Enzimopatias raras da via de Embden-Meyerhoff

Defeito enzimático

Prevalência

Hereditariedade

Anemia hemolítica

Outras manifestações

Hexocínase (HK)
(níveis enzimáticos falsamente normais na reticulocitose)

Rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico

Redução 2,3 DPG com fraca tolerância à anemia; Malformações congénitas e atraso psicomotor nalguns doentes, sem relação provada com o défice de HK

Glicose fosfato isomerase

O segundo defeito da via glicolítica mais comum

Autossómica recessiva

Sim

Leucopenia e trombocitopenia
Alterações neurológicas
Hemólise agravada no contexto de infecção, estresse oxidativo

Fosfofrutocinase (Doença de Tauri ou Glicogenose tipo VII

Rara

Autossómica recessiva

Variável

Miopatia agravada com o exercício
Hiperuricémia, artropatia
Heterogeneidade do quadro clínico (disfunção do SNC, cardiomiopatia)

Aldolase

Muito rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico

Miopatia
Rabdomiólise
Atraso psicomotor

Triosefosfato isomerase

Rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico, ocasionalmente esferoequinócitos

Doença grave com envolvimento frequente de outros órgãos e alterações neuromusculares, cardíacas e infecciosas frequentes

Fosfoglicerato cinase

Rara

Ligada ao X

Sim, habitualmente
Esfregaço incaracterístico

Atraso de desenvolvimento com disfunção neurológica e perturbações comportamento
Miopatia

Enolase

Muito rara

Autossómica dominante

Sim
Presença de esferócitos no esfregaço

Agravamento da anemia com estresse oxidativo

Desidrogenase láctica

Muito rara

Autossómica recessiva

Não

Miopatia

 Adaptado de Dario Tavazzi, et al, 2008

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