SÉPSIS

Importância do problema

Embora o organismo humano esteja exposto a numerosos agentes infecciosos potencialmente patogénicos, os seus sistemas de defesa de primeira linha actuam nos locais de invasão impedindo, na maior parte dos casos, infecções com desfecho fatal.

A sequência de eventos após a entrada em circulação de um agente infeccioso é complexa, dependendo o resultado final do balanço entre a virulência daquele e a capacidade de resposta do hospedeiro.

Embora a inflamação seja uma resposta essencial do hospedeiro, o início e progressão da sépsis resulta de uma “desregulação” da resposta normal, habitualmente com um aumento tanto de mediadores pró-inflamatórios como anti-inflamatórios, iniciando-se uma cadeia de eventos que leva a lesões teciduais generalizadas.

Esta desregulação da resposta do hospedeiro, mais do que o microrganismo infeccioso primário, é tipicamente responsável pela disfunção orgânica e pelo prognóstico.

Apesar dos avanços consideráveis da medicina intensiva nas últimas décadas, a sépsis continua a ser uma das principais causas de morte na idade pediátrica, com taxas que têm diminuído muito ao longo dos anos, mas que ainda atingem valores oscilando entre os 8 e 12%. A precocidade da sua identificação e do tratamento adequado contribuem decisivamente para a melhoria do prognóstico.

Definições

Segundo o Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock de 2016  é uma síndroma de resposta inflamatória sistémica (SIRS) em presença de uma infecção suspeitada ou demonstrada, acompanhada de disfunção orgânica grave, compromisso da microcirculação e, em geral de desregulação imunológica.

Este processo reactivo de resposta  não é, contudo, específico da infecção, podendo ser desencadeado por qualquer noxa considerada grave como traumatismo, queimadura, pancreatite, grande cirurgia, etc. (SIRS não infecciosa).

 Os critérios utilizados para as definições de sépsis, sépsis grave, SIRS e choque séptico encontram-se descritos no Quadro 1.

Quadro 1 – Infecção sistémica e critérios de diagnóstico

SIRS

Presença de 2 dos 4 critérios seguintes, um dos quais obrigatoriamente alteração da temperatura ou número anormal de leucócitos.

      • Temperatura central > 38,5ᵒC ou < 36ᵒC.
      • Taquicárdia (FC > 2 DP acima do valor de referência para a idade) na ausência de estímulos externos, drogas ou estímulo doloroso; ou inexplicada, persistindo 30 minutos – 4 horas; ou
      • Bradicárdia (FC < percentil 10 para a idade) na ausência de estímulo vagal, drogas b-bloqueantes, cardiopatia congénita; ou inexplicada e persistente > 30 minutos.
      • Frequência respiratória (FR > 2 DP acima do valor de referência para a idade); ou ventilação mecânica por um processo agudo não relacionado com:
        1. doença neuromuscular subjacente; ou
        2. status pós-anestesia geral.
      • Leucocitose ou leucopénia (não induzida por quimioterapia) ou neutrófilos imaturos > 10%.
Infecção

Invasão do organismo por agente microbiano patogénico, com capacidade de multiplicação.

      1. suspeita; ou
      2. provada (por cultura positiva ou PCR-reacção em cadeia da polimerase); ou
      3. probabilidade elevada (achados clínicos sugestivos, achados imagiológicos, ou laboratoriais (por ex. presença de leucócitos em fluido normalmente estéril, víscera perfurada, radiografia de tórax compatível com pneumonia, exantema purpúrico ou petequial, ou púrpura fulminante)
Sépsis
SIRS na presença de, (ou como resultado de) infecção suspeita ou provada.
Sépsis grave

Sépsis associada a um dos seguintes parâmetros:

      1.  disfunção cardiovascular; ou
      2. síndroma de dificuldade respiratória aguda; ou
      3.  disfunção de dois ou mais órgãos.
Choque séptico

Sépsis associada a disfunção cardiovascular definida por:

      • hipotensão (PA < percentil 5 para a idade ou < 2 DP para a idade); ou necessidade de
      • drogas vasoactivas para manter pressão arterial normal (dopamina > 5 μg/Kg/minuto, ou dobutamina, adrenalina ou noradrenalina em qualquer dose; ou
      • dois dos seguintes critérios:
        • Acidose metabólica: défice de base (DB) > -5 mEq/L;
        • Lactato arterial aumentado > 2 vezes o limite superior do normal;
        • Oligúria: débito urinário < 0,5 mL/Kg/h;
        • Tempo de recoloração capilar aumentado: > 5 segundos;
        • Diferença entre a temperatura central e periférica > 3oC,…
          …apesar da administração fluido isotónico 40 ml/kg durante 1 hora.

Etiopatogénese

Dum modo geral, as infecções invasivas em crianças saudáveis no período pós-neonatal são provocadas predominantemente por três germes: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, e Haemophilus influenzae do tipo b, sendo que os programas de vacinação em diversos países têm contribuído para a redução da incidência de sépsis pelos referidos germes.

Causas mais raras de sépsis em crianças saudáveis incluem infecções por Staphylococcus aureus, Streptococcus dos grupos A, C e G e espécies de Salmonella. Na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia são analisados os agentes mais frequentes no RN.

Nas crianças com défices imunitários podem estar implicados agentes tais como Pseudomonas aeruginosa e fungos. Nas situações cuja gravidade obriga a internamento em unidades de cuidados intensivos com uso de técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica existe um risco acrescido de sépsis por Staphylococcus coagulase negativo, Enterococcus e S. aureus resistentes à meticilina.

Actualmente, devido à aplicação de medidas preventivas e à melhoria dos cuidados de saúde e das condições de vida da população, tem-se verificado a diminuição dos casos de sépsis grave e de choque séptico adquiridos na comunidade em indivíduos saudáveis.

Efectivamente, esta patologia afecta particularmente os doentes hospitalizados, portadores de doenças debilitantes, com imunodeficiência primária ou secundária, submetidos a técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica e portadores de microbioma altamente resistente devido, entre outras causas, ao uso excessivo de antibióticos de largo espectro em meio hospitalar.

Considerando todos os germes mencionados, cabe salientar que, embora seja condição indispensável a presença dos mesmos na corrente sanguínea, nem sempre tal presença conduz a sépsis ou choque séptico, o que depende, como foi referido, do balanço entre as características do microrganismo e o sistema de defesa imunitário do hospedeiro.

Certos vírus, designadamente vírus herpes, enterovírus e adenovírus podem provocar doença com manifestações semelhantes às da sépsis bacteriana, sobretudo em RN e lactentes.

Na etiopatogénese da sépsis estão envolvidos mecanismos muito complexos que funcionam sequencialmente “em cascata”. Há factores predisponentes do hospedeiro que aumentam a probabilidade de sépsis por determinados agentes.

São dados alguns exemplos: asplenia predispõe a infecção por S. pneumoniae; polisplenia predispõe a infecção por Salmonella; os germes anteriores originam com maior probabilidade sépsis nos casos de doença de células falciformes; a sobrecarga em ferro predispõe a infecção por Listeria monocytogenes, Yersinia enterocolitica e Vibrio vulnificus; deficiência em complemento (C5 a C9) predispõe a infecções pelo género Neisseria, etc..

A acção das bactérias Gram-positivas depende da produção de exotoxinas potentes (por ex. tétano, botulismo, difteria); quanto às Gram-negativas, é principalmente o componente da camada externa da parede celular (lipopolissacárido/LPS) que está implicado na patogénese da sépsis.

Algumas exotoxinas (chamadas superantigénios) elaboradas por estreptococos e estafilococos actuam do seguinte modo:

  • Estimulam a proliferação das células T, induzindo a libertação maciça de citocinas pró-inflamatórias (TNF-alfa, interferão-gama e IL-1) mesmo em casos de infecção localizada; e
  • Desencadeiam a resposta inflamatória sistémica responsável pelas alterações cardiovasculares e hemodinâmicas características da sépsis.

As endotoxinas ligam-se a receptores dos macrófagos (designadamente hTLR) e estimulam a produção e libertação de citocinas pró-inflamatórias (sobretudo TNF-a, IL-1 e IL-6), radicais livres de oxigénio e metabólitos do ácido araquidónico. (Figura 1)

Os metabólitos do ácido araquidónico incluem: tromboxano A2 que causa vasoconstrição e agregação das plaquetas; prostaglandinas (PGF 2-alfa que causa vasoconstrição e PGI2 que causa vasodilatação); os leucotrienos que levam a vasoconstrição, broncoconstrição e aumento da permeabilidade capilar. A TNF-alfa e algumas IL podem lesar o miocárdio, ao mesmo tempo que estimulam a sintetase do óxido nítrico (NO).

É também activada a via alterna do complemento bem como a cascata da coagulação, criando-se um estado pró-coagulante e antifibrinolítico que leva a fenómenos de microtrombose causadores de hipóxia e lesão tecidual. Há também consumo de factores de coagulação com estabelecimento de quadros de coagulação intravascular disseminada.

O endotélio vascular, com papel fundamental na vasorregulação, é o alvo e fonte de produção de muitos mediadores. O NO produzido pelas células endoteliais é responsável pelas alterações a nível da microcirculação com vasodilatação e fuga transcapilar causadoras da hipotensão que se observa nas situações de choque séptico.

Na tentativa de conter a produção de citocinas pró-inflamatórias há libertação de citocinas anti-inflamatórias – IL4, IL10, IL13. A interacção entre estes dois tipos de mediadores pode ser considerada uma “luta entre forças opostas”. O seu equilíbrio significaria a obtenção da homeostase no processo séptico.

A produção e libertação de citocinas em quantidades moderadas é importante e necessária na defesa eficaz contra a infecção. No entanto, a sua libertação anárquica ou em quantidade muito elevada determina uma resposta amplificada, ultrapassando a capacidade reguladora do organismo, o que contribui para as alterações cardiovasculares e hemodinâmicas, com implicação na mortalidade.

FIGURA 1. Fisiopatologia da sépsis

Manifestações clínicas e exames complementares

Os sinais e sintomas de sépsis são muito variáveis, dependendo da idade, da doença de base, da duração da doença e do microrganismo responsável, podendo o seu curso ser de instalação rápida ou progressiva.

Quanto menor for a idade do doente mais inespecífica é a sintomatologia. Não há nenhum sinal clínico que possa ser considerado um indicador específico e sensível de infecção grave; consequentemente, o diagnóstico de sépsis requer um alto índice de suspeição clínica no pressuposto de anamnese cuidada e exame físico rigoroso, fundamentando a execução racional de exames complementares.

Nos lactentes pequenos, os sinais mais precoces de sépsis são muitas vezes as alterações do estado de consciência com períodos de irritabilidade, choro inconsolável, prostração e apneia.

Nas crianças maiores é mais frequente a hipertermia com calafrio, taquicárdia, taquipneia, palidez, icterícia, distensão abdominal, diminuição ou ausência de pulsos periféricos, prolongamento do tempo de preenchimento capilar, extremidades frias e exantema. O exantema petequial ou purpúrico é muito característico da infecção por Neisseria meningitidis, mas também se observa frequentemente nas infecções por outros agentes (por ex. H. Influenzae, Enterovírus, Rickettsias). De salientar que a hipotensão é um sinal de aparecimento tardio, pela existência de mecanismos compensatórios.

Por vezes são evidentes sinais de infecção focal, como pneumonia, meningite, celulite, artrite. No momento do diagnóstico poderão ser detectados já sinais clínicos de disfunção de vários órgãos, sobretudo o cérebro (alteração do estado de consciência), pulmão, coração, rim (diminuição da diurese), e vasos sanguíneos e sangue (exantema petequial).

O doente com sépsis necessita duma avaliação clínica cuidada e de instituição rápida de terapêutica adequada. A primeira avaliação deve ser feita com base em parâmetros meramente clínicos, sem necessidade de grandes recursos; é extremamente importante, pois permite o reconhecimento precoce do doente com sépsis, a avaliação da fase evolutiva em que se encontra, como tal, a instituição precoce de medidas terapêuticas, gesto decisivo no prognóstico da doença.

Quando a evolução clínica é desfavorável e não há resposta às primeiras medidas terapêuticas, torna-se necessária a utilização de métodos invasivos de monitorização (pressão venosa central, pressão arterial e saturação venosa de oxigénio) e tratamento; em tais circunstâncias o doente deve ser transferido para uma unidade de cuidados intensivos pediátricos.

Devem ser avaliados os seguintes parâmetros: estado de consciência, a frequência e ritmo cardíaco, pressão arterial não invasiva, pulsos periféricos, tempo de recoloração capilar, frequência e esforço respiratório, saturação O2-Hb/SpO2 por oximetria de pulso, temperatura central e periférica, diurese e presença de manifestações de diátese hemorrágica (petéquias, sufusões, hemorragia das mucosas).

Torna-se necessária a confirmação microbiológica de infecção, com identificação do agente causal. Devem ser realizados exames culturais seriados de vários líquidos orgânicos: sangue, urina, fezes, LCR, secreções respiratórias, líquido pleural, peritonial ou sinovial, e também de exsudados e de lesões cutâneas. A punção lombar deve ser efectuada após estabilização hemodinâmica, respiratória e neurológica, sem que isso atrase a instituição da terapêutica antibiótica.

Outros exames úteis no diagnóstico de infecção são: a pesquisa de antigénios bacterianos por testes de aglutinação; a detecção de antigénios víricos nas secreções nasofaríngeas por imunofluorescência; e as técnicas de biologia molecular – PCR (reacção da polimerase em cadeia – polymerase chain reaction), no soro e LCR, consideradas as mais eficazes e confiáveis para o diagnóstico de infecção por um determinado agente.

Em todos os casos em que se admite, pela anamnese e exame objectivo, o diagnóstico de sépsis, e atendendo a que o respectivo quadro clínico se caracteriza por repercussão multissistémica, deve proceder-se a exames complementares de modo sistematizado para avaliação do grau de disfunção dos vários órgãos:

  • Hematológica – hemograma (com tipagem), provas de coagulação;
  • Renal – ureia, creatinina, ionogramas sérico e urinário;
  • Hepática – ALT, AST, bilirrubinas, albumina;
  • Metabólica – glucose, bicarbonato, lactato, défice de bases;
  • Respiratória – gasometria (para monitorização da hipóxia e da retenção de dióxido de carbono);
  • Neurológica – ecografia transfontanelar, EEG, TAC (a ponderar caso a caso).

Habitualmente, verifica-se a existência de leucocitose com elevação do número absoluto de neutrófilos imaturos, vacuolização dos neutrófilos, e corpos de Döhle. A neutropénia é um sinal de gravidade. São frequentes: trombocitopénia e alterações da coagulação com diminuição do nível sérico do fibrinogénio, assim como aumento da proteína C reactiva, da procalcitonina, dos tempos de protrombina e de tromboplastina parcial.

Tratamento

Medidas prioritárias

Nas situações de sépsis bacteriana, o diagnóstico e intervenção terapêutica precoces são decisivos para a melhoria do prognóstico, por se impedir a progressão para o estádio de choque séptico e de falência multiorgânica.

O objectivo prioritário é restaurar a perfusão tecidual através da estabilização hemodinâmica e manutenção de oxigenação e ventilação adequadas (se necessário com ventilação invasiva, reduzindo desta forma o gasto cardíaco). As medidas terapêuticas preconizadas com esta finalidade foram desenvolvidas no capítulo sobre Choque.

Antibioticoterapia

Por outro lado, está demonstrado que o início precoce de antibioticoterapia empírica adequada melhora significativamente o prognóstico, pelo que, após realização dos exames culturais, aquela deve ser iniciada de imediato (na primeira hora), e posteriormente ajustada de acordo com os resultados dos exames microbiológicos.

Para uma prescrição adequada é necessário ter em conta o quadro clínico, a idade do doente e os seus antecedentes no que respeita a doenças anteriores, estado imunitário e antibioticoterapia prévia. É também importante o conhecimento de factores epidemiológicos, bem como do padrão de resistência local aos antibióticos. É correcto começar com antibióticos de largo espectro, os quais devem ser substituídos por outros de espectro mais limitado logo que se conheçam os agentes bacterianos envolvidos e sua sensibilidade aos antimicrobianos.

Os antibióticos a utilizar nas situações mais frequentes estão resumidos no Quadro 2. Os mesmos destinam-se ao tratamento da sépsis em crianças com quadro clínico grave que necessitam de ser hospitalizadas ou que adquiriram a infecção em meio hospitalar.

QUADRO 2 – Antbioticoterapia na sépsis

(#) → Nas crianças de idade > 3 meses os antibióticos empíricos de primeira linha são sempre as cefalosporinas de 3ª geração, de acordo com o quadro. Somente se associa a vancomicina nos casos em que há forte suspeita de infecção por Streptococcus pneumoniae.
(x) → Considera-se a gentamicina como o aminoglicosídeo de 1ª escolha, reservando outros (amicacina e tobramicina) para situações mais específicas.
(•) → Carbapenems: como 2ª linha.

Idade

Agentes prováveis

Antibióticos
(esquemas a adaptar em função da probabilidade/contexto clínico ou germe isolado)

RN – 3 meses

    • Streptococcus grupo B
    • Enterobacteriáceas
    • Listeria
    • Herpes simplex(*)
    • Ampicilina + aminoglicosídeo(x) ou cefotaxima/ceftriaxona

(*) + aciclovir se suspeita

> 3 meses(#)
Crianças saudáveis

    • S. pneumoniae
    • Neisseria meningitidis
    • Haemophilus influenzae
    • Staphylococcus aureus
    • Streptococcus βhemolítico
    • Cefotaxima/ceftriaxona (+ vancomicina se suspeita de meningite por S. pneumoniae ou se estafilococo ou pneumococo resistente à meticilina)
    • Flucloxacilina + aminoglicosídeo
    • Penicilina + clindamicina

Imunodeficiência, neutropénia ou infecção nosocomial

    • Enterobacteriáceas
    • Pseudomonas
    • S. aureus coagulase negativo
    • Serratia
    • Candida
    • Vancomicina + agente anti-pseudomonas:
      • Ceftazidima ou cefepime
      • Tobramicina
    • Vancomicina + ceftazidima + aminoglicosídeo
    • Penicilina + inibidor das beta-lactamases (clavulânico, tazobactam, sulbactam);
    • Carbapenems(•) (imipenem ou meropenem);
    • Anfotericina B

Sépsis de origem abdominal

    • Enterobacteriáceas
    • Anaeróbios
    • Cefotaxima/ceftriaxona + gentamicina + metronidazol ou clindamicina

Salienta-se a importância da adopção de critérios rigorosos na prescrição de antibióticos ao tratar infecções adquiridas na comunidade em crianças aparentemente saudáveis até à data do episódio infeccioso; com efeito, em tal circunstância os germes microbianos responsáveis são, na maioria das vezes, sensíveis aos velhos antibióticos, os quais deverão ser utilizados como terapêutica de primeira linha.

Não se deve esquecer o controlo de algum foco infeccioso existente, designadamente através da drenagem de colecções, do desbridamenteo de tecidos infectados e da remoção de corpos estranhos ou outros dispositivos.

Outras medidas terapêuticas

Nos últimos anos, o melhor conhecimento da fisiopatologia da sépsis levou ao aparecimento de numerosas terapêuticas na tentativa de modificar ou modular a resposta inflamatória do hospedeiro à infecção.

São exemplos os usos: de imunoglobulina IV em altas doses (com especial indicação nas síndromas de choque tóxico), de anticorpos antiendotoxina, de anticitocinas (anti-TNFa, anti-IL1), e do inibidor da sintetase do óxido nítrico. De referir que com nenhuma destas terapêuticas se demonstrou eficácia no respeitante à redução da mortalidade por sépsis.

A interacção entre as actividades inflamatória e procoagulante abriu um novo caminho no âmbito da terapêutica com anticoagulantes. Em estudos realizados em adultos verificou-se que a administração de proteína C activada, anticoagulante endógeno com propriedades anti-inflamatórias, levou a redução da mortalidade em casos de sépsis grave, o que não aconteceu na idade pediátrica. A utilização de corticóides continua a ser controversa, sendo recomendada apenas em crianças com choque resistente às catecolaminas e com risco de insuficiência da suprarrenal ou do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal. Também as hipóteses de efeito benéfico com a administração da hormona de crescimento (GH), tendo como base a disfunção do eixo hipotálamo-hipofisário, não se confirmaram em estudos científicos.

E ainda, outras medidas deverão ser tidas em conta:

  • Transfusão de concentrado eritrocitário (para manter níveis de hemoglobina superiores a 10g/dL);
  • Transfusão de concentrado plaquetário se sangramento activo e plaquetas inferiores a 50.000/µL, ou de forma profiláctica se as plaquetas apresentarem valores inferiores a 20.000/µL;
  • Administração de plasma perante alterações da coagulação que a justifiquem (poderá ser efectuado um tromboelastograma prévio);
  • Controlo da glicemia;
  • Correcção de alterações iónicas;
  • Utilização de ECMO (extracorporeal membrane oxygenation) em situações específicas designadamente em contexto de choque séptico refractário.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção da infecção por Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis são abordados noutros capítulos.

A diminuição dos casos de infecção associada à prestação dos cuidados de saúde, através do cumprimento rigoroso das medidas de controlo de infecção deve ser hoje um objectivo prioritário em qualquer unidade de saúde, constituindo um dos principais indicadores de qualidade dos cuidados prestados.

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CHOQUE

Definição e importância do problema

O choque é uma situação clínica relativamente frequente em idade pediátrica, sendo uma causa importante de morbilidade e mortalidade em todo o mundo.

Define-se como um estado agudo de falência energética em que existe insuficiência da microcirculação com consequente perfusão inadequada dos tecidos, sendo, a oferta de oxigénio e nutrientes, desajustada em relação às necessidades metabólicas.

O atraso no reconhecimento e consequente atraso no tratamento do choque resulta em metabolismo anaeróbio (menos eficiente), acidose tecidual e progressão de um estado compensado reversível para um estado de irreversibilidade com falência multiorgânica com uma probabilidade de morte directamente proporcional ao número de órgãos em falência.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com diversos estudos, o quadro de choque ocorre em cerca de 2 a 3% dos doentes hospitalizados (idade pediátrica e adultos), com uma mortalidade que tem diminuído muito nas últimas décadas graças aos progressos que permitem o reconhecimento e diagnóstico cada vez mais precoces, e também ao desenvolvimento de técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica.

Na perspectiva epidemiológica, e no que respeita a factores etiológicos em idade pediátrica adiante analisados, é importante salientar que o choque hipovolémico é o mais frequente, quer seja devido a hemorragia aguda (nos países desenvolvidos), quer a desidratação aguda por gastrenterite (nos países em vias de desenvolvimento).

No referido grupo etário, o choque cardiogénico é pouco frequente.

Por outro lado, a infecção constitui uma das principais causas de mortalidade nas unidades de cuidados intensivos.

Etiopatogénese e classificação

A perfusão tecidual depende da pressão arterial, sendo esta dependente de três variáveis relacionadas com a função cardiocirculatória:

  • O volume sanguíneo que deve ser adequado e com uma viscosidade sanguínea equilibrada;
  • A contractilidade cardíaca;
  • O tono vascular arterial e venoso que determina as resistências vasculares.

Qualquer interferência num destes factores poderá resultar em falência cardiocirculatória e choque.

Dado que a função essencial do sistema cardiovascular é levar aos tecidos o oxigénio adequado às suas necessidades, tal só poderá ser feito de forma eficaz em presença de condições de normalidade do mesmo.

O transporte de O2 aos tecidos (DO2) é o resultado do produto do débito cardíaco (DC) pelo conteúdo arterial de O2 (CaO2), de acordo com a fórmula:

DO2 = DC x Ca O2 (VN = 520 – 570 ml/min/m2)

Quando há diminuição da pressão arterial é desencadeada no organismo uma série de mecanismos de compensação para tentar manter a perfusão e oxigenação adequadas ao nível dos tecidos.

Inicialmente há uma activação do sistema simpático através da estimulação dos barorreceptores carotídeos, o que leva a um aumento do débito cardíaco por aumento da frequência e contractilidade cardíacas e a vasoconstrição periférica. Estes fenómenos conduzem a uma redistribuição do fluxo sanguíneo, com desvio para áreas “nobres” ou prioritárias em termos fisiológicos, como o cérebro e coração, em detrimento doutras em que o fluxo sanguíneo diminui – pele, músculo e circulação esplâncnica.

Para além do sistema simpático são activados diversos mecanismos endócrinos, nomeadamente, libertação de hormona antidiurética (HAD) e activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, levando a aumento da reabsorção renal de água e sódio com aumento do volume intravascular.

Esta resposta neuroendócrina compensatória, eficaz até certos limites, determina as várias fases do choque.

Classicamente, a resposta hemodinâmica correlacionando-se com a clínica, pode ser consubstanciada em três fases:

  1. Choque hiperdinâmico (choque compensado, choque quente)
    A resposta hemodinâmica compensatória é eficaz. Assim, a pressão arterial é normal, a frequência cardíaca é normal ou pode estar aumentada, e a diurese é normal;
  2. Choque hipodinâmico (choque descompensado, choque frio)
    Há falência da resposta hemodinâmica. O que caracteriza esta fase é a hipotensão arterial associada a taquicardia e sinais de hipoperfusão – diurese diminuída, depressão da consciência;
  3. Choque irreversível
    Há falência de órgãos e a morte é inevitável.

Desta evolução decorre que o choque pode ocorrer sem hipotensão; ou seja, a hipotensão, quando detectada, corresponde já a uma fase de falência dos mecanismos de compensação. É sempre um sinal tardio.

Embora os factores etiológicos do choque sejam múltiplos, os mecanismos patogénicos desencadeados pelos vários determinantes são os mesmos a nível celular e molecular, o que resulta numa apresentação clínica comum.

Com efeito, sabe-se, desde há vários anos, que em resposta a uma agressão grave, que pode ser infecciosa, traumática ou outra, há uma resposta inflamatória sistémica não específica designada síndroma de resposta inflamatória sistémica (SIRS). Mais do que a entidade agressora é esta resposta do hospedeiro que vai condicionar o prognóstico. Os mediadores inflamatórios produzidos com o intuito de combater o agente agressor tornam-se, a partir de certo ponto, os responsáveis pela manutenção das lesões celulares. Esta resposta inflamatória pode progredir independentemente da remoção da causa desencadeante para estádios de gravidade crescente. (ver capítulo sobre Sépsis)

As endotoxinas e exotoxinas circulantes induzem a libertação de mediadores pró-inflamatórios e anti-inflamatórios de cujo balanço resulta o quadro clínico. Se houver predomínio de mediadores pró-inflamatórios será desencadeada a cascata da inflamação, surgindo uma situação clínica de SIRS.

O endotélio e a parede vascular têm um papel chave em todo este processo. (Figura 1)

FIG. 1 – Fisiopatologia do Choque

O endotélio é o maior órgão do organismo e desempenha um papel relevante na vasorregulação. É local de actuação e de produção de muitos mediadores.

Há perda do tono vascular e aumento da permeabilidade vascular, com vasodilatação e depleção do volume intravascular, que originam hipotensão, e hipóxia tecidual, com aumento do lactato e morte celular. Para além disso, o endotélio activado, com uma actividade pró-coagulante e fibrinolítica, é responsável por fenómenos de adesão plaquetária e microtromboses, o que contribui para diminuir, ainda mais, a perfusão dos tecidos.

De acordo com os aspectos da etiopatogénese, pode classificar-se o choque como se sintetiza no Quadro 1.

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica do choque

Hipovolémico (défice de volume intravascular)

      • Desidratação
      • Hemorragia
      • Queimadura

Cardiogénico (falência da bomba cardíaca)

      • Cardiopatias congénitas
      • Disritmias
      • Cirurgia cardíaca
      • Miocardite

Distributivo (alteração do tono vascular)

      • Anafilaxia
      • Neurogénico: secção da medula espinhal, bloqueio simpático

Obstrutivo (obstáculo mecânico à ejecção ventricular)

      • Pneumotórax hipertensivo
      • Tamponamento cardíaco
Séptico (distributivo, hipovolémico, cardiogénico)

 

Como se depreende pela análise da lista do Quadro 1, em determinadas situações verificam-se mecanismos associados, sendo alguns deles comuns a diversas entidades clínicas.

O choque séptico é o exemplo clássico em que existe simultaneamente uma hipovolémia profunda em paralelo com alterações da distribuição do fluxo sanguíneo e também, muitas vezes, disfunção cardíaca. É também frequente que crianças com cardiopatias congénitas apresentem, em simultâneo, choque cardiogénico e hipovolémico devido a défice de suprimento hídrico por não ingesta, ou a perdas gastrintestinais.

 Manifestações clínicas e exames complementares

Um doente que evidencie um quadro de choque constitui uma emergência médica, necessitando duma avaliação clínica rigorosa paralelamente à instituição rápida de medidas terapêuticas adequadas.

A primeira avaliação deve ser feita com base apenas em parâmetros clínicos, sem necessidade de recursos semiológicos complexos, permite, em geral, o reconhecimento da fase evolutiva do choque.

Sendo o choque uma síndroma multissistémica com disfunção em grau variável de todos os órgãos, o objectivo da avaliação semiológica inicial é, fundamentalmente, a detecção de sinais de défice de perfusão tecidual (estado de consciência, temperatura diferencial, tempo de reperfusão capilar, diurese) e a avaliação das funções cardíaca e respiratória. (Quadro 2)

Quadro 2 – Parâmetros prioritários de avaliação clínica

Função circulatória

      • Frequência e ritmo cardíacos
      • Pressão arterial não invasiva
      • Pulsos periféricos
      • Tempo de reperfusão capilar

Função respiratória

      • Frequência e esforço respiratórios
      • Saturação em O2/SpO2 (por oximetria de pulso)

Temperatura diferencial (central/periférica)

Diátese hemorrágica

      • Petéquias, sufusões, hemorragia das mucosas

Estado de consciência

Diurese


É importante reconhecer a situação de choque na fase de taquicardia, taquipneia, tempo de reperfusão capilar ligeiramente aumentado, com boa reactividade e com pressão arterial normal (choque compensado ou quente). A instituição de terapêutica nesta fase aumenta muito a probabilidade de sobrevivência.

O estudo laboratorial permite o diagnóstico do factor etiológico desencadeante do choque, bem como avaliar a repercussão na função dos vários órgãos.

Por outro lado, tratando-se duma situação complexa com indicação para assistência em unidades de cuidados intensivos, importa uma referência especial ao papel da monitorização invasiva na avaliação clínica do problema em análise, o choque. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Exames complementares nas situações de choque

    1. Diagnóstico de infecção
      Em função do contexto clínico estão indicados exames culturais seriados – sangue, urina, LCR, lesões cutâneas, etc..
    2. Avaliação clássica da função de órgãos
      Pulmonar/cardíaca – Gasometria, troponina, CPK/CK-MB, BNP, Radiografia do tórax, ECG, ecocardiograma
      Hematológica – Hemograma, provas de coagulação, fibrinogénio, dímeros-D, PDF
      Renal – ureia, creatinina, ionograma sérico e urinário
      Hepático-pancreática – ALT, AST, bilirrubinas, albumina, amilase, LDH
      Metabólica – glicémia, bicarbonato, lactato
      Neurológica – ecografia transfontanelar (em lactentes), EEG, TAC-CE, RM do neuro-eixo (casos a seleccionar)
    3. Avaliação por métodos invasivos

 

Notas importantes:

      • Deve excluir-se anemia e transfundir-se com concentrado eritrocitário, se necessário. São frequentes também a trombocitopénia e alteração das provas de coagulação.
      • Nas primeiras fases do choque é habitual a hiperglicémia secundária a resposta adrenérgica. São também frequentes, alterações da função renal, hipernatrémia (choque hipovolémico) e hipocalcémia (muito importante, uma vez que poderá condicionar depressão de função miocárdica).
      • A acidose metabólica é uma constante, por elevação do lactato sérico. Este último é o indicador mais precoce de hipoperfusão tecidual e um importante parâmetro de avaliação da eficácia da terapêutica.
      • O BNP (B-Type Natriuretic Peptide) é uma hormona produzida pelos miócitos ventriculares, sendo libertada em resposta ao estresse na parede miocárdica. Os níveis séricos elevam-se na sépsis e na insuficiência cardíaca com choque cardiogénico. Níveis elevados de BNP reflectem estresse miocárdico; a melhoria da função cardíaca está associada à normalização dos níveis de BNP.

No que respeita à monitorização invasiva, importa valorizar os seguintes parâmetros:

      • Saturação venosa em oxigénio: A medição da saturação em O2 na artéria pulmonar (MvO2 mixed venous oxygen saturation), utilizando um cateter de Swan-Ganz, não é utilizada na maioria das unidades de cuidados intensivos pediátricos, tendo sido substituída por outras técnicas menos invasivas, tal como a medição de saturação em oxigénio numa amostra colhida de um cateter venoso central (SvO2).
        Comparando a saturação venosa em oxigénio (SvO2) com a saturação arterial em oxigénio (SaO2) poderá determinar-se a diferença quanto a saturação em oxigénio arteriovenosa, assim como a ratio de extracção de O2 (O2ER). Num doente com SaO2 normal (93-100%), a SvO2 normal é ~65-77%, uma vez que os tecidos extraem 23-35% do oxigénio distribuído aos tecidos. Se a extracção de oxigénio for superior a 35% é porque a perfusão dos tecidos pode ser inadequada, reflectindo um estado de choque.
        Se a extracção de oxigénio for inferior a 23%, tal é explicável pelo facto de o sangue oxigenado poder estar a seguir um trajecto de derivação ou desvio (shunt) ao nível dos leitos capilares como resultado duma distribuição inapropriada de fluxo de sangue (choque distributivo com shunt arteriovenoso resultando de vasodilatação). A sépsis pode levar a inibição do metabolismo celular, diminuindo a extracção de oxigénio e, consequentemente, a aumento da saturação venosa em oxigénio.
      • Pressão venosa central (PVC): Para a medição de PVC, pode ser utilizado um cateter colocado na veia cava superior. A pressão de enchimento cardíaco medido por esse cateter reflecte a função ventricular e a compliance/distensibilidade e não necessariamente apenas o volume intravascular. Contudo, os valores obtidos associados aos achados clínicos podem ajudar na monitorização do doente. A PVC normal oscila entre 8 e 12 cm H2 Pressões mais elevadas podem reflectir excesso de fluidos ou insuficiência cardíaca direita.
      • Monitorização de débito cardíaco: Na maior parte das unidades de cuidados intensivos utiliza-se frequentemente o ecocardiograma como forma de monitorização dinâmica do débito cardíaco. O índice cardíaco (CI) é calculado dividindo o débito cardíaco pela área de superfície corporal. Valores normais de CI situam-se entre 3,5-5,5 L/min/m2. A monitorização do CI permite o incremento da eficácia e eficiência da terapêutica com volume e inotrópicos.

Outros métodos mais recentes para monitorização de débito cardíaco incluem o cateter de PICCO (pulse contour cardiac output) e o FATD (femoral artery thermodilution cateter).

      • Espectroscopia próxima dos infravermelhos (NIRS ou near-infrared spectroscopy): Método não invasivo que permite monitorizar a saturação em oxigénio nos tecidos em territórios específicos como o cérebro, rins e região mesentérica.
      • Essa informação permitirá avaliar a resposta às diversas terapêuticas.

Tratamento

As medidas terapêuticas do choque devem ser instituídas o mais rapidamente possível. Há numerosos estudos que demonstram a melhoria do prognóstico com baixa significativa da mortalidade nos doentes tratados agressivamente na primeira hora, a chamada hora de ouro.

As primeiras medidas terapêuticas são comuns à maioria dos tipos de choque, sendo que o conhecimento da respectiva etiopatogénese permite instituir medidas específicas importantes.

  • No choque hipovolémico é fundamental parar a perda aguda (contenção de focos hemorrágicos, de perdas gastrintestinais).
  • No choque anafiláctico é determinante a administração rápida de adrenalina intramuscular.
  • No choque séptico é obrigatória a instituição precoce de antibioticoterapia de largo espectro.

Como os princípios iniciais do tratamento do choque são muito semelhantes independentemente da etiologia, em 2007 o American College of Critical Care Medicine (ACCM) definiu com rigor os parâmetros para o tratamento do choque pediátrico e neonatal. Em 2012 a Surviving Sepsis Campaign divulgou recomendações suplementares, com idêntico objectivo.

Com base nas referidas normas e recomendações, são descritos seguidamente os passos fundamentais no tratamento do choque. (Figura 2)

FIG. 2 – Algoritmo de Tratamento do Choque.
Adaptado de: American College of Critical Care Medicine 2007 e Surviving sepsis campaign guidelines for management of pediatric and neonatal patients with sepsis shock 2012.
Abreviaturas: EV- endovenoso; IO-intra-ósseo; PA-pressão arterial; SF- soro fisiológico; ECMO- extra corporal membrane oxygenation (técnica de oxigenação com circulação extracorporal)

O reconhecimento do choque é clínico e deve ser feito nos primeiros minutos da nossa observação.

O objectivo principal e prioritário do tratamento é restaurar a perfusão tecidual normal.

São assim, objectivos terapêuticos no tratamento do choque:

  • Estado de Consciência Normal;
  • Pressão Arterial Normal para a idade;
  • Frequência Cardíaca Normal para a idade;
  • Pulsos Periféricos e Centrais normais;
  • Extremidades quentes com tempo de reperfusão capilar de 2 segundos, ou menos;
  • Diurese de pelo menos 1 mL/kg/h;
  • Níveis de Glicémia Normais;
  • Níveis de Cálcio Ionizado Normais;
  • Níveis de Lactato a diminuir.

Reanimação inicial

Abordagem ABC (airway, breathing, circulation)

  • A via aérea do doente deve ser assegurada e o doente deve ser adequadamente ventilado e oxigenado. Inicialmente deve ser administrado oxigénio suplementar de alto débito com FiO2 de 100%;
  • Se houver dificuldade respiratória poderá tentar-se cânula nasal de oxigénio de alto fluxo ou ventilação não invasiva;
  • Se houver falência respiratória, considerar entubação e ventilação mecânica;
  • Se a via aérea puder ser mantida, e oxigenação e ventilação suportadas sem intervenção imediata do ponto de vista respiratório, deverá atrasar-se a entubação para permitir ressuscitação rápida e agressiva de fluidos. Esta recomendação advém do efeito potencialmente negativo da ventilação com pressão positiva no retorno venoso e na estabilidade cardíaca no doente hipovolémico.

Passos seguintes

  • Depois de assegurar a via aérea, assim como oxigenação e ventilação adequadas, deve canalizar-se de imediato 2 veias periféricas de bom calibre ou, na impossibilidade, garantir uma via intraóssea e iniciar de imediato ressuscitação hídrica, pedra basilar do tratamento de todas as situações de choque.
  • Deve proceder-se a uma primeira expansão vascular com administração de 20 mL/kg de soro fisiológico, em 5 – 10 minutos e, se o choque persistir e não houver sinais de sobrecarga hídrica (como sucede no choque cardiogénico), administrar mais dois bolus do mesmo volume.
  • É obrigatório ter em atenção os sinais de sobrecarga hídrica: taquipneia, tosse, fervores, hepatomegália. Se estes surgirem há que ser criterioso na administração de líquidos e iniciar o mais precocemente possível o suporte inotrópico.
  • Se não houver resposta às medidas terapêuticas anteriores e o doente se mantiver em choque deve iniciar-se a administração de fármacos inotrópicos. Estes usam-se em perfusão contínua, de preferência em veia central e com monitorização invasiva – pressão venosa central (PVC) e pressão arterial (PA). Deve-se, no entanto, salientar que o suporte inotrópico pode ser iniciado, sem risco, numa veia periférica de bom calibre.
    Na criança deve-se utilizar em primeiro lugar a dopamina – na dose de 5 mcg/kg/minuto, aumentando rapidamente para 10 mcg/kg/minuto, se necessário.

QUADRO 4 – Regra de preparação de inotrópicos

FÁRMACODILUENTEPREPARAÇÃORITMO DE INFUSÃO

ADRENALINA
NORADRENALINA
MILRINONA

Soro Fisiológico
Glicose a 5%

0,6 x peso + diluente até 100 ml1 ml/hora → 0,1 mg/kg/min

DOPAMINA
DOBUTAMINA
INAMRINONA
NITROGLICERINA
NITROPRUSSIATO

6 x peso + diluente até 100 ml1 ml / hora → 1 mg/kg/min

 

  • Se a hipotensão persistir, associa-se um vasopressor: a adrenalina no choque frio, e a noradrenalina no choque quente.
  • Se não houver resposta favorável, admite-se situação de choque resistente às catecolaminas. Nesta situação e, se houver risco de insuficiência adrenal, deve administrar-se hidrocortisona.
  • Pode suspeitar-se de insuficiência adrenal:
    • perante o surgimento de púrpura fulminante (síndroma de Waterhouse-Friderichsen);
    • nos doentes com anomalias conhecidas da suprarrenal ou da pituitária; ou
    • com terapêutica prévia com corticosteróides.
  • A hidrocortisona administra-se em dose de choque – 50 mg/m2/dia, em bolus, seguido de perfusão contínua com a mesma dose, mantida até à estabilização hemodinâmica, só sendo suspensa após a retirada dos inotrópicos. A utilização de metilprednisolona em altas doses e de dexametasona está contraindicada no choque séptico.
  • Se, depois de cumpridos todos os passos terapêuticos descritos, a situação de choque se mantiver, há que admitir uma de três hipóteses:
    1. Choque frio com Pressão Arterial Normal (e neste caso poderá adicionar-se dobutamina ou um inibidor da fosfodiesterase do tipo milrinona, ou considerar levosimendan);
    2. Choque frio com Pressão Arterial baixa (neste caso deverá titular-se o volume de fluidos administrados e da adrenalina);
      → Se se mantiver hipotensão, considerar a administração de noradrenalina.
      → Se SvO2 <70%, considerar a administração de dobutamina, milrinona ou levosimendan.
    3. Choque quente com Pressão Arterial Baixa (neste caso titular noradrenalina).
      → Se se mantiver hipotensão, ponderar a administração de vasopressina
                       ou
      angiotensina → Se SvO2 <70%, considerar baixa dose de adrenalina.

Nas situações de choque refractário pode-se considerar a hipótese de ECMO (extracorporeal membrane oxigenation).

Outras medidas terapêuticas

  • A correcção das alterações iónicas e metabólicas deve ser feita em simultâneo com as outras terapêuticas.
  • É importante manter a glicémia normal através do suplemento adequado de glicose ou da administração de insulina quando necessário.
  • A hipocalcémia, também habitual, deve ser corrigida precocemente. De facto, níveis baixos de cálcio ionizado têm sido associados a disfunção cardíaca. Por outro lado, a administração de cálcio está também recomendada no tratamento do choque causado por disritmias precipitadas por hipercaliémia, hipermagnesiémia ou por toxicidade de bloqueadores dos canais de cálcio.
  • A diátese hemorrágica, por vezes, com quadros de coagulação intravascular disseminada, é muito frequente em certos tipos de choque (choque séptico meningocócico). Para a sua resolução, o mais importante é o tratamento da causa desencadeante; contudo, muitas vezes é necessário tratamento substitutivo – concentrado eritrocitário, plasma, crioprecipitado, plaquetas. A tendência actual é para uma política transfusional restritiva pois os estudos mostram que não há vantagem na terapêutica liberal devido aos numerosos riscos dos derivados de sangue.
  • Deve manter-se valor da hemoglobina (Hb) na ordem de 9-10 g/dL. As transfusões de plasma e de crioprecipitado só devem ser realizadas se há manifestações de diátese activa e não para corrigir as provas de coagulação. A transfusão de plaquetas deve ser feita sempre que a contagem de plaquetas revelar ≤ 5000/mm3. Se for necessário, há que realizar técnicas invasivas ou intervenção cirúrgica, o valor das plaquetas deve ser > 50.000/mm3.
  • Sendo o rim um órgão atingido nas situações de choque, e sendo a lesão renal agravada pelos mecanismos de compensação hemodinâmica, deve evitar-se a oligoanúria prolongada, o que só é possível com a correcção da hipovolémia e da hipotensão.
  • Se surgir insuficiência renal oligoanúrica deve evitar-se a hipervolémia e a anasarca, instituindo precocemente depuração extra-renal. O método de eleição nestes casos é a hemofiltração venovenosa contínua.
  • No choque séptico é obrigatória a instituição precoce de antibioticoterapia de largo espectro, pelo menos com dois antimicrobianos, para cobertura dos agentes bacterianos mais prováveis. (ver capítulo sobre Sépsis)
  • Deve ser feita profilaxia da úlcera de estresse com inibidores dos receptores H2 ou inibidores da bomba de protões.

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COMA

Definições e importância do problema

A situação clínica designada por coma é definida como perda do estado de consciência, traduzida por impossibilidade de despertar, e por ausência de resposta a qualquer estímulo sensitivo externo ou interno. Nas formas graves, o coma acompanha-se de perturbações vegetativas e/ou metabólicas.

Nos países industrializados registam-se cerca de 140 casos de coma traumático e 30 casos de coma não traumático por 100.000 pacientes em idade pediátrica por ano.

O coma deve ser distinguido da morte cerebral, em que se verifica ausência permanente de toda a função do tronco cerebral, e do estado vegetativo, em que existe uma perda de consciência de si e do meio envolvente, acompanhado de alterações do ciclo sono/vigília, com preservação variável das funções do tronco cerebral.

Há que considerar outros termos que tipificam diversos níveis intermédios de consciência entre a vigília e o coma:

  • Estupor ou estado que se pode confundir com o sono normal; acompanha-se de escassez ou ausência de movimentos espontâneos, podendo o doente ser despertado por estímulos dolorosos;
  • Letargia ou estado de vigília reduzida com défice de atenção, associando-se por vezes a estados de agitação;
  • Obnubilação, apatia ou torpor em que se verifica sonolência com resposta a estímulos externos não dolorosos.

O chamado mutismo acinético é um estado acompanhado de lentidão ou ausência de actividade motora, e lentidão da cognição, com vigília preservada.

Uma vez que estes termos poderão comportar certo grau de subjectividade na apreciação, foi criado um instrumento de avaliação estruturada – adaptado do modelo utilizado no adulto – integrando um conjunto de achados físicos aos quais se atribui determinada pontuação. É a chamada escala de coma de Glasgow (Glasgow Coma Scale). (ver adiante)

Estabelecido o diagnóstico de coma, importa a respectiva investigação etiológica.

Etiopatogénese

Ao abordar sucintamente a etiopatogénese do coma, convém separar dois conceitos fundamentais: o que tem a ver com a percepção, relacionado com mecanismos de origem cortical; e com a reactividade, relacionada, esta, com mecanismos primários de origem subcortical. A vigília depende da activação cortical pela substância reticular do tronco cerebral e pelo tálamo medial. A referida vigília pode ser interrompida pelo sono ou por patologia da substância reticular ascendente, do tálamo ou do córtex cerebral ao nível de ambos os hemisférios.

O estado de coma corresponde invariavelmente a disfunção encefálica grave que pode ser rapidamente progressiva e fatal; nos casos em que não é fatal, poderá ser irreversível.

A situação de coma poderá estar associada a hipertensão intracraniana, fundamentalmente por: hemorragia intracraniana, edema cerebral e lesões ocupando espaço. O edema cerebral pode ser vasogénico, celular ou osmolar. O edema celular afectando os astrócitos, relaciona-se com alterações da homeostase da excitotoxicidade, acidose e acumulação de água e sódio no citoplasma. O edema osmolar pode ocorrer no contexto de focos de necrose por contusão cerebral.

Nos casos de lesões ocupando espaço e/ou associadas a edema, na ausência de distensibilidade da caixa craniana ou nos casos em que o aumento de volume do conteúdo encefálico ultrapassar a capacidade da caixa craniana rígida, pode surgir herniação a vários níveis: através da tenda do cerebelo (transtentorial), uncal, ou amigdalina (através do foramen magnum).

Numa perspectiva de classificação etiopatogénica, na criança os estados de coma podem ser devidos a:

  • Causas não estruturais (tóxico-metabólicas): são a maioria, em geral com evolução insidiosa, associadas a disfunção difusa das células neuronais as quais, em fases avançadas, poderão conduzir a lesão cerebral focal;
  • Causas estruturais (supra ou infratentoriais): associadas a destruição importante do tecido cerebral.

Numa perspectiva prática, clínica, podem ser consideradas duas grandes causas: traumáticas e não traumáticas.

As causas traumáticas incluem principalmente as diversas formas clínicas de traumatismo cranioencefálico (TCE) analisadas no capítulo 284.

As causas não traumáticas, mais comuns em crianças com idade inferior a seis anos, podem ser divididas de diversas formas, nomeadamente em coma com sinais focais, coma sem sinais focais e sem irritação meníngea e coma sem sinais focais, mas com irritação meníngea.

Estas causas podem ser exemplificadas pelas seguintes situações: abcesso ou tumor do sistema nervoso central, acidente vascular cerebral, hidrocefalia, encefalopatia hipóxico-isquémica, meningite, encefalite, doenças desmielinizantes, encefalopatia hipertensiva, doenças metabólicas sistémicas (por ex.: hipoglicemia, hiperglicemia, falência hepática, uremia, desequilíbrios hidroelectrolíticos, síndroma de Reye, doenças hereditárias do metabolismo), intoxicações, doenças inflamatórias autoimunes (sarcoidose, cerebrite do lúpus, síndroma de Sjögren), estado de mal epiléptico, etc.. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de coma na idade pediátrica

SEMIOLOGIA E QUADROS CLÍNICOS

Coma com sinais focais

Coma sem sinais focais e sem sinais de irritação meníngea

Coma sem sinais focais mas com sinais de irritação meníngea

    • Hemorragia intracraniana
    • AVC
    • Tumores
    • Abcessos cerebrais
    • Status pós-convulsivo (paralisia de Todd)
    • Encefalomielite aguda disseminada
    • Hipoxia/isquemia (anemia grave, apneia, asfixia, intoxicação por CO, afogamento, choque)
    • Alterações metabólicas (hipoglicemia, acidose, hiperamoniemia, uremia, alterações electrolíticas, doenças hereditárias do metabolismo)
    • Infecções sistémicas
    • Distúrbios pós-infecciosos
    • Encefalopatia pós-imunização
    • Drogas e toxinas
    • Malária cerebral
    • Encefalopatia hipertensiva
    • Status pós-convulsivos
    • Meningite
    • Encefalite
    • Hemorragia subaracnoideia

Exame clínico inicial e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas associadas ao estado de coma variam consoante a etiologia deste. Para o correcto diagnóstico etiológico, pressupõe-se um trabalho de equipa com medidas diversas executadas de modo coordenado e concomitante por diversos elementos para garantir eficácia, tentando evitar lesões neurológicas secundárias.

A abordagem inicial de um doente em coma, ou com compromisso do estado de vigília, baseia-se no princípio de que se trata dum quadro clínico com risco iminente de vida, com necessidade de estabilização emergente e de manutenção das funções vitais. Nesta perspectiva, é fundamental proceder à anamnese e ao exame físico, como base para a realização de exames complementares face às hipóteses de diagnóstico formuladas e subsequente orientação terapêutica.

 Anamnese

Importa inquirir sobre antecedentes de doença crónica, antecedentes familiares, forma de início do coma, traumatismo crânio-encefálico (TCE) recente, possibilidade de intoxicação, febre, doença aguda recente, ingestão de tóxicos, fármacos, doença prévia ou concomitante, vómitos matinais e cefaleias, convulsões, etc..

Exame objectivo

O exame físico implica a monitorização da FC, FR, PA, saturação O2-Hb (SpO2); salienta-se a importância da pesquisa de sinais exteriores de TCE, de odor peculiar (sugestivo de cetoacidose diabética, de intoxicação alcoólica ou por organofosforados), de sinais cutâneos (por ex.: em relação com discrasia hemorrágica, pigmentação), de febre, de sinais meníngeos, etc..

É importante realçar que a presença de sinais neurológicos focais é sugestiva de coma de causa estrutural.

No âmbito do referido exame, salientando a componente neurológica, deverão ser contemplados obrigatoriamente os seguintes parâmetros:

Avaliação do nível de consciência

Deve ser efectuada através da já referida escala quantitativa (Escala de Coma de Glasgow/GCS). (Quadro 2)

Oscila entre um valor mínimo de 3 pontos e um máximo de 15 pontos, devendo ser considerada a melhor resposta em cada avaliação. Um valor £ 8 sugere disfunção cerebral grave e indica necessidade de entubação endotraqueal imediata e de ventilação mecânica.

QUADRO 2 – Escala de coma de Glasgow (*)

Actividade

< 5 anos

≥ 5 anos

Pontuação

Abertura das pálpebras

Espontânea
À voz
À dor
Sem resposta

Espontânea
À voz
À dor
Sem resposta

4
3
2
1

Verbal

Vocaliza, palra
Irritado, chora
Chora com dor
Geme com dor
Sem resposta

Orientada e adequada
Discurso desorientado
Palavras sem nexo
Ininteligível
Sem resposta

5
4
3
2
1

Motora

Movimentos espontâneos
De fuga à estimulação táctil
De fuga à dor
Flexão anormal
Extensão anormal
Sem resposta

Obedece a ordens
Localiza a dor
Fuga
Em flexão
Em extensão
Sem resposta

6
5
4
3
2
1

(*) Nalguns centros utiliza-se também a chamada nova escala de coma ou The FOUR Score (sigla do inglês: Full Outline of UnResponsiveness), avaliando quatro componentes: olho, motor, tronco cerebral e respiração, atribuindo-se a cada componente a pontuação máxima de 4. Segundo certos especialistas são reconhecidas vantagens a este critério relativamente à escala Glasgow: avaliação dos reflexos relacionados com o tronco cerebral, avaliação do padrão respiratório, reconhecimento da síndroma locked in e reconhecimento de diversos estados de herniação.

Padrão respiratório

Podem ser detectados diversos padrões respiratórios no contexto de coma. (Figura 1)

  • Respiração de Cheyne-Stokes: respiração periódica, com amplitude em crescendo/decrescendo, seguida de pausas de apneia. Surge nas lesões bilaterais dos hemisférios, do diencéfalo ou em situações do foro metabólico.
  • Respiração de Kussmaul ou hiperventilação: hiperpneia rápida e profunda. Pode indiciar lesão do mesencéfalo, na ausência de hipoxia ou acidose metabólica.
  • Respiração apnéustica: pausas respiratórias prolongadas. Associada em geral a lesões da protuberância.
  • Respiração atáxica ou de Biot: respiração irregular, desorganizada, implicando possível lesão bulbar.
  • Hipoventilação: pode verificar-se nos casos de depressão respiratória secundária a drogas com efeito de depressão do SNC.

FIGURA 1. Coma e tipo de respiração

Pupilas

Nos comas metabólicos observa-se em geral miose reactiva, enquanto nas intoxicações por atropina e na hipoxia aguda se verifica midríase não reactiva. Outras intoxicações, como as provocadas por cocaína, anfetaminas ou álcool, podem provocar midríase com reflexo pupilar presente. As benzodiazepinas, os opiáceos e os barbitúricos tendem a produzir miose com reflexo pupilar preservado. Na situação de estado de mal epiléptico as alterações pupilares são diversas, incluindo anisocoria.

Havendo lesão estrutural, podem ser observadas as seguintes correspondências: mesencéfalo – midríase média; protuberância – miose reactiva; 3º par unilateral – midríase unilateral; diencéfalo – miose reactiva.

Movimentos oculares e reflexos

O exame dos movimentos oculares é importante para obter informação sobre a integridade do tronco cerebral. Quando existe perda da consciência, os movimentos voluntários desaparecem, devendo recorrer-se aos reflexos.

  • Reflexo oculocefálico ou dos “olhos de boneca” (pesquisa contra-indicada se existe possibilidade de traumatismo cervical) – com a deslocação lateral da cabeça, se o tronco cerebral estiver intacto, ambos os olhos se deslocam em direcção contrária ao movimento lateral.
  • Reflexo oculovestibular – ao instilar lentamente água fria no canal auditivo externo os olhos desviam-se para esse lado.
  • Reflexo corneano – ao estimular com algodão (5º par), produz-se pestanejo (7º par) e desvio do olho para cima (3º par). Neste reflexo participam os núcleos dos referidos pares (3º – mesencefálico; 5º e 7º – bulboprotuberanciais).

No que respeita a desvios conjugados:

  • Desvio para cima é próprio de lesão hemisférica;
  • Desvio para o lado paralisado pode ser devido a lesão da protuberância.
Função motora

As respostas motoras dão informação sobre o nível da lesão.

  • Postura e movimentos espontâneos – a presença de padrão hemiplégico sugere disfunção a qualquer nível da via piramidal; se há movimentos anormais como tremores ou mioclonias, há que admitir a hipótese de coma metabólico. No caso de escassez de movimentos devem ser observados a postura e os movimentos provocados por estímulos dolorosos; se o doente colaborar, localizando de modo correcto a dor, haverá integridade das vias motoras e sensitivas; se tal não acontecer, poderá haver lesão focal.
  • Rigidez de descorticação – traduz-se por hiperextensão das extremidades inferiores e flexão das extremidades superiores; tal corresponde a interrupção das vias cortico-espinhais e possível lesão na cápsula interna ou pedúnculo cerebral.
  • Rigidez de descerebração – hiperextensão das quatro extremidades; esta postura poderá corresponder a lesões mesencéfalo-pontinas ou cerebrais difusas.
  • Flacidez difusa – pode corresponder a lesão bulbar, medular e surgir associada ao coma metabólico profundo.
Sinais meníngeos

Os sinais meníngeos podem estar presentes na meningite, na hemorragia subaracnoideia e nos tumores da fossa posterior.

Sinais e sintomas de hipertensão intracraniana
  • Cefaleia matutina, vómitos em jacto, deterioração do nível de consciência, alterações da conduta, edema da papila, tríade de Cushing (hipertensão arterial, bradicardia, respiração irregular), convulsões, etc..
  • No lactente (com a fontanela anterior não encerrada, designadamente) o quadro clínico tem especificidades: hipertensão e bombeamento da fontanela anterior, olhos em sol poente, aumento das dimensões do perímetro craniano, deiscência das suturas, irritabilidade, etc..
Sinais de herniação
  • Herniação transtentorial – surge na hipertensão intracraniana global com deterioração progressiva do estado de consciência – entre letargia e coma – associada a miose, rigidez de descorticação e respiração de Cheyne-Stokes. Na ausência de tratamento, poderá surgir compromisso mesencefálico (pupilas intermédias fixas, rigidez de descerebração e respiração de Kussmaul) e, posteriormente, sinais de compromisso bulboprotuberancial (respiração irregular e resposta motora ausente).
  • Herniação uncal devida a hipertensão intracraniana por tumor ou hemorragia hemisférica localizada, com compromisso ipsilateral do 3º par (midríase, ptose e parésia adutora).
  • Herniação das amígdalas cerebelosas através do buraco occipital; verifica-se compressão do tronco cerebral com hipertensão na fossa posterior, e desaparecimento dos reflexos vestibulares e oculares.

Exames complementares

A situação de coma implica a realização de determinados exames com carácter de urgência, a ponderar em função do contexto clínico (anamnese e exame objectivo inicial), quer inicialmente, quer ao longo da evolução.

  • Sangue: glicemia, gasometria, hemograma completo e morfologia, ureia, ionograma incluindo cálcio, fósforo, magnésio e hiato iónico, provas de função renal e hepática, lactato, amónia, provas de coagulação, proteína C reactiva, serologias, doseamento de medicamentos antiepilépticos, etc.;
  • Urina: análise sumária, urocultura, pesquisa de tóxicos (principalmente em adolescentes);
  • Líquido cefalorraquidiano: frequentemente é necessário efectuar punção lombar para excluir a infecção do SNC (ter atenção aos sinais de hipertensão intracraniana, em que a punção lombar estará contra-indicada); igualmente, lactato, PCR para vírus, culturas especiais;
  • TAC ou RM CE urgentes (e outros exames de imagem) caso haja, por exemplo, suspeita de TCE ou de hemorragia do SNC, hipertensão intracraniana (HIC) e/ou herniação;
  • EEG nos casos de convulsões e/ou suspeita de encefalite e coma de etiologia tóxico-metabólica;
  • Se a causa não for evidente devem ser guardados sangue, urina e, eventualmente, conteúdo gástrico (este último para uma pesquisa mais alargada de tóxicos);
  • Outros exames mais específicos a realizar em função da suspeita etiológica (doseamento de aminoácidos no sangue e na urina, doseamento de ácidos orgânicos na urina, ácidos gordos livres e carnitina, amónia, função tiroideia, estudos virológicos, etc.).

Tratamento

A intervenção terapêutica obedece aos seguintes princípios: estabilização inicial e monitorização, tratamento imediato das causas tóxico-metabólicas, tratamento da HIC, e tratamento etiológico.

Estabilização inicial e monitorização

Neste tipo de intervenção prioritário, (monitorizando continuamente os parâmetros FC, FR, PA, SpO2-Hb e temperatura), aplicam-se os princípios da reanimação, já abordados noutro capítulo, e sintetizados a seguir.

  • A (Airway): permeabilização e estabilização da via aérea.
    (Deve ser dada uma atenção particular ao cuidado com a mobilização cervical sempre que se suspeite de causa traumática);
  • B (Breathing): avaliação da função respiratória e, se necessário, entubação endotraqueal e ventilação mecânica;
  • C (Circulation): avaliação da função circulatória (sinais vitais, pulsos periféricos, repercussão da má perfusão nos órgãos-alvo), garantindo normovolemia, PA normal, SpO2-Hb > 95% e hematócrito > 30% para eficaz perfusão tecidual.

A hipotensão deve ser tratada com fluidos e inotrópicos; se houver hipertensão, a mesma deverá ser combatida paulatinamente.

As medidas de protecção cerebral incluem:

  • A colocação da cabeça na linha média e inclinada 30º sobre a horizontal (caso não se verifique hipotensão arterial);
  • Analgesia para evitar estímulos susceptíveis de gerarem HIC;
  • Vigilância da temperatura, mantendo a normotermia;
  • Sedação a ponderar tendo em conta a repercussão sobre a valorização dos sinais neurológicos.

Tratamento imediato das causas metabólicas e tóxicas

  • A hipoglicemia é uma emergência médica que deve estar sempre presente quando se avalia uma criança em coma. Assim que exista um acesso vascular e após colheita de sangue, caso não seja possível determinar de imediato a glicemia capilar, deve ser administrado um bolus de glicose 10% na dose de 2,5 mL/kg IV;
  • Correcção das alterações hidroelectrolíticas e do equilíbrio ácido-base;
  • Tratamento das convulsões;
  • Tratamento da intoxicação por opiáceos: naloxona na dose de 0,01-0,1 mg/kg por via subcutânea, IM, IV ou intra-óssea. Poderá ser necessário administrar várias doses, uma vez que a vida média da naloxona é mais curta que a do tóxico. Nos casos de coma sem etiologia esclarecida, a naloxona pode ser administrada como tratamento de prova;
  • Tratamento da intoxicação por benzodiazepinas: flumazenil IV na dose de 0,01 mg/kg em 15 segundos, até máximo de 0,2 mg/dose. Se os sinais clínicos persistirem, pode repetir-se a dose inicial de minuto a minuto até máximo de 1 mg.

O tratamento de situações como diabetes, hiperamoniemia, SHU, meningite, encefalite vírica, etc. foi abordado nos respectivos capítulos. Nesta alínea referimo-nos sucintamente apenas aos seguintes quadros:

  • Intoxicação pelo chumbo, obrigando ao emprego de quelantes; a este propósito sugere-se ao leitor a consulta do capítulo sobre Intoxicações agudas;
  • Intoxicação por CO obrigando a oxigénio a 100% e, eventualmente, câmara hiperbárica;
  • Intoxicação pelo álcool originando défice de tiamina (vitamina B1), obrigando a administração desta vitamina (10-25 mg/dose), até 100 mg/dose.

Tratamento da hipertensão intracraniana

O tratamento da HIC foi abordado noutro capítulo.

Prognóstico

O coma é uma situação que pode ser consequência de múltiplos processos. Daqui resulta que a evolução do quadro dependa fundamentalmente da etiologia. Em geral, pode afirmar-se que as lesões estruturais cursam com maior mortalidade do que as não estruturais.

Sendo um estado transitório, geralmente de duração inferior a 2-4 semanas, período após o qual o paciente recupera (de forma completa ou com sequelas e incapacidade), morre ou evolui para estado vegetativo ou para estado de mínima consciência.

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ESTADO DE MAL EPILÉPTICO

Definição

Estado de mal epiléptico (EME), ou status epiléptico, é tradicionalmente definido como persistência ou recorrência de convulsões num período igual ou superior a 30 minutos, sem recuperação da consciência; de acordo com as recentes normas da Neurocritical Care Society entende-se por EME como a situação clínica em que existe actividade convulsiva clínica e/ou electroencefalográfica contínua com duração igual ou superior a cinco minutos, ou duas ou mais convulsões sequenciais sem recuperação do estado de consciência.

Diz-se que o EME é precoce quando a actividade convulsiva tem a duração de 5-30 minutos, e que é refractário quando a actividade convulsiva tem uma duração superior a 30 minutos, ou persiste após administração de dois ou mais anticonvulsantes em doses adequadas.

Dada a existência de vários estudos demonstrando que a maior duração do EME está associada a pior prognóstico, e que quanto mais precoce o tratamento do EME, maior a eficácia do seu controlo, deve instituir-se terapêutica agressiva na crise convulsiva que dura mais de 5 minutos.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

O EME é a emergência neurológica mais frequente na criança (18-23/100.000 crianças/ano), com maior incidência abaixo de um ano de idade. Em cerca de 10% das crianças a primeira convulsão apresenta-se como EME.

A avaliação inicial dos doentes com este tipo de problema deve focar-se na etiologia aguda tratável, presente em proporção variável, até 26% dos casos. As causas mais frequentes, sobretudo abaixo dos dois anos, são as infecções do sistema nervoso central (SNC).

Em cerca de 20% dos casos trata-se duma primeira manifestação de epilepsia, salientando-se que frequentemente o episódio é provocado por um factor extrínseco, como infecção (não do SNC), ou por alterações de medicação anterior.

A taxa de mortalidade do EME é variável de acordo com a duração do mesmo, estando descritos valores de 3% no EME precoce, e 19% no EME refractário.

Classificação

O Quadro 1 integra a classificação do EME, adaptada de fontes bibliográficas recentes.

QUADRO 1 – Classificação do estado de mal epiléptico

A. Estado de mal epiléptico não convulsivo

Crise generalizada
     – Ausência

Crise focal
     – Parcial complexa
     – Focal com sintomas autonómicos e sensitivos

B. Estado de mal epiléptico convulsivo

Crise focal motora (epilepsia parcial contínua)

Crise generalizada
     – Mioclónico
     – Clónico
     – Tónico

Crise mista
     – Tónico-clónico

Classificação

QUADRO 2 – Etiologia do EME na idade pediátrica

Etiologia
    • (45-58%) Criptogénica
    • (19-44%) Etiologia aguda neurológica: alterações do equilíbrio hidro-electrolítico, causa traumática, infecciosa, tumoral, metabólica ou tóxica
    • (11-25%) Doença neurológica crónica

Até ao 1º mês de vida

    • Lesão durante o parto (encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI), hemorragia)
    • Anomalias congénitas
    • Infecção (meningite)
    • Doenças metabólicas e desequilíbrios electrolíticos (hipoglicemia, hipocalcemia, hiponatremia, lipidoses, aminoacidúrias)

≤ 6 anos

    • Convulsão febril (3 meses – 6 anos)
    • Lesão durante o parto (EHI, hemorragia)
    • Infecção do SNC
    • Doenças metabólicas
    • Trauma
    • Síndromas neurocutâneas
    • Doenças cerebrais degenerativas
    • Tumores
    • Malformações vasculares cerebrais
    • Epilepsia sem terapêutica adequada
    • Desequilíbrios electrolíticos (hipo ou hipernatremia, hipercalcemia)

> 6 anos

    • Epilepsia
    • Trauma
    • Infecção
    • Lesão durante o parto
    • Doenças cerebrais
    • Encefalite
    • Tumores
    • AVC (remoto ou agudo)
    • Hemorragia subaracnoideia
    • Tóxicos
    • Desequilíbrios electrolíticos
    • Encefalopatia hepática

Etiopatogénese

A convulsão é uma descarga eléctrica súbita, paroxística e auto-alimentada de um grupo de neurónios, podendo levar à morte celular. As manifestações clínicas dependem do local onde se inicia a descarga, da velocidade de recrutamento dos neurónios vizinhos, e do modo como aquela se propaga no SNC.

Os factores etiológicos são discriminados no Quadro 2, sendo de salientar que em cerca de 45-58% dos casos não é possível identificar tal factor, o que corresponde às chamadas situações criptogénicas. Dum modo geral pode afirmar-se que a etiologia é diversa e variável consoante a idade, o que determina significativamente o prognóstico.

À medida que o córtex cerebral evolui (da imaturidade do recém-nascido até ao córtex com maturação mais avançada, próprio da criança mais velha), o tipo de convulsões também varia com a idade.

A repercussão a nível hemodinâmico e bioquímico pode sistematizar-se em duas fases:

  • Nos primeiros 30 minutos há um aumento da frequência cardíaca, da frequência respiratória e da pressão arterial, assim como um aumento do consumo de oxigénio, do fluxo cerebral, do lactato sérico, da glicemia e do potássio;
  • Numa segunda fase, após aquele período de tempo, há uma diminuição dos referidos parâmetros hemodinâmicos, podendo ocorrer a lesão irreversível do neurónio e a morte celular, como resultado da alteração dos canais de cálcio, da permeabilidade da membrana celular e do consequente edema celular.

Diagnóstico

O algoritmo diagnóstico deve incluir uma anamnese sucinta orientada para o diagnóstico etiológico da convulsão, bem como uma investigação etiológica ajustada às particularidades de cada caso. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Abordagem diagnóstica do EME

Anamnese

Crise

    • História de epilepsia
    • Início e circunstâncias da crise
    • Duração da crise antes da observação médica
    • Partes do corpo envolvidas
    • Natureza dos movimentos
    • Incontinência
    • Cianose (perioral, facial)
    • Estado mental após a crise

Etiologia

    • Febre
    • Infecção ou doença do SNC
    • TCE recente ou remoto
    • Intoxicação ou exposição a tóxicos
    • Doença concomitante
    • Encefalite
    • Doença metabólica

Antecedentes

    • Antecedentes familiares
    • Gravidez
    • Parto
    • Desenvolvimento psicomotor e estaturo-ponderal
    • Doenças anteriores/crónicas
    • Epilepsia
    • Convulsão febril
    • Doença metabólica/genética
Exame objectivo

Características da crise
Alteração do estado de consciência
Há manifestações motoras?
TIPO: Convulsões tónico-clónicas rítmicas, convulsão tónica persistente, automatismos (movimentos de mastigação, gestuais, piscar dos olhos, grito)
LOCALIZAÇÃO: focais ou generalizadas
Há manifestações sensitivas?

Lesões associadas
Lesões associadas: laceração dos bordos da língua
Luxações articulares (ombro)
Sinais de traumatismo (craniano e/ou facial)

Evidência de lesão intracraniana
Hematoma, deformidade craniana, alterações no exame neurológico, sinais de HIC

Sinais de doença concomitante
Febre, dificuldade respiratória, cianose, sinais de meningite ou sépsis, alterações cutâneas (petéquias, púrpura, vesículas, má perfusão periférica)

Exames complementares

Dados laboratoriais

    • Hemograma
    • Glicemia
    • Função renal
    • Ionograma
    • Calcemia
    • Magnesiemia
    • Função hepática
    • Doseamento dos antiepilépticos (se doente com epilepsia)
    • Tóxicos
    • Pesquisa de doença: infecciosa, metabólica
    • Exames culturais (hemocultura, urocultura, cultura LCR)
    • Punção lombar
      • Se suspeita de infecção do SNC
      • Protelar se suspeita de lesão estrutural/hipertensão intracraniana (HTIC), mas, se probabilidade de infecção, iniciar de imediato antibioticoterapia empírica

Neuro-imagiologia

    • Crise convulsiva de novo, especialmente se em apirexia
    • Ausência de causa óbvia de EME
    • Défices neurológicos focais
    • Epilepsia refractária
    • Alteração do estado de consciência, com ou sem história de intoxicação, febre, TCE recente, cefaleia prévia persistente, neoplasia, anticoagulação, SIDA

*TAC-CE: mais sensível para hemorragia nas primeiras horas; mais facilmente disponível na urgência

*RM-CE

Electroencefalograma

    • Não é necessário no serviço de urgência para EME convulsivo generalizado
    • Indicações para EEG urgente:
    • Alteração do estado de consciência persistente inexplicado (excluir EME não convulsivo)
    • Paralisia neuromuscular
    • EME refractário com terapêutica anticonvulsante em doses elevadas
    • EME duvidoso (excluir pseudo-convulsões)

TRATAMENTO

A abordagem terapêutica do EME e EME refractário é ilustrada no Quadro 4.

QUADRO 4 – Tratamento do EME e do EME refractário

Tratamento EME
Avaliação inicial
    1. Confirmar a convulsão
    2. Verificar o tipo de convulsão
    3. Registar o tempo de actividade convulsiva
    4. Ressuscitação:
      A – Assegurar a via aérea: posicionamento, aspiração de secreções, coadjuvantes da via aérea
      B – Estabilizar ventilação: oxigénio suplementar por máscara (concentração de 100%), ponderar entubação orotraqueal
      C – Manter circulação (dois acessos venosos periféricos; iniciar soro isotónico glicosado para 80% das necessidades)
    5. Monitorizar sinais vitais; ponderar descompressão gástrica com SNG
    6. Avaliação da glicemia capilar e correcção dos desequilíbrios metabólicos e hidro-electrolíticos
    7. Administração de antipirético se necessário
Sem acesso IVCom acesso IV
DIAZEPAM 0,5 mg/kg rectal (máx. 10 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2 mg/kg IM (máx. 6 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2 mg/kg intranasal (máx. 10 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2-0,5 mg/kg bucal (máx. 10 mg/dose)
DIAZEPAM 0,1-0,3 mg/kg IV lento
(3-5 minutos; máx. 10 mg/dose) 
Não cede em 5 minutos
2ª administração de benzodiazepina
Não cede em 5 minutos
FENITOÍNA 20 mg/kg IV em 15-20 minutos (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min, pura ou diluída em soro fisiológico)
Não cede em 10 minutos
FENOBARBITAL 20 mg/kg IV (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min)
Não cede 10 minutos após administração de fenobarbital (ou ≥ 30 minutos após o primeiro fármaco administrado)

EME REFRACTÁRIO
30 minutosMedidas gerais e investigação de emergência

Se UCIP não disponível (até haver vaga): 

FENOBARBITAL 20 mg/kg IV (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min)
Pode repetir bolus de 5-10 mg/kg cada 15-20 minutos; aos 30-40 mg/kg de dose total pode haver necessidade de entubação

LEVETIRACETAM 20-30 mg/kg (velocidade de administração ≤ 5 mg/kg/min) – considerar nos casos de insuficiência renal, doença hepática ou metabólica, coagulopatias e crianças sob quimioterapia 

VALPROATO DE SÓDIO 20 mg/kg (velocidade de administração ≤ 3 mg/kg/min) – particular atenção: se crianças < 2 anos, doença hepática ou metabólica e coagulopatias

Ventilação mecânica

Intensificar suporte hemodinâmico (poderá haver necessidade de drogas vasopressoras)

Se houver sinais de hipertensão intracraniana, tratar em conformidade

Manter anestesia até 12-24 horas depois da última convulsão clínica e/ou electroencefalográfica

Optimizar tratamento de manutenção com anticonvulsante

Monitorização electroencefalográfica contínua

Tratar outras complicações do EME: mioglobinúria, hiperuricemia e hipertermia

 

≥ 30 minutos

MIDAZOLAM IV

Bolus de 0,5 mg/kg seguido de perfusão a 2 mcg/kg/min

Se persistência da convulsão:
bolus de 0,5 mg/kg
e aumentar perfusão para 4 mcg/kg/min

Após 5 minutos:
Bolus de 0,5 mg/kg
e aumentar midazolam 4 mcg/kg/min cada 5 minutos até máximo de 32 mcg/kg/min 

Se ausência de convulsões nas últimas 24-48 horas: reduzir gradualmente perfusão de midazolam 1 mcg/kg/min cada 15 minutos

TIOPENTAL IV

Bolus de 2-4 mg/kg (velocidade de administração £ 50 mg/min) seguido de perfusão a 0,5-5 mg/kg/h

Se persistência da convulsão:
Aumentar o ritmo 0,5-1 mg/kg/h a cada 12 horas
(Parar fenobarbital e perfusão de midazolam após início de tiopental)

PENTOBARBITAL IV

Bolus de 5-15 mg/kg (velocidade de administração £ 50 mg/min), seguido de perfusão a 0,5-5 mg/kg/h

Se persistência da convulsão
:
Aumentar o ritmo 0,5-1 mg/kg/h a cada 12 horas
(Parar fenobarbital e perfusão de midazolam após início de pentobarbital)

Se ausência de convulsões nas últimas 24-48 horas:
Reduzir gradualmente o fármaco iniciado, 25% a cada 12 horas
Reiniciar fenobarbital durante a redução

Se recorrência de convulsões no desmame: reiniciar midazolam, tiopental ou pentobarbital

PROPOFOL IV (> 5 anos)

Bolus de 3-5 mg/kg, seguido de perfusão 1-15 mg/kg/h
A perfusão do propofol deve ser reduzida para 50% 12 horas após o controlo das crises (a suspensão rápida pode induzir convulsões)
Atenção à síndroma de infusão do propofol

Outros tratamentos de acordo com quadro clínico

VALPROATO DE SÓDIO: EM de ausências, EM mioclónico, EM por suspensão de VPA que fazia previamente e EM refractário

PIRIDOXINA: Bolus IV/IM 50-100 mg em crianças com menos de 2 anos; manutenção: 50-200 mg PO/dia

HIPOGLICEMIA:
RN: bolus IV glicose 10% 2-4 ml/kg em 2-3 min seguido de perfusão de glicose 6-8 mg/kg/min
Criança: bolus IV glicose 10% 2,5-5 ml/kg ou glicose 30% 2 ml/kg em 2-3 min seguido de perfusão de glicose a 5 mg/kg/min
Reavaliar 30/30 minutos e, se hipoglicemia, repetir bolus e aumentar perfusão
COMA ALCOÓLICO: TIAMINA 100 mg IM
INTOXICAÇÃO POR OPIÓIDES: NALOXONA IV lento 0,1 mg/kg/dose; repetir cada 5-10 minutos se ausência de resposta

Tratamento de manutenção (prevenção de recorrências)
FENITOÍNA 5-8 mg/kg/dia, 12/12 horas
VALPROATO DE SÓDIO 20 mg/kg/dia, 12/12 horas
FENOBARBITAL 3-5 mg/kg/dia, 12/12 horas

De acordo com estudos recentes em casos seleccionados, e em função de estudos experimentais, a hipotermia durante tempo variável (32-35ºC) poderá ser também uma opção nos casos refractários.

Prognóstico

O prognóstico depende da etiologia, da duração das crises (se duração superior a uma hora o risco de morbilidade é ~50%, variando desde défice neurológico ligeiro, como hemiparesia, síndroma extrapiramidal, até insuficiência intelectual profunda e estado vegetativo), das complicações hemodinâmicas, metabólicas e hidro-electrolíticas.

Através de estudos por RM-CE comprovou-se sobretudo em crianças com idade < 1 ano, que proporção significativa de casos se relaciona com lesão do hipocampo com atrofia, associada a disgenesia cerebral prévia.

A terapêutica anticonvulsante adequada e atempada, minorando a duração do EME, constitui o principal factor com influência no referido prognóstico.

O estado de mal epiléptico é uma emergência médica. As medidas iniciais de suporte ventilatório, hemodinâmico e metabólico, associadas à terapêutica adequada das convulsões e da sua causa permitem, não só diminuir a mortalidade, como a morbilidade.

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REANIMAÇÃO CARDIORRESPIRATÓRIA

Definições e importância do problema

Entende-se por reanimação cardiorrespiratória (RCR) o conjunto de técnicas que se aplicam a doentes em paragem respiratória ou cardiorrespiratória.

Em idade pediátrica, define-se paragem cardiorrespiratória (PCR) pela verificação de, pelo menos, um dos seguintes parâmetros:

  1. Interrupção da respiração e circulação; a este evento, que pode ser reversível, associa-se como consequência, estado de inconsciência, apneia e ausência de pulso (palpação em artéria central);
  2. Interrupção da respiração com bradicárdia (frequência cardíaca < 60 batimentos/minuto com pulso detectável), associada a sinais de circulação ineficaz apesar do suprimento de oxigénio e ventilação; trata-se da situação mais frequente;
  3. Actividade eléctrica detectável no monitor, mas sem pulso palpável (actividade eléctrica sem pulso ou AESP).

A incidência de PCR é cerca de 12/1 milhão de habitantes com menos de 18 anos. Na idade pediátrica, entre 45-70% dos casos de paragem cardiorrespiratória surge em menores de 1 ano de idade.

Os procedimentos e atitudes a realizar com carácter de emergência para tentar reverter a PCR, imprescindíveis para salvar a vida em perigo iminente, poderão ser realizados:

  1. Com o mínimo de meios disponíveis, não invasivos, em geral fora do ambiente hospitalar (na comunidade) utilizando determinados gestos básicos imprescindíveis para salvar a vida, como garantir a permeabilidade da via aérea, ventilar boca a boca e, se necessário, massagem cardíaca; é o conceito de RCR básica ou suporte básico de vida/SBV (cuja execução implica o conhecimento, treino e prática de atitudes correctas de imediato) que, em geral, implica continuidade com medidas mais sofisticadas por técnicos diferenciados;
  2. Com a utilização de equipamento de reanimação (entubação traqueal, ventilação, desfibrilhação, fármacos) e que deve ser efectuada por pessoal com formação específica; é o conceito de suporte avançado de vida/SAV.

Em circunstâncias especiais poderá ser necessário continuar as medidas de suporte avançado de modo prolongado em função do contexto clínico; trata-se do chamado suporte prolongado de vida/SPV.

Com a RCR pretende-se garantir, tanto quanto possível, a perfusão sanguínea e oxigenação cerebral até à recuperação da função cardiorrespiratória, tendo em consideração que a tolerância das células cerebrais à isquémia é muito limitada (cerca de 3-4 minutos). De facto, com as manobras correctas de SBV é possível promover uma oxigenação de emergência cerebral e de outros órgãos vitais, até haver condições para a realização do SAV.

Uma vez que o prognóstico da paragem cardiorrespiratória é, em princípio, reservado, sobretudo se prolongada, assumem a maior importância a prevenção, assim como a necessidade de formação básica em SBV de todos os cidadãos.

O objectivo deste capítulo é a descrição sucinta dos procedimentos a realizar no âmbito da RCR básica (SBV) e do SAV (sem pormenorizar técnicas específicas como entubação traqueal e ventilação mecânica); chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de os conhecimentos básicos serem completados com indispensável treino de gestos e atitudes em modelos ou manequins, exequível com o apoio de formadores experientes.

Etiopatogénese

Na maioria dos casos de paragem cardíaca no adulto, a causa é primariamente cardíaca: fibrilhação ventricular (FV) e taquicardia ventricular sem pulso (TVSP).

Pelo contrário, na idade pediátrica, a causa mais frequente (~95%) é a hipóxia resultante de falência respiratória de etiopatogénese diversa (respiratória ou extra-respiratória, designadamente por depressão do SNC). A falência circulatória como causa (por sépsis, choque ou patologia cardíaca primária) é, efectivamente muito mais rara (correspondendo a cerca de 5%), embora seja reconhecida frequência crescente de situações de paragem cardíaca súbita explicáveis por FV e taquicárdia ventricular sem pulso (TVSP) atribuíveis a patologia cardíaca primária subjacente (como miocardiopatia hipertrófica, síndroma de QT longo), drogas ou miocardite, entre outras, com implicação na abordagem imediata.

Em 90% das PCR na criança ocorre assistolia.

Sistematização

Para que a RCR seja eficaz, torna-se necessário o cumprimento de certos passos em sequência lógica, o que tem implicações importantes, quer em termos de treino/aprendizagem, quer em termos organizativos no âmbito dos cuidados à comunidade:

  1. Diagnóstico de PCR no contexto de doente que pareça inconsciente;
  2. Início dos procedimentos de SBV em que são utilizados métodos não invasivos;
  3. Activação do sistema de emergência médica (contacto solicitando apoio – o designado alerta);
  4. Entubação traqueal assegurando via aérea;
  5. Procedimento de desfibrilhação nos casos de FV/TVSP;
  6. Administração de fármacos.

As especificidades anatomofisiológicas da idade pediátrica e as diferenças quanto a etiopatogénese da PCR relativamente ao adulto, obrigam a que o esquema-base de gestos a efectuar seja diferente conforme a idade (excluindo o período neonatal).

Assim:

  • No lactente (> 28 dias até 1 ano) e na criança até à puberdade inicia-se de imediato a reanimação;
  • A partir da puberdade, procede-se primeiramente ao alerta por eventual necessidade de desfibrilhação;
  • Em qualquer grupo etário, nos casos de doença cardíaca conhecida, deve dar-se o alerta em primeiro lugar; nos casos de afogamento e trauma, inicia-se o SBV e dá-se o alerta de seguida;
  • Quando existem vários reanimadores, a RCR é iniciada e mantida, e 1 dos reanimadores dá o alerta.

No que respeita à técnica de RCR tem-se em conta igualmente tal subdivisão etária.

1. RCR BÁSICA (SBV)

Generalidades

O SBV integra o conjunto de manobras emergentes destinadas à reversão da PCR ou manutenção das funções vitais, utilizando meios não invasivos. Por razões didácticas, é clássico utlilizar a sigla derivada do inglês ABC: A-airway; B-breathing; C-circulation. Concretizando, eis as manobras:

A – Permeabilização da via aérea;
B – Ventilação boca-nariz e boca; boca-boca;
C – Massagem cardíaca externa.

O SBV inclui ainda as manobras de desobstrução da via aérea por corpo estranho.

Para a eficácia da reanimação importa que o doente se encontre sobre uma superfície dura (tábua, pavimento).

O suporte básico de vida inicia-se com os 3 “S”: Safety (segurança), Stimulate (estimular) e Shout for help (pedir ajuda).

Verificação de condições de segurança

O reanimador ou equipa de reanimação não devem correr riscos; se o ambiente for adverso (acidente na via pública, incêndio, sismo), a regra é que as referidas manobras sejam aplicadas em segurança.

A vítima deverá ser mobilizada se o local for considerado perigoso ou se a posição em que se encontra comprometer a realização das manobras.

Verificação do estado de consciência e pedido de ajuda

O doente deve ser estimulado (estímulos auditivos e tácteis).

Em caso de suspeita de traumatismo da coluna cervical, assim como no lactente, o doente não deve ser sacudido nem abanado, e todas as manobras deverão ser efectuadas com imobilização cervical no primeiro caso.

Se houver resposta com movimentos ou vocalizações, coloca-se o doente em posição lateral de segurança; ou, no caso de doentes mais pequenos, em posição de conforto, avaliando-se a situação de modo continuado. (Figura 1)

FIGURA 1. Posição lateral de segurança

Se não houver resposta, deve efectuar-se o primeiro pedido de ajuda (gritar por ajuda, ligar para o 112), não devendo o reanimador nesta fase abandonar a vítima

Abertura da via aérea

Após o posicionamento em plano duro, deve realizar-se a abertura da via aérea com as seguintes manobras:

Manobra de extensão da cabeça (fronte-mento)

Sempre que não haja suspeita de traumatismo cervical, efectua-se a extensão do pescoço, colocando cuidadosamente a mão sobre a fronte. No lactente, pela proeminência do occipital quando aquele se coloca sobre uma superfície plana, origina logo uma ligeira extensão. Em seguida levanta-se o mento, colocando a ponta dos dedos da outra mão debaixo do mesmo. No lactente, a abertura da via aérea realiza-se com a cabeça em posição neutra (eixo orelhas alinhadas com o eixo do tórax) e na criança com extensão cervical.

Precauções:

  • Não fechar a boca;
  • Não exercer pressão sobre os tecidos moles do pescoço para não provocar a compressão da via aérea, especialmente em lactentes. (Figura 2)

FIGURA 2. Abertura da via aérea (manobra fronte-mento)

Manobra de subluxação da mandíbula (manobra tripla)

Na suspeita de traumatismo crânio-cervical, puxa-se para cima a mandíbula com uma mão, enquanto se fixa a cabeça com a outra para impedir que a coluna se desloque. Pode também efectuar-se a manobra colocando dois ou três dedos de cada mão nos ângulos da mandíbula e levantá-la, para cima e para a frente, enquanto se fixa o pescoço. (Figura 3)

Respiração

Verificar a respiração

Mantendo a abertura da via aérea, o reanimador aproxima o ouvido e a face da boca da vítima para:

  • VER (V) se há movimentos torácicos ou abdominais;
  • OUVIR (O) se existem ruídos respiratórios;
  • SENTIR (S) se o ar golpeia a face.

Esta operação, designada pela sigla VOS, deve realizar-se, no máximo, em 10 segundos.

FIGURA 3. Subluxação da mandíbula

Ventilar

A ventilação artificial é realizada com o ar expirado pelo reanimador:

  • No lactente: boca – boca e nariz;
  • Na criança e adulto: boca – boca, com oclusão do nariz do doente com indicador e polegar.
Procedimento
  • 2 insuflações com expiração forçada de modo a provocar expansão do tórax do doente; se tal não acontecer, reabrem-se as vias aéreas e reinicia-se a ventilação até 5 insuflações, de modo a conseguir 2 insuflações eficazes (lentas, em cerca de 1 segundo). Na ausência de expansão do tórax, ou se esta for insuficiente, deve rever-se o posicionamento do doente, verificando a abertura da via aérea;
  • O reanimador, observando a expansão do tórax, insufla o seu ar expirado tanto quanto baste para garantir a referida expansão torácica (evitando insuflação excessiva pelo risco de barotrauma e de distensão gástrica);
  • Mantendo a extensão da cabeça e a elevação do mento, a boca do reanimador é afastada da boca da criança após verificação da expansão torácica desejada, verificando-se a seguir que o tórax se retrai (coincidindo com o ar expirado pelo doente);
  • De imediato repete-se a manobra de insuflação. (Figura 4)

 FIGURA 4. Ventilação com ar expirado

Desobstrução da via aérea em caso de corpo estranho

Se o doente estiver consciente

  • Se tosse eficaz, encorajar a tosse e manter vigilância.
  • Se tosse ineficaz:
    • O lactente (idade < 1 ano), é colocado em decúbito ventral sobre o antebraço do reanimador, segurando-o pela mandíbula com a cabeça ligeiramente estendida, em nível inferior ao do tronco. Na zona interescapular, com a base da outra mão, efectuam-se 5 pancadas rápidas; em seguida coloca-se o lactente em decúbito dorsal, prendendo a cabeça com a mão e em posição mais baixa que o tronco. Efectuam-se 5 compressões torácicas com os dedos indicador e médio, ao nível da região médio-esternal. (Figura 5)
    • Na criança com idade > 1 ano, efectua-se a manobra de Heimlich: ajoelhar ou ficar de pé por trás da criança e aplicar o punho de uma mão sobre o epigastro e, sobrepondo a outra mão, fazer movimentos de pressão para trás e para cima, até 5 vezes. (Figura 5)

Se o doente estiver inconsciente

  • Colocar a criança sobre uma superfície dura, abrir a boca e procurar qualquer objecto evidente que se possa remover (não tentar às cegas); abrir a via aérea e tentar 5 insuflações e, se não houver resposta, iniciar compressões torácicas sem verificação da circulação, ou seja SBV.

Circulação

Verificar a circulação

A palpação do pulso central deve fazer-se de modo rápido, em tempo < 10 segundos:

  • Na artéria braquial (no lactente);
  • Na artéria carótida (na criança e adolescente/adulto);
  • Na artéria femoral (em qualquer faixa etária).

Se houver pulso arterial central, continua-se a ventilação com uma frequência de 12-20 ciclos/minuto, consoante o grupo etário.

Se não houver pulso arterial central, ou se houver dúvidas quanto a tal, inicia-se a massagem cardíaca externa coordenada com a ventilação.

FIGURA 5. Desobstrução por corpo estranho

Massagem cardíaca externa

Procedimento
  • Manter a cabeça em posição adequada para a ventilação (ver atrás); posição das mãos do reanimador:

→ Lactente (< 1 ano): com as pontas dos dedos médio e anelar do reanimador sobre o esterno, um dedo abaixo da linha intermamilar. Esta é a técnica preferível quando há um só reanimador (Figura 6). Outra variante (com dois reanimadores e em geral na idade < 3 meses) é abraçar o tórax com as duas mãos e fazer compressão com os polegares sobre o esterno logo abaixo da linha intermamilar. Os outros dedos funcionam como plano duro. (Figura 7)
→ Criança (1 ano – puberdade): a base de uma das mãos do reanimador sobre o esterno, dois dedos acima do apêndice xifoideu. Compressão com o membro superior não flectido, utilizando as mãos sobrepostas, com os dedos entrelaçados ou não, exercendo-se a força apenas na base da mão, aproveitando o peso do reanimador na vertical e a linha dos ombros do reanimador paralela ao eixo da vítima. (Figura 8)
→ A partir da puberdade: sobre a metade inferior do esterno, compressão utilizando as mãos sobrepostas, com os dedos entrelaçados ou não, exercendo-se a força apenas na base da mão, aproveitando o peso do reanimador na vertical.

FIGURA 6. Massagem cardíaca externa (no lactente)

FIGURA 7. Massagem cardíaca externa (no lactente – técnica do abraço)

FIGURA 8. Massagem cardíaca externa em criança (de 1 ano à puberdade)

A compressão deve durar 50% do ciclo (100/minuto) de modo que o tórax volte à sua posição normal, nunca se retirando a mão da zona de compressão, excepto se for necessário ao reanimador também efectuar a ventilação. A profundidade da compressão deve ser sempre cerca de 1/3 da altura (diâmetro ântero-posterior) do tórax, o que varia, segundo a idade, entre 4 e 5 cm. (Figura 8)

Quer com a intervenção de um, quer com a intervenção de dois reanimadores, a frequência da compressão cardíaca deve ser ~100/minuto em todos os grupos etários, com uma relação compressão/ventilação 15/2 no lactente e criança até à puberdade e 30/2 em idades ulteriores.

Esta última relação (30/2) também poderá ser utilizada em qualquer idade se o profissional de saúde estiver sozinho.

Avaliação da RCR

A RCR na criança é efectuada durante 1 minuto; ao cabo deste tempo reavalia-se o pulso: no caso de não ter sido eficaz, abandona-se momentaneamente a vítima para solicitar ajuda (alerta).

Se a vítima for um lactente muito pequeno, deve ser tentado o transporte e a reanimação simultaneamente, levando-o, e fazendo do antebraço do reanimador o plano duro.

As avaliações periódicas (pulso e a respiração) não devem exceder 10 segundos. Por outro lado, deve manter-se o SBV até à chegada da ajuda solicitada, a vítima recuperar, ou o reanimador ficar exausto.

As Figuras 9, 10 e 11 resumem os passos fundamentais do SBV, incluindo nos casos de eventual obstrução por corpo estranho.

2. RCR AVANÇADA (SAV)

Generalidades

A RCR avançada (o chamado SAV) compreende um conjunto de procedimentos invasivos que se aplicam na sequência do SBV, para o restabelecimento das funções respiratória e cardíaca. Como foi anteriormente referido, para a sua efectivação torna-se imprescindível a existência de equipa de profissionais (médicos, enfermeiros, paramédicos, etc.) com formação específica e experiência, assim como meios técnicos invasivos (equipamento, incluindo laringoscópios para entubação traqueal, ventiladores com tubagens, tubos traqueais ou alternativas, desfibrilhadores, fármacos, etc.).

Sendo essencial o diagnóstico do tipo de ritmo cardíaco de paragem (FV/TVSP, assistolia/AESP) (Figura 12), proceder a SAV em ambiente hospitalar implica a obediência a um conjunto de regras importantes que devem estar na mente de todos os intervenientes bem treinados, com funções bem definidas, no pressuposto de que muitas manobras terão que ser feitas concomitante e sincronizadamente por mais do que um reanimador:

  • Registar a hora da PCR e tempos de RCR;
  • Identificar o coordenador da reanimação;
  • Posição correcta do doente em decúbito dorsal em leito duro para garantir a eficácia da massagem cardíaca;
  • Garantir que o “carro de urgência” com instrumentos e fármacos para a reanimação seja colocado à cabeceira do doente, ao mesmo tempo que se aplicam eléctrodos no doente para ligação ao monitor cardíaco, assim como oxímetro de pulso;
  • O SAV deve ser aplicado na sequência do SBV, sem hiatos na actuação; ou seja, para iniciar e concretizar os procedimentos do SAV, não se devem interromper as manobras de reanimação básica mais do que 30 segundos para entubação traqueal. (Figuras 12, 13 e 14)

Quando houver via aérea segura (TET) as compressões serão contínuas, mantendo a mesma frequência de compressão (100 pm) e as ventilações entre 12 e 20 pm.

FIGURA 9. Suporte Básico de Vida Pediátrico (segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 10. Suporte Básico de Vida de Adulto com desfibrilhação automática externa/DAE (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 11. Aspiração de corpo estranho

FIGURA 12. Suporte Avançado de Vida Pediátrico (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 13. Suporte Avançado de Vida (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015). PCI= Percutaneous Coronary Intervention; RCP= Reanimação cardiopulmonar

FIGURA 14. PCR- Resumo da actuação nos casos de ritmos não desfibrilháveis. (Ver Figura 18)

Via aérea e ventilação

No âmbito do SAV, quer a técnica para se obter uma via aérea segura, quer o tipo de suporte ventilatório utilizado devem atender às características da criança e às capacidades do reanimador.

Ventilar com ressuscitador manual e oxigénio

Em primeiro lugar deve proceder-se à abertura da via aérea como descrito anteriormente. Podem ser utlilizados adjuvantes para este processo, como os tubos orofaríngeos ou de Guedel (tamanho adequado: distância entre os incisivos e o ângulo da mandibular) e os tubos nasofaríngeos (tamanho adequado: distância entre a asa do nariz e o ângulo da mandíbula).

Após a abertura da via aérea, deve iniciar-se ventilação com ressuscitador manual com máscara adequada à idade e oxigénio. A máscara deve ser transparente para permitir visualizar o eventual aparecimento de qualquer material na boca (sangue, secreções, alimentos, etc.). O ressuscitador manual deve ter um volume superior a 500 mL, concentrador de O2 e estar ligado a uma fonte de oxigénio permitindo débito de 15 L/minuto para se obter Fi O2 ~100%.

A entubação endotraqueal (orotraqueal), constitui o procedimento ideal para garantir a protecção da via aérea. (Figura 15)

FIGURA 15. Modo de imobilizar o lactente para proceder à laringoscopia e ulterior entubação traqueal

Dum modo geral os TET dividem-se em sem cuff e com cuff; os TET com cuff podem ser utilizados em qualquer idade excepto no período neonatal.

QUADRO 1 – Tubo endotraqueal (TET)

Tubo endotraqueal (TET):  cálculo para a escolha do calibre e profundidade de inserção (entubação orotraqueal)

→ TET sem cuff (se com cuff, subtrair 0,5):

RN de termo: TET 3,5
1 mês – 1 ano: 3,5-4,0
1-2 anos: 4,0-4,5
> 2 anos: diâmetro interno em mm = idade (anos)/4 + 4

→ Profundidade da inserção (entubação orotraqueal) em cm = (idade em anos/2) + 12 (a partir do lábio ou gengiva)

A posição intratraqueal do TET em emergência é verificada basicamente pela melhoria da saturação em O2 e expansão simétrica do tórax; posteriormente, através da auscultação bilateral das áreas axilares, da ausência de ruído de entrada de ar na auscultação do epigastro, da ausência de distensão gástrica, da detecção de CO2 exalado e, por fim, logo que possível, da radiografia do tórax póstero-anterior, será confirmada a posição ideal da extremidade do TET: ao nível da articulação esternoclavicular, 1-2 cm acima da carina.

Uma alternativa à entubação traqueal é a máscara laríngea, a qual não exige treino tão diferenciado como no primeiro caso, mas que também não protege totalmente a via aérea contra o risco de aspiração.

Em qualquer das opções, é fundamental garantir previamente ventilação e oxigenação (FiO2 100%) eficazes.

As situações de obstrução da via aérea superior poderão obrigar a efectuar de imediato a cricotirotomia de emergência (punção da membrana cricotiróide com cânula apropriada); não se dispondo desta, poderá utilizar-se um angiocateter (de calibre nº 14) que se conecta a um adaptador de TET nº 3 ou de 3 mm. (Figura 16)

FIGURA 16. Cricotirotomia

Acessos venosos

Devem ser tentados de imediato acessos venosos periféricos, não demorando mais de 60 segundos (cerca de 3 tentativas). Se tal não for conseguido, deve obter-se uma via alternativa: intra-óssea. Existem 3 tipos de dispositivos para punção intra-óssea: manual (ex. agulha IO Cook), automática por disparo (ex. Bone injection gun – BIG) e automática eléctrica (ex. EZ-IO).  O local de inserção mais utilizado em pediatria é a região tibial proximal (Figura 17). (consultar anexo para informação mais detalhada)

Como notas importantes, destaca-se que:

  • Já não é recomendada a via endotraqueal para a adiministração de fármacos;
  • A via intracardíaca para administração de fármacos nunca deve ser utilizada.

Desfibrilhação

A realização de desfibrilhação implica a observação do ritmo cardíaco no monitor electrónico ou no próprio desfibrilhador.

Tal procedimento deve ser iniciado de imediato, logo que se confirme FV ou TVSP. (Figura 18)

FIGURA 17. Punção intra-óssea (IO)

FIGURA 18. PCR- Resumo da actuação nos casos de ritmos desfibrilháveis.

De salientar que:

  • A desfibrilhação, em certas circunstâncias, poderá ser o primeiro acto no âmbito da RCR, caso possa ser executada nos primeiros 2 minutos após paragem cardíca súbita e presenciada por médico ou enfermeiro (a partir do 1 ano de idade);
  • Uma linha isoeléctrica detectada no visor do monitor poderá estar relacionada com contacto deficiente dos eléctrodos ou com um dos eléctrodos soltos – confirmar eléctrodos!

Há diversos tipos de desfibrilhadores; os que habitualmente se utilizam em meio hospitalar são os desfibrilhadores manuais bifásicos. O Quadro 2 sintetiza os passos fundamentais da técnica de desfibrilhação e a Figura 19 o modo de colocação das “pás” do desfibrilhador.

A intensidade do choque na criança é de 4 Joules/kg. Após a puberdade a dose é de 150-360 Joules, consoante o desfibrilhador (bifásico ou monofásico respectivamente). Desconhecendo-se o tipo de desfibrilhador aplicar-se-ão 200 Joules.

O chamado murro pré-cordial somente tem indicação na circunstância de se presenciar a paragem cardíaca e se não houver desfibrilhador para uso imediato, sendo improvável a sua eficácia se tiverem passado mais de 30 segundos.

FIGURA 19. Desfibrilhação: colocação das pás do desfibrilhador

QUADRO 2 – Técnica de desfibrilhação

    • Preparar as pás adequadas:
      < 10 kg → pás pediátricas;
      ≥ 10 kg → pás de adulto.
    • Pegar nas pás pelo cabo isolado.
    • Lubrificar as pás do desfibrilhador com gel condutor ou compressas embebidas em soro fisiológico, e evitar contacto entre si.
    • Marcar a potência pretendida.
    • Seleccionar o modo assíncrono.
    • Colocar as pás pressionando contra o tórax. Uma pá na zona infraclavicular paraesternal direita e a outra pá no ápex (abaixo e à esquerda do mamilo esquerdo). Na criança muito pequena as pás podem colocar-se na face anterior e posterior do tórax.
    • Avaliar a segurança da equipa (todas as pessoas devem afastar-se, afastar as fontes de oxigénio; afastar/secar superficies molhadas).
    • Confirmar ritmo desfibrilhável.
    • Disparar apertando simultaneamente os botões de ambas as pás.
    • Retomar massagem cardíca de imediato.

Farmacoterapia

Adrenalina

A adrenalina é o fármaco vasoactivo de eleição na RCR.

As suas indicações são: a assistolia, a actividade eléctrica sem pulso (AESP), sendo adjuvante na taquicárdia ventricular sem pulso (TVSP), e fibrilhação ventricular (FV).

A dose é 0,01 mg/kg por via intravenosa ou intra-óssea; tal corresponde a 0,1 mL/kg da diluição a 1:10000 (1 ampola de adrenalina 1:1000 <> 1 mg (1 ml) + soro fisiológico 9 ml para perfazer 10 ml de solução).

A partir da puberdade e no adulto a dose-padrão é de 1 mg não diluído (1 ampola 1 ml).

Antes e após a administração de adrenalina, tal como das outras drogas, deve “lavar-se” a via com soro fisiológico. Salienta-se que a adrenalina é inactivada em soluções alcalinas.

Amiodarona

Está indicada nas seguintes situações:

  • FV e TVSP;
  • FV e TVSP refractárias à adrenalina e ao 3º choque de desfibrilhação.

A dose de amiodarona é 5 mg/kg em bolus IV rápido, seguido de 2 minutos de SBV; após o início da puberdade emprega-se a dose de 300 mg.

Bicarbonato de sódio

O bicarbonato de sódio utiliza-se nos casos de acidose metabólica grave [pH < 7,2 e DB (défice de base) < 10 mmol/L] e PCR prolongada (10 minutos de RCR sem recuperação). Utiliza-se a dose de 1 mEq/kg (bicarbonato de sódio a 8,4%, 1 mL<> 1 mEq).

Cálcio

O cálcio, na forma de cloreto a 10% (sal com maior biodisponibilidade), ou de gluconato a 10%, tem como indicações PCR secundárias a hipocalcémia, hipercaliémia, hipermagnesiémia e sobredosagem de bloqueadores dos canais de cálcio.

  • Cloreto de cálcio a 10%: 0,2 mL/kg/dose;
  • Gluconato de cálcio a 10%: 0,3 mL/kg/dose em bolus lento.

Glicose

Nas situações de hipoglicémia administra-se glucose, evitando hiperglicémia. Utilizando a solução de dextrose a 10%, a dose é: 5 mL/kg/dose.

Atropina

A atropina somente tem indicação nas situações de bradicárdia por reflexo vagal, ou na profilaxia destas. A dose é 0,02 mg/kg/dose via IV, intra-óssea ou endotraqueal.

Nota importante: dose mínima 0,1 mg; dose máxima 0,5 mg.

Lidocaína

A lidocaína está indicada nas seguintes situações: FV e TVSP, como alternativa à amiodorona. A dose é 1 mg/kg/dose em bolus (deve usar-se com precaução nas crianças com disfunção hepática).

ECMO (Extra Corporeal Membrane Oxygenation life support)

Esta técnica de suporte de vida extracorporal deve ser considerada em crianças em PCR refractária a RCP convencional com uma causa potencialmente reversível, se a paragem ocorrer numa unidade assistencial com equipa experimentada e recursos indispensáveis.

Cuidados pós-reanimação

Os objectivos principais são reverter lesões cerebrais e disfunção miocárdica, tratar a resposta sistémica à isquémia/reperfusão e doenças precipitantes.

  • Disfunção miocárdica: manter boa perfusão de órgãos, com PA sistólica >P5 de acordo com a idade.
  • Oxigenação e ventilação: manter normoxémia e normocápnia (salvo situações especiais como cardiopatia cianótica ou ARDS/síndroma de dificuldade respiratória tipo adulto).
  • Controlo glicémico: evitar hiperglicémia e hipoglicémia.
  • Temperatura: evitar hipertermia e hipotermia graves. Hipotermia terapêutica versus normotermia controlada (ver seguidamente Notas importantes).

Notas importantes

 

Como principais causas reversíveis de PCR que devem ser corrigidas no decurso da RCR apontam-se:

  • 4 “H”: hpóxia, hipovolémia, hiper ou hipocaliémia/metabólico, hipotermia
  • 4 “T”: pneumotórax sob tensão, tamponamento cardíaco, tóxicos e tromboembolismo.

Durante a RCR usam-se fluidos intravenosos como veículo dos fármacos e manutenção do acesso venoso (soro fisiológico, lactato de Ringer, por ex.). A excepção é o quadro de choque em que se procede à expansão da volémia com o soro fisiológico na dose de 20 ml/kg em bolus inicial, ou ainda com concentrado eritrocitário nas situações acompanhadas de hemorragia aguda.

→ Sobre calibres e nomenclaturas de TET

  • TET sem cuff designado por 4 significa que o seu diâmetro interno é 4 mm.
  • As chamadas unidades French (F) representam o perímetro externo em mm.
  • A conversão de diâmetro interno em perímetro externo (ou Unidades F) depende da espessura de cada TET; com certa aproximação, pode obter-se pela equação: Unidades French (F) = (diâmetro interno x 4) + 2

→ Sobre actualização das normas da American Heart Association em 2019

  • Nos casos de paragem cardíaca fora do hospital, é razoável continuar a ventilação com máscara-balão até verificação de condições hospitalares para entubação traqueal.
  • É dada ênfase ao papel neuroprotector da hipotermia terapêutica e da normotermia controlada, chamando-se a atenção para a eventualidade de surgimento de febre por vezes acompanhando paragem cardíaca, coma e eventos hipóxico-isquémicos, com agravamento do prognóstico neurológico designadamente. Estes dados aplicam-se na idade pediátrica, incluindo o período neonatal.
  • Para além da prevenção da febre como medida terapêutica fundamental, o documento da AHA 2019 relata estudos realizados aplicando os seguintes protocolos, com as seguintes temperaturas programadas alvo:
    • Hipotermia terapêutica [32-34ºC à 2 dias; 36-37,5ºC à 3 dias]; ou
    • Normotermia controlada [36-37,5ºC à 5 dias]
  • No estado actual da investigação neste campo não foram verificadas diferenças significativas quanto a resultados (tempo de estadia em UCI, resultado neurológico a prazo e mortalidade).  

APÊNDICE

Em complemento do texto que integra este Capítulo, são apresentadas na parte final do 3º volume (Anexos) algumas tabelas utilizadas na UCIP do Hospital Dona Estefânia, elaboradas pelo Grupo de Formação em Reanimação Cardiorrespiratória do mesmo Hospital e autores deste capítulo.

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SERVIÇOS DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA. ASPECTOS ORGANIZATIVOS

Definições e importância do problema

A Organização Mundial de Saúde considera urgência toda a situação em que, na opinião do doente ou dos seus responsáveis, família ou outra entidade, são requeridos cuidados médicos imediatos. A Comissão Americana para a Medicina de Emergência Pediátrica definiu emergência sob o ponto de vista do utente (prudent-layperson laws): “todo o problema clínico de aparecimento súbito que se manifesta por sintomas suficientemente graves, incluindo dor de grande intensidade, para a qual o leigo prudente que possua conhecimentos médios sobre saúde e medicina, poderá com grande probabilidade esperar que, na ausência de avaliação médica, exista risco para a saúde da pessoa, ou perturbação grave de funções de órgão ou parte do corpo”. Há um grande componente subjectivo nestes conceitos, e uma situação considerada subjectivamente como urgência poderá vir a revelar-se como verdadeira urgência vital ou emergência, susceptível de assistência em serviços com características diversas, ou como não vital – a maioria. (Figura 1)

FIGURA 1. Urgência avaliada inicialmente segundo critérios subjectivos e evolução possível

No nosso País, a Comissão Técnica de Apoio ao Processo de Requalificação das Urgências (2007), estabeleceu as seguintes definições:

  • Urgências – todas as situações clínicas de instalação súbita em que existe o risco de falência de funções vitais;
  • Emergências – todas as situações clínicas de estabelecimento súbito em que existe, estabelecido ou iminente, o compromisso de uma ou mais funções vitais.

Sistema de cuidados de urgência e emergência

A filosofia de prestação de cuidados baseia-se num sistema que regula relações de complementaridade e de apoio técnico entre instituições hospitalares e não hospitalares, com graus de diferenciação diversos de modo a garantir o acesso atempado de todos os doentes aos serviços e unidades prestadoras de cuidados de saúde em função da patologia detectada. Estes sistemas deverão articular-se entre si explorando complementaridades e concentrando recursos humanos e técnicos, tendo em vista as necessidades reais das populações e a eficiência dos cuidados prestados.

Os utilizadores dos serviços de urgência têm características que os distinguem dos de outros serviços hospitalares:

  • A sua chegada não tem marcação;
  • A variabilidade das queixas e da gravidade é ampla;
  • O cuidado prestado é episódico;
  • O recurso ao serviço é muitas vezes inadequado.

De acordo com diversas estatísticas em contextos diversos, entre 20 e 80% das visitas de pacientes aos Serviços de Urgência (SU) pediátricos são motivadas por situações não urgentes. O seu atendimento deveria ter lugar nas instituições devotadas aos cuidados de saúde primários (CSP), o que não sobrecarregaria os SU hospitalares.

Uma vez que, dum modo geral, o cidadão comum e famílias não possuem conhecimentos sobre a orgânica e funcionamento dos serviços de saúde, surgem consequências dramáticas na organização e sustentabilidade dos SU na “pura e técnica” concepção do termo.

A Medicina de Urgência/Emergência, constituindo-se como paradigma actual para a resposta a essas necessidades, inclui diversas vertentes:

  • Triagem;
  • Avaliação médica de acordo com prioridade;
  • Prestação de cuidados (urgentes e emergentes em função do contexto clínico, incluindo lesões traumáticas);
  • Encaminhamento dos doentes para seguimento;
  • Transporte do doente grave ou com necessidades de cuidados específicos;
  • Formação própria;
  • Investigação básica e aplicada em aspectos clínicos, mas também de gestão e organização de recursos.

Sobre as vertentes Triagem e Transporte de doentes, as mesmas serão retomadas adiante.

Legislação sobre o Sistema Integrado de Emergência

O despacho nº 10319/2014 sobre o Sistema Integrado de Emergência Médica, que é omisso em orientações para o atendimento e seguimento de situações verdadeiramente não urgentes nos CSP, define a Rede de SU, respectivas responsabilidades e localizações da seguinte forma:

Serviços de Urgência Básica (SUB)

“O atendimento a crianças é da responsabilidade de Médicos e de Enfermeiros não diferenciados em Pediatria, os quais devem receber formação de modo a garantir as competências adequadas ao reconhecimento e abordagem de situações de doença grave, paragem cardíaca, abordagem da via aérea com adjuvantes, acesso vascular emergente e reconhecimento e abordagem inicial da paragem cardíaca em crianças.”

Em todos os SUB deve existir equipamento adequado às diferentes idades pediátricas, para utilização na abordagem correcta da via aérea básica e avançada, na obtenção de acesso vascular urgente e na monitorização em situações de doença grave ou paragem cardíaca; devem dispor de uma sala dedicada ao atendimento de crianças, e que permita, se necessário, a sua permanência para observação de curta duração em espaço separado do atendimento dos adultos. É igualmente considerada desejável a existência de espaços de admissão e salas de espera dedicados à idade.”

Serviços de Urgência Médico-Cirúrgica (SUMC) e Serviços de Urgência Polivalente (SUP)

O atendimento a crianças, da responsabilidade de Serviços de Urgências Pediátricas, deve ter instalações autónomas, incluindo admissão e áreas de espera.

Devem existir, nestas urgências, áreas adequadas a funcionar como salas de observação ou internamento de curta duração (incluindo o de foro ortopédico, cirúrgico e de outras especialidades de apoio). O atendimento deve abranger todos os pacientes em idade pediátrica independentemente da patologia apresentada, excepto nas situações inerentes ou consequentes à gravidez, as quais devem ser atendidas nos serviços de urgência obstétrica.

As Urgências Pediátricas devem funcionar como primeiro ponto de atendimento pediátrico especializado em situações urgentes e emergentes, com base numa lógica de proximidade e organização regional. Devem estar dotadas de canais de comunicação, ágeis e disponíveis, com os SUB e CSP da área, bem como com os serviços para os quais referenciam, nomeadamente Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos e outras áreas de especialidade, tais como Cirurgia Pediátrica, Neurocirurgia e outras. A referenciação para estas Unidades, via transporte inter-hospitalar pediátrico, deve ser protocolada regionalmente e coordenada pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).

As urgências pediátricas de hospitais com SUMC ou SUP devem dispor da presença física permanente de, pelo menos, dois pediatras, um dos quais com formação em suporte avançado de vida pediátrico. Nos hospitais com SUMC, as crianças e jovens com patologia cirúrgica devem ser observados pelos especialistas que prestam cuidados na urgência de adultos, devendo ser protocolada a referenciação de situações clínicas que devam ser transferidas para um SUP Pediátrico.

Para além da disponibilidade dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica definidos para os SUMC ou SUP, as Urgências Pediátricas devem dispor de todos os equipamentos específicos da idade pediátrica necessários à abordagem avançada do paciente gravemente doente, traumatizado ou em paragem cardíaca.”

Serviços de Urgência Polivalente Pediátrica (SUPP)

O SUPP deve dispor de todos os recursos mínimos definidos para um SUP, e apoio em termos de diagnóstico e terapêutica e das diversas especialidades, incluindo Neurocirurgia, de Cirurgia Pediátrica e Cuidados Intensivos Pediátricos, local e permanente.

As equipas devem ainda ter formação adequada para que os SUPP funcionem como Centro de Trauma Pediátrico (CTP), devendo o SUPP estar preparado para o atendimento diferenciado de trauma grave, incluindo neurotrauma. O SUPP deve dispor de apoio fácil local ou com garantia de apoio efectivo das áreas de Cardiologia Pediátrica e Pedopsiquiatria. Tal apoio pressupõe a existência de normas rígidas exequíveis.

Triagem

A grande afluência de doentes aos SU em todos os países obrigou ao aperfeiçoamento das normas do atendimento, estabelecendo prioridades em função da gravidade. A finalidade última da triagem é prestar globalmente melhor serviço à comunidade, com rapidez, eficácia e eficiência proporcionais à gravidade. Para evitar iniquidades, estabeleceram-se critérios objectivos (de aplicabilidade, reprodutibilidade e validade), internacionalmente reconhecidos e já utilizados nos sistemas de triagem estruturados noutros Países.

Estes sistemas pressupõem obrigatoriamente os seguintes requisitos:

  • Definição de 5 níveis de prioridade (gravidade);
  • Definição de tempos máximos de espera aguardando observação médica de cada caso clínico previamente analisado;
  • Auditoria realizada por entidades externas.

A triagem é um processo dinâmico e exigente que se inicia quando o paciente chega ao serviço de urgência, e finaliza quando este recebe uma avaliação completa por um médico. Neste processo, requer-se, não só a capacidade de reconhecer os sinais e sintomas que necessitam de ser tratados imediatamente, mas também o reconhecimento de sintomas que provavelmente corresponderão a uma doença benigna.

Durante o tempo de espera os pacientes podem melhorar ou piorar; por isso, torna-se necessário proceder a reavaliações periódicas (retriagem).

Nesta perspectiva, a triagem implica, pois, formação e aperfeiçoamento dos profissionais que a realizam, estando bem definidas as características e as responsabilidades de tal função.

Os sistemas de triagem recomendados para a Pediatria em Portugal são o Manchester Triage Scale (MTS) e o Canadian Paediatric Triage and Acuity Scale (CPTAS). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Sistemas internacionais de triagem pediátrica em Portugal

 MTSCPTAS
Nível de Gravidade
(sinalização com cor)
Tempo de Resposta
Médica Alvo (minutos)
Tempo de Resposta
Médica Alvo (minutos)
1 = Imediata (Vermelho)
2 = Muito Urgente (Laranja)
3 = Urgente (Amarelo)
4 = Menos Urgente (Verde)
5 = Não Urgente (Azul)
Imediato
10
60
120
240
Imediato
15
30
60
120

Transporte de doentes

Os sistemas de transporte pediátrico e neonatal inter-hospitalar permitem que os doentes beneficiem de cuidados especializados antes e durante a transferência. Está demonstrado em diversos estudos que o transporte, incorporando equipa médica e de enfermagem especializadas, permite reduzir a mortalidade e morbilidade, verificando-se também uma boa relação custo-benefício.

Existem diversos modelos de organização de sistemas de transporte, nem sempre consensuais. O ideal será, pois, criar condições para que o sistema de transporte se desloque ao local onde existe um doente em estado crítico requerendo tratamento emergente, e não o contrário.

Reproduzindo o que foi estabelecido oficialmente, importa realçar certos princípios: “Em Portugal o transporte pré-hospitalar é assegurado pelo INEM, dependente do Ministério da Saúde.

Quanto ao transporte inter-hospitalar neonatal e pediátrico destacam-se principalmente três períodos:

  • A experiência nacional desde 1978, com o transporte inter-hospitalar especializado de recém-nascidos (RN), de cobertura nacional, no âmbito do INEM;
  • A experiência da região centro do país desde 1991 coordenada a partir do Hospital Pediátrico de Coimbra, também no âmbito do INEM; tal subsistema assegura, não só o transporte de RN de alto risco, mas igualmente o de doentes pediátricos necessitando de cuidados intensivos;
  • O modelo actual, a funcionar desde 2013, em que houve uma uniformização e integração a nível nacional da gestão altamente diferenciada do Transporte Inter-hospitalar Pediátrico (TIP); tal modelo tem como missão:
    • a deslocação rápida de uma equipa de transporte de doente crítico urgente em idade pediátrica;
    • a estabilização clínica dos recém-nascidos e/ou crianças gravemente doentes; e
    • o transporte acompanhado para unidades de cuidados intensivos neonatais e/ou pediátricas disponíveis.”

Reforçando o que foi abordado anteriormente, o sistema de transporte implica igualmente o estabelecimento de normas de actuação médica e organizativa, assim como recursos logísticos tais como: equipa médica e de enfermagem treinada autónoma, meios de transporte por via terrestre ou aérea, aparelhagem específica, oxigénio e ar armazenados com possibilidade de ventilação mecânica, fármacos, etc.. (Quadros 2 e 3)

QUADRO 2 – Equipamento indispensável durante o transporte

    • Fontes de oxigénio e ar com sistema de mistura
    • Sistema de aspiração de secreções portátil
    • Material de reanimação primária (insuflador manual, máscaras laríngeas, laringoscópios para RN/lactentes e outras idades, tubos endotraqueais, etc.)
    • Monitores cardiorrespiratórios e de pressão intracraniana
    • Oxímetros de pulso
    • Ventilador
    • Aparelho para determinação da glicémia por micrométodo
    • Cateteres
    • Bombas de perfusão
    • Desfibrilhador
    • Ligaduras, talas e colares cervicais

QUADRO 3 – Fármacos e fluidos indispensáveis durante o transporte

    • Solução de cloreto de sódio em concentrações e volumes diversos
    • Dextrose em água em concentrações e volumes diversos
    • Fármacos diversos:
      • Dopamina, dobutamina, adrenalina, noradrenalina, milrinona;
      • Bicarbonato de sódio, gluconato de cálcio, sulfato de magnésio, amiodarona, naloxona, lidocaína, atropina, adenosina;
      • Fentanil, midazolam, cetamina, vecurónio, atropina, propofol, tiopental;
      • Furosemido;
      • Antibióticos e antivíricos;
      • Prostaglandinas;
      • Salbutamol, brometo de ipratrópio, prednisolona, metilprednisolona;
      • Diazepam, difenil-hidantoína, fenobarbital;
      • Manitol a 20%.


Uma norma basilar aplicável ao transporte de doentes em qualquer grupo etário diz respeito à garantia de estabilização hemodinâmica, antes de se iniciar o transporte, e à ponderação dos benefícios face aos riscos.

Com efeito, o hospital de proximidade da ocorrência, necessitando de transferência de doentes/hospital “emissor” (por doença ou por lesão traumática), deve ter:

  • Capacidade para a estabilização do doente antecedendo uma transferência;
  • Plano de transferências e transportes que permita enviar de modo sistemático, em segurança e atempadamente, um doente para um centro de maior diferenciação/hospital “receptor”, pré-identificado, que proporcione cuidados definitivos.

Unidades de cuidados intensivos pediátricos (UCIP)

Uma parcela limitada dos doentes recorrendo aos SU/E abertos ao exterior, ou transferidos doutros hospitais, requerem cuidados designados por intensivos pela situação clínica considerada crítica.

Considera-se doente crítico aquele em que, por disfunção ou falência profunda de um ou mais órgãos ou sistemas, a sobrevivência depende de:

  • Recursos humanos altamente especializados integrando equipas próprias médico-cirúrgicas e de enfermagem altamente na relação de 1 enfermeira/doente (permanentes, 7 dias por semana, 24 horas por dia, 365 dias por ano), e o apoio de múltiplos subespecialistas;
  • Meios sofisticados de terapêutica (por ex.: ventilação mecânica, hemodiálise, circulação extracorporal, farmacoterapia complexa, terapia pós-transplantes, etc.); e
  • Diversos tipos de monitorização contínua (electrónica, biofísica, bioquímica/laboratorial, invasiva e não invasiva, etc.).

Pelos elevados custos que tal tipo de cuidados exige, e pela necessidade de ser criada massa crítica com vista à aquisição de experiência e aperfeiçoamento de competências por parte das equipas assistenciais, garantindo a qualidade dos mesmos cuidados, torna-se necessário concentrar recursos humanos e materiais nas chamadas unidades de cuidados intensivos (neste caso pediátricos, com número limitado de postos), localizadas em hospitais do mais elevado nível de diferenciação na prestação de cuidados hospitalares (nível terciário), com esquemas organizativos variáveis, a que atrás se aludiu.

Urgências e Emergências Pediátricas – o presente e o futuro

Nas décadas recentes ocorreram grandes avanços no âmbito da prestação e organização de cuidados pediátricos urgentes e emergentes a nível mundial, com maior relevância nos países ditos desenvolvidos. Com efeito, de acordo com a experiência acumulada, concluiu-se que se torna indispensável considerar a valência Urgências Pediátricas como uma subespecialidade pediátrica, implicando a criação de equipas (designadamente médicas e de enfermagem), com sólida formação global e com competências específicas (designadamente técnicas) para o tratamento de doentes complexos em estado crítico.

Estas equipas participariam, não só na assistência médica directa, mas também noutras tarefas: auditorias internas devotadas ao atingimento de metas de qualidade assistencial dos respectivos serviços; consultas de reavaliação de situações agudas mais complexas; consultas sem presença de doente; ligação a instituições (de proximidade, emissoras de pacientes como anteriormente referido, quer hospitais, quer centros de saúde); acções de formação, incluindo as relacionadas com treino em simulação de técnicas; criação e discussão de normas de orientação clínica; investigação, designadamente no âmbito da comunicação médico-paciente e interpares, analgesia, sedação, avaliação do risco clínico e técnicas de imagiologia rápida como a ecografia, etc..

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INFECÇÕES ODONTOGÉNICAS

Etiopatogénese e quadros clínicos

Entende-se por infecção odontogénica aquela que provém de um dente ou dos tecidos que o envolvem.

Nas alíneas seguintes são abordados os quadros clínicos mais frequentes englobados no conceito atrás expresso, estabelecendo uma relação integrada entre a etiopatogénese e sintomatologia.

Periodontite aguda e abcesso

A periodontite aguda, ou infeção aguda dos tecidos peridentários tende a estender-se a partir do apex e culminar no abcesso alveolar agudo. À sensação de (“o meu dente cresceu”) pode associar-se mobilidade relativa e dor lancinante e pulsátil.

O abcesso alveolar agudo pode drenar pelo estabelecimento de fístula. A supuração pode seguir o caminho de menor resistência – o espaço ligamentar – esvaziando-se por pequeno orifício, no sulco gengival; é a fístula periodontal, mais frequente na mandíbula. (Figura 1-A)

Pode, em contrapartida, a partir do osso esponjoso, perfurar a cortical, drenando ainda para o sulco, mas poupando a zona periodontal; é a fístula gengival. (Figura 1-B)

FIGURA 1. Evolução da periodontite

O abcesso alveolar agudo pode, assim, surgir na evolução natural da periodontite aguda.

Mas é mais frequente o referido abcesso enxertar-se numa inflamação ou infecção crónica, (granuloma periapical), do seguinte modo: pulpite induzindo periodontite (inflamação ligamentar) seguida de necrose do osso alveolar e colonização por microrganismos.

Salienta-se que a infecção de um dente decíduo poderá comprometer o desenvolvimento do dente definitivo sucessor.

Por outro lado, há que admitir a possibilidade (rara) de sépsis.

Granuloma e quisto periapicais

O chamado granuloma periapical corresponde a um foco de tecido de granulação circundado por uma cápsula de tecido conjuntivo fibroso; é constituído por fibroblastos e células inflamatórias, sobretudo macrófagos, linfócitos e plasmócitos. A maioria dos linfócitos é do tipo T, admitindo-se que estes tenham papel na produção do factor activador dos osteoclastos, os quais são responsáveis pela reabsorção, quer óssea, quer radicular que se lhes associa.

É a mais frequente sequela das pulpites e assinala uma competente barreira imunológica; pelo seu desenvolvimento – tantas vezes subclínico – pode constituir um mero achado radiológico, quando já possui volume bastante. Tende a apresentar, então, como sinal, uma hipertransparência periapical óbvia, redonda ou ovalada, apensa à extremidade de uma raiz, de limites bem definidos, ou mesmo limitada por linha osteosclerótica (marcadora de lento crescimento).

Apresenta semelhanças evidentes com o quisto periodontal apical; o quisto, porém, por definição, tem parede com revestimento epitelial e conteúdo líquido. Ambos assinalam a necrose pulpar.

Osteomielite

O processo séptico – quer se trate de circunstância aguda ab initio, quer se trate de agudização de lesão crónica – na maioria das vezes decorre sem grande compromisso sistémico, apesar de se lhe poder associar síndroma febril e linfadenopatia regional.

Tendo em conta que as raízes dentárias são intra-ósseas, o abcesso alveolar agudo representa já uma forma de compromisso da medular, isto é, representa uma forma localizada de osteomielite; a sua extensão significativa – em superfície e volume – pode originar osteomielite supurada.

Trata-se dum quadro de maior morbilidade que implica necessidade de vigilância rigorosa e medidas adiante discriminadas.

Celulite

As celulites odontogénicas decorrem habitualmente com alterações significativas da função fagocitária e deficiência da imunidade celular e humoral.

O quadro de celulite resulta da disseminação da infecção odontogénica estendendo-se, directa ou indirectamente, ao tecido célulo-adiposo maxilofacial e/ou cervicofacial.

O seu microbioma é, porém, sobreponível à que caracteriza outras infecções odontogénicas de menor relevo, como o abcesso alveolar agudo. É geralmente mista, predominando a associação de Streptococcus (viridans, milleri, sanguis), com Prevotella, Peptostreptococcus e fusobactérias. O seu reconhecimento através de exame cultural é fundamental.

A celulite odontogénica mais frequente, no entanto, não se desenvolve segundo o modelo que tem vindo a ser descrito, isto é, a partir da necrose pulpar, por cárie.

Efectivamente, ela deriva da infecção tecidual pericoroa dentária (pericoronarite) ao nível da mucosa do bordo alveolar, e atinge, sobretudo, os molares inferiores. Na sua evolução típica há difusão da lesão endo-óssea para a submucosa, variando as manifestações clínicas em função dos limites anatómicos das locas e espaços das fáscias, assim como da relação das raízes dos dentes, quer com as tábuas mandibulares (dentes inferiores), quer com o maxilar superior. Seguidamente são exemplificadas diversas vias de difusão.

Os incisivos, caninos e primeiros pré-molares (e molares decíduos) tenderão a exteriorizar as suas infecções para a superfície vestibular; os segundos pré-molares e os primeiros molares definitivos exteriorizarão, indiferente ou simultaneamente, para as superfícies vestibular e lingual; os segundos molares definitivos e os terceiros molares (sisos) “preferirão” a tábua interna.

Em contrapartida, no plano vertical, a drenagem será sobretudo supra-milo-hioideia, até ao quinto dente; o sexto constitui um dente de transição, podendo o seu apex encontrar-se acima ou abaixo da inserção do músculo, mas o apex do sétimo e o do oitavo dentes são, em geral, infra-milo-hiodeus. De referir que difusão pode aparentar grandes variações. (Figura 2)

FIGURA 2. Relação das raízes dos dentes inferiores com as tábuas mandibulares: influência na evolução da celulite

Se forem consideradas as características e a topografia dos sextos dentes inferiores, aqui tomados como modelo de raciocínio, facilmente se compreende que eles podem originar, quer a tradicional celulite geniana baixa, quer uma celulite sublingual, quer uma celulite submandibular, quer ainda uma associação destas. (Figuras 3 e 3-A)

FIGURA 3. Tipos de celulite a partir de dentes do maxilar inferior

FIGURA 3-A. Celulite submandibular

Na celulite geniana baixa, a assimetria facial será óbvia pela tumefacção geniana, que pode estender-se até à região submandibular; a palpação bimanual, endo/exoral, reconhecerá a deformação do vestíbulo (espaço entre as arcadas dentárias e os lábios e bochechas), parcialmente ocupado, por oposição ao pavimento bucal e à tábua interna, incólumes.

Na celulite sublingual ou supra-milo-hioideia, a língua é empurrada para o lado oposto, pela tumefacção da área da tábua interna e poderá parecer “não caber na boca”; a glândula sublingual pode estar envolvida, e a fala e a deglutição comprometidas.

Na celulite submandibular ou infra-milo-hioideia, a palpação bimanual revela que a tumefacção se liga, quer ao bordo basilar, quer à tábua interna, se acessível, pois que o trismo pode ser a característica mais limitante. A tendência será de precoce fistulização à pele. (Figura 3)

As circunstâncias topográficas dos sextos dentes superiores – também excelentes modelos – são diferentes, mas verificam-se as mesmas condições de drenagem, com colecção aquém ou além bucinador ou, simplesmente, subperióstica (celulites geniana alta, vestibular e abcesso palatino). (Figuras 4 e 4-A)

FIGURA 4. Tipos de celulite a partir de dentes do maxilar superior

FIGURA 4-A. Infecções odontogénicas do maxilar superior
1) Abcesso vestibular; 2) Celulite vestibular; 3) Celulite geniana alta

Em qualquer das variedades anatomoclínicas, porém, o período de estado poderá implicar – para além da tumefacção e de possível linfadenopatia regional – alterações do estado geral, com febre e prostração, ou dificuldade alimentar, bem como adinamia e desidratação.

Temperatura axilar superior a 38ºC, leucocitose, proteína C reactiva elevada, trismo, dificuldade respiratória, compromisso sub-milo-hioideu, ou cervical, ou orbitário, constituem factores de alerta para a indicação de internamento. Antibioticoterapia prévia sem resposta satisfatória, ou recidiva, constituem indicações absolutas de internamento.

A importância da disseminação dos agentes infecciosos pode impor a urgência de TAC, esclarecendo a eventual difusão para o espaço dos mastigadores, espaço parafaríngeo e espaço retrofaríngeo, locas parotídea, submandibular e sublingual.

Evolução

É sobejamente conhecida a possível evolução desfavorável das infecções odontogénicas que podem disseminar-se fáscia a fáscia, espaço a espaço, acarretando risco de vida. São, exemplos, a fascite necrosante cervical, com ou sem mediastinite subsequente, a trombose do seio cavernoso, e o abcesso cerebral.

Tratamento antimicrobiano

Descreve-se, a seguir a actuação prática empírica em três situações-tipo.

Periodontite aguda e abcesso alveolar agudo

Tendo em consideração a etiologia mais provável (microflora da cavidade bucal e Streptococcus viridans) os antibióticos de primeira linha são a amoxicilina (associada ou não ao clavulanato); como alternativa poderão ser utilizados macrólidos (eritromicina, claritromicina ou azitromicina).

A duração do tratamento é 7 a 10 dias (3 a 5 dias para a azitromicina).

Salientando-se o apoio indispensável do estomatologista, poderão estar indicadas incisão e drenagem.

Celulite

Sendo implicados mais provavelmente Hemophilus influenzae do tipo B (mais raro nos vacinados anti-Hib), Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes, a primeira escolha deverá ser: cefuroxima ou amoxicilina/clavulanato; como alternativa: cefalosporina de terceira geração. Se for identificado o agente, deverá utilizar-se penicilina para S. pyogenes; ou flucloxacilina para S. aureus. Como alternativas podem ser utilizados: cefalosporina de 1ª geração; ou clindamicina para os casos de S. aureus ou S. pyogenes; ou cefalosporina de 3ª geração para os casos de H. influenzae.

A duração do tratamento (eventualmente em regime de internamento hospitalar) é 7-10 dias.

Osteomielite

Em lactentes e crianças até aos 5 anos de idade os agentes patogénicos são, em geral, sobreponíveis aos da celulite.

Após os cinco anos, praticamente estão geralmente implicados os Gram-positivos. De um modo geral poderão ser utilizados os critérios referidos para a celulite.

GLOSSÁRIO

Apinhamento > Má-posição dentária provocada pela falta de espaço para acomodação dos dentes nas arcadas ósseas (desalinhados e “amontoados”).
Arcada > Conjunto formado pela estrutura da(s) dentição(ões) natural(ais) e do bordo ósseo alveolar. É o arranjo em forma de “u” dos dentes superiores e inferiores.
Avulsão > Acção de extracção ou arrancamento.
Bloco incisivo superior ou inferior > Conjunto dos incisivos centrais e incisivos laterais da arcada superior ou inferior.
Bordo incisal > Bordo cortante, existente na extremidade da coroa dos dentes anteriores.
Cúspide > Elevação piramidal da superfície oclusal ou mastigatória dos molares e pré-molares. Saliência, ponta ou convexidade.
Diâmetro mesiodistal > Distância entre a face mesial e a face distal de um dente. (ver adiante)
Diâmetro transverso de incisivo > Distância entre a face mesial e a face distal de um incisivo; corresponde à “largura” do dente.
Fossa central > Depressão arredondada de localização central nas superfícies oclusais dos molares.
Hipossialia > Défice de secreção salivar.
Mesial > O adjectivo mesial designa as áreas ou superfícies dentárias voltadas para a porção anterior dos maxilares; usa-se por oposição a distal (referente às superfícies voltadas para a porção posterior dos maxilares).
Mordida > Contacto entre os dentes superiores (maxilares) e os dentes inferiores (mandibulares); sinónimo de oclusão.
Mordida aberta > Anomalia da oclusão em que se verifica ausência de contacto vertical entre os dentes superiores e inferiores, ao morder; na mordida aberta anterior, verifica-se ausência de contacto entre os incisivos superiores e inferiores.
Mordida profunda > Anomalia da oclusão inversa à mordida aberta; quando os dentes posteriores estão em contacto, os incisivos superiores chegam a “tapar” completamente os inferiores, que podem contactar directamente a mucosa do palato.
Oclusão > Situação de contacto entre os dentes superiores e os inferiores quando os dois maxilares se aproximam.
Ortodôncia ou ortodontia > Área da Medicina Dentária dedicada à prevenção e tratamento das posições defeituosas dos dentes.
Perímetro ósseo da arcada > Medida do comprimento do rebordo ósseo alveolar, onde se inserem os dentes.
Prognatismo > Saliência dos maxilares para a frente.
Relação molar > Distância entre as faces distais do primeiro molar superior e inferior, medida sobre o plano oclusal.
Sinartrose > Articulação imóvel na qual as peças ósseas se encontram em continuidade uma com a outra.
Sincondrose > Sinartrose em que a união das peças ósseas é assegurada por tecido cartilagíneo.
Superfície palatina > O mesmo que superfície lingual; o termo usa-se exclusivamente nos dentes superiores.
Superfície vestibular > Superfície dentária que se encontra voltada para o vestíbulo.
Trespasse vertical > Distância no sentido vertical entre os bordos incisais dos incisivos central superior e inferior; é internacionalmente designado por overbite.
Trespasse horizontal > Distância no sentido horizontal entre os bordos incisais dos incisivos central superior e inferior; é internacionalmente designado por overjet.
Xerostomia > Secura da boca por défice ou ausência de secreção salivar.

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PRINCIPAIS SÍNDROMAS ALVÉOLO-DENTÁRIAS

Síndroma dentinária

O frio e os doces, actuando na dentina exposta, (seja por cárie, seja por traumatismo), desencadeiam dor.

Assim, a chamada síndroma dentinária é definida pelo aparecimento de um quadro constando de dor desencadeada pelo frio, doces/ácidos e contacto (menos intensa pelo calor e mastigação), cessando instantaneamente uma vez retirado o estímulo e desaparecendo com a protecção directa da dentina exposta, por material dentário.

Na observação do doente, para comprovação diagnóstica, estimula-se uma zona dentária suspeita com o ar frio da seringa de ar e/ou com bola de algodão impregnada de cloreto de etilo.

O espaço volumétrico, intratubular, vai diminuindo ao longo da vida, conforme vai aumentando a espessura da dentina que constitui a própria parede tubular, até à sua obliteração completa.

De facto, logo após a erupção dentária, os odontoblastos deixam de elaborar a dentina primária, estruturalmente ideal para ser elaborada dentina secundária, em resposta aos estímulos. Sem capacidade mitótica quando sofrem necrose por agressão, são substituídos por odontoblast-like cells, produzidas pelas células mesenquimatosas indiferenciadas, mas produtoras de dentina atípica, atubular.

Este cariz atubular da dentina esclerótica ou terciária do dente agredido, (ou também senil ou senescente), permite compreender a subida do limiar de estimulação dolorosa, ao longo da vida; também ao longo da vida, pela deposição periférica da dentina secundária produzida, o espaço da polpa vai-se tornando cada vez mais reduzido.

Síndroma pulpar

À agressão da polpa, seja infecciosa, física ou química, sucedem-se as pulpites, processos inflamatórios diversos do tecido conjuntivo, os quais apenas se distinguem pelas particularidades anatómicas do dente e pela função trófica dos odontoblastos.

O grande sinal da pulpite aguda é a dor intermitente que pode limitar-se à “consciência de um dente”, mas que se revela tipicamente intensa, durando de segundos a horas, com início e fim abruptos, e muitas vezes espontâneos. Manifesta-se uma ou duas vezes por dia, com horário repetido (ciclalgias), muitas vezes vespertino. Pode ter localização óbvia, mas pode irradiar, no território homolateral do trigémio, para dentes contíguos (agonistas ou antagonistas) e para áreas vizinhas, de que são exemplo o nariz, olho, orelha, região geniana e mento.

Quando a pulpite decorre com exposição dentinária simultânea, associa-se-lhe a síndroma dentinária descrita.

A dor – desencadeada pelo frio e calor, doces e ácidos – alonga-se para além da cessação dos estímulos, tipificando a síndroma pulpar.

A síndroma pulpar revela satisfatória resposta aos analgésicos correntes (paracetamol, ibuprofeno). Pode, quando intensa, fazer-se acompanhar de alterações cutâneas vasomotoras e secretórias, ptialismo, lacrimejo e paralisia facial reflexa.

A pulpite crónica pode ser subclínica ou mesmo assintomática.

A partir de um determinado momento da evolução, a pulpite torna-se irreversível, conduzindo inexoravelmente à necrose. São seus sinais clínicos a dor espontânea e a dor à percussão, assinalando a junção e/ou passagem à síndroma periodontal.

Síndroma periodontal

Na cárie, a polpa está apenas sujeita a estímulos indirectos até sofrer invasão bacteriana. A partir de então, o processo inflamatório torna-se pró-necrótico, estendendo-se à totalidade da mesma e, para além dela, através do forâmen apical e acessórios, para o periodonto, mais propriamente para o espaço ligamentar periapical (peri-apex), já extradentário.

Na síndroma periodontal, a dor intermitente é substituída por dor contínua, aliviada pelo calor, especialmente intensa à pressão e à percussão, alongando-se muito para além do término do estímulo. Em situação extrema, mas não rara, o contacto do dente com os seus oponentes pode ser excruciante: o doente baba-se, na atitude de evitar o encerramento da boca e recusa alimentar-se, na expectativa de repetição de dor intensa; foge do contacto com qualquer instrumento que apoie o exame clínico, e protege a face.

A síndroma periodontal responde de forma insuficiente aos analgésicos correntes.

O Quadro 1 resume os aspectos relevantes da relação dor/estímulo que permite distinguir as três síndromas descritas.

Assim, um breve interrogatório permitirá distinguir a síndroma dentinária da síndroma pulpar e da síndroma periodontal, mesmo que seja relativamente frequente um estádio evolutivo misto, pulpoperiodontal, resumindo as características dos dois últimos.

A estimulação pelo frio (ar frio, cloreto de etilo), pelo calor (gutta-percha aquecida), e pela percussão, clarificam as circunstâncias. Dados radiológicos podem complementar e coadjuvar a história clínica.

QUADRO 1-  Tipologia das manifestações clínicas e identificação das três síndromas

Abreviaturas: F= frio; C= calor; Aç+Ác= acúcares e ácidos; Ĉ= contacto; m= mastigação; p= pressão; P= percussão; Cessa/Não Cessa= cessa ou não cessa com a interrupção dos estímulos; EX= exposição pulpar

 Dor espontâneaEstímulo
 Intermitente ContínuaF+C+Aç+ÁcĈmpPCessaNão cessa
Síndroma dentinária  ++++±  ++ 
Síndroma pulpar+++++Ex± ± ++
Síndroma periodontal + +  +++ ++

Sabe-se que, em circunstância de dor que se tornou espontânea e/ou que passou a manifestar-se ou a agravar-se à percussão, há evolução para necrose, estando indicada remoção do tecido pulpar ou dos seus restos necróticos – pulpectomia – desbridamento canalar, por metodologia endodôntica. São actos técnicos popularmente designados pelo amplo título de desvitalização, obviamente da competência do estomatologista.

Da desvitalização resulta em que o espaço inicialmente ocupado pela polpa é substituído por materiais que, idealmente, deverão permanecer estanques, impedindo qualquer vida microbiana intradentária.

Se o tratamento endodôntico não for exequível, só a extracção dentária será resolutiva.

Em suma, no que respeita à terapêutica, a actuação não é sobreponível, tratando-se de dentição decídua ou de dentição definitiva.

No capítulo seguinte são descritos os principais quadros clínicos infecciosos com ponto de partida no complexo dentinopulpar.

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CÁRIE DENTÁRIA

Definição e importância do problema

O termo genérico cárie significa degradação do tecido ósseo, com amolecimento e destruição. Cárie dentária é a destruição localizada e progressiva dos dentes.

A cárie dentária atinge primeiramente o esmalte (1º grau), em seguida a dentina (ou marfim) que é atacada pelas bactérias (2º grau), podendo chegar-se ao 3º grau que corresponde à necrose da polpa dentária. O resultado final é a formação de cavidades.

A cárie dentária continua a ser a doença mais frequente do globo. A sua incidência tem vindo a reduzir-se nos países industrializados que – desde meados dos anos 50 – puseram em prática a fluoretação da água, leite e/ou sal das cozinhas, a suplementação de flúor, em gotas ou comprimidos, e a intensificação da higiene oral. O paradigma é constituído pelos escandinavos.

O índice CPO de um indivíduo constitui o somatório do seu número de dentes Cariados (C), número de dentes Perdidos por cárie (P) e número de dentes Obturados (O). Corresponde ao inglês DMFT (Decayed, Missing, Filled Teeth). Tal índice, todavia, continua a aumentar nos países de menor nível socioeconómico, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Esta tinha considerado desejável um índice inferior a 3 aos 12 anos no ano 2000, e deseja atingir um índice inferior a 1,5 no ano 2015. Consideradas as Regiões de Saúde de Portugal e o ano de 2000, o Índice CPO, aos 12 anos, era 2,9 e 4,7 aos 15 anos.

De acordo com um Estudo Nacional de Saúde Oral em 2005, a percentagem de indivíduos sem cárie era: aos 6 anos → 50,9; aos 12 → 43,8; e aos 15 → 28,1.

Conceptualmente, em suma, trata-se de uma doença, quase-infecciosa, de origem bacteriana, que atinge inicialmente os tecidos duros do dente e que, na sua evolução natural, dá origem a uma cavidade.

 

ETIOPATOGÉNESE

Admite-se desde 1892 com W. D. Miller (teoria químico-parasitária ou acidogénica), que a cárie se deve sobretudo à desmineralização dos tecidos inorgânicos do dente por ácidos (láctico, acético, pirúvico) elaborados por flora bacteriana específica (acidogénica), a partir de glicólise do substrato dietético (hidratos de carbono).

Assim, considera-se um modelo etiopatogénico ainda adequado o da conjugação simultânea de três factores: microbiota patogénica ou factor agente; substrato (regime alimentar) ou factor ambiente; e dente susceptível ou factor hospedeiro. (Figura 1)

As bactérias começam por fixar-se na película exógena, adquirida, de proteínas salivares, produzindo polissacáridos extracelulares que incorporam; estrutura-se, assim, uma camada, placa ou “biofilme” de bactérias capazes de colonizar as superfícies dentárias.

FIGURA 1. Relação dente, microbiota, substrato e cárie

A cárie dentária traduz, pois, a desmineralização ácida dos tecidos calcificados dos dentes (fracção apatítica), induzida pelos ácidos orgânicos resultantes da fermentação dos açúcares do regime alimentar, produzida pelos agentes da placa bacteriana.

No âmbito da etiopatogénese são abordados com mais pormenor aspectos específicos em relação com o modelo anteriormente esboçado, o que permite compreender melhor a intervenção profiláctica e terapêutica.

De salientar que durante o período de maturação dentária verifica-se incorporação do flúor (F) em duas fases, uma pré-eruptiva e outra pós-eruptiva.

Na fase pré-eruptiva a incorporação de F na estrutura mineral do dente realiza-se por dois mecanismos:

  1. por precipitação de fluorapatite sobre a matriz dentária, substituindo a hidroxiapatite, sendo a referida incorporação de fluorapatite responsável pela sua presença no esmalte dentário;
  2. por reacção da hidroxiapatite do esmalte já formado com iões de F presentes em líquidos internos, “banhando” a superfície dentária e formando uma camada superficial de fluor-hidroxiapatite.

Esmalte e junção esmalte-dentina

Na prática, a maioria dos aspectos relacionados com a cárie é abordada com respeito à cárie do esmalte, pois é a este nível que a atitude profiláctica é exequível.

Vale a pena lembrar que, em peso, 96% do esmalte é constituído por fosfato de cálcio, sob a forma de cristais de hidroxiapatite, estruturalmente organizados em prismas; só 3% da sua estrutura é água e apenas 1% corresponde a matriz proteica. Em caso de lesão, não sofre restitutio ad integrum, por não possuir células reparadoras.

O esmalte une-se à dentina, na chamada junção amelo-dentinária, e ao cimento radicular nos colos dentários.

A cárie do esmalte é um processo dinâmico, não vital, de desmineralização/remineralização, na fase inicial. A sua extensão à dentina decorre de forma macroscopicamente distinta, nas superfícies lisas e nas fissuras.

Nas superfícies lisas, a lesão tende a evoluir segundo a forma de um cone de vértice interno, situado na junção amelo-dentinária; nas fissuras, o cone mantém o vértice externo enquanto se vai alargando a base, na zona de junção. (Figuras 2 e 3)

É, assim, possível explicar que uma cárie aparentemente pequena – ou mesmo punctiforme – de uma superfície oclusal (superfície de mastigação), se revele de notória profundidade no esmalte, e de grande extensão na dentina, conforme se caminha do vértice externo, para a base interna.

Muitas vezes, pela deterioração progressiva e silenciosa da dentina, sob esmalte aparentemente íntegro, se assiste a perda de estrutura suficiente para o esmalte não suportado se fracturar, podendo ficar exposta uma cavidade de grandes dimensões. Ou seja, a deterioração da dentina pode preceder durante certo tempo a fractura do esmalte até aí intacto.

De referir que as lesões do esmalte são assintomáticas.

FIGURA 2. Imagem de cárie da superfície lisa e da fissura

FIGURA 3. Progressão da cárie: lesão do esmalte e extensão à dentina

Complexo dentino-pulpar

A dentina e a polpa dentária formam um complexo biológico indissociável, vital; é este complexo que constitui a interface entre doença dentária, ponto de partida de doença sistémica, e zona de recepção de estímulos. (Figura 4).

A polpa é uma “ilha” de tecido conjuntivo laxo, rodeada de dentina – uma loca inextensível – ocupando o centro do dente. É nutrida por um sistema arterial do tipo terminal, isto é, por uma pequena e única artéria que a atinge através da extremidade da raiz (ou ápex), subdividindo-se no seu espaço central.

Estando enclausurada em paredes rígidas, a polpa é incapaz de aumentar de volume, durante um processo inflamatório.

O tecido conjuntivo pulpar distingue-se de outros tecidos conjuntivos laxos por, à sua periferia, se alinharem os odontoblastos, células tróficas produtoras de dentina. Os seus corpos celulares alongam-se nos processos odontoblásticos, no interior dos canalículos dentinários preenchidos por um fluido intersticial. (Figura 5)

FIGURA 4. Complexo dentino-pulpar

FIGURA 5. Odontoblastos e túbulos dentinários

Tudo se passa como se os odontoblastos e seus prolongamentos tivessem conexões com fibras nervosas simples, do tipo C; essas fibras são estimuladas com o alongar e encurtar dos prolongamentos, com origem nas variações dimensionais induzidas pelo calor e pelo frio no líquido intersticial (teoria hidrodinâmica de Brannstrom).

Estas fibras são destituídas de capacidade proprioceptiva; apenas então preparadas para a sensibilidade dolorosa, sendo os estímulos habituais o frio e o doce.

As variações dimensionais descritas podem também ser desencadeadas pelos solutos hiperosmolares, como os açúcares e alguns ácidos, que induzem movimento do líquido intersticial “para fora”, tentando restabelecer a isotonia.

Microbiota

Está provado que o grupo dos microrganismos Streptococcus mutans e S. sobrinus é essencial para o início da cárie, especialmente a das superfícies lisas dos dentes.

Com efeito, tais germes microbianos têm a capacidade de aderir ao esmalte, produzir compostos ácidos e de sobreviver em meio de pH baixo. Contudo, as diferentes espécies não são idênticas na capacidade de fermentação ácida dos açúcares (glicólise), nem na diminuição do pH que induzem, pelo que não apresentam o mesmo potencial cariogénico.

O agente bacteriano S. mutans tem também uma capacidade de recolonização rápida e possui especial virulência, quer pela aptidão colonizadora (adesinas), quer pelas características de persistência (agressinas, toxinas, impedinas, etc.), quer ainda pela eficácia de destruição celular (actividade proteásica e pró-inflamatória). Assim, as respectivas taxas de colonização na cavidade oral possuem valor preditivo e permitem reconhecimento diagnóstico da população de alto risco.

A estagnação de restos alimentares é importante no desenvolvimento da placa bacteriana e respectiva cariogenicidade. A placa torna-se visível ao fim de 12-24 horas de se deixar de proceder a escovagem, sendo facilmente demonstrável pelos “corantes de placa”, como os solutos de eritrosina, disponíveis em quase todas as marcas de produtos de higiene dentária.

Os corantes também permitem a verificação pedagógica e simples de que o atrito da mastigação não é suficiente para a respectiva remoção, só eficazmente obtida por escovagem.

Colonização oral

A criança recém-nascida tem a boca isenta de bactérias. A colonização estabelecer-se-á por contaminação a partir da saliva do cuidador, a mãe geralmente; mães com níveis salivares altos de S. mutans tendem a ter crianças também com níveis altos deste agente microbiano.

S. mutans não é detectável antes da erupção dentária; sabe-se da sua pouca apetência para os epitélios nessa fase da vida e que os picos reprodutivos são largamente compensados no bebé pela grande frequência de deglutição. Pode, contudo, colonizar dispositivos ortodônticos, (acrílicos com superfícies duras, não descamativas).

As colónias aumentam com a idade e a infecção ocorre, preferencialmente, com a erupção dos primeiros molares decíduos; o seu número é tanto mais elevado quanto maior a susceptibilidade à cárie, como acontece nas cáries precoces da infância.

Substrato e regime alimentar

A sucrose (ou sacarose), um dissacárido, é o mais cariogénico dos açúcares e o mais utilizado, no regime alimentar; a glucose e a frutose, monossacáridos, têm, também, potenciais relativamente elevados.

O seu efeito é meramente local, dependendo da respectiva fermentação pelas bactérias da placa, geradoras de ácidos orgânicos que induzem a descida do pH abaixo do ponto crítico de 5.7, o qual é suficiente para a dissolução dos cristais de hidroapatite do esmalte.

Um regime rico em sucrose, fornecido por sonda nasogástrica, não induz cárie no animal susceptível.

Saliente-se que a sucrose favorece – de forma especial – a produção dos polissacáridos insolúveis, de características adesivas, na placa bacteriana; sabe-se que facilita a colonização por S. mutans e que a sua cariogenicidade aumenta com a frequência de ingestão, mais do que com a quantidade total ingerida.

Um veículo pegajoso (caramelo, bolacha), aderente às superfícies dos dentes, com libertação prolongada de sucrose, será mais deletério que a ingestão de sucrose numa bebida. Enquanto os açúcares da fruta, dos legumes e das bebidas, são eliminados da boca em aproximadamente 5 minutos, os veiculados pelas pastilhas-elásticas, rebuçados e bombons subsistem entre 20 e 40 minutos.

O efeito desmineralizante torna-se especialmente significativo quando o consumo é feito fora das refeições.

A lactose e a galactose têm cariogenicidade mais baixa; os polióis (xilitol, sorbitol, manitol), tal como outros edulcorantes (sacarina, aspartame, ciclamato), não são cariogénicos.

Saliva

É o meio ambiente dos dentes e placa bacteriana.

A importância do fluxo é grande, pois permite a diluição volumétrica dos alimentos, nomeadamente dos açúcares, e a sua evacuação, bem como a da placa bacteriana.

O seu poder tampão depende do sistema ácido carbónico/bicarbonatos, e do sistema dos fosfatos; os bicarbonatos participam no controlo do pH da placa bacteriana e a sua quantidade aumenta paralelamente ao aumento do débito. Por outro lado, a saliva contém F, estimando-se um teor de 0,02 ppm.

Os componentes orgânicos, também têm papel importante.

Das proteínas não imunoglobulínicas, quer a lisozima, quer a lactoferrina, revelam alguma capacidade de inibição das bactérias cariogénicas; o sistema peróxido (enzimas, tiocianato e peróxido de hidrogénio) é também antibacteriano para além de antimutagénico e anticarcinogénico; as mucinas modificam a adesão das bactérias à superfície dentária.

Das imunoglobulinas, a IgA revela alguma capacidade de neutralização, inibição ou antiaglutinação bacteriana.

A insuficiência do efeito de depuração e alcalinização (associada à escassa eficiência antibacteriana dos componentes orgânicos), permite-nos entender o aumento de incidência da cárie nas circunstâncias de xerostomia e de hipossialia: da diabetes à anorexia nervosa, do efeito dos antidepressivos à irradiação terapêutica da área da cabeça e pescoço.

Ao papel do F será dada ênfase adiante.

Cárie precoce da infância

Na dentição decídua, os incisivos inferiores são os dentes menos susceptíveis à cárie. A sequência natural parece ser: molares inferiores, molares superiores, incisivos e caninos superiores, caninos inferiores. As superfícies labiais (ou vestibulares) e as linguais (ou palatinas) raras vezes são atingidas.

As cáries precoces da infância, contudo, afastam-se desta norma. Rapidamente destrutivas e pouco diagnosticadas em tempo útil, atingem – na criança muito pequena – não os dentes ou as superfícies dentárias naturalmente mais susceptíveis, mas as mais expostas ao substrato.

Assumem três distribuições sugestivas e são, muitas vezes, na gíria, designadas pelo nome inglês: honey-dummy ou de chupeta, nursing bottle ou do biberão e at will ou dos comilões.

As cáries da chupeta são desencadeadas pelas chupetas impregnadas de substâncias açucaradas; iniciam-se pelas superfícies labiais dos incisivos superiores, atingindo progressivamente todas as superfícies de todos os dentes com erupção já completa. Correspondem às mais vastas destruições dentárias que são observadas na idade pediátrica.

Há que detectá-las em fase precoce, nomeadamente quando se apresentam na fase de mancha, em pequena meia-lua, branco opaco, justa-gengivais, alertando para a necessidade de correcção do hábito. É, pois, indispensável que a inspecção da boca, no exame objectivo sumário, as detecte.

As cáries do biberão não se relacionam com o consumo de açúcares acrescentados, mas com uma frequência muito elevada de ingestão de leite, por biberão e, também, com a sobreexposição que constitui o adormecer com o biberão na boca. Pela relação posicional e pelo deslizar para trás do leite, compreende-se que as lesões prefiram as superfícies linguais dos incisivos superiores e oclusais dos molares superiores, mesmo que também possam atingir os caninos superiores. Contrariamente às cáries da chupeta, salvo casos extremos, poupam os incisivos inferiores, protegidos pela projecção anterior da língua. Esta projecção favorece a aproximação das carúnculas dos canais de Wharton, relativamente às superfícies linguais, favorecendo a depuração e o tamponamento dos ácidos da placa bacteriana.

As cáries dos comilões dizem respeito às crianças alimentadas ao peito, com refeições muito frequentes, todas as que querem, e que, quase invariavelmente, dormem com as mães.

Dado o menor comprimento do mamilo, relativamente à média das tetinas, e a sua menor deformação succional, os molares tendem a não ser atingidos, sendo as superfícies labiais superiores dos incisivos menos destruídas.

As lesões são patognomónicas. Constam da destruição completa do esmalte da superfície palatina dos incisivos centrais e laterais superiores, progressivamente para labial, desenhando e “roubando” uma meia-lua de esmalte e dentina dos bordos incisais. A sua detecção precoce só é possível pela observação endoral cuidadosa das superfícies palatinas. De referir que a “mancha branca” é reversível com higiene (lavagem e escovagem correctas) e flúor tópico.

Prevenção

A prevenção deve iniciar-se no período pré-natal, pois demonstrou-se que nas mães em que foram aplicadas medidas preventivas, o risco de cárie no filho diminui. O tratamento feito em tal período não comporta risco para o feto.

O papel do flúor

Julgava-se que o efeito cariostático do ião flúor residia na sua capacidade de se incorporar na porção mineral do dente, isto é, de substituir o ião hidroxilo na hidroxiapatite dos cristais de esmalte, em período pré-eruptivo, transformando-a em fluorapatite, mais resistente à desmineralização.

Reconhece-se, hoje, que o seu efeito é tópico. É a sua presença na fase líquida do meio dentário (saliva, líquido da placa e espaços intercristais), por fornecimento continuado, que permite a inibição da dissolução ácida do esmalte e do cimento.

Em verdade, a sua integração no esmalte durante o desenvolvimento não parece inibir a respectiva desmineralização ácida, o que, porém, se verifica quando apenas envolve a superfície dos cristais.

O flúor não se limita a inibir a desmineralização do esmalte; potencia também a sua remineralização quando adsorvido pela superfície dos cristais submetidos à acção de ácido, para os quais atrai os iões cálcio e fosfato. Tem, por outro lado, efeito de inibição da actividade bacteriana, modesta actividade inibitória sobre os polissacáridos da placa, diminuindo a respectiva adesão e interfere no metabolismo da enolase, comprometendo a glicólise em condições de pH mais baixo.

Flúor sistémico

Mais de 275 milhões de pessoas consomem água fluoretada (3% da população mundial e 56% da população do Estados Unidos da América). Na Europa, só a Irlanda optou por esta relevante medida de Saúde Pública, tal como algumas cidades na Europa (Sevilha – Espanha, Basileia – Suíça).

Numerosos estudos demonstram que a presença de flúor na água potável, à razão de 1 parte por milhão (1ppm) (ou 1 mg de flúor por 1 litro de água pura), reduz em 50% a cárie dentária, na população pediátrica. Em Portugal Continental, os valores são em geral baixos, e as águas não estão sujeitas a fluorização artificial.

A suplementação do leite com flúor, também disponível, é uma alternativa de controlo mais complexa. O sal de mesa – fluoretado a 250 mg/Kg – é utilizado na Suíça, na Hungria e em França, bem como na Colômbia e no México.

A utilização de medicamentos contendo fluoretos, na forma de gotas orais e comprimidos, foi até há pouco recomendada pelos profissionais de saúde (pediatras, médicos de família, clínicos gerais, médicos estomatologistas, médicos dentistas), dos 6 meses até aos 16 anos. A compreensão actual do mecanismo de acção dos fluoretos na prevenção da cárie dentária e a demonstração do risco de fluorose relacionado com suprimento mais elevado de fluoreto em áreas geográficas com teor mais elevado em F na água de consumo legitimaram, de acordo com o Programa de Promoção de Saúde Oral/DGS e a Canadian Consensus Conference on the Appropriate use of Fluoride Supplements for the Prevention of Dental Caries in Children, a seguinte recomendação: a administração de suplemento de F em gotas ou comprimidos* só é recomendada (a partir dos 6 meses de idade) quando o teor de fluoretos na água de abastecimento público for inferior a 0,3 partes por milhão (ppm) e:

  • a criança (ou quem cuida da criança) não escova os dentes com um dentífrico fluoretado duas vezes por dia; ou
  • a criança (ou quem cuida da criança) escova os dentes com um dentífrico fluoretado duas vezes por dia, mas verifica-se situação de alto risco de cárie dentária.

Os suplementos deverão ser: idealmente consumidos ao deitar.

Transcreve-se, do Programa atrás referido, um quadro orientador dos critérios de risco a ponderar (Quadro 1), sugerindo-se a consulta do Capítulo sobre Nutrientes, Parte XI.

* À luz dos conhecimentos actuais, tendo em conta o papel efectivo do F tópico, a administração de suplementos por via oral (gotas ou comprimidos) não deve ser considerada medida de 1ª linha. Por outro lado, não existe consenso, quer quanto ao teor mínimo de F na água de consumo que legitima a suplementação (< 0,3 ppm ou 0,3-0,6 ppm), quer quanto à dose padrão: 0,25 mg/dia, ou superior: 0,25-1 mg/dia. Aliás, no nosso País não há dados generalizados sobre o teor em F das águas de consumo público, pelo que é sugerido que, em cada região, o clínico obtenha informação rigorosa sobre o assunto junto das autarquias.

QUADRO 1 – Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral

Factores de RiscoBaixo RiscoAlto Risco
Evidência clínica de doençaSem lesões de cárie.
Nenhum dente perdido devido a cárie.
Poucas ou nenhumas obturações.
Lesões activas de cárie.
Extracções devidas a cárie.
Duas ou mais obturações.
Aparelho fixo de ortodôncia.
Análise dos hábitos alimentaresIngestão pouco frequente de alimentos açucarados.Ingestão frequente de alimentos açucarados, em particular entre as refeições.
Utilização de fluoretosUso regular de dentífrico fluoretado.Não utilização regular de qualquer dentífrico fluoretado.
Controlo da placa bacterianaEscovagem dos dentes duas ou mais vezes por dia.Não escovagem dos dentes ou uma escovagem pouco eficaz.
Nível sócio-económico da famíliaMédio ou alto.Baixo.
História clínica da criançaSem problemas de saúde.
Ausência de medicação crónica.
Portador de deficiência física ou mental.
Ingestão prolongada de medicamentos cariogénicos.
Doenças crónicas.
Xerostomia (secura da boca por défice de secreção salivar).

Flúor tópico

A auto-aplicação, através do recurso aos dentífricos fluoretados, justifica a redução da cárie nos países industrializados que não levaram a cabo programas colectivos. Os compostos mais utilizados são os de NaF, MFP (Na2PO3) e SnF2.

A regulamentação europeia preconiza um limite máximo de 1,5 mg F/g de dentífrico, seja 1500 ppm, considerando cosméticos os preparados com essas concentrações. Apesar da comercialização de pastas com concentrações diferentes, para várias idades, 1000-1500 ppm parecem universalmente adequadas, desde a erupção do primeiro dente, se a quantidade utilizada nas duas escovagens diárias não ultrapassar o tamanho da unha do 5º dedo da criança. A partir dos 6 anos, presume-se que a deglutição do dentífrico será perfeitamente esporádica, utilizando-se aproximadamente 1 cm de dentífrico, tendo em conta certa uniformização do tamanho das bisnagas.

No meio escolar prefere-se geralmente o recurso aos bochechos com soluções fluoretadas, em geral com NaF a 0,05% para uso diário ou, ainda mais simples, a 0,2% para uso semanal ou quinzenal.

O recurso às pastilhas-elásticas fluoretadas parece especialmente útil em situações de hipossialia (débito inferior a 0,7 ml/min), pois a mastigação aumenta o fluxo e, paralelamente, o pH salivar.

Existe uma grande variedade de compostos para uso profissional (soluções aquosas, pastas, gel ou vernizes), cuja indicação deve ser personalizada.

Como actuação preventiva os especialistas recomendam também um substituto do açúcar – o xilitol, que faz parte da família do poliol, incluindo sorbitol, manitol, e maltiol – incorporado em pastilhas elásticas para deixar derreter na boca.

O Quadro 2 especifica as recomendações técnico-normativas relacionadas com escovagem, dentífrico e eventual suplemento de flúor. (PPSOCA)

Fluorose

A fluorose clínica constitui o marcador biológico da intoxicação crónica pelo fluoreto, patente na perturbação pré-eruptiva da formação do esmalte.

Atinge aproximadamente 3,9% das crianças francesas, dos 6 aos 15 anos; nos Estados Unidos da América atinge 20%: ~16% de forma muito ligeira, 4% de forma ligeira e apenas 0,3% de forma grave.

Trata-se duma hipoplasia do esmalte, histologicamente caracterizada por hipomineralização da subsuperfície, associada a hipermineralização da superfície, e hidrólise da matriz proteica.

O seu risco máximo decorre entre os 18 meses e os 3 anos de idade. É muito menos frequente na dentição decídua que na definitiva.

Fora das zonas endémicas, a sua forma de apresentação mais frequente é a de muito discreta alteração estética do esmalte, por pequenas manchas ou linhas brancas, opacas, semelhantes à fase inicial, dita em mancha, da cárie dentária. Os defeitos estruturais, contudo, podem ser mais penalizantes.

Na dentição decídua, no entanto, pode ser especialmente difícil distinguir à inspecção defeitos estruturais resultantes da fluorose, de outros com etiopatogénese diversa

QUADRO 2 – Recomendações técnico-normativas do Programa de Promoção da Saúde Oral nas Crianças e Adolescentes (PPSOCA)

AnosFrequência da escovagemMaterial utilizadoRealização da escovagemDentífrico fluoretadoSuplemento sistémico (fluoretos)

0-3 anos

2/dia
Uma antes de deitar

Gaze
Dedeira
Escova macia

Pais

1000-1500 ppm
(tamanho da unha do 5º dedo)
Não recomendado

3-6 anos

2/dia
Uma antes de deitar

Escova macia

Pais e/ou Criança

1000-1500 ppm
(tamanho da unha do 5º dedo)

Não recomendado
Excepção alto risco de cárie dentária: 0,25 mg diário

> de 6 anos

2/dia
Uma antes de deitar

Escova macia ou média

Criança e/ou Pais

1000-1500 ppm
(quantidade aproximada de 1 centímetro)
Não recomendado
Excepção alto risco de cárie dentária: 0,25 mg diário

Advoga-se o não recurso a dentífricos de sabor a guloseimas, para não estimular a criança ao seu consumo dissimulado.

Como regra de segurança, ao longo do período de prevenção não deve ser ultrapassada a dose de 120 mg (total).

O risco de intoxicação aguda (doses > 5 mg/Kg) deve, porém, fazer com que a inacessibilidade das embalagens de dentífricos e afins obedeça às mesmas regras de segurança e protecção dos medicamentos.

Escovagem

Compreende-se, assim, que o controlo da placa bacteriana passa pela higienização pós-alimentar de todos os dentes, desde a sua erupção, a promover desde os primeiros meses de vida com compressa húmida ou dedeira espiculada, de borracha ou pequena escova macia, idealmente já com pequena porção de dentífrico fluoretado, entre 1000 e 1500 ppm.

A escovagem, que se deve executar desde o aparecimento do primeiro dente, estabelece o atrito que permite desalojar a placa bacteriana e os seus ácidos, sendo especialmente útil após as refeições e ao deitar, dada a diminuição do efeito tampão e de depuração salivares, próprios da hipossialia nocturna. A ausência de escovagem nocturna é, pois, muito penalizante.

A maioria das pastas com fluoreto apresenta-se com algum tipo de abrasivo, compatível com aquele; outros componentes químicos – como é o caso da clorexidina a 0,2%, um antisséptico de elevada eficácia antiplaca bacteriana, e do triclosan – são de utilização menos generalizada em pediatria.

A escovagem, também relevante no controlo da doença periodontal, deve decorrer na presença de adulto e justificar o apuramento técnico, “mãos na escova”, por parte deste, pelo menos até aos 6 anos de idade ou quando houver condições de autonomia a qual carece, ainda assim, de controlo esporádico.

O convite à escovagem simultânea, em família, pode ser interessante, nalguns grupos ou circunstâncias. Uma das escovagens diárias deve ser feita na escola, uma vez que na vida de muitas crianças essa pode ser a única oportunidade de informação adequadamente veiculada e controlada.

Os hidropulsores, com um ou vários jactos, já relativamente vulgarizados, são complementos muito úteis nas crianças e jovens com aparelhos de ortodôncia ou próteses.

Outros métodos, paralelos e mais ou menos diferenciados, estão fora do âmbito deste trabalho que não pretende relevar a importância do apoio profissionalizado. No que diz respeito às crianças com necessidades especiais, convida-se o leitor a consultar o Manual de Boas Práticas em Saúde Oral, disponível no sítio electrónico da Direcção Geral da Saúde (www.dgsaude.pt).

Selantes de fissuras

Os sulcos e fissuras são elementos anatómicos importantes dos molares e pré-molares, apesar de não serem exclusivos destes. Constituem zonas anfractuosas, morfologicamente vulneráveis (defeitos de coalescência do esmalte) e de difícil acesso aos pêlos da escova. (Figura 6)

Se a fluorização reduziu a prevalência da cárie das superfícies lisas dos dentes, não tem influenciado significativamente a respectiva incidência ao nível dos sulcos e fissuras.

Os sulcos e fissuras representam apenas 12% da superfície total do esmalte exposto, mas estão na origem de 50% das situações de cárie em idade escolar, podendo representar até 80% das lesões diagnosticáveis aos 12 anos.

FIGURA 6. Sulcos e fissuras

Sabe-se, no entanto, que a maioria das cáries de fissura se inicia logo durante a fase de erupção dos pré-molares, relativamente rápida (1-2 meses), em comparação com a dos molares, que ronda 1 ano e meio. Assim, poderá haver já cárie com maior probabilidade após erupção completa dos molares. Os primeiros molares definitivos, sextos dentes ou dentes dos 6 anos são especialmente atingidos.

Os sulcos e fissuras são eficazmente protegidos pelos chamados selantes, se adequadamente aplicados; o método que se resume constitui, apenas, um exemplo*.

* O termo selagem em estomatologia e ortopedia significa no sentido genérico, “fixação de material”.

O esmalte é pré-tratado pelo ácido fosfórico a 37%, durante 20 segundos, sofrendo uma desmineralização em superfície e lavado com água, a seguir, durante aproximadamente 30 segundos. Depois de seco, é-lhe aplicada uma resina tipo Bis-GMA que se projectará nas micro-retenções induzidas pelo ataque ácido, mas que deverá estender-se um pouco em superfície, para protecção completa.

Os selantes são esteticamente excelentes ou mesmo “invisíveis”, mas dependem muito – em efectividade – do rigor técnico da sua aplicação. O isolamento da saliva é fundamental.

Não está provada a sua utilidade nos sulcos dos molares decíduos.

O esmalte é pré-tratado pelo ácido fosfórico a 37%, durante 20 segundos, sofrendo uma desmineralização em superfície e lavado com água, a seguir, durante aproximadamente 30 segundos. Depois de seco, é-lhe aplicada uma resina tipo Bis-GMA que se projectará nas micro-retenções induzidas pelo ataque ácido, mas que deverá estender-se um pouco em superfície, para protecção completa.

Os selantes são esteticamente excelentes ou mesmo “invisíveis”, mas dependem muito – em efectividade – do rigor técnico da sua aplicação. O isolamento da saliva é fundamental.

Não está provada a sua utilidade nos sulcos dos molares decíduos.

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TRAUMATOLOGIA ALVÉOLO-DENTÁRIA

Importância do problema

Os traumatismos alvéolo-dentários não se encontram geralmente ligados ao risco de vida. Exceptuam-se a entrada de corpo estranho na via aérea, a “queda posterior” da língua em fractura mandibular com recuo muito acentuado, e eventual lesão de pedículo vascular major.

Trata-se de problemas muito frequentes, salientando-se que a precocidade de tratamento tem implicação no prognóstico; adiar opções, transferindo-as para decisão dita tecnicamente especializada, se tardia, não retira a responsabilidade profissional.

A divulgação de informação básica junto das escolas poderia melhorar a triagem dos casos a encaminhar para o estomatologista, e diminuir o tempo que decorre até aos primeiros socorros alvéolo-dentários, com resultados muito positivos em Saúde Pública, como aconteceu nos países nórdicos.

Uma população pouco informada e uma rede de cuidados não contemplando a Urgência de Estomatologia, mais responsabilidade acarreta ao pediatra e clínico geral, os quais primeiramente observam a criança após o traumatismo.

Parece, assim, justificar-se maior atenção a conhecimentos que rendibilizem tão escassos recursos. Um maior rigor terminológico entre médicos e outros profissionais de saúde permitiria, por exemplo, uma consultadoria telefónica ou audiovisual efectiva, com elevados benefícios e óbvios ganhos de eficiência.

Aspectos epidemiológicos

No grupo etário entre os 12 e 14 anos estima-se que aproximadamente 30% das crianças sofrem lesões traumáticas em grau variável da dentição decídua, e 22% da dentição definitiva. Um primeiro pico de incidência ocorre entre os 2 e os 4 anos de idade, e um segundo entre os 8 e os 10 anos.

Classificação

Na perspectiva do problema em análise torna-se, pois, imprescindível: utilizar a classificação/terminologia da Organização Mundial de Saúde (Application of the International Classification of Diseases and Stomatology, IDC-Da); e proceder ao mais rigoroso exame objectivo permitindo maior rigor diagnóstico.

De acordo com o ICD-9-CM (International Classification of Disease – 9th revision – Clinical Modification), são considerados quatro tipos fundamentais de lesões traumáticas:

  • Lesões dos dentes e lesões da polpa dentária;
  • Lesões periodontais;
  • Lesões ósseas;
  • Lesões da gengiva e lesões da mucosa oral.

O Quadro 1, adoptado na Unidade de Estomatologia do Hospital de Dona Estefânia – Lisboa, discrimina de modo pormenorizado tais lesões.

QUADRO 1 – Tipologia das lesões alvéolo-dentárias

Lesões dos dentes e da polpa dentária
Fracturas coronáriasFracturas corono-radicularesFracturas radiculares
Infracção do esmalte
Fractura do esmalte
Fractura do esmalte e dentina ou fractura não complicada
Fractura complicada
Não complicadas
Complicadas
 
Lesões periodontais
Sem deslocamentoCom deslocamento 
Concussão
Subluxação
Intrusão/ luxação intrusa/ deslocamento central
Extrusão/ luxação extrusa/ deslocamento periférico
Luxação lateral
Avulsão/ Exarticulação
 
Lesões ósseas
Osso alveolarOsso basal 
Fragmentação alveolar
Fractura da parede alveolar (ou tábua)
Fractura do processo alveolar
  
Lesões da gengiva e da mucosa oral
Laceração
Contusão
Abrasão

Lesões dos dentes e lesões da polpa dentária

As fracturas dentárias englobam dois grupos: não complicadas (se não houver compromisso pulpar); ou as fracturas dentárias complicadas (se houver compromisso pulpar, o que só acontece se existir lesão simultânea do esmalte e/ou do cimento e da dentina).

Em função das estruturas duras atingidas – pela relevância da respectiva tradução clínica e radiológica, e pela cascata terapêutica que impõem, classificam-se em:

Fracturas coronárias
  • Infracção do esmalte – fractura incompleta do esmalte (fissura), tipo ramo verde, se não houver perda de substância.
  • Fractura do esmalte (A) – fractura completa do esmalte, se houver solução de continuidade por perda de substância. (Figura 1)
  • Fractura do esmalte e da dentina ou fractura coronária não complicada (B) – fractura implicando esmalte e dentina, mas sem compromisso da polpa. (Figura 1)
  • Fractura coronária complicada (C) – fractura implicando esmalte e dentina, com exposição da polpa. (Figura 1)
Fracturas corono-radiculares
  • Fractura corono-radicular não complicada (D) – fractura implicando esmalte, dentina e cimento, sem compromisso da polpa. (Figura 1)
  • Fractura corono-radicular complicada (E) – fractura implicando esmalte, dentina e cimento, com exposição da polpa. (Figura 1)
Fracturas radiculares
  • Fractura radicular (F) – fractura implicando dentina, cimento e polpa, seja transversal (do terço apical, do terço médio, do terço coronário ou cervical), seja longitudinal. (Figura 2)

FIGURA 1. Fracturas coronárias e fracturas corono-radiculares

FIGURA 2. Fractura radicular (do terço médio)

FIGURA 3. Lesões periodontais (exceptuando avulsão)

FIGURA 4. Lesão periodontal (avulsão)

Lesões periodontais

São consideradas sem deslocamento (se for preservada a relação dente/alvéolo) ou com deslocamento (se não for preservada a relação dente/alvéolo, sendo que o deslocamento pode verificar-se ou não segundo o eixo alveolar).

Sem deslocamento
  • Concussão (G) – lesão sem mobilidade, nem deslocamento, associada a sensibilidade ao toque e hiperestesia à percussão, quer vertical, quer horizontal. (Figura 3)
  • Subluxação (H) – lesão com discreta mobilidade horizontal, sem deslocamento, mas com dor óbvia ao toque e ao contacto com os dentes oponentes (impedindo oclusão), e hiperestesia à percussão, quer vertical quer horizontal. (Figura 3)
Com deslocamento
  • Intrusão (luxação intrusa ou deslocamento central) (I) – lesão com deslocamento em direcção ao extremo apical do alvéolo, quase inevitavelmente com fractura do mesmo; a deslocação centrípeta implica provável imobilidade e associa-se a ausência de dor à percussão. O deslocamento faz-se tendencialmente segundo o eixo alveolar na dentição definitiva, mas associa-se a provável desvio de eixo na dentição decídua. (Figura 3)
  • Extrusão (luxação extrusa, deslocamento periférico ou exarticulação parcial) (J) – lesão com deslocamento em direcção ao extremo cervical do alvéolo, por definição segundo o respectivo eixo; qualquer pequeno desvio implica a classificação de luxação lateral. (Figura 3)
  • Luxação lateral (luxação palatina/luxação labial ou vestibular) (L1 e L2) – lesão com deslocamento em direcção ao palato (a mais frequente, nos traumatismos directos) ou ao vestíbulo (e lábios); o aprisionamento dentário, intra-alveolar, pode associar-se a semiologia muito próxima da intrusão, sendo de referir que grandes deslocamentos implicam fractura de tábuas. (Figura 3)
  • Avulsão (exarticulação) (M) – lesão com deslocamento completo do dente, para fora do alvéolo; é mais frequente entre os 7 e os 9 anos, dada a grande resiliência do osso alveolar e a imaturidade ligamentar dente/alvéolo. (Figura 4)

Lesões ósseas

Podem estar associadas aos subtipos já apontados, localizando-se no osso alveolar (alvéolo e parede alveolar – tábua externa ou tábua interna – e processo alveolar), ou no osso basal (maxila ou mandíbula).

Osso alveolar
  • Fragmentação alveolar – compressão ou “esmagamento” das paredes, como é frequente na luxação intrusa e possível nas luxações laterais.
  • Fractura de parede alveolar (ou tábua) (L2) – fractura confinada à parede vestibular ou lingual de alvéolo. (Figura 3)
  • Fractura do processo alveolar (N e O) – fractura do processo que pode ou não implicar o alvéolo. (Figura 5)
Osso basal
  • Fractura da maxila ou da mandíbula (P e Q) – fractura(s) que implica(m) o osso basal e que pode(m) ou não atingir o alvéolo; a sua abordagem ultrapassa o âmbito deste capítulo. (Figura 5)

FIGURA 5. Lesões ósseas

Lesões da gengiva e lesões da mucosa oral

Tal como as lesões ósseas, associam-se aos traumatismos dentários e periodontais descritos. É essencial compreender que a gengiva é um tecido com características de adesão, comportamento e funções absolutamente distintas da restante mucosa, (dos chamados “tecidos moles”). São consideradas:

Laceração – ferida, superficial ou profunda, com desinserção/descolamento, geralmente produzida por objecto afiado;
Contusão – equimose, habitualmente associada a hemorragia apenas submucosa, sem solução de continuidade e geralmente produzida por objecto rombo;
Abrasão – ferida superficial produzida por atrito, de que resulta uma superfície cruenta e hemorrágica.

Etiopatogénese

As lesões traumáticas alvéolo-dentárias entre os 2 e os 14 anos, sobretudo por queda, relacionam-se com a falta de coordenação do início da marcha e da corrida, justificando algum paralelismo nos dois sexos. Mais tarde, sobretudo por queda ou colisão, coincidem com o início da vida escolar e desportiva, penalizando os mais irrequietos ou agressivos e os que preferem os desportos de contacto ou velocidade (karaté, bicicleta), o que pode explicar uma relação de 1/2 entre o sexo feminino e o masculino.

Antes dos 2 anos, os traumatismos são esporádicos e relacionam-se, sobretudo, com quedas do colo ou dos carrinhos. Depois dos 14 anos, exceptuando os acidentes de viação, predominam os acidentes desportivos, as agressões em rixas, estas às vezes já conotadas com o consumo de álcool ou estupefacientes, e os assaltos. Em qualquer dos grupos, porém, interessa identificar a “criança e o jovem com tendência para acidentes”; com efeito, a repetição de traumatismos pode originar compromisso maxilo-facial que, nalgumas estatísticas, atinge os 50%.

Nos traumatismos da dentição decídua predominam as lesões periodontais e ósseas, dada a grande resiliência dessas estruturas, enquanto na dentição definitiva predominam as lesões dos dentes e da polpa.

Numa visão tradicional da face, considera-se que a pirâmide nasal constitui como que o primeiro “pára-choques”, o bloco incisivo superior o segundo, e o mento o terceiro; de facto, trata-se de estruturas protectoras – nos impactes directos – de estruturas ditas nobres, a saber as órbitas, a região frontal e, genericamente, o crânio. Esta hierarquia de maior saliência no perfil, coaduna-se, aliás, com a ordenação de prevalência dos traumatismos maxilo-faciais.

Compreende-se, então, que no âmbito estrito dos traumatismos alvéolo-dentários, a área dos incisivos centrais superiores seja a mais sacrificada, seguida da dos incisivos laterais superiores e da dos incisivos centrais inferiores. Melhor se compreende que um overjet aumentado, constitua risco acrescido de lesão.

O lábio superior, se for incompetente ou insuficiente, constitui factor agravante, uma vez que não funciona enquanto almofada amortecedora como protecção. Em contrapartida, interpondo-se no impacte, distribuirá as forças por mais extensa área, diminuindo a pressão e favorecendo as lesões periodontais, em desfavor das dos dentes e polpa.

Nem todos os traumatismos se estabelecem por impactes directos, sendo importante, nos indirectos, compreender a razão de ser de múltiplas, possíveis associações.

Os traumatismos podem processar-se de modo crónico pela continuidade do estímulo, às vezes apenas revelados à distância no tempo. É o que acontece, por exemplo, no recém-nascido com entubação oro-traqueal por tempo prolongado. Com o tempo, a pressão do tubo no rebordo maxilar pode implicar alterações dos germes dentários em desenvolvimento que, após erupção, revelam defeitos estruturais do esmalte.

São também iatrogénicos os traumatismos devidos ao uso intempestivo do laringoscópio, quando brandido em alavanca, sobre o bloco incisivo superior, forçando a abertura da boca.

Semiologia clínica

Não havendo hemorragia importante, dificuldade respiratória ou alterações da consciência impondo abordagem prioritária, a história clínica contribuirá para o esclarecimento da situação na perspectiva de uma actuação adequada e idealmente não diferida; de salientar que a procura de assistência em momento especialmente tardio de caso aparatoso é mais frequente na criança agredida.

A eventualidade de traumatismo craniano impõe a respectiva abordagem, sem, contudo, justificar atrasos de consequências irreversíveis. A necessidade de avaliação neurológica especializada é geralmente compatível com os primeiros cuidados cirúrgicos, se não houver necessidade de sedação/anestesia.

Anamnese

Relativamente aos dados a colher na anamnese importa especificar os tópicos clássicos: quem; quando; como e onde.

O quem distingue a criança saudável da que tem território patológico e/ou de risco acrescido (discrasia hemorrágica, valvulopatia, disfunção neurológica, surdez, ambliopia); a sua idade, sexo, área de residência, aproximam-nos do território de probabilidades descrito e sugerem-nos a envolvente social, o risco de repetição ou falta de apoio para posterior vigilância ou medicação.

O quando permite determinar o tempo decorrido e impõe a ultrapassagem de esperas, pela relevância no sucesso de reimplante de dente definitivo e da redução das luxações e fracturas.

O como caracterizará as forças em causa e, portanto, o tipo de traumatismo. É importante a pista de eventual objecto na boca, envolvido no acidente: aparelho ortodôntico, lápis, pauzinho de gelado, como fontes de lesões acessórias.

O onde informa da conspurcação das feridas (coice de cavalo) e esclarece a necessidade de profilaxia antitetânica, alerta para eventual presença de corpos estranhos (acidente de viação em estrada de gravilha fina), explica a lógica do desaparecimento de dentes (mergulho com impacte na beira da piscina), ou sugere a possibilidade de intrusão.

Exame objectivo

Os gestos semiológicos assentam fundamentalmente em inspecção, palpação e mobilização.

O diagnóstico dos problemas de traumatologia da face ou seus segmentos decorre essencialmente do exame objectivo, sendo a sua insuficiência (tal como a do seu registo) a fonte de trágicos erros. Serão abordados aspectos essenciais do exame objectivos a levar a cada pelo pediatra geral ou pelo médico de família, na maioria dos casos quem se confronta com as situações traumáticas deste foro.

Nas situações de politraumatizado há que considerar a vertente oro-maxilo-facial, sendo necessário distinguir o traumatismo facial do craniofacial.

A área alvéolo-dentária pode ser mais chamativa, mas há que procurar eventuais lesões menos evidentes. Uma fractura de processo alveolar, com luxações laterais e hemorragia franca, associando lábio superior contuso e hematoma geniano baixo, por espectaculares que sejam, poderão descurar uma fractura subcondiliana. Não é, porém, raro tal acontecer.

O primeiro contacto, com voz ciciada, se indutor de sossego, pode permitir que a inspecção decorra simultaneamente com a palpação afável dos contornos esqueléticos: rebordo orbitário, arcada zigomática, canal auditivo externo, mastóide e mandíbula.

Os dedos (utilizando luvas esterilizadas) devem também percorrer os contornos ósseos endorais, enquanto se pesquisam soluções de continuidade da mucosa ou hematomas submucosos, sugestivos de fractura maxilar ou mandibular, e soluções de continuidade; detectam, com facilidade, um abaulamento da tábua externa da zona incisiva, subsequente a uma intrusão; reconhecem uma luxação extrusa extrema ou exarticulação camuflada, aproveitando instantaneamente para agarrar um dente “solto” dado o risco de originar aspiração e asfixia.

É essencial detectar eventual mobilidade de dentes ou de segmentos ósseos ou ósteo-dentários; de salientar que a própria criança poderá saber dizer “se os dentes batem uns nos outros como é costume”.

Se o registo fotográfico, complemento da inspecção, estiver disponível, resumirá a deformidade, a distribuição extra-oral e endoral de sufusões e feridas, as alterações posicionais de segmentos ósseos (basais, alveolares) e dentes, acrescentando valor médico-legal.

É também essencial pesquisar a mobilidade e proceder a eventual percussão dos dentes (pode usar-se a espátula de inspecção da orofaringe). A mobilização bidigital dos dentes permite distinguir a fractura de processo alveolar da fractura de parede, e ainda de luxação; a diferença é relevante quanto aos critérios para envio a centro especializado e consequências.

Na fractura de processo alveolar, a mobilização de um dente desencadeia a mobilização solidária dos outros dentes do mesmo fragmento, porque desloca a respectiva “base de residência”. Na fractura de parede alveolar, a mobilização de um dente poderá desencadear a mobilização simultânea da tábua fracturada. As luxações acarretarão mobilidade individual, se não tiver havido “encarceramento”.

A percussão permite, ao ouvido habituado, o reconhecimento instantâneo do “som anquilótico” da intrusão; associada à palpação, distingue a concussão da subluxação, esta com maior compromisso do aparelho ligamentar alvéolo-dentário.

Realizados a anamnese e o exame objectivo, importa estabelecer classificação da lesão.

Actuação geral prioritária

Os fragmentos de tecidos ou dentes devem ser colocados em soro fisiológico (ou leite), melhorando a viabilidade celular, especialmente a periodontal; de imediato, o doente deve ser enviado a centro de urgência médico-cirúrgica especializado, com aviso prévio, e relatório sucinto e rigoroso.

Deve proceder-se, com carácter de urgência em caso de avulsão, a reposicionamento do dente no alvéolo, procedimento indispensável se precoce. A celeridade de reposicionamento condiciona o sucesso biológico efectivo no reimplante de dente definitivo, mesmo que a posição obtida não seja a ideal. (ver adiante)

Pode, entretanto, haver necessidade de exercer compressão local para garantir reposicionamento do dente, parar a hemorragia, ou controlar mobilidade patológica.

Deve retirar-se corpo estranho endoral ou induzir o vómito, para evitar obstrução da via aérea, esta última sugerida por tosse arrastada.

É indispensável ter no local, luz dirigida intensa e necessária para a remoção – com compressa húmida – de fragmentos e de coágulos, quando possível seguida de aspiração cirúrgica continuada de saliva e sangue. Os meios tradicionais de observação, em geral disponíveis na área de triagem do serviço de urgência médica, são suficientes para um rastreio eficaz.

Está indicada antibioticoterapia com beta-lactâmicos (ver adiante).

O exame radiológico simples da face, clássico, utilizando as incidências: face superior, face inferior, Waters e Hirtz, pode ser indispensável se o exame objectivo deixar em dúvida uma fractura de osso basal.

Na área alvéolo-dentária, são os radiogramas endorais, em múltiplos ângulos, especialmente oclusais, que permitem respostas cabais a algumas dúvidas levantadas pelo exame objectivo.

É importante referir que a radiografia panorâmica (ortopantomografia) é um excelente meio complementar de diagnóstico nas fracturas da mandíbula, embora de menor utilidade nos compromissos maxilares, e praticamente inútil nos compromissos dos segmentos anteriores. Não deverá ser solicitada indiscriminadamente.

De salientar, no entanto, que nenhum estudo radiológico substitui qualquer dos tempos da actuação descritos atrás. Admitindo, por outro lado, que na actuação prioritária o pediatra ou clínico geral pode ter papel importante, tal implica o apoio do radiologista nos casos em que está indicado estudo imagiológico.

Actuação em situações específicas

Lesões traumáticas da dentição decídua

Na dentição decídua, a anamnese orientada e o exame sumário permitem ao médico uma referência adequada para o especialista de estomatologia.

Basicamente, a actuação geral nos casos de traumatismos alvéolo-dentários da dentição decídua tem por objectivo o controlo da dor e da hemorragia, evitando consequências para a dentição definitiva.

Seguidamente são descritos aspectos da actuação em situações específicas.

Intrusão

O diagrama da Figura 6 aponta a estreita relação anatómica entre o terço apical da raiz do dente decíduo e o germe do dente definitivo.

Uma luxação intrusa mais provavelmente deslocará um incisivo em direcção à tábua externa por se tratar de trajecto de menor resistência, mas poderá implicar “invasão directa” do folículo.

Deste traumatismo interno podem resultar defeitos de cor e de estrutura, mas também morfológicos e mais ou menos bizarros e espectaculares, da coroa – dilaceração coronária ou da raiz – dilaceração radicular, com alterações subsequentes da erupção. É de salientar que, quanto mais jovem for a criança, mais graves os efeitos.

São exemplo frequente de compromissos superficiais de germe as “manchas brancas”, opacas, do esmalte do incisivo definitivo, constituindo marcador anatómico dum acidente pregresso; tais manchas são semelhantes às das fases iniciais da cárie e às da hipoplasia do esmalte, por fluorose. Os múltiplos arranjos destes defeitos funcionam como “marcadores arqueológicos”, com data de verificação bastante rigorosa, a ponto de serem utilizados na perspectiva médico-legal, para efeitos de indemnização.

Se houver acesso a métodos radiológicos, uma incidência de perfil focada na espinha nasal pode revelar se a deslocação foi feita em direcção ao germe ou não. Se foi, justifica-se extracção pelo estomatologista, na tentativa de reduzir ao mínimo as sequelas.

Na hipótese de não se ter realizado extração, poderá verificar-se “reerupção” passiva do dente intruso, com lento regresso à arcada, o que faz advogar por alguns especialistas uma espera de 2-3 meses, na expectativa de auto-resolução.

FIGURA 6. Relação anatómica entre a raiz do dente decíduo e o germe do dente definitivo

Luxações não intrusas, avulsões e lesões ósseas

Um pequeno deslocamento, sem interferência oclusal significativa (oclusão como “contacto dentário interarcadas, no encerramento”), poderá merecer, apenas uma segunda observação, a médio prazo, se houver complicações: alteração da cor, dor à pressão, abcesso alveolar agudo ou fístula.

Por não ser rara uma pequena mordida aberta anterior (ver Aspectos da relação incisiva), luxações com pequenos deslocamentos são muitas vezes oclusalmente irrelevantes, dispensando maior investigação ou terapêutica, tal como acontece com as concussões e subluxações.

Nas luxações extrusas, a raiz ter-se-á deslocado para fora do alvéolo, segundo o respectivo eixo, poupando o folículo do dente definitivo; o reposicionamento é possível, “num instante”, mas não justificará que se recorra a meios especiais, na criança não colaborante, nem que de tal opção resulte lesão iatrogénica no germe. Em contrapartida, a sua redução pode impor o recurso a contenção (splinting).

As fracturas dos processos alveolares implicam imobilização rígida durante aproximadamente 2 meses.

Lesões periodontais

Nos traumatismos verificados imediatamente antes de momento de esfoliação, salvo questão major, há duas opções possíveis: abstenção ou extracção.

A partir das 24 horas, na maioria dos casos a redução é impossível e, pelas 12 horas, insatisfatória, o que é explicável pela progressiva organização dos coágulos.

As lesões periodontais justificam a administração de analgésicos, como paracetamol; exceptuando a concussão e a subluxação, é norma o recurso ao ibuprofeno, bem como à cobertura antibiótica, com beta-lactâmicos.

Pode haver necessidade de alongar no tempo a dieta mole, mas a criança é geralmente capaz, a curto prazo, de se defender de zona dolorosa, conduzindo os alimentos para zona não dolorosa da boca.

Lesões dos dentes e da polpa

As fracturas coronárias não complicadas, na criança colaborante, justificam reabilitação por parte do estomatologista, não cabendo no âmbito da urgência.

Nas fracturas coronárias complicadas, na criança não colaborante, a resolução é a extracção dentária; a criança colaborante, porém, pode justificar tratamento endodôntico, em função da idade e circunstância.

As fracturas corono-radiculares e as fracturas radiculares são facilmente diagnosticáveis pela observação dos fragmentos disponíveis e dos alvéolos, não estando indicado exame radiológico. Nas corono-radiculares está indicada extracção “total”, enquanto as radiculares – com traço de fractura do terço médio ou cervical – carecem apenas de extracção do fragmento coronário. As fracturas do terço apical são muitas vezes compatíveis com a permanência dos dentes, sem complicações.

Lesões traumáticas da dentição definitiva

Nos casos de lesões traumáticas da dentição definitiva, os objectivos terapêuticos passam pela preservação dos próprios dentes, impondo recursos e diferenciação técnica. São analisadas neste âmbito, as seguintes situações:

Lesões periodontais

As lesões periodontais impõem métodos de contenção e/ou imobilização exigindo algum treino, mesmo que idealmente conduzidos com materiais simples; as luxações obrigam a redução precoce, com reposicionamentos adequados e contidos, nas primeiras 6 horas. O tempo decorrido entre o traumatismo e o seu tratamento, ou os primeiros cuidados que merecem, é relevante no sucesso biológico e na onerosidade global da reabilitação.

Fracturas coronárias complicadas e corono-radiculares

As fracturas coronárias complicadas, bem como as corono-radiculares, e mesmo algumas radiculares, não são situações urgentes, embora seja aconselhável a observação por estomatologia dentro de 24 horas. Apesar dos quadros dolorosos e da necessidade de abstenção alimentar, são lesões menores, sem risco acrescido.

Avulsão

A avulsão representa, talvez, a situação mais desafiante, pela necessidade de decisões imediatas. A sua abordagem tem variado muito, nos últimos anos, e continua a não ser consensual: discute-se a responsabilização médico-legal por atraso de reimplante, e a ética de se proceder a reimplante com elevada probabilidade de insucesso, apenas em nome da expectativa dos pais.

O factor primordial é o tempo extra-alveolar, sobretudo o tempo extra-alveolar em meio seco, não pela necrose da polpa, mas pela morte do ligamento periodontal, considerada inevitável a partir dos 60 minutos. Um tempo extra-alveolar rondando os 20 minutos associa-se a sucesso biológico satisfatório, razão para se entender, aliás, que o reimplante ideal é o que é imediatamente conduzido pelo próprio, ou por socorrista presente (o professor, a mãe). (ver atrás – Actuação prioritária)

São dois os tipos de evolução periodontal mais frequentes, após um reimplante.

Um constitui a chamada reabsorção externa inflamatória com desaparecimento progressivo da raiz, de origem osteoclástica, com subsequente perda dentária.

Outro é a reabsorção de substituição – vulgo, anquilose – traduzindo-se no desaparecimento progressivo do próprio ligamento periodontal, com fusão entre dente e osso que acaba por tomar, substituir, o próprio dente. Tal implica, na criança em crescimento, paragem do crescimento da apófise alveolar, conduzindo a sequela importante.*

* Com efeito, existe como que uma frente osteoclástica que se encarrega da reabsorção/desaparecimento do dente, imediatamente seguida por uma fronteira osteoblástica em que os tecidos dentários são substituídos por osso (daí reabsorção de substituição). Num momento intermédio no processo, é impossível dizer, com base na radiologia, onde acaba dente e começa osso. Esse neo-osso tem, porém, comportamento distinto do osso são e não cresce. Daí a possibilidade de ulterior deformidade.

A opção de reimplantar começa assim, pela necessidade de avaliar a probabilidade de cada um destes tipos de evolução, pois que a cura do periodonto, com restitutio ad integrum, parece ser uma raridade e a reabsorção superficial pouco frequente. Há que verificar também:

  1. se a extremidade da raiz se encontra já completamente formada ou não, definindo-se a probabilidade de sobrevivência da polpa ou a necessidade de indução do encerramento radicular, no futuro, pelo recurso ao Ca (HO)2 e consequente aumento da probabilidade de fractura radicular e insucesso;
  2. igualmente se se trata de dente são, a reimplantar em alvéolo são e arcada não apinhada;
  3. há que ter em conta ainda a acessibilidade geográfica e social, e a possibilidade de deslocação, por exemplo, a centro onde possa ser feito o seguimento adequado.

Reitera-se a antibioticoterapia profiláctica, idealmente com beta-lactâmicos, nas doses habituais; a antibioticoterapia é facto relevante no sucesso e deve ser promovida no serviço de urgência. (ver atrás – Actuação prioritária)

Se o dente estiver em meio seco, como geralmente acontece, deve ser transferido para salino ou leite, manipulado pela coroa, nunca pela raiz, evitando lesão acrescida das células periodontais.

Reforçando o que foi dito antes, na ausência de acesso rápido a estomatologista, deve ser reimplantado imediatamente, se a menos de 20 minutos do acidente. Se o ápex estiver aberto, justifica-se um banho prévio, de 5 minutos, num soluto de 1 grama de doxiciclina para 20 ml de água destilada.

Se o tempo extra-alveolar for superior a 1 hora, é desejável submeter a raiz ao ácido cítrico e a um fluoreto, minorando os riscos de reabsorção externa inflamatória, e reimplantar, mesmo que o reposicionamento conseguido não seja o ideal.

A dificuldade na adaptação ao alvéolo pode resolver-se através de irrigação com seringa de soro (remoção de coágulos), ou suavemente empurrando, com instrumento cirúrgico, as tábuas fracturadas. Não deve exercer-se pressão importante com o dente.

Na indisponibilidade de um método ortopédico de contenção, a pressão dos lábios, ajudada por um dedo ou pela interposição de um objecto, podem ser de grande utilidade.

Apesar da necessidade de boa gestão do tempo, a tendência internacional é obter-se consentimento informado, seja para reimplantar, seja para não reimplantar.

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OCLUSÃO E ASPECTOS DA RELAÇÃO MOLAR E DA RELAÇÃO INCISIVA

Oclusão dentária e suas implicações

O conceito de oclusão em Estomatologia refere-se à situação de contacto entre os dentes dos maxilares superiores e inferiores quando os mesmos se aproximam. Má-oclusão ou disoclusão é a relação defeituosa ou irregular da oclusão dentária.

A “perda” de um dente relacionável com situações como esfoliação precoce relativamente à rizogénese do definitivo sucedâneo, avulsão traumática, extracção ou grande diminuição de diâmetro por cárie, acarreta a não preservação do respectivo espaço na arcada. O espaço disponibilizado, se não for alvo de “manutenção” terapêutica, será progressivamente ocupado, sobretudo pelo avanço real ou pela inclinação anterior dos dentes imediatamente posteriores.

Mais importantes ainda, nos 4 anos que decorrem sem erupções dentárias, são o crescimento progressivo dos perímetros ósseos das arcadas, com aumento de dimensão dos espaços interdentários ou diastemas, e o crescimento da mandíbula.

A mandíbula vai assumindo uma posição relativamente mais anterior, justificando que, pelos 5 anos, os bordos dos incisivos se relacionem topo-a-topo, numa relação de oclusão completamente distinta da dos incisivos definitivos, cujo trespasse horizontal e vertical é conhecido. (ver Glossário)

A dimensão vertical vai diminuindo, dado o uso dos decíduos, de forma mais ou menos precoce, exista ou não bruxismo (ou bricomania). A maior dimensão e o melhor posicionamento mandibulares permitem compreender o desaparecimento da carinha de anjo, para alguns incorrectamente face de querubim, de mento exíguo e tão conotadamente infantil.

É frequente o desagrado dos pais relativamente aos diastemas. Cabe explicar que se trata de fenómeno natural e desejável, numa “casa que se prepara para novas visitas”, os dentes definitivos anteriores, de muito maiores diâmetros transversos.

Tais diastemas beneficiam de facto, os blocos incisivos e, destes, particularmente o superior, pois o somatório dos diâmetros transversos de 5.1+5.2+6.1+6.2 ronda 23,4 mm, menos 8,2 mm que o somatório dos diâmetros transversos de 1.1+1.2+2.1+2.2; por outro lado, o somatório dos diâmetros transversos de 7.1+7.2+8.1+8.2 ronda 17,4 mm, menos 5,6 mm que o somatório dos diâmetros transversos de 3.1+3.2+4.1+4.2.

Entre caninos decíduos e vindouros primeiros molares definitivos, os constrangimentos de espaço não são tão importantes como entre caninos. Os segmentos posteriores das arcadas têm, até, lucro de espaço, na substituição dos segundos molares decíduos pelos segundos pré-molares, de diâmetros mésio-distais aproximadamente 2 mm inferiores.

De referir, no entanto, que não deixa de ser relevante o espaço disponível intra-arcadas, ou melhor, a discrepância entre espaço disponível e espaço necessário para o alinhamento dentário desejável.

Torna-se, assim, óbvio que a ausência de diastemas, na dentição decídua, torne mais provável uma dentição definitiva dita “apinhada”, tal como uma dentição decídua apinhada quase certamente anunciará um apinhamento dos definitivos, caso não se intervenha na criança.

Cabe ao pediatra conhecer e compreender as fases do crescimento e desenvolvimento maxilo-faciais e dentários, para atempado encaminhamento ao estomatologista, prevenindo o mais comum dos efeitos de oclusão, o chamado apinhamento (dentes desalinhados e amontoados).

Aspectos da relação molar

Bem observadas no plano transversal, as cúspides palatinas dos primeiros molares superiores definitivos (“6ºs superiores”) e as cúspides vestibulares dos primeiros molares inferiores definitivos (“6ºs inferiores”) ocluem nas fossas centrais dos oponentes.

As variantes mordida cruzada e a mordida em tesoura, unilaterais ou bilaterais, isto é, simétricas ou assimétricas, paradigmas de má-oclusão (plano transversal) e bem sugestivas de desarmonia esquelética, estão representadas na Figura 1 em comparação com a relação normal.

Há que lembrar que, no plano sagital, a distância entre a face distal do 6º superior e a do 6º inferior, medida no plano oclusal, tipifica a chamada relação molar (de Angle): -3 mm na Classe I, maior que 0 mm na Classe II e menor que –6 mm na Classe III. (Figura 2)

FIGURA 1. Relação molar (plano transversal)

FIGURA 2. Relação molar (plano sagital)

Aspectos da relação incisiva

Os incisivos relacionam-se de tal forma que os bordos incisais dos inferiores contactam as superfícies palatinas dos superiores, segundo um trespasse horizontal (overjet) de aproximadamente 2,5 mm, e um trespasse vertical (overbite) de igual valor. (Figura 3)

O grande aumento do overjet, tantas vezes associado às Classes II, que a população escolar prefere designar por dentes de coelho, constitui frequente motivo de consulta. Mais preocupante é o grande aumento de incidência dos traumatismos alvéolo-dentários, dado o bloco incisivo superior ser o 2º pára-choques da face.

As anomalias verticais, do extremo da mordida aberta ao da mordida profunda, são menos frequentes e parecem sensibilizar menos os pais.

A mordida aberta contribui para arrastar até fase muito tardia o vício de sucção, associada a protração/interposição labial da língua. (Figura 4)

FIGURA 3. Relação incisiva (overjet e overbite) e perspectiva vertical

FIGURA 4. Relação incisiva (tipos de anomalias verticais)

Pode exemplificar-se com a sucção do polegar, em tempo precoce da vida, ou da chupeta com base nos diagramas de Moyers. (Figura 5-A)

Compreende-se que a inclinação labial dos incisivos superiores será tanto maior quanto mais profunda, no palato, for a colocação do dedo e quanto durante mais tempo a força se exercer; e que a inclinação lingual dos incisivos inferiores tenderá, também, a ser proporcional ao tempo durante o qual a pressão lhes é transmitida.

A continuidade da pressão do polegar, no palato, pode tornar-se igualmente indesejável para a reabsorção do osso do pavimento nasal (Capítulo 274 – Figura 4), contribuindo para o aumento da profundidade do palato, por compromisso do crescimento vertical. Outra consequência é a protração da língua, na deglutição, alongando o tempo de deglutição infantil. Surge, então, uma sequência de repercussões (disfunção, má oclusão e dismorfia) que só melhora com a cessação do hábito. (Figura 5-B)

FIGURA 5. Repercussão do “dedo na boca” e da projecção anterior da língua na relação incisiva

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CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO MAXILO-FACIAL

Importância do problema

A Estomatologia Pediátrica tem desafios próprios. Debruçando-se sobre estruturas em mudança permanente – as orais e maxilo-faciais – uma comunicação entre estomatologistas, pediatras e clínicos gerais é desejável.

De um modo geral, os problemas dos primeiros meses de vida raras vezes implicam observação pelo estomatologista, exceptuando as situações acompanhadas de defeitos congénitos.

Por outro lado, as alterações do alinhamento dos primeiros dentes, dúvidas sobre a profundidade adequada do palato ou sobre um prognatismo em evolução, as anomalias da mucosa oral, os traumatismos alvéolo-dentários e as tumefacções faciais constituem motivo crescente de referenciação.

Tem, assim, vindo a delinear-se na prática hospitalar um outro espectro de necessidades que se vai modificando e alinhando, também sob a influência de pais mais informados. Mais responsabilidades vão sendo atribuídas ao pediatra encarregado de, em tempo útil, triar e reconhecer a necessidade de cuidados tecnicamente fora da sua alçada e outrora não disponíveis.

As considerações que se seguem limitam-se a aspectos considerados basilares e de utilidade no desempenho de médicos prestando cuidados a jovens e crianças. Sugere-se ao leitor a consulta do glossário incluído antes da bibliografia.

Crescimento, desenvolvimento, harmonia e desarmonia maxilo-facial

O crescimento e o desenvolvimento crânio-maxilo-facial traduzem uma relação dinâmica, complexa, de interacções entre segmentos que se influenciam em sequência ou cascata. O crescimento facial tem paralelismo com o do resto do corpo, considerando-se que se completa na população caucasiana pelos 15 anos no sexo feminino, e pelos 16 no sexo masculino. A face começa por ter pequena dimensão vertical no recém-nascido de termo, pelas suas arcadas sem dentes, com a altura das órbitas praticamente sobreponível ao somatório das alturas do maxilar superior e mandíbula.

O crânio grande e o pescoço curto são tipicamente desarmónicos, com bochechas salientes de gordura subcutânea. Pelos 2 anos, no entanto, é já acessível o conjunto das relações crânio-faciais que tenderão a manter-se ao longo da vida.

Terço médio da face

Durante a infância, assiste-se ao crescimento do terço médio da face, para baixo e para a frente, bem como à pneumatização dos seios maxilares e etmoidal. O maxilar superior cresce sobretudo como resultado do crescimento real dos ossos cranianos em que se apoia (crescimento passivo); mas, depois de encerradas as sincondroses, o crescimento passivo é cada vez menos importante. A partir dos 7 anos, verifica-se o aumento dimensional ântero-posterior (crescimento activo) influenciado pelo desenvolvimento das apófises alveolares e erupção dos dentes definitivos.

O crescimento transversal do maxilar superior, dependendo sobretudo da sutura médio-palatina, sofre aceleração durante a puberdade. O aumento dimensional na extremidade posterior da sutura ronda 3 vezes o que se verifica na sua porção anterior, permitindo que, na fase final os molares superiores se encontrem na posição mais para fora e mais para a frente do que no início.

O crescimento vertical do maxilar superior comporta também aspectos passivos e aspectos activos. Enquanto as apófises alveolares crescem, assiste-se a reabsorção óssea significativa do pavimento nasal que vai adquirindo uma posição cada vez mais para baixo, acabando por minimizar o crescimento alveolar real; esta reabsorção é mais anterior que posterior, guiando a tendência de progresso ântero-inferior do maxilar superior. (Figura 1)

Terço inferior da face

A mandíbula, cujo desenvolvimento decorre por influência primordialmente genética, aumenta o seu comprimento quase só por crescimento póstero-superior do côndilo e do ramo. É tradicional designar por horário ou anti-horário o crescimento sagital da mandíbula. (Figura 2)

No plano sagital, a mandíbula cresce para a frente, mas pode crescer para a frente e para baixo (sentido horário) ou para a frente e para cima (sentido anti-horário) (Figura 3). Tentar alterar a informação genética que determina o crescimento num ou noutro sentido, através de “aparelhos” não induz nenhum tipo de correcção. Quer a altura do ramo, quer o comprimento do corpo, podem aumentar 1,5 mm por ano.

Se considerarmos a mandíbula como um V horizontal, de vértice anterior, a base do V representa o diâmetro intercondiliano posterior que, assim, fica indirectamente aumentado, traduzindo o crescimento transversal.

FIGURA 1. Crescimento do maxilar superior

FIGURA 2. Crescimento do maxilar inferior

FIGURA 3. Padrões de crescimento da mandíbula

Biótipo e padrões

O crescimento maxilo-facial é idealmente harmónico e simétrico, mas passível de influência externa, desejável ou indesejável. É exemplo típico de influência desejável a intervenção terapêutica no âmbito da ortodôncia e da ortopedia dento-facial.

A inspecção, idealmente registada por fotografia, desde logo sugere o maior ou menor “incumprimento” da regra dos três terços, como orientadora de harmonia vertical, bem como – no plano transversal – regra da simetria. (Figura 4)

O sentido da harmonia (determinada geneticamente) tem a ver com proporções, dimensões, e também com relações de posição, quantificadas em estudos cefalométricos, elaborados sobre fotografias e radiografias craniofaciais, de frente e de perfil, segundo normas antropométricas, definidas por sexo, grupo etário, etnia, etc..

A direcção predominante do crescimento determina os biótipos faciais, nas suas vertentes esquelética, muscular e oclusal. O reconhecimento de um dos biótipos constitui alerta para a detecção de anomalias mais frequentemente associadas.

  1. O Mesofacial tem mais provável equilíbrio, isto é, boa relação maxilo-mandibular, com perfil cutâneo harmónico e plano com arcadas dentárias de forma e dimensões compatíveis.
  2. O Dolicofacial tende à face longa e perfil convexo, crescimento vertical predominante. Tem por paradigma a face dita adenoideia, do respirador bucal de lábios que encerram sob tensão, com contractura intensa dos músculos do mento.
  3. O Braquifacial tem face larga, com mandíbula quadrada e músculos potentes; as arcadas dentárias são amplas, muitas vezes com importantes diastemas (espaços interdentários).

FIGURA 4. Crescimento maxilo-facial

Utilizando terminologia de Angle (considerando as chamadas classes esqueléticas I, II e III), pode estabelecer-se a seguinte correspondência com base nos padrões esqueléticos de relação maxilo-mandibular:

  • Classe I esquelética traduzindo harmonia com biótipo mesofacial;
  • Classe II esquelética traduzindo “avanço” relativo do maxilar superior com biótipo dolicofacial;
  • Classe III esquelética traduzindo “avanço” relativo da mandíbula com biótipo braquifacial. (Figura 5)

Estas noções básicas anátomo-fisiológicas têm implicações clínicas importantes, designadamente tendo em consideração eventual actuação correctiva ou cirúrgica reconstrutiva.

Anatomia dentária fundamental

Para melhor compreensão dos problemas patológicos relacionados com o dente e as estruturas maxilares em que está implantado, a Figura 6 resume os respectivos componentes básicos com especial interesse na abordagem das chamadas infecções odontogénicas.

A este propósito cabe recordar as seguintes noções:

  • Polpa dentária – tecido conjuntivo laxo, avermelhado, bem vascularizado, com feixes nervosos, situado na cavidade central de um dente. Confere a sensibilidade a estes e assegura as trocas nutritivas. Está envolvida por uma substância dura (dentina ou marfim), coberta por cimento ao nível da raiz, e por esmalte ao nível da coroa. Polpite ou pulpite é a inflamação da referida polpa;
  • Alvéolo dentário – cavidade situada em cada um dos maxilares, na qual se encontra implantado o dente fixado pelo periodonto (ligamento periodontal ou alvéolo-dentário). Alveolite dentária é a inflamação, geralmente complicada por necrose, da parede de um alvéolo dentário;
  • Coroa dentária – parte do dente que se apresenta saliente no bordo alveolar. Está ligada à raiz, inserida no alvéolo pelo colo;
  • Raiz dentária ou apex – parte do dente pela qual está implantado (não visível).

Erupção dentária e terminologia

A erupção de um dente inicia-se quando, completada a coroa, a raiz atingiu aproximadamente ¾ do seu todo. Esta dimensão parece ser mais relevante que a idade cronológica ou esquelética, a velocidade de crescimento ou a maturidade psicomotora.

A erupção dos primeiros dentes, decíduos, é habitualmente simétrica, iniciando-se pelos incisivos centrais inferiores, seguidos pelos oponentes do maxilar superior e assim alternadamente, no sentido ântero-posterior (apesar de a erupção do primeiro molar surgir antes do canino), entre os 6 e os 24 meses de idade, com variações que podem atingir 1 ano. É mais desejável a simetria do que qualquer calendário previsto. A regularidade desta sequência sugere que a mesma decorre sob determinação genética.

Pode acompanhar-se de tumefacção e rubor das zonas implicadas, de desconforto ou dor, sialorreia, rubor facial ou exantema e diarreia.

FIGURA 5. Biótipos faciais. Oclusão e relação molar

FIGURA 6. Anatomia do dente e estruturas envolventes (consultar texto)

Raras vezes se assiste a obstruções eruptivas, na ausência de patologia maxilar significativa ou dismorfia franca, dada a inexistência de predecessores ocupando espaços indevidos nas arcadas. Não pode, o mesmo, afirmar-se relativamente à dentição definitiva. Exceptuam-se os dentes surgidos no feto/recém-nascido, de “calendário inédito” e merecedores de melhor avaliação pelo especialista.

O saco de tecido conjuntivo ou folículo, dentro do qual o germe dentário se desenvolve, pode não sofrer rotura espontânea, avolumando-se na arcada como verdadeiro quisto folicular ou dentígero. É habitualmente designado por quisto de erupção ou por hematoma de erupção, em função do conteúdo e, salvo quadro infeccioso ou dimensão exagerada, raras vezes merece correcção cirúrgica.

Os dentes decíduos são em número de 20: cinco por quadrante, simetricamente distribuídos, nos planos vertical e transversal, no total de 8 incisivos, 4 caninos e 8 molares.

Os dentes definitivos são 32: oito por quadrante, com as mesmas características de distribuição, no total de 8 incisivos, 4 caninos, 8 pré-molares e 12 molares. Só a dentição definitiva possui pré-molares que substituem os molares de leite, pois os molares definitivos surgem de novo, imediatamente atrás dos últimos molares decíduos.

Se é lícito designá-los segundo critérios anatómicos, por exemplo “incisivo decíduo central superior esquerdo” “segundo molar definitivo inferior direito”, é preferível a designação numérica, internacional e mais simples. (Figura 7)

FIGURA 7. Diagrama dentário

Considera-se, em sentido horário, na dentição definitiva, a arcada dentária superior dividida em hemiarcada 1 (hemimaxilar direito) e hemiarcada 2 (hemimaxilar esquerdo) e a arcada dentária inferior dividida em hemiarcada 3 (hemimandíbula esquerda) e hemiarcada 4 (hemimandíbula direita); assim, fala-se de 1º, 2º, 3º ou 4º quadrantes, constituindo estes os algarismos da esquerda, conforme o diagrama. Seguem-se-lhes, separados por um ponto, o número de ordem na hemiarcada, contados a partir das linhas médias ou interincisivas. O mesmo se diz na dentição decídua, mas, neste caso, as hemiarcadas designam-se por 5, 6, 7 e 8.

Se é mais correcto dizer-se, por exemplo de 1.1, “um ponto um”, a verdade é que, na gíria, dizemos “onze”. Ainda mais comum é referir os dentes pela sua ordem na arcada, como quando comentamos, por exemplo “os 6os deviam ter sido selados”.

Cronologia

As tabelas de cronologia eruptiva divulgadas diferem umas das outras, sendo importante explicá-las aos pais. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Cronologia eruptiva

Erupção da Dentição Decídua (mês)
Incisivos Centrais6 – 9
Incisivos Laterais7 – 10
Caninos16 – 20
Primeiro Molar12 – 16
Segundo Molar20 – 30
Erupção da Dentição Definitiva (ano) Maxilar Superior Maxilar Inferior
1.1 e 2.17 – 83.1 e 4.16 – 7
1.2 e 2.28 – 93.2 e 4.27 – 8
1.3 e 2.311 – 123.3 e 4.39 – 11
1.4 e 2.410 – 113.4 e 4.410 – 12
1.5 e 2.510 – 123.5 e 4.511 – 12
1.6 e 2.66 – 73.6 e 4.66 – 7
1.7 e 2.712 – 133.7 e 4.711 – 13
1.8 e 2.817 – 253.8 e 4.817 – 25

Torna-se evidente que decorrem 4 anos sem erupções, entre a dos últimos molares decíduos e a dos primeiros dentes definitivos, apesar da importância dos fenómenos que se vão verificando dentro dos maxilares.

No entanto, neste período vão-se desenvolvendo concomitantemente os germes dos dentes definitivos, por baixo ou atrás dos dentes de leite, enquanto estes sofrem progressiva reabsorção radicular (rizálise).

Com efeito, as raízes dos dentes de leite vão sendo reabsorvidas, “desaparecendo”, sendo o espaço que deixam sempre ocupado pelo dente definitivo em desenvolvimento que se vai aproximando cada vez mais da superfície. Quando o dente de leite já não tem raiz, “cai” e o definitivo “rompe”. Como o dente de leite vai seguindo o espaço que “lhe dão” as raízes do dente de leite, não se “desorienta” na direcção da erupção, acompanhando a posição e direcção do dente definitivo.

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TRAUMATISMOS ÓCULO-ORBITÁRIOS

Importância do problema e sistematização

Os traumatismos óculo-orbitários constituem uma das principais causas não congénitas de cegueira monocular na idade pediátrica. Com efeito, pela sua frequência, gravidade, dificuldade de diagnóstico e de terapêutica, as suas consequências podem ser dramáticas, salientando-se entre estas a ambliopia. De referir que tal patologia pode surgir desde fase muito precoce da vida, já durante o parto, com manifestações imediatas.

As lesões traumáticas em análise podem afectar isoladamente ou em conjunto:

  1. as pálpebras e vias lacrimais (equimoses e lacerações palpebrais);
  2. o globo ocular (traumatismos fechados, abertos e por agentes físicos e químicos);
  3. a órbita e seu conteúdo (traumatismos directos e indirectos).

Na maioria das situações há indicação de encaminhamento urgente para o oftalmologista, sendo desejável o contacto prévio perante qualquer dúvida; efectivamente, o tratamento correcto duma determinada lesão inicial permitirá, em princípio, evitar futuras sequelas funcionais. Trata-se de situações com indicação de assistência hospitalar no serviço de urgência.

Neste capítulo são também abordadas as lesões traumáticas óculo-orbitárias no contexto de síndroma da criança maltratada.

Actuação prática

Salientando-se que a maioria das situações a tratar é confinável à Oftalmologia, importa conhecer os princípios gerais da actuação:

  1. Anamnese pormenorizada inquirindo sobre as condições do acidente;
  2. Exame objectivo implicando descrição rigorosa das lesões (designadamente estado das feridas, sua profundidade, presença ou não de corpos estranhos, medição da acuidade visual, avaliação da musculatura extrínseca e intrínseca, e presença ou ausência de enfisema subcutâneo;
  3. Exame neurorradiológico, o qual deve incluir exames de imagem por radiografia simples convencional, TAC e/ou RM.

Traumatismos palpebrais

As equimoses palpebrais são infiltrações hemáticas das pálpebras, muito frequentes nos traumatismos oculares, podendo estar associadas a fracturas da órbita. Por vezes é necessário o recurso a exames complementares imagiológicos para um diagnóstico correcto.

As lacerações palpebrais são lesões resultantes de rasgamento da pele até ao tecido subcutâneo. (Figura 1)

FIGURA 1. Laceração palpebral

A detecção de tais lesões implica a inspecção cuidadosa dos canalículos lacrimais, da profundidade da ferida, a pesquisa de eventuais corpos estranhos e a verificação do funcionamento do músculo levantador da pálpebra superior. Por vezes há que recorrer a anestesia geral.

Traumatismos oculares propriamente ditos

No âmbito deste tópico são considerados, respectivamente, traumatismos fechados, abertos, e lesões por agentes físicos e químicos.

Traumatismos oculares fechados

Nestas situações não há solução de continuidade das paredes do globo ocular. Para fins didácticos de sistematização são considerados, respectivamente, traumatismos do segmento anterior e do segmento posterior.

Traumatismos do segmento anterior

A hemorragia subconjuntival em idade pediátrica, ao contrário do que acontece no adulto, raramente é espontânea; em regra a origem é traumática. (Figura 2)

A erosão da córnea ou perda de substância superficial do epitélio corneano tem como consequência a exposição da camada basal e dos nervos corneanos superficiais.

FIGURA 2. Hemorragia subconjuntival

De tal tipo de lesão no contexto de história de traumatismo, resulta dor, olho vermelho, lacrimejo e, por vezes, baixa de acuidade visual de aparecimento brusco. A aplicação de gotas de colírio anestésico e fluoresceína permite fazer o diagnóstico e orientar a terapêutica.

O corpo estranho intracorneano causa frequentemente dor ocular, olho vermelho e baixa de acuidade visual, principalmente quando se trata de corpos estranhos metálicos de localização central extraídos tardiamente.

A corectopia ou deslocação da íris pode acompanhar-se doutras lesões traumáticas; na forma congénita é rara.

O hifema (hemorragia da câmara anterior) é uma das complicações mais frequentes que surge no contexto de compressão violenta sem solução de continuidade (contusão) do globo ocular. O hifema espontâneo pode ser uma manifestação doutras doenças (retinoblastoma, alterações da coagulação, leucemia, xantogranuloma juvenil etc.); quando abundante, não permite fazer o exame dos fundos oculares. Nestes casos deve proceder-se à avaliação ecográfica do cristalino, do vítreo e da retina. Geralmente verifica-se reabsorção em poucos dias.

A catarata traumática pode aparecer horas, dias, ou meses depois do traumatismo. Perante uma situação de catarata monocular, principalmente na segunda infância, deve efectivamente inquirir-se sobre a eventualidade de episódio traumático anterior. O tratamento das cataratas traumáticas é cirúrgico.

A luxação ou subluxação do cristalino constitui outro exemplo de lesão traumática do segmento anterior; a sua verificação na circunstância de traumatismo mínimo implica o diagnóstico diferencial com outro tipo de patologia de base (por ex. síndroma de Weill-Marchesani, de Marfan, homocistinémia ou miopia grave).

À forma congénita de deslocação do cristalino dá-se o nome de ectopia do cristalino (ectopia lentis).

A luxação anterior do cristalino é mal tolerada, acompanhando-se de dores e de diminuição da acuidade visual. A solução é cirúrgica.

A luxação posterior do cristalino é mais tolerada, mas provoca sempre uma baixa de acuidade visual que deve ser corrigida com brevidade para evitar a ambliopia. A solução, como regra geral, é cirúrgica.

A subluxação do cristalino requer apenas vigilância e correcção da acuidade visual quando é pouco acentuada. Se for muito pronunciada e com grave repercussão na acuidade visual, a solução é também cirúrgica.

Traumatismos do segmento posterior

A hemorragia do vítreo (sangue na câmara vítrea) é uma complicação frequente dos traumatismos do segmento posterior. Se pouco abundante, e permitir a observação dos fundos oculares, requer apenas vigilância. Se for muito abundante e não permitir fundoscopia, o seguimento é feito também com estudo ecográfico para avaliar o estado da retina ou a existência de possível corpo estranho. Na presença de lesões retinianas ou da não reabsorção da hemorragia, é necessário intervir cirurgicamente.

O edema retiniano, geralmente transitório, resulta de traumatismo directo do globo ocular. A visão pode estar afectada se a localização for macular.

A rotura da coroideia resulta, em geral, de traumatismo directo ântero-posterior. Pode ser compatível com boa acuidade visual se a mácula não estiver afectada.

O chamado buraco macular pode ser observado a seguir a um traumatismo (logo, ou semanas mais tarde) como complicação de edema retiniano, hemorragia sub-retiniana ou rotura da coroideia.

A retinopatia de Purtscher, também conhecida por angiopatia retiniana traumática, geralmente bilateral, é secundária a traumatismo craniano e torácico graves, com hiperpressão no território da veia cava superior. Manifesta-se por hemorragias retinianas e pré-retinianas abundantes, exsudados algodonosos retinianos e peripapilares, e por edema da mácula.

O descolamento da retina em idade pediátrica tem como primeira causa o traumatismo. A solução terapêutica é cirúrgica.

A neuropatia óptica pós-traumática resulta de compressão, ou mesmo secção anatómica, do nervo óptico. A consequência é a amaurose ou a diminuição muito acentuada da visão.

Traumatismos oculares abertos

Nestas situações há solução de continuidade das paredes do globo ocular. Como exemplos paradigmáticos consideram-se as feridas do globo ocular e os corpos estranhos.

As feridas do globo ocular, de acordo com a respectiva localização, podem ser corneanas, esclerais e córneo-esclerais. Requerem reparação cirúrgica urgente, acompanhada de tratamento anti-inflamatório e anti-infeccioso.

Os corpos estranhos intra-oculares requerem um estudo pormenorizado para se proceder à correcta localização e à extracção.

Lesões por agentes químicos e físicos

As lesões por agentes físicos são pouco frequentes na criança. O tratamento por radiações ionizantes em certos casos de tumor (retinoblastoma) pode provocar cataratas ou lesões isquémicas da retina. O traumatismo solar por fixação do sol, quando se observa um eclipse, provoca lesões maculares foveais.

As lesões por agentes químicos são mais frequentes provocando queimaduras, principalmente corneanas e conjuntivais. A gravidade depende do tipo de agente, da sua quantidade e do tempo de permanência no fundo de saco conjuntival.

Traumatismos da órbita

Nesta alínea são considerados traumatismos directos e traumatismos indirectos.

Os traumatismos directos são responsáveis por fracturas do rebordo orbitário, podendo atingir os ossos contíguos, incluindo as paredes da órbita. Podem fazer parte de um quadro traumático mais grave, com compromisso concomitante das pálpebras, vias lacrimais, globo ocular e crânio.

Os traumatismos indirectos atingem o conteúdo orbitário sem atingir o rebordo. No momento do traumatismo, o conteúdo da órbita não compressível transmite a onda de choque às paredes, sendo que as zonas de menor resistência podem sofrer fracturas (fracturas por estalido).

Os traumatismos que mais frequentemente são observados em Oftalmologia são os que atingem o pavimento, a parede interna e tecto da órbita; menos frequentes são os que atingem a parede externa e o vértice.

Traumatismos óculo-orbitários na criança maltratada

A prática de maus tratos é, infelizmente, um acontecimento frequente, por vezes mortal e sempre com sequelas físicas e psíquicas importantes.

Os sinais oftalmológicos traumáticos no contexto referido são diferentes conforme se trata de um lactente ou de uma criança com mais idade.

No lactente descreve-se uma síndroma especialmente grave, a síndroma da criança sacudida. Nesta síndroma a escassez de sinais traumáticos externos contrasta com a gravidade do caso (coma e crises convulsivas): a criança, chorando continuamente, é sacudida várias vezes e com violência pelo agressor. Sendo a cabeça nesta idade “suportada” com dificuldade (certa instabilidade cefálica compatível com a idade do lactente), a mesma “é projectada a cada sacudidela”.

Na ausência de anamnese, o diagnóstico é feito com base nos sinais neurorradiológicos (hematoma subdural, por vezes bilateral e edema cerebral) e oftalmológicos (hemorragias retinianas, pré-retinianas e vítreas graves).

Se a criança sobreviver, o prognóstico é grave pelas lesões retinianas, do nervo óptico e cerebrais provocadas pelo traumatismo.

Nas crianças maiores é frequente encontrar hemorragias retinianas, lesões do couro cabeludo, corpo, hematomas ou edema periorbitário, cicatrizes corneanas, hifema, desinserção da íris, luxação do cristalino, cataratas, e descolamento de retina, por vezes bilateral.

Nestes casos, a criança deve ser hospitalizada em serviço de pediatria para estudo clínico e imagiológico pormenorizado, e tratada por uma equipa multidisciplinar.

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CATARATA

Definição e importância do problema

A catarata é definida como opacidade do cristalino. A repercussão na visão depende essencialmente de vários factores como intensidade da referida opacidade, sua extensão e uni ou bilateralidade.

Tal anomalia, contribuindo significativamente para diminuir o estímulo visual na primeira infância, poderá interferir no desenvolvimento da área do córtex cerebral responsável pela visão (área occipital), dando origem a sequelas, tais como ambliopia. Por outro lado, sendo detectada em fase precoce da vida, existe a possibilidade de intervenção com bons resultados.

A catarata constitui uma das afecções do sistema ocular mais frequentes em idade pediátrica, (entre 2 a 4 por 10.000 recém-nascidos), por sua vez explicando cerca de 15% dos casos de cegueira nos países ditos desenvolvidos.

As cataratas (uni ou bilaterais) podem também estar associadas a outras afecções oculares ou sistémicas, ser congénitas (evidentes na data do nascimento ou pouco tempo depois) ou adquiridas na vida extra-uterina. (ver glossário no fim do capítulo)

Etiopatogénese

Existe uma multiplicidade de factores etiológicos que poderão levar à opacidade do cristalino; descrevem-se como factores mais frequentes os genéticos (cerca de 25-35% dos casos segundo várias estatísticas, sendo mais frequente a hereditariedade de tipo autossómico dominante), infecções fetais (cerca de 40% dos casos), doenças metabólicas (cerca de 10%). Salienta-se que em cerca de 1/3 dos casos nenhum factor etiológico é, na fase actual dos conhecimentos, identificável (formas ditas idiopáticas). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Cataratas em idade pediátrica e patologia associada

Doenças metabólicas (galactosémia, doença de Niemann-Pick, doença de Wilson, abetalipoproteinémia, homocistinémia, etc.)
Infecções fetais (grupo TORCHS-toxoplamose, rubéola, citomegalovírus, herpes, sífilis, outros)
Doenças endócrinas (diabetes mellitus, hipoparatiroidismo, etc.)
Doenças genéticas (síndromas como trissomia, síndroma de Alport, Crouzon, Conradi, Marfan, etc.)
Associadas a outras doenças oculares (coloboma, aniridia, microftalmia, etc.)
Miscelânea (corticoterapia, radioterapia, lesões traumáticas, causa desconhecida/formas idiopáticas)

Manifestações clínicas

A manifestação clínica clássica da catarata é a leucocória (sinal de pupila “branca” ou do reflexo pupilar “branco”); refira-se, no entanto, que as manifestações podem variar, essencialmente em função da localização e intensidade da opacidade. Outros sinais são: nistagmo, fotofobia, estrabismo, sensação de alheamento ou de contacto social, já por volta dos 2-3 meses, fase em que a criança nascida de termo começa em condições normais, a seguir objectos.

A ausência do “reflexo vermelho” pode ser evidenciada por oftalmoscopia directa, a qual deverá ser realizada no âmbito dos exames de saúde durante o primeiro ano de vida pelo clínico geral ou pediatra.

Tendo em consideração que determinados casos de localização posterior são detectáveis somente por biomicroscópio com lâmpada de fenda pelo oftalmologista, qualquer suspeita face à verificação de antecedentes familiares ou doutros sinais atrás descritos, implica o encaminhamento atempado para a consulta de Oftalmologia.

Tratamento

O tratamento, da competência do oftalmologista, consiste na remoção do cristalino e ulterior correção do erro de refracção com óculos ou, em casos especiais, aplicação de lentes de contacto ou de implantação. Na actuação está implícita a necessidade de correção da ambliopia e de processo de reabilitação. Refira-se a importância do diagnóstico precoce, factor determinante do prognóstico.

Importa salientar que a reabilitação – que pode ser processo moroso – a cargo de uma equipa multidisciplinar (incluindo, designadamente pediatra/clínico geral, oftalmologista, fisiatra e técnico de oftalmologia), constitui uma vertente fundamental da actuação tendo em vista a tentativa de recuperação.

Prognóstico

O prognóstico depende dum conjunto de factores. São considerados agravantes: baixa idade da criança, baixa idade de detecção, anterior ao completo desenvolvimento visual, intensidade da opacidade, unilateralidade implicando maior dificuldade na recuperação funcional, duração e gravidade da ambliopia, associação a doença ocular ou sistémica, etc..

A precocidade do diagnóstico e da intervenção (remoção do cristalino afectado), constituem, dum modo geral, factores de bom prognóstico.

Glossário

Sendo a catarata uma anomalia do cristalino, importa definir outras anomalias do mesmo.
Ectopia > Deslocação congénita do cristalino da posição normal; sinónimo em latim: ectopia lentis.
Lenticone > Defeito congénito do cristalino que consiste na verificação de saliência central (~cone, daí o nome) anterior ou posterior. Pode estar associado a catarata.
Microsferofaquia > Conformação esferóide do cristalino, cujas dimensões são reduzidas (~microsfera). Trata-se de defeito por vezes associado a diversas síndromas (Marfan, Klinefelter, etc.).

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DOENÇAS DA RETINA

Bases anatomofisiológicas e neurodesenvolvimento

A retina, considerada um prolongamento do SNC, é a camada mais interna das três que constituem a parede de globo ocular.

A coroideia, um dos três constituintes da úvea, é uma estrutura vascular responsável por uma parcela importante do suprimento sanguíneo e nutritivo à retina.

O vítreo, estrutura transparente, propaga a luz submetida a refracção pela córnea e cristalino, transmitindo-a à retina. Posteriormente a retina continua-se pelo nervo óptico.

Quanto a aspectos histológicos, a retina pode dividir-se em duas porções: a retina neurossensorial e a camada de epitélio pigmentado. A primeira é composta por nove camadas onde se dispõem os fotorreceptores e as células relacionadas com a transmissão dos impulsos nervosos e respectivos dendritos e axónios. (Figura 1) A camada de epitélio pigmentado contacta com a coroideia. As duas porções, com origem embriológica diferente, resultam de dois folhetos diferentes de neuroectoderme, formando-se entre os mesmos um espaço subretiniano, virtual, que se une atrás (no rebordo da papila óptica) e à frente (ora serrata).

O desenvolvimento da retina inicia-se na quarta semana de gestação, com a invaginação da vesícula óptica, uma estrutura derivada do diencéfalo. Durante o quarto mês inicia-se a vascularização retiniana definitiva que substitui o sistema vascular primitivo. A vascularização retiniana definitiva, a partir da papila óptica, atinge a periferia temporal no nono mês de gestação. Numa gestação de termo, a retina já se encontra bem diferenciada, havendo completa maturação celular com excepção da mácula, centrada pela fóvea. Esta zona da retina, responsável pela visão central de alta resolução, continua a desenvolver-se atingindo a configuração adulta por volta dos 4 anos. O desenvolvimento da fóvea coincide com o crescimento dendrítico cortical e formação de sinapses.

As funções da retina são transformar a imagem óptica em sinais eléctricos, (o que é executado pelos fotorreceptores), e processar as características do mundo visual, transmitindo os sinais captados pelos fotorreceptores até ao córtex visual através do nervo óptico.

FIGURA 1. Camadas da retina: representação esquemática

Manifestações clínicas

As doenças da retina habitualmente manifestam-se por perturbações da visão, baixa da acuidade ou alteração da qualidade visual. Se na criança que já se sabe exprimir o aparecimento dos sintomas pode ser verbalizado, na criança mais pequena são os sinais ou as complicações de determinada situação patológica que podem sugerir o diagnóstico de doença retiniana. Eis algumas manifestações a realçar:

  • Diminuição da acuidade visual – Quando a criança não sabe exprimir a perda de acuidade ou não valoriza o sintoma por ser muito precoce, o comportamento pode ser sugestivo: desinteresse por objectos distantes, não reconhecimento de faces conhecidas a partir de certa distância, sinal oculodigital de Franceschetti (procura de estímulo visual pela compressão dos globos oculares), dificuldade ou atraso na
  • Alteração da qualidade visual – Traduz-se por sinais variados que podem apontar para problemas clínicos específicos:
    • Discromatopsia – Alteração da visão das cores, por anomalia dos cones ou neuropatia óptica. Pode ser congénita e não evolutiva como o daltonismo, ou adquirida e frequentemente evolutiva, devendo-se a patologia coriorretiniana ou iatrogenia medicamentosa;
    • Hemeralopia ou cegueira diurna – Diminuição da acuidade visual em condições de luz Tal alteração sugere doença degenerativa da retina (cones), podendo também dever-se a opacidade da córnea ou cristalino;
    • Nictalopia ou cegueira nocturna – Dificuldade visual em condições de baixa luminosidade. O medo extremo do escuro e a dificuldade na orientação em ambientes escurecidos podem ser os sinais reveladores. Este problema surge nas degenerescências pigmentares da retina;
    • Fotopsia – Sensações luminosas (por ~”faíscas”) produzidas por estímulos não ópticos nem luminosos, como a excitação mecânica induzida pela pressão digital no globo ocular ou a tracção do vítreo;
    • Miodesopsia – Percepção de manchas escuras (~”moscas volantes”) no campo visual que parecem flutuar com os movimentos dos Podem dever-se à presença de exsudado inflamatório ou a sangue no vítreo (hemovítreo), assim como ao descolamento retiniano, situações que projectam sombras sobre a retina;
    • Metamorfopsia – Percepção de imagem distorcida, aumentada ou diminuída. Deve-se a doença macular, associando-se habitualmente a baixa da acuidade visual.
  • Alterações campimétricas – Perda de campo visual que pode assumir várias formas, tais como: ser localizada a uma área (escotoma), generalizada, etc., consoante a quantidade e localização de fibras nervosas afectadas.
  • Leucocória – Trata-se de “pupila de cor branca” a qual pode ter várias causas; relaciona-se com opacidade da córnea, do cristalino (catarata), com patologia do segmento posterior do globo ocular (retinoblastoma, descolamento da retina de causa inflamatória, infecciosa, degenerativa, traumática, ), patologia vítreo-retiniana ou defeito congénito.
  • Estrabismo – O estrabismo pode ser a única manifestação de doença retiniana; assim, qualquer criança estrábica deve ser sempre avaliada e sujeita a A baixa de visão traduz-se em dificuldade na fixação e consequente desvio do olho.
  • Nistagmo – A sucessão de movimentos rítmicos, involuntários e conjugados dos globos oculares, com alternância de oscilações lentas e rápidas pode ser uni ou bilateral. Define-se, convencionalmente, pelo sentido da oscilação rápida e pela sua direcção: horizontal, vertical, rotatório, multidireccional ou misto. Constitui sinal de lesões do aparelho vestibular ou das vias nervosas centrais ou periféricas; pode ser provocado por certas posições. Quando de origem retiniana ocorre por incapacidade de fixação associada a patologia macular.

Principais doenças retinianas

Em termos semiológicos as doenças retinianas podem dividir-se em dois grupos: as doenças maculares e as doenças da periferia retiniana. Recorda-se que a mácula é a região da retina que contribui primordialmente para a visão central, fotópica e de alta resolução.

As doenças maculares caracterizam-se por diminuição da acuidade visual, metamorfopsia, fotofobia, hemeralopia e alterações campimétricas centrais (escotoma central). A periferia retiniana é responsável pela visão periférica, escotópica e de orientação espacial, pelo que as afecções periféricas se associam à perturbação da referida visão.

A avaliação objectiva das doenças retinianas compreende a medição da acuidade visual (acuidade de detecção medida com pequenos objectos, acuidade de padrões pelo olhar preferencial ou pela resolução de linhas de orientação, acuidade de reconhecimento com testes de optótipos e acuidade de leitura), determinação da sensibilidade ao contraste (capacidade de ver detalhes em níveis baixos de contraste), registo dos campos visuais e avaliação da visão cromática. Completa-se pela visualização directa da retina (oftalmoscopia directa e indirecta), habitualmente com a pupila dilatada farmacologicamente. Frequentemente é necessário recorrer a outros exames complementares como a retinografia, a angiografia fluoresceínica, a ecografia ocular, a tomografia de coerência óptica e a electrofisiologia (electrorretinograma, electroculograma e potenciais evocados visuais).

São referidos a seguir problemas clínicos de etiopatogénese diversa associados a doença retiniana, chamando-se especial atenção para a retinopatia da prematuridade e para o retinoblastoma.

Anomalias congénitas

As anomalias congénitas da retina e nervo óptico podem implicar um compromisso funcional variável, salientando-se que algumas delas poderão indiciar a existência de defeitos com outra localização. Surgem com uma incidência ~1,6/1.000 em RN.

São exemplos a displasia vítreo-retiniana, a persistência do vítreo primário hiperplásico, anomalias vasculares e o coloboma (qualquer anomalia congénita do desenvolvimento que poderá surgir em qualquer das seguintes estruturas: pálpebras, íris, cristalino, coroideia, retina ou nervo óptico).

O coloboma é um dos constituintes da associação CHARGE, razão pela qual a sua verificação obriga à detecção doutros defeitos (síndromas malformativas, cromossomopatias, etc.).

Albinismo

O albinismo corresponde a um grupo heterogéneo de doenças, quer sob o ponto de vista genético, quer clínico; caracteriza-se por hipopigmentação da pele, cabelo e olhos, explicável por deficiência da produção de melanina. São descritas duas formas de albinismo: oculocutâneo e ocular. As síndromas de Hermansky-Pudlak e Chediak-Higashi associam-se a albinismo oculocutâneo.

Doenças hereditárias do metabolismo

Existem mais de 400 doenças hereditárias com envolvimento significativo da retina, mácula ou coróide, com quadros clínicos diversos de degenerescência retiniana, conforme as áreas inicialmente atingidas e progressão verificada. A patologia metabólica pode originar alterações retinianas com aspectos particulares, nomeadamente as degenerativas (retinopatia pigmentar, atrofia girata, alteração do epitélio pigmentar e alteração da mácula em mancha cor de cereja), bem como quadros de hemorragia retiniana e neuropatia óptica. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Degenerescência retiniana e doenças hereditárias do metabolismo

* LCHAD – Hidroxiacil-CoA desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia longa
Doença retiniana associada a outras doenças
    • Defeito do metabolismo lipídico
      • Abetalipoproteinémia
      • Doença peroxissomal: alteração da biogénese do peroxissoma (Síndroma Zellwegwer)
      • Defeito isolado da ß-oxidação
      • Doença de Refsum
      • Defeito da ß-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos: deficiência LCHAD*
      • Síndroma de Sjogren-Larsson
    • Defeito lisossómico

      • Ceroidolipofuscinoses

      • Mucopolissacaridoses: todas excepto doença de Mórquio (MPS IV)

      • Mucolipidose IV

      • Doença de Krabbe

         

    • Defeito mitocondrial

      • Síndroma de Kearn-Sayre

      • Outros defeitos

    • Defeitos congénitos da glicosilação (CDG)
    • Defeitos do metabolismo do cobre: doença de Menkes

    • Outros: alteração do metabolismo da cobalamina C

Doença retiniana isolada
    •  Atrofia girata

Nas alterações degenerativas da mácula, o aspecto em mancha cor de cereja é de uma forma geral relacionado com etiologia metabólica, sendo fundamental o diagnóstico diferencial das doenças de sobrecarga lisossomal. Tal padrão do fundo ocular é devido à acumulação de lípidos complexos nas células ganglionares da retina, originando uma cor esbranquiçada rodeando a zona da fóvea. (Figura 2 e Quadro 2)

FIGURA 2. Fundoscopia: mancha cor de cereja

QUADRO 2 – Degenerescência macular em “mancha cor de cereja”

Doença“Mancha cor de cereja”
Sialidoses tipo IConstante
Sialidoses tipo IIConstante
GalactossialidoseFrequente
Gangliosidose GM2
• Doença de Tay-Sachs (infantil)Constante
• Doença de Sandhoff (infantil)Constante
Gangliosidose GM1 (infantil)Frequente
Doença de Niemann-Pick tipo AFrequente
Doença de Gaucher tipo 2Ocasional

Diabetes mellitus

No que se refere a diabetes mellitus (tipos 1 e 2) cabe referir que as manifestações oculares mais frequentes ocorrem na retina e no cristalino. A retinopatia diabética raramente surge antes de 3-5 anos de doença, e antes da puberdade. O tempo de evolução e o grau de descompensação metabólica da doença são factores relevantes no desenvolvimento e na gravidade das complicações oculares. Surge microangiopatia progressiva que leva à lesão e oclusão dos pequenos vasos retinianos. Em fases inicias da retinopatia (chamada de fundo), à fundoscopia observam-se microaneurismas (dilatação capilar), tortuosidade vascular, hemorragias e edema. Pode haver défice da aquidade visual se o edema atingir a mácula.

Com o tempo, a oclusão microvascular progressiva leva à isquémia e à formação de neovasos (retinopatia proliferativa), com edema e hemorragia mais acentuados, (hemorragias retinianas e do vítreo), maculopatia e risco mais elevado de descolamento retiniano. A retinopatia é lentamente progressiva, sabendo-se que, após 10 anos de doença, 70 a 90% dos diabéticos do tipo 1 evidenciam graus diversos de retinopatia, sendo tanto mais grave quanto pior o controlo metabólico.

O compromisso associado do cristalino, evidenciado pela sua opacificação (catarata) depende também muito da qualidade e estabilidade da compensação metabólica. A presença de catarata diminui a acuidade visual.

A intervenção cirúrgica está indicada no tratamento da catarata, do hemovítreo ou do descolamento retiniano. O método de tratamento com raios laser é utilizado como profilaxia destas últimas complicações e no tratamento de certas formas de maculopatia.

O acompanhamento oftalmológico da criança e do adolescente diabético deve ser ajustado à idade e à gravidade da diabetes. Em geral, deve fazer-se a avaliação uma vez feito o diagnóstico, com a finalidade de esclarecimento da criança/família e exclusão de outra patologia. A detecção e vigilância da retinopatia deve iniciar-se 3 anos após o início do período da puberdade, quando a evolução metabólica tenha sido favorável, ou antes, pelos 9 anos de idade, no caso de não ser conseguido tal objectivo. Posteriormente, a vigilância oftalmológica deve ser, pelo menos, semestral.

Doenças hematológicas

A retinopatia verificada nos casos de doença de células falciformes relaciona-se com a hiperviscosidade sanguínea e consequente hipóxia, salientando-se que as manifestações oculares são mais frequentes quando há associação a outra hemoglobinopatia.

As lesões encontram-se na periferia, podendo configurar uma forma não proliferativa, de fundo, caracterizada por envolvimento arteriolar com embainhamento, tortuosidade e hemorragias (manchas-salmão, intrarretinianas, e aglomerados pigmentares cicatriciais), ou evoluir para uma forma proliferativa quando a isquémia é mantida. A retinopatia drepanocítica proliferativa (rara em idade pediátrica) deve-se à oclusão arteriolar e neovascularização; define-se pela presença de tufos vasculares de aspecto típico e pode levar a complicações irreversíveis.

A aplicação do método de laser pode estar indicada como medida preventiva.

A vigilância oftalmológica deve iniciar-se por volta dos 10 anos de idade e repetir-se semestralmente.

Inflamação e infecção

A inflamação da retina habitualmente não ocorre de forma isolada, associando-se, pelo menos, ao compromisso da coroideia. Daí que os processos inflamatórios destas duas estruturas sejam habitualmente considerados em simultâneo, mesmo quando um processo é predominantemente retiniano.

O termo uveíte significa inflamação da úvea (estrutura composta pela íris, corpo ciliar e coroideia). Se todas as referidas estruturas estiverem atingidas, diz-se que há panuveíte.

Segundo o critério topográfico, são considerados três tipos de uveíte:

  1. anterior, compreendendo a irite e a iridociclite;
  2. intermédia, compreendendo a ciclite e a chamada pars planite;
  3. posterior, compreendendo a coroidite (ou a coroidorretinite quando se verifica compromisso retiniano); ou seja, a uveíte posterior atinge predominantemente o segmento posterior do globo ocu

Quanto à etiologia,  podem ser considerados  quatro grupos: de origem infecciosa, autoimune e idiopática, para além de situações integrando as chamadas “síndromas mascaradas”. Estas últimas compreendem situações clínicas diversas que cursam com uveíte, por ex.: linfoma, retinoblastoma, leucemia, metástases de tumor distante, descolamento, degenerescência retiniana e presença de corpo estranho intra-ocular.

A uveíte intermédia é, em geral, uma situação crónica e idiopática.

Na idade pediátrica, cerca de 40% das uveítes afectam o segmento posterior, sendo a etiologia infecciosa (congénita ou adquirida) a mais importante: por Toxoplasma gondii, Citomegalovirus, Mycobacterim tuberculosis, Candida albicans, Toxocara canis, etc..

Como noutras doenças retinianas, a presença de uveíte posterior pode revelar-se quando a criança é capaz de expressar queixas, nomeadamente de miodesopsia, de alteração da acuidade ou qualidade visual, ou através de sinais que revelam diminuição da acuidade visual. Frequentemente, trata-se de situações que se associam a outras manifestações oculares, inflamatórias ou a anomalias congénitas.

O atraso no diagnóstico devido à não verbalização das queixas e as consequências sobre o sistema visual, ainda em desenvolvimento, podem agravar o prognóstico na criança mais pequena.

Refira-se, no entanto, que por vezes o diagnóstico de uveíte posterior é um achado ocasional no âmbito de observação oftalmológica realizada por motivos diversos.

São descritos a seguir alguns quadros clínicos que tipificam processos de inflamação e infecção de expressão retiniana:

  • Toxocarose – Deve-se à presença da larva enquistada na Em geral existe compromisso uniocular. O aspecto mais típico é o de granuloma localizado no pólo posterior do olho ou na periferia; no entanto, o processo inflamatório pode ser mais difuso. Ao cicatrizar, pode originar o descolamento da retina. As manifestações clínicas incluem diminuição de visão, estrabismo ou leucocória, impondo por vezes, o diagnóstico diferencial com retinoblastoma.
  • Retinites víricas – Vários agentes víricos (por vírus da imunodeficiência humana/VIH, Herpes simplex, Herpes zoster, Citomegalovirus e vírus da rubéola) podem infectar a retina da criança, desde a fase de vida intra-uterina, podendo as respectivas repercussões ser mais ou menos devastadoras. Para além da infecção da retina, outras estruturas oculares podem estar envolvidas, como a córnea, o cristalino, a íris, o corpo ciliar, o nervo óptico, etc..
    O exame fundoscópico permite observar focos activos de coriorretinite (áreas de edema retiniano que se podem associar a fenómenos de vasculite e hemorragias) ou cicatrizes de infecção coroidorretiniana (áreas de hiperpigmentação alternando com áreas menos pigmentadas ou esbranquiçadas) em maior ou menor extensão. Um aspecto frequente nalgumas infecções congénitas (rubéola, sarampo) é o quadro designado classicamente por “retinopatia pigmentada em sal e pimenta” em que se observa a dispersão pigmentar em toda a retina ou parte dela.
    A doença ocular em crianças infectadas pelo VIH e Citomegalovirus é muito menos frequente do que nos adultos.
  • Coroidorretinites bacterianas e fúngicas – Trata-se de situações mais raras, habitualmente ocorrendo associadas a outras manifestações oculares e não A sífilis congénita pode dar origem a retinopatia em sal e pimenta semelhante à da rubéola. O envolvimento retiniano é ainda possível na doença de Lyme, na tuberculose e na doença do arranhão do gato. Em todas estas doenças as manifestações clínicas são muito variáveis, não havendo um padrão típico de apresentação.
    A retinopatia surgindo no contexto de septicémia ou bacteriémia é muito rara; em geral deve-se a um êmbolo séptico decorrente de endocardite bacteriana. O exame oftalmológico especializado permite identificar sinais de hemorragia centrada por uma área branca (mancha de Roth), como manifestação do êmbolo formado. As infecções por fungos (por ex. Candida albicans) também podem originar endoftalmite por embolia.
  • Coroidorretinite por Toxoplasma gondii (Toxoplasmose) – A toxoplasmose (congénita ou adquirida) é a causa mais importante de uveíte posterior em todos os grupos etários; em idade pediátrica é responsável por cerca de 50% dos casos de uveíte posterior (coroidite ou coroidorretinite). Uma vez instalado na célula retiniana, há proliferação do protozoário causando reacção de hipersensibilidade e inflamação nos tecidos e vasos adjacentes, vítreo e coroideia, sendo de realçar que poderá surgir reactivação em zona adjacente a cicatriz coroidorretiniana antiga. As manifestações de toxoplasmose congénita variam muito, entre cicatriz retiniana periférica e coroidorretinite activa.
  • Uveítes não infecciosas – Estas afecções são muito raras em idade pediátrica salientando-se, a este propósito, que alguns casos de uveíte posterior podem associar-se a sarcoidose, a nefrite tubulointersticial (TINU) e a doença de Behçet.

Distrofias coroidorretinianas

Abrangem um conjunto de situações de natureza genética relativamente às quais cada vez são conhecidos mais genes; geralmente só se manifestam no adolescente ou adulto. Para o estabelecimento do diagnóstico e prognóstico destas doenças, a electrofisiologia ocular é fundamental. Outros meios auxiliares de diagnóstico importantes são o estudo da visão cromática e a angiografia fluoresceínica. São salientadas, entre outras, as seguintes distrofias:

  • Retinopatia pigmentada (retinose pigmentar) – É caracterizada por disfunção progressiva dos fotorreceptores e atrofia de várias camadas da retina, verificando-se perda progressiva de bastonetes e,  posteriormente, também de cones. Manifesta-se essencialmente por nictalopia e diminuição progressiva dos campos visuais. Por fundoscopia são identificadas alterações pigmentares retinianas típicas (espiculadas), atenuação vascular e palidez óptica. Na maioria dos casos, o modo de transmissão é autossómico recessivo, tendo sido comprovada hereditariedade ligada ao cromossoma X em cerca de 15% dos casos.
  • Distrofia de cones-bastonetes – Nesta forma os fotorreceptores são afectados de forma generalizada, sendo maior a perda de função do cone do que a do bastonete. A hereditariedade é autossómica (recessiva ou dominante), ou ligada ao cromossoma X. A maioria revela-se entre o final da segunda década de vida e o início da idade adulta. Manifesta-se essencialmente por perda de visão central, discromatopsia e fotofobia, instalando-se progressivamente nictalopia e perda de visão periférica. Por fundoscopia observam-se alterações semelhantes às da retinopatia pigmentada.
  • Amaurose congénita de Leber – Trata-se duma distrofia cone-bastonete identificável desde a data do nascimento ou nos primeiros meses de vida por défice de visão e nistagmo. Em geral, a transmissão é autossómica recessiva, podendo também ocorrer a forma autossómica dominante. Constitui a causa mais frequente de deficiência visual infantil de natureza hereditária. As manifestações ulteriores incluem movimentos erráticos dos globos oculares ou nistagmo, deficiente reflexo fotomotor pupilar e o já citado sinal oculodigital de Franceschetti (como resultado da deficiente estimulação visual pela luz, a criança exerce pressão sobre os globos oculares para estimular mecanicamente a retina, conseguindo, assim, obter sensação visual); com o tempo, a pressão repetida pode levar a atrofia da gordura orbitária e afundamento do globo ocular – enoftalmia – e a catarata.

Descolamento da retina

Entende-se por descolamento retiniano a separação entre a retina neurossensorial e o epitélio pigmentado subjacente por mecanismos diversos. Como consequência, a retina pode sofrer atrofia por insuficiência de suprimento sanguíneo e de nutrientes.

As manifestações clínicas essenciais variam consoante a causa do descolamento e a sua extensão: fotopsias, miodesopsias, perda de campo ou acuidade visual, e leucocória. Como em qualquer situação que decorre com perda de acuidade visual, o estrabismo adquirido pode ser um sinal revelador.

Retinopatia da prematuridade

Definição

Entende-se, por retinopatia da prematuridade (RP) a doença vascular retiniana consequente à proliferação fibrovascular anómala numa retina em desenvolvimento, com vascularização incompleta. A prematuridade, pelas repercussões na maturação do globo ocular e das estruturas do sistema nervoso central, pode ter implicações no desenvolvimento da visão. Neste contexto, as principais alterações oftalmológicas com as quais o clínico depara são, a chamada retinopatia da prematuridade na fase aguda, e suas sequelas: os defeitos refractivos e o estrabismo.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A RP é uma doença cuja incidência e gravidade são inversamente proporcionais ao peso de nascimento e à idade gestacional. De acordo com o CRYO-ROP Group, a frequência é ~ 47% em RN com idade gestacional > 31 semanas e peso entre 1.000 e 1.250 gramas; e ~90% nos casos com < 28 semanas e < 750 gramas. Estudos mais recentes apontam para uma diminuição da incidência de retinopatia (10 a 40%) e redução da probabilidade de ocorrência de retinopatia limiar (3%); no entanto, em absoluto, os casos graves são cada vez mais frequentes, dado o aumento de sobrevivência de RN com peso de nascimento inferior a 750 gramas em virtude dos progressos realizados em terapia intensiva.

Etiopatogénese

A angiogénese dos vasos da retina inicia-se pelas 16 semanas de gestação, prolongando-se até cerca das 40 semanas. Tem a sua origem no pólo posterior do globo ocular, ao nível da papila óptica, evoluindo anteriormente até atingir a ora serrata, o limite anterior da retina. Por outras palavras: a vascularização da retina do feto faz-se da papila óptica para a periferia; a mesma completa-se primeiramente na retina lado nasal pelo facto de esta ser mais curta. Por isso, é mais frequente o compromisso da retina (RP) no lado temporal cujo desenvolvimento se completa pelas 40 semanas (gestação de termo).

Quando a criança nasce após gravidez muito encurtada em tempo (recém-nascido pré-termo), o processo de angiogénese não se encontra completo.

A RP progride em duas fases. Numa primeira fase (hiperóxica), o contacto com meio ambiente extra-uterino, mais rico em oxigénio que o meio intra-uterino, cria vasoconstrição que, se prolongada, se torna irreversível, tendo em conta a elevada susceptibilidade dos vasos retinianos a elevada pressão parcial de oxigénio*.

*No sangue fetal a saturação em O2 da Hb é ~70%, enquanto no RN de termo respirando ar é ~100% (correspondendo respectivamente a PaO2 de 30 mmHg e de 60-100 mmHg).

Numa segunda fase (isquémica) – que surge à medida que o RN pré-termo cresce (entre as 30 e as 34 semanas de idade gestacional) – a hipoxia tecidual, resultante do não desenvolvimento normal da vascularização retiniana, necessária para o metabolismo da retina, conduz à produção de factores angiogénicos com consequente processo de neovascularização. Esta poderá evoluir no sentido de proliferação fibrovascular anómala levando a tracção dos tecidos, descolamento da retina ou cegueira.

Vários factores de risco de RP têm sido apontados: baixo peso de nascimento, baixa idade gestacional, terapia com oxigénio (factor relevante, embora não constitua um pré-requisito), carência de vitamina E, exposição a produtos decorrentes de infecção/inflamação (como por ex., selectina-E, interleucinas), hiperglicémia, transfusões de sangue, RCIU, hipercápnia, anemia, hemorragia intraventricular, etc.. Dá-se grande importância ao papel dos factores de crescimento na génese da RP, designadamente IGF-1 e VEGF (vascular endothelial growth factor). O défice de síntese de IGF-1 no pré-termo seria responsável pela paragem do crescimento vascular retiniano.

A hipoxémia retiniana consecutiva à hipoperfusão origina síntese predominante de VEGF que se acumula no vítreo, sem efeito sobre o crescimento vascular. Uma vez retomada a secreção de IGF-I, associada à quantidade acumulada de VEGF, verifica-se intensa proliferação vascular retiniana. Quanto mais baixo o peso de nascimento e menor a idade gestacional, maior a probabilidade de, no recém-nascido pré-termo, se desenvolver retinopatia, em concomitância com elevadas probabilidades de complicações cardiovasculares e respiratórias.

Em suma, a RP parece, pois, ter uma relação directa com o grau de imaturidade vascular retiniana, acção do oxigénio sobre os vasos imaturos e factores que intervêm na oxigenação tecidual. Por outro lado, existem factores considerados protectores relativamente à mesma RP; entre eles contam-se a administração de esteróides no período pré-natal, e de surfactante ao recém-nascido (RN).

Classificação

O sistema classificativo de gravidade actualmente utilizado foi estabelecido pelo chamado CRYO-ROP Group, criado nos Estados Unidos da América do Norte. Como meio de estudo foi estabelecida a classificação, ainda em vigor. Muito do que se sabe hoje sobre a evolução da retinopatia e sua terapêutica deve-se aos estudos que este grupo tem efectuado, embora não seja de menosprezar o contributo doutros autores noutros países.

A classificação baseia-se fundamentalmente na extensão e localização da doença, assim como na sua gravidade. Classicamente são considerados os parâmetros que se seguem (Figura 3):

FIGURA 3. Camadas da retina: representação esquemática

Zona – Determina até que ponto progrediu o desenvolvimento da vascularização e onde residem as anomalias. Centrada no nervo óptico (papila ou disco óptico), a zona I compreende uma área circunferencial de raio duas vezes superior à distância papila-mácula lútea. É a porção mais posterior e a mais importante em termos de qualidade visual. A zona II é a área circunferencial distal à zona I, limitada anteriormente pela ora serrata nasal. A zona III corresponde ao crescente temporal remanescente.

Estádio – Indica a gravidade do processo, definindo-se pelo aspecto das alterações encontradas:

  1. A linha de demarcação separa a retina avascular da vascularizada;
  2. A linha de demarcação adquire volume, formando uma prega;
  3. Estendendo-se a partir da prega, observa-se tecido proliferativo fibrovascular extrarretiniano que se estende para o vítreo;
  4. Descolamento subtotal da retina; resulta da contracção do tecido proliferativo, que separa a retina da coroideia subjacente;
  5. Descolamento total da retina (corresponde à antiga designação fibroplasia retrolenticular).

Extensão – Designa a área circunferencial dentro da qual se observam alterações, expressas em sectores circulares de 30º (ou em “horas”); tem interesse apenas em estádios mais avançados: por ex., se a RP se estende entre 12 horas e 3 horas, terá extensão de 90º.

Doença plus (+) – Designa a existência de sinais de incompetência vascular. Traduz-se por dilatação e tortuosidade vascular progressivas que podem também atingir outras estruturas, como a íris. A presença de doença plus, habitualmente verificada em olhos que se encontram em estádio 3, conjugada como a sua extensão, pode sugerir a evolução iminente para um estádio de doença grave e irreversível, se não tratada.
A designação de doença rush denomina situações extremas em que há agravamento muito rápido, notório de dia para dia.

Nota: Cada caso é classificado em função do estádio mais avançado, da zona mais posterior e da presença de doença plus. Em regra, nos casos de RP ligeira até estádio 2, sem doença plus (+), verifica-se resolução completa.

Retinopatia limiar – Esta designação refere-se a estádio de evolução de retinopatia em que o risco de descolamento é ~ 50%; corresponde a uma retinopatia em estádio 3 atingindo a zona I ou II, numa extensão de 5 horas contínuas ou 8 horas descontínuas.

Retinopatia pré-limiar – Esta designação traduz um padrão requerendo acompanhamento mais rigoroso face ao risco de evolução para retinopatia limiar

Diagnóstico

O diagnóstico de RP baseia-se nos achados obtidos por oftalmoscopia binocular indirecta, da competência do oftalmologista.

Rastreio oftalmológico

Havendo antecedentes de prematuridade e factores de risco, torna-se obrigatório proceder ao rastreio da retinopatia aguda; tal rastreio deve começar ainda quando a criança está hospitalizada em unidades de cuidados intensivos neonatais.

De acordo com as normas de 2013 da Academia Americana de Pediatria e da Associação Americana de Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo, são considerados lactentes em risco, por conseguinte com indicação para rastreio, todos aqueles com antecedentes de peso de nascimento (PN) inferior a 1500 g e de idade gestacional (IG) igual ou inferior a 32 semanas (ou com PN entre 1500 e 2000 gramas ou IG superior a 32 semanas havendo concomitantemente factores de risco, – designadamente instabilidade clínica e necessidade de suporte ventilatório).

O primeiro exame deve ser efectuado em função da IG ao nascer e da idade cronológica em semanas. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Primeiro exame oftalmológico

Idade Gestacional ao Nascer (semanas) Idade Pós-natal (semanas)
22 9
23 8
24 7
25 6
26 5
27-32 4

A partir do primeiro exame, o oftalmologista adapta o seguimento às particularidades de cada caso, designadamente as relacionadas com a gravidade.

No âmbito do rastreio da RP chama-se a atenção para uma aparelhagem moderna (câmara de fibras ópticas designada por RetCam, adaptada para fundoscopia e que permite visualizar imagens digitalizadas do fundo do olho com assistência por computador); é aplicável à telemedicina e pode ser utilizada por neonatologista treinado com o apoio de oftalmologia. Tal como para o método convencional, há necessidades de dilatação pupilar > 8 mm, o que se consegue com tropicamida a 0,5% (30-45 minutos antes da observação).

Estudos recentes em 2018, incidindo sobre os níveis do péptido natriurético urinário (NTproBNP) no RN em risco de retinopatia da prematuridade, concluíram que apenas nos casos com idade gestacional inferior a 30 semanas tal marcador poderá contribuir para identificar situação de risco de tal patologia.

A este propósito, especula-se que acima das 30 semanas, a patogénese da retinopatia poderá incluir certos mecanismos que poderão divergir dos verificados em idades gestacionais mais baixas.

Em termos de custo-benefício há que referir o custo de 100.000 dólares USA, confrontado com o custo dos cuidados assistenciais relacionados com a cegueira por RP: 1-5 milhões de dólares USA.

Após alta hospitalar devem ser feitos exames periódicos, regra geral entre os 6 e os 12 meses de idade pós-natal, entre os 2 e 2 anos e meio, entre os 3 e meio e 4 anos; e, depois, bianualmente.

Prevenção e tratamento

Na fase actual dos conhecimentos não existe qualquer fármaco para prevenir ou tratar a RP. Salienta-se, no entanto, como medida prioritária a prevenção do parto pré-termo, a necessidade de vigilância rigorosa da oxigenoterapia administrada ao RN pré-termo e da monitorização rigorosa da pressão arterial de O2 e de CO2 evitando a ultrapassagem de níveis críticos.

O objectivo do tratamento, da competência do oftalmologista, é deter a evolução para alterações estruturais graves (descolamento da retina), tentando evitar a perda visual, tendo em conta os efeitos iatrogénicos da própria terapêutica. Está indicado quando a retinopatia atinge o estádio limiar, ou pré-limiar com risco de descolamento de retina.

Através da ablação da retina isquémica, periférica ao tecido proliferativo, pretende-se diminuir a produção local de factores angiogénicos e deter o processo. A ablação é feita pela crioterapia (estudo CRYO-ROP) ou pelo método laser (árgon verde ou díodo vermelho). Pelas suas características menos agressivas, o método de fotocoagulação com laser de díodo é o método de eleição.

Na presença de descolamento de retina (estádios 4 ou 5) a ablação retiniana pode ser coadjuvada por vitrectomia e indentação escleral. No entanto, nesta fase o prognóstico é mau.

Nalguns centros tem sido utilizado um agente anti-angiogénico (à base de anticorpos inibidores de VEGF) intravítreo. Em 2011, de acordo com o estudo BEAT-ROP, foi demonstrada eficácia superior de bevacizumab/Avastin®. Admite-se que no futuro tenha papel importante o tratamento com células estaminais e com IGF-1.

Prognóstico

O período de tempo que medeia entre as 32 e as 42 semanas de gestação é crucial no que respeita à evolução da retinopatia. Pode ocorrer a sua regressão ou, pelo contrário, a evolução para formas graves. Na maioria dos casos ela regride, observando-se que o seu início ocorre por volta das 37 semanas de idade gestacional (entre as 34 e 46 semanas) e dura em média 15 semanas. A regressão com resolução completa é a regra nos casos de RP ligeira – estádio 1 ou 2, como foi referido antes.

No outro extremo de gravidade encontra-se a RP que atinge a zona I, situação associada a 90% de risco de progressão para descolamento da retina, se não tratada. Mesmo quando tratados, 50% de tais casos evoluem desfavoravelmente; por esta razão, mais recentemente tende a intervir-se mais precocemente nas crianças com RP na zona I ou na zona II.

Após a regressão espontânea ou induzida pelo tratamento, poderão manter-se alterações retinianas residuais de gravidade variável: em geral são tanto mais frequentes e mais graves quanto mais evoluído o estádio atingido.

Como consequência destas sequelas, são de destacar: o astigmatismo por distorção retiniana, a maculopatia cicatricial e o descolamento retiniano tardio do jovem ou adulto.

Os defeitos refractivos são mais frequentes nas crianças com antecedentes de prematuridade extrema (PN<1000 gramas). Mesmo não se tendo verificado evolução para RP grave, é mais frequente a ocorrência de miopia, astigmatismo e anisometropia (diferença significativa da capacidade refractiva entre os dois olhos). Este último defeito refractivo pode ser uma causa de ambliopia.

As perturbações da motilidade ocular (estrabismo e nistagmo) poderão tornar-se manifestas posteriormente, relacionando-se, quer com sequelas oculares (retinopatia e defeitos refractivos), quer com lesões do sistema nervoso central associadas.

Devido a erros refractivos significativos ou a estrabismo, a criança com antecedentes de prematuridade tem maior probabilidade de vir a ser amblíope.

Retinoblastoma

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

O retinoblastoma, desenvolvendo-se a partir de células retinianas nucleadas imaturas, é o tumor maligno ocular mais frequente na criança. A célula estaminal ou primordial do retinoblastoma parece ser neuronal.

A sua incidência mundial oscila, de acordo com diversas estatísticas, entre 1 para 14.000 a 1/34.000 recém-nascidos. Em 90% dos casos surge antes dos 3 anos, sendo 30% bilateral. Numa minoria (10%) há antecedentes familiares.

A sua importância deriva essencialmente do facto de ser letal quando não tratado; inversamente, quando diagnosticado e tratado de forma oportuna, a percentagem de cura aumenta significativamente.

Etiopatogénese

O retinoblastoma representa a expressão fenotípica da ausência de um gene supressor tumoral, designado por gene do retinoblastoma ou RB1, que se localiza no braço longo, banda 14, do cromossoma 13 (13q14). Trata-se do primeiro gene supressor tumoral humano que foi completamente caracterizado. A sua função é suprimir o crescimento celular. Duas cópias normais do gene estão presentes na maioria das células humanas, sendo a sua função limitar o crescimento da célula; de referir que apenas uma cópia normal basta para cumprir a sua função. Antes de se conhecer a existência deste gene, o retinoblastoma era classificado como esporádico ou hereditário. Clínica e histologicamente, ambas as formas são indistinguíveis. A variedade hereditária, associando-se a tumores múltiplos e a compromisso binocular, pode ocorrer sob as formas autossómica dominante (mais frequente), ou recessiva.

Como resultado do crescimento celular superando a capacidade de irrigação sanguínea, surge um processo de necrose e de calcificação. Enquanto as células tumorais com origem nas camadas mais internas da retina crescem em direcção ao cristalino invadindo outras zonas da retina, as que se originam nas camadas mais externas podem levar ao descolamento da mesma. O retinoblastoma, através da invasão do nervo óptico ou da coroideia, pode invadir a órbita, salientando-se que a disseminação à distância, por via linfática ou sanguínea, surge raramente.

No respeitante ao tipo histológico em causa, cabe salientar que o sarcoma osteogénico é o mais frequente. Outros tipos tumorais possíveis são: neuroblastoma, condrossarcoma, rabdomiossarcoma, etc.. Nos casos de retinoblastoma hereditário existe elevada probabilidade de aparecimento de pinealoblastoma, altamente invasivo e letal, habitualmente ocorrendo nos primeiros quatro anos de vida.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As principais formas de apresentação do retinoblastoma são estrabismo (em geral o primeiro sinal) e diminuição da visão ou leucocória. A propósito de leucocória, cabe referir a ausência do reflexo vermelho da pupila da criança quando o foco luminoso forte atravessa a pupila. (Figura 4)

Mais raramente e/ou com a progressão do tumor, este pode manifestar-se por hifema espontâneo (presença de sangue entre a íris e a córnea), glaucoma secundário, anisocória (midríase do olho afectado), heterocromia iridiana (diferente coloração da íris), nistagmo ou inflamação crónica. Em fases muito avançadas de proliferação ultrapassando os limites do globo, poderá sugerir o diagnóstico de celulite orbitária.

FIGURA 4. Leucocória do globo ocular esquerdo

De acordo com a classificação internacional (2007) são considerados cinco grupos de A a E em função da extensão: A (≤ 3 mm) ou small; B (bigger); C (contained); D (diffuse); E (extensive).

O diagnóstico diferencial faz-se, fundamentalmente, com a catarata, uveíte ganulomatosa anterior, toxocarose, toxoplasmose, retinite vírica, displasia da retina, retinosquise juvenil ligada ao X, etc., sendo que a anamnese e o exame objectivo geral se tornam fundamentais para orientar a destrinça.

O exame do fundo do olho sob dilatação pupilar, realizado por oftalmologista é fundamental; o aspecto é variável consoante o tipo de crescimento tumoral e a extensão e número de focos tumorais. (Figura 5)

A presença de calcificações retinianas em crianças com menos de 2 anos de idade é considerada sinal patognomónico de retinoblastoma, o que não acontece após os 2 anos. (Figura 6)

FIGURA 5. Retinoblastoma: aspecto da fundoscopia

FIGURA 6. Retinoblastoma – imagem de calcificação (TAC)

Após fundoscopia, habitualmente repetida sob anestesia geral, o exame completa-se através da ecografia ocular realizada em ambos os olhos, e do estudo imagiológico (TAC, RM) para confirmação do diagnóstico e avaliação dos estádios evolutivos da doença.

Tratamento

O tratamento, da competência do oftalmologista, pode ser:

  1. conservador (nos casos de tumores de pequenas dimensões e intraoculares por ex. fotocoagulação, laser, termoterapia por laser díodo, quimiorredução, crioterapia, braquiterapia, radioterapia, etc.);
  2. radical (nos casos de grandes dimensões e associados à invasão do nervo óptico-enucleação).  Salienta-se que a quimioterapia está indicada em associação às modalidades atrás referidas – a) e b).

Em centros especializados estão a ser usados novos tratamentos, alguns em fase experimental: vírus oncolíticos, genes “suicidas” tendo como vector adenovírus com gene de timidina de herpes simplex seguido de administração de ganciclovir, esterovírus angiostáticos, factor anti-VEGF, carboplatina de libertação lenta, etc..

Prognóstico

O factor de prognóstico mais importante é relacionável com o compromisso do nervo óptico; se forem detectadas células tumorais na margem do nervo óptico ou no espaço subaracnoideu, o prognóstico é mais reservado.

Nos casos de tumores unilaterais e intra-oculares, a taxa de cura é cerca de 90%.

O retinoblastoma bilateral associa-se a elevado risco de desenvolvimento doutras neoplasias primárias ao longo da vida, o que pode ainda ser potenciado pela radioterapia. O tempo médio de latência é cerca de 13 anos.

Nos casos de mutação genética germinal, o risco de recorrência é elevado.

Aconselhamento genético

O risco de retinoblastoma na descendência de um indivíduo com retinoblastoma só existe quando o doente tem uma mutação germinal. A avaliação do risco determina-se pela história familiar e pelo grau de compromisso tumoral, uni ou bilateral (ou multifocal). Os pais e irmãos de doentes afectados por retinoblastoma deverão também ser submetidos a exame fundoscópico. A penetrância do RB1 é cerca de 90%, o que corresponde a risco de passagem à descendência ~45%.

Agradecimento

As Figuras 4, 5 e 6 foram gentilmente cedidas pelos colegas Drs. Maria Araújo e Augusto Magalhães da Secção de Oftalmologia Pediátrica do Serviço de Oftalmologia do Hospital de São João, Porto, e a Figura 2 pelo Prof. João Goyri O´Neill da FCM/UNL e Serviço Universitário de Oftalmologia do Hospital Egas Moniz, Lisboa, a quem o editor e autora muito agradecem.

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SÍNDROMA DO “OLHO VERMELHO”

Definição

A designação de “olho vermelho”, traduzindo um conceito semiológico, diz respeito a um conjunto de situações frequentes em Oftalmologia Pediátrica em que predomina, entre outros sinais ou sintomas, o rubor ou hiperémia do globo ocular.

Etiopatogénese e semiologia

A hiperémia do globo ocular pode surgir nas seguintes situações:

  1. hiperémia dos vasos conjuntivais exibindo grande ramificação (ou injecção conjuntival, com aspecto de vermelho vivo), sendo de salientar que em tal circunstância a hiperémia é progressivamente menos acentuada à medida que se aproxima da zona de transição da córnea com a esclerótica (aspecto de halo branco pericorneano);
  2. hiperémia ou injecção ciliar traduzindo-se por coloração vermelha-azulada mais intensa, precisamente junto ao bordo corneano;
  3. combinação das situações descritas em a) e b);
  4. hiperémia dos vasos corneanos superficiais bem visíveis em continuidade com os vasos da conjuntiva, também hiperemiados;
  5. hiperémia dos vasos corneanos profundos em escova ou do próprio parênquima corneano, independentes estes dos vasos conjuntivais superficiais;
  6. sufusão hemorrágica subconjuntival ou hiposfagma, sem compromisso visual, e

Em função de determinados sintomas e sinais associados é, em certa medida, possível admitir as entidades clínicas subjacentes à hiperémia ocular:

  • A associação a prurido intenso indica, em geral, a presença de conjuntivite alérgica;
  • A dor “em pontada”, de início agudo e localizada sugere a presença de corpo estranho;
  • A dor mais insidiosa, profunda, de carácter difuso, e por vezes mal definida, pode acompanhar um quadro de uveíte ou de neurite óptica;
  • A “sensação de corpo estranho”, de queimadura ou de desconforto, mais ou menos intensa, pode indiciar alteração local nas pálpebras, conjuntiva, córnea, esclerótica ou episclera.

A fotofobia tem uma importância limitada como possível indicador da localização da doença que cursa com “olho vermelho”: apesar de estar frequentemente associada a doença intra-ocular (uveíte, glaucoma) pode, também, surgir em processos patológicos extra-oculares (conjuntivite, ceratite).

Seguidamente são abordadas as principais situações clínicas que cursam com “olho vermelho”, salientando-se que, na maioria das mesmas, está indicado o encaminhamento para o oftalmologista.

Quadros clínicos

Na perspectiva de sistematização anátomo-fisiológica (das pálpebras ao sistema ocular propriamente dito) são abordados os quadros clínicos clássicos, com especial realce para a conjuntivite.

Hordéolo interno e calázio

O hordéolo interno é um pequeno tumor hiperemiado ou inflamação nodular, indolor (embora doloroso à compressão), duro, aderente à cartilagem do tarso, no bordo das pálpebras, procidente para dentro, devido a inflamação das glândulas de Zeiss ou de Moll. Trata-se de foliculite.

Quando se verifica inflamação crónica da glândula de Meibomius, o processo inflamatório designa-se por calázio; a tumefacção é indolor e mais dura. (Figura 1)

O agente etiológico mais frequente é o Staphylococcus aureus; no entanto, o exsudado pode ser estéril.

Tal quadro clínico deve ser inicialmente tratado com aplicação local de compressas quentes associadas à utilização tópica de pomadas (ou colírios); o antibiótico tópico de escolha é a flucloxacilina ou, em alternativa, o ácido fusídico, canamicina, gentamicina ou cloranfenicol (de 4-4 horas e 5 vezes por dia), entre outros.

Se a lesão resistir ao tratamento médico pode, após o desaparecimento da inflamação aguda e adequada delimitação capsular, ser removida cirurgicamente, por via cutânea ou conjuntival.

A antibioticoterapia sistémica somente está indicada se se verificar celulite difusa ou adenite pré-auricular.

Hordéolo externo

Esta situação (sinónima de terçol e, na designação popular, de terçolho) é um processo inflamatório agudo supurado, em forma de ”grão de cevada” que se desenvolve no bordo da pálpebra, procidente para fora, ao nível de uma das glândulas sebáceas (glândulas de Zeiss), acompanhado de dor. (Figura 2)

Na prática, a actuação é semelhante à já referida a propósito do calázio e hordéolo interno.

Blefarite

Trata-se duma inflamação (aguda ou crónica) do bordo da pálpebra. Originando sensação de “irritação” e prurido, são descritas as formas estafilocócica e seborreica. A pediculose das pálpebras pode originar um quadro de blefarite. A etiologia mais frequente é estafilocócica.

FIGURA 1. Calázio. (NIHDE)

FIGURA 2. Hordéolo externo. (NIHDE)

Na prática é suficiente a aplicação tópica empírica de unguento (pomada) oftálmico com antibiótico de 4-4 horas (5 vezes por dia): ácido fusídico, polimixina, cloranfenicol, gentamicina ou canamicina.

Está indicada a aplicação de calor seco local duas a quatro vezes por dia.

Somente se deve recorrer à antibioticoterapia sistémica (com flucloxacilina nos casos identificados de etiologia estafilocócica) se surgir abcesso da pálpebra.

Dacriocistite

A dacriocistite é uma infecção do saco lacrimal, geralmente obstruído; os agentes etiológicos mais frequentes são: S. aureus, S. coagulase negativo, S. pneumoniae, Streptococcus pyogenes (grupo A), etc.. Exercendo pressão sobre o saco nasolacrimal verifica-se a saída de exsudado purulento.

O antibiótico de primeira escolha é a flucloxacilina; em alternativa, amoxicilina-clavulanato, cefalosporinas de segunda ou terceira geração, ou clindamicina.

A duração do tratamento é de 7-10 dias, sendo que poderá estar indicado o exame cultural do exsudado com colaboração de Gram; havendo sinais de pus colectado, o oftalmologista procede a drenagem cirúrgica. (Figura 3)

FIGURA 3. Dacriocistite: tumefacção do saco lacrimal

Conjuntivite aguda

Definição e importância do problema

A conjuntivite aguda, constituindo, seguramente, a principal causa de “olho vermelho” na idade pediátrica, define-se como inflamação da conjuntiva provocada por infecção bacteriana ou vírica, estado alérgico ou irritação mecânica (corpos estranhos, líquidos, etc.). As conjuntivites em geral podem evoluir de modo agudo ou crónico.

Anatomia patológica

Para além da dilatação vascular difusa, exsudação e quemose (ou infiltração edematosa da conjuntiva ocular, na maior parte das vezes de origem inflamatória, dando origem a um rebordo saliente, avermelhado, em volta da córnea), existem cinco tipos de resposta morfológica da conjuntiva: papilar, folicular, membranosa/pseudomembranosa, cicatricial e granulomatosa.

Sob o ponto de vista biomicroscópico, a caracterização dos aglomerados inflamatórios na conjuntiva tarsal reveste-se de particular importância para estabelecer a destrinça entre conjuntivite vírica (na qual se verifica a existência de aglomerados inflamatórios com vascularização interlesional, designados por folículos), e a conjuntivite bacteriana ou alérgica (caracterizadas pela evidência de aglomerados com um pedículo vascular central, designados por papilas).

Manifestações clínicas

As conjuntivites agudas, para além da hiperémia conjuntival, sensação de “areia ou de corpo estranho” no olho, evidenciam-se por prurido, ardor e aparecimento de lacrimejo e secreção aquosa, mucosa ou purulenta; havendo compromisso da conjuntiva palpebral, surgirá edema palpebral. Em geral não evoluem com dor, excepto se existir concomitante compromisso da córnea. Os reflexos pupilares são normais.

A presença de secreção purulenta com encerramento palpebral matinal sugere infecção bacteriana. Nas conjuntivites bacterianas (estando em causa, sobretudo, Streptococcus pneumoniae, Moraxella, Haemophilus influenzae e Chlamydia trachomatis, do que resulta o quadro anátomo-patológico de conjuntivite papilar), a secreção varia entre mucosa e mucopurulenta, em função da virulência do germe. (Figura 4)

No caso do H. influenzae é habitual haver secreção simultaneamente sanguinolenta, a qual não deverá ser confundida com hemorragia subconjuntival ou hiposfagma; é autolimitada e, por isso, de evolução favorável.

Nas situações de etiologia por C. trachomatis é habitual a concomitância de sintomatologia do foro respiratório.

O período de contagiosidade das conjuntivites bacterianas agudas, dum modo geral, termina cerca de 24 horas após início do tratamento adequado.

No âmbito das conjuntivites agudas de causa vírica (a que corresponde, em geral, o quadro anátomo-patológico de conjuntivite folicular), cabe uma referência especial ao Adenovirus, provavelmente o agente mais frequente, excluindo o período neonatal. Salienta-se a sua elevada contagiosidade e a possibilidade de compromisso concomitante da córnea. (Figura 5)

Em termos de manifestações clínicas, duas associações possíveis são: o aparecimento de secreção muco-sanguinolenta (tal como nas infecções por H. influenzae) e o achado de adenomegália pré-auricular.

O período de contagiosidade das conjuntivites víricas agudas, dum modo geral, termina cerca de 7 dias após início dos sinais e sintomas.

A chamada oftalmia neonatal corresponde a uma forma de conjuntivite que ocorre nas primeiras quatro semanas de vida (período neonatal) com uma frequência oscilando entre 1 e 12%; trata-se da doença ocular mais frequente no recém-nascido.

Em função da idade de manifestação inicial são considerados vários agentes etiológicos possíveis.

Se surgir entre 1-3 dias após o parto, sendo notória secreção purulenta espessa e abundante, a causa será a Neisseria gonorrhoeae (com maior probabilidade) ou Herpes simplex. Salienta-se a probabilidade de a infecção por gonococo ou por vírus herpes simples se poder estender à córnea; por isso, esta situação constitui uma emergência oftalmológica.

Se as manifestações surgirem entre os 5 e 10 dias, os agentes etiológicos prováveis serão a Chlamydia trachomatis ou cocos gram-positivos (Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus do grupo B, etc.).

Nas conjuntivites surgidas após os 7 dias de vida está em causa geralmente o vírus Herpes simplex, sendo que a respectiva infecção, como foi referido antes, poderá manifestar-se já antes. Pode ser uni ou bilateral; habitualmente verifica-se secreção serosa ou mucopurulenta.

No período neonatal poderá surgir uma forma de conjuntivite de causa química (conjuntivite química), de evolução autolimitada (24-48 horas) a qual se relaciona, curiosamente, com a utilização de nitrato de prata a 1% na profilaxia da oftalmia gonocócica levada a efeito já na sala de parto (método Credé); os sinais surgem, em geral, entre as 6 e 12 horas após o parto: exsudado mais frequentemente aquoso, podendo evoluir para purulento.

Refira-se, no entanto, que tal medida contribuiu, de facto, para a diminuição da incidência da conjuntivite gonocócica.

A conjuntivite alérgica aguda deve-se a uma reacção mediada pela IgE (tipo 1) a qual é estimulada por alergénios como pó da casa, pêlo de animais, pólen, etc..

FIGURA 4. Conjuntivite papilar com exsudado purulento

FIGURA 5. Conjuntivite vírica

Diagnóstico laboratorial

Não se procede a exames culturais do exsudado conjuntival de modo sistemático, tendo em conta que a conjuntivite bacteriana responde a grande número de antimicrobianos tópicos aplicados segundo critério empírico; por outro lado, estando em causa infecção conjuntival aguda provavelmente vírica, a aplicação de antimicrobianos tópicos não comporta efeitos colaterais significativos.

No entanto, no período neonatal, perante suspeita de conjuntivite gonocócica, deverá proceder-se a coloração pelo método de Gram e a exame cultural do exsudado.

Tratamento
Recém-nascido

A antibioticoterapia a aplicar depende do agente etiológico de que há suspeita; poderá haver indicação de internamento (utilizando antibioticoterapia por via sistémica/endovenosa), sendo indispensável o apoio do oftalmologista.

  • gonorrhoeae
    O antibiótico de primeira escolha é a ceftriaxona na dose de 25-50 mg/kg (dose máxima: 125 mg) por via intravenosa ou intramuscular em dose única; este esquema é igualmente aplicável a recém-nascidos de mães com gonorreia, não tratadas. Pode empregar-se cefotaxima por via endovenosa durante 10-14 dias (50 mg/kg/dia divididos por duas doses).
    Como tratamento tópico está indicada lavagem com soro fisiológico e aplicação de compressas esterilizadas aquecidas, sobre a pálpebra encerrada.
    A detecção desta infecção no recém-nascido implica igualmente o tratamento dos progenitores.
  • Chlamydia trachomatis
    Os antibióticos de eleição são macrólidos: eritromicina (40 mg/kg/dia em 4 doses) ou claritromicina (15 mg/kg/dia em duas doses) durante 14 dias.
    Torna-se também indispensável o tratamento dos progenitores.
  • Outros germes: S. aureus, S. pneumoniae, H. influenzae
    Nestes casos está indicada a aplicação de unguentos (pomadas) oftálmicos de 4-4 horas – cinco vezes por dia, ou gotas oftálmicas (colírio) de 3-3 horas – seis vezes por dia, à base de ácido fusídico, cloranfenicol, oxitetraciclina, polimixina, etc. durante 7-10 dias.
Outras idades

Não se tratando do recém-nascido, não está provada a eficácia da terapêutica antibiótica sistémica.

Para o tratamento das conjuntivites bacterianas agudas por germes tais como H. influenzae, S. pneumoniae, S. aureus, Streptococcus pyogenes (grupo A) são empregues colírios ou unguentos à base de cloranfenicol, polimixina, gentamicina, tetraciclina, ou fluroquinolonas de quarta geração (por ex: gatifloxacina) etc., durante 7 a 10 dias.

Conjuntivite crónica

Esta entidade tem como características essenciais a ausência de dor e a evolução arrastada. As manifestações clínicas gerais incluem sensação de corpo estranho, prurido, injecção conjuntival, secreção mínima e perda de cílios. Compreende duas formas: infecciosa e alérgica.

A forma infecciosa é em geral secundária a blefarite, já abordada anteriormente; pode também ter origem vírica (por Papilomavirus, Mollusco contagiosum, etc.), sendo característica a recorrência de manifestações.

A conjuntivite alérgica constitui a causa mais frequente da doença crónica ocular. Os doentes afectados evidenciam com frequência antecedentes de doença atópica, como asma, eczema ou rinite, sendo os picos de incidência verificados na adolescência ou em adultos jovens; com efeito, cerca de 30% das crianças com manifestações diversas de doença alérgica evidenciam manifestações oculares, nomeadamente conjuntivite. Contudo, apesar da elevada prevalência, a conjuntivite alérgica raramente origina sequelas no sistema ocular.

Os sinais e sintomas são bilaterais incluindo prurido, lacrimejo, secreção mucosa, hiperémia conjuntival, edema palpebral e quemose; estão geralmente associados a manifestações nasais ou faríngeas.

As conjuntivites alérgicas crónicas apresentam-se sob cinco formas clínicas principais: 1) a sazonal (mais frequente, correspondendo a cerca de 80% dos casos de conjuntivite alérgica), manifestando-se durante certas épocas do ano em que circulam no ar determinados alergénios específicos como pólen de plantas; 2) a perene, variante da primeira, persistindo durante todo o ano, mais frequentemente associada a rinite perene; 3) a ceratoconjuntivite primaveril associada a história familiar de atopia; 4) ceratoconjuntivite atópica associada a dermatite atópica; e 5) a ceratoconjuntivite papilar gigante ou vernal que corresponde a uma alteração imunológica da conjuntiva superior tarsal, possivelmente desencadeada por uma variedade de corpos estranhos, incluindo lentes de contacto; traduz-se pela presença de papilas gigantes (diâmetro entre 0,5 e 1 mm); através do biomicroscópico utilizado pelo oftalmologista, é possível estabelecer correspondência anátomo-patológica com os chamados nódulos de Horner-Trantas (aglomerados justalímbicos de eosinófilos e células epiteliais degeneradas).

Estas alterações podem causar neovascularização e úlcera da córnea. Tal forma de ceratoconjuntivite, iniciando-se antes dos 10 anos de idade, regride dum modo geral durante a puberdade. (Figura 6)

Entre os sinais biomicroscópicos salientam-se as papilas tarsais (com diâmetro maior que 1 mm).

FIGURA 6. Conjuntivite alérgica

A actuação geral, que compreende fundamentalmente a aplicação de compressas frias e de colírio sucedâneo das lágrimas artificiais, é geralmente pouco eficaz nas crianças.

No âmbito da actuação do oftalmologista, a aplicação tópica de anti-histamínicos e estabilizadores dos mastócitos (olopatadina, cromoglicato) contribui para o alívio dos sintomas. A utilização tópica de corticosteróides (dexametasona, prednisolona), apenas aplicável a casos especiais, deve ser evitada.

A chamada conjuntivite papilar gigante é uma forma associada aos portadores de lentes de contacto, habitual em adolescentes.

Outras situações cursando com “olho vermelho”

Citam-se de modo genérico nesta alínea situações já abordadas noutros capítulos como a uveíte anterior aguda, o glaucoma agudo e a lesão aguda da córnea (ceratite ou queratite).

Relativamente à lesão da córnea, cabe referir que qualquer lesão corneana infecciosa, displásica ou traumática, se pode acompanhar de hiperémia conjuntival.

AGRADECIMENTO

O editor e autor agradecem muito reconhecidamente aos colegas Drs. Jorge Palmares e Augusto Magalhães a cedência das fotografias das Figuras 3 e 5 do Arquivo da Secção de Oftalmologia Pediátrica/Serviço de Oftalmologia do Hospital de São João, Porto.

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GLAUCOMA

Definição

O termo glaucoma designa um conjunto de doenças que se caracterizam por lesão do nervo óptico e perda de campo visual, habitualmente associadas a, ou provocadas por aumento da pressão intra-ocular (PIO) avaliada por tonometria.

Importância do problema

Trata-se duma situação relativamente prevalente na população geral (3%), sendo bastante mais frequente na população idosa, e muito rara na população infantil ou juvenil. Embora constitua menos de 0,07% das doenças do foro oftalmológico, de acordo com diversos estudos epidemiológicos pode resultar em amaurose em cerca de 3 a 12% dos casos. Nas formas congénitas têm sido apuradas incidências da ordem de 1/10.000 a 1/20.000 recém-nascidos.

Etiopatogénese e classificação

O humor aquoso produzido pelo corpo ciliar passa da câmara posterior, através do orifício pupilar, para a câmara anterior, sendo drenado através da malha trabecular do ângulo iridocorneano e do canal de Schlemm para a circulação geral pelas chamadas veias aquosas. (Figura 1)

A pressão intra-ocular (PIO) – com um valor médio de 7 mmHg na data do nascimento, aumentando cerca de 1 mmHg cada 2 anos até aos 12 anos – resulta do equilíbrio entre a produção de humor aquoso e a respectiva drenagem. Se houver excesso de produção ou obstáculo à drenagem verifica-se acumulação de líquido no interior do globo ocular. O excesso de PIO compromete a vascularização do nervo óptico levando à perda de função progressiva das fibras nervosas de que se compõe, com consequente perda de campo visual.

A imaturidade do colagénio da córnea e esclerótica na infância confere elasticidade ao globo ocular. Na criança, o excesso de PIO pode ainda originar aumento de volume do globo ocular (buftalmo) e da córnea (megalocórnea); o estiramento desta estrutura, assim como a rutura das camadas mais posteriores da mesma favorecem a entrada de humor aquoso na sua espessura, do que resulta edema e consequente perda da habitual transparência.

Da etiopatogénese decorre um dos modos de classificar o glaucoma, podendo considerar-se dois grandes grupos:

  1. Os glaucomas resultantes de qualquer perturbação do sistema de circulação e de drenagem do humor aquoso, relacionável com anomalia isolada do ângulo iridocorneano (disgenesia da malha trabecular) e alterações secundárias do desenvolvimento da íris e corpo ciliar – são os glaucomas primários; (Figura 1)
  2. Os glaucomas resultantes de doenças oculares congénitas ou adquiridas várias (por exemplo outro tipo de disgenesias como do segmento anterior do globo ocular, do segmento posterior ou de todo o globo), doenças inflamatórias ou infecciosas do globo ocular (por ex. uveíte), doenças metabólicas (por ex. mucopolissacaridoses), doenças do tecido conjuntivo, tumores oculares (por retinoblastoma), bloqueio da pupila por sinéquias posteriores da íris ao cristalino, subluxação do cristalino (por ex. na homocistinúria e síndroma de Marfan), artrite crónica juvenil (por sinéquias inflamatórias – goniossinéquias), neurofibromatoses, anomalias craniofaciais sindromáticas, cromossomopatias, lesões resultantes de traumatismos, lesões iatrogénicas (como as que resultam de intervenções cirúrgicas por catarata, e do uso prolongado de corticosteróides locais ou sistémicos etc.) – são os glaucomas secundários.

Existem outras classificações relacionadas, nomeadamente com: o modo de aparecimento (agudo ou crónico), idade de aparecimento, idade de manifestação (no período neonatal ou ulteriormente).

FIGURA 1. Ângulo iridocorneano

Manifestações clínicas e diagnóstico

O glaucoma primário (correspondendo a cerca de 60-70% dos casos pediátricos, em regra congénito, pelo facto de a PIO ter início geralmente no período pré-natal), evidencia sintomatologia antes dos 3 anos de idade, enquanto o que é gerado após o nascimento (em regra secundário, também chamado adquirido ou juvenil) evidencia sintomatologia entre os 3 e 30 anos.

As manifestações dependem muito da magnitude da elevação da PIO e da idade de início. Os achados mais frequentes são: lacrimejo, fotofobia, blefarospasmo, megalocórnea, buftalmo e opacidade corneana.

Uma PIO elevada muito precoce, evidenciada logo na data do nascimento, pode provocar opacificação, procidência e aumento de dimensões da córnea. Nos casos de aumento mais gradual da PIO poderá verificar-se, não opacidade corneana, mas apenas buftalmo ou buftalmia.

A ocorrência simultânea de lacrimejo, fotofobia e blefarospasmo, no recém-nascido ou lactente, associados a edema corneano, é muito sugestiva de hipertensão ocular.

Após os 3 anos, como diminui a elasticidade do segmento anterior, a criança pode evidenciar miopia progressiva, estrabismo ou percepção de perda de campo visual; nestas situações a sintomatologia relaciona-se essencialmente com a perda visual.

O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se com a megalocórnea, inflamações, traumatismos de nascimento, obstrução das vias nasolacrimais, e ceratoconjuntivites, entre outras situações.

Seguidamente é dada ênfase a duas formas clínicas de glaucoma primário.

Glaucoma primário congénito

É a forma mais frequente de glaucoma no recém-nascido e lactente.

Na maioria dos casos trata-se de formas esporádicas, demonstrando-se em cerca de 10-40% dos casos antecedentes familiares e hereditariedade autossómica recessiva com penetrância variável. Conhecem-se pelo menos três loci cromossómicos responsáveis pela hereditariedade do glaucoma congénito primário. O gene CYP1B1 foi identificado num desses três loci.

O risco de ocorrência em irmãos de uma criança afectada, sem consanguinidade dos pais, é muito baixo (3% para o sexo masculino e 0% para uma criança do sexo feminino). Apesar de a probabilidade ser baixa, recomenda-se o exame de irmãos e descendentes de doentes com glaucoma congénito primário, especialmente nos primeiros 6 meses de vida.

Glaucoma primário juvenil

Associa-se a miopia e história familiar de glaucoma, de início entre os 5 e 20 anos. Parece haver associação com o gene GLC1A do cromossoma 1q21-q31.

Exames complementares

Para além da tonometria e doutros exames especializados que ultrapassam o âmbito deste trabalho, o especialista recorre em geral a exames imagiológicos, destacando-se a ecografia para avaliação do comprimento axial do globo ocular, com relevância na fase de opção terapêutica e no estudo evolutivo.

Tratamento

A abordagem terapêutica médica ou cirúrgica (a cargo do especialista de oftalmologia) é variável consoante o tipo de glaucoma, sendo objectivo regular a PIO e preservar a acuidade visual. Importa, por isso, que o clínico geral e o pediatra estejam sensibilizados para os sinais descritos, tendo em vista a referência atempada para o oftalmologista.

Salienta-se que o glaucoma congénito deve ser sempre considerado uma emergência médica.

Existem vários colírios antiglaucomatosos com mecanismos de acção diferentes, utilizados em geral a título temporário. Frequentemente, o medicamento que se usa em primeira linha na criança é um beta-bloqueante, o que exige algumas precauções uma vez que se verifica sempre absorção sistémica do medicamento. Inibidores da anidrase carbónica, antagonistas das prostaglandinas e parassimpaticomiméticos são outros medicamentos que podem ser empregues.

O tratamento do glaucoma relacionado com anomalias do desenvolvimento é essencialmente cirúrgico (por vezes numerosas intervenções ao longo da vida, mesmo quando os resultados imediatos são bons). O recurso a medicação antiglaucomatosa habitualmente é temporário.

Prognóstico

Dum modo geral pode afirmar-se que o prognóstico do glaucoma congénito é mau; com efeito, em mais de 50% das crianças a acuidade visual fica reduzida a cerca de 1/10, embora, face às medidas levadas a cabo, com PIO normalizada na maioria dos casos.

O prognóstico relaciona-se, mais com o atraso no diagnóstico e com a gravidade da doença, do que com a técnica cirúrgica utilizada.

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OBSTRUÇÃO DO APARELHO LACRIMAL

Bases anatomofisiológicas e definições

Em condições basais, a produção da lágrima depende das várias células glandulares que se distribuem pelas pálpebras e conjuntiva. Destacando-se a glândula lacrimal, esta localiza-se na porção súpero-externa e anterior da órbita; compreende duas porções: orbital e palpebral. (Figura 1)

A mesma cresce até aos 4 anos, sendo que a produção reflexa da sua secreção – a lágrima – é, em geral, ínfima até ao 6º mês de vida.

O filme lacrimal com as suas três camadas – lipídica, aquosa e mucinosa, desempenha um papel importante na nutrição da córnea, na sua lubrificação, na protecção do olho contra os agentes infecciosos e os poluentes externos, e na refracção. A sua composição, produção e estabilidade são, por isso, importantes.

A fina camada lipídica, a mais externa, é produzida pelas células intertarsais das glândulas de Meibomius, pelas células glandulares sebáceas de Zeiss e pelas células sudoríparas de Moll.

A camada aquosa, intermédia e a mais espessa, resulta das células secretoras de Krause e de Wolfring, também designadas por glândulas lacrimais acessórias.

A camada mucinosa, mais interna, é produzida pelas células caliciformes, pelas células glandulares de Manz e pelas criptas de Henle. (Figura 2)

O movimento das pálpebras promove a circulação da lágrima encaminhando-a para o canto interno da fenda palpebral – carúncula. A sua drenagem faz-se pelas vias lacrimais que se iniciam nos pontos lacrimais, pequenos orifícios, um superior e outro inferior, no topo dos tubérculos lacrimais. Seguem-se os canalículos lacrimais que se abrem no saco lacrimal, e este continua-se pelo canal lacrimonasal, cuja abertura inferior se localiza no meato inferior das fossas nasais.

FIGURA 1. Globo ocular direito em esquema: relação com pálpebra e carúncula lacrimal.

FIGURA  2. Constituição anatómica da pálpebra (corte sagital)

Embriologicamente as vias lacrimais resultam de um cordão celular ectodérmico cujas células centrais desaparecem depois, para dar lugar ao lume tubular. À nascença, segundo alguns estudos, mais de 35% dos bebés não têm ainda a totalidade do sistema de drenagem patente, e em cerca de 5% das crianças nascidas de termo persistem ainda alguns restos celulares até cerca do sexto mês de vida, ocluindo a parte inferior do canal lacrimonasal. (Figura 3)

As Figuras 1 e 3 esquematisando, respectivamente a relação entre glândula lacrimal e carúncula, e o trajecto das vias lacrimais, facilitam a compreensão dos processos em que existe dificuldade de drenagem da secreção lacrimal.

Diz-se que há lacrimejo quando se verifica excesso de produção de lágrimas, como acontece, por exemplo, nos casos de estimulação retiniana com luz brilhante), psíquica (por ex. o choro e o riso) ou física (por ex.: corpos estranhos, poluentes, ambiente seco). Igualmente, as conjuntivites, os corpos estranhos superficiais na córnea e na conjuntiva, e a triquíase (desvio congénito ou adquirido das pestanas para dentro, contra o globo ocular, enquanto a pálpebra conserva a sua posição normal), podem actuar como irritantes, desencadeando o lacrimejo.

O termo epífora reserva-se para as situações de deficiente drenagem através das vias lacrimais. Em ambos os casos (lacrimejo e epífora), a lágrima transborda o rebordo palpebral, correndo pela face.

 As chamadas “lágrimas de crocodilo” na designação popular correspondem à situação em que há lacrimejo durante a sucção e mastigação; tal se explica por enervação aberrante entre o 5º par craniano (o qual enerva a glândula lacrimal) e as fibras gustativas do 7º par.

FIGURA 3. Vias lacrimais em esquema: olho direito

Importância do problema

Em cerca de 5 a 7 % dos recém-nascidos e lactentes, não estando os canalículos e ductos lacrimais completamente desenvolvidos, existe possibilidade de obstrução lacrimal em idade muito precoce.

Por outro lado, poderão estar em causa defeitos congénitos de canalização duma ou mais daquelas estruturas, também com consequente obstrução lacrimal; salienta-se que a causa mais frequente de epífora no lactente é, de facto, a obstrução congénita da via lacrimal.

Manifestações clínicas

A obstrução das vias lacrimais é a causa mais comum de epífora na criança recém-nascida, que se acompanha por vezes de uma secreção mucosa ou mucopurulenta junto dos pontos lacrimais. As vias lacrimais impermeáveis, com secreção retida funcionando como um meio de cultura e de desenvolvimento microbiano facilitam, por sua vez, a ocorrência de conjuntivites repetidas, com epífora e lacrimejo.

A epífora e o lacrimejo a que atrás nos referimos, como epifenómenos de obstrução da via lacrimal, levam a conjuntivite recorrente explicável pela estase lacrimal; recordando o trajecto das vias lacrimais (Figura 3) pode compreender-se que a compressão do dorso do nariz pode originar refluxo da secreção para o espaço conjuntival.

A dacriocistite (ou infecção do saco nasolacrimal) é uma complicação frequente, sendo de referir que o germe bacteriano mais frequentemente implicado é o Staphylococcus aureus; traduz-se por rubor e dor ao nível da comissura interna palpebral e do dorso do nariz, epífora e refluxo de secreção mucosa ou mucopurulenta pelos canalículos lacrimais.

O diagnóstico de obstrução das vias lacrimais pode ser facilmente feito com a instilação de uma gota de fluoresceína a 2% no fundo de saco conjuntival inferior, verificando-se depois, com luz ultra-violeta, o aparecimento do corante, ou não (no caso de obstrução), nas fossas nasais ou na faringe.

Diagnóstico diferencial

Nas síndromas de obstrução das vias lacrimais haverá que ponderar duas situações específicas: 1) atrésia dos pontos lacrimais (em geral, trata-se duma fina membrana epitelial que oclui o orifício); 2) dacriocistocele (mucocele) congénito, pouco frequente, resultando duma obstrução a montante (canalículos lacrimais) e a jusante (canal lacrimonasal) do saco lacrimal, levando à sua dilatação, habitualmente com infecção, que ocorre nas primeiras semanas de vida.

Tratamento

A massagem digital, ou com uma “cotonete”, repetida várias vezes ao dia na zona do saco lacrimal e do canal lacrimonasal é muitas vezes suficiente para resolver a situação: esvaziando-se com tal manobra o saco lacrimal, evita-se assim o crescimento bacteriano; por outro lado, a pressão hidrostática produzida contribui para a expulsão dos ”restos” de secreções mais ou menos viscosas que ainda entopem o canal lacrimonasal. À massagem pode associar-se a instilação de uma gota de colírio antibiótico, se houver conjuntivites de repetição.

Quando a situação não se soluciona com as massagens persistentes até aos 6 meses, poderá estar indicada a sondagem das vias lacrimais, atitude que deverá ser ponderada e realizada, sempre pelo médico oftalmologista. A título de informação apenas, são descritos alguns procedimentos que ultrapassam o âmbito do pediatra e do clínico geral.

Se a dificuldade de drenagem das lágrimas for explicada por atrésia dos pontos lacrimais, bastará realizar a sua perfuração, seguida de dilatação. Nalguns casos menos frequentes a oclusão prolonga-se pelo canalículo lacrimal, implicando uma atitude cirúrgica mais elaborada.

Nos casos de dacriocistocele (mucocele) congénito, a massagem digital cuidadosa poderá ser suficiente para resolver a situação; noutros casos haverá    necessidade de sondagem cautelosa ou de manobras cirúrgicas mais complexas.

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AMBLIOPIA

Definição e importância do problema

O termo ambliopia, derivado da língua grega – “olho preguiçoso”, significa genericamente situação de acuidade visual baixa. Trata-se, portanto, duma designação com base sintomatológica, a qual engloba diferentes factores etiológicos funcionais ou orgânicos implicando actuações terapêuticas diversas.

Entre os factores etiológicos ditos funcionais citam-se os erros de refracção, opacidade ocular ou disfunção dos músculos do olho. Quanto aos factores de tipo orgânico citam-se fundamentalmente as anomalias congénitas do globo ocular, do SNC e vias ópticas.

Embora as alterações da retina central e das vias ópticas sejam de facto causas de ambliopia, é mais frequente reservar o termo apenas para os casos em que não se verifica lesão orgânica patente nem compromisso da visão periférica e do campo visual.

A ambliopia pode ser unilateral ou bilateral.

Estima-se que a prevalência da ambliopia oscile entre 2 a 4% na população geral, sendo mais frequente a modalidade unilateral. Trata-se dum problema oftalmológico cuja frequência nos países desenvolvidos é superior ao conjunto de todas as outras situações implicadas na redução da visão infantil.

De reiterar as seguintes noções práticas:

  1. o estrabismo é a causa mais comum de ambliopia na criança, sendo a esotropia (estrabismo convergente) a forma mais frequentemente implicada;
  2. o atraso no diagnóstico e no tratamento poderá deixar sequelas permanentes; pelo contrário, quanto mais precoce o diagnóstico etiológico, maiores as probabilidades de recuperação;
  3. quanto mais jovem a criança, maior o risco de desenvolvimento de

Etiopatogénese e classificação

O cérebro, recebendo imagens diferentes dos dois olhos e não conseguindo “fundi-las” numa só, suprime a imagem de um dos olhos para não se verificar diplopia. Consequentemente, o córtex cerebral, desenvolvendo-se sem “adquirir experiência” na recepção do estímulo visual bilateral, passará futuramente a não reconhecer a imagem que é gerada pelo olho não estimulado.

Por outras palavras, caso não haja condições para o estabelecimento de uma visão binocular adequada, o olho “desviado” é funcionalmente suprimido, porque fornece uma imagem de má qualidade sem possibilidade de se fundir com a imagem recolhida pelo outro olho. No olho com boa direcção visual a imagem do objecto-alvo da visão incide correctamente na fóvea, enquanto a imagem do olho desviado se projecta numa zona retiniana extrafoveal e, por isso, incapaz de fornecer uma boa acuidade visual.

Quanto maior for o ângulo do desvio, tanto pior será a imagem captada pela retina do olho desviado, e tanto mais rapidamente se estabelecerá a supressão funcional desse olho e, consequentemente a ambliopia. Por sua vez, um estrabismo monocular e sem alternância é também mais ambliogénico, como o são os estrabismos de instalação mais precoce, em relação aos de aparecimento em idades mais tardias.

De acordo com o que foi referido atrás a propósito de factores funcionais e orgânicos, pode afirmar-se, em síntese, que a imagem não formada pode resultar de:

  1. desvio do olho (ambliopia estrábica); neste caso o olho desviado não é estimulado, razão pela qual se desenvolve nele menos a visão;
  2. necessidade desigual de correcção da visão entre os olhos (ambliopia anisometrópica);
  3. erro de refracção de forte intensidade em ambos os olhos (ambliopia ametrópica);
  4. opacidade no eixo visual (ambliopia de privação).

Como regra geral pode afirmar-se que situações decorrentes de disfunção oculomotora, erro de refracção ou opacidade ocular são potencialmente reversíveis se a criança for estimulada durante o desenvolvimento visual.

Pelo contrário, nos casos em que se verificam anomalias estruturais do globo ocular, anomalias das vias ópticas ou do sistema nervoso central não se verifica melhoria com a estimulação sensorial.

Como exemplos representativos de ambliopia orgânica em idade pediátrica citam-se, entre outras, a retinopatia associada à prematuridade (a abordar no capítulo 271), a displasia da retina e outras anomalias congénitas (como o coloboma macular, o albinismo, a atrofia óptica), ou adquiridas (traumáticas, tóxicas, metabólicas, infecciosas, inflamatórias, etc.).

Diagnóstico

A ambliopia é em geral assintomática; a sua detecção deve ser precoce, e pode ser levada a cabo através dum programa de rastreio da visão em todas as crianças em idade pré-escolar.

No âmbito dos exames de saúde realizados pelo clínico geral ou pediatra em idades-chave, de acordo com o plano nacional de vigilância em saúde infantil, são exequíveis: o “teste da oclusão” descrito a propósito do exame oftalmológico desde os primeiros meses de vida; o teste dos reflexos luminosos na córnea; e o cover-test, realizado de modo seriado antes da idade escolar. Qualquer anomalia ou suspeita de anomalia detectada deve ser encaminhada para especialista de oftalmologia; com efeito, reitera-se que o êxito da recuperação nos casos de ambliopia depende grandemente da precocidade no início do tratamento.

Tratamento

Nas situações de ambliopia o objectivo principal do tratamento é estimular o olho com baixa visão. No caso do estrabismo, o passo inicial é, exactamente, a recuperação da acuidade visual do olho desviado, equilibrando-a tanto quanto possível com a do outro olho; uma das medidas básicas é, precisamente, ocluir o olho considerado saudável para estimular a visão do contralateral, sendo que este procedimento é da competência do oftalmologista.

A avaliação da acuidade visual monocular permitirá desde logo ter uma ideia da diferença refractiva entre os dois olhos. A atempada correcção óptica dos defeitos refractivos subjacentes é determinante para evitar a instalação de ambliopia.

Na ambliopia por privação procura-se a remoção da causa (por ex. tratamento cirúrgico de catarata ou correcção de ptose palpebral). Na catarata congénita a regressão da ambliopia é, em regra, menos eficaz e depende, não só da precocidade do tratamento cirúrgico, mas também do êxito conseguido com a subsequente correcção óptica.

Nas ambliopias anisométrica e ametrópica, entre outras medidas, são utilizadas lentes correctoras. Por vezes, são ainda necessárias medidas complementares de estimulação.

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ESTRABISMO

Definição e importância do problema

O estrabismo é uma situação clínica a que já se fez alusão a propósito do exame oftalmológico: ausência de alinhamento dos eixos dos globos oculares.

Trata-se dum dos problemas clínicos mais frequentes em idade pediátrica (frequência de cerca de 3 a 5%), atingindo valores cerca de dez vezes superiores nos casos de doença motora cerebral. Deve salientar-se a importância do diagnóstico precoce com o objectivo principal de evitar alteração da acuidade visual.

Correspondendo a uma síndroma motora e sensorial, poderá constituir um epifenómeno de doenças mais graves, como tumores do sistema nervoso central ou do próprio globo ocular.

Etiopatogénese e classificação

A falta de alinhamento em paralelo dos eixos dos globos oculares determina que as imagens que chegam ao sistema nervoso central (SNC) “não se fundindo”, originem visão dupla (diplopia) que é compensada pelo SNC através dum mecanismo de supressão da visão do olho desalinhado que, não sendo estimulado, conduz a défice visual.

Por outro lado, nos desalinhamentos adquiridos nem sempre surge tal supressão de estímulo no olho desviado pelo facto de a criança adoptar determinada posição da cabeça (flexão lateral do pescoço e/ou rotação da cabeça) na “tentativa de evitar” visão dupla.

O estrabismo pode classificar-se de acordo com diversos critérios: idade de aparecimento (congénito se antes dos 6 meses, ou adquirido se depois desta idade); compromisso de um ou dois olhos (respectivamente monocular ou binocular, sendo que este último evidencia melhor prognóstico indiciando, em princípio, visão conservada nos dois olhos e menor probabilidade de desenvolvimento de ambliopia); duração da anomalia (constante, intermitente, ou ainda cíclico se se manifestar por períodos com intervalos assintomáticos); direcção do desvio ocular (esotrópico ou convergente, exotrópico ou divergente, hipotrópico ou para baixo, e hipertrópico ou para cima). Lembra-se, a propósito do que foi referido no glossário do capítulo 261 que, em situações consideradas latentes no sentido lato, ou seja, não constantes, o prefixo dos termos será “… fórico” em vez de “… trópico”.

Diagnóstico

A verificação, pelo clínico geral ou pediatra, de desvio ocular mantido pelos 4-5 meses, ou a partir desta idade, implica a realização de história clínica e referência atempada ao oftalmologista acompanhada de relatório sucinto para diagnóstico etiológico e actuação adequada em função do tipo e magnitude do referido desvio. Trata-se, efectivamente, duma situação cujo tratamento ultrapassa o âmbito dos clínicos generalistas (pediatras ou não).

No relatório a enviar ao especialista importa salientar os dados anamnésticos investigados: antecedentes da gravidez, desenvolvimento cognitivo, defeitos congénitos associados, fotofobia, doença motora cerebral não evolutiva, antecedentes de traumatismo cranioencefálico, torcicolo, fotofobia, diplopia, idade e modo de início do desvio ocular, etc..

Idealmente, o relatório deverá incluir igualmente achados do exame físico que foi descrito no capítulo “Exame oftalmológico”, salientando-se que um exame objectivo cuidadoso poderá identificar quadros semelhantes ao estrabismo (pseudostrabismo) como os relacionados, por exemplo, com epicanto, hipertelorismo e assimetria craniofacial.

Uma noção importante a reter é: quanto mais precoce o desvio e mais tardio o início do tratamento, tanto mais reservado o prognóstico. Ou seja, o papel do médico generalista quanto à identificação precoce da situação é de primordial importância.

Tratamento

Para além da correcção estética a proporcionar ao doente, a base racional do tratamento é prevenir a baixa acuidade visual ou a ambliopia, propiciando visão binocular normal.

Na prática, tal desiderato a cargo do especialista, pode ser obtido através de correcção óptica e/ou de intervenção cirúrgica.

Nalguns centros utiliza-se a injecção de toxina botulínica A nos músculos extraoculares.

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