ADOLESCÊNCIA, CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO

Definição e importância do problema

A adolescência (do latim adolescere, significando crescer) corresponde a um período da vida caracterizado por crescimento e desenvolvimento biopsicossocial marcados, o qual decorre entre o final do período de criança (~10 anos) e a adultícia.

Neste período ocorrem várias alterações a diferentes níveis:

  • Biológico – correspondendo a grandes modificações anátomo-fisiológicas;
  • Psicológico – correspondendo à conquista da identidade e à aquisição de autonomia;
  • Social – correspondendo à adaptação harmoniosa ao meio social.

A idade de início do amadurecimento físico, bem como o intervalo de tempo decorrido até à aquisição de maturidade psicossocial plena, é variável de indivíduo para indivíduo, com possibilidade de desfasamento, o que dificulta a delimitação do começo e do fim da adolescência. Contudo, quer por motivos científicos (por ex. comparação de resultados de estudos), quer por motivos burocrático-administrativos (por ex.: realização de trabalhos, programação de serviços, etc.), torna-se indispensável estabelecer limites cronológicos de idade para este grupo.

Assim, a OMS em 1965 definiu a adolescência como o período que se estende aproximadamente dos 10-18 anos, compreendendo três fases:

  • Dos 10 a 12 – adolescência precoce;
  • Dos 13 a 15 – adolescência média;
  • Dos 16 a 18 – adolescência tardia.

O critério cronológico, porém, não é o mais correcto para classificar adequadamente um adolescente. As acentuadas mudanças que ocorrem nas áreas – biológica, cognitiva, afectiva, e social, estão estreitamente ligadas entre si, embora nem sempre decorram em simultâneo; exemplificando: um adolescente com crescimento e desenvolvimento físico em fase adiantada pode apresentar ainda características emocionais da faixa etária anterior e vice-versa.

Por este motivo a adolescência corresponde a uma fase da vida com grande vulnerabilidade em que se manifestam dúvidas e problemas que, a não serem devidamente resolvidos, podem deixar marcas importantes de imaturidade na pessoa adulta.

Evolução estaturo-ponderal

O ritmo acelerado de crescimento nesta fase é consequência da secreção de hormona de crescimento e dos esteróides sexuais (estradiol e testosterona).

A paragem do crescimento, evidenciada pelo encerramento epifisário, é influenciada pela acção das hormonas sexuais (testosterona e estrogénios), parecendo ser os estrogénios os responsáveis pelo encerramento das cartilagens de crescimento em ambos os sexos.

À medida que o amadurecimento sexual avança, a aceleração do crescimento diminui. Por este motivo, na avaliação do crescimento do adolescente, deve relacionar-se a sua altura e idade com o seu estádio de desenvolvimento sexual e a idade óssea, para se poder determinar a potencialidade de crescimento.

Assim, um jovem pré-adolescente de 12 anos, com altura no percentil 3 (P3), mas sem manifestações pubertárias, tem maior potencialidade de crescimento do que outro com a mesma altura, mas desenvolvimento mais acentuado dos caracteres sexuais secundários.

O aumento estatural durante a adolescência equivale a 20-25% da altura final do adulto; tal resulta, em primeiro lugar, do crescimento dos membros inferiores e, em segundo lugar, do crescimento do tronco. Esta situação pode ser traduzida ao estilo lúdico – pela verificação do seguinte: começam por deixar de servir os sapatos, depois as calças e, por fim, as camisolas.

Como resultado deste importante crescimento do tronco, é frequente o aparecimento ou agravamento de desvios da coluna – escoliose do adolescente e cifose juvenil. Por este motivo, o exame da coluna deve sempre fazer parte da observação do adolescente.

As diferenças individuais no que respeita ao crescimento em estatura, da sua normalidade, e da forma como se relacionam com a maturação sexual, devem ser transmitidas ao adolescente de forma a reduzir ao mínimo as preocupações que habitualmente surgem nesta fase de rápidas e muito relevantes transformações corporais.

As preocupações com a altura surgem quando o adolescente se compara com os seus pares no seu grupo de referência, sendo mais frequente no rapaz de estatura baixa e nas raparigas com excesso de altura.

O ganho de peso corresponde a cerca de 50% do peso adulto final. O ritmo de aceleração do ganho em peso é semelhante ao do ganho em altura, sendo que a curva de velocidade de crescimento se inicia 1 ano e meio mais precocemente e com menor intensidade na rapariga do que no rapaz. E o pico de velocidade máxima em ganho de peso, ocorre cerca de 6 meses após o pico de crescimento em estatura nas raparigas, enquanto nos rapazes coincide no tempo.

No sexo masculino, a elevação ponderal pode chegar aos 6,5-12,5 kg por ano, em média 9,5 kg/ano, fazendo-se sobretudo à custa do aumento da massa muscular. O número de células musculares aumenta cerca de 14 vezes desde os 5 aos 16 anos, e as dimensões das células aumentam até quase ao final da 3ª década de vida sob acção dos androgénios. Por esta razão o homem tem, em regra, mais 30% de massa muscular que a mulher.

O pico do crescimento muscular coincide com o pico de velocidade máxima de peso e de altura. No sexo feminino, o aumento de peso é cerca 5,5-10,5 kg/ano, em média 8,5 kg/ano, fazendo-se fundamentalmente por deposição de gordura sob a influência de estrogénios. Também se verifica acréscimo da massa muscular, mas em menor grau do que no sexo masculino. Este facto é devido ao aumento do volume das células musculares, sem aumento do número das mesmas.

A deposição de gordura subcutânea na fase pré-adolescente ocorre lentamente nos dois sexos, diminuindo na fase do pico de crescimento, e chegando a ser praticamente nula no sexo masculino. Após esta fase, a deposição de gordura volta a aumentar, sendo então mais acentuada nas raparigas do que nos rapazes.

As preocupações com o peso surgem no adolescente quando o mesmo estabelece comparação com os seus pares; nas raparigas é mais frequente a preocupação com o excesso de peso (sinto-me gorda…), enquanto nos rapazes com a escassez de musculatura (tenho pouco músculo…).

Crescimento de órgãos e sistemas

Na adolescência verifica-se o crescimento de vários órgãos, tais como coração, pulmões, fígado, baço, rins, assim como de glândulas: pâncreas, tiróide, suprarrenais, etc.; no tecido linfóide, por outro lado, verifica-se involução.

Do crescimento do tecido ósseo resulta, em diversas regiões:

  • Aumento da estatura (o de maior magnitude);
  • Aumento discreto dos ossos da cabeça e face, com consequente modificação da expressão facial, essencialmente devido à pneumatização dos seios frontais;
  • Crescimento do nariz e maxilar superior;
  • Aumento da distância interescapular e do diâmetro transversal do tronco, mais marcado no sexo masculino, devido ao facto de as células cartilagíneas das articulações do ombro responderem selectivamente ao aumento da testosterona;
  • Aumento da distância intertrocanteriana no sexo feminino (alargamento da cintura pélvica) nas raparigas devido à maior sensibilidade das células cartilagíneas da articulação coxo-femoral ao aumento dos estrogénios.

Assim, verifica-se: 1) aspecto de ombros largos tipicamente masculino, com relação diâmetro biacromial/diâmetro bi-ilíaco mais acentuada no rapaz; 2) aspecto de anca larga tipicamente feminino com relação diâmetro biacromial/ diâmetro bi-ilíaco menos acentuada na rapariga.

No sistema nervoso central ocorre uma verdadeira reconstrução do cérebro. Do início da puberdade até aos 15 anos desenvolvem-se sobretudo as regiões cerebrais ligadas à linguagem; este período é, por isso, ideal para a aprendizagem de línguas.

O cérebro da rapariga amadurece mais cedo do que o do rapaz. Os estrogénios têm um papel importante nesta mudança. No rapaz o amadurecimento é mais tardio, o que é explicável pela síntese mais tardia dos estrogénios a partir da testosterona.

A maior parte das alterações do cérebro ocorre no córtex pré-frontal – área responsável pelo planeamento a longo prazo, pelo controlo de emoções e pelo sentido de responsabilidade. Esta área desenvolver-se-á até por volta dos 20-25 anos. Por este motivo o adolescente na hora de tomar uma decisão nem sempre está apto para entrar em conta com as informações de que precisa para o fazer correctamente. Não se trata, pois, duma simples oposição aos pais, mas sim, duma limitação biológica.

No que respeita aos olhos verifica-se um aumento maior no seu eixo sagital, o que justifica o desenvolvimento mais frequente da miopia durante a fase de crescimento rápido pubertário.

Sob a influência da testosterona, a actividade da eritropoietina aumenta, o que explica, no rapaz, valores mais elevados do número de eritrócitos, do hematócrito e da concentração de hemoglobina.

A pressão arterial sofre um aumento consequente às alterações fisiológicas do sistema cardiovascular próprias deste período, nomeadamente expansão do volume plasmático, aumento do débito cardíaco e da resistência vascular periférica, com estabilização da frequência cardíaca. A avaliação da pressão arterial deve constituir uma rotina da consulta de adolescentes de modo a permitir um diagnóstico precoce de hipertensão arterial.

Desenvolvimento biológico

À componente biológica das transformações características da adolescência dá-se o nome de puberdade. Assim, puberdade não é sinónimo de adolescência, mas apenas uma parte integrante da mesma; trata-se, pois, dum epifenómeno da adolescência, traduzido fundamentalmente pela aquisição da capacidade de reprodução.

Caracteriza-se por:

  1. Desenvolvimento do aparelho reprodutor, objectivado:
    • pelo aparecimento de caracteres sexuais secundários – botão mamário, aumento dos testículos e pénis e desenvolvimento do pêlo púbico e axilar e;
    • pela conquista da capacidade reprodutora.
  2. Aceleração da velocidade de crescimento – pico de crescimento pubertário;
  3. Alterações da composição corporal resultantes:
    • do desenvolvimento esquelético, muscular, modificação da quantidade e da distribuição da gordura corporal;
    • do desenvolvimento dos diferentes órgãos e sistemas, nomeadamente dos aparelhos respiratório e cardiocirculatório, com aumento da força e resistência física.

De facto, não se sabe o que realmente desencadeia a puberdade. Num determinado momento do amadurecimento global do organismo, o córtex cerebral gradualmente começa a emitir estímulos para receptores hipotalâmicos produtores de polipéptidos – factores libertadores – os quais promovem, ao nível da hipófise anterior, a produção de gonadotrofinas hipofisárias. Estas, pela via sanguínea, vão estimular as gónadas femininas e masculinas com consequente produção de hormonas sexuais as quais, em conjunto com os androgénios suprarrenais, vão promover as diferentes alterações orgânicas, finalizando a diferenciação sexual (iniciada in utero) e o crescimento estaturo-ponderal.

Nos últimos 100 anos, devido à melhoria das condições de vida, nomeadamente no que se refere à nutrição, tem-se verificado um aumento da estatura final com antecipação da idade da menarca. A este fenómeno evolutivo, observado principalmente a partir do início do século XIX, chama-se aceleração secular do crescimento. Nas sociedades ditas desenvolvidas ou industrializadas de hoje tal fenómeno parece ter terminado pois, nas últimas décadas, não se têm observado mudanças nos parâmetros de crescimento e de maturação biológica.

A variabilidade individual e populacional existente – não só na idade de início da puberdade, mas também na duração, sequência, combinação e dimensão das diferentes modificações corporais – parece depender de vários factores, nomeadamente, carga genética, meio ambiente, nutrição, padrão sócio-económico e estimulação sensorial.

No sexo feminino a puberdade pode ter início entre os 10-13 anos (em média aos 11 anos). No sexo masculino as alterações surgem mais tardiamente, começando entre os 11-14 anos (em média aos 12 anos).

Enquanto alguns jovens têm o seu desenvolvimento completo em 2-3 anos, outros têm-no em 4-5 anos.

Assim, num grupo de adolescentes com a mesma idade cronológica, pode haver:

  • Jovens em que ainda não se começou a verificar sinais de puberdade;
  • Jovens com amadurecimento sexual já iniciado, ou até mesmo completo.

O desconhecimento da normalidade desta ocorrência pode causar grande ansiedade ao adolescente e preocupação para a família, levando a situações de instabilidade e desconforto psíquico.

Desenvolvimento e maturação sexual

Na puberdade a maturação sexual inclui o desenvolvimento das gónadas, dos órgãos da reprodução e dos caracteres sexuais secundários.

A designação de gonadarca refere-se ao aumento da glândula mamária, útero e ovários na rapariga, e ao aumento dos genitais externos – testículos e pénis no rapaz; tal se deve, respectivamente, à elevação dos níveis dos estrogénios na rapariga, e dos androgénios no rapaz.

Na rapariga, a menarca ou aparecimento da primeira menstruação constitui um marco importante do desenvolvimento sexual. O termo adrenarca refere-se ao aparecimento de pelos púbicos, axilares e faciais devido ao aumento dos androgénios suprarrenais. Todos estes dois fenómenos estão interligados, verificando-se uma associação no seu tempo de aparecimento.

No sexo feminino

A primeira manifestação da puberdade é o aparecimento do botão mamário (cerca dos 9 anos) ou telarca; inicialmente unilateral, o aparecimento de tal transformação no lado oposto surge geralmente cerca de seis meses depois; pode haver dor local e, nalguns casos, a telarca pode ser precedida de aumento da estatura. No mesmo ano, em regra, aparece o pêlo púbico.

Nesta fase, a jovem muitas vezes interroga-se acerca da sua nova imagem.

No que respeita ao desenvolvimento mamário, cabe referir algumas possíveis alterações associadas sem significado patológico, tais como:

  • Assimetria mamária
    Considerada fisiológica no começo do desenvolvimento mamário, em cerca de 25% dos jovens aquela mantém-se bem notória na idade adulta. Havendo repercussão psicológica, está indicada a terapêutica cirúrgica, mas somente após terminada a puberdade.
  • Hipertrofia mamária
    É muito frequente, podendo ser exuberante e causar problemas físicos (dores no pescoço, defeito postural, parestesias) e psíquicos. No final da puberdade tende a diminuir; contudo, se os problemas psicológicos se mantiverem, com tendência para isolamento e diminuição da auto-estima, estará também indicada a terapêutica cirúrgica uma vez completado o crescimento.
  • Hipoplasia mamária
    O tamanho reduzido das mamas pode ser constitucional, ou consequente a problemas nutricionais ou a défice hormonal. A terapêutica cirúrgica, quando indicada, também só deve ser efectuada no final da puberdade. Simultaneamente modificam-se útero, ovários, trompa, vagina e vulva.

Os ovários crescem progressiva e lentamente desde o nascimento, verificando-se um aumento superior nos meses que antecedem a menarca.

Nesta fase, são várias as alterações dos genitais externos da adolescente:

  • O comprimento da vagina aumenta, com espessamento, protrusão e enrugamento dos pequenos lábios e desenvolvimento dos grandes lábios.
  • O pH da vagina diminui devido à produção do ácido láctico pelos bacilos de Doderlein que, a partir de agora passam a fazer parte da flora vaginal normal.
  • Surge o corrimento vaginal de cor clara e cheiro inespecífico; trata-se da leucorreia fisiológica da adolescência, também resultado da estimulação estrogénica, com maior secreção do muco cervical e maior descamação das células da mucosa vaginal.

A menarca é um acontecimento tardio da puberdade feminina. Ela ocorre após o pico de velocidade máxima de crescimento, já na fase de desaceleração da curva de crescimento.

As adolescentes crescem em regra 3-4 cm nos 2-3 anos que se seguem à menarca.

O tempo que medeia entre o aparecimento do botão mamário e a menarca varia entre 2-5 anos.

Os primeiros ciclos menstruais são anovulatórios, o que justifica a irregularidade menstrual típica dos dois primeiros anos pós-menarca.

Após este período, na sequência do amadurecimento do eixo hipotálamo-hipofisário e maior número de ciclos ovulatórios, os ciclos tendem a tornar-se regulares.

O aparecimento do pêlo púbico surge cerca de seis meses após a telarca. Os pêlos axilares aparecem mais tarde, acompanhados do desenvolvimento das glândulas sudoríparas e consequente aparecimento do odor e da transpiração característica do adulto.

No sexo masculino

A primeira manifestação de puberdade no rapaz, por vezes não perceptível, é o aumento do volume testicular, seguindo-se o crescimento do pénis, primeiro em comprimento e depois em diâmetro.

O aparecimento do pêlo púbico ocorre mais tarde; e os pêlos axilares, faciais e do restante corpo, aparecem depois.

A sequência habitualmente é:

  • Pêlo púbico, cerca dos 10-11 anos;
  • Pêlo axilar, mais ou menos aos 12-13 anos
  • Pêlo do restante corpo, mais ou menos aos 14-15 anos.

A sequência do aparecimento dos pêlos faciais é a seguinte: primeiramente nos lábios superiores junto às comissuras e, posteriormente, em toda a extensão da parte superior do lábio superior; posteriormente na porção central, debaixo do lábio inferior; e, por fim, estendendo-se a toda região mentoniana.

Tal como no sexo feminino, o desenvolvimento das glândulas sudoríparas acompanha o crescimento do pêlo axilar.

A próstata, glândulas bulbo-ureterais e vesículas seminais também apresentam crescimento acentuado na puberdade.

espermarca – idade da 1ª ejaculação – ocorre na fase de aceleração da curva de crescimento em estatura, coincidindo com a fase ascendente da curva.

A mudança de voz – típica do sexo masculino, mas tardia, surge como consequência do aumento das dimensões da laringe por acção dos androgénios.

Ao nível da glândula mamária verifica-se um aumento do diâmetro e da pigmentação da aréola mamária. Contudo, numa proporção importante de adolescentes (cerca de 1/3), verifica-se concomitantemente aumento do tecido mamário – trata-se da ginecomastia pubertária; é bilateral e por vezes dolorosa, restringindo-se ao aumento do tecido mamário sub-areolar; mede geralmente 2-3 cm de diâmetro, no máximo 4 cm. Móvel e de consistência firme, ocorre transitoriamente (meses) na fase de crescimento estatural rápido, não sendo aderente à pele nem ao tecido celular subcutâneo. Deve-se ao aumento dos níveis dos androgénios testiculares.

É importante tranquilizar o adolescente, informando-o a esse respeito.

A ginecomastia que não regride após 24 meses, provavelmente permanecerá inalterada ao longo dos anos. O aumento da glândula mamária superior a 4 cm, designado macroginecomastia, tem frequentemente importantes repercussões fisiológicas no adolescente, pois a mama adquire características femininas. A regressão espontânea nestes casos é rara, podendo estar indicada terapêutica cirúrgica.

O diagnóstico diferencial da ginecomastia faz-se com:

  • Adipomastia: trata-se de aumento da mama por acumulação de tecido adiposo subareolar; é comum em jovens obesos pré-púberes ou púberes;
  • Ginecomastia patológica: contrariamente à pubertária, é rara.

Deverá admitir-se situação patológica sempre que a mesma ocorra antes do início da maturação sexual, ou após o final da mesma. A anamnese deve incluir um inquérito sobre a ingestão de drogas; o exame físico deverá valorizar, designadamente, a palpação abdominal e os genitais externos (fígado e testículos); para esclarecimento da situação poderá haver necessidade de exames complementares.

As principais causas de ginecomastia patológica são:

  • Drogas: hormonas, fármacos psicoactivos, agentes cardiovasculares, antagonistas de testosterona, tuberculostáticos, citostáticos, drogas ilícitas, etc.;
  • Doenças endocrinológicas: hipogonadismo, hipotiroidismo, tumores da hipófise, suprarrenal, testículos, e do fígado;
  • Doenças crónicas: hepática (cirrose, hepatoma), renal (insuficiência renal, tumor, etc.).

Avaliação da maturação sexual

A sequência do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários foi sistematizada por Tanner (estádios de Tanner) entrando em conta com os seguintes parâmetros:

  • Desenvolvimento mamário na rapariga (M);
  • Desenvolvimento dos genitais externos no rapaz (G);
  • Desenvolvimento do pêlo púbico em ambos os sexos (P).

A classificação compreende 5 estádios (correspondentes a outras tantas características) referentes a cada parâmetro (de 1 a 5), e designados como se segue: M1 a M5, G1 a G5 e P1 a P5. As Figuras 1 e 2 são elucidativas. (DGS, 2002)

FIGURA 1. Desenvolvimento pubertário feminino: critérios de Tanner

FIGURA 2. Desenvolvimento pubertário masculino: critérios de Tanner

Por definição o estádio 1 corresponde à inexistência de desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários e o estádio M2/G2 ao aparecimento  de botão mamário/aumento do volume testicular >4 ml (este último avaliado com o chamado orquidómetro de Prader (conjunto de esferas de volumes variáveis) e eixo maior do testículo >2,5 cm (medido com uma simples régua).

Na rapariga, a menarca define o estádio P5. A avaliação da maturação da glândula mamária, dos genitais externos e do pêlo púbico deve ser feita individualmente, pois poderá não se verificar concordância entre estádios. Por exemplo: uma jovem pode estar em estádio 3 da mama e 2 de pêlo púbico – isto é M3 P2 e um rapaz pode estar em estádio 2 de genitais externos e estádio 1 de pêlo púbico – isto é G2 P1.

A classificação dos estádios de desenvolvimento mamário depende das características e não do tamanho das mamas, o qual é determinado por factores genéticos e nutricionais.

Habitualmente a avaliação é efectuada durante o exame físico do jovem, em ambiente de privacidade e após prévio esclarecimento e consentimento do mesmo. Quando o adolescente recusar a observação pode optar-se pela autoavaliação, em que o adolescente indica num esquema/figura o estádio em que se encontra. Regra geral a correspondência entre a auto e a hetero-avaliação é boa, excepto se se tratar das fases iniciais do desenvolvimento masculino.

De facto, os critérios de Tanner constituem um instrumento de avaliação muito importante pelas seguintes razões:

  1. Existe uma relação directa entre determinado estádio de maturação sexual e determinada fase de crescimento e desenvolvimento, o que permite avaliar de uma forma correcta toda a dinâmica do crescimento na adolescência.
    Exemplificando: no sexo feminino o pico de crescimento inicia-se em M2, atinge a velocidade máxima em M3, e desacelera-se em M4, fase em que ocorre a menarca, parando o crescimento em M5; no sexo masculino o pico de crescimento começa em G3, atinge a velocidade máxima em G4 e desacelera em G5.
    Assim, esta diferença temporal no pico de crescimento associado ao facto de a velocidade de crescimento máxima durante o pico pubertário ser menor nas raparigas, explica a diferença média de cerca de 13 cm, existente entre indivíduos do sexo masculino e feminino.
    Na prática clínica estes aspectos são importantes, nomeadamente quando se pretende esclarecer os jovens quanto a dúvidas ou problemas relacionados com prática desportiva – nomeadamente, tipo de actividade desportiva mais aconselhada, maior risco de lesões por exercício físico eventualmente excessivo e não adequado relativamente a determinado período de crescimento.
  2. Uma vez que a composição corporal do adolescente varia em função da sua maturação sexual, os estádios de Tanner devem ser utilizados, não só para avaliar e monitorizar o desenvolvimento pubertário, o pico de velocidade de crescimento e a idade da menarca, mas também para interpretar valores laboratoriais, como por exemplo, hemoglobina, hematócrito, ferritina e fosfastase alcalina.
  3. Estando as necessidades nutricionais dos adolescentes directamente relacionadas com o crescimento e sua variação dentro da normalidade, as necessidades poderão variar significativamente de jovem para jovem. Durante o pico de velocidade máxima de crescimento existe um aumento das necessidades proteico-calóricas e consequentemente do apetite, originando uma maior ingestão alimentar.
    Assim, o jovem do sexo masculino durante o pico de crescimento – em estádio 3 e 4 – terá necessidade de maior suprimento proteico e energético, do que um adolescente em estádio 1; neste último, de acordo com os critérios de maturação sexual, ainda não terá atingido fase a que corresponde o pico de crescimento e as necessidades nutricionais máximas.
    No sexo feminino, se já tiver ocorrido a menarca, tal significa que a adolescente já está em fase de desaceleração de crescimento, o que implicará, por um lado, redução de alguns nutrientes indicados na fase de pico de crescimento e, por outro, aumento de ingestão de outros, como por exemplo, ferro e ácido fólico, tendo em conta as perdas relacionadas com a menstruação.
    O médico pediatra, o médico de família e o profissional de saúde em geral deverão reconhecer todas as alterações, suas variações dentro da normalidade e respectivas implicações na saúde do adolescente; deste modo, aqueles estarão em condições de informar, esclarecer e ajudar o jovem e seus familiares.

Desenvolvimento psicossocial

Generalidades

No adolescente, a par do desenvolvimento biológico, verifica-se igualmente evolução nas áreas psicológica e social. É nesta fase que uma pessoa se torna física e psiquicamente madura e capaz de se tornar independente.

Embora alguns dados recentes demonstrem que cerca de 75% dos adolescentes e suas famílias têm uma experiência de transição considerada sem problemas, muitos descrevem este período como sendo um período de estresse e conflitos.

Embora as alterações biológicas que ocorrem nesta fase da vida sejam universais, as modificações ligadas ao desenvolvimento psicossocial são vividas de modo diferente de indivíduo para indivíduo em função do tipo de família e de sociedade em que os mesmos estão inseridos.

Nas sociedades primitivas a passagem da infância para a idade adulta é facilitada pelos rituais, definindo o momento a partir do qual o adolescente fica capacitado para desempenhar o papel de adulto.

Nas sociedades mais desenvolvidas e evoluídas tecnicamente o amadurecimento biológico (tipificado por ex. com a idade cada vez mais precoce da menarca), assim como o desenvolvimento intelectual, são atingidos cada vez mais cedo. Pelo contrário, a maturidade social é alcançada cada vez mais tarde; verifica-se mesmo uma tendência para os jovens permanecerem na dependência paterna, nomeadamente no que se refere ao apoio financeiro: é o contexto da chamada geração canguru.

Nas regiões com desenvolvimento precário (e, por vezes, determinadas áreas de países desenvolvidos e altamente industrializados), quanto mais baixo for o estrato socioeconómico do indivíduo, menor duração terá o período da adolescência, uma vez que, ao ser obrigado a trabalhar para sobreviver, o adolescente se vê forçado a assumir as obrigações da adultícia, mesmo antes de ter terminado o seu desenvolvimento físico.

Etapas do desenvolvimento psicossocial

À semelhança do desenvolvimento da criança, o adolescente também passa por etapas no desenvolvimento biopsicossocial.

Considerando a adolescência arbitrariamente dividida em 3 etapas – precoce, média e tardia – em cada uma delas podem ser consideradas, respectivamente, as características de ordem psicológica e social em correspondência com as características de ordem física; salienta-se, a propósito, que alguns autores consideram a divisão em subgrupos etários, diversa da adoptada pela (OMS) (Quadro 1).

Impacte da puberdade no adolescente

As mudanças físicas operadas são vividas pelos jovens com ansiedade e, muitas vezes, de uma forma aparentemente desordenada, levando o adolescente a perder a noção do seu esquema corporal. Na prática fica como que desajeitado, derrubando e pisando tudo e todos. Concomitantemente com estas alterações biológicas do pico de crescimento, poderão surgir fadiga e hipersónia.

Os pais, nesta fase, deverão reconhecer que o adolescente passa a ter necessidade de mais sono, promovendo horas de deitar regulares, e tentando reduzir ao mínimo distracções na cama (TV, telemóveis, jogos de computador). Nesta fase, uns crescem mais, outros menos, parecendo que o corpo fica parado enquanto a “cabeça vai amadurecendo” progressivamente.

Quanto menor a autoestima, mais defeitos o jovem assume e encontra em si próprio.

As raparigas têm mais tendência para partilhar as suas preocupações, e os rapazes para passar por uma fase de timidez que por vezes os leva ao isolamento.

Tanto nos adolescentes “com maturação mais precoce” como naqueles com maturação mais tardia existe maior probabilidade de surgirem perturbações da imagem corporal. Contudo, os adolescentes precoces têm maior tendência para problemas de saúde mental (depressão), início mais precoce de actividade sexual, (nomeadamente relações sexuais com número variável de parceiros) e para a marginalidade. A rapariga quer ter o seu grupo de amigas, sendo que a tendência poderá indiciar algo anómalo quanto a comportamento.

O rapaz, nesta fase, tipicamente “com muita hormona e pouco cérebro”, apresenta mais modificações físicas do que comportamentais, fazendo valer o seu ponto de vista, mesmo que ainda não o tenha.

As raparigas dão maior importância aos relacionamentos e os rapazes ao desempenho; no entanto, ambos se consideram omnipotentes e invulneráveis. Porém, ter capacidade física não significa ter maturidade psíquica, o que se torna verdadeiramente problemático.

Com o aparecimento do primeiro amor – tipicamente de duração inversamente proporcional à intensidade emocional – surge muitas vezes a primeira desilusão e, posteriormente, o sentimento depressivo transitório.

A expressão “estar apaixonado” nos dias de hoje quase que ficou reduzida ao simples “fazer amor”. Tendo a sexualidade sido alvo de repressão e interdição, tornou-se nos nossos dias um aspecto explorado e exibido.

Na fase de adolescência precoce e média em que é fundamental a identificação com o grupo de pares, o jovem tem necessidade de fazer o mesmo que os outros, levando-o a praticar uma sexualidade realmente desprovida de afectos, bastantes vezes “ensombrada” por gravidez ou doença sexualmente transmissível (DST). Cabe referir, a propósito, que cerca de 25% dos adolescentes que se tornam sexualmente activos, adquirem DST.

De facto, nos dias de hoje, a actividade sexual começa cada vez mais cedo, o que pode ser explicado pelos seguintes factos:

  • Início mais precoce da puberdade contrapondo-se à idade mais tardia da independência económica;
  • Ausência de família contentora, com regras, valores e boas imagens de referência com as quais o jovem se possa identificar;
  • Características do próprio adolescente – indestrutibilidade;
  • Pressão do grupo – “se os outros fazem….”;
  • Diferentes influências socioculturais;
  • Influência dos meios de comunicação social – com a difusão de imagens valorizando as relações casuais, sem protecção e com vários parceiros.

Importância da família e dos grupos de pares

As crianças e os adolescentes, aprendem com o que vivem.

Assim, o médico que cuida de adolescentes deverá reconhecer a importância da compreensão da dinâmica familiar e do potencial impacte dessa dinâmica nos sintomas do adolescente. Este aspecto é particularmente importante quando o médico está a avaliar o adolescente do ponto de vista psicológico.

Nesta perspectiva é importante que o referido médico caracterize o tipo de família: se se trata de tradicional, com pai como único elemento de sustento, ou com os dois, pai e mãe empregados, fora de casa; ou se se trata duma família mono parental, cabendo avaliar o papel do outro progenitor. De facto, o problema do adolescente poderá ser uma replicação do problema dos pais.

O absentismo escolar pode, por ex., ser modelado pelos hábitos laborais dum pai alcoólico com faltas frequentes ao emprego. O adolescente obeso, poderá ter pais obesos, com pouco tempo ou interesse em providenciar em casa refeições adequadas e programar actividades que envolvam exercício físico.

O estrato socioeconómico e cultural da família pode igualmente ajudar o médico a compreender os meios de desenvolvimento do adolescente. Nas classes mais elevadas os jovens viajam mais, têm mais actividades culturais e comunitárias. Na classe média os adolescentes têm mais actividades desportivas e grupos de jovens. Nas classes mais baixas o mais frequente é não terem qualquer tipo de actividade estruturada.

No que respeita a diferentes culturas sabe-se que nalgumas têm menos conflitos parentais ao longo desta fase da vida; habitualmente nas culturas menos diferenciadas e menos tecnológicas existem menos conflitos.

Nas primeiras fases do seu desenvolvimento, o jovem procura, de uma forma natural, fora do agregado, outras imagens ou figuras adultas de referência. Grupos de voluntários, clubes desportivos, actividades recreativas e grupos religiosos são meios sociais através dos quais os jovens têm a possibilidade de desenvolver esses modelos de identificação constituindo um bom factor protector no seu desenvolvimento psicossocial.

No que respeita ao estresse no seio familiar, a presença do adolescente pode ser causadora do mesmo, sendo que muitas vezes existem outras fontes de tensão que deverão ser devidamente valorizadas pelo clínico: problemas conjugais, ausência frequente de um dos progenitores, insegurança no emprego, situação de doença, nomeadamente psiquiátrica, abuso de drogas, um membro da família a cumprir pena de prisão; todas estas situações podem ter, de facto, consequências graves na saúde mental do adolescente.

Para além da família, os pares constituem uma importante influência para o adolescente, sendo que na construção do relacionamento com os pares, a maioria dos adolescentes não pretende, de uma forma intencional, isolar-se dos pais.

Os jovens, separando-se dos membros da sua família (pais), em regra, aproximam-se dos pares do mesmo sexo. O adolescente precoce esforça-se por ser aceite entre os seus grupos de pares os quais exercem diariamente uma poderosa influência, não só quanto a comportamentos saudáveis, mas também quanto aos não saudáveis; salienta-se que álcool, tabaco, uso de drogas ilícitas, são inicialmente experimentados no contexto dos grupos de pares.

Como se pode depreender, o decréscimo do envolvimento dos pais, a sua falta de comunicação, de diálogo e a falta de disciplina, contribuem para o grau de influência que os pares têm sobre um jovem adolescente.

Os clínicos devem chamar a atenção dos pais para a importância do seu papel em minorar a influência negativa dos pares e encorajá-los, bem como à família, a adoptar uma auto-imagem positiva no adolescente através de reforço positivo, elogio e de aceitação. O elogio deverá ser dirigido não só ao adolescente, mas também a outras pessoas que figuram na sua vida, tais como pares e professores. Os jovens precisam de ouvir os pais, e outros adultos a falar positivamente de outras pessoas em geral, pois essa é uma forma de aprendizagem da tolerância.

A presença de doença crónica durante a adolescência pode, independentemente das manifestações próprias da doença, interferir directamente no comportamento dos jovens. Entre as principais alterações observam-se: interrupção na consolidação do processo de separação dos pais comprometendo a aquisição de autonomia, modificação da imagem corporal, limitação das actividades com o grupo de pares e dificuldade no desenvolvimento da identidade. Todos estes aspectos podem manifestar-se através de comportamentos de risco devido à consequente baixa autoestima, segregação do grupo, absentismo escolar, disfunção sexual e sintomas depressivos.

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SÍNDROMA DA MORTE SÚBITA DO LACTENTE

Definição e importância do problema

Em 1969 Beckwith e Bergman da Universidade de Washington propuseram o nome de síndroma da morte súbita do lactente (SMSL), (SIDS – sudden infant death syndrome), que definiram como a morte inesperada de qualquer recém-nascido ou lactente (idade inferior a 1 ano), inexplicada pela história, exame físico, autópsia e investigação da cena da morte.

De acordo com a definição deduz-se que se torna indispensável proceder a exame necrópsico exaustivo em cada caso, pois trata-se de um diagnóstico de exclusão, o qual só poderá ser considerado se o estudo realizado após a morte for adequado.

A morte súbita de uma criança, é, sem dúvida alguma, um acontecimento brutal e devastador para os pais, família, profissionais de saúde e comunidade.

A primeira referência escrita sobre morte súbita do lactente foi encontrada no Antigo Testamento. Posteriormente várias descrições surgiram, sendo a maioria das vezes interpretadas como homicídio ou sufocação na cama dos pais.

Só no séc. XVIII se procurou distinguir entre morte súbita acidental e homicídio, através de uma investigação policial. Mais tarde, no séc. XIX, surgiu um estudo escocês que, pela primeira vez, se dedicou à epidemiologia destas mortes.

Aspectos epidemiológicos

A SMSL, a causa mais comum de morte em lactentes nos países desenvolvidos, comparticipa em cerca de 40 a 50% a taxa de mortalidade entre 1 mês e 1 ano de idade.

A ocorrência de morte súbita é rara no primeiro mês de vida, aumenta até um valor máximo entre os 2 e os 4 meses, sendo de referir que cerca de 95% dos casos surgem antes dos 6 meses de idade. Acontece geralmente no domicílio, sendo o lactente encontrado morto no leito.

As campanhas de sensibilização para colocar os lactentes em decúbito dorsal no berço resultaram numa acentuada diminuição da incidência da morte súbita em vários países, embora esta ainda continue a ser a maior causa de mortalidade nos lactentes após o período neonatal, como foi acentuado. Tal campanha nos EUA, liderada pela Academia Americana de Pediatria, traduziu-se entre 1992 e 2000 numa redução superior a 50% na mortalidade (de 130/100.000 nados-vivos para 60/100.000 nados-vivos), verificando-se ulteriormente estabilização da respectiva taxa.

No nosso país, foi efectuado um estudo retrospectivo dos casos autopsiados de lactentes vítimas de morte súbita, nos Institutos de Medicina Legal do Porto e de Coimbra, entre 1979 e 1994, que mostrou um aumento do número de casos de 1974 a 1990, com decréscimo a partir de 1992. Verificou-se um predomínio acentuado da síndroma da morte súbita do lactente no sexo masculino, entre 1 e 4 meses, nos meses de Dezembro a Março, nos fins-de-semana, no domicílio, em períodos de sono e à noite.

Desconhecendo-se, de facto, a sua verdadeira dimensão em Portugal, cabe citar 3 casos divulgados pelo INE referentes ao ano de 2014, a que correspondem 82.367 nados-vivos.

Etiopatogénese

1. Apesar de exaustiva investigação (laboratorial e clínica) sobre a etiopatogénese da SMSL, a mesma continua desconhecida, o que também limita uma adequada estratégia de intervenção. A concepção actual de morte súbita do lactente é a de um acidente multifactorial, no qual vários aspectos serão considerados, tais como:

  1. Factores genéticos/ intrínsecos – maturação do controlo das funções vitais (ritmo cárdio-respiratório, sono, imunidade, etc.), maturação essa, programada geneticamente, que se efectua nos primeiros meses de vida, com importantes variações individuais;
  2. Factores desencadeantes – as patologias habituais desta faixa etária, numerosas e variadas, por vezes acumuladas, nomeadamente infecção, refluxo gastresofágico, hipertonia vagal, hipertermia;
  3. Factores predisponentes ligados ao ambiente do lactente, como sejam, condições sócio-económico-culturais precárias, o tabagismo e a posição de dormir no berço. Esta concepção integra o chamado modelo de “triplo risco”.

O Quadro 1 discrimina os factores ambientais associados a risco elevado de SMSL.

QUADRO 1 – Factores de risco de SMSL e ambiente

Factores maternos e pré-natais

• Restrição do crescimento intrauterino

• Intervalo curto intergravidezes

• Separação marital

• Idade mais jovem

• Estado sócio-económico precário

• Gravidez não vigiada

• Subnutrição

• Toxicodependência

• Tabagismo

• Alfa-fetoproteína sérica elevada no 2º trimestre da gravidez

Factores de risco do lactente

• Posição de dormir (decúbito ventral e lateral)

• Ausência de uso de chupeta

• Idade (2-4 meses)

• Sexo masculino

• Hipocrescimento

• Antecedentes de prematuridade

• Doença febril recente

• Exposição ao fumo do tabaco (pré e pós-natal)

• Colchão do berço mole

• Dormir na cama dos pais ou com outra pessoa

• Aquecimento exagerado do quarto

• Baixa temperatura do quarto/estação fria

FIGURA 1. Hipótese do controlo cárdio-respiratório para a SMSL

O aumento da temperatura corporal e do ambiente associa-se, também como foi referido, a SMSL. Há interacções entre a regulação da temperatura, sensibilidade dos quimiorreceptores, controlo cardíaco e o acordar.

2. Os achados necrópsicos no contexto de SMSL não são patognomónicos, embora alguns deles tenham sido identificados em maior proporção (~65-90%): hemorragias petequiais relacionáveis com asfixia crónica, edema pulmonar, astrogliose focal, anomalias dendríticas e anomalias do desenvolvimento no tronco cerebral.

Apesar da etiologia multifactorial deste problema, a disfunção do tronco cerebral é considerada com maior probabilidade o factor com mais impacte na génese da SMSL (Figura 1).

3. Em estudos realizados em vítimas de SMSL identificaram-se níveis mais elevados do factor de crescimento vascular endotelial (VEGF ou vascular endothelial growth factor) no líquido cefalorraquidiano, o que se pode relacionar com eventos hipóxicos, por sua vez explicados por polimorfismos em genes.

 

Efectivamente, foram verificadas características genéticas diferentes nas crianças vítimas de SMSL em comparação com grupos de controle.

Tais características, determinando vulnerabilidade, dizem respeito a polimorfismos relacionados com certos genes implicados em determinadas funções:

  1. Desenvolvimento do sistema nervoso autónomo (por ex. PHOX2A);
  2. Função dos canais de sódio e potássio no miocárdio (por ex.: SCN5A, KCNE2, KCNH2, etc., de cuja perturbação resulta o conceito de canalopatia) sendo que uma das várias modalidades de síndroma de QT longo se relaciona com SCN5A; num certo número de casos a SMSL está associada a um prolongamento do intervalo QT (síndroma do QT longo), sugerindo que a repolarização cardíaca também está prolongada, podendo condicionar o aparecimento de arritmia ventricular. (ver adiante nota sobre ALTE);
  3. Infecção e inflamação (o papel do complemento, das interleucinas, do VEGF, do TNF-alfa pró-inflamatório, da IL-8 pró-inflamatória associado à posição de decúbito ventral a dormir); e, a respeito da posição de decúbito ventral para dormir, importa citar essencialmente dois factos:
    3.1) estudos realizados ao nível dos neurotransmissores no nucleus arcuato identificaram anomalias nos respectivos receptores (défice de capacidade de captação/ligação) com implicações funcionais no que respeita ao controlo autonómico da respiração e à capacidade de resposta a estímulos;
    3.2) nas crianças vítimas de SMSL foram encontrados níveis elevados de interleucina 1-beta (IL-1B) no arcuato e nos núcleos vagais.
  4. Função da proteína transportadora da serotonina 5HT (relacionada com 5-HTT); a este respeito importa referir:
    4.1) os achados neuropatológicos mais constantes e específicos verificados em mais de 70% dos casos de SMSL apontam para um polimorfismo funcional no gene transportador de 5-HT cuja consequência é uma diminuição da resposta normal da criança à retenção de CO2;
    4.2) ou seja, crianças “não vulneráveis” acordam durante o sono calmo em resposta à hipercápnia, com uma pCO2 (pressão parcial de CO2) significativamente mais baixa em comparação com as “vulneráveis ou de risco”.

Notas práticas importantes

1. Cabe aos pediatras em especial o estudo exaustivo dos doentes dos grupos de risco, bem como o correcto diagnóstico das causas de morte, com a realização sistemática da autópsia anátomo-clínica ou médico-legal. Tivemos a oportunidade de demonstrar que a autópsia modifica o diagnóstico clínico da causa de morte, ou acrescenta algo a este, em cerca de 30% dos casos (dados não publicados).

Pode afirmar-se que o grande desafio no âmbito da investigação sobre SMSL é procurar uma prova/exame complementar de rastreio que permita identificar as crianças com risco de morte por SMSL. Refira-se que os estudos polissonográficos não têm especificidade nem sensibilidade suficientes para serem recomendados por rotina na identificação de futuras vítimas de SMSL.

2. A abordagem da SMSL implica uma segunda nota sobre a chamada ALTE (sigla de apparent life-threatening event/episódio agudo com risco de vida). Tal problema clínico, que não tem qualquer relação com SMSL, não constitui um diagnóstico e pode surgir em lactentes com uma incidência ~ 0,05-1%; define-se pelo aparecimento inesperado, súbito e alarmante para o observador, de um ou mais dos seguintes sinais: apneia, cianose, rubor, palidez, alteração do tono muscular/hipotonia ou hipertonia. Por vezes o evento é descrito como sufocação, engasgamento, ou aparência de morte iminente, verificando-se recuperação da normalidade com reanimação ou estimulação.

A etiologia é variável (e controversa), sendo mais frequente a associação com RGE, infecção das vias respiratórias inferiores (por ex. por Bordetella pertussis e VSR), síndroma de QT longo, e convulsão. De acordo com a literatura consultada comprovou-se, nos casos de ALTE, défice permanente da secreção de melatonina e maior frequência de aparecimento no período diurno, ao contrário da SMSL.

Perante tal situação, a criança deverá ficar monitorizada durante 24 horas, estando indicados exames complementares em função dos dados colhidos pela anamnese e exame físico.

De acordo com diversos estudos, e apesar da independência do quadro descrito com SMSL, existe risco mais elevado de SMSL nos casos de mãe fumadora. Contudo, no que respeita à prevenção, a mesma comporta normas idênticas às aconselhadas para a SMSL. (ver adiante)

Prevenção

Como foi referido, conhecem-se vários factores de risco de SMSL, classificados em pré-natais, neonatais e pós-natais. De todos eles, o que mais tem sido referido na literatura é a posição de dormir no berço dos recém-nascidos e lactentes.

Está demonstrado actualmente que a posição em decúbito ventral no berço constitui um factor de risco (o risco relativo passa de 3,5 para 9,3) de SMSL. Esta relação foi sugerida, pela primeira vez, por Carpenter et al em 1965. Posteriormente vários autores têm-se dedicado ao estudo da relação entre posição no berço e risco de morte súbita.

Em Abril de 1992 a Academia Americana de Pediatria (já anteriormente citada) com base na avaliação cuidadosa dos estudos publicados, passou a recomendar o decúbito dorsal para os lactentes. Esta recomendação foi também publicada no mesmo ano, em Portugal, pela Direcção Geral da Saúde e consta do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil. (ver capítulo sobre Plagiocefalias).

Recentemente Angeline Chong et al, demonstraram que a posição em decúbito ventral tem um efeito mensurável no controlo circulatório, com redução do tono vasomotor, do qual resultam: vasodilatação periférica, aumento da temperatura cutânea, hipotensão e taquicardia. Como o tono vasomotor é fundamental no controlo circulatório, o mesmo pode ser considerado um factor de risco de morte súbita.

Numa era em que a chamada Medicina Baseada na Evidência assumiu um papel importante valorizando os resultados de estudos epidemiológicos em situações em que a fisiopatologia não permite ainda uma explicação de certos fenómenos, as provas acumuladas legitimam que nos serviços e unidades assistenciais em que se prestam cuidados a recém-nascidos e lactentes, os mesmos sejam colocados no berço em decúbito dorsal. Torna-se lógico, pois, que tais recomendações sejam feitas igualmente a pais e profissionais responsáveis pela assistência a essas crianças, incluindo no ambulatório.

Mas há situações particulares, susceptíveis de controvérsia: é o caso dos doentes com refluxo gastresofágico (RGE): o decúbito lateral direito promove esvaziamento gástrico mais rápido e o lateral esquerdo diminui significativamente o conteúdo gástrico refluído. Nesta situação, a recomendação para a prevenção da morte súbita consiste em usar um colchão não mole, firme, bem adaptado às dimensões do berço, não cobrir demasiado o lactente – a roupa não deve ultrapassar os ombros – e evitar o sobreaquecimento. O tipo de decúbito poderá, pois, ter prescrição médica variável em situações específicas, como o RGE.

De acordo com estudos epidemiológicos a nível mundial demonstrou-se que a publicidade contra a posição ventral permitiu reduções de SMSL entre 20% e 67%, sem aumento do número de mortes por aspiração de vómito. Em França, com as campanhas realizadas contra a posição de decúbito ventral para dormir, assistiu-se a uma descida, de 1500 casos (em 1987), para 500 (em 1995), o que corresponde a uma diminuição de 2% para 0,5% na taxa de mortalidade pela nosologia em análise.

Em Portugal, a divulgação dos conhecimentos sobre morte súbita do lactente e a formação dos profissionais e pais não adquiriu a dimensão que decorreu das campanhas realizadas noutros países da Europa. No Boletim de Saúde Infantil é referido, nos conselhos aos pais, que o bebé deve ser colocado “preferencialmente de costas”. Este aspecto, ainda motivo de admiração de muitos pais, é confirmado muitas vezes nas consultas de saúde infantil.

O decúbito dorsal permite ao bebé respirar o ar ambiente normalmente; em caso de febre pode facilmente libertar-se da roupa que o cobre, não correndo o risco de se sufocar.

Até aos 2 anos a criança deve dormir sobre um colchão firme, numa cama de grades para evitar que respire o ar expirado, e sem almofada ou fralda na mão. A temperatura do quarto deve ser entre 18º e 20ºC e, em caso de febre a mesma deve ser despida (arrefecimento físico).

Os pais devem ser igualmente informados dos malefícios do fumo do tabaco, reiterando-se a sua implicação como factor de risco de SMSL. Sabe-se que um recém-nascido ou lactente privado do sono é mais vulnerável, pelo que o seu sono deve ser respeitado.

A monitorização no domicílio só terá lugar em casos seleccionados, pois constitui um factor de estresse para a família; não permite a detecção da apneia obstrutiva, porque a detecção é feita por impedância torácica e não pelo débito nasal.

No Hospital de S. João, com o objectivo de conhecer a informação que os pais possuem relativamente à morte súbita do lactente, foram realizados 134 inquéritos a puérperas do Serviço de Obstetrícia. Verificou-se um total desconhecimento desta entidade clínica em 28,5 % das mães, sendo que 24% consideravam que nada poderia ser feito para evitar tal ocorrência. Apenas 35,8% das mães conhecia a associação da morte súbita do lactente com a posição deste no berço, e 1,5%, com o consumo de tabaco pela grávida e/ou lactante. A posição de decúbito ventral no berço foi referida como a mais indicada por 2,2% das mães. Em igual percentagem as mães referiram que agasalham os filhos em caso de febre; e em 35% dos inquéritos foi afirmado que o bebé deve ser despido em caso de febre, e em 14% que era ministrado antipirético.

Embora o panorama de Educação para a Saúde tenha melhorado na actualidade, o estudo referido mostra que continua a ser essencial a divulgação das recomendações sobre as estratégias de evicção dos factores de risco conhecidos. Esta é uma função de todos os profissionais de saúde, os quais devem dar informação e formação aos pais, aproveitando o período de permanência nas maternidades e durante as consultas.

Em Portugal, assiste-se actualmente a uma preocupação sobre esta problemática, sendo necessário continuar:

  1. A sensibilizar os médicos para um registo adequado das causas de morte; e
  2. A levar a cabo campanhas nacionais de prevenção da morte súbita, no âmbito da educação para a saúde da população, que permitam, à semelhança doutros países, uma diminuição do número de casos.

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ACIDENTES DE SUBMERSÃO

Definição e importância do problema

O afogamento é o processo que condiciona disfunção respiratória após submersão ou imersão em líquido.

Anteriormente era também utilizado o termo quase afogamento (hoje em desuso) para caracterizar situações de sobrevivência por mais de 24 horas após a submersão.

Este tipo de problema comporta elevado número de casos fatais e de sequelas graves nos sobreviventes: a lesão neurológica devida a hipóxia-isquémia constitui a causa principal de mortalidade e de morbilidade a longo prazo.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com os dados da OMS, estima-se que cerca de 372.000 pessoas morrem anualmente em todo o mundo por afogamento (cerca de 42 mortes a cada hora), o que corresponde a uma taxa de mortalidade aproximada de 5,2/100.000. Na Europa a referida taxa ronda 2-4/100.000 e em Portugal a incidência estimada é 1/100.000. Salienta-se, a propósito, que as medidas de reanimação imediatas por pessoal treinado antes da admissão hospitalar reduzem a mortalidade relacionada sobretudo com as consequências cardiorrespiratórias.

Segundo a Associação para a Promoção da Segurança infantil – APSI ocorreram 207 afogamentos com desfecho fatal em crianças e jovens entre 2002 e 2013, tendo havido uma redução de casos no triénio de 2011 a 2013 (com cerca de 9 mortes/ano). Ocorrem predominantemente em rapazes dos 0 a 4 anos e dos 10 a 14 anos, nos meses de verão. É importante notar que por cada morte existirão cerca de dois a três internamentos na sequência de um afogamento. De referir, contudo, que muitos casos fatais não são notificados.

Fisiopatologia

Ocorrendo submersão, todos os órgãos e tecidos correm o risco de hipóxia-isquémia. Em minutos, a hipóxia-isquémia pode levar a paragem cardíaca a que se poderá associar laringospasmo e aspiração de água para a via respiratória, o que contribui para agravar a hipóxia.

Seja por aspiração ou por laringospasmo, surge a hipoxémia com consequente morte celular. A mortalidade e morbilidade estão, no essencial, dependentes da duração da hipoxémia. Nos sobreviventes do afogamento verifica-se repercussão multiorgânica, sobretudo cardiopulmonar e neurológica.

A hipovolémia é frequente por perda de líquidos, relacionada com as alterações de permeabilidade vascular por hipóxia. A hiponatrémia, quando se desenvolve, está mais relacionada com os líquidos deglutidos do que com os líquidos aspirados; e, eventualmente com a síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIHAD) no contexto de disfunção pulmonar e ou do SNC.

A nível pulmonar, quer por alteração do surfactante, quer por diluição do mesmo, o resultado é uma acentuada diminuição da capacidade residual funcional, alteração na permeabilidade da membrana alvéolo-capilar e consequente hipoxémia, o que se pode verificar a partir de 1 a 3 ml/kg de líquido aspirado.

De referir o papel importante dos mediadores inflamatórios, da hipersecreção nas vias respiratórias e da vasoconstrição no território da artéria pulmonar originando hipertensão pulmonar.

A hipoxémia, a acidose metabólica e a hiperpermeabilidade vascular condicionam o aparecimento de hipovolémia e disfunção cardíaca, e a breve trecho, hipotensão importante, muitas vezes irreversível.

As questões relativas à submersão em água muito fria (<5ºC), água fria (<20ºC) e água quente (>20ºC), água doce e água salgada são de nula relevância clínica.

Com efeito, na literatura tradicional era afirmado: 1) a água salgada leva, por osmose, à passagem de água do espaço vascular para os pulmões, com preenchimento alveolar e hipovolémia; 2) água doce, pelo contrário, leva a absorção de água para o espaço vascular com consequentes hipervolémia e hemólise. Na prática tal não se verifica, possivelmente porque na maioria dos sobreviventes o tempo decorrido é insuficiente para que se verique aspiração (suficiente) de água para provocar as referidas alterações.

As alterações osmóticas surgem acima de 22 ml/kg aspirados, sendo que na maioria dos afogamentos não são aspirados mais de 4 ml/kg.

Avaliação

A história clínica inclui designadamente a eventualidade da existência de água perto da área do acidente, pais distraídos ou pouco vigilantes ainda que momentaneamente, rapidez na mobilidade da criança, e silêncio.

Haverá que inquirir sobre antecedentes de epilepsia, doenças cardíacas, traumatismos cervicais e ingestão de álcool ou drogas.

Os sintomas e sinais habitualmente associados são: tosse, dispneia, sibilos, hipotermia, vómitos, diarreia, arritmia cardíaca, alteração da consciência, paragem cardiorrespiratória, morte. Deverá avaliar-se a estabilidade cervical pela probabilidade de acidentes com fractura das vértebras cervicais. Haverá igualmente que detectar eventuais sinais de abuso e negligência.

Em função do contexto clínico, poderá haver necessidade de proceder a:

  1. Monitorização contínua cardiorrespiratória, da pressão arterial e da saturação em O2 da Hb/SpO2 através da oximetria de pulso), ECG.
  2. Exames complementares: hemograma, gasometria, ionograma, enzimas hepáticas, glicemia, doseamento de drogas e álcool, radiografia do tórax, do crânio e da coluna cervical, etc..

Procedimento

A actuação deve ser doseada de acordo com os dados da história clínica e dos exames complementares.

  • A medida prioritária é a administração de oxigénio suplementar a 100%, sempre e em primeiro lugar.

O uso de insuflador manual pode implicar a utilização de pressões bastante superiores às habituais devido à baixa distensibilidade pulmonar, resultante do edema pulmonar, com compromisso do surfactante.

  • Não esquecer a hipótese de lesão cervical e a colocação de colar cervical.

Pacientes com breves momentos de submersão e sem sintomatologia podem regressar a casa após 4 a 6 horas de observação. Sendo notórios sinais de disfunção respiratória, hipoxémia, alterações do estado de consciência ou suspeita de abuso/negligência, os pacientes devem ser transferidos para unidade de cuidados intensivos, onde deverá proceder-se a:

  • Entubação nasogástrica;
  • Expansão vascular (soro fisiológico: 20 ml/kg em 30 minutos) que, associada à oxigenação, resolve quase sempre a acidose metabólica;
  • Entubação e ventilação mecânica se se verificar dificuldade respiratória, alteração do sensório, paO2 <60 torr ou pH <7,20. É frequente a necessidade de PEEP (pressão positiva contínua no fim da expiração) elevada. Existem casos descritos de utilização de ECMO (oxigenação por membrana extracorporal) na abordagem de doentes afogados, sendo, no entanto, necessários mais estudos para a sua recomendação na abordagem deste tipo de doentes;
  • Algaliação;
  • Cateterização venosa central;
  • Broncoscopia.

Notas importantes:

  • Os doentes afogados em água muito fria, < a 5ºC, devem ser observados com especial cuidado; devem ser aquecidos até se atingirem temperaturas normais, ao mesmo tempo mantendo as manobras de reanimação;
  • A monitorização da pressão intracraniana não parece ser útil nem necessária;
  • A utilização de antibióticos de forma profiláctica não está recomendada na abordagem inicial dos doentes.

Complicações

As complicações imediatas são as relacionadas com a hipóxia e acidose com repercussão sobre o sistema cardiovascular, tendo em atenção a possibilidade de disritmias e, em particular, fibrilhação ventricular e assistolia. Se a lesão cardíaca for muito grave é possível surgir choque cardiogénico irreversível.

As lesões do SNC dependem igualmente da intensidade e duração da hipóxia. A sobrevivência em estado vegetativo é uma complicação particularmente grave. De referir que a hipotermia associada ao afogamento poderá ser um factor protector, pela redução do consumo de oxigénio cerebral, embora este efeito seja contrariado pela mortalidade associada ao tempo de exposição da vítima à água.

Nos sobreviventes do afogamento poderá desenvolver-se pneumonia e, no caso da submersão em piscina, pneumonite.

Prognóstico

O prognóstico está directamente relacionado com a duração e magnitude da hipóxia, e com a qualidade dos cuidados pré-hospitalares. Os doentes que necessitam de ressuscitação cardiorrespiratória no hospital têm uma taxa elevadíssima de mortalidade e morbilidade (35-60% morrem no serviço de urgência). Dos sobreviventes, poderão registar-se sequelas neurológicas em 60 a 100% dos casos.

Nos doentes admitidos em estado vigil no serviço de urgência o prognóstico depende de eventuais complicações pulmonares.

As crianças em coma, continuam a ter um prognóstico reservado.

Prevenção

Quase sempre acidentais, as situações de afogamento podem ser prevenidas com medidas simples e de fácil aplicação prática.

  • Bom senso e medidas simples: colocação de portas de segurança, muros e redes em torno de poços, tanques, piscinas, etc..
  • Os auxiliares de flutuação, como por exemplo, braçadeiras e coletes salva-vidas não substituem a necessidade de vigilância.
  • Adulto de vigia devendo saber nadar e actuar em caso de acidente.
  • Banheiras, baldes e alguidares devem ser esvaziados após utilização.
  • Nunca nadar só ou sem vigilância

NB – Crianças que sabem nadar constituem as de maior risco pela sensação de segurança que transmitem.

BIBLIOGRAFIA

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http://www.apsi.org.pt/index.html, (acesso em fevereiro, 2019)

VIAGENS

Introdução

Por ano partem da Europa e dos Estados Unidos da América, vários milhões de pessoas, tendo como destino as regiões tropicais. O turismo, a cooperação Norte-Sul e a competição empresarial fazem com que muitas famílias se desloquem e residam por períodos mais ou menos prolongados nessas regiões. Acidentes, doenças infecciosas cosmopolitas ou outras, próprias de regiões tropicais, constituem um risco para a saúde dos viajantes. As crianças, apesar de representarem uma pequena percentagem dos viajantes internacionais, comparticipam cerca de um quarto do total de internamentos durante a viagem. Assim, o conhecimento da geografia das doenças e do itinerário é fundamental para o aconselhamento mais adequado à viagem. Embora em algumas situações seja aconselhável a realização de uma consulta pré-viagem com um médico experiente em Medicina das Viagens, na generalidade das situações o pediatra deve estar apto a prestar esclarecimentos e propor medidas profiláctico-terapêuticas à família. No Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, existe desde 2002 uma consulta de aconselhamento à criança e à grávida que pretendam viajar para regiões tropicais.

Preparação da viagem

A viagem deverá ser preparada com o máximo cuidado e com o conhecimento tão completo quanto possível do local de destino. Os pais deverão saber antecipar possíveis problemas que possam ocorrer e estar preparados para os resolver. À tradicional pergunta… e se? deverão ter a resposta preparada. Sempre que possível a viagem deverá ser preparada com as crianças e as consequentes alterações às rotinas diárias discutidas previamente. Durante a viagem as crianças deverão andar sempre identificadas e saber o que fazer no caso de se perderem.

No avião o barotrauma é mais frequente durante a descida, e a otalgia ocorre em cerca de 15% das crianças. Aos lactentes poderá ser oferecido um biberão, enquanto as crianças mais velhas poderão mascar pastilha elástica ou soprar um balão. O uso de vasoconstritores nasais é controverso.

Em terra, os acidentes são a principal causa de morte entre os viajantes. A utilização de cadeiras de criança nos automóveis, os cintos de segurança e o respeito pelas regras de trânsito contribuem para a redução da morbilidade e mortalidade pelos acidentes de viação. O hotel ou a casa onde vão morar devem ser cuidadosamente inspeccionados para identificar e corrigir possíveis causas de acidentes. O contacto com animais deve ser evitado.

Os afogamentos são a segunda causa de morte em crianças viajantes. Os banhos só deverão ser autorizados em locais considerados seguros e de fácil supervisão por parte dos pais. Só a água salgada e a água clorada das piscinas são consideradas seguras. A exposição solar nas horas de maior calor e/ou prolongada deve ser evitada.

Alimentos e bebidas

A água deve ser sempre desinfectada (duas a quatro gotas de uma solução de cloro de 2-4%, por litro de água); em alternativa, deve ser fervida durante três a cinco minutos, ou optar-se pela engarrafada que é considerada mais segura. As bebidas carbonatadas são de baixo risco, mas não se deve adicionar gelo obtido a partir de água não tratada. A carne, o peixe e os vegetais devem ser bem cozinhados e ingeridos ainda quentes. Os vegetais a comer crus devem ser lavados e mergulhados em soluções de cloro durante 20 minutos. Os frutos devem ser descascados, de preferência pelo próprio.

Protecção contra insectos

Casas com ar condicionado, redes mosquiteiras nas janelas e nas camas (de preferência impregnadas com permetrina), insecticidas em spray ou de libertação lenta devem ser usados para protecção de toda a família. As roupas de cor clara, facilitando a visualização dos insectos, as camisas de manga comprida e calças em detrimento dos calções, e o uso de repelentes, são outras medidas de protecção individual contra a picada dos insectos. O repelente com maior experiência de utilização em crianças é o DEET (N,N-dietil-m-toluamida) sempre em concentração não superior a 30%. Para alguns autores, até aos 12 anos de idade, tal concentração não deve ultrapassar os 10%.

Por outro lado, em crianças com idade inferior a dois anos, deve ser efectuada apenas uma aplicação diária. O CDC (Centers for Diseases Control) americano admite a sua utilização a partir dos dois meses de idade, esclarecendo-se que a duração do efeito é cerca de quatro a oito horas (Quadro 1). Outros compostos considerados equivalentes e seguros são o IR3535 e a picaridina.

QUADRO 1 – Precauções no uso de repelentes

Aplicar apenas na pele exposta

Não inalar, ingerir ou permitir o contacto com os olhos

Não aplicar repelentes nas mãos das crianças, para evitar contacto com a boca e com os olhos

Nunca aplicar repelentes em feridas ou na pele irritada

Não usar em excesso (aplicações muito frequentes não aumentam a eficácia)

Aplicar, se necessário, protector solar antes do repelente

Remover o repelente no regresso ao hotel/casa

Vacinas

O calendário para aplicação das vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV) pode ser ajustado. A vacina pentavalente (DTP-IPV-Hib) e a vacina antipneumocócica podem antecipar-se para as 6, 10 e 14 semanas ou completar-se a primovacinação com intervalos mínimos de quatro semanas entre as doses. A vacina anti-sarampo isolada ou, se não for possível, a combinada (sarampo, rubéola e parotidite; VASPR) pode administrar-se a partir dos seis meses de idade. Se administrada antes do 1 ano de idade, deve manter-se o esquema habitual de vacinação com mais duas doses. A vacina anti-hepatite B pode ser administrada aos 0, 1, 2 meses, com reforço aos 12 meses. A vacina antimeningocócica serogrupo C, efectuada no PNV aos 12 meses, pode ser administrada a partir dos dois meses de idade. Nesse caso, deverão ser administradas duas doses no primeiro ano de vida, seguindo-se uma dose de reforço depois dos 12 meses. Os lactentes com mais de dois meses de idade, que se desloquem para zonas de elevado risco de doença invasiva meningocócica pelos serogrupos ACYW135, poderão efectuar off label, e segundo o mesmo esquema, a vacina conjugada tetravalente Menveo®. Relativamente a esta última, salienta-se que na Europa está aprovada a partir dos dois anos e, nos EUA tal acontece já a partir dos dois meses de idade.

Depois do 1 ano de idade deverá ser utilizada a vacina conjugada tetravalente Nimenrix®, em dose única, a partir dessa idade.

Das restantes vacinas disponíveis em Portugal e não incluídas no PNV (Quadro 2), a vacina da encefalite japonesa (Ixiaro®), da febre tifóide e da raiva (Rabipur®) são, habitualmente, recomendadas a quem permaneça por períodos prolongados em regiões endémicas. No entanto, o risco individual deve sempre ser avaliado antes da decisão de vacinar ou não. A vacina da febre amarela é recomendada a todos os viajantes para as zonas endémicas de África e América do Sul, sendo que pode ser exigida pelas autoridades locais para entrar no país. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que uma dose única da vacina confere imunidade para toda a vida tornando desnecessários os reforços a cada dez anos. No entanto, nem todos os países adoptaram essa recomendação pelo que deve sempre ser confirmada a necessidade junto da embaixada do país aquando do pedido de visto. Está contraindicada nas crianças alérgicos ao ovo e nos imunocomprometidos. Se necessárias (vacinas anti-sarampo ou anti-varicela) a sua administração deve ser efectuada em simultâneo ou com quatro semanas de intervalo. A vacina anti-hepatite A (Havrix®; Vaqta®) é recomendada para quem viaja para todas as regiões tropicais e subtropicais, independentemente, da duração da estadia. As vacinas da febre tifóide e da febre amarela são administradas, exclusivamente, em locais autorizados pela DGS.

QUADRO 2 – Vacinas não incluídas no PNV disponíveis em Portugal

im = intramuscular; ND = não definido; sc = subcutânea; * crianças com menos de 3 anos administrar apenas metade da ampola (0,25 ml), nos adultos poderá ser utilizado um esquema de protecção rápido aos 0 e 7 dias; #em situações de risco elevado pode ser administrada a partir dos 6 meses de idade; §pode ser administrada mesmo na véspera da partida.

VacinaEsquema recomendadoIdade mínimaInício da eficáciaReforço
Encefalite japonesa*0 e 28 dias, im2 meses7 diasND
Febre amarela#Toma única, sc ou im9 meses10 dias—-
Febre tifóideToma única, im2 anos7 a 10 dias2 – 3 anos
Hepatite A§Toma única, im18 meses2 semanas6 – 12 meses
Meningocócica (A,C,Y,W135)Toma única, imVer texto15 dias3 – 5 anos
Raiva0, 7 e 21 a 28 dias1 anoapós 3ª dose2 –5 anos
Rotavírus2 ou 3 doses6 semanasND—-
Varicela2 doses separadas, no mínimo, 4 semanas1 anoND—-

A vacina contra rotavírus poderá ser administrada sempre que um lactente com idade inferior a três meses se desloque para regiões tropicais. Com efeito, nas regiões tropicais a infecção gastrintestinal ocorre durante todo o ano, ao contrário do que acontece nos países de clima temperado, com pico de incidência nos meses mais frios. Em Portugal, estão comercializadas duas vacinas, Rotarix® e Rotateq®, com esquemas de administração de, respectivamente, duas ou três doses com intervalo mínimo de quatro semanas, a partir das seis semanas de idade. A primeira dose tem que ser sempre administrada até às 12 semanas de idade e a última, idealmente, antes das 24 semanas. A vacina antivaricela (Varivax®; Varilrix®) não é recomendada como rotina embora o possa ser a viajantes de longa duração para áreas isoladas. Trata-se duma vacina de vírus vivo atenuado licenciada para crianças com idade superior a 12 meses de idade (duas doses com intervalo mínimo de quatro semanas, mas idealmente três meses).

Profilaxia da malária

A malária, a doença parasitária mais importante do mundo, é transmitida ao homem pela picada da fêmea infectada do mosquito Anopheles. Das cinco espécies que infectam o homem, Plasmodium falciparum, P. ovale, P. vivax, P. malariae e P. knowlesi, os quadros mais graves são causados por P. falciparum. Nos últimos anos assistiu-se a um aumento gradual e progressivo da resistência aos vários antimaláricos disponíveis para quimioprofilaxia. Nas áreas do globo em que se continua a verificar sensibilidade à cloroquina (Resochina®), como na América Central, a Oeste do canal do Panamá, Caraíbas, Norte de África e Médio Oriente, e nas raras situações em que a quimioprofilaxia se recomenda, o referido fármaco é a primeira escolha. Em áreas de resistência à cloroquina (África, subcontinente Indiano, algumas zonas do Sudoeste Asiático, Polinésia, bacia do Amazonas) poderão ser usadas a mefloquina (Mephaquin®), a atovaquona/proguanil (Malarone®) ou a doxiciclina (Quadro 3). No Sudoeste Asiático, em que a multirresistência é notória, a única alternativa é a atovaquona/proguanil.

A formulação pediátrica não está comercializada em Portugal mas, para situações especiais, existe uma reserva limitada no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa.

QUADRO 3 – Fármacos utilizados na profilaxia da malária

Abreviatura: cp= comprimido

FármacoPesoDosePosologia (P) e contraindicações major (CI)

Mefloquina

(Mephaquin® cp, 250 mg)

5 – 9 Kg

10 – 19 Kg

20 – 30  Kg

31 – 45 Kg

>45 Kg

1/6 cp

1/4 cp

1/2 cp

3/4 cp

1 cp

P – 1 toma semanal; iniciar 1-2 semanas antes da partida, terminar 4 semanas após regresso; à refeição

CI – Epilepsia, perturbações psiquiátricas e distúrbios da condução cardíaca

Atovaquona + Proguanil

(Malarone® cp, 250 + 100 mg)

5 – 8 Kg

8 – 10 Kg

11 – 20 Kg

21 – 30 Kg

31 – 40 Kg

>40 Kg

1/8 cp

1/5 cp

1/4 cp

1/2 cp

3/4 cp

1 cp

P – 1 toma diária; iniciar 1 dia antes da partida, terminar 7 dias após o regresso; à refeição

CI – Insuficiência renal grave

Cloroquina

(Resochina® cp, 250 mg)

5 mg/kg de cloroquina base por semana

P – 1 toma semanal; iniciar 1-2 semanas antes da partida, terminar 4 semanas após regresso

CI – Retinopatia, epilepsia, psicose e miastenia gravis

Doxiciclina1,5 – 2,2 mg/kg/dia

P – 1 toma diária; iniciar 1-2 dias antes da partida, terminar 4 semanas após regresso; à refeição

CI – Crianças menores de 8 anos de idade

Nenhuma medicação dita profiláctica é totalmente segura, pelo que o diagnóstico precoce e o tratamento imediato e adequado são fundamentais em caso de doença. Viagens que impliquem estadias prolongadas em regiões isoladas e com deficientes cuidados de saúde poderão justificar o autotratamento na suspeita de uma crise de malária. Os fármacos a utilizar dependem da área geográfica, da circunstância de a criança estar já submetida (ou não) a profilaxia, e do eventual fármaco (Quadros 4 e 5).

QUADRO 4 – Fármacos utilizados para autotratamento da malária

* nalguns países é denominado dihydroartemisinin/piperaquine

ProfilaxiaFármacos
Nenhuma

Cloroquina (infecção por P. vivax, P. ovale ou P. malariae)

Artemether/lumefantrina; Artenimol/piperaquina*; Atovaquona/proguanil

CloroquinaArtemether/lumefantrina; Artenimol /piperaquina*; Atovaquona/proguanil
MefloquinaArtemether/lumefantrina; Artenimol /piperaquina*; Atovaquona/proguanil
Atovaquona + proguanilArtemether/lumefantrina; Artenimol /piperaquina*
DoxiciclinaArtemether/lumefantrina; Artenimol /piperaquina*; Atovaquona/proguanil

QUADRO 5 – Posologia para autotratamento de episódio de malária

FármacoPesoDosePosologia e contraindicações major

Arteméter + Lumefantrina

(Airalam® cp, 20 + 120 mg)

5 – 14 kg

15 – 24 kg

25 – 34 kg

>35 Kg

1 cp

2 cp

3 cp

4 cp

1 dose às 0h, 8h, 24h, 36h, 48h e 60h; com alimentos

CI – Arritmias e fármacos que interfiram com ritmo cardíaco

Artenimol+Piperaquina

(Eurartesim® cp, 40+320mg)

5 – 6 Kg

7 – 12 Kg

13 – 23 Kg

24 – 35 Kg

36 – 74 Kg

75 -100 Kg

¼ cp

½ cp

1 cp

2 cp

3 cp

4 cp

1 dose de 24/24h, 3 dias, separada de 2h entre as refeições

CI – Arritmias e fármacos que interfiram com ritmo cardíaco

Atovaquona+Proguanil

(Malarone® cp, 250+100mg)

5 – 8 Kg

9 – 19 Kg

11 – 20 Kg

21 – 30 Kg

31 – 40 Kg

>40 Kg

1/2 cp

3/4 cp

1 cp

2 cp

3 cp

4 cp

1 dose de 24/24h, 3 dias, à refeição

CI – Insuficiência renal grave

Diarreia do viajante

A diarreia do viajante é definida como o aumento de duas ou mais vezes, no número de dejecções por dia, de fezes pastosas ou líquidas, acompanhadas (ou não) de náuseas, vómitos, cólicas, mal estar e febre. Os sintomas surgem habitualmente na primeira semana de viagem e, na maioria dos casos, duram três a quatro dias. A incidência global é de 20% a 50%, sendo as regiões tropicais da Ásia, África e América Latina consideradas de maior risco. As crianças constituem um grupo de mais elevado risco pela imaturidade do sistema imunológico e pela dificuldade no cumprimento das medidas básicas de higiene.

O agente microbiano mais frequentemente implicado é a bactéria E. coli, produtora de enterotoxina. Contudo, muitos outros agentes, não só bacterianos, mas também, parasitas e vírus, são implicados na diarreia do viajante (Quadro 6). Na maioria dos casos trata-se de formas leves e autolimitadas. Nesta perspectiva, recomenda-se o tratamento de suporte, com reforço da ingestão de líquidos, de preferência com sais de reidratação oral (Dioralyte®). Os antidiarreicos não deverão ser utilizados e o regime alimentar habitual da criança deve ser mantido. O uso de antidiarreicos não está recomendado e o de probióticos não é consensual. As crianças que desenvolvam diarreia intensa com sinais sistémicos como febre, ou com sangue e muco nas fezes, poderão beneficiar de um tratamento curto com azitromicina nas doses habituais (10 mg/kg/dose, uma toma diária, durante três dias). Nas situações de diarreia intensa ou persistente, com desidratação e compromisso acentuado do estado geral, as crianças deverão ser observadas por um médico.

QUADRO 6 – Agentes infecciosos responsáveis por diarreia do viajante

BactériasVírusParasitas
Escherichia coliRotavírusGiardia lamblia
Salmonella sppVírus NorwalkEntamoeba histolytica
Shigella sppAdenovírusCryptosporidium spp
Campylobacter jejuniAstrovírusIsospora belli
Vibrio parahaemolythicusCoronavírusStrongyloides stercoralis
Aeromonas hydrophia Blastocystis hominis
Vibrio cholerae  
Yersinia enterocolitica  

Consulta após regresso da viagem

A consulta pós-viagem é recomendada a todos os viajantes, sobretudo se a estadia foi de longa duração, decorreu em meio rural, e ou se há registo de episódios de doenças ocorridas na circunstância.

A criança que regressa doente ou adoece logo após o regresso deve ser avaliada, de imediato, independentemente da duração e do local da estadia. Contudo, não deve ser esquecido que o período de incubação das várias doenças é muito diferente. O conhecimento da epidemiologia e clínica das doenças mais prevalentes nos locais de estadia da criança, permitirá estabelecer uma lista de diagnósticos mais prováveis e a subsequente investigação laboratorial (Quadro 7).

QUADRO 7 – Períodos de incubação médios de algumas doenças prevalentes em regiões tropicais

(Adaptado de Mahmoud AAF (ed). Tropical and Geographical Medicine. Singapore: McGrawHill, 1993)

Curto

(<1 semana)

Intermédio

(1-4 semanas)

Longo

(1 a 6 meses)

Muito longo

(2 meses a anos)

Tripanossomose

(cancro de inoculação)

Amebose

Brucelose

Ascaridose

Buba

Cisticercose

Equinococose

ChikungunyaDoença de ChagasHepatite BFasciolose
CóleraFebres hemorrágicasHepatite CFilariose
DengueFebre tifóideLeishmaniose cutâneaLeishmaniose visceral
Diarreia agudaGiardioseLooseLepra
ÉbolaHepatite AMaláriaShistosomose
Febre amarelaHepatite EPintaHIV

Febre recorrente

Legionelose

Leptospirose

Malária

Raiva

Teniose

Tripanosomose

(gambiense)

Peste

Salmonelose

Riquetsioses

Esquistossomose aguda

Tracoma

Tricuriose

 
ShigeloseEstrongiloidose  
Tétano

Tripanossomose

(rodesienese)

  

Sítios a consultar na internet

BIBLIOGRAFIA

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INTOXICAÇÕES AGUDAS

Definição e aspectos epidemiológicos

Intoxicação é definida como a acção exercida por substância tóxica (veneno) no organismo e o conjunto de pertubações daí resultantes.

As intoxicações agudas (IA) na criança representam a 4ª causa de mortalidade infantil, sendo responsáveis por 2-3% dos episódios de urgências pediátricas hospitalares e 1% das admissões em cuidados intensivos. Dois terços ocorrem antes dos 20 anos, sendo mais frequentes em crianças abaixo dos 5 anos. Em 95% dos casos ocorrem de forma acidental, sendo a via digestiva a mais frequente (85%), seguida das vias cutânea e inalatória. As intoxicações são, na maioria dos casos, provocadas por produtos de uso doméstico (50%), farmacológicos (23%), agrotóxicos e químicos (10%). Nos adolescentes, são prevalentes as intoxicações intencionais (fármacos, álcool e drogas ilícitas).

Em Portugal, o Centro de Informação Antivenenos (CIAV) – Telef. + 351- 808 250 143 presta informações sobre o diagnóstico, toxicidade, terapêutica e prognóstico da exposição a tóxicos.

Fisiopatologia

O risco e gravidade das IA na criança são superiores comparativamente aos adultos, por diversos factores: maior susceptibilidade à hipóxia e à falência respiratória (devido a taxas metabólicas mais elevadas e a menores reservas compensatórias), à desidratação por perdas insensíveis mais significativas, e à hipoglicémia devido a escassez de reservas de glicogénio. O diagnóstico requer um alto índice de suspeição, sendo o tratamento adequado e atempado o principal factor determinante do prognóstico.

Abordagem geral

A abordagem da criança vítima de IA deve ser sistemática de acordo com o acrónimo ABCD3EF (ABC → suporte de vida; D → D1: Disability; D2: tratamento empírico; D3: descontaminação; E → eliminação e F → Find – antídoto) e incluir:

  1. Reanimação e estabilização inicial – ABC.
  2. Identificação do tóxico.
  3. Terapêutica inespecífica – Medidas de descontaminação e eliminação – D e E.
  4. Terapêutica específica (antídoto, se disponível) – F.
  5. Terapêutica de suporte.

1. Reanimação e estabilização inicial

Na suspeita de intoxicação devem ser iniciadas medidas de suporte vital (Suporte Avançado de Vida) de acordo com a abordagem ABC. A estabilização inicial deve ainda incluir: avaliação neurológica sucinta, tratamento da hipoglicemia (se presente), eventual uso de drogas empíricas como naloxona e flumazenil, manutenção da temperatura corporal e medidas de descontaminação (ex: remover a roupa se contaminada).

2. Identificação do tóxico

2.1 Anamnese

Após estabilização inicial, deverá ser realizada uma história clínica breve e orientada para confirmar a intoxicação e identificar o tóxico.

  1. Tóxico conhecido: procurar obter resposta às seguintes questões
    • QUEM – idade, sexo, peso;
    • O QUÊ – tóxico, nome e dose → Tentar obter embalagem do produto;
    • COMO – via de administração, em jejum, com alimentos, bebidas alcoólicas ou substâncias ilícitas;
    • QUANDO – tempo decorrido desde a exposição;
    • ONDE – local da exposição e intervenções;
    • PORQUÊ – acidental/intencional, única ou múltiplas vítimas.
  2. Anamnese não esclarecedora: suspeitar perante quadro de início súbito, com alterações do estado de consciência ou comportamento, convulsões, acidose metabólica, arritmias ou sinais de falência multiorgânica de causa desconhecida. Inquirir tóxicos a que a criança possa ter tido acesso – uso da mnemónica AMPLE (A – alergias; M – medicação habitual; P – antecedentes pessoais; L – última refeição; E – eventos periexposição)
2.2 Exame objectivo

O exame objectivo deve incluir avaliação do estado de consciência, avaliação pupilar/exame neurológico sumário, sinais vitais e avaliação da pele e odores com objectivo de identificar possíveis “síndromas de intoxicação”. Devem ser igualmente identificados sinais de maus tratos na criança pequena e de consumos de drogas no adolescente. O Quadro 1 discrimina um conjunto de sintomas e sinais relacionáveis com a exposição a determinadas substâncias (“síndromas de intoxicação”).

QUADRO 1 – Síndroma de intoxicação – diagnóstico diferencial

Abreviaturas: SNC: sistema nervoso central; FR: frequência respiratória; TA: tensão arterial; FC: frequência cardíaca; GI: gastrintestinal.

Síndromas de intoxicação (tipo de tóxico)

Substâncias tóxicas possíveisAlterações SNCPupilasSecreções oraisFRSecrecões respiratóriasTA/FCMotilidade GIDiureseMuscular
/Regulação temperatura
Sudorese
Colinérgico

Organofosfatos

Insecticidas

Piridostigmina

Agitação

Convulsões

Miose
(bradicardia)

Fasciculações

/paralisias

Simpaticomimético

Descongestionante

Xarope tosse

Anfetaminas

Cocaína/ectasy

Teofilina

Agitação

Ansiedade

Midríase+/-Hipertermia
Anticolinérgico

Antidepressivos tricíclicos

Antiparkinsónicos

Anti-histamínicos

Atropina

Antiespasmódicos

Fenotiazinas

Amanita sp

Colírio ciclopentolato

Delírio

Alteração do estado consciência

Midríase+/-Retenção

Hipertermia

/rubor

Sedativos

/hipnóticos

Benzodiazepinas

Barbitúricos

Depressão estado mental+/-+/-Hipotermia

Abstinência sedativos

/hipnóticos

 Alteração do estado de consciênciaMidríase

Hipertermia

/tremores

OpióidesMorfinaDepressão estado mentalMiose+/-Hipotermia
Abstinência opioides Midríase

Lacrimejo/

Secreção oral ↑

Normotérmica
2.3 Exames complementares

A avaliação laboratorial compreenderá sempre um painel bioquímico de base. Os restantes exames deverão basear-se no padrão sintomatológico para confirmar ou excluir a situação clínica e guiar o tratamento (Quadro 2). A radiografia do tórax está indicada nos casos de intoxicações por via inalatória e/ou aspiração, alteração do estado de consciência ou dificuldade respiratória. Deverá ser realizado um electrocardiograma (ECG) se alterações no traçado ECG do monitor (relacionáveis com cardiotóxicos, com intoxicações graves por tóxicos que provocam hipóxia-isquémia ou com arritmogénicos (por ex. anti-histamínicos, bloqueadores dos canais de cálcio, CO, digoxina).

QUADRO 2 – Exames toxicológicos

Nota: exames de urina: uma prova toxicológica negativa não permite excluir a possibilidade da presença de uma substância tóxica (elevada proporção de falsos negativos e falsos positivos); a pesquisa é geralmente inespecífica e não fornece informação confiável quanto ao tempo de exposição à droga.

Exames no sangue

Acetilcolinesterases

Anti-depressivos tricíclicos

Barbitúricos*, BZD*

Carbamazepina

Carboxihemoglobina

Digoxina; Fenitoína

Fenobarbital

Ferro

Etanol

Metemoglobina

Metanol

Monóxido de carbono

Paracetamol

Salicilatos; Teofilina

Valproato de sódio

Exames na urina (qualitativo)

Anfetaminas

Barbitúricos

BZD

Canabinóides

Cocaína

Metadona

Opiáceos

3. Terapêutica inespecífica: descontaminação e eliminação

3.1 Medidas de descontaminação: evitar ou diminuir absorção do tóxico
  • Contacto por via cutânea: remoção da roupa contaminada; lavagem corporal com água e sabão;
  • Contacto por via ocular: irrigação ocular com soro fisiológico ou água, 10-15 min;
  • Contacto por via inalatória: administrar 02;
  • Contacto por via digestiva:
    1. Lavagem gástrica
      Não está indicada por rotina; poderá ser considerada:
      1. Na primeira hora após intoxicações graves por substâncias com possibilidade de causar risco de vida (primeira 2 horas se tóxicos de libertação prolongada/reabsorção retardada).
      2. Intoxicação por substâncias não adsorvidas pelo carvão activado.
      3. Está contraindicada nas ingestões de corrosivos e substâncias voláteis (hidrocarbonetos). De referir a necessidade de assegurar a protecção das vias aéreas.
    2. Carvão activado (1 g/kg carvão activado – máximo 50 g) 
      Não indicado por rotina; considerar em doentes com ingestão há menos de 1 hora de substâncias com possibilidade de associação a risco de vida (benefício máximo na 1ª hora após ingestão; benefício potencial após as 1as horas se fármacos com circulação entero-hepática ou de libertação prolongada).
      Está contraindicado nas intoxicações por substâncias não adsorvidas pelo carvão activado (lítio, ferro, metais pesados, álcoois, cianeto, cáusticos e hidrocarbonetos) e nas crianças com risco de perfuração do trato gastrintestinal (TGI) ou hemorragia (obstrução intestinal, ileum). De referir a necessidade de assegurar a protecção das vias aéreas.

A indução de vómito com xarope de ipecacuanha está contraindicada.

3.2 Medidas de eliminação
  1. Alcalinização da urina com bicarbonato de sódio 8,4%: 1-2 ml/kg/dia EV para manter pH urinário > 7,5 – para salicilatos, barbitúricos, isoniazida, ácido diclorofenoacético.
  2. Irrigação intestinal completa: administração entérica de uma solução electrolítica osmoticamente equilibrada de polietilenoglicol – 30 ml/Kg/hora – continuando tratamento até emissão de fezes líquidas claras). Indicado para substâncias que não são adsorvidas pelo carvão activado, tenham trânsito intestinal lento e apresentem risco de vida.
  3. Remoção do tóxico (protocolos de unidades de cuidados intensivos):
    • Hemodiálise: intoxicações por moléculas com baixo peso molecular (salicilatos, etanol, metanol, propranolol, etilenoglicol, vancomicina e lítio);
    • Hemoperfusão: remoção de tóxicos com solubilidade baixa na água, grande afinidade para o adsorvente, rapidez de equilíbrio dos tecidos periféricos para o sangue e baixa afinidade para as proteínas plasmáticas (intoxicações por carbamazepina, barbitúricos, teofilina e paraquato);
    • Hemodiafiltração: remoção de moléculas com elevado peso molecular (intoxicações por teofilina, aminoglicosídeos e lítio).

Nota: existem substâncias que não beneficiam de técnicas de depuração extrarrenal (benzodiazepinas, antidepressivos tricíclicos e fenotiazinas).

4. Terapêutica específica (antídotos)

Existem atitudes e antídotos específicos para determinadas intoxicações, os quais devem ser administrados o mais precocemente possível, podendo constituir prova terapêutica.

No Quadro 3 estão resumidas os antídotos indicados em intoxicações específicas.

QUADRO 3 – Tóxico e antídotos

Tóxico

Antídoto

Benzodiazepinas

β-bloqueantes

Monóxido de Carbono

Tetracloreto de Carbono

Digoxina

Ferro

Isoniazida

Lítio

Metemoglobinémia

Metanol

Etilenoglicol

Metoclopramida

Opióides

Organofosforados

Paracetamol

Tiroxina

Anticolinérgicos

Sulfonilureias

Antidepressivos tricíclicos

Flumazenil

Adrenalina (infusão), glucagon

Oxigénio/Câmara hiperbárica

N-acetilcisteína

Anticorpos antidigoxina

Desferroxamina

Piridoxina, bicarbonato de sódio

Substituição salina, dopamina

Azul de metileno

Etanol

Fomepizol

Prociclidina

Naloxona

Atropina, pralidoxina, toxogonina

N-acetilcisteína

Propranolol

Fisiostigmina

Octreótido

Bicarbonato de sódio

Considerações finais e prevenção

A avaliação de uma criança que se presume ter sido exposta a uma substância tóxica deve incluir uma história clínica elaborada com rigor (anamnese com especial realce quanto às circunstâncias da exposição, exame físico), e conhecimento dos diversos tipos de produtos, assim como das práticas recreativas mais prevalentes. Os Centros de Informação Antivenenos podem ser consultados para auxiliar no diagnóstico de intoxicações, aconselhamento para estabilização, e recomendações de tratamento com base na mais recente pesquisa.

A prevenção das IA continua a ser um desafio e uma necessidade para evitar que a população mais vulnerável esteja expostas a drogas e toxinas potencialmente letais.

Apesar de o diagnóstico precoce e as medidas de suporte conduzirem a uma recuperação na maioria das situações, torna-se obrigatório falar na prevenção e na abordagem psicossocial das intoxicações e acidentes em geral; todas as noções gerais explanadas no capítulo sobre traumatismos, ferimentos e lesões acidentais têm perfeito cabimento no âmbito das intoxicações.

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TRAUMATISMOS, FERIMENTOS E LESÕES ACIDENTAIS – O PAPEL DA PREVENÇÃO

Importância do problema

Os traumatismos, ferimentos e lesões acidentais (TFLA) constituem, em quase todos os países do Mundo, nos grupos etários da infância e da adolescência, a maior causa de morte, anos de vida, potenciais perdidos, doença, internamento, recurso aos serviços de urgência, incapacidades temporárias e definitivas. Consequentemente, constituem um dos problemas com custos socioeconómicos mais elevados.

Infelizmente, no nosso País o problema revela-se de uma agudeza extrema, com taxas de mortalidade, por exemplo, quatro vezes superiores às da Suécia. Encarar os acidentes como um grave problema nacional e assumir a sua resolução como uma tarefa de toda a sociedade é um passo fundamental e indispensável.

A impessoalidade das cifras pode fazer-nos esquecer o drama humano, ao qual só damos a necessária atenção quando somos confrontados com ele nas nossas casas ou no nosso círculo pessoal de amigos.

Os acidentes manifestam-se por “doenças” – os traumatismos, ferimentos e lesões deles decorrentes (TFLA). Para aceitar esta definição basta ter presente que os TFLA:

  • Têm uma causa (um agente, a energia resultante dos impactes, do calor, do movimento de objectos, etc.);
  • Provocam sintomas e sinais bem definidos;
  • Têm um processo de diagnóstico;
  • Têm um processo de terapêutica;
  • São passíveis de prevenção primária, secundária e terciária, tal como a maioria das doenças.

O que talvez diferencie os TFLA de outras doenças é a rapidez da acção da causa e o pequeníssimo lapso de tempo entre a acção do agente e os sintomas e sinais, o que também contribui para a dificuldade da prevenção, se analisarmos esta numa perspectiva médica estrita.

Podemos também considerar os TFLA numa perspectiva ecológica, tal como por exemplo as doenças infecciosas: o acidente resulta da interacção entre o agente, o meio humano e o meio material, envolvendo o indivíduo. A aceitação desta tríade (ou tétrada) traz consequências imediatas: qualquer acção preventiva que deixe de lado um dos elementos será votada ao insucesso; por outro lado, a compreensão do problema na sua plena extensão passará obrigatoriamente por uma análise aprofundada das circunstâncias e da história destas várias vertentes.

O planeamento urbano e a construção, o design, a arquitectura, etc., constituem uma tarefa complexa na qual é necessário ter em conta as diversas, e por vezes contraditórias, necessidades dos diversos grupos de cidadãos. Quando o desenvolvimento urbano – para citar um dos exemplos actualmente mais preocupantes –, se baseia em interesses pouco claros ou unilaterais, remetendo para segundo lugar os interesses dos cidadãos, designadamente a sua saúde, o resultado é frequentemente um ambiente de má qualidade no qual as gerações presentes e vindouras terão de viver. Acresce que os erros estruturais se traduzem geralmente por consequências a longo prazo, sendo a sua inversão extremamente dispendiosa e difícil, se não mesmo impossível.

A origem dos acidentes que envolvem crianças e jovens não reside assim, como veremos mais desenvolvidamente, no “mau” comportamento daquelas ou destes mas, pelo contrário, na agressividade e desadaptação do ambiente às suas características físicas, mentais e psicológicas. Por outras palavras, não são as crianças e os adolescentes que estão errados – o mundo que os rodeia e onde são forçados a viver é que se torna, dia a dia, mais e mais agressivo, e cada vez mais recheado de armadilhas.

As principais vítimas de um ambiente insalubre e perigoso são sempre os grupos psicológica ou fisicamente mais vulneráveis, ou com menores capacidades adaptativas, seja decorrentes da sua própria vulnerabilidade e das suas características bio-psico-sociais (designadamente do seu grau de resiliência), seja dos seus estilos de vida próprios. As crianças, os idosos e os cidadãos com deficiência estão no epicentro deste problema e é nestes grupos que se tornam mais evidentes e mais graves as consequências da desadequação entre o “continente” e o “conteúdo”, ou seja, entre o mundo onde os seres humanos têm que viver e as capacidades e necessidades desses mesmos seres humanos.

O ambiente constitui, pois, actualmente, a maior ameaça à vida e à saúde das crianças e dos jovens. Culpar a criança dos acidentes será, afinal, culpar a vítima e desculpar o “criminoso”.

Aspectos epidemiológicos

Na abordagem dos TFLA, revela-se indispensável um conhecimento epidemiológico aprofundado, pois será certamente muito difícil delinear uma estratégia pertinente e adequada para controlo de um problema quando se desconhece a sua verdadeira dimensão e, ainda mais importante, os pormenores e as circunstâncias que rodeiam o acontecimento. Este facto é tanto mais gravoso quanto é verdade estarmos na presença de um conjunto de situações de origens várias, em que causas distintas podem gerar o mesmo efeito ou, ao invés, causas semelhantes efeitos diferentes: uma queda pode ter etiologias díspares e gerar diversos traumatismos ou lesões; por outro lado, a mesma lesão – uma fractura de um membro, por exemplo – pode ser causada por agentes diferentes, como um choque de automóveis, um coice de cavalo ou uma queda de uma árvore.

A diversidade de local para local, relacionada com distintas identidades culturais, constitui outro factor de importância inegável, não podendo ser subvalorizado.

Num capítulo de um livro como este, não é possível desenvolver exaustivamente a questão dos indicadores epidemiológicos. Entendemos, no entanto, justificar-se encarar os TFLA nas suas diversas vertentes: mortalidade, morbilidade, anos de vida, potenciais perdidos, idas ao serviço de urgência, internamentos, dados do Sistema ADELIA (Acidentes Domésticos e de Lazer – Informação Adequada), e também de outras fontes menos ligadas à Saúde (Instituto de Socorros a Náufragos, Companhias de Seguros, Ministério da Educação, Serviço de Bombeiros, etc.).

QUADRO 1 – Colheita de dados epidemiológicos sobre TFLA

Sistemas nacionais de colheita de dados

Mortalidade (Instituto Nacional de Estatística)

Viação (Observatório Rodoviário e IMTT)

ADELIA (Observatório Nacional de Saúde)

Inquéritos complementares (Instituto do Consumidor)

Inquérito Nacional de Saúde (Observatório Nacional de Saúde)

Fontes complementares

Instituto de Medicina Legal de Lisboa

Centro de Reabilitação do Alcoitão

Dados colhidos a nível nacional e de forma contínua

Acidentes escolares (Ministério da Educação)

Acidentes desportivos (Ministério da Educação)

Intoxicações (Centro de Informação Anti-Venenos)

Dados recolhidos a nível nacional ou regional de fontes relacionadas com os serviços de saúde ou de emergência

Projecto “médicos-sentinela” (Observatório Nacional de Saúde)

Cruz Vermelha Portuguesa

Serviço Nacional de Bombeiros/Protecção Civil

Instituto Nacional de Emergência Médica

Polícia de Segurança Pública

Polícias Municipais

Instituto de Socorros a Náufragos

Inquéritos ad-hoc locais ou regionais (vários)

Outras fontes

Acidentes pessoais/trabalho (Companhias de Seguros e Segurança Social), etc..

Além do escasso âmbito ou representatividade de alguns dos dados, a metodologia adoptada por cada uma, designadamente em parâmetros tão básicos como os grupos etários, as definições de caso, etc., não é frequentemente a mesma, impedindo muitas vezes a junção ou a comparação1. Falta, assim, fazer um trabalho de recolha dos indicadores existentes e sua análise crítica, identificação de eventuais áreas com lacunas e propostas metodológicas consensuais para que, sem um esforço acrescido, se possam obter informações mais amplas e fiáveis, portanto mais úteis. Este problema não é, contudo, exclusivamente português.

No que respeita ao impacte económico do problema em Portugal, designadamente, foi estimado que os acidentes de viação, por exemplo, somando todos os tipos de custos, custaram ao País, quase 4% do PIB, ou seja, cerca de 25.000 milhões € por ano, algo como cinco mil euros por minuto. Admitindo um gasto equivalente nos acidentes domésticos de lazer (ADL) – mais frequentes mas globalmente menos graves –, os acidentes custariam, em Portugal, mais de uma vez e meia o orçamento do Ministério da Saúde, sendo a maior parcela equivalente a gastos com TFLA.

Prevenção

1. Obrigação da sociedade

A opção por medidas modificadoras do ambiente são geralmente caras, mais radicais e de maiores custos políticos, em comparação com a fácil, barata e tradicional (mas muitas vezes ineficiente) “educação para a saúde”. Há, muito claramente, uma relação inversamente proporcional entre o dinheiro atribuído às várias medidas e a sua eficiência.

Praticamente em todas as culturas, à semelhança do que acontece na maioria das espécies animais, é considerado natural proteger a vida e a saúde das crias. No chamado “Mundo Ocidental”, este conceito desenvolveu-se não apenas em termos de disponibilidade e adequação de cuidados – saúde, educação, segurança social, entre outras – como também em termos ambientais – provimento de ar puro, água potável, nutrição correcta, etc..

Paralelamente, depois do reconhecimento gradual e sequencial dos direitos dos homens, dos trabalhadores e das mulheres, registou-se neste século um movimento crescente a favor dos direitos das crianças e dos adolescentes, tão bem resumidos na Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada na Assembleia Geral da ONU a 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal.

A Convenção reconhece que as crianças têm o direito de crescer e de se desenvolver normalmente, sem limitações desnecessárias, e o direito à protecção, os quais devem ser garantidos pelo Estado através de medidas de vária ordem. Portugal, tendo ratificado a Convenção em 1990, está comprometido com a sua população infantil e juvenil, e não poderá ignorar as suas responsabilidades. A sociedade portuguesa, de onde emana o Estado, tem igualmente de assumir de forma global a protecção da sua população infantil e juvenil.

2. Perspectiva dinâmica e inovadora

Os acidentes sempre acompanharam a vida dos homens; e, se por um lado esse facto permitiu acumular conhecimentos e experiências milenárias, conduziu, por outro, à aceitação dos acidentes como parte da própria existência e à interiorização do problema como algo de insondável e superior à força humana. Por outro lado, as tentativas para os evitar, pecando talvez por timidez mas condicionadas pelo ritmo humano, foram rapidamente ultrapassadas pela extraordinária rapidez da evolução tecnológica e pelo aparecimento de forças que, se bem que concebidas pela mente do Homem, se afastam da sua própria escala – tenha-se em consideração a velocidade dos automóveis, as alturas dos prédios, a energia da electricidade e tantos outros exemplos de como nos deslocamos, vivemos e utilizamos dimensões e forças totalmente estranhas às nossas características biológicas e mesmo psicológicas, com o consequente desfasamento entre as necessidades e capacidades, por um lado, e a realidade, por outro.

Os próprios estilos de vida, geradores de estresse e de uma vida “acelerada”, contribuíram para o aumento dos riscos e para uma maior incapacidade de lidar com eles “a tempo e horas”, não havendo para muitos destes riscos, o verdadeiro conhecimento da sua existência. Assim, embora não se possa dizer que as crianças e os jovens de sociedades anteriores à nossa estivessem livres de sofrer TFLA – basta recordar os ataques das feras na idade das cavernas ou o trabalho infantil em condições precárias nos tempos da revolução industrial – pode contudo afirmar-se que as crianças e os adolescentes de hoje estão mais expostos aos riscos, sendo também provavelmente detentores de uma resiliência menor.

O estresse representa, assim, um factor fundamental para a compreensão do problema dos TFLA. Felizmente, nos últimos anos, muitos autores têm dedicado tempo e reflexão ao estresse e, principalmente, à gestão do estresse. Este elemento tão importante, tão presente e tão condicionante das opções de vida, ocupou durante muito tempo um lugar quase ridículo na construção fisiopatológica dos TFLA, bem como de muitas outras situações de doença ou de falta de saúde. Importa analisar e sistematizar o estresse e traçar os princípios mestres da sua boa gestão e aproveitamento enquanto energia positiva e mobilizadora, transformando-o em factor de resiliência em vez de factor de risco.

Com a evolução tecnológica e as consequentes mudanças nos estilos de vida – designadamente a entrada das crianças em massa no mundo dos adultos desde idades muito precoces (inclusivamente no mundo laboral) e a ausência de um espaço próprio infantil para crescerem –, os riscos aumentaram ou pelo menos tornaram-se mais “acessíveis” à maioria das crianças e dos adolescentes. Os acidentes passaram assim a fazer de tal modo parte da nossa vida quotidiana que, por impregnação e habituação, deixaram de nos tocar no plano colectivo – só somos verdadeiramente afectados se nos atingem directamente ou pelo menos a quem nos está próximo.

Por outro lado, a própria palavra “acidente” desencadeia mecanismos psicológicos adaptativos tendentes a integrar o conceito como associado a fatalismo, determinismo, um acontecimento que existe devido a um acto incontrolável e incontornável do destino, ou seja, que aconteceu “por acidente”. Quantas pessoas vacinam os filhos, dão-lhes vitaminas e, afinal, olham para a prevenção dos TFLA como algo desnecessário ou pouco importante, considerando até as consequências do acidente como uma punição inevitável e “normal” para um erro que se cometeu?

Actualmente as pessoas, ao serem questionadas sobre o que significa a palavra “acidente”, responderão provavelmente: “serviço de urgência”. A esta resposta não será estranho o facto de as consequências imediatas de um acidente grave serem médicas. Contudo, o que fica subvalorizado nesta atitude é a vertente preventiva (ambiental), ignorada pela maioria, ao contrário do que acontece com outros grandes problemas de saúde pública como a hipertensão, a diabetes, a obesidade (em que os termos evocarão ao cidadão comum outros como “açúcar”, “sal”, “exercício físico”, “gorduras” – afinal elementos inerentes à actividade preventiva). A utilização da palavra “acidente” para definir os eventos de que estamos a falar é parcialmente responsável por esta atitude.

Não foi por acaso que os autores de língua anglo-saxónica optaram pela palavra injury em vez de accident, pois esta escolha não só permite fugir à noção fatalista da palavra “acidente”, como também concentrar as atenções sobre o principal aspecto da questão e que importa enfatizar – as lesões, os ferimentos e os traumatismos que decorrem dos referidos acidentes.

Por outras palavras, se por absurdo (como nos filmes de desenhos animados ou de super-heróis), um indivíduo não fosse minimamente afectado quando caísse do alto de um prédio ou quando fosse atropelado por um camião, o acontecimento em si – o “acidente” afinal –, deixaria de nos interessar em termos de problema de saúde. As suas consequências, ou seja, os traumatismos, ferimentos e lesões resultantes da queda do prédio ou do atropelamento é que representam a fonte de preocupação e de interesse.

Infelizmente, a língua portuguesa não tem uma palavra que expresse totalmente o que se pretende. A palavra “ferimento”, por exemplo, exprime mal as consequências de um afogamento. “Traumatismo” não descreve bem o que se passa no decurso de uma intoxicação. A palavra “lesão” será pouco adequada para o que resulta da introdução de um corpo estranho. Porém, o que encontramos nos serviços de urgência, nas consultas, nos cuidados intensivos, em casa, são traumatismos, ferimentos e lesões causados por um agente ambiental.

Deveremos, pois, fazer um esforço para começar a usar, tanto quanto possível, uma terminologia mais correcta, com vista a reforçarmos e simplificarmos a compreensão do cerne do problema. A expressão “traumatismos, ferimentos e lesões acidentais” parece a mais adequada aos objectivos subjacentes às acções preventivas; e poderá chegar o dia em que as pessoas, interrogadas sobre o significado da palavra “acidente”, respondam “cintos de segurança”, “leis anti-álcool”, “protectores de tomadas”, etc..

A maioria das definições enferma um erro substancial: o carácter “não premeditado” ou “inesperado” da situação, e a consequente falência da “vontade humana” em a evitar. Isto seria admitir, à partida, a impossibilidade de qualquer acção preventiva, o que não corresponde à verdade: é falso que os acidentes sejam imprevisíveis, já que os comportamentos das crianças e dos jovens fazem parte integrante do seu desenvolvimento físico, emocional e cognitivo normal. Na realidade, 90% dos TFLA são ao mesmo tempo previsíveis e evitáveis.

Os próprios dados epidemiológicos mostram que a tipologia dos acidentes corresponde a um padrão estreitamente relacionado com os consecutivos estádios de desenvolvimento e com as actividades do dia-a-dia da criança e do adolescente. Assim, sendo este padrão previsível, existem bases para intervenção e para acções preventivas, quer através de meios abstractos como a informação e educação no sentido de melhorar comportamentos individuais e padrões de comportamento colectivos (nos quais se incluem as modas e a pressão social e de grupo), quer sobretudo activamente, através da construção de um ambiente seguro onde o desenvolvimento normal possa ter lugar sem riscos inaceitáveis.

3. Compreensão do desenvolvimento e comportamento humanos

O ser humano, ao contrário de outros mamíferos, nasce razoavelmente “inacabado” do ponto de vista de maturação neuro-sensorial sendo portanto muito dependente do meio que o rodeia e da protecção da sociedade. O desenvolvimento do sistema nervoso central, até atingir a soma extraordinária de um bilião de sinapses, prolonga-se após o nascimento, fundamentalmente no primeiro quinquénio da vida.

Por outro lado, para além da estrutura neurológica há a construção da personalidade, a qual vai depender muito do ambiente nos seus diversos níveis, numa estreita relação, quer com o meio, quer interpares. Os óptimos resultados da utilização das próprias crianças como orientadoras do tráfego à saída de uma escola demonstram bem o efeito estruturalizante positivo sobre os colegas, em contraponto ao efeito negativo, por exemplo, dos desafios lançados também por colegas: “aposto que não és capaz de fazer isto ou aquilo!”.

É o ambiente que se deve adaptar à criança e ao jovem e não o contrário.

Qualquer programa de prevenção dos TFLA terá, assim, de tomar em consideração algumas características básicas do desenvolvimento infantil, componentes indispensáveis para a compreensão das várias etapas “acidentais” da criança e para, em termos de cuidados em antecipação, promover as indispensáveis modificações ambientais para que os riscos possam ser minorados, designadamente:

  • A descoberta progressiva de si próprio, dos outros, do espaço e dos objectos que estão no primeiro círculo, ou seja, ao alcance da mão e da visão; depois dos que estão mais longe; a seguir dos que estão escondidos para além de outros objectos até ao mundo na sua totalidade; esta evolução é acompanhada por uma correspondente capacidade motora e de locomoção (sentar, gatinhar, pôr-se de pé, andar, trepar, correr, juntar uma cadeira e um banco, etc);
  • A curiosidade progressiva;
  • O uso dos cinco sentidos para conhecer o mundo, incluindo a necessidade imperiosa de mexer nos objectos e de levar tudo à boca;
  • As características associadas às outras idades – escolar, adolescência –, associadas ao crescimento e à maturação, quer orgânica, quer psicológica, emocional e da personalidade.

As limitações fisiológicas das capacidades da criança, decorrentes dos estádios do seu desenvolvimento neuro-psíquico-sensório-comportamental, devem ser tidas muito em conta, como se pode demonstrar através de alguns exemplos:

  • Uma criança de três anos que se debruça numa varanda não tem a sensação da distância até ao solo e atirar-se-á para os braços de alguém que, lá de baixo, esteja a chamá-la;
  • Uma criança de dois anos não tem a sensação da profundidade: verá uma escada na continuação directa e plana do corredor de onde vem a correr;
  • Uma criança com menos de dez anos de idade poderá não ter ainda capacidade para atravessar uma rua sozinha pois frequentemente não entende de onde vem o som, não consegue calcular a velocidade dos automóveis nem a distância a que se encontram; dificilmente será capaz de integrar a informação recebida quando olhar para a esquerda e a que seguidamente recebe quando olhar para a direita sem esquecer a primeira; demorará mais tempo a efectuar qualquer tipo de análise da situação em termos espaciais e sensoriais, designadamente a exclusão de estímulos inúteis para o objectivo em causa; e, finalmente, distrair-se-à com estímulos que para ela são mais atractivos, como um amigo, uma bola ou qualquer outra coisa.

Incorporar na mentalidade dos pais e profissionais estes conceitos, cientificamente demonstrados e afinal tão óbvios, não é tarefa fácil. Acresce que os comportamentos associados às diversas características e etapas do desenvolvimento infantil não são passíveis de “correcção” substancial, nem o devem ser, pois que, sem eles, a criança ver-se-ia privada de elementos estimulantes da sua criatividade, inteligência, capacidade de resolver situações, de experimentar, numa palavra, de crescer. Por outro lado, ver-se-ia também privada de um dos seus mais elementares direitos – o de “ser criança”, no que isso implica de exploração do mundo, de actividades lúdicas, de ausência de responsabilidades não adequadas à idade.

É assim entre estes dois objectivos aparentemente contraditórios – a necessidade de aprender experimentalmente e a necessidade de ser protegido – que teremos de desenvolver os programas de prevenção de acidentes, com a noção de que uma criança não é um adulto em miniatura.

Há que dar ao conceito de “exposição ao risco” um lugar fundamental, embora se tenha de admitir que o mesmo risco se pode expressar de modo diferente conforme os casos. Só assim se poderá explicar – através de um modelo comportamental – a maior frequência de acidentes nesta ou naquela situação. Nos acidentes desportivos, por exemplo, há maior envolvimento de rapazes, à excepção dos TFLA sofridos na prática de equitação, justamente porque este desporto é mais praticado por raparigas.

A opção individual face aos diferentes riscos é igualmente um elemento a considerar: sabe-se, por exemplo, que para a mesma viagem o risco de mortalidade ao ir de automóvel é 20 vezes superior ao de ir de avião, e 600 vezes superior ao da viagem de comboio. Obviamente que uma escolha criteriosa e informada obrigará ao conhecimento prévio dos diversos riscos e seus graus.

Ainda no que respeita aos comportamentos, na adolescência, por exemplo, vigoram em maior ou menor grau comportamentos experimentais ou condutas de ensaio naturais e normais, desejáveis e importantes em termos de integração no grupo e de avaliação das próprias capacidades num corpo que se transforma e num espírito que se auto-propõe desafios constantes.

Outro aspecto a ter em linha de conta nos jovens são os comportamentos para-suicidários, ou seja, aqueles em que, por diversas razões de ordem psicológica, numa idade em que podem com maior frequência ocorrer momentos frágeis ou de maior vulnerabilidade, mormente com dificuldade na gestão do estresse, o risco é assumido de uma forma excessiva, através de comportamentos em que um dos resultados possíveis, quiçá até o mais provável, é a morte ou pelo menos um traumatismo, ferimento ou lesão grave. Para compreender a génese dos acidentes juvenis, designadamente os que ocorrem com veículos de duas rodas, é necessário compreender estes comportamentos.

Todavia, convém não esquecer que os riscos são úteis e têm mesmo uma função individual e social – a abolição total das actividades de risco significaria o fim de diversos desportos profissionais, da aviação civil, da profissão de bombeiro, polícia e (porque não), talvez mesmo, a de médico.

De qualquer forma, cada indivíduo vê-se a si próprio como tendo comportamentos menos arriscados (ou por outras palavras, mais “ajuizados”) do que a maioria das pessoas o que, a ser verdade, levaria a um problema matemático complicado, do todo ser superior à soma das partes – se perguntarmos a cada um de nós como classificamos o trânsito diremos que é caótico e que as pessoas não respeitam as regras. Mas diremos também que se isso acontece é porque “nós” respeitamos as regras e os “outros” não. Os outros responderão da mesma forma, o que levará decerto o investigador a não sair da “estaca zero”.

Ao pretendermos estudar e equacionar o comportamento das crianças, urge também tomar em consideração os comportamentos dos adultos, designadamente:

  • Incumprimento de regras;
  • Estar-se convencido de que se cumpre mesmo quando não se cumpre;
  • Má gestão do estresse;
  • Incapacidade de lidar simultaneamente com todos os desafios para os quais se requer atenção e acção;
  • Alterações comportamentais motivadas pelo cansaço, pela frustração, pela ansiedade, etc..

Só assim se explica, por exemplo, a falência de medidas que à primeira vista poderiam ser consideradas fáceis e ideais, como por exemplo dos sinais avisadores da proximidade de uma escola, de redução de velocidade ou as passadeiras e os semáforos junto aos portões das escolas. Se as determinações subjacentes fossem inteiramente cumpridas, o problema dos atropelamentos estaria praticamente resolvido; mas a prática demonstra que assim não é. Ignorar este aspecto é perder uma parte essencial para a compreensão global do problema.

Por outro lado, não se pode exigir de seres imperfeitos, como os seres humanos, análises de situações, atitudes e comportamentos perfeitos: um condutor, por exemplo, é confrontado em cada milha (1,6 km) com 200 observações e 20 decisões.

Admitindo uma incidência perfeitamente razoável de um erro em cada quarenta decisões (2,5%), tal corresponderia a um risco de um erro por cada três quilómetros percorridos (cerca de 100 erros em cada viagem de cerca de 35 km. Com o cansaço ou sob o efeito do álcool, a relação erro/decisão aumenta. Este tipo de análise é de grande interesse, não apenas porque demonstra a incerteza da confiabilidade humana, repudiando a teoria de que os “maus condutores” são “loucos”, “assassinos” ou ambas as coisas, mas também porque, correlacionando este indicador com a velocidade, pode calcular-se por exemplo que a 60 km/h ocorrerá um erro em cada 5-6 minutos e que a 80 km/h ocorrerá um erro cada 3-4 minutos. Se adicionarmos a isto o facto de o erro se manifestar sobre uma máquina de várias centenas de quilos, que desloca uma massa de muitas toneladas, não sentida por quem está confortavelmente sentado, ouvindo música e à temperatura desejada, sem ruído e com excelentes amortecedores, é facilmente compreensível o enorme risco que um condutor tem de sofrer um acidente. Diríamos mesmo que quase se torna estranho não haver mais acidentes.

Mais: quantos condutores saberão, por exemplo, que a 90 km/h a distância média de travagem é de, pelo menos, 45 metros? E que, em caso de piso molhado, esta distância sobe para praticamente o dobro? E quantos saberão que, desde que se tem a noção do perigo até se travar (“distância de reacção”), decorrem 12, 19 ou 25 segundos, conforme a velocidade é 60, 90 ou 120 km/h e que, portanto, é verdadeira a afirmação de que “se não se conseguiu travar a tempo é porque se circulava a velocidade excessiva para as circunstâncias da altura”?

Poder-se-á perguntar: como é possível autorizar-se a condução a indivíduos que desconhecem a máquina que conduzem, os elementos que circulam e tantos outros indicadores que eliminariam à partida a sua capacidade de manobrar outras máquinas industriais? Poderá jogar xadrez quem não conhece os nomes das peças, os seus movimentos e os objectivos e regras do jogo? Ou ser cirurgião quem nunca estudou anatomia ou utilizou um bisturi?

Só será possível gizar e aplicar efectivamente medidas de prevenção dos acidentes e consequentemente dos TFLA, se houver uma profunda compreensão das características do comportamento humano, quer em termos de “laboratório”, quer na vida real, perante os estímulos de ordem vária e perante o estresse.

4. O ambiente como factor fundamental

Não nos podemos esquecer de que os agentes envolvidos na prevenção dos TFLA – dos legisladores aos médicos, dos pais aos políticos, dos educadores aos arquitectos, etc. – pertencem à espécie humana, são de “carne e osso” e, como tal, comportam-se humanamente, quer no que toca à riqueza da sua criatividade, quer na fraqueza das suas falhas e lacunas. Assim, sem eliminar completamente a responsabilidade individual – quer das crianças e jovens, quer sobretudo das famílias – deve atribuir-se o maior peso a outros factores.

Hugh DeHaven, um piloto de aviões da I Guerra Mundial e sobrevivente de uma queda do avião que tripulava, dedicou-se a estudar a razão pela qual algumas pessoas, vítimas do mesmo tipo de acidente (neste caso a queda), não sofriam praticamente qualquer lesão, enquanto outras faleciam. Os seus estudos levaram à conclusão de que não era a força da queda, per se, que infligia as lesões, mas sim o ambiente estrutural que controlava a desaceleração da força e a sua distribuição pelo corpo.

DeHaven concluiu então que “se não fosse possível evitar a queda, pelo menos poderiam ser tomadas medidas para reduzir o impacte e distribuir as pressões de modo a aumentar as hipóteses de sobrevida e modificar o tipo de lesões, quer ao nível da aviação, quer do transporte em terra”.

Hugh DeHaven foi, assim, o primeiro investigador a compreender a importância dos limiares traumáticos e a possibilidade de redistribuir e redimensionar a energia dos impactes por forma a torná-los menos agressivos para o corpo humano. Este princípio serviu de base ao uso do cinto de segurança, aos air-bags e às mudanças estruturais nas carrocerias e habitáculos dos automóveis.

Ou seja, o problema dos TFLA passou assim a pertencer também ao domínio da biomecânica. Gibson, um psicólogo experimental da Universidade de Cornell, referiu que o homem interage com os diversos fluxos de energia que o rodeiam – gravitacionais e mecânicos, radiantes, térmicos, eléctricos e químicos. As trocas de energia, quando não equilibradas, podem causar traumatismos, ferimentos e lesões.

Assim, a melhor forma de classificar os acidentes seria de acordo com o tipo de energia envolvida. O problema de classificação de alguns tipos de acidentes que não se encaixavam em nenhum destes tipos de energia – como os afogamentos, a asfixia ou as lesões pelo frio – foi resolvido por Haddon ao incluir o conceito de “agentes negativos”, os quais se explicariam pelo défice de elementos energéticos essenciais como o oxigénio ou o calor, nestes tipos de TFLA.

Os estudos de Haddon constituem marcos essenciais para a compreensão inovadora dos acidentes. A sua matriz, cruzando horizontalmente três fases (antes, durante e depois do acidente) com quatro elementos verticais (hospedeiro, vector, ambiente físico e ambiente sócio-económico) permite explicar os vários condicionalismos e factores que tornam cada acidente um caso diferente, com resultados diferentes:

  • Na fase “antes” encontram-se os diversos factores que fazem com que o acidente vá ocorrer – por exemplo, segundo os quatro elementos verticais mencionados, o hospedeiro que está ébrio, os travões do carro que funcionam mal, a estrada que tem uma curva mal desenhada e a atitude permissiva da sociedade perante o álcool e a condução;
  • Na segunda fase, “durante”, estão os elementos que determinam se o acidente (que entretanto ocorreu) dá ou não origem a um traumatismo, ferimento ou lesão – no exemplo vertente, e ainda segundo os quatro parâmetros verticais: os ocupantes da viatura usam cinto de segurança?, o carro é pequeno ou é grande?, o carro bate numa árvore ou num monte de feno? existe ou não uma lei que reforce o uso de cintos?;
  • A terceira fase (“depois”) contém elementos que determinam se a gravidade das consequências pode ser minorada: a hemorragia é importante? Os primeiros socorros chegaram rapidamente? Os cuidados intensivos são eficientes? A sociedade investiu num sistema de emergência médica?

Para Haddon, modificando um ou alguns destes parâmetros teria implicações nas consequências de um acidente.

Através da legislação, da sua fiscalização, da utilização das tecnologias para alterar a concepção e o fabrico dos produtos, os técnicos de diversas áreas têm como objectivo evitar o contacto do ser humano com quantidades de energia que lhe possam causar lesões e até a morte. Reside aí a chave da prevenção dos TFLA.

Obviamente que não deve ser retirada ao ser humano a sua quota parte da responsabilidade. Se a energia de um impacte de um automóvel com uma árvore, por exemplo, é independente do condutor e depende, sim, do cinto de segurança, da estrutura do automóvel, da velocidade, do peso, do tamanho da árvore, da travagem, de a coluna do volante ser colapsável ou não, etc., também não restam dúvidas de que a atitude de o condutor optar por conduzir sóbrio ou ébrio, ou de colocar ou não o cinto de segurança, pode ser decisiva para a sua ocorrência ou para as suas consequências. Só que, em vez de uma acção “educativa” que é apenas informativa e muitas vezes assustadora ou punitiva, as modificações no sentido de actuar “pensando segurança” fazem-se através de uma aprendizagem comportamental que se baseia no exemplo, no ensino, na moda, e que tem de se iniciar muito precocemente, tal como a higiene oral, o lavar das mãos, ou cumprimentar os pais e os amigos.

Daí a prioridade que deve ser dada às crianças e adolescentes, grupos etários estes que estão numa fase eminentemente formativa da sua vida. Só incorporando a segurança nos gestos banais e nos actos instintivos poderá haver uma certa garantia de êxito.

Não nos podemos esquecer de que a larga maioria dos acidentes ocorre, quer numa normalíssima situação do dia-a-dia, quer numa situação de estresse, e que, em ambas, o “catálogo” das recomendações de segurança não está presente na mente das pessoas.

A educação para a prevenção dos acidentes deverá, assim, privilegiar os meios mais adequados à interiorização das mensagens (e não apenas o “bombardeamento” do alvo com mensagens) para o que são indispensáveis a utilização das técnicas de comunicação e de marketing, o contacto pessoal e a demonstração das alterações ambientais a efectuar, de preferência nos locais onde elas devem ter lugar.

Daí a importância de, por exemplo, incrementar a visitação domiciliária para cuidados de antecipação nesta área da prevenção, desde que os agentes sejam preparados convenientemente.

Os meios de comunicação constituem, por outro lado, um poderosíssimo meio de transmissão de mensagens, de informação e de modelação de comportamentos (bem como de criação de necessidades), nomeadamente através de programas informativos, educativos, lúdicos ou de entretenimento.

5. Estratégias

A construção de um meio ambiente de qualidade que permita o desenvolvimento harmonioso da família e dos cidadãos é da responsabilidade de todos nós, requerendo um trabalho multi– e transdisciplinar.

A prevenção dos acidentes passa por um programa centrado na comunidade, de acção ambiental, no qual os médicos deverão, evidentemente, desempenhar um papel de relevo, sendo que os mesmos não deverão considerar-se os detentores exclusivos do protagonismo.

Alguns TFLA podem ser prevenidos através de uma acção global, nacional ou internacional, como certas intoxicações (se houver legislação e cumprimento desta no que se refere às embalagens de segurança), ou acidentes com a criança como passageiro do automóvel (por exemplo, se a lei referente ao transporte correcto for cumprida).

Outros, que têm a sua génese em inadequações urbanísticas e arquitectónicas, necessitam de uma abordagem local (é o caso dos atropelamentos à porta das escolas, dos TFLA sofridos em parques infantis, em quedas de varandas, afogamentos em piscinas ou rios), e exigem transformações ambientais de tipo estrutural.

Nalguns países, como a Suécia, foi possível (graças a uma acção sistemática integrada, iniciada ainda na década de 50 que reuniu as autoridades oficiais, organizações não governamentais, companhias de seguros e forças-vivas da sociedade) uma redução muito significativa no número de óbitos e na morbilidade por TFLA. Com efeito, a Suécia tornou-se o país com indicadores mais baixos de todo o mundo industrializado.

Reforça-se a ideia de que é indispensável, como já referimos, conhecer a situação com vista a identificar prioridades, utilizando, para tal, a abordagem da saúde pública, classificando os problemas segundo a sua prevalência/incidência, a sua transcendência (a vários níveis) e a vulnerabilidade às diversas acções e medidas.

Será também indispensável fazer uma ampla revisão da literatura e consultar peritos de várias instituições para identificar quais as medidas e acções que são verdadeiramente eficientes, separando-as das que, embora aparentemente eficazes, não se traduzem muitas vezes por uma melhoria da situação.

Outro aspecto fundamental é não desenvolver programas demasiado alargados. “Prevenir os acidentes” é um conceito demasiado vago para ser entendido em termos práticos e, novamente, podendo desencadear a noção de falsa-segurança. Em cada local haverá que identificar por ordem de prioridade quais os tipos de acidentes que estão a produzir mais TFLA e hierarquizá-los de forma a iniciar programas para os mais frequentes, mais graves, com maior vulnerabilidade às medidas e acções, com maior relação benefício/custo.

Será igualmente fundamental ampliar a informação sobre os acidentes e os TFLA, de modo a sensibilizar o público, designadamente sobre as prioridades e as medidas propostas, a fim de obter uma maior adesão dos cidadãos. O envolvimento destes na definição do problema, em toda a sua extensão, e a sua colaboração enquanto técnicos, mas também como seres humanos com experiência acumulada, não só é fundamental, como representa o reconhecimento de um direito legítimo.

Para além disso, no sentido de produzir as necessárias modificações ambientais:

  1. Há que fazer um levantamento dos recursos materiais e humanos;
  2. Analisar através da matriz de Haddon quais os pontos fracos da cadeia de cada TFLA, a fim de os “partir”;
  3. Redimensionar o contacto entre a energia (agente + situação) e a vítima.

O ponto 3) poderá ser concretizado com certas medidas a saber:

  • Medidas com o objectivo de impedir a troca de energia entre um e outro:
    • evitar a situação ou abolir o agente (eliminar um pesticida perigoso);
    • separar o agente da criança (vedar uma piscina);
    • vigiar a criança para impedir o contacto, apesar de não haver separação (acompanhar uma criança de casa à escola);
    • informar a criança dos riscos (educação para a segurança).
  • Medidas que reduzem a troca de energia ou melhoram a recepção da energia
    • reduzir a quantidade ou a agressividade do agente (reduzir a temperatura máxima da água canalizada);
    • modificar a situação e o agente (embalagens de segurança);
    • aumentar a resistência da criança (usar cadeira de segurança no automóvel);
    • treinar a criança para melhor enfrentar o agente (aprender a nadar).

Para além destas, é essencial desencadear também as medidas que, uma vez ocorrido o TFLA, poderão permitir a prevenção secundária e terciária.

Notas importantes:

  • Algumas medidas devem ser tomadas “de uma vez”, como a compra, por exemplo, de um fogão no qual não haja aquecimento da porta – é relativamente fácil concretizar este grupo de medidas (consideradas evidentemente a acessibilidade, disponibilidade e outros factores);
  • Outras deverão ser repetidas todos os dias, como colocar o cinto de segurança – podendo, contudo, ser estabelecidas desde que se crie o hábito.

6. Legislação

A integração de Portugal na União Europeia reforçou o naipe legislativo português, pela transposição para o Direito Interno do nosso País, das directivas e normas europeias. Poder-se-á dizer que, globalmente, Portugal dispõe de um conjunto de leis que, se levadas à prática, poderiam contribuir para reduzir de forma muito evidente o número de acidentes e de TFLA. Há, no entanto, alguns problemas que subsistem – a segurança no transporte colectivo de crianças ou o uso do capacete de bicicleta.

O problema principal no processo legislativo reside no atraso registado na regulamentação das leis, (condição essencial para a sua aplicabilidade) dizendo respeito, por exemplo, ao espaço entre as grades de uma cama de bebé, à altura dos degraus de uma escada ou à altura das janelas. Refira-se, a propósito, que as Câmaras Municipais e os Serviços de Saúde, designadamente, não dispõem ainda de meios legais para controlar aspectos essenciais relacionados com a construção de edifícios e com o ambiente onde as crianças vão viver.

Na Suécia, apesar de a utilização de dispositivos para transporte de crianças ter tido início quando Olof Palme era Ministro dos Transportes, no final dos anos 60, por pressão dos pediatras encabeçados por Ragnar Berfenstam, e existindo programas de aluguer e outros que generalizaram o acesso a estes dispositivos (sendo o grau de utilização de praticamente 100%), a legislação só foi produzida em 1988, numa altura em que qualquer pai ou mãe suecos já não admitiriam a hipótese de transportar incorrectamente os filhos.

No Reino Unido, foi em 1959 que, pela primeira vez, se levantou no Parlamento a questão do uso de cinto de segurança; em 1973 foi elaborada a primeira proposta formal mas só em 1981 a lei foi aprovada. Passaram, pois, muitos anos. Se este lapso de tempo pode ser considerado grande e levar a uma perda inútil de vidas e a TFLA evitáveis, por outro lado permite que, desde que bem utilizado, o processo legislativo seja acompanhado pela população e o articulado legal entendido e aceite.

A existência de Provedorias da Criança, com tanto sucesso na Escandinávia, e a inclusão dos aspectos de segurança e prevenção dos TFLA no capítulo dos Direitos da Criança e dos Direitos do Cidadão (designadamente nos direitos do consumidor) permitiu também em muitos países (encabeçados pelos nórdicos mas também na Holanda, Reino Unido, Alemanha e outros) a definição de padrões sociais de exigência mesmo na ausência de legislação na perspectiva do bem-estar da população em idade pediátrica.

7. Consciencialização dos cidadãos

É imperioso aumentar o reconhecimento e a consciencialização da população e de todos os níveis dos sectores público e privado relativamente à necessidade do controlo de TFLA. A natural lentidão do processo de interiorização de conceitos novos não deverá ser impedimento à transmissão de mensagens que são consideradas correctas, pelo que as campanhas de educação para a saúde e de chamada de atenção para os problemas, deverão incluir os TFLA (nas suas vertentes de prevenção e, cuidados de saúde agudos e reabilitação).

Claro está que, dadas as reticências que actualmente são levantadas a estes processos, designadamente no que se refere à sua eficácia e eficiência, eles deverão ser bem elaborados, com extensa utilização das técnicas de comunicação existentes e com uma noção clara do que será importante transmitir.

Os profissionais estão frequentemente alheados do problema ou das formas de o resolver.

  • Quantos arquitectos e engenheiros não conhecem ou não utilizam a legislação existente relativa aos materiais de construção e à segurança da construção?
  • Quantos médicos ignoram os ditames da segurança no que toca aos medicamentos?
  • Quantos tóxicos são vendidos sem um alerta para as condições de utilização e armazenamento? etc..

O ensino/ aprendizagem da segurança deverá começar quando começa o de outras áreas; mas, dentro do percurso de formação profissional, importa investir mais e melhor, em quantidade e qualidade.

Em suma, os acidentes custam tantos ou mais anos de vida e tanto sofrimento e dinheiro como o conjunto das doenças cardiovasculares e do cancro. Levam a incapacidades permanentes. Contudo, um pouco à margem da preocupação dos cidadãos.

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A CRIANÇA MALTRATADA

Definição

De uma forma genérica, os maus tratos podem ser definidos como qualquer forma de actuação física e/ou emocional, não acidental e inadequada, resultante de disfunções e/ou carências nas relações entre crianças e jovens, e pessoas mais velhas, num contexto de uma relação de responsabilidade, confiança e/ou poder.

Podem traduzir-se por comportamentos activos (físicos, emocionais ou sexuais) ou passivos (omissão ou negligência nos cuidados e/ou afectos). Pela maneira reiterada como geralmente acontecem, privam o menor dos seus direitos e liberdades afectando, de forma concreta ou potencial, a sua saúde e o desenvolvimento (físico, psicológico e social) e/ou dignidade.

Importância do problema

Tais comportamentos deverão sempre ser analisados tendo em conta a cultura e a época em que têm lugar, sendo importante conhecer as práticas e as ideias que apoiavam e promoviam muitos actos socialmente aceites em determinada época, relativamente à infância. Ao longo do tempo tem-se comprovado que tais práticas inadequadas e as agressões, sob as mais diversas formas, têm sido comuns desde os tempos mais remotos; ainda num período relativamente recente, há cerca de um ou dois séculos, eram considerados correctos e, como tal, socialmente aceites.

Foram necessárias profundas modificações culturais, sociais e de sensibilidades até que fossem reconhecidos a individualidade e os direitos próprios da criança.

Nota histórica

A história da violência exercida sobre a Criança, ao longo dos tempos, confunde-se com a história da própria Humanidade. Quanto mais recuamos no tempo, maiores são as atrocidades cometidas contra as crianças. Assim, na Antiguidade o infanticídio era uma prática habitual que perdurou nas culturas orientais e ocidentais até ao século IV DC. Realizava-se por diversos motivos, entre os quais se contam: eliminar filhos ilegítimos, deficientes ou prematuros; dar resposta a crenças religiosas (salvar a vida do rei em perigo, acalmar a fúria dos deuses, demonstrar-lhes devoção ou pedir-lhe graças); controlar a natalidade, etc..

Na Roma antiga, o direito à vida era outorgado em ritual, habitualmente pelo pai, sendo ilimitados os seus direitos sobre os filhos. Os recém-nascidos eram, não só sacrificados em altares dedicados exclusivamente a este fim, como também projectados contra as paredes ou abandonados às intempéries sem qualquer vestimento.

O aparecimento do Cristianismo e a conversão do Imperador Constantino ao mesmo, provocou uma mudança fundamental da atitude da sociedade para com as pessoas mais débeis. Este Imperador, autor da primeira lei contra o infanticídio, influenciou decisivamente o percurso histórico da questão da violência exercida sobre os menores através do conhecimento dos seus direitos, contribuindo para a redução dos casos de infanticídio.

Durante a Idade Média, face às numerosas guerras e à precariedade económica, muitas crianças dos grupos sociais mais carenciados eram vítimas de infanticídio ou abandono. Nas classes abastadas verificava-se mais o abandono afectivo e as manifestações do poder do pai como dono da criança. As práticas sexuais com adolescentes eram naturalmente admitidas.

Durante os séculos XVII e XVIII, a protecção das crianças era feita através do seu internamento em instituições. Nesse período a infância começou finalmente a ser encarada como uma etapa específica da vida, necessitando de atenções especiais. No entanto, ainda no século XVIII, foi criada a “Roda” existente em instituições (cilindro rolante na incrustado numa parede com gavetas em disposição circular onde eram depositadas as crianças abandonadas; rodando o cilindro, ficando as gavetas no lado oposto da parede, aquelas iam sendo depois recolhidas. Muitas acabavam por perecer.

O interesse pela protecção infantil apareceu, definitivamente, no século XIX, como consequência da Revolução Industrial, apesar de esta ter trazido consigo a exploração da criança pelo trabalho e de, ainda nesta época, ser frequente o infanticídio dos filhos ilegítimos.

Em 1860, em França, começaram a ser denunciados os casos de maus tratos infantis. Nesse ano, Ambroise Tardieu fez a primeira grande descrição científica da síndroma da criança maltratada no seu livro Étude médico-legal sur les sevices et mauvais traitements exercés sur les enfants. O seu trabalho não foi valorizado pela comunidade científica durante quase cem anos, mas conseguiu despertar a consciência social naquele país, acabando por levar à promulgação de uma lei de protecção das crianças maltratadas.

A I Grande Guerra, pelos seus efeitos sobre a população civil e sobre a infância, teve uma influência decisiva nesta matéria, sendo fundada em Genebra, em 1920, a “União Internacional de Socorros às Crianças” a qual criou uma carta de princípios, conhecida pela “Carta dos Direitos da Criança ou Declaração de Genebra”.

A II Guerra Mundial veio dar novo impulso à evolução nesta matéria. Foram então criados em 1947 organismos como a UNICEF ou “Fundo Internacional de Socorro da Infância”. Em 1948, foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e, em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direitos da Criança” que constituiu um importante avanço. (Parte I – Introdução à Clínica Pediátrica).

Já a partir de 1939 Caffey, detectando fracturas e hematomas subdurais em certas crianças, veio definir uma entidade clínica que designou “traumatismo de origem desconhecida”. Na sequência desses estudos, Silverman, em 1953, admitiu que tais casos, acompanhados de sinais de traumatismo, poderiam ser provocados pelos pais tendo outros autores demonstrado que as lesões melhoravam com o afastamento da criança do seu núcleo familiar.

Em 1961, H. Kempe começou a usar a expressão “battered child” ou “criança batida” e, em 1962, juntamente com os seus colaboradores, publicou um artigo sobre crianças maltratadas considerando esta situação como uma síndroma clínica (the battered child syndrome), relativamente à qual previa já a necessidade de uma intervenção multidisciplinar e o afastamento temporário dos pais.

Depois de Kempe, os resultados de muitos estudos vieram reforçar a importância da protecção à infância e da sua defesa nos seus múltiplos e variados aspectos.

Na década de setenta do século XX foram criados em muitos hospitais grupos multidisciplinares, tendo como objectivos o diagnóstico e a orientação das crianças maltratadas.

Em 1989, na Assembleia Geral das Nações Unidas foi aprovada a Convenção sobre os Direitos da Criança, onde se defende que as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e atenções especiais, sendo dada especial ênfase aos cuidados primários e às responsabilidades da família.

Em Portugal, foi na década de oitenta passada que este assunto passou a merecer atenção especial com a criação dos primeiros núcleos de estudo e apoio à criança maltratada, integrando pediatras, técnicos do serviço social, enfermeiras, psicólogos, pedopsiquiatras, representantes dos tribunais de menores e outros profissionais. 

Em 1990 foi ratificada, na Assembleia da República, a Convenção sobre os Direitos da Criança, em sintonia com a deliberação anterior da Assembleia Geral da Nações Unidas.

Em 1991 foram criadas as Comissões de Protecção dos Menores, com sede nas autarquias locais, integradas por representantes dos tribunais, técnicos de serviço social, médicos e elementos da autarquia e da comunidade.

Em 1998 a Comissão Interministerial para o estudo da articulação entre os Ministérios da Justiça e da Solidariedade e Segurança Social, passou a utilizar o termo “criança em risco”.

Em 1999 foi redigida a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2001 e alterada em 2015), substituindo as Comissões de Protecção de Menores pelas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, estando previstas novas formas para a sua protecção. De salientar, a este propósito, que em 2011, a Direcção Geral da Saúde (DGS) elaborou o documento intitulado Maus Tratos em Crianças e Jovens – Guia prático de abordagem, diagnóstico e intervenção.

A partir de 2008, sob os auspícios do Ministério da Saúde (DGS) foram aprovados projectos funcionais com a criação, respectivamente, dos chamados Núcleos de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NACJR) e dos Núcleos Hospitalares de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) – integrando a chamada Acção de Saúde para Crianças e Jovens em Risco (ASCJR) -. Esta estratégia teve como justificação considerar o assunto em questão como uma área de intervenção pública na saúde, da maior importância estratégica e relevância social.

A este propósito, cabe salientar que a Rede de Núcleos da ASCJR, a partir de Junho de 2013, passou a estar articulada com o novo Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ) – http://www.dgs.pt/?cr=24430.

Em 5 de Dezembro de 2008 foi aprovado, no Despacho nº 31292, o documento “Maus Tratos em Crianças e Jovens – Acção da Saúde para crianças e jovens em risco”, tendo como objectivo a orientação técnica para definir a intervenção da Saúde nesta área. Na mesma data foi promulgada a criação de Núcleos de Apoio à Criança e Jovens em Risco (NACJR) em todos os agrupamentos de centros de saúde e hospitais do país com atendimento pediátrico.

Tipologia dos maus tratos

A violência para com as crianças e jovens manifesta-se por formas muito diferentes, como maus tratos físicos (que, no limite, se traduzem pelo infanticídio ou homicídio), abuso emocional ou psicológico, abuso sexual, negligência, abandono, exploração no trabalho, exercício abusivo da autoridade e tráfico de crianças e jovens, entre outras formas de exploração. Esta violência pode observar-se em diferentes contextos, designadamente familiar, social e institucional.

Assim, as crianças e jovens podem ser maltratados por um dos progenitores ou por ambos, por um cuidador, por um irmão ou outro familiar, por uma pessoa conhecida ou por um estranho. O abusador pode ser um adulto ou um jovem mais velho.

Apenas em situações de muita gravidade se consideram como situação de maus tratos os que acontecem fora do contexto familiar ou institucional.

Pela sua frequência e relevância apenas serão consideradas as seguintes formas de maus tratos: negligência, maus tratos físicos, abuso sexual e abuso emocional, e a chamada síndroma de Munchausen por procuração.

1. Negligência

A negligência constitui um comportamento de omissão relativamente aos cuidados a ter com as crianças e jovens, não lhes sendo proporcionada a satisfação das suas necessidades em termos de cuidados básicos e de higiene, alimentação, segurança, educação, saúde, estimulação e apoio.

Pode ser voluntária (com a intenção de causar dano) ou involuntária (resultante da incompetência dos pais para assegurar os cuidados necessários e adequados). Inclui diversos tipos como a negligência intra-uterina (durante a gravidez), física, emocional e escolar, além da mendicidade e do abandono. Deste comportamento resulta dano para a saúde e/ou desenvolvimento físico e psicossocial da criança e do jovem.

É importante referir a noção de que a negligência pressupõe que o cuidador tem a capacidade, o conhecimento e o acesso aos serviços necessários para o bom desenvolvimento da criança, mas falha nessa prestação. (UNICEF, 2014)

2. Maus tratos físicos

Esta forma de maus tratos corresponde a qualquer acção, não acidental, por parte dos pais ou pessoa com responsabilidade, poder ou confiança, que resulta da força física ou de objecto contra a criança ou adolescente, e que provoque ou possa provocar dano físico na criança ou jovem.

O dano resultante pode traduzir-se em lesões físicas de natureza traumática, fracturas, queimaduras, doença, sufocação, afogamento, castigo corporal, intoxicação, síndroma da criança abanada e a violência entre pares sob a forma de bullying físico e praxe (com intenção de provocar dor ou desconforto, físico ou psíquico).

3. Abuso sexual

O abuso sexual traduz-se pelo envolvimento da criança ou jovem em práticas que visam a gratificação e satisfação sexual do adulto ou jovem mais velho, numa posição de poder ou de autoridade sobre aquele. Trata-se de práticas que a criança e o jovem, dado o seu estádio de desenvolvimento, não conseguem compreender e para as quais não estão preparados. Pode ser intra ou extrafamiliar, (muito mais frequente o primeiro) e ser repetido, ao longo da infância.

São exemplos deste tipo de abuso: a obrigação de a criança e o jovem conhecerem e presenciarem conversas ou escritos obscenos, espectáculos ou objectos pornográficos ou actos de carácter exibicionista; a utilização do menor em fotografias, filmes, gravações pornográficas, ou em práticas sexuais de relevo; a penetração com partes do corpo ou objecto; a manipulação dos órgãos sexuais; casamento infantil e violência sexual nas relações de intimidade.

4. Abuso emocional

Esta forma de abuso constitui um acto de natureza intencional caracterizado pela ausência ou inadequação, persistente ou significativa, activa ou passiva, do suporte afectivo e do reconhecimento das necessidades emocionais da criança ou jovem indispensáveis ao crescimento, desenvolvimento e comportamentos adequados.

Do referido abuso resultam efeitos adversos no desenvolvimento físico e psicossocial da criança ou jovem e na estabilidade das suas competências emocionais e sociais, com consequente diminuição da sua auto-estima.

São citados como exemplos insultos verbais, humilhação, ridicularização, desvalorização, ameaças, indiferença, discriminação, favoritismo, rejeição, culpabilização, críticas, bullying e cyberbullying, violência emocional no namoro e problemas relacionais entre pais e criança, nomeadamente de violência doméstica, assim como situações de alienação parental.

Como se depreende, este tipo de maus tratos está presente em todas as outras situações de maus tratos, pelo que só deve ser considerado isoladamente quando constituir a única forma de abuso.

O diagnóstico de qualquer destas situações requer, em geral, um exame médico e psicológico da vítima, e uma avaliação social e do seu contexto familiar.

5. Síndroma de Munchausen por procuração

5.1 Definição

Abordar a problemática dos maus tratos na criança implica também a referência especial a uma situação designada por síndroma de Munchausen por procuração. Trata-se dum quadro clínico em que um dos progenitores – invariavelmente a mãe – está implicado, simulando ou causando sinais e sintomas de doença orgânica no filho levando como consequência à realização de procedimentos de diagnóstico exaustivos e recurso a técnicas invasivas com hospitalizações frequentes. Esta situação é perpetrada em crianças incapazes ou não desejosas de identificar a agressão e o agressor

5.2 Etiopatogénese

Existem várias possibilidades quanto à etiopatogénese: o progenitor propicia uma história clínica inventada; poderá falsificar os resultados ou o nome do titular de exames complementares laboratoriais; poderá provocar sintomatologia na criança através de diversos estratagemas: lesão traumática em condições especiais, administração de determinados fármacos tirando partido de determinados efeitos dos mesmos; simulação de síndroma febril exibindo o termómetro previamente introduzido em líquido quente; exposição repetida a determinada toxina; apneia e convulsões provocadas, por exemplo, por sufocação; coloração de fezes e urina com o sangue simulando respectivamente rectorragias e hematúria, etc..

Muitas vezes a mãe tem experiência de ambiente médico-assistencial, estando familiarizada com nomes e sintomas de determinadas doenças. As manifestações estão sempre associadas à proximidade entre a mãe e a criança.

Noutras circunstâncias, a mãe incute no filho a ideia de situação de risco ou mesmo de doença, o que origina da parte da criança o desejo de mais dependência e de estar com ela, implicando, por exemplo, absentismo escolar.

Neste contexto, o cenário habitual é o de um pai que tem um papel passivo e distante deixando a cargo da mãe todas as diligências relativas aos cuidados a prestar ao filho.

5.3 Manifestações clínicas

A detecção da síndroma de Munchausen por procuração requer um elevado índice de suspeita; os sintomas e sinais, atípicos e incompatíveis com processos mórbidos naturais e reconhecidos, poderão ser indiciadores.

As manifestações são diversas e dedutíveis das circunstâncias etiopatogénicas atrás referidas, conforme a idade da criança; por exemplo: hiperactividade, sonolência, febre, convulsões, apneia, cefaleias, dor abdominal. Podem atingir qualquer aparelho ou sistema orgânico e sugerir uma variedade de processos patológicos.

Por vezes existem antecedentes maternos da referida síndroma.

Classicamente a síndroma é mais frequente em crianças que ainda não falam; no entanto, estão descritos casos no período pubertário.

De referir no entanto que por vezes existe doença orgânica associada.

5.4 Diagnóstico

Face às suspeitas da situação, para além de redobrada vigilância estando a criança hospitalizada, haverá que proceder a exames complementares comprovativos estritamente necessários e minimamente invasivos segundo o princípio de “primum non nocere”.

A propósito de exames complementares, cabe salientar que submeter uma criança a procedimentos invasivos excessivos, sem fundamentação aparente, poderá ser considerado eticamente mau trato ou abuso.

Aspectos epidemiológicos

É impossível determinar a verdadeira incidência de casos de maus tratos em qualquer país e, consequentemente, a morbilidade e mortalidade a eles associadas. Tal dificuldade deve-se ao facto de um elevado número de casos acontecer em meio familiar (sendo assim de difícil visibilidade), à aceitação social de muitos deles, ao medo da represália por parte das vítimas e testemunhas, à vergonha, à baixa credibilidade e desvalorização dos relatos da criança, às dificuldades no seu diagnóstico e à falta de notificação sistemática dos mesmos.

A maior parte dos maus tratos surge em todos os grupos sociais. Admite-se que acontecem com maior frequência nas classes sociais mais desfavorecidas, em virtude das carências económicas a que se associam as más condições habitacionais, o baixo nível ou ausência de instrução escolar e da promiscuidade, e a desorganização da vida profissional, social e familiar.

Segundo a OMS, e com base em inquéritos de autorrevelação, estima-se que na Europa, em 2013, 9,5% das crianças até aos 18 anos tenham sido vítimas de abuso sexual, 22,9% vítimas de violência física, e 29,1% de abuso psicológico; estes dados são muito superiores aos registados pelas fontes oficiais. Algumas estimativas sugerem que o número de casos detectados corresponde apenas a 30-35% do total.

De acordo com o estudo epidemiológico realizado em Portugal por Fausto Amaro, em 1985, haveria 20 mil casos de crianças maltratadas. Ao tempo, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco apurou a seguinte frequência relativa:

  • Negligência e abandono: 65,8%;
  • Maus tratos físicos e psicológicos: 28,7%;
  • Abuso sexual: 5,5%.

Em 2015 existiam em Portugal 277 Núcleos anteriormente citados, distribuídos do seguinte modo: 83% a nível dos Cuidados de Saúde Primários, e 13% a nível Hospitalar. O trabalho desenvolvido ao longo do tempo traduziu-se globalmente, entre Janeiro de 2008 e Dezembro de 2015, em 47.172 sinalizações.

Durante o período 2008-2015 verificou-se uma tendência de aumento do número de sinalizações podendo reflectir, quer um aumento verdadeiro, quer um incremento na sensibilização e capacidade de os profissionais detectarem casos, quer ainda a conjugação de factores.

De acordo com o Relatório da ASCJR/DGS publicado em Dezembro de 2016, e tomando como referência o ano de 2015, a tipologia das situações de maus tratos sinalizada em Portugal Continental (n= 8684), pode assim sintetizar-se:

  • Negligência: 70%;
  • Mau trato físico: 7%;
  • Abuso sexual: 5%;
  • Mau trato psicológico: 15%;
  • Outras situações: 3%.

Tomando como exemplo o mau trato mais frequente (negligência), no período entre 2008 e 2015 a proporção de sinalizações oscilou entre 67% (em 2012) e 73% (em 2014).

Factores de risco

São considerados factores de risco dos maus tratos todas as influências que aumentam a probabilidade de ocorrência ou de manutenção de tais situações. Contudo, na sua avaliação deve imperar sempre o bom senso, tendo em conta o contexto da situação, uma vez que qualquer destes factores, isoladamente, poderá não constituir um factor de risco.

Tais influências estão relacionadas com características individuais dos pais, da criança ou jovem, assim como do contexto familiar, social e cultural.

As características individuais dos pais são múltiplas, enumerando-se as mais frequentes: alcoolismo, toxicodependência; perturbação da saúde mental ou física; antecedentes de comportamento desviante; personalidade imatura e impulsiva; baixo auto-controlo e reduzida tolerância às frustrações; baixa auto-estima; antecedentes de maus tratos na infância; idade muito jovem (inferior a 20 anos, sobretudo as mães); baixo nível económico e cultural; desemprego; perturbações no processo de vinculação com o filho (especialmente mãe/filho no período pós-natal precoce); excesso de vida social ou profissional que dificulta o estabelecimento de relações positivas com os filhos.

As características da criança ou jovem mais frequentemente associadas ao tópico em análise são: a vulnerabilidade em termos de idade e de necessidades; a personalidade e temperamento não ajustados aos pais; a prematuridade; baixo peso de nascimento; perturbação da saúde mental ou física (anomalias congénitas, doença crónica), défice cognitivo e/ou físico, temperamento “difícil”, comportamento desafiante, hiperactividade, comportamento de oposição, baixa auto-estima, baixa tolerância à frustração, etc..

As características do contexto familiar, isto é, as fontes de tensão susceptíveis de facilitar os maus tratos são: gravidez não desejada; família monoparental, reconstituída com filhos de outras ligações, com muitos filhos, não estruturada (relação disfuncional entre os pais, crises na vida familiar, mudança frequente de residência ou emigração); famílias com problemas socioeconómicos e habitacionais (extrema pobreza, situações profissionais instáveis, isolamento social), entre outras.

Também as características do contexto social e cultural, tais como a atitude social para com as crianças, as famílias e atitude social em relação à conduta violenta, são factores de intensificação do trauma.

Diagnóstico

Tal como em qualquer outra patologia, a abordagem dos maus tratos deve ser feita com vista a atingir o diagnóstico da situação clínica e social, notificar, e instaurar o tratamento e/ou orientação adequados assegurando a protecção da criança. Assim, importa realizar correctamente uma história clínica integrando: anamnese, exame físico, exames complementares, tratamento e orientação/intervenção.

Anamnese

A realização da anamnese é fundamental, assim como o seu correcto registo. É importante evitar múltiplas entrevistas ao menor, uma vez que pode levar a uma vitimização secundária, pelo que esta deve ser feita pelo mínimo de profissionais da equipa, num ambiente privado.

No interrogatório importa atender a certos indicadores que nos podem alertar para a existência de maus tratos tais como:

Incongruências: atraso na procura de ajuda por parte dos cuidadores; explicação pouco concreta sobre a origem ou mecanismo da lesão; versões diferentes sobre o mecanismo da lesão; lesões não concordantes com o desenvolvimento psicomotor da criança.

Comportamentos: medo dos progenitores/cuidadores; atitude receosa face ao contacto físico; pais excessivamente severos e rígidos manifestando uma percepção negativa do filho. 

Não podemos ignorar o contexto social, tendo em conta as circunstâncias pessoais, familiares e sociais nas quais a criança ou jovem se desenvolve, com o intuito de pesquisar possíveis factores de risco (já referidos anteriormente).

Exame físico

O exame físico deve ser completo e minucioso, incluindo a avaliação da pele, cabelo, unhas, roupa, etc.. Devemos registar o estado de higiene, somatometria e realizar uma avaliação sumária do desenvolvimento psicomotor. 

As manifestações clínicas evidenciadas pelo exame físico são muito variadas, dependendo do tipo de mau trato; com efeito, não existindo lesões patognomónicas, importa atitude ter um elevado índice de suspeita diagnóstica.

Com efeito, existem lesões físicas que, pelas suas características, nos fazem suspeitar de maus tratos:

  • Lesões cutâneas ou das mucosas (equimoses, hematomas, feridas, cicatrizes): localizadas em zonas de punição/castigo (fora do rebordo ósseo); normalmente múltiplas e, por vezes, podem reproduzir padrão de objecto;
  • Queimaduras: localizadas em zonas cobertas ou distais, em luva (por imersão), classicamente respeitam as pregas profundas, apresentam bordos bem delimitados e sem lesões de salpicos;
  • Mordeduras humanas: são múltiplas ou recorrentes, de forma ovóide reproduzindo a arcada humana e de tamanho do adulto;
  • Lesões osteoarticulares: fracturas dos ossos longos (metafisárias por estiramento ou em espiral por torção do membro), das costelas (posteriores ou laterais), e vertebrais (por hiperextensão/flexão); são características de maus tratos fracturas em múltiplas localizações e em várias fases de evolução;
  • Traumatismo cranioencefálico: fracturas cranianas que são bilaterais, de trajecto não linear e que cruzam suturas, ou afundadas. O hematoma subdural, associado invariavelmente a trauma, é o tipo mais comum de hemorragia intracraniana nos maus tratos;
  • Achados sugerindo síndroma da criança abanada (descrita em 1946 por Caffey): hematoma subdural e hemorragias retinianas em 60-90% dos casos; por vezes associada a múltiplas fracturas dos ossos longos.

No abuso sexual as lesões físicas são raras e a cicatrização é bastante rápida e completa pelo que, o diagnóstico diferencial é extenso. Existem, no entanto, alguns sinais e sintomas que nos façam suspeitar de estarmos perante situações de abuso:

  • Lesões externas dos órgãos genitais;
  • Leucorreia vaginal persistente ou recorrente;
  • Rubor dos órgãos genitais externos;
  • Lesões cutâneas: rubor, inflamação petéquias ou atrofia cutânea perineal ou perianal;
  • Lesões no pénis;
  • Lacerações ou fissuras genitais ou anais, sangrantes ou cicatrizadas;
  • Laceração do hímen;
  • Hemorragia vaginal ou anal;
  • Laxidão anormal do esfíncter anal ou do hímen, fissuras anais;
  • Equimoses e/ou petéquias na mucosa oral e/ou lacerações do freio dos lábios;
  • Sugilações (“chupões”) no pescoço/mamas;
  • Infecções urinárias de repetição;
  • Infeções de possível transmissão sexual: gonorreia, herpes genital, verrugas genitais (por vírus do papiloma humano-VPH), sífilis, infecção por vírus da imunodeficiência humana-VIH, infecção por Clamídia, hepatite B e C;
  • Presença de esperma no corpo da criança/jovem;
  • Gravidez.

Intervenção

Na suspeita de maus tratos, a vítima (criança ou jovem) deve ser internada ou temporariamente afastada do meio familiar, com um duplo objectivo: em primeiro lugar, a sua protecção, impedindo que os maus tratos continuem e provoquem lesões mais graves; em segundo lugar, dispor de tempo suficiente para um estudo familiar e social completo. Esta actuação vai permitir que se tomem as diligências necessárias ao seu encaminhamento correcto.

Contudo, nalgumas situações de maus tratos perpetrados por alguém não próximo da criança/jovem em que não são necessários cuidados médicos, pode ponderar-se a eventualidade de a criança/jovem voltar ao seu domicílio, desde que os pais sejam “de confiança” e protectores, permitindo um acompanhamento seguro em situação de não internamento.

A observação do comportamento dos pais, da criança, e da relação entre ambos, pode fornecer elementos adicionais importantes para a formulação do diagnóstico de maus tratos. Ao contrário do que acontece com as situações acidentais em que os pais se mostram geralmente preocupados com o estado de saúde da criança, nas situações de maus tratos devem ser considerados suspeitos: os que recusam o tratamento ou o internamento dos filhos; os que se mostram indiferentes ou agressivos; ou os que colocam as suas preocupações acima do estado de saúde da criança.

Por sua vez, as crianças podem mostrar-se demasiado assustadas, não acalmando com a presença ou com as carícias dos pais ou assumindo posturas de defesa à aproximação de adultos.

A atitude da equipa (multidisciplinar) que orienta estes casos deve pautar-se sempre por extrema prudência e calma, mostrando uma atitude de compreensão e evitando juízos de crítica ou atitudes de punição da família. É fundamental, pois, perceber que se está perante uma família doente e que uma intervenção de ajuda é a mais correcta e comprovadamente mais eficaz.

Consequências orgânicas e psicossociais

Não é possível estabelecer uma relação simples entre o tipo de maus tratos e as suas consequências a longo prazo, dado que na maior parte das vezes se trata de situações mistas, em todas elas estão subjacentes os maus tratos emocionais que, pela sua natureza, são difíceis de identificar e controlar.

Os maus tratos intrafamilares são aqueles que mais graves consequências têm para crianças e jovens, dado que dos mesmos resultam uma profunda quebra de confiança e uma importante perda de segurança em casa, por sua vez uma ameaça profunda para o desenvolvimento.

É sabido que uma criança vítima de maus tratos corre sérios riscos de morte, de lesões cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro ano de vida, se não for diagnosticada e não se providenciarem as medidas adequadas à sua protecção.

A grande maioria dos casos fatais de maus tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos. As causas mais frequentes são os traumatismos cranianos dos pequenos lactentes, seguidos pelas lesões intra-abdominais (ruptura de vísceras), asfixia e sufocação. Nas crianças mais velhas, em idade escolar, não existe geralmente risco de vida. A repetição dos maus tratos físicos ou psicológicos vai ter, contudo, repercussões graves na vida futura da vítima; importa, por isso, estar atento a estas questões no sentido de as prevenir, identificar e tratar.

Em síntese, são consideradas, a longo prazo, as seguintes consequências psicossociais: atraso de crescimento, atraso de desenvolvimento, atraso de linguagem, insucesso escolar, alterações de comportamento, risco elevado de delinquência, diminuição da auto-estima, dificuldades no relacionamento social, baixas expectativas de vida e transmissão do mau trato às gerações futuras.

Prevenção

Em todo o processo de protecção da infância, a prevenção dos maus tratos constitui a sua prioridade fundamental. Existem três níveis de prevenção, consoante os objectivos e os alvos a que é dirigida:

  • Primária – prestação de serviços à população em geral, tendo em vista evitar o aparecimento de casos de maus tratos;
  • Secundária – prestação de serviços a grupos específicos de risco, a fim de tratar ou evitar novos casos, promovendo o regresso da criança à família;
  • Terciária – prestação de serviços a vítimas de maus tratos, para minorar a gravidade das consequências e evitar a recidiva.

prevenção primária engloba vários tipos de medidas que devem ser dirigidas a dois alvos de níveis distintos, pelo que se designam prevenção primária inespecífica, ou específica.

prevenção primária inespecífica é dirigida à população em geral e deve começar por fomentar uma cultura anti-violência, passando pela informação da comunidade; pela promoção da saúde materno-infantil; pela preparação de técnicos que trabalham com crianças; pelo ensino aos futuros pais; pela estimulação da relação mãe-filho; pela protecção legal, e pela criação de estruturas sociais de apoio à maternidade e a criança e ao jovem. Deve incluir ainda medidas muito mais vastas de cariz social, como a promoção da melhoria das condições de vida, da saúde, e do emprego; e o combate ao trabalho infantil, ao alcoolismo e à toxicodependência, entre outras.

prevenção primária específica tem como principal objectivo a identificação das crianças e famílias em risco. A estratégia de intervenção depende do tipo de problemas identificados em cada família.

A identificação de crianças em risco na maternidade deve levar a maior vigilância e apoio à mãe: ensino de regras de puericultura; estimulação do aleitamento materno e da relação mãe-filho; acompanhamento mais estreito nas consultas de saúde infantil; promoção de programas de visitas domiciliárias; ensino da prevenção de acidentes; tratamento da desintoxicação alcoólica ou toxicodependência dos pais; auxílio na aquisição de benefícios sociais; melhoria das condições habitacionais; integração em creches; e ocupação dos tempos livres. Estas medidas devem ser desenvolvidas em todas as situações familiares de risco.

prevenção secundária inclui: o tratamento adequado da criança e intervenção na família, e o apoio e vigilância no domicílio e na comunidade. As visitas domiciliárias a cargo de enfermeiras, assistentes sociais, a colaboração do médico de família, e a integração das crianças em creches ou jardins de infância são medidas que devem fazer parte deste deste tipo de prevenção.

As modalidades de abordagem acima referidas não terão êxito se não puderem contar com o apoio de meios adequados e legislação que, garantindo os direitos humanos, permita a sua aplicação. Assim, as estruturas políticas deverão ser consideradas como parceiros sociais nas acções de prevenção relativas aos maus tratos.

A reflexão sobre os programas de prevenção do mau trato permite deixar uma nota de optimismo desde que o apoio seja precoce e continuado e, sobretudo, se se conseguir o estabelecimento de uma relação respeitosa e de confiança entre os técnicos e as famílias das crianças maltratadas.

Esta intervenção reestruturante da anarquia das relações familiares consegue muitas vezes estabilizá-las de forma a permitir o desabrochar das potencialidades intelectuais e afectivas das crianças e jovens vítimas de maus tratos.

Reportando-nos ao papel da Rede de Núcleos no âmbito da DGS, importa salientar que as respectivas equipas não se têm limitado ao trabalho de detecção e sinalização, pois também têm participado em numerosas acções de formação. Além disso, continuam a ser levadas a cabo numerosas iniciativas de carácter informativo e de prevenção no âmbito do tópico em análise.

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PERTURBAÇÕES DO COMPORTAMENTO DISRUPTIVO

Definição e importância do problema

As perturbações do comportamento disruptivo constituem um grupo de afecções que se caracterizam pela existência de um padrão persistente de dificuldade em aceitar regras, e de comportamentos agressivos desencadeados frequentemente por situações de frustração e/ou comportamentos de violação de regras sociais; tal situação, com patamares diversos de gravidade, tem um impacte psicossocial significativo.

De acordo com a American Psychiatric Association e as normas descritas no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – 5ª edição (DSM 5), a patologia enquadrada no conceito de perturbações do comportamento disruptivo integra quatro grandes grupos:

  • Perturbação de oposição e desafio;
  • Perturbação de conduta;
  • Perturbação explosiva e intermitente; e
  • Outras perturbações de conduta ditas inespecíficas, de sistematização mais difícil, divergindo nalguns aspectos das restantes.

perturbação explosiva intermitente é caracterizada por manifestações recorrentes de agressão verbal ou física desproporcionada ao factor desencadeante provocatório, em regra, atitudes de pessoas da intimidade do paciente. As manifestações impulsivas, de ira ou irritação, em geral são de curta duração (menos de 30 minutos).

Neste capítulo é dada ênfase a duas das formas clínicas do problema:

  • Perturbação de oposição e desafio; e
  • Perturbação de conduta; de salientar que a primeira representa frequentemente uma forma menos grave, podendo preceder a segunda.

perturbação de oposição e desafio caracteriza-se por um padrão recorrente de comportamentos negativistas, desafiantes, desobedientes e, por vezes hostis, quer contra figuras de autoridade, quer também contra os pares. Os sintomas ocorrem classicamente em ambiente familiar, podendo mesmo não se manifestar noutros contextos. Trata-se duma perturbação atingindo cerca de 5% dos rapazes em idade escolar.

Na perturbação da conduta, as normas sociais e os direitos básicos dos outros são frequentemente ignorados e dão origem, de modo persistente e repetitivo, a comportamentos como roubos, mentiras, fugas, destruição da propriedade, e agressividade para com pessoas ou animais. Para se estabelecer o diagnóstico, torna-se indispensável que os comportamentos sejam persistentes e repetitivos e tenham uma repercussão sobre os aspectos da funcionalidade da criança ou adolescente nos diversos contextos da sua vida.

Aspectos epidemiológicos

A perturbação de oposição e desafio e a perturbação de conduta são, no seu conjunto, as mais frequentemente diagnosticadas em pedopsiquiatria em todo o mundo. Atingem 5-10% das crianças e adolescentes dos países industrializados, sendo mais afectado o sexo masculino.

A perturbação de oposição e desafio é mais diagnosticada na infância e atinge cerca de 3-4 vezes mais o sexo masculino nesta faixa etária. As diferenças entre os sexos vão diminuindo ao longo da adolescência.

A perturbação da conduta é mais diagnosticada na adolescência. Atinge igualmente mais o sexo masculino. O seu início durante a infância e o sexo feminino são considerados factores de gravidade.

Factores de risco e de protecção

Para este tipo de perturbações, os factores de risco e de protecção envolvidos são de ordem individual, psicossocial, familiar e social. A interacção entre eles determina diferenças individuais quanto à expressão dos sintomas, à idade de início, e à persistência e cronicidade.

I. Factores individuais

Como factores de risco intrínsecos à própria criança incluem-se: pertencer ao género masculino, ser afectada por diversas disfunções neurocognitivas de base genética (défice cognitivo a nível verbal, défice ao nível das funções executivas, défice no processamento visual e nas funções de audição linguagem) e possuir características do temperamento com elevada impulsividade.

Como factores protectores incluem-se: pertencer ao género feminino e possuir temperamento fácil, baixa impulsividade e boas capacidades neurocognitivas.

II. Factores familiares

Os factores de risco de ordem familiar mais frequentes neste tipo de perturbações incluem: disfunção familiar, psicopatologia parental e/ou baixo nível socioeconómico.

Constituem factores predisponentes: perturbações ao nível da relação precoce, com interacções marcadas pela imprevisibilidade, abandono ou intrusão, experiências traumáticas ou carenciais precoces, valorização das características negativas da criança, ou dinâmica familiar pautada pela hostilidade, agressividade, violência, conflitos conjugais ou intrafamiliares.

Como factores frequentemente associados incluem-se: tipo de cuidados parentais (como a rigidez excessiva, ou a inconsistência na imposição de regras e limites, com uma alternância aleatória entre elas), a falta de supervisão dos pais, ou a existência de um elemento da fratria com perturbação de comportamento.

Como importantes factores de resiliência para esta e outras perturbações do foro mental citam-se fundamentalmente: capacidade parental de corresponder às necessidades da criança, de a proteger, de a entender face ao seu nível de desenvolvimento, assim como de ser capaz de iniciar, seguir e tirar prazer de actividades centradas na criança.

III. Factores psicossociais

Sob o ponto de vista psicossocial, uma criança com temperamento difícil terá mais dificuldades ao nível da adaptação e socialização, não só na infância, mas também na adolescência e vida adulta.

Na infância, o grupo de pares tende a rejeitar a criança com problemas de comportamento, pelo que esta tende a aproximar-se de crianças com comportamentos problemáticos. A integração em grupo de pares com comportamentos desviantes constitui um factor de risco para este tipo de perturbações, aumentando a sua influência com a idade.

Por outro lado, ao nível da intervenção, a aproximação e integração em grupos de pares pró-sociais constitui um factor protector; trata-se, pois, de um aspecto importante a considerar.

Diagnóstico

A avaliação da criança ou adolescente com alterações de comportamento deve ter em conta os sintomas e suas características, os contextos educativo, familiar e social, as características individuais da criança, e a sua fase de desenvolvimento. A origem, manutenção e cessação dos sintomas só podem ser completamente compreendidas à luz desses contextos.

As alterações de comportamento têm tendência a modificar-se durante o desenvolvimento: na idade pré-escolar são as birras e os comportamentos heteroagressivos; na idade escolar são os comportamentos de heteroagressividadecom impulsividade; e, na adolescência surgem os comportamentos de contestação ou desrespeito pelas regras sociais e pelo direito dos outros, variando quanto à gravidade.

Na perturbação de oposição e desafio, os comportamentos disruptivos são menos graves do que na perturbação de conduta; com efeito, nesta última verifica-se:

  • Violação dos direitos básicos dos outros, ou das normas sociais, sempre avaliadas em função da idade;
  • Agressão grave a pessoas ou animais; ou
  • Outros comportamentos antissociais.

Diagnóstico diferencial

É de salientar que apesar de as alterações de comportamento constituírem o motivo mais comum do encaminhamento para os Serviços de Saúde Mental da Infância e da Adolescência, nem sempre as referidas alterações correspondem ao diagnóstico de perturbações de comportamento disruptivo.

Como em toda a avaliação, o primeiro passo é a distinção entre o sintoma considerado normal e o patológico. Nesta perspectiva, para tal distinção há que atender aos seguintes aspectos, considerados fundamentais para o diagnóstico:

  • A intensidade do sintoma;
  • A sua frequência;
  • O impacte que tem no funcionamento da criança nos diversos contextos da sua vida, em função da sua fase de desenvolvimento; e
  • As circunstâncias em que ocorrem.

Assim, por exemplo, sendo a agressividade uma característica normal do temperamento de qualquer ser humano, é normal que a criança, ao longo do seu desenvolvimento, a vá experimentando em diferentes circunstâncias e em diferentes tipos de relação. Progressivamente vai aprender a integrá-la e a adequá-la, usando estratégias, nomeadamente o jogo simbólico, para lidar com os sentimentos de zanga. No início da adolescência podem ocorrer comportamentos disruptivos transitórios relacionados com tentativas de autonomização e de consolidação da identidade que não têm carácter patológico.

Os comportamentos de oposição e desafio também podem ocorrer na sequência de situações de estresse ou eventos traumáticos como a perda de um ente querido. Neste caso, se as situações forem transitórias (menos de 6 meses), deve ser colocado o diagnóstico de perturbação de adaptação.

A recusa em seguir ordens ou orientações de figuras de autoridade deverá ser distinguida de perturbações com défice cognitivo da linguagem ou da audição. Em crianças com défice cognitivo apenas se faz o diagnóstico de perturbação de oposição se os comportamentos de oposição forem marcadamente mais graves do que o esperado para uma criança da mesma idade e do mesmo género com um défice cognitivo de gravidade comparável.

As crianças com perturbação de hiperactividade com défice de atenção (PHDA) apresentam frequentemente comportamentos disruptivos consequentes à impulsividade e défice de atenção, pelo que há que as distinguir, embora em tal circunstância possa haver frequentemente comorbilidade. Também é importante salientar que em crianças pequenas os comportamentos de oposição, desafio e irritabilidade podem ocorrer noutros quadros clínicos como nas perturbações de humor (depressão ou distimia), de ansiedade, ou mesmo na perturbação obsessivo-compulsiva.

Em jovens, estes comportamentos também podem surgir nas perturbações psicóticas. A perturbação bipolar com início antes dos 18 anos apresenta-se muitas vezes com uma irritabilidade severa, com comportamentos disruptivos de agressividade marcada, com oposição e desafio da autoridade.

Comorbilidades

As perturbações do comportamento têm níveis de comorbilidade mais altos do que quaisquer outras perturbações psiquiátricas; uma das razões corresponde ao facto de se verificar associação a grau mais elevado de disfunção familiar e social.

Assim, estima-se que cerca de 14% das crianças e adolescentes com perturbação de oposição e desafio tenham também o diagnóstico de PHDA, cerca de 14% o de perturbações de ansiedade, e cerca 9% o de perturbações depressivas.

Como exemplos mais relevantes de outras situações que configuram comorbilidade citam-se: dificuldades de aprendizagem, perturbações da linguagem, abuso de substâncias e do tabaco, etc..

Tratamento

Actualmente considera-se que a prevenção primária constitui a intervenção padrão de ouro/gold standard da intervenção terapêutica destas perturbações. Os resultados de programas de prevenção especificamente desenhados para prevenir a agressividade e os comportamentos antissociais na idade pediátrica têm mostrado eficácia, com benefícios a longo prazo, quer quanto à redução das alterações dos comportamentos que foram explanados, quer quanto ao início de consumo de substâncias em jovens de risco.

planeamento de intervenções escolares (promovendo a integração da criança ou adolescente no grupo de pares, assim como o investimento em actividades lúdicas e desportivas, o apoio da rede social e a participação em projectos locais de índole sócio-cultural) é considerado actuação de primeira linha a nível comunitário. Salienta-se, como exemplo, a concretização de programas específicos de prevenção da violência escolar, com resultados animadores.

O apoio e orientação dos pais no sentido de evitar a exposição da criança a situações de violência, motivando a família para a mudança, quer na forma como exercem a autoridade (consistência de regras e atitudes), quer na forma de impedir que a criança tenha benefícios secundários com o sintoma e fomentar outras formas de expressão da agressividade, constituem exemplos de intervenções direccionadas especificamente para factores de risco conhecidos.

O encaminhamento dos pacientes para centros especializados com mais experiência deverá ocorrer se estas medidas não atenuarem os sintomas.

Os programas de prevenção secundária que se revelaram eficazes incluem habitualmente:

  • Intervenções multimodais, ou seja, intervenções na criança e na família, com apoio parental e articulação com a escola. As intervenções com um único foco têm-se revelado muito menos eficazes;
  • Programas intensivos, cuja regularidade varia de diária a semanal, e prolongados, com duração de vários anos de intervenção (desde 2-5 ou mais anos);
  • Abordagem individualizada dos casos;
  • Intervenções com a criança e com a família, que privilegiam a construção de competências e a resolução de problemas, com o desenvolvimento de estratégias de coping;
  • Intervenções precoces em crianças dos 0-6 anos de idade;
  • Articulação e colaboração intensiva de vários profissionais de saúde mental nos vários contextos em que a criança se insere: na família, na escola e outras estruturas da comunidade.

Em combinação com as intervenções compreensivas psicossociais, comunitárias e de psicoeducação, a utilização de psicofármacos poderá ser útil, embora não tendo em vista especificamente o problema de comportamento; efectivamente, utilizando aqueles, o que se pretende é:

  • Reduzir a impulsividade, estabilizar aspectos afectivos, modelar as emoções negativas que estão habitualmente associadas à perturbação, tais como a irritabilidade e o medo; e
  • Promover a contenção dos episódios de agressividade, no que respeita à sua frequência ou à sua gravidade.

Resultados de certos estudos de meta-análise têm evidenciado que os antipsicóticos atípicos e típicos, os estabilizadores de humor, e o lítio são moderadamente eficazes no tratamento de episódios explosivos de agressividade nos jovens com perturbação de comportamento.

O tratamento farmacológico das comorbilidades anteriormente discriminadas poderá ajudar a minorar a gravidade dos respectivos sintomas, reduzindo o seu impacte no dia a dia em prol do bem-estar do paciente.

Em suma, as perturbações do comportamento são de difícil tratamento. Com efeito, são necessárias intervenções prolongadas no tempo e articulação entre várias instâncias incluindo as escolares, sociais e do âmbito da justiça o que implica grande empenho e dedicação dos profissionais de saúde para aplicação de planos terapêuticos ajustados aos recursos disponíveis.

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PSICOSES E PERTURBAÇÕES DO ESPECTRO DA ESQUIZOFRENIA

Definições

O conceito de psicose diz respeito a um conjunto de sintomas que alteram gravemente as funções mentais, nomeadamente o pensamento, a percepção, a cognição e os afectos. Os sintomas psicóticos, os delírios e as alucinações afectando profundamente a relação com a realidade, têm assim um potencial devastador na vida mental.

Os sintomas psicóticos podem aparecer associados a vários quadros psicopatológicos, tais como perturbações depressivas e bipolares, constituindo, nestes casos, um indicador de gravidade. Por outro lado, podem organizar-se como doença principal, constituindo as perturbações do espectro da esquizofrenia: estas incluem, para além da esquizofrenia propriamente dita, as perturbações: psicótica breve, esquizotípica, esquizoafectiva, esquizofreniforme, delirante, catatonia, psicótica induzida por substância/medicamento ou determinada entidade clínica.

Relativamente à esquizofrenia, cabe referir que esta patologia representa desde a Grécia Antiga, o paradigma da loucura. Somente no século XVIII, com More, a doença passou a ser considerada como entidade clínica própria designada demência precoce.

Os quadros psicopatológicos distinguem-se entre si, não só pela qualidade, intensidade e desencadeantes dos sintomas, mas também pelo tempo de evolução.

Os sintomas psicóticos podem também surgir no contexto de patologias neurológicas, genéticas, metabólicas, infecciosas e autoimunes, por efeitos adversos de fármacos ou por exposição a substâncias psicoactivas.

Na idade pediátrica, os sintomas transitórios de carácter psicótico podem aparecer, na ausência de psicopatologia, ou como manifestações em contexto de situações traumáticas agudas.

Aspectos epidemiológicos e factores de risco

As perturbações do espectro da esquizofrenia têm o seu início típico no final da adolescência e início da idade adulta, entre os 14 e os 25 anos. Afectando classicamente as últimas etapas do desenvolvimento, há cada vez mais tendência para entendê-las como perturbações do neurodesenvolvimento.

Predominando no sexo masculino (2:1), a sua prevalência na população geral é estimada em cerca de 1%.

Na infância os sintomas psicóticos são particularmente difíceis de identificar, não existindo dados confiáveis sobre a sua prevalência. Aos 13 anos, esta última evidencia taxa de 0,9/10.000, aumentando aos 18 anos para 1/500.

Existe uma vulnerabilidade genética reconhecida, aparentemente comum a outras perturbações que cursam com sintomas psicóticos (autismo, doenças afectivas).

Como factores de risco incluem-se: problemas perinatais, problemas psicossociais (pobreza, migração, vida em grandes meios urbanos, situações de negligência e abuso) e consumo de substâncias psicoactivas (nomeadamente canabinóides) durante a adolescência.

Manifestações clínicas

O modo de início das perturbações pode ser:

  • Insidioso, englobando sintomas prodrómicos, numa personalidade com alguns traços de sintomas negativos; ou
  • Agudo, com um quadro inaugural de delírios e alucinações.

Entre os sintomas prodrómicos, inespecíficos e variáveis, citam-se como mais representativos os seguintes: diminuição da atenção e concentração, falta de motivação, estado de ânimo depressivo, perturbações do sono, isolamento social e irritabilidade.

As perturbações do espectro da esquizofrenia caracterizam-se por um leque de sintomas relacionados com o pensamento, emoções e comportamento que se agrupam, classicamente, em dois tipos: positivos e negativos consoante correspondam respectivamente a uma alteração por excesso ou por defeito de uma função.

Entre os sintomas positivos encontram-se as alucinações e os delírios.

As alucinações são alterações da percepção, salientando-se como mais frequentes as alucinações auditivas, habitualmente sob a forma de vozes. Por vezes associam-se alucinações visuais, tácteis ou olfactivas. A existência de alucinações visuais isoladas é extremamente rara e deve levar fortemente a considerar outras hipóteses de diagnóstico.

Os delírios constituem alterações do conteúdo do pensamento determinando convicções que não são postas em causa através dos dados da realidade. Podem apresentar uma temática persecutória, religiosa, grandiosa ou sexual. As alterações formais do pensamento incluem a perda da coerência associativa, bloqueios do pensamento (traduzidos frequentemente por uma paragem súbita do discurso) e pensamento hiperinclusivo.

Os sintomas negativos manifestam-se por um empobrecimento dos afectos e da sua expressão: fácies inexpressiva, mímica facial pobre, restrição do contacto visual e pobreza verbal. De referir ainda, alterações da motricidade traduzidas por aumento do tempo de latência das respostas, posturas bizarras e imobilidade catatónica ou acatísia. Podem surgir também alterações acentuadas na atenção, anedonia (incapacidade para sentir prazer) e comportamento impróprio ou bizarro nos contactos sociais.

O diagnóstico de esquizofrenia é o mais frequente e o mais grave deste grupo pelas suas implicações terapêuticas e prognóstico. É, no entanto, um diagnóstico de exclusão: para poder ser efectuado, o curso da doença deve ter uma duração superior a seis meses.

Em suma, trata-se duma doença grave e estigmatizante que causa grande deterioração cognitiva e funcional, e tanto mais quanto mais precoce for a sua aparição. Na adolescência, o consumo de cannabis pode ser o desencadeante de um episódio psicótico de gravidade variável.

Diagnóstico diferencial

Para além do diagnóstico diferencial dos quadros psiquiátricos, é fundamental a detecção de etiologias orgânicas como verdadeiras causas ou factores potenciadores dos sintomas.

Os sintomas psicóticos podem constituir as primeiras manifestações de patologia neurológica (tumores, epilepsia, traumatismos cranianos), assim como de quadros infecciosos (do sistema nervoso central ou sistémicos), patologias autoimunes (lúpus, tiroidite, encefalites), síndromas paraneoplásicas, patologias genéticas ou metabólicas (doença de Wilson), uso de substâncias psicoactivas (cannabis), ou efeitos adversos de terapêuticas farmacológicas (por ex. corticóides).

Diagnóstico

Na presença de sintomas psicóticos inaugurais é fundamental a elaboração exaustiva da história clínica (do foro médico geral e psiquiátrico) incluindo colheita de dados sobre antecedentes familiares de doenças do foro psíquico, gravidez e desenvolvimento, doenças crónicas ou recorrentes, terapêuticas previamente realizadas ou em curso, defeitos congénitos, funcionamento cognitivo pré-mórbido e actual, etc.. Destaca-se ainda a necessidade de detectar eventuais vivências traumáticas ou o uso de substâncias tóxicas.

Na presença de sintomas psicóticos inaugurais, a investigação complementar requer sempre uma avaliação neurológica.

Devem ser realizados exames laboratoriais de base: hemograma, marcadores inflamatórios (VS, PCR), ionograma sérico englobando Cl, Na, K, Ca e Mg, urina (análise sumária e com pesquisa de agentes tóxicos), e parâmetros das funções tiroideia, hepática e renal.

Perante as primeiras manifestações psicóticas, poderá estar indicada a realização de RM CE (com espectroscopia) e EEG. Estes exames são obrigatórios perante manifestações neurológicas associadas a sintomas psicóticos.

De acordo com os dados da anamnese, da observação clínica (incluindo exame do estado mental) e da investigação laboratorial de base, ou quando estejam presentes sintomas neurológicos, sinais dismórficos, deterioração cognitiva recente ou resistência à terapêutica, poderá estar indicada uma investigação mais aprofundada. Esta pode incluir um estudo analítico da ceruloplasmina, vitamina B12, ácido fólico e homocisteína, aminoácidos no sangue e urina, ácidos orgânicos na urina, estudo imunológico (anticorpos antitiroideus, ANAS e anticorpos antineuronais (NMDA -R, VKC) e eventualmente um estudo genético.

De referir que a associação de quadros clínicos orgânicos a sintomatologia psicótica ocorre raramente. No entanto, o seu reconhecimento atempado poderá possibilitar um tratamento específico, prevenindo a progressão da doença, e evitando ou minorando as sequelas.

Tratamento

A intervenção terapêutica baseia-se na utilização de fármacos antipsicóticos (antagonistas da dopamina) em monoterapia ou em associação. Quando os sintomas estão ligados a uma outra condição médica, o tratamento desta última é fundamental.

Quando é diagnosticada esquizofrenia, a medicação antipsicótica deve manter-se para além dos episódios agudos, numa dose de manutenção que permita evitar recaídas uma vez que cada novo surto psicótico determina um défice no funcionamento global.

Alguns exames são importantes para a monitorização de potenciais efeitos adversos dos fármacos antipsicóticos. Destacam-se: determinação regular do peso, frequência cardíaca e pressão arterial, ECG inicial, controlo regular da prolactina, perfil lipídico, glicémia e HbA1c, assim como parâmetros das funções hepática e renal.

A determinação do nível sérico dos antipsicóticos, quando possível, poderá contribuir para o esclarecimento de dúvidas sobre a adesão à terapêutica.

O internamento psiquiátrico é habitualmente necessário nas fases iniciais e de agudização.

Como importantes estratégias de actuação citam-se:

  • Intervenção psicossocial, fundamental para promover a reintegração dos pacientes (em geral na idade da adolescência) na família e na escola, por vezes após internamentos prolongados;
  • Treino de competências sociais; e
  • Integração da família no projecto terapêutico.

Evolução

esquizofrenia (forma mais grave e mais frequente deste grupo) evolui em cerca de 30% dos casos para formas crónicas com incapacidade acentuada. Em cerca de 50% dos casos o curso da doença permite certo grau de reintegração social e, até mesmo, profissional.

A ausência de tratamento, ou a má adesão ao mesmo, conduzem a uma deterioração cognitiva progressiva.

As outras perturbações do espectro da esquizofrenia têm uma evolução em geral menos incapacitante. Quando associadas a situação patológica doutro tipo (co-morbilidade), o prognóstico está muito dependente da patologia de base e do seu tratamento.

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PERTURBAÇÕES DEPRESSIVAS, BIPOLARES E RISCO SUICIDÁRIO

Definições e importância do problema

A depressão é uma perturbação do humor mantida que se caracteriza por um estado de tristeza, irritabilidade, falta de prazer nas actividades, falta de energia e motivação, dificuldades de concentração, pensamentos negativos e alterações do sono e do apetite.

As perturbações depressivas manifestam-se ao longo da infância e adolescência por episódios, únicos ou recorrentes, de maior ou menor duração, frequentemente associados a factores desencadeantes. Estes sintomas podem aparecer em graus variáveis e com durações também variáveis, tendo os factores desencadeantes um menor ou maior peso, o que permite diferenciar alguns tipos de depressão.

Os sintomas tendem também a variar o seu modo habitual de manifestação consoante a idade, sendo de salientar que, quanto mais nova é a criança, mais provável é que predomine a irritabilidade em vez da tristeza.

Por vezes surgem outras alterações do humor contrárias aos sintomas depressivos: elação do humor cursando com grande energia e motivação, diminuição da necessidade das horas de sono, comportamentos desinibidos.

Estes episódios designados por maníacos ou hipomaníacos (estados de hiperexcitação, fuga de ideias e discurso incoerente, actividade motora exuberante e desprovida de qualquer eficácia e agitação), consoante a sua intensidade e duração, alternando frequentemente com episódios depressivos, caracterizam as perturbações bipolares.

Por vezes, na infância, existem episódios mistos, com sintomas depressivos e de (hipo)mania que se sobrepõem ou alternam rapidamente.

Os chamados comportamentos suicidários são uma das consequências mais graves destes dois grupos de doenças.

A presença deste tipo de patologia segundo a OMS constitui um verdadeiro problema de saúde pública, com grande impacte no neurodesenvolvimento e na funcionalidade no dia-a-dia; por outro lado, implica maior probabilidade de quadro depressivo grave na idade adulta.

A atestar a importância do problema em análise, cabe referir que o mesmo constitui o terceiro motivo de consulta de pedopsiquiatria a seguir à perturbação de hiperactividade e défice de atenção e à perturbação de ansiedade.

O objectivo deste capítulo é proceder a uma abordagem sucinta das chamadas alterações patológicas do humor, a que alguns autores chamam de modo lato distimias

Aspectos epidemiológicos

A maior parte dos estudos aponta para uma prevalência de depressão entre 1-2% durante a infância, e 5% ao longo da adolescência. Quando se considera a prevalência cumulativa (acumulação de novos casos em jovens previamente saudáveis), a prevalência aumenta. Assim, aos 16 anos, cerca de 12% das raparigas e 7% dos rapazes tiveram pelo menos um episódio depressivo ao longo da sua vida.

Durante a infância, a depressão afecta igualmente ambos os sexos, mas ao longo da adolescência passa a afectar mais o sexo feminino (2:1).

As perturbações bipolares, têm ao longo da infância e adolescência uma prevalência que varia entre os 0,6 e os 15%, dependendo da metodologia e dos critérios utilizados para o diagnóstico. Em estudos recentes nos Estados Unidos foi demonstrado um aumento muito significativo de diagnósticos, conduzindo a um debate intenso entre os que pensam que a doença está a ser sobrediagnosticada, e os que defendem que ela era no passado pouco reconhecida em idades pediátricas.

Na população adulta, a prevalência das perturbações bipolares varia entre 1% e 5%, surgindo os primeiros sintomas habitualmente antes dos 20 anos.

Este debate sobre início precoce das perturbações bipolares e a possibilidade de o seu quadro clínico poder ser bastante diferente na infância, conduziu, na DSM-5 (10ª revisão) a um novo diagnóstico das perturbações depressivas: perturbações disruptivas de desregulação do humor.

As perturbações bipolares na adolescência são mais frequentes no sexo feminino, tal como na população adulta; associadas a grandes alterações no relacionamento familiar, com os pares e no desempenho académico, o seu diagnóstico e tratamento atempados diminuem significativamente as consequências negativas da doença ao longo da vida.

O suicídio é, na Europa a segunda causa de morte entre os jovens (10-24 anos), o que obriga a uma investigação activa sobre a ideação suicida sempre que se detectem sintomas depressivos. De salientar que aquele é 4 vezes mais frequente no sexo masculino, embora as tentativas de suicídio sejam 2 vezes mais frequentes no sexo feminino – paradoxo do género. O risco suicidário, pequeno em crianças, vai aumentando ao longo da adolescência.

Etiopatogénese

A etiopatogénese das distimias é multifactorial e inclui factores biológicos, psicológicos individuais, ambientais e socioculturais, interligados.

Factores biológicos

Os factores biológicos incluem:

  • Factores genéticos (estudos de agregação familiar demonstraram que os familiares de primeiro grau da criança/jovem evidenciam depressão com maior frequência; por outro lado, estudos de genética molecular demonstraram a natureza poligénica da afecção depressiva implicando o papel de vários genes codificando elementos do sistema serotoninérgico: transportadores e receptores da serotonina e enzimas intervindo no respectivo metabolismo);
  • Factores neuroendócrinos (papel de diversas hormonas com GH, cortisol, tiroxina, etc.);
  • Factores cerebrais (correlação entre sintomas depressivos e alterações cerebrais no circuito córtico-límbico-estriado-pálido-talâmico, o qual está implicado na regulação do humor);
  • Factores imunológicos (associação da patologia com alteração da estrutura e função do sistema monócito-macrófago e com aumento das citocinas, como as interleucinas IL-1 e IL-6).

 Factores psicológicos, individuais, familiares e ambientais

Os factores psicológicos e individuais a considerar são: o temperamento, a capacidade de regulação emocional, o estilo cognitivo, a sua representação mental e características da personalidade; estes factores são independentes das características da interacção familiar. Crianças com maior reactividade emocional têm maior tendência para a depressão.

  1. A dificuldade de regulação emocional perante emoções negativas: a ruminação (ou seja, focar-se de forma passiva e repetida no sintoma depressivo e nas possíveis causas sem ser capaz de nada fazer para o aliviar), ou a falta de estratégias de distracção são factores que estão associados à depressão.
  2. A existência de distorções cognitivas, como por exemplo a hipervalorização de aspectos negativos, tem impacte na autoestima e gera sentimentos de insegurança em relação ao futuro. Os estilos cognitivos tendem a ser moldados pelo tipo de vinculação e a exposição a acontecimentos de estresse, sendo o padrão de vinculação inseguro o que mais se associa às perturbações depressivas.
  3. Algumas características de personalidade estão associadas a maior risco de depressão: a personalidade com traços dependentes, com comportamento submisso e necessidade excessiva de protecção e a personalidade com traços de evicção, com inibição social e hipersensibilidade a críticas.

No que diz respeito a factores familiares, há a considerar: a rejeição, a hostilidade, a intrusão, os défices de suporte afectivo, de coesão familiar, assim como a existência de relações conflituosas. Os castigos físicos severos e os maus tratos estão associados à depressão infantil. Na família, o factor que com maior probabilidade contribui para indiciar depressão na adolescência é a interacção familiar.

Entre os jovens com depressão, verifica-se maior prevalência de pais com a mesma patologia; com efeito, quando os pais sofrem de depressão, o risco de depressão para a descendência é seis vezes superior ao da população em geral; se ambos os progenitores estiverem afectados, o risco é ainda maior.

Manifestações clínicas

Uma das maiores dificuldades em reconhecer e diagnosticar quadros depressivos, ao longo da infância e adolescência, é distinguir entre o que são sintomas depressivos normais (tristeza, abatimento, desinteresse) que podem surgir ao longo do desenvolvimento. Habitualmente os pais e outros adultos como os professores têm tendência a desvalorizar este tipo de sintomas, enquanto as próprias crianças e adolescentes tendem a sobrevalorizá-los.

A entrevista clínica com os pais e a observação directa da criança/adolescentes são fundamentais para o diagnóstico. Para além do que é espontaneamente referido, devem ser pesquisados activamente todos os sintomas da linha do humor, a sua duração, intensidade e impacte nos vários desempenhos do paciente compatíveis com a idade.

Assim, é fundamental pesquisar as características do humor (deprimido, lábil ou irritável), desinteresse por actividades escolares ou habituais, indecisão, sentimentos de desvalorização, culpa ou falta de esperança, pensamentos de morte ou mesmo de suicídio, alterações de expressão somática tais como as do apetite ou peso, alterações do sono com insónia ou hipersónia. Podem também surgir, sobretudo nas crianças mais velhas e adolescentes, anedonia e fadiga. Os quadros depressivos são muito frequentemente acompanhados ou antecedidos por sintomas de ansiedade.

A intensidade, duração, impacte no desenvolvimento e as características dos sintomas permitirão classificar vários tipos de quadros depressivos e o correspondente diagnóstico contribuirá para estabelecer o projecto terapêutico mais adequado à situação clínica.

As perturbações bipolares são doenças graves, de diagnóstico difícil sobretudo quando se iniciam durante a infância, e que cursam com alterações do humor tanto da linha depressiva como da linha maníaca (depressão ou exaltação do humor).

A presença de episódios maníacos que surgem na evolução de um quadro clínico aparentando ser depressivo, permitirá muitas vezes fazer o diagnóstico de perturbação bipolar. No entanto, não é raro que a primeira manifestação seja um episódio maníaco, embora a apresentação inicial da doença seja maioritariamente sob a forma de episódio depressivo.

Os sintomas convencionais de mania são: elação do humor, irritabilidade, exuberância e aparente hipervitalidade, diminuição das necessidades de sono, excitabilidade e desinibição; podem ocorrer também sintomas psicóticos.

O curso da doença nas crianças e nos adolescentes parece ser predominantemente caracterizado por episódios essencialmente depressivos e mistos com ciclos rápidos. A frequência, duração e intensidade dos sintomas permite-nos também classificar as perturbações bipolares em vários tipos.

Sempre que se apurem sintomas que remetam para este grupo de doenças, sobretudo na população adolescente, é obrigatória uma avaliação do risco suicidário: deve assim pesquisar-se a presença de pensamentos de morte, e em caso afirmativo continuar com a sua caracterização: frequência, intensidade, estruturação, existência eventual de plano e factores de risco associados.

O indício mais forte de uma eventual tentativa de suicídio, é a existência de uma tentativa anterior. É também fundamental analisar o método usado, se foi planeado ou se ocorreu num contexto impulsivo, com ou sem desencadeante, e a presença ou ausência de medidas que o adolescente tomou para ser ou não encontrado.

A existência de antecedentes familiares de suicídio é também um factor de risco importante, bem como ter havido no meio próximo, entre pares, suicídios consumados.

Diagnostico diferencial

Os sintomas das perturbações depressivas e das bipolares não são patognomónicos. O diagnóstico diferencial de tais perturbações faz-se entre as mesmas e também com outras situações clínicas que podem corresponder a comorbilidades e ou do foros psiquiátricos e médico propriamente dito:

  • As perturbações de ansiedade podem anteceder os quadros depressivos; – a perturbação de hiperactividade com défice de atenção poderá levantar a hipótese de sintomas maníacos;
  • Por outro lado, a perturbação de oposição e desafio poderá mascarar sintomas depressivos; e
  • A chamada tristeza normal (assim chamada quando o estado de humor é proporcional ao factor desencadeante – por ex. morte de ente querido – não interferindo com o funcionamento global do paciente e resolvendo-se de maneira espontânea) poderá eventualmente ser interpretada como perturbações depressiva;
  • O consumo de substâncias psicoactivas pode levar a alterações do humor, difíceis de distinguir das perturbações do humor, muitas vezes constituindo comorbilidades (patologia dual);
  • As doenças do foro médico susceptíveis de provocar sintomas depressivos, tais como doenças autoimunes, endócrinas (hipotiroidismo), neuro-oncológicas (tumores cerebrais), etc..

Os antecedentes familiares constituem um indicador fundamental, pelo que a comprovação de casos de depressão ou perturbação bipolar deve levar-nos a considerar com maior probabilidade os respectivos diagnósticos na criança/adolescente.

Comorbilidades

As perturbações bipolares são habitualmente acompanhadas de outras perturbações psiquiátricas que afectam o doente ao mesmo tempo. Tal circunstância, para além de dificultar o diagnóstico, também tem impacte na resposta da criança ao tratamento, assim como no prognóstico.

Num estudo de revisão de 10 anos, tendo em conta várias populações pediátricas estudadas, encontraram-se as seguintes frequências de comorbilidades: 50-80% para a PHDA, 30-70% para as Perturbações da Ansiedade e 20-60% para Perturbações Disruptivas do Comportamento. Salienta-se igualmente, como comorbilidade a considerar, o consumo crescente de substâncias psicoactivas na adolescência (patologia dual).

 Tratamento

As perturbações depressivas e bipolares devem ser identificadas e tratadas, minorando assim o peso dos custos pessoais e familiares, uma vez que tendem a ser doenças de curso crónico, com períodos de remissão e agudização.

  1. As depressões de grau ligeiro ou moderado devem ser inicialmente abordadas com intervenções psicoterapêuticas.
    • No caso de quadros moderados não respondentes a intervenções psicoterapêuticas com, pelo menos, quatro a seis semanas de duração, ou quando em presença de quadros depressivos graves, deve acrescentar-se a terapêutica farmacológica;
    • Habitualmente são utilizados os antidepressivos inibidores selectivos da recaptação da serotonina (fluoxetina, sertralina, escitalopram). Estes fármacos devem ser prescritos sob estrita vigilância médica em consulta, uma vez que nas fases iniciais do tratamento (primeiro mês sobretudo) podem conduzir a uma activação do comportamento, sem diminuição dos sintomas depressivos, facilitando o aparecimento de comportamentos suicidários;
    • Devem ser também identificadas e tratadas as eventuais perturbações comórbidas: perturbações de ansiedade, do comportamento, consumos e perturbação de hiperactividade com défice de atenção.
  2. No caso das perturbações bipolares, ou sempre que perante perturbações depressivas se comprove história familiar de doença bipolar, deve evitar-se a utilização de antidepressivos, ou, pelo menos ter-se dupla cautela quando se decide usá-los, uma vez que o risco de desencadear um episódio maníaco é muito elevado.
    No tratamento farmacológico das perturbações bipolares são utilizados antipsicóticos de segunda geração (risperidona, aripiprazol, quetiapina, paliperidona ou olanzapina) associados, consoante as necessidades e a resposta terapêutica, a fármacos anticonvulsantes, usados como estabilizadores do humor (valproato de sódio, lamotrigina, carbamazepina ou oxcarbazepina, carbonato de lítio).
  3. Quando existe risco suicidário, a principal medida terapêutica é a criação de uma rede de protecção que implique a família e a equipa que segue o jovem, para além do tratamento da doença de base.
    NB – a) – A família deve ser integrada no projecto terapêutico, apoiada com intervenções psicoeducativas que a ajude a lidar de forma adequada com a doença dos filhos. b) – A este respeito importa relevar certos factores protectores frente à depressão, tais como manter uma relação estreita com amigos e familiares, e sentido de humor. c) – Como complemento, há que identificar e encaminhar casos de patologia psiquiátrica na família para tratamento especializado.

Prognóstico

Tanto as perturbações depressivas como bipolares tendem a ser crónicas, com períodos de remissão às vezes longos. As perturbações depressivas, mesmo sem tratamento, têm tendência para remissão espontânea depois de um período mais ou menos longo de doença, embora sempre com risco de recaídas. As perturbações bipolares, embora sigam um padrão semelhante, pela sua gravidade e sequelas a nível da personalidade e funcionamento global, necessitam de um tratamento, pelo menos de manutenção, nos períodos intercríticos.

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PERTURBAÇÕES DE ANSIEDADE E OBSESSIVO-COMPULSIVAS

Introdução

Neste capítulo são abordadas duas entidades clínicas distintas com as quais o pediatra geral e o médico de família se poderão confrontar. Os conceitos descritos baseiam-se na experiência das autoras e na bibliografia em geral, incluindo o documento internacional – traduzido em Português – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da American Psychiatric Association (DSM-V com edição de texto revisto/RT:10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças).

Sendo distintas as referidas afecções do foro pedopsiquiátrico, têm de comum um espectro de sintomas muito amplo, afectando a maioria dos órgãos e sistemas, podendo confundir-se com outras patologias. Trata-se das Perturbações de Ansiedade (PA) e das Perturbações Obsessivo-Compulsivas (POC); a propósito, parece-nos pertinente esclarecer que, anteriormente à citada revisão, as segundas estavam incorporadas nas primeiras. Deste modo, a opção do editor foi não criar novo capítulo, abordando, no entanto, de modo independente os respectivos tópicos.

1. PERTURBAÇÕES DE ANSIEDADE

Definições

Os termos ansiedade, angústia e medo são muitas vezes usados indiscriminadamente; com efeito, o paciente que apresenta perturbação de ansiedade sente um medo e uma angústia intensíssimos.

Tentando sistematizar conceitos há que fazer destrinças.

É habitual considerar a ansiedade como o sofrimento psíquico que surge associado à expectativa de um acontecimento imprevisto, desagradável ou perigoso; a angústia associa-se habitualmente a uma sensação de extremo mal-estar acompanhada de manifestações somáticas; o medo aparece ligado a um objecto ou uma situação específica, após uma experiência prévia desagradável.

A fobia (palavra derivada do grego phobéomai significando temor ou aversão) é um medo injustificado decorrente de situação, objecto ou pessoa não representando perigo real. Na idade pré-escolar, as fobias mais comuns são as relacionadas com animais, agulhas, escuro; na idade escolar, com doenças e castigos; e, na adolescência, com a dimensão social (aparência, sucesso, relação com pares).

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

As Perturbações de Ansiedade (PA) representam uma das formas mais comuns de psicopatologia em crianças e adolescentes, apesar de nem sempre serem detectadas e tratadas. Os estudos epidemiológicos apontam para uma prevalência que varia entre os 6-20%. As perturbações de ansiedade associadas a uma incapacidade grave têm uma prevalência que oscila entre os 2,4% e 8,7%, na população pediátrica. O sexo feminino é o mais afectado, tanto na infância como na adolescência.

Importa relevar que as PA se caracterizam por elevada comorbilidade, o que se demonstra com o facto de cerca de 40-60% dos pacientes com tal problema clínico evidenciarem duas ou mais formas clínicas das mesmas, adiante discriminadas.

Etiopatogénese

Na etiopatogénese das PA estão envolvidos vários factores: genéticos, neuroquímicos, neuroendócrinos, anatómicos, temperamentais e ambientais.

O factor genético é muito relevante, demonstrando-se cientificamente o facto em cerca de 1/3 dos casos de PA.

Os factores temperamentais são igualmente importantes. As crianças, sobretudo os lactentes, reagem de forma tímida e retraída face a estímulos sociais, como conviver com outras crianças, familiares e desconhecidos. De facto, a ansiedade e o medo, muito comuns durante a infância, desempenham um papel adaptativo no âmbito do neurodesenvolvimento da criança.

Quando a criança tem medo, reage habitualmente de forma a chamar a atenção do adulto, o qual se encarregará de fazer frente ao perigo. A criança observará a reacção deste adulto a essa situação, o que se constituirá, ao longo do tempo, como um modelo a seguir (modelling/ modelação parental ou os pais como modelo). O modelo de um dos pais ansiosos e temerosos reforça os medos e a ansiedade da criança. Uma criança com um dos progenitores com uma perturbação de ansiedade tem, até 5 vezes, maior probabilidade de vir a desenvolver esta perturbação.

A psicopatologia parental também surge associada a maior prevalência deste tipo de perturbações; a este respeito cabe mencionar que vários mecanismos podem estar implicados, tais como a partilha do material genético, as vulnerabilidades temperamentais ou efeitos decorrentes do tipo de interacções estabelecidas. Vários estudos têm evidenciado que adultos com uma vinculação do tipo ansioso ou resistente na infância, comparativamente aos com vinculação do tipo seguro, têm com mais frequência filhos com perturbações de ansiedade. O tipo de vinculação parece ser ainda mais preponderante do que a psicopatologia parental ou o tipo de temperamento da criança no desenvolvimento a longo prazo destas perturbações.

Outros tipos de comportamentos parentais estão também implicados nestas perturbações, como sejam uma intrusão familiar exagerada, uma hiperprotecção excessiva e um comportamento excessivamente regulador nas actividades de vida diária dos filhos.

Desde o nascimento e até cerca dos 3 meses de vida, podemos falar de estados ansiosos somáticos (precursores de angústia), observáveis no bebé sempre que este sente um desequilíbrio interno ou é sujeito a uma estimulação sensorial excessiva. Entre o 6.º e o 8.º mês de vida, e até aos 3 anos de idade, manifesta-se a reacção ao estranho. Entre os 2 e os 5 anos de idade surgem medos variados, relacionados com o desenvolvimento do pensamento abstracto e da imaginação: são os medos do escuro, dos ruídos, da trovoada, de fantasmas e de monstros imaginários. Na adolescência surgem as ansiedades relacionadas com as competências pessoais, ameaças abstractas e situações sociais.

Relativamente ao ambiente, a sua influência no desenvolvimento e manutenção deste tipo de perturbações parece estar estabelecida. As experiências precoces são consideradas como tendo um papel predominante no desenvolvimento das perturbações de ansiedade na infância em geral.

Manifestações clínicas

Dum modo geral os sintomas de ansiedade dependem das características pessoais do indivíduo (inteligência, memória, temperamento e afectos), das vivências que tem tido, assim como da educação e do meio ambiente em que cresce e se desenvolve. Por outro lado, a capacidade intelectual modula a percepção que o indivíduo possui da vida e a interpretação que faz dos acontecimentos.

A ansiedade, raramente referida pela criança pequena, pode manifestar-se frequentemente através de:

  • Medos (do escuro, da separação e abandono, de estar sozinho, medo das doenças, da morte dos pais);
  • Sintomas somáticos, do foro neurovegetativo designadamente (cefaleia, dor abdominal, náuseas, vómitos, queixas inespecíficas);
  • Alterações do sono (oposição ao deitar, dificuldade em adormecer, insónia, acordar ansioso, terrores nocturnos e pesadelos);
  • Alterações do comportamento (agitação, inquietação ou inibição).

Os sintomas variam consoante a idade da criança e a sua etapa de desenvolvimento, definindo um quadro sintomático específico consoante a perturbação que esteja em causa. Efectivamente, a ansiedade pode surgir: como resposta fisiológica ante as vicissitudes habituais da vida; como sintoma de diferentes patologias médicas e psiquiátricas; e como entidade específica abarcando um amplo campo de “perturbações de ansiedade / PA” propriamente ditas.

As situações mais comuns em idade pediátrica são as: PA por separação, PA generalizada e a PA de ansiedade social (ou fobia social).

Antes da abordagem mais em pormenor das PA mais comuns, cabe uma referência breve a quadros de PA com menor prevalência, pelo menos nalgumas regiões do globo:

  1. PA de pânico ou de angústia. Trata-se substancialmente de episódios recorrentes de medo ou desconforto intensos na ausência de perigo real, aparecendo de forma súbita e inesperada, com certos sintomas como sudação intensa, palpitações, taquicardia, tremores, dor torácica, sensação de falta de ar ou outros sintomas do foro neurovegetativo. Muito raros na idade pediátrica, e por vezes associados a outras perturbações, há casos descritos entre os 15 e os 18 anos.
  2. PA por estresse pós-traumático. Este tipo de PA integra um quadro clínico com um conjunto de sintomas de ansiedade na sequência de ter sofrido uma experiência anterior pouco usual e de carácter aterrador que deixa “marca” indelével. Os desencadeantes de elevado grau de estresse são em geral catástrofes naturais, actos terroristas, guerras vividas, agressões sexuais, experiências com migrações de refugiados em condições desumanas, maus tratos, acidentes, guerras, sequestros, etc.. Como consequência, poderão surgir diversos sintomas, tais como pensamentos e sonhos revivendo a experiência nefasta, perturbação do comportamento afectivo com alheamento da realidade, comportamento desproporcionado de hiperalerta e receio perante factos banais, perturbações do sono, sintomas depressivos, etc..

Formas clínicas mais comuns

I. PA por separação

A PA por separação caracteriza-se por medo e preocupação, excessivos e desproporcionados para o nível de desenvolvimento da criança, em se separar das figuras de vinculação ou de casa, com crenças irracionais acerca das consequências dessa separação.

A ansiedade por separação, própria de um desenvolvimento normal, surge a partir do 6.º mês de vida e extingue-se por volta dos 2-3 anos de idade. As crianças com perturbação de ansiedade por separação podem evidenciar um quadro clínico persistente, grave e com impacto psicossocial, mais tarde, em geral, entre os 6-12 anos de idade. A prevalência é cerca de 4%, com um pico entre os 6 e 9 anos de idade. Trata-se da PA mais comum em crianças com idades inferiores aos 12 anos. Atinge mais raparigas do que rapazes, excepto quando se inicia muito precocemente, em idade pré-escolar, com idêntica prevalência em ambos os sexos.

A PA por separação dita normal ou habitual deve ser distinguida doutras perturbações psicopatológicas tais como PA por oposição e desafio e Perturbação bipolar.

O curso e prognóstico são variáveis; contudo há um risco importante de evolução para outras perturbações de ansiedade ou depressivas na idade adulta.

II. PA generalizada

A PA generalizada caracteriza-se por uma excessiva preocupação, irrealista, com acontecimentos e actividades correntes da vida diária; manifesta-se por sintomas durando pelo menos 6 meses, como: agitação, fadiga, dificuldades de concentração, irritabilidade, tensão muscular ou alterações do sono. Os sintomas somáticos, designadamente sintomas do foro neurovegetativo, são muito frequentes e incluem cefaleias, dores abdominais, náuseas, vómitos e palpitações.

Os pacientes com esta afecção são frequentemente descritos como perfeccionistas ou muito sensíveis; têm habitualmente uma autoimagem negativa, necessidade de serem tranquilizados e habitualmente muito inseguros relativamente às suas competências, desempenhos e expectativas para o futuro.

Trata-se duma perturbação bastante comum na infância, com prevalências entre 0,5-7,1%. A média da idade de início ronda os 8-9 anos.

Surge muitas vezes associada a outras perturbações de ansiedade e também às perturbações depressivas. As comorbilidades são mais frequentes na infância do que na adolescência.

O curso e o prognóstico da PA generalizada dependem da sua gravidade e das comorbilidades que lhe estão associadas. Esta forma de psicopatologia comporta risco elevado de desenvolvimento doutros problemas psiquiátricos ao longo do tempo, especificamente outras perturbações de ansiedade, abuso de substâncias, depressão ou problemas de comportamento.

III. PA de ansiedade social (ou fobia social)

A PA de ansiedade social (ou fobia social) constitui uma das PA mais prevalentes; caracteriza-se por um medo ou ansiedade em excesso perante situação ou situações sociais a que o próprio se expõe perante o escrutínio dos outros. Na idade pediátrica, o diagnóstico da situação pressupõe verificação de ansiedade no contexto de interacção com os pares, e não apenas com adultos. A referida perturbação impede que o adolescente se adapte e adquira relações sociais normais, ajustadas à idade em que as mesmas são habituais.

Tal como a PA generalizada, a frequência da patologia em análise aumenta com a idade. A incidência cumulativa em adolescentes e adultos jovens poderá atingir 14%. A idade de início típica ocorre na adolescência entre os 10 e os 16 anos de idade, sendo mais frequente no sexo masculino.

A fobia social, devendo ser distinguida dos medos normais do desenvolvimento, é com frequência acompanhada de sintomas depressivos, tentativas de suicídio, menor rendimento escolar e dificuldades de adaptação laboral e profissional. De acordo com diversos estudos, aponta-se também um risco acrescido de consumo e dependência de substâncias, nomeadamente álcool, tabaco e cannabis.

Quando surge na adolescência precoce, são expectáveis agravamento e persistência dos sintomas nos anos mais tardios da adolescência e idade adulta. Se ocorrer nos anos tardios da adolescência, a sua evolução pode ter carácter intermitente, com exacerbações na presença de factores de estresse sociais. É rara a remissão espontânea.

Tratamento

1. Generalidades

As perturbações de ansiedade, se não forem tratadas, têm tendência a persistir ao longo da vida adulta, aumentando o risco de outro tipo de perturbações, como a depressão, o abuso de substâncias e novos tipos de perturbações de ansiedade. A detecção precoce e o seu tratamento tornam-se assim fundamentais na medida em que poderão reduzir o seu impacte no desenvolvimento psicossocial, nomeadamente no desempenho académico e social, e prevenir a sua persistência na vida adulta.

2. Intervenção inicial e referenciação

Perante preocupações, medos ou ansiedade exagerados, os pais deverão ser aconselhados a respeitar o que a criança está a sentir e a tranquilizá-la, mantendo uma atitude firme e segura. A criança deverá ser incentivada a encontrar estratégias e soluções para enfrentar a situação problemática, e os pais não devem favorecer o evitamento excessivo das situações que causam ansiedade. A criança não deverá ser, contudo, forçada para além da sua capacidade de adaptação.

Segundo recomendações publicadas pela Coordenação para a Saúde Mental, deverão ser levadas a cabo estratégias de intervenção comunitária, nomeadamente a nível familiar, escolar e social, antes de sinalizar à equipa de Saúde Mental; por outro lado, a eficácia desta actuação deve ser avaliada após 3 meses.

Caso os sintomas persistam, se agravem, com repercussão negativa no desempenho psicossocial, a criança deverá ser encaminhada para uma Consulta de Pedopsiquiatria. A motivação da família para aderir à consulta é crucial; este aspecto deve pois ser alvo da atenção do médico.

3. Intervenção especializada

A intervenção preconizada para as PA na infância e na adolescência engloba vários níveis de actuação: a psicoterapia individual, a intervenção familiar e a psicofarmacoterapia.

3.1 A nível individual, a psicoterapia cognitivo-comportamental tem sido considerada eficaz no tratamento de crianças e adolescentes com este tipo de perturbação. Esta intervenção engloba vários aspectos como psicoeducação, a exposição com prevenção de resposta, metodologias de resolução de problemas, treino e execução de exercícios de relaxamento, a reestruturação cognitiva e desenvolvimento de padrões de pensamento mais realistas.

3.2 A nível familiar, o envolvimento parental na intervenção destas perturbações é sempre recomendado. É importante que os pais consigam encorajar a criança a encontrar estratégias de atitude determinada de compromisso com esperança no sucesso, pondo a criança a pensar e a encontrar estratégias por si mesma, estimulando a proactividade.

3.3 Os psicofármacos mais usados e considerados de primeira linha no tratamento deste tipo de perturbações são os inibidores selectivos da recaptação da serotonina (ISRS). Os ISRS mais utilizados são a fluoxetina, sertralina, paroxetina e citalopram. A dose média de fluoxetina é 10 mg/dia em crianças e 20 mg/dia em adolescentes. O efeito pode ser notado em geral ao cabo de 3-4 semanas.

2. PERTURBAÇÕES OBSESSIVO-COMPULSIVAS

Definições e importância do problema

A palavra obsessão deriva do latim obsessio; por sua vez, procede de obsidere, que significa “assediar”, e sedere que significa “sentar”.

A palavra compulsão deriva também do latim compellere significando “obrigar a fazer”.

perturbação obsessivo-compulsiva (POC) é uma condição neuropsiquiátrica crónica que se caracteriza clinicamente pela presença de obsessões e/ou compulsões recorrentes que consomem tempo, com impacte psicossocial significativo na vida da criança ou do adolescente.

Ou seja, uma obsessão é um pensamento, uma ideia, um impulso ou uma imagem mental recorrente e persistente que gera ou se associa frequentemente a afectos negativos de ansiedade, tensão, medo ou aversão. As obsessões mais comuns na idade pediátrica são: preocupações com a sujidade, medo de contaminações e de contrair uma doença; medo de que algo de mal aconteça ao próprio ou a alguém próximo; necessidade de simetria, ordem; necessidade de guardar ou acumular coisas; preocupações excessivas relacionadas com temas de cariz sexual, moral ou místico. As obsessões podem ser sentidas pela criança como proibidas e fazerem-se acompanhar de sentimentos excessivos de culpa, de insegurança ou de incerteza.

Uma compulsão é um comportamento ou um acto mental repetitivo excessivo e irrealista que corresponde a tentativas do próprio de neutralizar, prevenir ou reduzir a ansiedade associada a um pensamento obsessivo. As compulsões mais comuns são: rituais de limpeza ou de lavagem, de verificação, comportamentos repetitivos como tocar ou esfregar, de contagem, ordenação ou organização.

Tanto as obsessões como as compulsões são habitualmente egodistónicas, isto é, são habitualmente reconhecidas pela criança como exageradas ou sem sentido. É frequente a criança tentar camuflar os seus rituais. Não é raro encontrar crianças que inibem os seus rituais durante algum tempo, ou em determinados contextos. A POC tem habitualmente um impacte familiar importante, com o envolvimento de membros da família nos rituais, com modificações significativas das rotinas, muitas vezes na tentativa de tranquilizar a criança.

Aspectos epidemiológicos

A prevalência da POC em idade pediátrica varia em função do método de estudo, oscilando entre 0,5 e 4%; é mais frequente no final da adolescência. Cerca de 50% dos casos inicia-se antes dos 15 anos. Na adolescência não há diferenças entre os géneros, sendo o género masculino o mais atingido quando se inicia na infância.

Etiopatogénese

Na etiopatogénese da POC, complexa e mal compreendida, intervêm factores genéticos, neuroquímicos, ambientais e, possivelmente, imunológicos.

Os estudos genéticos mostram maior frequência da perturbação em familiares de primeiro grau do que na população geral. Também há maior concordância entre gémeos monozigóticos do que em heterozigóticos.

Relativamente aos factores neuroquímicos, sabe-se que há genes com papel importante na função dos sistemas serotoninérgicos, dopaminérgicos e glutamatérgicos. Através da imagiologia funcional, há provas científicas da existência de uma hiperactivação do córtex orbitofrontal medial e lateral, tanto em crianças como em adultos. Destacam-se ainda alterações ao nível do tálamo, núcleos basais e núcleo caudado.

Relativamente aos factores ambientais e imunológicos, alguns factos como os relatados a seguir, relacionados com infecções, podem constituir argumentos a favor. Com efeito, nos últimos 10-15 anos, tem-se vindo a identificar um quadro clínico com sintomas de POC e/ou tiques no contexto antecedente de infecção estreptocócica recente, a que se tem dado o nome de PANDAS (pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcus). Mais recentemente, o termo PANS (pediatric acute-onset neuropsychiatric syndrome) tem sido preferido, já que caracteriza melhor a natureza incerta do quadro, bem como o seu aparecimento súbito.

Manifestações clínicas

Tendo como base o que foi referido na alínea sobre Definições, habitualmente o quadro clínico começa com um único sintoma, o qual persiste ao longo de meses ou anos, a que se acrescentam, depois, novas obsessões e compulsões. Os sintomas podem mudar, muitas vezes substituindo-se parcialmente. A situação mais típica é aquela em que há obsessões e compulsões de forma conjunta.

A evolução é do tipo crónico, com fases de melhoria e de agravamento, conquanto entre 12% e 50% dos casos o paciente possa ficar assintomático.

Comorbilidades

Estima-se que em cerca de 50% dos casos de POC existam duas ou mais perturbações psiquiátricas concomitantes, podendo afirmar-se que a existência de comorbilidades constitui mais a regra do que a excepção. As situações mais frequentes podem assim ser sintetizadas: P de ansiedade – 26 a 75%; P do humor – 25 a 62%; Tiques – 11 a 26%; P de hiperactividade e défice de atenção – 16 a 20%; P do comportamento disruptivo – 9 a 19%.

Diagnóstico diferencial

A POC deverá ser distinguida dos rituais normais e de superstições transitórias associadas ao desenvolvimento, das perturbações de ansiedade, das perturbações de tiques, das perturbações do espectro do autismo, das perturbações psicóticas e da hipocondria. Especificam-se em seguida algumas situações a ponderar no âmbito do diagnóstico diferencial:

  • Rituais normativos ou superstições transitórias do desenvolvimento: não têm impacto no funcionamento da criança;
  • Perturbações de ansiedade: não ocorrem compulsões; o conteúdo das preocupações existentes não é tão bizarro como na POC;
  • Perturbações de tiques ou síndroma de La Tourette: existem tiques motores ou fonéticos; os tiques mais complexos podem assemelhar-se às compulsões, mas não são precedidos de obsessões;
  • Perturbações do espectro do autismo: os comportamentos estereotipados não surgem tanto em situações de prazer como ansiogénicas; a perseverança não está associada à ansiedade, nem a obsessões;
  • Perturbações psicóticas: as obsessões (egodistónicas) e os delírios (egosintónicos) podem ser difíceis de distinguir nas crianças mais pequenas;
  • Hipocondria: os pensamentos estão exclusivamente associados ao medo de ter uma doença; não existem compulsões.

Tratamento

O tratamento da POC pediátrica engloba duas vertentes principais de intervenção: terapia cognitivo-comportamental com exposição e prevenção da resposta (TCC-EPR), e terapêutica farmacológica com inibidores selectivos da recaptação da serotonina (ISRS).

Através de estudos aleatorizados tem sido demonstrado que a TCC constitui um tratamento eficaz, associando-se a uma redução de 40-65% dos sintomas; estes poderão manter-se para além de 18 meses pós-tratamento. Trata-se, pois, duma intervenção de primeira linha para todos os casos de POC pediátrica ligeira a moderada.

Nos casos mais graves, ou que não respondem à TCC, recomenda-se associar terapêutica farmacológica com inibidores selectivos da recaptação da serotonina (ISRS).

De acordo com a experiência acumulada e estudos realizados, os ISRS evidenciaram resultados efectivos no tratamento desta perturbação na idade pediátrica, com uma redução de 29-44% nos sintomas, boa tolerância e segurança.

Os fármacos ISRS que estão aprovados em Portugal para o tratamento da POC pediátrica são a sertralina e a fluvoxamina, a partir dos 6 anos de idade.

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INTRODUÇÃO À CLÍNICA PEDOPSIQUIÁTRICA

Definições

O campo de intervenção da Pedopsiquiatria é de difícil definição. Em termos gerais, o pedopsiquiatra interessa-se pelo bem-estar psíquico da criança em cada momento, no contexto do seu desenvolvimento e do seu envolvimento relacional, quer seja na família, na escola ou noutras situações decorrentes das circunstâncias de vida, quer no hospital ou em instituições de acolhimento.

De uma forma mais específica, Pedopsiquiatria define-se pelo estudo do funcionamento mental da criança e pela identificação e tratamento dos fenómenos psicopatológicos que põem em risco a sua Saúde Mental. Esta última define-se pelo desenvolvimento das competências afectivas, cognitivas e sociais que permitirão à criança ser mais tarde um adulto saudável, na plenitude das suas capacidades.

Tendo pontos comuns com a Pediatria do Desenvolvimento, com a Neurologia Pediátrica e outras áreas do foro não médico (Psicologia, Ciências Psicossociais, Pedagogia, etc.), que também se interessam pelo bem-estar da criança, a dimensão médica é dada pelo uso dos conhecimentos científicos disponíveis que permitem fazer o diagnóstico do quadro clínico e programar a intervenção terapêutica com vista à retoma, tanto quanto possível normal, do desenvolvimento infantil e da prevenção da doença na idade adulta.

Factos históricos

O interesse pela criança e pelo seu desenvolvimento começa a tomar forma no séc. XVIII, período amplo em que surgem os primeiros textos virados sobretudo para a Pedagogia e a Educação. Contudo, é apenas no século XIX que pais, educadores, legisladores e médicos começam a olhar a criança de uma outra forma, como necessitando de uma protecção especial para se tornar um adulto saudável. Piaget e Wallon desenvolveram trabalhos notáveis na vertente do desenvolvimento cognitivo da criança. Paralelamente, e com os contributos iniciais da Psicanálise, assiste-se a um interesse crescente pela vida psíquica e emocional da criança e da sua importância na saúde mental do adulto. Sigmund Freud fixou a sua atenção no passado infantil de pacientes adultos neuróticos, a partir dos seus relatos, e postulou uma teoria sobre o desenvolvimento psicoafectivo da criança. Contudo, a observação directa da criança só apareceu mais tarde, já no século XX, essencialmente sob o impulso de Anna Freud, Melanie Klein, Spitz, Margaret Mahler, Donald Winnicoat e de outros psicanalistas, antes de conhecer a sua extensão atual com os trabalhos iniciadores de Bowley. A observação directa da criança coloca em evidência o papel do ambiente no seu desenvolvimento, a sua dependência do que a rodeia e introduz uma nova dimensão na patologia.

Nos anos 30 do século XX, nos Estados Unidos multiplicaram-se os estudos sobre os efeitos da institucionalização de crianças pequenas, de que Spitz se torna a figura de proa, ao descrever um quadro depressivo nos bebés que eram separados das mães, a que chamou “depressão anaclítica do lactente”. O referido autor identificou os três organizadores do psiquismo: o primeiro, aos 2-3 meses de idade, com o aparecimento do sorriso; o segundo, aos oito meses de idade, com a angústia do estranho e, o terceiro, ocorrido no decorrer do 2.º ano, com o aparecimento do “não” (gesto/ palavra).

Uma das contribuições mais ricas do ponto de vista teórico é a Teoria da Vinculação. Actualmente, é consensual a sua importância, tanto para a compreensão do desenvolvimento infantil como para a integração dos dados da clínica e da observação experimental nas políticas de prevenção em saúde mental infantil.

O conceito de vinculação foi inicialmente introduzido por John Bowlby, nos anos 40 do século passado, para caracterizar a relação afectiva que se estabelece entre a mãe e a criança; constitui o ponto de partida para o desenvolvimento duma teoria que se tornou um instrumento valioso na compreensão do desenvolvimento psicológico e da psicopatologia da criança e do adolescente.

A Teoria da Vinculação surgiu num tempo em que havia uma grande preocupação com os efeitos da carência materna nas crianças e na sequência de um relatório feito em 1948 pelo próprio Bowlby a pedido da Organização Mundial de Saúde (OMS), sobre crianças sem família. Milhares de crianças e jovens tinham ficado órfãos ou separados dos familiares após a segunda guerra mundial, tendo-se comprovado as graves consequências psicológicas que resultaram das perdas dos pais e das separações prolongadas.

Para o desenvolvimento da sua teoria da vinculação, Bowlby contou ainda com o contributo dos etólogos com quem se cruzou e cujos trabalhos e conclusões foram para ele uma fonte de inspiração. A teoria da vinculação agregou, ao longo dos últimos 70 anos, contribuições de variados campos científicos, desde a psicanálise até às ciências cognitivas e transformou-se, graças à importante investigação a que deu origem, na mais fecunda forma de conhecimento sobre o comportamento social e relacional da criança e sobre a transmissão transgeracional dos modelos relacionais e da psicopatologia. Apesar de existirem controvérsias sobre o aspecto da generalização dos padrões de interacção primários para relações futuras, Fonagy tem demonstrado, através de diversos estudos longitudinais, a estabilidade do tipo de vinculação ao longo da vida.

A vinculação é um fenómeno complexo que se refere à ligação que se estabelece entre o dador principal de cuidados e a criança. É uma relação específica que se constrói progressivamente e se caracteriza por comportamentos activos de aproximação da criança, na procura de conforto, protecção e garantia de apoio e segurança. É a existência desse vínculo que origina as reacções de ansiedade e depressão da criança face à separação do prestador de cuidados e possibilita a actividade exploratória livre.

Os comportamentos de vinculação da criança definem-se como sendo todas as manifestações que tendem a favorecer a proximidade com a figura de vinculação. 
A figura de vinculação, por definição, é aquela em relação à qual a criança dirige o seu comportamento de vinculação.

Os comportamentos de vinculação básicos são inatos e foram descritos inicialmente por Bowlby. São eles: o olhar, o sorrir, o chorar, o agarrar e o chupar. Também a mãe desenvolve em relação à criança uma relação afectiva de grande intensidade a que se chama bonding, significando união ou ligação. O sistema de vinculação tem um carácter estável e permanente tornando-se operativo entre os 9 e os 12 meses de idade da criança.

O conceito de vinculação entrou na prática clínica e na investigação graças à classificação dos seus vários tipos, a partir das diferentes reacções da criança face à separação e à presença do estranho, feita por M. Ainsworth, discípula de Bowlby. Desde então a investigação nesta área tem tido um grande desenvolvimento, e os estudos longitudinais realizados com base nas diferentes categorias do comportamento de vinculação (segura, insegura/evitante, insegura/ansiosa, desorganizada) têm demonstrado existir uma relação significativa entre o desenvolvimento da resiliência e a vinculação segura. Por outro lado, são as crianças maltratadas e carenciadas que mais evidenciam vinculações de tipo desorganizado e que desenvolvem mais tarde perturbações de comportamento.

Em Portugal, a emergência da Psiquiatria Infantil como disciplina autónoma está ligada à figura de João dos Santos, considerado o pai da Pedopsiquiatria no nosso País. São hoje também incontornáveis os nomes de Coimbra de Matos e Maria José Gonçalves; de salientar que esta última introduziu e divulgou a intervenção pedopsiquiátrica na primeira infância.

Diagnóstico em Psiquiatria da Infância e da Adolescência

Em Pedopsiquiatria, a abordagem diagnóstica é longa e complexa. Consiste na entrevista com os pais (anamnese), na observação da interacção pais/criança ou adolescente, e na avaliação do estado mental da criança/ adolescente através da sua observação em contexto livre e semi-estruturado.

Deve ter em linha de conta a perspectiva evolutiva e multifactorial da patologia, pelo que agrega à informação clínica, a informação escolar e social.

Entrevista com os pais (anamnese)

Como é habitual em idades pediátricas, a anamnese é feita habitualmente com os pais/prestadores de cuidados, e parte dela sem a presença da criança, uma vez que esta colheita de informação pode ser sentida por ela como acusatória ou humilhante. Com os adolescentes, poderá ser-lhe dado a escolher se querem ou não estar presentes, ou se preferem ser atendido antes dos pais.

Os elementos colhidos (doença actual, antecedentes pessoais, antecedentes familiares) em conjunto com os dados da observação, deverão permitir a formulação dum diagnóstico e a elaboração dum projecto terapêutico.

Os sinais e sintomas identificados deverão ser avaliados em função de certos parâmetros que passamos a descrever:

  1. a estrutura – os sinais e sintomas devem ser avaliados de acordo com a sua intensidade, factores desencadeantes, modo de início, frequência, persistência, associação, nas várias áreas de funcionamento e impacte no funcionamento da criança;
  2. o nível do desenvolvimento – é necessário ter em mente as fases de desenvolvimento infantil e as tarefas do desenvolvimento próprias de cada uma delas para se poder avaliar a sua gravidade e até que ponto o quadro clínico interfere com essas tarefas e/ou impede a passagem à fase seguinte.

Para além do quadro apresentado, é crucial a avaliação da criança nas diversas áreas do seu funcionamento, pelo que há que apurar o que se passa ao nível de:

  1. Sintomas funcionais: motores, alimentares, do sono, do controlo dos esfíncteres;
  2. Desenvolvimento cognitivo e linguístico;
  3. Comportamento: agressividade, tolerância à frustração;
  4. Emocional: ansiedade, (preocupações e/ou medos excessivos), humor (depressividade /irritabilidade);
  5. Socialização: relação com os pares, capacidade de comunicação.

O funcionamento da criança deverá ainda ser caracterizado nos seus diversos contextos: em casa, na família; na escola, (na sala de aula e no recreio); e noutras estruturas da comunidade que eventualmente integre.

Observação da interacção pais-criança

Nos primeiros anos de vida esta observação directa da relação pais/filho assume uma importância particular. Devem ser observados aspectos comportamentais, verbais e afectivos. Deles destacamos:

  1. As expectativas e as percepções subjectivas dos pais em relação à criança bem como as reacções das crianças;
  2. A qualidade afectiva das interacções (desligada, ansiosa, hostil, preocupada, etc.);
  3. A capacidade de os pais transmitirem padrões estruturantes de funcionamento, tais como: distinção clara dos diferentes papéis desempenhados pelos seus membros; respeito pela diferença entre gerações; consciência das necessidades básicas da criança em termos de segurança afectiva e dos limites, capacidade de perceber as necessidades da criança em função do seu desenvolvimento, se funcionam como “base segura”, ou seja, se a criança os procura perante situações potencialmente ameaçadoras ou para pedir ajuda, e a sua resposta a esta procura;
  4. A forma como os pais se relacionam com a criança, que estratégias usam para lidar com ela, quais as respostas que a criança consegue dar e como os pais se readaptam às mesmas.

Observação

Nem sempre a criança observada corresponde à criança descrita pelos pais; por isso, tanto quanto possível, e com as limitações impostas pela faixa etária, a criança deve ser observada sozinha.

A sua observação inicia-se mesmo antes de a entrevista começar. A aparência geral, o estado de nutrição, a adequação do vestuário ou sinais de negligência física, são aspectos imediatamente acessíveis.

Devem ser valorizados os seguintes elementos, de acordo com o esperado para a idade:

  1. A qualidade da relação que estabelece com o observador: se mantém uma proximidade adequada, excessiva ou evitante, características do contacto visual;
  2. A postura, motricidade e nível de actividade, a capacidade de manter a atenção e grau de controlo dos impulsos, capacidade de se manter numa actividade, se existem movimentos anormais como tiques ou descargas motoras;
  3. O humor (ansioso, triste, zangado ou eufórico);
  4. A linguagem (se é adequada ou não à idade), se compreende o que lhe é dito e como comunica verbalmente, e em que tom (calmo ou desafiador), ou se existem vocalizações bizarras;
  5. O discurso e o pensamento, em termos formais e de conteúdo, como por exemplo: se o discurso é organizado e coerente, com capacidade na associação de ideias ou se, por outro lado, é desorganizado e difícil de compreender, e/ou se surgem ideações bizarras ou mórbidas;
  6. A capacidade de brincar e nível do jogo (imitação, funcional, simbólico), o nível do desenho do ponto de vista gráfico e da capacidade de representação simbólica;
  7. O tipo e o grau de ansiedade (separação dos pais, situação estranha, etc.) e estratégias de superação.

Subjectividade

Um dos aspectos da avaliação clínica que o pedopsiquiatra não pode descurar é o seu carácter relacional. Existe assim, sempre subjacente, um factor de subjectividade a equacionar.

A atitude do clínico deverá ser sempre de escuta empática, permitindo aos pais e à criança ou adolescente sentirem-se escutados, compreendidos e respeitados.

A relação que o observador estabelece com os pais e com a criança tem um impacte afectivo, maior ou menor, que constitui um elemento valioso para compreender a situação. A capacidade de auto-observação contribui para evitar erros grosseiros que podem enviesar o processo de avaliação. É relativamente frequente, por exemplo, a tendência a fazer “alianças” imediatas quer com os pais, quer com a criança, ou a transportar para a observação elementos transmitidos por terceiros, sem tomar as distâncias necessárias.

Depois de uma consulta inicial, em função dos dados colhidos, devem ser admitidas hipóteses de diagnóstico, programadas as avaliações complentares necessárias, e estruturado um plano de intervenção terapêutica.

Referenciação do paciente para Serviços de Saúde Mental Infantil e Juvenil

Na sua grande maioria, os casos referenciados para os Serviços de Saúde Mental Infantil e Juvenil são previamente avaliados por outras áreas médicas, como por exemplo a Pediatria e a Medicina Geral e Familiar.

Esta avaliação médica inicial deverá ter como objectivos primordiais: a definição do sintoma-problema e a sua gravidade; a avaliação da importância relativa dos diversos factores intervenientes no desencadeamento e na manutenção dos sintomas; e a identificação de factores protectores.

A grelha de avaliação diagnóstica (F) proposta de seguida contém alguns dos aspectos essenciais para a compreensão e avaliação de cada caso clínico antes da referenciação para os Serviços de Saúde Mental.

Grelha de avaliação diagnóstica*

* adaptada de C Marques et al, 2009)

1. Identificação do sintoma-problema

  1. Caracterização: descrição, frequência, início, factores desencadeantes, agravantes, protectores; contexto de ocorrência do sintoma; o que foi feito para resolver;
  2. Clarificação do motivo do pedido.
2. Sintomas associados
3. Nível de desenvolvimento (se é adequado ou não à idade cronológica)

4. Antecedentes pessoais

  1. Gravidez;
  2. Parto;
  3. Relação precoce;
  4. Etapas do desenvolvimento psicomotor;
  5. Reacção à separação;
  6. Sono;
  7. Alimentação;
  8. Intercorrências médicas;
  9. Tipo de prestação de cuidados.

5. História Familiar/ Genograma/ Ambiente Familiar

  1. Avaliação da qualidade da relação pais-criança;
  2. Se existe confusão de papéis, de gerações, se há “parentalização da criança, tipos de comunicação e padrões de interacção, ambiente emocional da família, se existe rede de apoio social ou familiar alargada;
  3. Existência de patologia psiquiátrica na família.
6. Observação da criança (física e do estado mental)
7. Diagnóstico diferencial com outras patologias somáticas que possam explicar o quadro clínico na sua globalidade
8. Exames complementares de diagnóstico
9. Referenciação para observação por outras especialidades

Sinais de alerta para referenciação à Consulta de Saúde Mental Infantil e Juvenil

A integração e análise de toda a informação clínica recolhida pelo clínico permitem identificar a existência de situações potencialmente graves que exigem referenciação à Consulta de Saúde Mental Infantil e Juvenil.

Trata-se de quadros clínicos caracterizados pela existência de sintomas intensos, frequentes ou múltiplos, que persistam ao longo do desenvolvimento, ou não se enquadrem na idade da criança, que causem grave restrição nos diferentes contextos de vida ou que tenham repercussão no seu desenvolvimento psicológico. Incluem-se também as situações em que o meio envolvente é patológico.

Os sinais de alerta que têm sido descritos para referenciação são os seguintes:

Na Primeira Infância

  • Dificuldades na relação mãe-bebé
  • Dificuldades do bebé se autorregular, mostrando-se alheado ao ambiente que o rodeia
  • Dificuldades do bebé em envolver-se na relação com pessoa estranha, e em estabelecer relações diferenciadas
  • Ausência de reciprocidade interactiva e da capacidade em iniciar interacção
  • A existência de alterações alimentares graves com cruzamento de percentis e sem causa orgânica aparente
  • Alterações do sono tais como insónia grave, não cedendo às medidas de carácter geral de higiene do sono

Na Idade Escolar

  • Dificuldades de aprendizagem na ausência de défice cognitivo e de factores pedagógicos adversos
  • Situações de recusa escolar
  • Instabilidade psicomotora ou irrequietude excessiva impróprias da idade e do grau de desenvolvimento da criança
  • Ansiedade, preocupações ou medos excessivos tendo em conta a idade e a etapa de desenvolvimento da criança
  • Alterações do sono, com insónia inicial e pesadelos muito frequentes
  • Alterações de comportamento com oposição e desafio persistentes à autoridade, auto ou heteroagressividade, violência, birras inexplicáveis e impróprias da idade
  • Dificuldades na socialização, com isolamento ou relacionamento não expectável com pares e adultos
  • Queixas somáticas múltiplas ou persistentes

Na Adolescência

  • Incapacidade para lidar com problemas e actividades quotidianas
  • Queixas somáticas múltiplas ou persistentes
  • Alterações de humor (humor depressivo/ irritável/ eufórico), ideação suicida, tentativas de suicídio ou isolamento relacional
  • Ansiedade excessiva
  • Alterações do pensamento e da percepção
  • Sintomatologia obsessivo-compulsiva
  • Alterações do sono, com insónia grave persistente que não cedem às medidas de carácter geral de higiene do sono
  • Restrição alimentar ou comportamentos purgativos, com preocupações com o peso
  • Actos impulsivos, como comportamentos auto ou heteroagressivos ou sexuais, fugas
  • Comportamentos frequentes de cariz antissocial

Nos casos de gravidade ligeira a moderada, deverão ser levadas a efeito estratégias de intervenção comunitária, nomeadamente a nível familiar, escolar e social, antes da sinalização da criança aos Serviços de Saúde Mental. A eficácia destas medidas deverá ser reavaliada o fim de 3 meses, e no caso de agravamento ou manutenção do quadro clínico, a criança deverá ser encaminhada para avaliação especializada pela Pedopsiquiatria.

A motivação da família para aderir a esta consulta é um aspecto crucial, a qual deve ser alvo de atenção pela parte do clínico que procede à referenciação.

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PERTURBAÇÕES DE HIPERACTIVIDADE E DÉFICE DE ATENÇÃO

Importância do problema e etiopatogénese

A perturbação de hiperactividade e défice de atenção (PHDA) corresponde à patologia neurocomportamental mais comum na infância. Com uma prevalência estimada de 5% nas crianças em idade escolar, persistindo na adolescência e idade adulta, conta-se entre as doenças crónicas mais prevalentes no grupo etário pediátrico.

Os primeiros casos foram estudados e descritos em 1935 por Childers e, em 1967, por Menkes. Durante muitos anos pensou-se que resultaria de uma lesão cerebral, mas o predomínio familiar apontou para causas genéticas. Estudos mais recentes, especialmente estudos em gémeos monozigóticos e dizigóticos, revelaram haver elevada hereditabilidade (70-80%).

Os investigadores consideram a hipótese de uma alteração genética que determina uma alteração na actividade dos neurotransmissores (especialmente da dopamina e da noradrenalina) originando um padrão comportamental característico. Têm sido estudados o AT1 (gene do transportador da dopamina) e o DRD4 (gene de uma forma particular de receptor da dopamina – o receptor D4). De facto, admite-se papel importante da dopamina na etiopatogénese com implicações práticas nas medidas terapêuticas, algumas das quais são constituídas por inibidores da recaptação da dopamina.

Os estudos genómicos identificaram vários loci de susceptibilidade (ex. 4q13.2, 5p15.33, 9q22, 12p13, 16p14 e 16q24.1) mas cada um deles com escasso efeito, pelo que a hereditabilidade continua por explicar. Para que se verifiquem manifestações clínicas da PHDA, considera-se que poderá haver vários genes de susceptibilidade interagindo entre si e sobre os quais igualmente interferem factores ambientais.

Têm sido estudados factores ambientais que poderão aumentar o risco de PHDA, designadamente tabagismo materno, exantemas víricos ou anemia materna durante a gestação, parto pélvico, baixo peso de nascimento ou prematuridade, encefalopatia hipóxico-isquémica, microcefalia ou exposição a cocaína, álcool, chumbo ou iodo e hipotiroidismo. De acordo com estudos científicos, citam-se como os mais relevantes, a prematuridade e/ou baixo peso, assim como o tabagismo materno. Os restantes poderão ser potenciadores associados a genes de susceptibilidade.

Os familiares de crianças com PHDA têm um risco 6 vezes superior de PHDA relativamente à população normal. O ambiente é também importante na modulação dos sintomas e no grau de disfunção causada. Os sintomas podem ser atenuados por um ambiente mais estruturado ou, pelo contrário, exacerbados por um ambiente menos favorável e mais desorganizado. No entanto, apesar da possível comparticipação de factores culturais, a prevalência da PHDA tem-se mantido relativamente estável em diferentes países e diferentes culturas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A forma de apresentação clínica pode ser muito variável, em função da diversidade de mecanismos etiopatogénicos implicados. São frequentes as queixas de insucesso escolar, alterações do comportamento na sala de aula, desatenção, problemas nas relações sociais, ou baixa autoestima. Os sintomas principais da PHDA incluem essencialmente falta de atenção, hiperactividade e impulsividade, não associados a qualquer patologia psiquiátrica. O Quadro 1, adaptado do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, – DSM 5, sintetiza os critérios diagnósticos da referida entidade clínica, modificados em 2013.

Em relação à anterior classificação (DSM-4), o DSM-5 mantém os mesmos critérios, mas reduz para 5 o número de critérios de impulsividade/hipercinésia, no adulto. Também aumentou a idade de início dos sintomas para os 12 anos, permitindo assim incluir formas menos graves em que os problemas surgem sobretudo quando a exigência escolar aumenta.

A nova classificação, permitindo ainda que possa ser feito o co-diagnóstico com perturbação do espectro do autismo, também recorre a parâmetros de especificação ou “especificadores”, quer para o tipo de apresentação (predominantemente desatento, predominantemente hiperactivo/impulsivo, combinada), quer para a gravidade (ligeira, moderada, grave).

As crianças com os sintomas típicos de hiperactividade e impulsividade são geralmente identificadas pelos professores porque perturbam a sala de aula. No entanto, as crianças com o subtipo desatento da PHDA, com sintomas de hiperactividade e impulsividade ausentes ou mínimos, podem passar despercebidas, manifestando apenas insucesso escolar e, por vezes, ser rotuladas como desinteressadas ou desmotivadas em relação à escola.

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de perturbação de hiperactividade e défice de atenção segundo a DSM-5

A. Um padrão persistente de desatenção e/ou hiperactividade/impulsividade que interfere com o funcionamento ou desenvolvimento caracterizado por (1) e/ou (2)

  1. Desatenção: Seis (ou mais) dos seguintes sintomas, persistindo pelo menos durante seis meses, com uma intensidade inconsistente com o nível de desenvolvimento e causando disfunção (não por atitude negativa ou de oposição ou por não compreensão das tarefas):
    1. Frequentemente, não presta atenção suficiente aos pormenores ou comete erros por descuido nas tarefas escolares, no trabalho ou noutras actividades;
    2. Frequentemente, tem dificuldade em manter a atenção no desempenho de tarefas ou actividades;
    3. Frequentemente, parece não ouvir quando se lhe fala directamente;
    4. Frequentemente, não segue as instruções e não termina os trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho;
    5. Frequentemente, tem dificuldades em organizar tarefas ou actividades;
    6. Frequentemente, evita, não gosta, ou está relutante em envolver-se em tarefas que requeiram esforço mental mantido;
    7. Frequentemente perde objectos necessários a tarefas ou actividades;
    8. Frequentemente, é facilmente distraído por estímulos alheios;
    9. Esquece-se com frequência das actividades quotidianas;
  2. Hiperactividade e impulsividade: Seis (ou mais) dos seguintes sintomas, persistindo pelo menos durante seis meses, a um nível inconsistente com o nível de desenvolvimento e causando disfunção:
    1. Frequentemente, agita ou bate com as mãos ou os pés ou remexe-se quando está sentado;
    2. Frequentemente, levanta-se em situações em que se espera que esteja sentado;
    3. Frequentemente, corre ou salta em situações em que não é próprio fazê-lo;
    4. Frequentemente, é incapaz de jogar ou envolver-se com tranquilidade em actividades de lazer;
    5. Está frequentemente “em movimento”, agindo como se estivesse “ligado a um motor”;
    6. Frequentemente, fala excessivamente;
    7. Frequentemente, precipita as respostas antes que as perguntas tenham acabado;
    8. Frequentemente, tem dificuldade em esperar pela sua vez;
    9. Frequentemente, interrompe ou interfere nas actividades dos outros;

B. Vários dos sintomas de desatenção ou de hiperactividade-impulsividade surgiram antes dos 12 anos.

C. Vários dos sintomas estão presentes em mais contextos.

D. Os sintomas interferem ou reduzem a qualidade do funcionamento social, académico ou ocupacional.

E. Não ocorrem exclusivamente no curso de esquizofrenia ou perturbação psicótica nem são mais bem explicados por outra perturbação mental.

Especificar tipo de apresentação:

314.01 – Apresentação combinada: se preenchidos os critérios A1 e A2 durante os últimos seis meses.

314.00 – Apresentação predominantemente de desatenção: se preenchido o critério A1, mas não o critério A2 durante os últimos seis meses.

341.01 – Apresentação predominantemente de hiperactividade-impulsividade: se critério A2 preenchido, mas não o critério A1 durante os últimos seis meses.

Em remissão parcial: quando critérios preenchidos no passado, mas não nos últimos 6 meses, ainda com impacto no funcionamento.

Na população em geral verifica-se um predomínio no sexo masculino, admitindo-se contudo que tal nosologia (do tipo “desatento”) possa ser subdiagnosticada no sexo feminino. Em Portugal não existem estudos epidemiológicos de âmbito nacional.

Segundo as recomendações internacionais, perante uma criança entre os 6 e 12 anos, com falta de atenção, hiperactividade, impulsividade, insucesso escolar ou problemas de comportamento, o clínico deve iniciar uma avaliação no sentido de PHDA, com encaminhamento para uma consulta de especialidade.

Não há testes físicos ou exames específicos para o diagnóstico da PHDA; por isso, o diagnóstico é clínico, baseado nos critérios definidos no DSM V. Para o diagnóstico da PHDA torna-se fundamental recolher informação de várias fontes: dos pais, dos professores, ou de outros profissionais que conhecem a criança. Como não há instrumentos que indiquem com confiança o grau e a natureza da perturbação funcional de uma forma objectiva, devem ser utilizadas perguntas livres genéricas, perguntas específicas sobre alguns comportamentos, questionários semiestruturados, assim como questionários e escalas específicas (como os questionários de Conner, validados e aferidos para a população portuguesa).

No âmbito da aplicação de escalas e questionários específicos tem-se verificado sensibilidade e especificidade acima de 94%, permitindo distinguir crianças com e sem PHDA. Estes questionários e escalas são aplicáveis aos pais e professores, com modelos apropriados para cada.

De realçar dois aspectos fundamentais: 1- uma correcta anamnese, valorizando devidamente os antecedentes familiares; 2- exclusão de patologia de base susceptível de conduzir a diagnóstico falacioso de défice de atenção ou de alterações do comportamento: referimo-nos a situações associadas a hipoglicémia, ferropénia ou a patologia da tiróide, impondo-se o tratamento correcto antes de se avançar com o diagnóstico de PHDA.

Outra patologia que é importante diagnosticar e tratar relaciona-se com as perturbações do sono e os défices sensoriais os quais podem implicar também alterações de comportamento e probabilidade de confusão com PHDA.

Várias outras perturbações, consideradas como comorbilidades, podem estar associadas à PHDA em cerca de um terço dos casos; como mais frequentes citam-se: a perturbação de oposição ou a perturbação do comportamento; as perturbações do humor; a ansiedade; as perturbações da aprendizagem (dislexia ou discalculia); ou a cognição em estado limite do normal.

A existência de uma perturbação do desenvolvimento da coordenação motora, concomitante com a PHDA, resultando num quadro característico de défice da coordenação motora (grosseira e fina), de atenção e de percepção (visual e/ou auditiva), justificou a definição de uma entidade designada por défice de atenção, motricidade e percepção (DAMP). Esta entidade, apesar de ter sido discutida pela comunidade científica internacional, não foi aceite como entidade nosológica contemplada na DSM V.

A DAMP, de prognóstico mais reservado, é actualmente considerada um subtipo da PHDA, obrigando a uma intervenção mais abrangente ao nível de diferentes áreas. É, pois, fundamental a sua identificação precoce, devendo ser sempre excluída perante uma criança com PHDA.

Intervenção

O clínico responsável pelo diagnóstico deve: – informar a criança/jovem e a família sobre a doença, ajudando a esclarecer os mitos; – aconselhá-la e estar disponível para prestar todos os esclarecimentos; e – promover a ligação a outras famílias, assegurando a coordenação dos serviços de saúde e educação.

A PHDA, como outras doenças crónicas, necessita dum plano de tratamento específico, idealmente levado a cabo por uma equipa multidisciplinar, com metas definidas e formas de seguimento e de vigilância. A principal meta do tratamento deve ser a de valorizar devidamente toda a função, contribuindo para melhorar a relação com os outros, assim como o desempenho académico, a independência e a autoestima.

Na maioria das crianças o tratamento farmacológico é muito eficaz, particularmente no que respeita à atenção, cujo défice causa mais prejuízo na aprendizagem. Em situações de grande impulsividade e difícil controlo dos impulsos, o tratamento cognitivo-comportamental ou comportamental pode ser eficaz. A par da intervenção farmacológica deve haver sempre uma intervenção psicoeducacional (aplicando estratégias de treino da atenção e controlo dos impulsos) dirigida ao paciente, pais e professores.

Em função das especificidades de certos quadros clínicos, algumas escolas de Pedopsiquiatria e de Pediatria do Desenvolvimento aconselham a prática desportiva e a administração de café de forma regulada.

Quanto a fármacos, os mais utilizados são os estimulantes, particularmente o metilfenidato. Em Portugal há disponíveis no mercado formulações de acção prolongada (Concerta®, 8-12 horas, cápsulas com sistema OROS, nas dosagens de 18, 36, 54 e 72 mg) de ação intermédia (Ritalina LA®, 6-8 horas, cápsulas, nas dosagens de 20, 30 e 40 mg) e de ação curta (Rubifen® 3-4 horas, comprimidos, nas dosagens 5, 10 e 20 mg). A dose terapêutica deve ser calculada com rigor: habitualmente uma dose de 1-1,5 mg/kg/dia, não se devendo ultrapassar a dose de 2 mg/kg/dia.

A dextroanfetamina não é comercializada entre nós.

Em relação aos fármacos não estimulantes (adrenérgicos) como a atomoxetina, tem sido pouco usada pelo custo da formulação em solução oral; tal fármaco é mais usado em adolescentes, ou mesmo em adultos.

Tratando-se de uma doença crónica, o tratamento é prolongado. Os sintomas podem persistir até à idade adulta, geralmente com uma atenuação dos comportamentos mais hipercinéticos, mas mantendo desatenção e impulsividade. De referir que os adolescentes e jovens adultos com PHDA não tratados estão em maior risco de instabilidade familiar e laboral, de consumo de drogas de abuso, de delinquência, ou de gravidez indesejada.

Chama-se a atenção para a possibilidade de efeitos cardiovasculares adversos dos estimulantes, o que obrigará, em função do contexto clínico, a exame clínico cardiovascular antecedendo tal tratamento.

É possível que o futuro, com os avanços da genética, nos venha a elucidar melhor sobre os mecanismos etiopatogénicos da PHDA, e a permitir um diagnóstico mais fácil e um tratamento não apenas sintomático, mas sim dirigido à causa da perturbação.

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PERTURBAÇÕES DO ESPECTRO DO AUTISMO

Importância do problema

Em 1943, o pedopsiquiatra americano Leo Kanner descreveu uma doença infantil caracterizada pela tríade: défice na comunicação, comportamento repetitivo e défice na interacção social. A referida doença viria posteriormente a ser designada por psicopatia autística ou autismo. Quase na mesma altura, em 1944, o pediatra austríaco Hans Asperger descrevia uma patologia semelhante, mas em rapazes com linguagem normal, embora com o mesmo compromisso da interacção social e estereotipias. Tal problemática, recuperada em 1981 por Lorna Wing, passou a ser designada síndroma de Asperger.

Em 2000, Gilberg e Coleman consideraram que o autismo não constitui uma doença mas sim uma síndroma, ou seja um conjunto de sinais e sintomas. Actualmente, admite-se que se trata duma perturbação do desenvolvimento cerebral com uma forte base genética e acentuada heterogeneidade, podendo apresentar desde sintomas ligeiros a alterações graves, sendo as formas ligeiras mais frequentes que a forma clássica. Tem sido referida a ligação entre o autismo e algumas variantes do gene do transportador da serotonina, admitindo-se que a susceptibilidade genética possa ser potenciada por factores ambientais. Devido à grande variabilidade, qualitativa e quantitativa, dos sintomas, passou a considerar-se a existência de um espectro do autismo.

As perturbações do espectro do autismo ou perturbações globais do desenvolvimento, como eram designadas na classificação Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition – DSM V (Quadro 1), fazem parte de um grande contínuo de perturbações cognitivas e neurocomportamentais com os mesmos critérios basilares acima referidos: alteração da interacção social, da comunicação (verbal e não verbal), e padrões de comportamento, interesse e actividades repetitivas, restritas ou estereotipadas.

QUADRO 1 – Classificação das perturbações globais do desenvolvimento segundo a DSM-V

1. Perturbação Autística

2. Perturbação de Rett

3. Perturbação Desintegrativa da Segunda Infância (síndroma de Heller)

4. Perturbação de Asperger

5. Perturbação Global do Desenvolvimento – sem outra especificação (PGD-SOE)

Com a revisão do DSM V em 2013, foram introduzidas alterações significativas:

  • A primeira grande alteração foi a fusão dos critérios de interacção social com os da comunicação, uma vez que há uma forte ligação entre estes critérios.
    Nesta perspectiva, passou a haver uma díade que inclui, por um lado, critérios de alterações na comunicação social recíproca e interacção social e, por outro, os padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou actividades, sendo nestes incluídos os comportamentos sensoriais, os quais eram antes omissos (ver Quadro 2). Esta fusão de critérios fez com que o conceito de “síndroma” de Asperger se tornasse obsoleto. Por outro lado, a designada “síndroma” de Rett passou a considerar-se um diagnóstico etiológico (genético) e não relacionado com o neurodesenvolvimento.
    Assim, a designação “perturbação do espectro do autismo” passou a incluir as seguintes situações: autismo infantil precoce, autismo de Kanner, autismo de elevado funcionamento, perturbação global do desenvolvimento sem outra especificação, perturbação desintegrativa da segunda infância e perturbação de Asperger. 
  • A segunda modificação da DSM V diz respeito à introdução de determinados aspectos que permitem especificar a gravidade.
    Com efeito, em relação aos dois domínios (comunicação social e comportamentos restritos e repetitivos), consoante a sua intensidade e aparecimento em vários contextos, e a necessidade de maior ou menor suporte de intervenção, passaram a ser considerados os seguintes níveis de gravidade: – ligeiro (1 – requerendo suporte); – moderado (2 – requerendo suporte substancial); ou – grave (3 – requerendo suporte muito substancial).
    Desta forma, consegue obter-se uma melhor noção do perfil de competências e de dificuldades do indivíduo para além do diagnóstico, o que não se conseguia com a classificação anterior.

QUADRO 2 – Critérios de diagnóstico de perturbação do espectro do autismo, segundo a DSM 5

A. Défices persistentes na comunicação social e interacção social, em múltiplos contextos, manifestado pelos seguintes, actualmente ou no passado:

  1. Défices na reciprocidade social-emocional, variando e uma aproximação social anormal e fracasso na conversação normal; a uma partilha reduzida de interesses emoções ou afecto; até fracasso em iniciar ou responder a interacções sociais.
  2. Défices nos comportamentos comunicativos não verbais usados para a interacção social (não integração comunicação verbal e não-verbal, anomalias do contacto ocular, dificuldades no uso e compreensão do gesto ou linguagem corporal a total falta de expressões faciais e de comunicação não verbal).
  3. Défices em desenvolver e manter relacionamentos e ajustar-se aos diferentes contextos sociais; dificuldade em partilhar jogos imaginativos ou fazer amigos; ausência de interesse nos pares.

B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e actividades, que se manifestam por, pelo menos, duas das seguintes características, actualmente ou no passado:

  1. Movimentos motores, uso de objectos ou fala, estereotipados ou repetitivos.
  2. Insistência na monotonia, aderência inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal.
  3. Interesses altamente restritos e fixos, anormais na intensidade ou foco.
  4. Hiper ou hiporreactividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente.
C. Os sintomas têm de estar presentes no início do período de desenvolvimento (mas podem só manifestar-se quando as exigências sociais excedem as capacidades ou podem ser mascaradas por estratégias aprendidas).
D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no desempenho social ou ocupacional.
E. Estas perturbações não são explicadas por incapacidade intelectual ou atraso global do desenvolvimento.
  • A terceira modificação foi a introdução de outros critérios ou parâmetros para especificar a gravidade.
    Neste contexto, deve especificar-se a existência de comorbilidade como por exemplo, com ou sem défice intelectual, com ou sem perturbação da linguagem, com ou sem perturbação do comportamento adaptativo, com ou sem perturbação da coordenação motora.
    Esta alteração constitui uma chamada de atenção para:
    • A importância e elevada prevalência da comorbilidade (com elevada prevalência), muitas vezes o principal problema obrigando à necessidade de focar de modo especial a intervenção;
    • A necessidade de se especificar se existe alguma condição médica, genética ou ambiental conhecida, designadamente, perturbação de Rett, trissomia 21, epilepsia, perturbação mental ou comportamental.

Aspectos epidemiológicos

Estudos internacionais estimavam uma prevalência do autismo clássico oscilando entre 1 e 16/10.000, sendo que os valores têm aumentado nos últimos 35 anos, com predomínio no sexo masculino numa relação de 4/1. Em estudos recentes estima-se que 1-2% das crianças terão diagnóstico de perturbação do espectro do autismo.

O aumento da prevalência em relação a estudos anteriores resulta de uma combinação de factores, tais como: inclusão de formas mais ligeiras no espectro, maior informação e capacidade de diagnóstico, e uma possível subida real devida a influências ambientais.

Não foi, porém, encontrada qualquer relação de causalidade entre o autismo e a vacina contra o sarampo, papeira e rubéola (VASPR).

Os estudos em gémeos mostraram uma elevada concordância em gémeos monozigóticos e não em dizigóticos, sugerindo que se trata de uma doença com uma forte influência genética. Os irmãos têm um risco alto de recorrência; de acordo com estudos recentes pode atingir a cifra de 25%.

Estudos epidemiológicos mostraram que factores ambientais como a infecção por rubéola, exposição a talidomida ou a ácido valpróico no primeiro trimestre da gravidez, ou a fenilcetonúria não tratada, comportam alto risco de perturbação do espectro do autismo. Idem, no que respeita a outros factores: prematuridade, gemelaridade ou multiparidade, e idade materna ou paterna avançada aquando da gestação.

A comparticipação de doenças genéticas como factores de risco (como a esclerose tuberosa, síndroma do X frágil, neurofibromatose, Angelman, Rett ou outras doenças metabólicas mais raras) traduz-se por valores inferiores a 10% dos casos associados a perturbação autística.

Os estudos sugerem que se trata de uma patologia genética, provavelmente multigénica, sendo de referir que factores epigenéticos e a exposição a modificadores ambientais poderão contribuir para a grande variabilidade de expressão fenotípica.

Com o avanço das técnicas de genética e o uso de microarrays, sabe-se que quase todos os cromossomas podem ter polimorfismos que se podem relacionar com o autismo. Sabe-se efectivamente que múltiplas regiões genéticas (cromossomas 16p11.2, 15q11.2) e variantes de genes (por deleções, duplicações, inversões, etc.) interferem negativamente no crescimento neuronal, sináptico e na mielinização.

No maior estudo epidemiológico realizado em Portugal por Guiomar Oliveira e colaboradores, divulgado em 2005, a prevalência de perturbações do espectro do autismo foi de 0,92/1.000 com predomínio no sexo masculino (75%).

Uma vez que se trata de uma patologia definida por sintomas comportamentais, e com um peso negativo importante para os pais, tem havido uma dificuldade em fazer um diagnóstico precoce, da parte dos técnicos, por receio, sobretudo, de diagnóstico incorrecto. Assim, o diagnóstico de autismo geralmente não é colocado antes dos 3 anos, idade em que os problemas de socialização ou da linguagem (comunicação) se tornam mais flagrantes.

No estudo português atrás referido 93% dos casos foram identificados até aos 2 anos de idade.

A criança em risco

Em cada consulta de saúde infantil, é importante que os clínicos identifiquem as crianças em risco de desenvolvimento atípico, usando métodos de rastreio adequados e, inquirindo sobre a comunicação, o comportamento e a interacção social.

É importante vigiar se a criança tem contacto ocular alterado; pouco interesse pelos pares; isolamento; não responde ao nome (8-10 meses); não segue o apontar dos pais (10-12 meses); não usa gesto para apontar ou acenar (proto imperativo 12-14 meses) ou mostrar (proto declarativo 14-16 meses); não tem jogo interativo; tem pouca imitação e pouco jogo simbólico; não palra aos 12 meses; não diz palavras isoladas aos 16 meses; não junta palavras (espontâneo e não ecolálico) aos 24 meses.

Todos estes sinais são indicadores de possível patologia da interacção e comunicação. Se, por outro lado, se verificar perda de competências sociais ou da linguagem em qualquer idade, deve ser feito um rastreio específico do autismo (usando testes como a Checklist for Autism in Toddlers –Modified – M-CHAT) e um rastreio audiológico para excluir défice auditivo.

O M-CHAT foi recentemente incluído na última revisão do programa de vigilância de saúde infantil e juvenil da Direcção Geral da Saúde, havendo a indicação para ser aplicado em todas as consultas de rotina dos 18 meses devido à sua elevada sensibilidade, salientando-se a sua menor especificidade. Caso o referido rastreio detecte alterações, a criança deve ser encaminhada para um especialista na área do neurodesenvolvimento, uma vez que poderá estar em causa uma perturbação do espectro do autismo ou outra perturbação da referida área. Nesta perspectiva, o paciente deverá ser alvo, o mais cedo possível, de uma avaliação multidisciplinar para definição de diagnóstico e apoio de intervenção precoce.

 Os irmãos deverão ser alvo de uma vigilância rigorosa uma vez que o risco de repetição é cerca de 50 vezes superior ao da população em geral.

Manifestações clínicas

O diagnóstico de perturbação autística (cujos critérios estão especificados no Quadro 2) não é fácil e deve ser feito por uma equipa multidisciplinar, com recolha de informação de vários contextos (casa, escola, actividades de tempos livres, etc.) e sob várias formas (inquéritos, questionários específicos, escalas específicas e testes), de forma a poder ser definido o perfil de desenvolvimento, com níveis de gravidade e atendendo a parâmetros específicos incluindo patologia associada e comorbilidades. O objectivo é, através de determinadas manifestações clínicas, planear uma intervenção de acordo com as potencialidades e dificuldades da criança.

A alteração da interacção social e das competências sociais constitui a base das perturbações do espectro do autismo. Pode incluir alteração do contacto visual, isolamento, não resposta à chamada pelo nome, não uso do gesto para apontar ou mostrar, não ter jogo interactivo, e não manifestação de interesse pelos seus pares.

A criança com autismo tem, frequentemente, alterações da linguagem expressiva, que podem ir do mutismo à fluência verbal, embora com perturbação da semântica e pragmática. O atraso na fala e alguns problemas de comportamentos bizarros ou atípicos constituem preocupações frequentes dos pais nas crianças entre 1 e 3 anos.

As perturbações da motricidade fina e grosseira são também frequentes, associando-se a maneirismos e estereotipias motoras.

O processamento sensorial pode estar alterado provocando respostas atípicas aos diferentes estímulos, com hiper ou hiporreactividade. Há dificuldades acrescidas nas actividades que requerem processos conceptuais complexos, raciocínio e interpretação, integração e abstracção, planeamento e flexibilidade, estando mais conservadas as competências que dependem de memória e repetição automática ou de processos perceptuais.

Diagnóstico diferencial

Na avaliação da criança com perturbação do espectro do autismo é importante ter em conta a presença de possíveis comorbilidades já antes referidas e, também o facto de outras patologias poderem mimetizar autismo (designadamente, nos casos de crianças com perturbação da linguagem de tipo misto, sobretudo se existir hiperactividade associada; ou de crianças com mutismo electivo, timidez excessiva, visão deficiente, surdez, incapacidade intelectual e estereotipias).

A avaliação implica larga experiência da equipa multidisciplinar uma vez que o diagnóstico é clínico. Se possível, deve ser complementada com instrumentos diagnósticos específicos.

Os instrumentos de diagnóstico podem ser de dois grupos: – questionários ou entrevistas; e – escalas de observação directa. Ambos os métodos se complementam.

Citam-se alguns dos instrumentos mais utilizados: a Gilliam Autism Rating Scale, a Parent Interview for Autism, o Pervasive Developmental Disorders Screening Test – Stage 3, a Autism Diagnostic Interview – Revised, a Childhood Autism Rating Scale, a Screening Tool for Autism in Two-Years-Old, ou o Autism Diagnostic Observation Schedule – Generic.

Para definir o perfil funcional e “especificadores” (segundo o DSM V) podem ainda ser necessárias avaliações mais específicas da linguagem, funções cognitivas e do comportamento adaptativo. Posteriormente, deve haver um cuidado de observação continuada e reavaliação, pelo menos com periodicidade anual.

A maioria das crianças com doença do espectro do autismo idiopática evidencia um exame físico normal. No entanto, o autismo poderá coexistir com sintomatologia neurológica decorrente de disfunção cerebral difusa ou de imaturidade neurológica.

São exemplos de tal comorbilidade o défice intelectual e outros défices cognitivos, a epilepsia, problemas auditivos, visuais, sensoriomotores, perturbações do sono, perturbações do foro psiquiátrico (tiques, hiperactividade e défice de atenção) e sinais dismórficos. É assim importante a realização de uma história pessoal e familiar cuidada, incluindo exame objectivo pormenorizado. De notar que nos casos cursando com perturbação da linguagem, deve sempre ser excluída a presença de hipoacusia.

De referir igualmente a relação possível entre doença celíaca e autismo, não consensual para alguns investigadores. Assim, o recurso a determinados exames complementares deve ser ponderado caso a caso, designadamente na perspectiva do diagnóstico diferencial.

Poderá ser recomendado um estudo genético, nomeadamente cariótipo de alta resolução e análise de ADN para detecção de síndroma do X Frágil nas crianças com défice cognitivo, antecedentes familiares relevantes ou dismorfias. Poderá ainda ser indicado estudo genético mais detalhado através do recurso a microarrays ou estudo de polimorfismos.

A investigação metabólica deve ser feita em função dos achados clínicos, sobretudo nos casos de letargia, vómitos cíclicos, convulsões precoces, dismorfias, ou défice cognitivo. Em estudos recentes verificou-se elevação dos valores séricos do glutamato em comparação com grupo populacional de controlo.

O electroencefalograma não deve ser feito por rotina; contudo, está indicado se houver convulsões, suspeita de convulsões subclínicas ou história de regressão do desenvolvimento.

Embora possa verificar-se macrocefalia nos casos de autismo, não está provado cientificamente o benefício do recurso por rotina à neuroimagiologia. Também não se justifica a detecção sistemática de determinadas situações clínicas (por exemplo celiaquia, atopia, doenças mitocondriais) e/ou de determinados exames complementares (por exemplo, do foro imunológico, neuroquímico, nutricional, endocrinológico, etc.).

Intervenção

É consensual que o início precoce de intervenção é fundamental para que se possa aproveitar o período de maior plasticidade cerebral. A maioria dos programas de intervenção recomendados assenta em fundamentos educativos, cognitivos e comportamentais, sendo alguns levados a cabo em regime de inclusão (na sala de aula), e outros em trabalho individual.

Segundo a literatura científica recente são consideradas mais aceites as seguintes estratégias:

  1. A melhoria do nível funcional global da criança, envolvendo-a num programa apropriado de intervenção educativa que promova o desenvolvimento das competências comunicativas, sociais, adaptativas, comportamentais e académicas (como por exemplo o programa TEACCH ou Treatment and education of autistic and related communications of handicapped children, ou o modelo Denver);
  2. A redução dos comportamentos desajustados e repetitivos através de intervenção comportamental intensiva (como por exemplo o ABA ou applied behavioural analysis) ou através de controlo farmacológico, nomeadamente com antidepressivos como a fluoxetina ou neurolépticos como a risperidona;
  3. Apoio à família no sentido de melhorar a relação com a criança (como por exemplo no programa Floortime) e ensinar a gerir as crises e conflitos, fornecendo informação e fomentando apoio de grupos de pais.

Em suma, o diagnóstico precoce associado a uma intervenção precoce, (idealmente pelos 2 ou 3 anos de idade) consistente e intensiva e com ensino entre 15-40 horas/semanais, educacional e comportamental, tem contribuído para melhorar o prognóstico. Esta intervenção deverá, sempre que possível, ocorrer em ambientes naturais e em regime de inclusão em escolas regulares com crianças com desenvolvimento adequado à idade, para uma mais efectiva promoção das competências sociais.

De notar que tem havido um número crescente de terapias alternativas não provadas cientificamente. São exemplos o treino de integração auditiva ou a comunicação facilitada, modificações dietéticas, a integração sensorial, recurso a vários tipos de fármacos ou estimulação pelo contacto com animais. Como curiosidade citam-se alguns exemplos de medidas referidas na literatura médica como terapêuticas alternativas, sem comprovação de eficácia através de estudos científicos validados: melatonina, secretina, ácidos gordos ómega 3, dieta sem glúten e sem caseína, vitamina B6, probióticos, oxigénio hiperbárico, etc..

Prognóstico

Dada a grande heterogeneidade da população com perturbação do espectro do autismo, o prognóstico é igualmente variável. Dum modo geral pode afirmar-se que tem vindo a melhorar, o que é explicável pelo diagnóstico e intervenção precoces, sendo a intervenção cada vez mais alargada a crianças com formas ligeiras, anteriormente não diagnosticadas.

O prognóstico é francamente mais favorável nos indivíduos com: – QI acima de 60-65 na infância; e que – adquirem linguagem funcional no início da idade escolar.

De salientar que actualmente se percebe que o prognóstico está dependente da presença de comorbilidades, nomeadamente cognitivas e de linguagem. Nestes casos, é fundamental que estas áreas sejam um dos alvos principais da intervenção já que serão determinantes do futuro da criança.

Nas situações em que há uma regressão ou perda de competências, e comorbilidades importantes tais como epilepsia, o prognóstico é naturalmente mais reservado.

A caminho da terceira década do século XXI, a evolução é muito mais favorável do que nos primórdios, no tempo de Kanner, em que se estimava que apenas 50% das crianças viria a ter autonomia pessoal e comunitária. Hoje em dia, de facto, o panorama é mais favorável, embora a situação analisada requeira que a investigação científica continue.

BIBLIOGRAFIA

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SÍNDROMA DA APNEIA OBSTRUTIVA DO SONO

Definição

A Síndroma da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) é uma perturbação respiratória caracterizada por episódios recorrentes de obstrução parcial prolongada e/ou obstrução completa intermitente das vias aéreas superiores perturbando a ventilação normal durante o sono e os padrões normais deste. Tais episódios estão geralmente associados a hipoxémia e, por vezes, hipercápnia e a fragmentação do sono com “microdespertares” (ver adiante).

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A SAOS ocorre em todas as idades pediátricas, desde o recém-nascido ao adolescente, sendo mais prevalente na idade pré-escolar (2 a 6 anos), provavelmente pela relação aumentada entre as vegetações adenóides/amígdalas e o calibre das vias aéreas superiores (VAS) verificada nesta faixa etária. Estima-se que em Portugal existam cerca de 20.000 a 45.000 crianças e adolescentes com SAOS, o que transforma esta patologia num problema de grande magnitude, quer pela elevada prevalência, quer pelas consequências para a criança e para o futuro adulto, caso não surja, em tempo oportuno, a terapêutica adequada ou uma eventual resolução espontânea.

Fisiopatologia

Como resultado das diferenças de pressão geradas durante as fases da respiração, as vias aéreas extratorácicas (nasofaringe, laringe e traqueia) têm tendência ao colapso inspiratório e obstrução. Em condições fisiológicas existem forças de sentido contrário que levam à dilatação dessa via aérea, impedido o colapso. Essas forças dilatadoras são geradas por cerca de 40 músculos que fixam e puxam para diante, quer a língua (por ex: genioglosso), quer a laringe (por ex: aparelho muscular e osso hióide).

Com frequência existem causas estruturais (vegetações adenóides e amígdalas palatinas hipertrofiadas, obesidade, macroglossia, etc.) e/ou funcionais (doenças neuromusculares com hipotonia, incoordenação neuromuscular local, hipossensibilidade dos centros respiratórios do lactente, fases do sono, etc.) que, actuando sinergicamente e por múltiplos mecanismos, acabam por potenciar a vertente colapsante.

Neste caso, a obstrução instala-se, a resistência intraluminal aumenta desproporcionadamente (Lei de Laplace), o fluxo aéreo torna-se mais turbulento, os tecidos moles envolventes vibram e produz-se o característico ruído de obstrução parcial das vias aérea superiores – o “roncar” ou “ressonar” (snoring).

O grau de obstrução das vias aéreas superiores, síndroma designada por obstructive sleep disorder breathing dos autores ingleses pode situar-se entre dois extremos: uma expressão de gravidade mínima que cursa com obstrução ligeira sem outras repercussões aparentes – o “ressonar primário”, roncopatia primária, já referida noutro capítulo; e, no extremo oposto, a obstrução completa intermitente com apneia e repercussões multissistémicas graves – a SAOS.

Entre os dois extremos existe um espectro de situações clínicas resultantes de graus diversos de obstrução a que correspondem nosologias diversas, como, por exemplo, síndroma de resistência aumentada das vias aéreas superiores (SRAVAS) e síndroma de hipopneia obstrutiva do sono (SHOS).

FIGURA 1 – Fisiopatologia da SAOS

A Figura 1 procura representar o ciclo fisiopatológico da SAOS. Após o adormecer inicial, estabelece-se normal e progressiva hipotonia das VAS que, nestes casos, condiciona a sua obstrução e a ocorrência de redução significativa (hipopneia) ou paragem duradoura do fluxo ventilatório (apneia). 

A hipoxémia e retenção de CO2 resultantes são estímulos efectivos para o centro respiratório, levando a um novo aumento da actividade dos músculos dilatadores da faringe que conseguem abrir o lume e, por vezes, tornar o sono mais superficial (microdespertar, despertar; arousal), recuperação do tono das VAS, desobstrução, retoma do fluxo ventilatório e normalização do PH e gases no sangue. Este ciclo repete-se a ritmos variáveis que podem chegar até dezenas de apneias/hora (índice de apneia).

Quanto maior o índice de apneia, mais vezes o sono profundo é interrompido por “despertares”. Tal fenómeno leva à fragmentação do sono, reduzindo a duração das fases de sono reparador.

SAOS na criança e no adulto

Apesar de muitos aspectos da fisiopatologia da SAOS serem comuns ao adulto e à criança, a SAOS na criança não é uma forma infantil da SAOS do adulto. De facto, os factores de risco, manifestações clínicas e complicações, critérios de diagnóstico e prioridades terapêuticas são muito distintos entre as duas situações. O Quadro 1 realça este aspecto comparando algumas das características da SAOS na criança e no adulto.

Factores predisponentes

Deve ter-se em conta que existem algumas situações predisponentes de SAOS; daí a importância da sua identificação para o rastreio da SAOS.
O Quadro 2 dá exemplos de algumas das situações que requerem particular atenção.

QUADRO 1 – SAOS na criança e SAOS no adulto

Abreviatura: CPAP – Continuous Positive Airway Pressure ou pressão positiva contínua nas vias aéreas

Sexo

SAOS no Adulto

Sexo M/ Sexo F: 10/1

SAOS na Criança

Sexo M/ Sexo F: 1/1

Respiração diurnaPouco comumComum
ObesidadeComumPouco comum
Má progressão ponderal/emagrecimentoNãoComum
Alterações neurocomportamentaisAlterações neurocognitivas e diminuição da concentraçãoHiperactividade, irritabilidade, atraso do desenvolvimento
Excessiva sonolência diurnaSinal majorPouco comum
Factor etiológico mais comumObesidadeHipertrofia das vegetações adenóides
TratamentoUvulopalatofaringoplastiaAmígdalo-adenoidectomia
 CPAPCPAP (raro; casos seleccionados)

QUADRO 2 – Factores predisponentes de SAOS

*risco major

I – Excesso ponderal e obesidade.

II – Estreitamento ou compressão das vias aéreas; disfunção neuromuscular; hipertrofia das vegetações adenóides e amígdalas palatinas*; disfunção dos músculos das vias aéreas (doenças neuromusculares); hipotiroidismo; macroglossia; micrognatia*; retrognatia; nasofaringe estreita*; pólipos nasais; drepanocitose; tumor laríngeo; obesidade*; status pós reparação de fenda palatina; laringomalácia; etc..

III – Doenças neurológicas; disfunção neurológica de qualquer origem; paralisia cerebral; doenças neuromusculares*; defeitos do tronco cerebral (anomalia de Arnold-Chiari; hidrocefalia; mielomeningocele; distrofia miotónica; etc.).
IV – Supressão do controle das vias aéreas (álcool; anestesia; narcóticos; sedativos).
V – Anomalias genéticas e defeitos congénitos com hipoplasia do maciço facial (acondroplasia; síndroma de Down*; síndroma de Apert; artrogripose; síndroma de Beckwith-Wiedemann; doença de Crouzon; síndroma de Marfan; síndroma de Pierre-Robin*; mucopolissacaridoses; etc.).

Manifestações clínicas

A história clínica é um instrumento fundamental para a abordagem de uma criança com suspeita de SAOS (ou qualquer outra entidade do espectro da obstrução das vias aéreas superiores).

Pela anamnese há que pesquisar um conjunto de sintomas que, embora inespecíficos, devem ser valorizados no âmbito do diagnóstico de uma eventual SAOS:

  • Sintomas nocturnos/durante o sono;
  • Ressonar: especialmente se crónico e/ou intenso: manifestação major cuja pesquisa deve fazer parte da anamnese nas consultas de rotina da criança de qualquer idade;
  • Esforço respiratório aumentado: graus diversos de taquipneia, adejo nasal, retracção inspiratória, movimento paradoxal tóraco-abdominal, cianose;
  • Episódios de apneia;
  • Estertor: no retomar da ventilação após apneia;
  • Posição particular a dormir (ex: extensão do pescoço);
  • Sono muito agitado;
  • Sudação profusa;
  • Acordar frequente e parassónias (terrores nocturnos, pesadelos);
  • Dificuldade ao acordar e confusão;
  • Cefaleia;
  • Boca seca;
  • Obstrução nasal e/ou respiração bucal;
  • Náusea e vómito frequentes, dificuldade de deglutição, anorexia.

Há que ter em conta as comorbilidades que, a longo prazo, se podem associar a SAOS, e se podem tornar parcialmente reversíveis, tais como:

  • Desregulação neurocomportamental (várias formas de hiperactividade e défice de atenção, mau humor, impulsividade, agressividade, enurese);
  • Perturbações neurocognitivas (problemas escolares, dificuldades de memória, concentração e aprendizagem);
  • Alterações cardiovasculares;
  • Atraso de crescimento;
  • Depressão e sonolência diurna marcadas, comprometendo a qualidade de vida;
  • Utilização elevada dos serviços de saúde.

Ao realizar o exame objectivo há que dar especial atenção aos seguintes aspectos:

  • Exame geral na vigília é “normal”na maioria dos casos – o que não exclui o diagnóstico;
  • Índice de massa corporal aumentado ou atraso de crescimento;
  • Fácies adenoideia;
  • Nariz, septo e fossas nasais (rinite, pólipos, desvios);
  • Orofaringe (volume das adenóides e amígdalas), anomalias do palato e úvula;
  • Estruturas craniofaciais: micrognatia, hipoplasia do andar médio, hipoplasia mandibular;
  • Sistema cardiovascular (pressão arterial, sinais de hipertrofia do ventrículo direito);
  • Atraso de desenvolvimento, restrição de crescimento;
  • Manifestações de síndromas do neurodesenvolvimento (por ex.: síndroma de Down), anomalias do tórax, cardíacas ou neurológicas).

Exames complementares

Os exames complementares enquadram-se em dois grandes grupos, sendo dirigidos à avaliação de:

1. Obstrução significativa e parâmetros do sono

Polissonografia nocturna (PSN)

Constitui o método “padrão de “ouro” ou de excelência (gold standard) para o diagnóstico. Requerendo tecnologia e profissionais diferenciados assim como equipamentos sofisticados, implica algum incómodo para a criança e acompanhante. A polissonografia é cara e de acesso difícil aos escassos laboratórios de sono existentes. A execução e interpretação dos resultados é mais difícil na criança.

Trata-se do único exame susceptível de fornecer indicações simultâneas e quantificadas sobre importantes parâmetros biológicos durante o sono, permitindo obter índices funcionais indispensáveis à completa classificação e avaliação da situação (índice de apneia, índice de hipopneia, índice de despertares, eficácia do sono, estádios do sono, tipos de apneia – central, obstrutiva, mista), e dar indicações quanto à terapêutica mais adequada.

Técnicas “abreviadas” ou de “rastreio”

Tais técnicas incluem, designadamente PSN parcial, oximetria de pulso nocturna contínua ou de uma sesta, gravação áudio do ressonar, videograma do sono, registo dos movimentos dos membros (actigrafia), inquéritos do sono, várias combinações de técnicas, etc..

Estas técnicas abreviadas são úteis se os resultados forem positivos (valor preditivo positivo: oximetria de pulso isoladamente: 70 a 100%; videograma do sono isoladamente: 83%; audiograma do sono utilizado isoladamente: 50-75%). O valor preditivo negativo é, pelo contrário, muito fraco. De salientar que um resultado negativo em criança clinicamente suspeita de SAOS deve ser sempre confirmado por PSN.

2. Repercussões sistémicas da perturbação ventilatória

Para avaliar a repercussão sistémica da perturbação ventilatória, está indicado um conjunto de exames complementares essenciais tais como: hemograma (para detecção de eventual policitémia), estudo do pH e gases no sangue (para avaliar as eventuais alterações da relação ventilação/perfusão V/P), electrocardiograma (ECG), ecocardiograma/doppler, etc., em função do contexto clínico e, nomeadamente, da identificação de factores predisponentes.

Face à escassez de meios humanos e de equipamento para responder em tempo útil às crianças com suspeita de patologia do sono, há que estabelecer prioridades nas indicações para realização de uma investigação clínico-laboratorial exaustiva, nomeadamente de PSN.

Assim, devem ser prioritariamente encaminhadas para um centro com experiência no tratamento de perturbações respiratórias do sono as crianças que ressonam e nas quais se verifique um ou mais dos critérios referidos no Quadro 3.

QUADRO 3 – Critérios prioritários de encaminhamento para centro especializado (suspeita de SAOS)

1 – Descrição pelos pais de pausas e/ou estertores durante o sono
2 – Sonolência diurna excessiva ou alteração neurocomportamental
3 – Redução do rendimento escolar
4 – Hipertrofia das adenóides
5 – Infecções recorrentes das vias aéreas superiores
6 – Deficiente progressão ponderal

Em suma, no final da avaliação de uma criança que ressona havendo suspeita de SAOS, o médico deve estar em condições de identificar:

a) Uma de duas situações “extremas”:

  • Ronco primário, se não existirem outras manifestações clínicas de perturbação ventilatória no sono, não existirem episódios de défice de saturação em O2, de apneia ou de hipopneia significativa. Trata-se de diagnóstico de exclusão;
  • SAOS se, pelo contrário, as referidas perturbações incluírem episódios de hipopneia e apneia em número que cumpram os critérios de SAOS.

b) ou situações “intermédias” com manifestações na fronteira das duas anteriores:

  • SRAVAS (síndroma de resistência aumentada das VAS), em que existe clínica de obstrução e défice de saturações em O2 nocturnas, mas índices de apneia e/ou hipopneia normais;
  • SHOS (síndroma de hipopneia obstrutiva do sono), com índices de hipopneia acima do limite superior do normal, mas sem apneias significativas.

À medida que maior número de crianças que ressonam forem sujeitas a avaliação clínico-laboratorial, a proporção das situações incluídas em b) será cada vez maior.

Tratamento

O tratamento da SAOS deve ser o tratamento das situações ou causas predisponentes, nomeadamente das causas obstrutivas das VAS. As medidas terapêuticas mais comuns são:

1. Amigdalo-adenoidectomia

Resultando em 75% a 100% de curas, é o tratamento de primeira linha em crianças com hipertrofia adenoamigdalina e ausência de contra-indicações para cirurgia. Algumas crianças (Quadro 4) com SAOS, pelo risco elevado de complicações pós-operatórias (edema das VAS, edema pulmonar, pneumotórax, morte, etc.) devem ser submetidas a plano anestésico-cirúrgico especial e a vigilância pós-operatória prolongada até ao dia seguinte, com monitorização por oximetria de pulso.

QUADRO 4 – Factores de risco pós-operatório em crianças com SAOS submetidas a adenoamigdalectomia

• Idade inferior a 2-3 anos

• SAOS grave detectada por PSN (índice de apneia/Hipopneia >10/h; Saturação em O2 <70%)

• Complicações cardíacas da SAOS

• Atraso de crescimento/má progressão ponderal

• Obesidade

• História de prematuridade

• Infecção respiratória recente

• Anomalias craniofaciais

• Hipotonia muscular

 

2. Ventilação por pressão positiva contínua (CPAP ou BiPAP)

Permite o controlo da situação em 85% a 90% dos casos. A evolução tecnológica dos aparelhos na última década permitindo o seu uso domiciliário seguro a custos comportáveis: o aparecimento de máscaras nasais cada vez mais confortáveis e adaptáveis às dimensões faciais da criança com o crescimento, vieram transformar esta forma de ventilação não invasiva numa opção eficaz no tratamento da SAOS. É utilizada, quer em primeira linha (doenças médicas, patologia neuromuscular, dismorfias faciais, obesidade, contra-indicações para cirurgia, persistência de SAOS após intervenção cirúrgica etc.), quer como alternativa à cirurgia ou à ventilação por traqueostomia, quer ainda de forma transitória (“tratamento em ponte”) quando é necessária uma estabilização clínica antes da intervenção cirúrgica. Persistem alguns problemas relacionados com a pressão local da máscara nasal e respectivas fitas suspensoras e com a secura/congestão da mucosa nasal e ocular; contudo, dum modo geral, a tolerância é boa.

3. Outras terapêuticas e medidas coadjuvantes

Técnicas como uvulopalatofaringoplastia, técnicas de ortodôncia e outras técnicas cirúrgicas, raramente utilizadas na criança, têm interesse muito secundário. Poderão ser adoptadas as seguintes: posicionamento durante o sono com alívio da obstrução; emagrecimento se houver excesso ponderal; redução de medicamentos depressores do sistema nervoso; corticoterapia inalada; antibioticoterapia se se verificar infecção crónica local, etc..

Cabe referir, no entanto, que apesar dos recentes avanços na investigação e experiência adquirida nesta área da pediatria, ainda não há consenso sobre vários aspectos da SAOS na criança, tais como critérios de diagnóstico mais adequados e terapêutica ideal.

GLOSSÁRIO

Apneia > Critérios clínicos – ausência de fluxo aéreo bucal ou nasal; tipo central (ausência de esforço respiratório); tipo obstrutivo (presença de esforço respiratório continuado, devido a colapso das vias aéreas superiores); ou tipo misto (apneia central e obstrutiva ocorrendo sequencialmente sem que haja respiração normal entre os dois eventos).
Critérios polissonográficos – tipo obstrutivo (ausência de fluxo oronasal na presença de esforço respiratório contínuo, durando mais de 2 ciclos respiratórios; geralmente, mas não sempre, associado a hipoxémia); tipo central (cessação de esforço respiratório que dura 2 ou mais ciclos respiratórios).

Dessaturação (ou défice de saturação da Hb em O2) > descida da SpO2 ≥4%.

Hipoventilação > Critérios clínicos – redução da ventilação pulmonar abaixo de um mínimo que assegure valores normais de O2 e CO2 sanguíneos: tipo obstrutivo (obstrução alta parcial levando a ventilação pulmonar inadequada com centro respiratório funcionante); ou tipo não-obstrutivo, (estado de depressão do centro respiratório, doença neuromuscular ou doença pulmonar restritiva).

Índice de apneia/hipopneia > nº de episódios de apneia/ hipopneia/hora.

Ressonar habitual > ressonar em todas as noites ou na maioria das noites (10% de todas as crianças).

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ENURESE NOCTURNA E ENCOPRESE

Introdução

O controle dos esfíncteres completa-se por volta dos 5 anos, de modo sequencial: anal diurno → anal nocturno → vesical diurno → vesical nocturno. No caso do esfíncter anal, na maioria das crianças o respectivo controle verifica-se entre os 2 anos e 2 anos e meio. Não ocorrendo a sequência descrita, dum modo genérico fala-se em perturbações da eliminação. Tal noção tem implicações práticas no que respeita à actuação prática.

1. ENURESE NOCTURNA

Definição, manifestações clínicas e aspectos epidemiológicos

Antes de abordar esta entidade clínica, será importante recordar algumas noções básicas sobre terminologia relacionada com o fenómeno da micção.

A enurese, no sentido genérico do termo, define-se como a micção involuntária (incontinência urinária) mais do que duas vezes por semana durante três meses consecutivos em crianças com mais de 5 anos (idade em que, dum modo geral e como foi anteriormente referido, o controle dos esfíncteres deve estar estabelecido).

Considera-se primária (ou funcional) se a criança teve sempre este tipo de comportamento, excluindo-se patologia de base de tipo médico, neurológico, urológico ou mental. A enurese primária representa cerca de 90% de todos os casos.

Considera-se secundária (ou orgânica) se na criança for demonstrada patologia de base, e um período mínimo anterior de 6 meses sem tal sintomatologia, com recorrência ulterior de micções involuntárias; em geral associa-se a situações de sono fragmentado como a síndroma de apneia obstrutiva do sono, sendo mais frequente nas crianças com perturbações do neurodesenvolvimento, incluindo a perturbação de hiperactividade/défice de atenção. A enurese secundária ocorre mais frequentemente entre os 5 e 8 anos de idade.

A enurese nocturna (ou do sono) – mais frequente – ocorre em tal circunstância; a enurese diurna ocorre durante o dia. De referir que a enurese diurna e nocturna podem coexistir.

A enurese do sono, mais frequente na primeira parte do sono e no sexo masculino (relação 3/2), ocorre em cerca de 30% de crianças aos 4 anos, 10% aos 6 anos, 5% aos 10 anos e 3% aos 12 anos. Admite-se hereditariedade de tipo autossómico recessivo, ou dominante com 90% de penetrância; outros estudos identificaram anomalias nos cromossomas 13 e 14.

Estima-se que em cerca de 97% das situações de enurese do sono não existe causa orgânica. Em mais de 50% das situações de enurese nocturna primária existem antecedentes familiares.

Etiopatogénese

A etiopatogénese da enurese do sono não é bem conhecida; admite-se que possa estar em causa atraso na maturação neurofisiológica, bexiga de capacidade limitada e/ou aumento da contractilidade, discrepância entre a secreção de hormona antidiurética (HAD) nocturna e capacidade da bexiga, alteração do ritmo circadiano da HAD, etc.. Frequentemente existe associação com problemas de ordem psicoemocional e social.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da enurese do sono faz-se com situações de enurese secundária (doenças orgânicas, infecção urinária, diabetes mellitus ou insípida, bexiga neurogénica, anomalias do tracto urinário tais como uréter ectópico, obstipação crónica, estresse emocional, etc.). De salientar que em todos os casos de enurese verificada durante o sono importa proceder, como sempre, a um exame clínico completo da criança. A este respeito, importa referir a importância da avaliação psicológica, assim como da detecção de anomalias do foro neurológico e espinhal.

No âmbito da clínica geral ou da pediatria geral será importante a realização dum conjunto de exames complementares mínimos, como determinação da glicémia, creatininémia, análise sumária de urina com especial atenção para detecção de glicosúria, pH e densidade, eventual urinocultura, etc..

Tratamento

Tendo em conta a fisiologia da aprendizagem do controle dos esfíncteres, o tratamento propriamente dito não deverá ter início antes dos 5 anos de idade, sendo importante determinar, caso a caso, o momento a partir do qual a criança tem suficiente maturidade para colaborar no referido tratamento.

Sem estabelecer barreiras temporais estanques, parece ser consensual entre os especialistas em neurodesenvolvimento que até aos 5 anos os “treinos” em modificações de certos hábitos de conduta e certas medidas gerais são de grande utilidade e que o tratamento propriamente dito só deverá ter lugar a partir dos 5 anos:

Sistematizando:

a) Antes dos 5 anos

  • explicar a situação e transmitir confiança;
  • não criticar nem punir a criança, mantendo atitude de ambiente calmo;
  • apoio psicológico para criar auto-estima e tentar lutar contra o medo de ir à casa de banho;
  • nunca dormir com luz uma vez que esta diminui a secreção da hormona antidiurética
  • treino de consciencialização de “bexiga cheia” medindo a quantidade de urina que corresponde a tal sensação;
  • promover o esvaziamento regular da bexiga de 2-2 ou 3-3 horas, aumentando o suprimento em líquidos durante o dia (bebendo líquidos 6-7 vezes por dia), reduzindo-o a partir das 19 horas;
  • evitar bebidas estimulantes da diurese (chá, café, chocolate, bebidas de cola, refrigerantes gaseificados);
  • responsabilizar a criança/jovem pela sua higiene, incumbindo-a/o do registo dos chamados calendários (incluindo o miccional).

b) Depois dos 5 anos

  • continuar a execução das medidas anteriores;
  • retirar as fraldas e, acima dos 8 anos, retirar também o resguardo;
  • incutir a rotina de esvaziamento da bexiga antes de ir para a cama à noite;
  • entre os 5-7 anos preconiza-se, para além das medidas gerais anteriormente descritas, a utilização de alarmes e fármacos como desmopressina (DDAVP), em geral sob a forma de spray nasal (10-40 mcg/dia), liofilizado por via oral (0,06-012 mg/dia), ou imipramina (para aumentar a capacidade da bexiga) na dose máxima de 2,5 mg/kg ao deitar;
  • estratégia de incentivo psicológico que poderá ser ”premiada” em função dos resultados; por exemplo, utilização de calendários para registo de certas tarefas ou de objectivos a alcançar, um de cada vez – registo de noites secas, ou de acordar espontaneamente para urinar, ou menor quantidade de perda urinária ou aumento de ingestão de líquidos durante o dia, etc.).

Nos casos de insucesso destas medidas, consultando a lista do diagnóstico diferencial, a criança deverá ser encaminhada para consulta de subespecialidade (neurologia pediátrica, nefro-urologia pediátrica, etc.), em função do contexto clínico para ulteriores exames complementares, nomeadamente imagiológicos.

2. ENCOPRESE

Definição

A encoprese define-se pela expulsão de fezes (voluntária ou involuntária) em local não apropriado, a partir dos 4 anos de idade (normalmente após a aquisição dos mecanismos de controle esfincteriano). À perda involuntária e repetida de fezes, habitualmente pastosas ou semiformadas, sujando continuada ou frequentemente a roupa interior, dá-se também o nome de “soiling” ou encoprese no sentido estrito.

Tal problema merece atenção especial quando ocorrer, pelo menos, uma vez por mês durante 3 meses seguidos.

Etiopatogénese

Na génese e na evolução da encoprese intervêm não só factores fisiológicos (distensão rectal, perda do tono muscular do esfíncter anal e compromisso sensorial), mas também psicológicos (obstipação associada a hábitos “anárquicos” e inadequados no acto da defecação, experiências desagradáveis associadas ao acto de defecar, insucesso nas tentativas aquisição de rotinas “saudáveis” no mesmo acto, entre outros). No que se refere aos factores de estresse citam-se como importantes os relacionados com o ambiente familiar (separação dos pais, ausência prolongada dos mesmos, nascimento de um irmão mais novo ou início das aulas após férias).

Aspectos epidemiológicos

Trata-se duma manifestação clínica frequente nas consultas de pediatria. Surgindo com prevalência em ambos os sexos da ordem de 1-2%, é mais elevada no sexo masculino (relação M/F~8/1).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico baseia-se na história clínica (anamnese e exame objectivo, com especial realce para a palpação abdominal, toque rectal e exame neurológico). Se a encoprese estiver associada a obstipação designa-se por “de retenção”; caso tal não aconteça, chama-se “de não retenção”.

Comorbilidade

Relativamente à patologia associada é importante relevar as seguintes situações: estresse, alterações do neurodesenvolvimento, perturbação obsessiva-compulsiva, perturbação de hiperactividade e défice de atenção, síndromas depressivas, ansiedade, enurese, etc..

Tratamento

Salientando-se que não está indicado o tratamento com psicofármacos, a abordagem é essencialmente de ordem biopsicossocial.

Antes de iniciar o tratamento (o qual implica muita paciência por parte da família e do paciente) importa desmistificar o problema informando os pais/família sobre o funcionamento do tubo digestivo, as consequências da retenção de fezes, e sobre o facto de as manifestações da criança não serem intencionais.

O tratamento psicológico é necessário em contexto de crianças com desequilíbrios emocionais, e de alterações de aprendizagem ou de socialização com outras crianças.

Determinados centros utilizam uma estratégia que combina aprendizagem de técnicas de conduta com tratamentos médicos englobando laxantes e enemas

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PERTURBAÇÕES DO SONO

Definições e importância do problema

O sono é um estado fisiológico, periódico e reversível, caracterizado pela suspensão temporária do estado de consciência com redução da resposta a estímulos ambientais. Tal estado acompanha-se de abrandamento da maior parte das funções orgânicas: diminuição da frequência cardíaca e respiratória, da temperatura, relaxamento muscular, etc..

O registo poligráfico do sono (incluindo canais de electroencefalograma/EEG, oculograma e electromiograma) permite identificar dois grandes tipos de sono que alternam durante a noite:

  • O Sono Não REM (NREM, sigla do inglês no rapid eye movements), em que a actividade eléctrica registada no EEG se torna progressivamente mais sincronizada, com ondas de frequência mais lenta e de maior amplitude;
  • O Sono REM caracterizado por movimentos rápidos dos olhos, actividade eléctrica cortical dessincronizada (ondas de baixa amplitude e alta frequência), hipotonia muscular e actividade onírica.

Os ciclos de sono-vigília são identificáveis na vida fetal, sendo que às 24 semanas é já possível registar um traçado descontínuo. Por volta das 32 semanas, existem padrões correspondentes ao “sono tranquilo” (semelhante ao sono NREM), “sono activo” (semelhante ao sono REM) e vigília, que também estão presentes no recém-nascido.

Os recém-nascidos dormem 10 a 19 horas por dia, por períodos de uma a cinco horas – um padrão de sono ultradiano, adaptado à necessidade de amamentação frequente. Nos meses seguintes, verifica-se uma redução progressiva do tempo total de sono diário, maior concentração do sono no período da noite, diminuição do número de despertares nocturnos, redução da proporção de sono activo/REM e entrada no sono em estádio NREM. Por volta dos 6 meses de idade, o sono NREM pode ser subdividido nos mesmos estádios que no adulto: 4 estádios (1-2-3-4) na classificação de Rechtschaffen e Kales (1968) e, mais recentemente, 3 estádios (N1, N2, N3) na classificação da American Academy of Sleep Medicine (2007). O estádio N1 corresponde ao início da transição vigília-sono, com um baixo limiar para o despertar; o estádio N3 (fases 3 e 4 na classificação anterior) corresponde ao sono profundo ou de ondas lentas.

Durante a noite, os estádios de sono REM e NREM alternam entre si, constituindo ciclos com duração de 45 a 60 minutos nos lactentes que se prolongam até 90-100 minutos na idade escolar e no adulto. Estes ciclos sucedem-se 4 a 6 vezes por noite, podendo haver períodos de despertar nas transições. O sono REM é mais abundante na segunda metade da noite. A proporção deste estádio do sono diminui com a idade, sendo de 50% no recém-nascido e 25 a 30% no adulto.

A expressão “perturbações do sono” ou “distúrbios do sono” (sleep disorders em inglês) tem sido utilizada na literatura com diferentes especificidades. De uma forma mais lata, engloba os hábitos, comportamentos e padrões de sono indesejáveis ou problemáticos das crianças e adolescentes, com uma prevalência estimada de 25 a 50%. Em sentido mais estrito, corresponde a um diagnóstico clínico, com critérios definidos, sendo a International Classification of Sleep Disorders (ICSD) a classificação mais aceite.

A importância do reconhecimento das perturbações do sono em idade pediátrica prende-se com a sua elevada prevalência e potenciais consequências para a criança ou adolescente e para a sua família, nomeadamente a nível da cognição; assim, torna-se fácil compreender as implicações no rendimento académico, na regulação do comportamento e do humor, no risco de excesso de peso e obesidade, assim como no risco de acidentes. Acontecendo a que os pais nem sempre abordam estas questões na consulta de forma espontânea, há que adoptar uma atitude pró-activa de abordagem por parte do médico ou profissional de saúde, inquirindo de modo rotineiro sobre o tema em análise.

Nesta perspectiva, poderá ser utilizada a sigla DEITAR como mnemónica das questões a avaliar: D = Dorme bem? E = tem Excesso de sono diurno – sonolência ou irritabilidade? I = Ir para a cama, resiste, deita-se tarde, precisa dos pais? T = Tempo do sono adequado para a idade? A = Acordar durante a noite, é frequente? R = Ressona alto ou de forma persistente? A este propósito, torna-se importante relembrar os tempos de sono diário recomendados para as crianças: superior a 11h até aos 2 anos, 11-13h dos 3 aos 5 anos, 10-11h na idade escolar, e 9h na adolescência.

Certas populações pediátricas são relativamente mais vulneráveis a perturbações agudas ou crónicas do sono. Tal acontece sobretudo em situações de doença orgânica crónica ou aguda, perturbações do neurodesenvolvimento ou psiquiátricas, tratamentos com fármacos (sedativos, psico-estimulantes ou outros), hospitalização, etc..

Nas alíneas seguintes procede-se à descrição sucinta das principais perturbações relacionadas com o sono na idade pediátrica.

Perturbações respiratórias do sono

As perturbações respiratórias do sono incluem as perturbações obstrutivas e as apneias de origem central que aparecem ou se agravam durante o sono. As perturbações respiratórias obstrutivas do sono constituem um espectro de gravidade desde o ressonar primário (respiração ruidosa sem aumento do esforço respiratório), até à síndroma de resistência das vias aéreas superiores e síndroma de apneia obstrutiva do sono (ver adiante) com alterações na ventilação e sono fragmentado. Estudos portugueses mostram que o ressonar alto é frequente nas crianças (5 a 8%) devendo constituir um sinal de alerta para se procurar outras alterações, incluindo a sensação de aumento do esforço respiratório, as pausas respiratórias por obstrução, habitualmente seguidas por uma inspiração rápida (gasp), e sintomas de sonolência diurna excessiva, podendo incluir hiperactividade e irritabilidade. Dependendo da etiologia da obstrução da via aérea e da gravidade, estas condições podem ser alvo de terapêutica inicial médica ou cirúrgica, habitualmente do foro ORL, por hipertrofia das vegetações adenóides e das amígdalas. O excesso de peso e obesidade também são factores relevantes. Na presença de síndromas neurogenéticos e de dismorfia facial podem ser necessárias abordagens mais complexas, incluindo cirurgia maxilo-facial e ventilação no domicílio.

Insónias

Insónia é o termo genérico para as queixas de dificuldade em iniciar ou manter o sono ou de sono não reparador. O diagnóstico pressupõe a existência de consequências no bem-estar ou comportamento diurno do próprio e/ou da família. A ICSD considera duas categorias principais em função da duração: insónia de curta duração (short-term, inferior a 3 meses) e insónia crónica (3 noites por semana, pelo menos 3 meses).

As queixas de insónia podem ser secundárias ou comórbidas com outro diagnóstico, incluindo perturbações de depressão e ansiedade, doenças neurológicas ou outras perturbações do sono. De facto, as crianças e os adolescentes, com perturbações do desenvolvimento têm maior prevalência de insónia que a população em geral.

As insónias das crianças mais pequenas são identificadas pelas queixas dos pais ou prestadores de cuidados. A maioria insere-se dentro das chamadas insónias comportamentais da infância (prevalência de 20 a 30%), classicamente associada a dois factores etiopatogénicos:

  • Dificuldade no estabelecimento de limites na hora de dormir no contexto de comportamentos de “resistência em ir para a cama”, geralmente associada a falta de habituação a uma rotina que se cria com estratégias educacionais. O panorama traduz-se por “hora de deitar” tardia e variável, diminuição da duração do sono, maior número de despertares e necessidade da presença dos pais na tentativa de “voltar a adormecer”;
  • Associação de estímulos na hora de dormir que podem incluir a estimulação vestibular do embalar, o contacto corporal com os pais, mexer no cabelo ou na mão da mãe, ou beber biberão. A queixa mais típica nestas situações corresponde a despertares nocturnos frequentes uma vez que a criança não consegue voltar a adormecer sozinha sem a presença dos estímulos habituais, acordando com intervalos de uma a três horas.

Nas crianças mais velhas e nos adolescentes, as insónias primárias na sua maioria são diagnosticadas como insónias psicofisiológicas, associadas a “medo de não conseguir adormecer” e a má higiene do sono (conjunto de práticas que dificultam o adormecer como os horários irregulares, a visualização de televisão/écrans na cama e a ingestão de bebidas estimulantes no fim do dia).

O tratamento das insónias é habitualmente comportamental, dizendo respeito a certos ajustamentos: de rotinas que facilitam o sono, dos horários, e do ambiente na hora de dormir. Os fármacos como a melatonina devem ser usados durante um período limitado e como adjuvantes das medidas comportamentais.

Por vezes, a insónia é a manifestação de um problema que ultrapassa o sono, em geral relacionado com:

  • Reduzida disponibilidade da pessoa que cuida da criança;
  • Perturbações de ansiedade e do humor;
  • Medos de situações vivenciadas ou de imagens aterrorizadoras. Em tais situações, uma abordagem centrada apenas no sono é quase sempre ineficaz, sendo necessário avaliar e tratar os outros problemas.

Parassónias

As parassónias são fenómenos motores, verbais e/ou vivenciais indesejáveis que surgem associados ao sono (no início e no seu decurso), ou associados aos “despertares”. Tais fenómenos correspondem a episódios comportamentais nocturnos, tais como desorientação cognitiva, manifestações autonómicas e musculares esqueléticas. São frequentes em crianças que ressonam, podendo eventualmente constituir um sinal de obstrução respiratória significativa, com sono fragmentado.

No seu conjunto, constituem a perturbação do sono mais frequente. Na ICSD são classificadas em 3 subcategorias de acordo com a fase do sono em que ocorrem: perturbações associadas a despertares parciais no sono NREM, perturbações associadas ao sono REM, e outras parassónias. Com frequência existem factores genéticos envolvidos, evidenciados por antecedentes familiares da mesma ou de outras parassónias.

Quando esporádicos, estes comportamentos são habitualmente benignos e tornam-se menos frequentes com a idade e com a regularização dos hábitos de sono (com hora de deitar e duração do sono adequadas para a idade). Quando frequentes e/ou prolongados tornam-se numa perturbação, com repercussão diurna no próprio (sensação de sono não reparador) ou na família, requerendo uma abordagem farmacológica por períodos curtos de tempo.

Adoptando o critério da ICSD, são descritas a seguir, as seguintes modalidades (abordando sucintamente a actuação):

Sonilóquia

Consiste na emissão de palavras e frases desconexas emitidas involuntariamente durante o sono, ocorrendo em até 50% dos indivíduos; está associada ao sono REM e não REM. Podendo surgir em qualquer idade, pode associar-se a ansiedade, ao estresse e a febre. Não necessita de qualquer medida terapêutica.

Sonambulismo

Trata-se de um fenómeno de despertar parcial, mais frequente no sexo masculino e entre os 4 e 15 anos (prevalência ~17%). Consiste numa série de atividades comportamentais complexas tais como: sentar-se na cama ou deambulação durante o sono, sem consciência, podendo levar à tentativa de sair do quarto ou de casa; se o doente for acordado, verifica-se estado confusional, sem se lembrar do ocorrido. Esta situação pode associar-se a terror nocturno e a sonilóquia. O diagnóstico diferencial faz-se com a epilepsia parcial complexa nocturna, habitualmente com comportamentos mais estereotipados. O maior risco é de dano físico relacionado com quedas ou sair de casa, o que implica necessidade de reforço das condições de segurança.

Despertar confusional

Esta forma clínica está também associada ao sono NREM, sendo caracterizada por desorientação, descoordenação e, eventualmente, agitação psicomotora. Como é menos valorizada, a sua prevalência é difícil de determinar.

Terrores nocturnos

Estas manifestações surgem em cerca de 3% das crianças com maior prevalência entre os 4 e 12 anos de idade, na primeira parte da noite, no sono não REM. Os episódios, variando entre 1 a 30 minutos, são caracterizados por manifestações de medo com intensa descarga autonómica com taquicárdia, taquipneia, midríase, etc.. A criança senta-se na cama assutada, chorando e gritando, e não respondendo a estímulos de forma adequada. Ao contrário dos pesadelos, a criança não parece bem acordada e não se recorda do sucedido no dia seguinte. O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com estado confusional, pesadelo e epilepsia. Depois de garantida a tranquilização dos pais e uma boa higiene do sono (acção educacional de habituação na hora aconselhável de deitar e na duração do sono), a terapêutica pode passar pela utilização de benzodiazepinas durante um período curto de tempo.

Pesadelos

Os pesadelos são sonhos com algo que, provocando medo e ansiedade, desperta a criança do sono REM. Estando cientificamente provado que as crianças sonham já pelos 14 meses, os pesadelos são mais frequentes entre os 3 e os 6 anos, surgindo em cerca de 10 a 50% das crianças. Como medidas preventivas haverá que evitar situações que originem medo e tensão emocional. Os pesadelos recorrentes, sobretudo se associados a situações traumáticas, podem requerer abordagem psicoterapêutica.

Perturbações de movimentos relacionados com o sono

Este conjunto de perturbações é caracterizado pela ocorrência de movimentos relativamente simples, habitualmente estereotipados, que ocorrem ao adormecer ou durante o sono, associados a algum tipo de consequência nefasta.

Mioclonias benignas do sono da infância

Esta manifestação de contracções musculares breves, rápidas e involuntárias de um ou vários músculos, repetindo-se com intervalos variáveis, ocorre em lactentes saudáveis nos primeiros 6 meses de vida. Trata-se, pois, de movimentos repetidos, estereotipados, com a particularidade de serem interrompidos pelo despertar.

Bruxismo

O bruxismo do sono consiste em movimentos estereotipados de “ranger de dentes” em qualquer fase do sono, podendo eventualmente conduzir ao despertar. Com uma prevalência de cerca de 30%, superior em crianças saudáveis, tal parassónia é frequentemente descrita em crianças e adolescentes com paralisia cerebral e /ou atraso mental. Não requer medidas terapêuticas especiais; em certos casos poderá estar indicada a administração de benzodiazepinas.

Movimentos rítmicos relacionados com o sono

Trata-se de movimentos repetitivos e estereotipados envolvendo a cabeça, o pescoço e, por vezes, o tronco, pouco antes do início do sono, e por vezes mantidos durante o sono leve (estádio 1 não-REM); mais de 2/3 das crianças evidencia este padrão comportamental aos 9 meses de idade, diminuindo a prevalência ulterormente.
Dum modo geral não se torna necessária qualquer terapêutica.

Síndroma dos membros inferiores “ inquietos” (ou das “pernas inquietas”)

Este quadro clínico, raro, consiste numa sensação desagradável e mal definida nos membros inferiores surgida antes do início do sono, e aliviada curiosamente com a mobilização passiva dos mesmos. Pode haver associação com défice de atenção e hiperactividade.
No tratamento utilizam-se agentes dopaminérgicos.

Movimentos periódicos do sono

São episódios periódicos de movimentos dos membros, repetitivos e estereotipados. Tais movimentos ocorrem geralmente nos membros inferiores e consistem em extensão do dedo grande do pé associada a flexão do pé, joelho e coxa. Esta situação é rara em idade pediátrica.

Perturbações do ritmo circadiano do sono

A perturbação do ritmo circadiano mais comum na população pediátrica é a chamada síndroma de atraso de fase do sono, com uma prevalência de 7 a 16% nos adolescentes. Consiste numa “transferência” do período propício para dormir, para mais tarde; traduzindo-se na dificuldade em adormecer e de acordar nas horas desejadas e socialmente adequadas, o resultado final é a privação de sono. O desfasamento do “relógio interno” é patente pelo facto de as dificuldades com o sono desaparecerem quando é permitido um horário livre, habitualmente com hora de deitar após a meia noite, e a hora de acordar entre as 10 e as 14 horas.

A fisiopatologia destas perturbações não está ainda bem esclarecida, podendo envolver, designadamente, um desfasamento do sistema regulador do sono-vigília e polimorfismos nos genes da regulação circadiana. O quadro clínico pode ser exacerbado pela má higiene do sono com horários irregulares, exposição a luz intensa no fim do dia, e pela falta de exposição matinal à luz.

A situação pode ser tratada com melatonina, cronoterapia e fototerapia matinal.

Hipersónia ou sonolência diurna excessiva

A sonolência diurna excessiva ou hipersónia está presente em cerca de 11% das crianças e de 52% dos adolescentes. Distinguem-se dois tipos de hipersónia:

  1. Secundária ou extrínseca cursando com sono insuficiente e provocando sonolência diurna excessiva;
  2. Primária ou intrínseca, pouco frequente, de origem central e caracterizada por excessiva necessidade de sono (episódios recorrentes de sonolência diurna excessiva e/ou tempos de sono prolongados que interferem com o funcionamento normal do indivíduo).

Como transtorno mais relevante, destaca-se a narcolepsia, que é uma doença neurológica crónica pouco frequente (0,25-0,56% na população geral) em cuja base etiopatogénica está a incapacidade de o cérebro regular os ciclos normais de vigília-sono, com implicação dos núcleos do mesencéfalo e tronco cerebral.

Com a instabilidade na regulação da vigília, irrompem manifestações do sono REM às quais se podem associar, nalguns pacientes, episódios de cataplexia (perda súbita do tono postural, bilateral, parcial ou completa, desencadeados por emoções intensas, pela sua antecipação ou recordação ou pelo exercício físico vigoroso). Estes episódios são breves (segundos a minutos) e podem ser subtis, envolvendo apenas alguns músculos da face ou manifestando-se apenas por sensação de fraqueza.

De acordo com a terceira versão da ICSD, considera-se o diagnóstico de:

  • Narcolepsia do tipo 1 ou narcolepsia com cataplexia na presença de sonolência diurna excessiva, irresistível, associada a: 1) episódios de cataplexia e sinais de uma latência diminuída para o sono REM no registo poligráfico do sono nocturno ou diurno (teste de latências múltiplas); ou 2) défice de hipocretina-1 no LCR. As alucinações hipnagógicas (no início do sono), com experiências vividas semelhantes aos sonhos, são muito frequentes, mas não patognomónicas. Pode também ocorrer paralisia do sono, com impossibilidade de executar movimentos durante alguns segundos a minutos depois de acordar.
  • Narcolepsia do tipo 2, ou narcolepsia sem cataplexia, na presença de níveis de hipocretina-1 no LCR normais; neste caso, devem ser excluídas outras causas de sonolência diurna excessiva.
Síndroma de sono insuficiente

A ICSD inclui o diagnóstico de síndroma de sono insuficiente, caracterizada por privação do tempo de sono adequado voluntária (ou imposta pelos horários laborais/sociais) com sintomas de sonolência diurna excessiva ou alterações do comportamento relacionadas com a privação do sono. Nestas situações deve existir uma resolução dos sintomas quando é permitida a extensão do tempo de sono. Será uma situação frequente no nosso país considerando que no Estudo dos Hábitos e Problemas do Sono, cerca de 10% das crianças de 2 a 10 anos tinham duração de sono valorizado como de mais de dois desvios-padrão abaixo do esperado para a idade. A relevância desta condição prende-se pela associação da privação crónica de sono com défices cognitivos, problemas de comportamento, obesidade e risco aumentado de acidentes. Em estudo recente demonstrou-se que a qualidade do sono constitui um mediador entre a adesão ao regime de dieta mediterrânica e o desempenho escolar em adolescentes.

Nota do editor – Segundo alguns autores, a chamada Enurese nocturna, ou emissão involuntária de urina durante o sono, é considerada um tipo de parassónia. Tal situação, que faz parte do processo maturativo normal da bexiga, com uma prevalência ~4% aos 10 anos de idade, é abordada nesta obra em capítulo próprio.

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APRENDIZAGEM E INSUCESSO ESCOLAR

Importância do problema

A aprendizagem, uma das características fundamentais da espécie humana, processa-se ao longo de toda a vida, inclusivé pré-natal. Definida sucintamente como aquisição de conhecimentos, o seu âmbito é muito mais lato, pois o respectivo processo implica a recepção de estímulos endógenos e exógenos que são integrados, armazenados, adaptados e aplicados ulteriormente. Toda esta dinâmica depende, quer dos estímulos, quer das competências da pessoa, as quais variam com a maturação/evolução ou involução. Diversos factores intervêm na aprendizagem: 1) extrínsecos; como exemplos citam-se o ambiente e espaço físico da escola com características diversas de funcionamento e arquitecturais, a família, etc.; e 2) intrínsecos; citam-se como exemplos as competências em relação ao neurodesenvolvimento (essencialmente, motores, sensoriais, perceptivas, de linguagem/comunicação, cognitiva, e afectivas como ansiedade, auto-estima, irritação, etc..

Para avaliar o neurodesenvolvimento de uma criança em idade escolar importa considerar as seguintes áreas: atenção, memória, linguagem, organização temporal-sequencial, organização espacial, capacidade neuromotora, cognição social e funções superiores da cognição. De referir que não existem duas crianças com modos iguais de funcionamento (Ver adiante Avaliação).

O baixo desempenho numa ou mais destas áreas pode estar associado a problemas de aprendizagem culminando no insucesso escolar, em dificuldades comportamentais, de adaptação e de integração social.

A prevalência dos problemas de aprendizagem varia de país para país, o que se pode explicar pela inexistência de critérios consensuais quanto a definição e classificação.

Estima-se que cerca de 15% das crianças em idade escolar apresentam dificuldades de aprendizagem relacionáveis com perturbações do neurodesenvolvimento; todavia, a actual prevalência pode ser ainda mais elevada se forem consideradas certas disfunções ligeiras e auto-limitadas. O sexo masculino parece ser mais afectado (2/1 a 4/1).

Uma variante que traduza uma área fraca (como um problema na área da linguagem expressiva) corresponde a uma disfunção. Se tal disfunção interferir com a aquisição de uma determinada competência (como a escrita), gera-se uma incapacidade e, se esta for particularmente impeditiva de originar produtividade e gratificação, pode gerar-se um quadro de deficiência.

Mas as variantes podem também incluir áreas de raro talento e força; e, ao descrever o perfil funcional de uma criança, é importante tomar em consideração as áreas fortes que constituem os seus recursos para fazer face às próprias dificuldades (por exemplo a criatividade, a capacidade de organização ou a capacidade de resolução de problemas não-verbais).

Etiopatogénese

Para a compreensão dos problemas relacionados com o défice de aprendizagem com implicações práticas no tipo de intervenção a planear, cabe referir os principais factores etiológicos:

  • Défice cognitivo ou atraso global do desenvolvimento;
  • Alterações sensoriais (por exemplo, défice auditivo ou visual);
  • Doença motora (por exemplo, paralisia cerebral ou defeitos do tubo neural);
  • Perturbações da comunicação e da linguagem;
  • Problemas comportamentais e afectivos (por exemplo, ansiedade, inibição, défice de atenção);
  • Problemas em áreas específicas como a leitura, a escrita/ortografia, matemática, etc.;
  • Doença crónica (em relação essencialmente com efeitos acessórios de medicamentos, e absentismo, hospitalizações ou actos médicos repetidos em ambulatório).

Áreas-chave para a avaliação do insucesso escolar

Analisam-se seguidamente as áreas consideradas chave para avaliação da aprendizagem e do insucesso escolar.

Atenção

A disfunção da atenção constitui o problema de neurodesenvolvimento mais frequente em crianças, com um largo impacte no desempenho escolar diário.

Memória

Existem fundamentalmente dois tipos de memória importantes para o bom desempenho académico: a de curta duração e a de longa duração.

Muitas crianças apresentam dificuldades na memória de curta duração, nomeadamente na memória de trabalho. Esta consiste na capacidade de manter em mente, todas as diferentes componentes de uma tarefa, como por exemplo durante a resolução de um problema de matemática.

A memória de trabalho permite, por exemplo, que, após a memorização de um número, o utilizemos imediatamente (como por exemplo um número de telefone), e a memorização do início de um parágrafo ao chegar ao seu termo.

Assim, as crianças com perturbações da memória de trabalho têm dificuldade em efectuar cálculos de matemática ou em memorizar ou reproduzir o que leram.

Quando tentam escrever experimentam uma sobrecarga exagerada que se traduz, nomeadamente, em ilegibilidade, pontuação incorrecta, deficiente soletração, etc..

Outras crianças têm dificuldade em consolidar a informação na memória de longa duração.

Este problema pode ter consequências graves no que diz respeito à escrita, que necessita de memorização de curta e longa duração quanto a soletração, formação das letras, pontuação, factos, ideias, vocabulário, para dar alguns exemplos.

Os progressos académicos desenvolvem a memória ao criar estratégias compensadoras (mnemónicas, técnicas facilitadoras do registo e de consolidação de dados em múltiplas categorias pré-existentes de conhecimento), para visualizarem o que se ouviu ou verbalizarem o que se viu, preparando e facilitando o seu armazenamento na mesma.

Linguagem

A linguagem é o veículo do pensamento e muitas capacidades da mente e pensamento humanos são organizadas e transmitidas através da linguagem.

As crianças linguisticamente (ou verbalmente) competentes representam um grupo de sucesso escolar, porque todas as capacidades académicas convergem para a linguagem verbalizada, e muito do que aprendem é codificado em linguagem escrita.

Há muitas formas de disfunção da linguagem: algumas crianças têm problemas com a fonologia, apreciação e manipulação dos diferentes sons da linguagem, outras na discriminação e associação de sons; mais recentemente foram descritos problemas na memorização de fonemas (sons da linguagem), grafemas (combinações específicas de letras) e palavras (consciência fonológica), apontados como a causa mais comum de problemas de leitura e escrita. Estas crianças têm dificuldade em descodificar palavras durante a leitura e a codificá-las durante a soletração. Para muitas delas é difícil reter sons na memória, decompor palavras nos respectivos sons, e reutilizar estes para descodificar novos vocábulos.

A semântica pode constituir outra dificuldade: repertório rígido e limitado do significado das palavras e difícil aquisição de vocabulário novo, importante em fases académicas mais diferenciadas em que a linguagem tecnológica é fundamental para a compreensão de diferentes matérias.

Outros problemas da linguagem são a compreensão e utilização da sintaxe (ordenação de palavras), a limitada compreensão das regras linguísticas (metalinguística), a utilização de linguagem abstracta, a linguagem simbólica (metáforas, analogias) na formação de conceitos abstractos, e o domínio de uma segunda língua.

A falta de aquisição de um determinado nível de sofisticação da linguagem condiciona o insucesso académico e está frequentemente associada a dificuldades de comportamento adaptativo.

Organização espacial

Grande parte dos dados referentes ao espaço são adquiridos através de sensações propriocinéticas e de concepção abstracta, não verbal: o tamanho, posição, forma, constância da forma (independentemente da sua posição no espaço), as relações entre os corpos, são alguns dos pilares da organização visual-espacial. É evidente a repercussão que as perturbações nesta área podem ter, por exemplo, na aprendizagem da leitura e escrita.

As crianças com este tipo de disfunção evidenciam dificuldades de discriminação direita-esquerda a que se associam frequentemente dificuldades de coordenação motora fina e coordenação motora global (crianças desajeitadas).

Organização temporal-sequencial

A incapacidade de soletração, narrativa e sequenciação (do maior para o menor e vice-versa) pode ter consequências a diferentes níveis e áreas académicas como a escrita, matemática, tempo, hierarquização de tarefas por prioridades, ou limitação de tempos para a sua execução.

Função neuromotora

As competências motoras da criança podem ter um papel significativo num largo repertório de actividades.

Ao aspecto motor da escrita denomina-se função grafo-motora, que assenta numa boa coordenação motora fina, embora distinta desta; efectivamente, há crianças com bom desempenho na área da coordenação motora fina e que apresentam um mau funcionamento na escrita.

A escrita exige uma rápida e precisa coordenação grafo-motora e a disfunção desta pode condicionar perturbações importantes do desempenho académico.

Desenvolvimento cognitivo superior

Sob esta designação incluem-se a capacidade de abstracção (da qual depende a aquisição de conceitos), a solução de problemas, o pensamento crítico, a metacognição, várias formas de raciocínio, o reconhecimento de regras e a sua aplicação.

A variabilidade no funcionamento de cada criança determina que a aquisição de novos conceitos dependa de conceitos pré-existentes e, ao longo da maturação destes, do desenvolvimento da capacidade de destrinça e relação entre uma ideia e um conceito. Infelizmente muitas crianças adquirindo poucos conceitos, na maior parte das vezes por deficiente estruturação do meio (famílias com elevado grau de iliteracia, condições socio-económicas pouco propícias à troca de informação e interacção e ao consequente desenvolvimento cognitivo) apresentarão naturalmente maiores dificuldades nas aprendizagens escolares.

A capacidade de resolver problemas é fundamental para todos os conteúdos e actividades escolares. As crianças com esta capacidade bem desenvolvida mostram a sua criatividade na selecção e monitorização das várias técnicas possíveis para a solução de um problema, diferentes ideias e valores, permeabilizando-as à mudança, inovação ou diferença, fundamentais ao respeito para com os seus pares e a sociedade em geral, permitindo-lhe flexibilizar ideias, regras e atitudes.

Uma vez que todas as áreas referidas apresentam diferente expressividade na mesma criança, sucesso académico pressupõe que as mais fortes compensam e equilibram as mais fracas.

Intervenção

Durante muito tempo a Pediatria avaliou o desenvolvimento psicomotor e cognitivo das crianças em idade pré-escolar, monitorizando a progressão nas áreas motora, cognitiva, adaptativa, linguística e social, com vista ao diagnóstico e orientação dos problemas de desenvolvimento.

Mas o desenvolvimento infantil não termina aos 5 anos de idade e a diminuição de prevalência de outro tipo de patologia permitiu ao pediatra estar mais disponível para outras áreas como as dificuldades de aprendizagem, comportamento de desadaptação, desajustamento social, comportamental e perturbação da atenção, potencialmente responsáveis pelo insucesso escolar.

O diagnóstico e proposta terapêutica do insucesso escolar exigem uma equipa multidisciplinar que inclui o médico-pediatra, o psicólogo clínico e educacional, o pedopsiquiatra, o neuropediatra, o médico de família, entre outros.

A observação inclui a aplicação de determinados testes designados PEEP, PEER, PEEX 2, e PEERAMID 2, através dos quais se observa e avalia directamente funções chave nas áreas do neurodesenvolvimento como a atenção, linguagem e capacidades motoras. Com os referidos testes será possível obter o perfil funcional da criança (força e dificuldades nas diversas áreas académicas) como base para intervenção psico-educacional.

As formas de apoiar e atenuar estes problemas compreendem os seguintes passos:

  • Desmistificação;
  • Utilizar estratégias de acomodação (dar mais tempo, simplificando explicações e orientações, reduzindo a carga académica nas áreas de menor desempenho, apresentando a informação de forma mais atractiva;
  • Terapias específicas: terapia da fala, ocupacional e comportamental. Modificação dos currícula e conteúdos programáticos escolares e respectiva adequação às reais capacidades da criança (plano educativo individual);
  • Fortalecimento das áreas “fortes” como compensação das “fracas”, condicionando um reforço da auto-estima;
  • Medicação adaptada a cada caso e reajustada em avaliações periódicas.

A ideia de aprendizagem activa, por contraposição à passiva apontada por autores como Piaget, revolucionou a metodologia de ensino; aplicando tal estratégia, a criança condicionada à exploração e descoberta, constrói o seu próprio conhecimento. O papel do professor ou educador seria o de facilitador da aprendizagem, encorajando a criança a questionar, especular e experimentar, fomentando o espírito crítico relativamente à informação.

De acordo com Piaget é a criança que condiciona todo o processo de aquisição do conhecimento; o professor fomenta situações que desafiam a criança a pôr questões, a formular hipóteses e a descobrir novos conceitos.

Vygotsky ultrapassou as ideias de Piaget atribuindo papel igualmente relevante à interacção social e à comunicação e linguagem. Para ele a aprendizagem é conseguida através da cooperação com um largo repertório de interlocutores sociais – pares, professores, pais e outros intervenientes – bem como através dos símbolos representativos da cultura da criança, como a arte, linguagem, jogo, canções, metáforas e modelos.

A teoria de Vygotsky assenta essencialmente no papel dos processos interpessoais e no papel da sociedade em que se enquadra a criança.

Prevenção

A prevenção dos problemas de aprendizagem em geral, e do insucesso escolar em especial, implica entre outras medidas melhoria dos cuidados primários e das condições, socioeconómicas, prevenção da prematuridade extrema e detecção precoce das alterações do desenvolvimento. Trata-se duma tarefa difícil para a qual todos os profissionais de saúde, e em especial o pediatra e o médico de família, devem estar sensibilizados.

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HABILITAÇÃO DA CRIANÇA COM DIFICULDADES NA COMUNICAÇÃO

Introdução

Ao longo do seu desenvolvimento, a maioria das crianças adquire de forma natural uma linguagem oral. A linguagem é adquirida de forma espontânea, sem que seja necessário que os pais e adultos envolvam a criança em planos e actividades específicas para a aprendizagem da linguagem. A expectativa geral é a de que, entre o nascimento e os cinco anos de idade, a criança adquira a linguagem oral (oralidade) de maneira natural e fácil, evoluindo pelos diferentes estádios, começando primeiro por compreender e emitir sons, monossílabos, depois palavras isoladas, pseudopalavras e palavra etiqueta; mais tarde combinações simples de duas e três palavras e, por fim, frases completas e narrativas significativas decorrentes da vida da criança. De facto, a maioria das crianças cresce aprendendo naturalmente a linguagem dos seus pais e pares, e este processo faz parte do seu desenvolvimento e crescimento normais.

Definição e importância do problema

Clarificando conceitos, a comunicação é o processo pelo qual os indivíduos trocam informação e transmitem ideias, ou seja, e de acordo com Chomsky, a linguagem é o veículo do pensamento. Consiste na transmissão de informação entre um emissor e um interlocutor, que descodifica e interpreta uma determinada mensagem. Neste processo podem ser utilizados sinais, gestos e linguagem oral, sendo esta última a principal forma de comunicação entre os seres humanos. Por vezes processos para-linguísticos como a entoação, ritmo do discurso ou não linguísticos, como o gesto, a atitude corporal ou a expressão facial, podem expressar atitudes, sentimentos e emoções do emissor, complementando a informação linguística. A linguagem é um código socialmente partilhado, que expressa ideias através de símbolos, e que é usado para comunicar e pensar. É pautada por um sistema de regras que subjazem aos sons (fonologia), às palavras (morfologia), às frases (sintaxe), ao seu significado (semântica) e ao seu uso (pragmática). A fala, que envolve uma coordenação neuromuscular extremamente precisa da motricidade oro-facial, é constituída pela produção verbal, o que inclui um componente fisiológico, isto é, a capacidade de articulação verbal, e um componente linguístico, que abrange um sistema fonológico da língua.

As perturbações da comunicação constituem o problema de neurodesenvolvimento mais frequente em idade pré-escolar, com uma prevalência da perturbação específica da linguagem de cerca de 7%. Este grupo de crianças apresenta maior risco de desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem da leitura e escrita, condicionando desempenho escolar inferior ao dos pares.

Diagnóstico

As perturbações da comunicação, nomeadamente os atrasos de linguagem, constituem um motivo frequente para a consulta de pediatria do neurodesenvolvimento. Com efeito, um atraso na aquisição de linguagem pode ser o primeiro sinal (a ponta do iceberg) de que algo não está bem no que respeita ao desenvolvimento da criança. Ao avaliar uma criança com perturbação de comunicação em consulta de pediatria do neurodesenvolvimento é necessário efectuar, em primeiro lugar, uma avaliação das suas competências e comportamento, uma vez que esta perturbação pode ocorrer isoladamente ou constituir epifenómeno de outras patologias do neurodesenvolvimento, de que são exemplo o atraso global do desenvolvimento ou a incapacidade intelectual, a perturbação do espectro do autismo; as causa ecossistémicas e ambientais – fraca estimulação da criança ou défice de interacção social – podem estar na génese deste tipo de perturbação. É também importante excluir causas neurológicas, anatómicas (anomalias da anatomia oro-facial ou velo-facial, como por exemplo a fenda palatina) e sensoriais, como os défices auditivos e défices visuais graves.

Podemos falar de um atraso de linguagem quando uma criança apresenta competências linguísticas inferiores comparativamente ao desempenho dos seus pares. De uma forma geral, considera-se adequado aos 24 meses apresentar um léxico superior a 50 palavras e construir frases de duas palavras, com 65% do discurso inteligível por estranhos. Aos 3 anos deverá construir frases com três palavras e ter uma inteligibilidade do discurso de 80%. Aos 4 anos a criança já deverá falar bem, com domínio da sintaxe, com um discurso fluido, adequado e perfeitamente inteligível.

Para um desenvolvimento normal da linguagem, em primeiro lugar a criança necessita de interagir com os pais, idealmente num ambiente afectivo, calmo e estimulante. Em segundo lugar, as crianças necessitam de ouvir um amplo leque de palavras. Em terceiro lugar, necessitam de utilizar processos neurológicos e cognitivos que lhes permitam retirar sentido dos sons, e aprender as regras de combinação de sons, palavras e frases. Finalmente, necessitam de desenvolver a motricidade oro-facial e aparelho respiratório para produzir um discurso fluido.

Na idade pré-escolar é importante ter em atenção diversos tipos de atrasos de linguagem. De modo sucinto, pode afirmar-se que nos casos de atraso homogéneo nos vários domínios da linguagem, dum modo geral o prognóstico é bom; por outro lado, nas crianças com perturbações específicas da linguagem, com possibilidade de alterações de um ou vários domínios da linguagem, o prognóstico é mais reservado pela maior dificuldade na resolução, o que poderá ter implicações na aprendizagem escolar futura. Quanto mais componentes da linguagem forem afectados e quanto maior o défice, maior será a probabilidade de a criança apresentar dificuldades de aprendizagem, designadamente na leitura e escrita.

As perturbações da linguagem, se não forem atempadamente diagnosticadas e tratadas, podem afectar outras áreas de funcionamento, e, nomeadamente, levarem a perturbações da aprendizagem, fraca auto-estima e alterações na socialização.

Intervenção

Perante uma suspeita por parte da família, do médico assistente, ou da escola, de uma perturbação da comunicação, a criança deve ser referenciada para uma consulta de pediatria do neurodesenvolvimento, a fim ser avaliada e orientada o mais precocemente possível, tendo como base a importância do diagnóstico diferencial. Na consulta de pediatria do neurodesenvolvimento será efectuada uma avaliação global, afim de esclarecer se estamos perante um problema de linguagem, de uma perturbação do espectro do autismo, de um atraso global do desenvolvimento, de uma incapacidade intelectual, ou de um défice auditivo.

A avaliação da linguagem, efectuada por um terapeuta da fala, engloba uma entrevista com os pais e com a criança, na qual se pretende recolher informação alargada que permita precisar quais as dificuldades de linguagem, compreender como cada elemento da família as vivencia e, dessa forma, estabelecer um diagnóstico ao nível do desenvolvimento linguístico. Segue-se uma avaliação da criança, se possível, em sessão separada dos pais, onde são aplicados testes padronizados que permitem identificar e descrever aspectos formais (semântica, pragmática, morfologia, sintaxe e fonologia) da linguagem da criança.

Tratando-se de uma criança pequena, com atraso na aquisição da linguagem, o primeiro foco de acção é criar um ambiente estimulante e adequado à aprendizagem da linguagem em contexto. Assim, poderá ser sugerido para os atrasos de linguagem, uma integração em jardim de infância e programa de intervenção precoce com a família, criança e educadora. O Sistema Nacional de Intervenção Precoce para a Infância (SNIPI – DL nº 281 de 2009) preconiza uma rede nacional de educadores com formação específica na área do neurodesenvolvimento da criança que poderá apoiar e ensinar às famílias destas crianças estratégias de estimulação da linguagem em contexto. Os pais deverão ser incentivados a adquirir hábitos de conversação com a criança, de forma pausada e correcta, articulando bem as palavras; tal atitude contribuirá para incrementar o léxico dos seus filhos através de jogos e outras actividades lúdicas, criando oportunidades acrescidas para a criança comunicar.

Caso este apoio seja insuficiente poderá ser desencadeado apoio de terapia da fala, a qual deverá ser personalizada, tendo em consideração as dificuldades específicas da criança. A intervenção da terapia da fala é mais eficaz se for iniciada precocemente, resultando melhor nas situações menos graves e sem co-morbilidades.

A terapia da fala inclui vários objectivos. Quando as alterações se verificam ao nível da linguagem procura-se trabalhar no sentido de expandir o vocabulário (léxico), melhorar a compreensão do significado das palavras (semântica), melhorar a sintaxe utilizando frases gramaticalmente correctas, expandindo frases, e procurando adequar o uso social da linguagem (pragmática). Quando as dificuldades se relacionam com o nível da produção da fala, procura-se trabalhar a aquisição de um discurso mais inteligível e trabalhar mais a musculatura oro-facial.

A referida terapia pode incluir sessões individuais, em grupo ou integradas na sala de aula. Nas sessões individuais, trabalham-se os aspectos formais da linguagem através de actividades e jogos adequados a cada criança. Nas sessões de grupo incluem-se várias crianças com objectivos de linguagem semelhantes; o terapeuta da fala medeia, só ou em conjunto com outro terapeuta, um grupo. Através de várias actividades, como jogos, expressão plástica, dramática, música, etc., procura-se que a criança ou o adolescente trabalhe a sua linguagem, tome consciência das suas dificuldades, das suas competências e, desta forma, melhore o seu desempenho linguístico. As sessões integradas em sala de aula incluem a orientação do professor da sala, de forma a facilitar a utilização da linguagem pela criança, em ambiente académico.

Nas crianças com perturbações da comunicação muito graves, são incluídos na terapia métodos alternativos ou aumentativos de comunicação, como linguagem gestual, uso de imagens e apoio de programas informáticos. O objectivo final é a aquisição de uma linguagem oral (oralidade). O uso precoce de gestos e imagens pode ajudar a criança a estabelecer uma comunicação funcional e a compreender o significado simbólico das palavras, diminuindo a sua frustração e promovendo a comunicação e socialização. Não está provado cientificamente que a utilização de gestos ou imagens interfira com o desenvolvimento da oralidade se a criança tiver capacidade para falar. Pelo contrário, vários autores defendem que o uso de métodos alternativos/aumentativos acelera a aprendizagem da linguagem; tais métodos têm ainda a vantagem de reduzir a frustração dos pais e das crianças que não conseguem comunicar as suas necessidades mais básicas.

Outro aspecto importante na terapia da fala diz respeito às indicações e orientação de actividades sugeridas aos pais pelo terapeuta de forma a que estes possam trabalhar com os seus filhos e estimular o desenvolvimento da linguagem em contexto familiar.

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PERTURBAÇÕES DA LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

Definições e importância do problema

A fala tem várias componentes e qualidades: a articulação, que está relacionada com o som produzido pelos movimentos das estruturas orais; a voz, ou fonação, que resulta da produção de som pela vibração das cordas vocais; a ressonância, que resulta da amplificação ou filtração do som emitido pela vibração das cordas vocais (cavidade oral e nasal); a fluência que se refere ao ritmo e fluxo apropriados da fala (um exemplo de disfluência é a gaguez); e a prosódia, que se refere à entoação, inflexão e cadência da fala.

A elevada prevalência de perturbações da linguagem e problemas de aprendizagem nas famílias de crianças com perturbações da linguagem condicionou a hipótese de etiopatogénese genética para os problemas evolutivos da linguagem.

Mais de metade das crianças com perturbações da comunicação apresenta problemas emocionais ou comportamentais. Alguns autores reportaram que cerca de dois terços de crianças recorrendo à consulta de pedopsiquiatria apresentavam problemas relacionados com linguagem.

Para compreender melhor a complexidade desta patologia é importante abordar a terminologia: linguagem é um sistema de representação simbólica usado para comunicar sentimentos, ideias e intenções; a fala é a expressão da linguagem na forma verbal pela emissão de sinais acústicos; os fonemas são as unidades de som na fala; a fonologia refere-se à forma como os sons se organizam para formar palavras; a semântica refere-se ao significado das palavras; a sintaxe refere-se à ordem por que as palavras são agrupadas para formar frases, segundo as regras gramaticais das diferentes línguas; a pragmática refere-se ao uso social e aplicação dos significados nos diferentes contextos, exigindo capacidade de antecipação e sensibilidade ao outro.

A linguagem é o veículo do pensamento. Sem linguagem é difícil comunicar ideias, pensamentos e emoções; e sem um pensamento estruturado é impossível transmitir verbalmente uma ideia ou pensamento de forma perceptível.

A comunicação e interacção estão presentes desde o início da vida extra-uterina, manifestando-se, sobretudo, a partir do final do primeiro mês, através da troca de sons, contacto físico e visual. A comunicação engloba linguagem nas suas componentes verbal, gestual e de código social, ultrapassando-a e tornando-a extensiva aos afectos e emoções. Os animais interagem e comunicam entre si; no entanto, a linguagem é uma competência única e característica da mente humana e uma das mais vulneráveis.

As perturbações da comunicação constituem os problemas de desenvolvimento mais frequentes na idade pré-escolar, com 7 a 10% das crianças funcionando abaixo da média. Três a 6% das crianças têm uma perturbação específica da linguagem, receptiva ou expressiva e maior risco de desenvolvimento posterior de dificuldades na leitura e escrita.

Diagnóstico

Há diversas abordagens e sistemas de classificação diferentes para as perturbações da linguagem e fala, variando de acordo com a formação profissional dos autores. As classificações ditas médicas tendem a centrar-se mais nas causas e as ditas linguísticas nos padrões de alteração obser- vados.

O diagnóstico diferencial destas perturbações é igualmente complexo uma vez que um amplo espectro de patologias pode resultar em disfunção do sistema neural e de estruturas periféricas, responsáveis pela percepção, processamento e produção da linguagem.

Assim, por exemplo, há que considerar os problemas relacionados com défice auditivo ou dificuldades de percepção / discriminação auditiva.

Torna-se, pois, fundamental que estas crianças tenham uma avaliação completa da audição.

É importante perceber se a perturbação corresponde apenas à área da linguagem e fala, se faz parte de uma perturbação mais generalizada, ou se está associada a perturbações neurológicas ou comportamentais. Com efeito, é frequente tratar-se duma primeira manifestação de uma deficiência mental, inserir-se num contexto de patologia do espectro do autismo, ou associar-se a patologias como a síndroma do X Frágil, a síndroma de Landau-Kleffner, ou ainda resultar de lesão cerebral (afasia adquirida).

Excluídas estas situações o clínico fica confrontado com perturbações específicas do desenvolvimento da linguagem que, segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV se designam por Perturbações da Comunicação e se dividem em grandes grupos: 1. Perturbação da Linguagem Expressiva; 2. Perturbação Mista da Linguagem Receptiva-Expressiva (mista); 3. Perturbação Fonológica (ou de articulação verbal); 4. Gaguez. É tradicional a distinção entre a disfunção da linguagem expressiva (que compromete a verbalização) e a perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva.

Reportando-nos às definições caberá reiterar que a linguagem expressiva engloba a capacidade de formar palavras com os sons (fonologia), de combinar palavras com um significado adequado (semântica), em frases gramaticalmente correctas (sintaxe), e que são apropriadas ao contexto social (pragmática).

Seguidamente são sintetizados aspectos relativos às principais perturbações da comunicação.

Perturbação da linguagem expressiva

As crianças com disfunção da linguagem expressiva podem evidenciar capacidade para um número limitado de palavras, vocabulário reduzido, dificuldades na aprendizagem de novas palavras e no acesso lexical, frases encurtadas, com estrutura gramatical simplificada, por vezes com perturbação da sintaxe. As crianças com perturbação do tipo evolutivo geralmente começam a falar tarde e progridem mais lentamente, embora seguindo as sequências normais de desenvolvimento. Nos casos menos frequentes de lesão adquirida (por patologia neurológica) a perturbação surge após um período de desenvolvimento normal. 
Problemas como a memorização e recrutamento de palavras podem prejudicar a fluência da linguagem; apesar de as crianças apresentarem um vocabulário adequado, têm dificuldade em encontrar as palavras exactas quando delas necessitam, utilizando definições substitutivas (circunlocução).

Esta perturbação está frequentemente associada a perturbação fonológica.

Perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva

As crianças com perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva podem ter, para além das dificuldades já referidas de expressão verbal, dificuldade em seguir instruções, compreender explicações verbalizadas e interpretar o que leram. No entanto, habitualmente a expressão está mais afectada do que a compreensão, não alteração significativa da comunicação não verbal ou empatia, o que permite o diagnóstico diferencial com as per- turbações do espectro do autismo.

A perturbação mista também se associa frequentemente a perturbação fonológica ou a perturbações da aprendizagem. Pode também estar associada a perturbação de hiperactividade e défice de atenção, a perturbação da coordenação ou a enurese.

Perturbação fonológica

A perturbação fonológica, anteriormente designada por perturbação da articulação verbal, engloba, não apenas os problemas de coordenação das estruturas que produzem e modulam os sons, mas também os problemas de défice da consciência fonológica (noção dos fonemas e sua corres- pondente representação gráfica), que resultam mais tarde em dificuldade na aprendizagem da leitura e escrita (dislexia). Inclui alterações da fonação, articulação, ressonância e prosódia (ou seja, a leitura é lenta, sincopada sílaba a sílaba, ou com erros). Este tipo de perturbação pode estar presente em crianças com perturbação da coordenação motora, as quais apresentam também défices na motricidade fina e grosseira; pressupõe-se que a mesma não resulta de défice de ensino, de défice cognitivo, nem de factores socioculturais.

A gaguez inclui os problemas de disfluências, conforme é indicado nos critérios apresentados a seguir e surge, como a maioria das perturbações da linguagem, na idade pré-escolar, quando se dá o franco crescimento da linguagem. Nestas situações é fundamental um diagnóstico precoce e uma intervenção em tempo oportuno para que o problema não se torne persistente.

Gaguez

Trata-se de uma perturbação da fluência normal e da organização temporal normal da fala (inadequadas para a idade do sujeito), caracterizada por ocorrências frequentes de um ou mais dos seguintes fenómenos: repetições de sons e sílabas; prolongamentos de sons; interjeições; palavras fragmentadas; bloqueios audíveis ou silenciosos; circunlocuções; palavras produzidas com um excesso de tensão física; repetições de palavras monossilábicas.

A alteração na fluência interfere significativamente com o rendimento escolar ou laboral ou com a comunicação social.

Se coexistirem défice motor da fala ou défice sensorial, o problema tem maior relevância.

Diagnóstico diferencial

No diagnóstico diferencial tem sido sublinhada a importância, não só dos estádios da linguagem, mas também das competências sociais da criança no desenvolvimento da linguagem.

A ausência, atraso ou desadequação destas competências pré-verbais ou pré-linguísticas (mostrar e imitar), apontam para a possibilidade de autismo.

Apesar de nem todas as crianças com dificuldades de aprendizagem apresentarem perturbações da linguagem, uma elevada proporção de crianças com perturbações específicas de linguagem apresentam dificuldades de aprendizagem, particularmente na leitura e escrita.

As perturbações adquiridas da comunicação podem ser secundárias a lesões focais, lesões associadas a convulsões (Landau-Kleffner), lesões associadas a tumores, infecção ou radiação, e traumatismo crânio-encefálico.

Por sua vez, as crianças expostas no período pré-natal a cocaína ou outras drogas de abuso podem apresentar perturbações da linguagem. Tal se verifica também em crianças com baixo peso de nascimento, prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, ou reduzido perímetro cefálico.

Intervenção e prognóstico

Como foi referido, o diagnóstico das perturbações da comunicação não é fácil e exige um grande conhecimento sobre a patologia do desenvolvimento, para permitir a exclusão de outros diagnósticos e a avaliação das perturbações associadas.

Cabe ao pediatra e aos clínicos gerais, médicos assistentes de crianças e adolescentes, fazerem a detecção o mais precoce possível destas situações. Testes de rastreio como o Denver II ou o ELM (Early Language Milestones) são simples e podem ser usados pelos clínicos na consulta de saúde infantil. É importante estar atento ao cumprimento dos marcos de desenvolvimento e aos sinais de alarme não adiando uma avaliação mais pormenorizada ou o envio à consulta de desenvolvimento quando estes surgem.

A ausência do palrar aos 10 meses, do uso de palavras isoladas aos 18 meses ou de frases aos 24 meses, ou a presença de padrões atípicos de linguagem com ecolália e discurso ininteligível aos 4 anos, obrigam a um pronto encaminhamento para centro especializado. A noção que durante muito tempo perdurou, de que a criança “iria libertar-se quando entrasse para o infantário” tem-se mostrado muito prejudicial e deverá ser abandonada. A criança deve ser avaliada por uma equipa multidisciplinar que inclua terapeuta da fala para uma avaliação completa da linguagem. Esta avaliação pretende esclarecer o diagnóstico diferencial, avaliar comorbilidade, e competências cognitivas, e excluir problemas médicos associados. Quando for justificado pode ser necessário proceder a avaliação por neurologista ou otorrinolaringologista, sendo em todos os casos recomendada uma avaliação formal da audição. Deve ser, em suma, planeada uma intervenção adequada às dificuldades de cada criança, que abranja as perturbações associadas, um plano de seguimento e reavaliações periódicas.

O prognóstico será dependente das dificuldades encontradas, da patologia associada e da resposta à intervenção. No entanto, não se deve esquecer que a chave para um sucesso nas crianças com perturbações da linguagem reside na detecção precoce dos problemas, no diagnós- tico preciso e na aplicação de intervenções apropriadas.

GLOSSÁRIO

Para as definições de agnosia, disartria, dislexia, afasia e síndroma de Landau-Kleffner sugere-se a consulta do Glossário Geral no início de cada volume.

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