Definição

De uma forma genérica, os maus tratos podem ser definidos como qualquer forma de actuação física e/ou emocional, não acidental e inadequada, resultante de disfunções e/ou carências nas relações entre crianças e jovens, e pessoas mais velhas, num contexto de uma relação de responsabilidade, confiança e/ou poder.

Podem traduzir-se por comportamentos activos (físicos, emocionais ou sexuais) ou passivos (omissão ou negligência nos cuidados e/ou afectos). Pela maneira reiterada como geralmente acontecem, privam o menor dos seus direitos e liberdades afectando, de forma concreta ou potencial, a sua saúde e o desenvolvimento (físico, psicológico e social) e/ou dignidade.

Importância do problema

Tais comportamentos deverão sempre ser analisados tendo em conta a cultura e a época em que têm lugar, sendo importante conhecer as práticas e as ideias que apoiavam e promoviam muitos actos socialmente aceites em determinada época, relativamente à infância. Ao longo do tempo tem-se comprovado que tais práticas inadequadas e as agressões, sob as mais diversas formas, têm sido comuns desde os tempos mais remotos; ainda num período relativamente recente, há cerca de um ou dois séculos, eram considerados correctos e, como tal, socialmente aceites.

Foram necessárias profundas modificações culturais, sociais e de sensibilidades até que fossem reconhecidos a individualidade e os direitos próprios da criança.

Nota histórica

A história da violência exercida sobre a Criança, ao longo dos tempos, confunde-se com a história da própria Humanidade. Quanto mais recuamos no tempo, maiores são as atrocidades cometidas contra as crianças. Assim, na Antiguidade o infanticídio era uma prática habitual que perdurou nas culturas orientais e ocidentais até ao século IV DC. Realizava-se por diversos motivos, entre os quais se contam: eliminar filhos ilegítimos, deficientes ou prematuros; dar resposta a crenças religiosas (salvar a vida do rei em perigo, acalmar a fúria dos deuses, demonstrar-lhes devoção ou pedir-lhe graças); controlar a natalidade, etc..

Na Roma antiga, o direito à vida era outorgado em ritual, habitualmente pelo pai, sendo ilimitados os seus direitos sobre os filhos. Os recém-nascidos eram, não só sacrificados em altares dedicados exclusivamente a este fim, como também projectados contra as paredes ou abandonados às intempéries sem qualquer vestimento.

O aparecimento do Cristianismo e a conversão do Imperador Constantino ao mesmo, provocou uma mudança fundamental da atitude da sociedade para com as pessoas mais débeis. Este Imperador, autor da primeira lei contra o infanticídio, influenciou decisivamente o percurso histórico da questão da violência exercida sobre os menores através do conhecimento dos seus direitos, contribuindo para a redução dos casos de infanticídio.

Durante a Idade Média, face às numerosas guerras e à precariedade económica, muitas crianças dos grupos sociais mais carenciados eram vítimas de infanticídio ou abandono. Nas classes abastadas verificava-se mais o abandono afectivo e as manifestações do poder do pai como dono da criança. As práticas sexuais com adolescentes eram naturalmente admitidas.

Durante os séculos XVII e XVIII, a protecção das crianças era feita através do seu internamento em instituições. Nesse período a infância começou finalmente a ser encarada como uma etapa específica da vida, necessitando de atenções especiais. No entanto, ainda no século XVIII, foi criada a “Roda” existente em instituições (cilindro rolante na incrustado numa parede com gavetas em disposição circular onde eram depositadas as crianças abandonadas; rodando o cilindro, ficando as gavetas no lado oposto da parede, aquelas iam sendo depois recolhidas. Muitas acabavam por perecer.

O interesse pela protecção infantil apareceu, definitivamente, no século XIX, como consequência da Revolução Industrial, apesar de esta ter trazido consigo a exploração da criança pelo trabalho e de, ainda nesta época, ser frequente o infanticídio dos filhos ilegítimos.

Em 1860, em França, começaram a ser denunciados os casos de maus tratos infantis. Nesse ano, Ambroise Tardieu fez a primeira grande descrição científica da síndroma da criança maltratada no seu livro Étude médico-legal sur les sevices et mauvais traitements exercés sur les enfants. O seu trabalho não foi valorizado pela comunidade científica durante quase cem anos, mas conseguiu despertar a consciência social naquele país, acabando por levar à promulgação de uma lei de protecção das crianças maltratadas.

A I Grande Guerra, pelos seus efeitos sobre a população civil e sobre a infância, teve uma influência decisiva nesta matéria, sendo fundada em Genebra, em 1920, a “União Internacional de Socorros às Crianças” a qual criou uma carta de princípios, conhecida pela “Carta dos Direitos da Criança ou Declaração de Genebra”.

A II Guerra Mundial veio dar novo impulso à evolução nesta matéria. Foram então criados em 1947 organismos como a UNICEF ou “Fundo Internacional de Socorro da Infância”. Em 1948, foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” e, em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direitos da Criança” que constituiu um importante avanço. (Parte I – Introdução à Clínica Pediátrica).

Já a partir de 1939 Caffey, detectando fracturas e hematomas subdurais em certas crianças, veio definir uma entidade clínica que designou “traumatismo de origem desconhecida”. Na sequência desses estudos, Silverman, em 1953, admitiu que tais casos, acompanhados de sinais de traumatismo, poderiam ser provocados pelos pais tendo outros autores demonstrado que as lesões melhoravam com o afastamento da criança do seu núcleo familiar.

Em 1961, H. Kempe começou a usar a expressão “battered child” ou “criança batida” e, em 1962, juntamente com os seus colaboradores, publicou um artigo sobre crianças maltratadas considerando esta situação como uma síndroma clínica (the battered child syndrome), relativamente à qual previa já a necessidade de uma intervenção multidisciplinar e o afastamento temporário dos pais.

Depois de Kempe, os resultados de muitos estudos vieram reforçar a importância da protecção à infância e da sua defesa nos seus múltiplos e variados aspectos.

Na década de setenta do século XX foram criados em muitos hospitais grupos multidisciplinares, tendo como objectivos o diagnóstico e a orientação das crianças maltratadas.

Em 1989, na Assembleia Geral das Nações Unidas foi aprovada a Convenção sobre os Direitos da Criança, onde se defende que as crianças, devido à sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e atenções especiais, sendo dada especial ênfase aos cuidados primários e às responsabilidades da família.

Em Portugal, foi na década de oitenta passada que este assunto passou a merecer atenção especial com a criação dos primeiros núcleos de estudo e apoio à criança maltratada, integrando pediatras, técnicos do serviço social, enfermeiras, psicólogos, pedopsiquiatras, representantes dos tribunais de menores e outros profissionais. 

Em 1990 foi ratificada, na Assembleia da República, a Convenção sobre os Direitos da Criança, em sintonia com a deliberação anterior da Assembleia Geral da Nações Unidas.

Em 1991 foram criadas as Comissões de Protecção dos Menores, com sede nas autarquias locais, integradas por representantes dos tribunais, técnicos de serviço social, médicos e elementos da autarquia e da comunidade.

Em 1998 a Comissão Interministerial para o estudo da articulação entre os Ministérios da Justiça e da Solidariedade e Segurança Social, passou a utilizar o termo “criança em risco”.

Em 1999 foi redigida a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2001 e alterada em 2015), substituindo as Comissões de Protecção de Menores pelas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, estando previstas novas formas para a sua protecção. De salientar, a este propósito, que em 2011, a Direcção Geral da Saúde (DGS) elaborou o documento intitulado Maus Tratos em Crianças e Jovens – Guia prático de abordagem, diagnóstico e intervenção.

A partir de 2008, sob os auspícios do Ministério da Saúde (DGS) foram aprovados projectos funcionais com a criação, respectivamente, dos chamados Núcleos de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NACJR) e dos Núcleos Hospitalares de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) – integrando a chamada Acção de Saúde para Crianças e Jovens em Risco (ASCJR) -. Esta estratégia teve como justificação considerar o assunto em questão como uma área de intervenção pública na saúde, da maior importância estratégica e relevância social.

A este propósito, cabe salientar que a Rede de Núcleos da ASCJR, a partir de Junho de 2013, passou a estar articulada com o novo Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ) – http://www.dgs.pt/?cr=24430.

Em 5 de Dezembro de 2008 foi aprovado, no Despacho nº 31292, o documento “Maus Tratos em Crianças e Jovens – Acção da Saúde para crianças e jovens em risco”, tendo como objectivo a orientação técnica para definir a intervenção da Saúde nesta área. Na mesma data foi promulgada a criação de Núcleos de Apoio à Criança e Jovens em Risco (NACJR) em todos os agrupamentos de centros de saúde e hospitais do país com atendimento pediátrico.

Tipologia dos maus tratos

A violência para com as crianças e jovens manifesta-se por formas muito diferentes, como maus tratos físicos (que, no limite, se traduzem pelo infanticídio ou homicídio), abuso emocional ou psicológico, abuso sexual, negligência, abandono, exploração no trabalho, exercício abusivo da autoridade e tráfico de crianças e jovens, entre outras formas de exploração. Esta violência pode observar-se em diferentes contextos, designadamente familiar, social e institucional.

Assim, as crianças e jovens podem ser maltratados por um dos progenitores ou por ambos, por um cuidador, por um irmão ou outro familiar, por uma pessoa conhecida ou por um estranho. O abusador pode ser um adulto ou um jovem mais velho.

Apenas em situações de muita gravidade se consideram como situação de maus tratos os que acontecem fora do contexto familiar ou institucional.

Pela sua frequência e relevância apenas serão consideradas as seguintes formas de maus tratos: negligência, maus tratos físicos, abuso sexual e abuso emocional, e a chamada síndroma de Munchausen por procuração.

1. Negligência

A negligência constitui um comportamento de omissão relativamente aos cuidados a ter com as crianças e jovens, não lhes sendo proporcionada a satisfação das suas necessidades em termos de cuidados básicos e de higiene, alimentação, segurança, educação, saúde, estimulação e apoio.

Pode ser voluntária (com a intenção de causar dano) ou involuntária (resultante da incompetência dos pais para assegurar os cuidados necessários e adequados). Inclui diversos tipos como a negligência intra-uterina (durante a gravidez), física, emocional e escolar, além da mendicidade e do abandono. Deste comportamento resulta dano para a saúde e/ou desenvolvimento físico e psicossocial da criança e do jovem.

É importante referir a noção de que a negligência pressupõe que o cuidador tem a capacidade, o conhecimento e o acesso aos serviços necessários para o bom desenvolvimento da criança, mas falha nessa prestação. (UNICEF, 2014)

2. Maus tratos físicos

Esta forma de maus tratos corresponde a qualquer acção, não acidental, por parte dos pais ou pessoa com responsabilidade, poder ou confiança, que resulta da força física ou de objecto contra a criança ou adolescente, e que provoque ou possa provocar dano físico na criança ou jovem.

O dano resultante pode traduzir-se em lesões físicas de natureza traumática, fracturas, queimaduras, doença, sufocação, afogamento, castigo corporal, intoxicação, síndroma da criança abanada e a violência entre pares sob a forma de bullying físico e praxe (com intenção de provocar dor ou desconforto, físico ou psíquico).

3. Abuso sexual

O abuso sexual traduz-se pelo envolvimento da criança ou jovem em práticas que visam a gratificação e satisfação sexual do adulto ou jovem mais velho, numa posição de poder ou de autoridade sobre aquele. Trata-se de práticas que a criança e o jovem, dado o seu estádio de desenvolvimento, não conseguem compreender e para as quais não estão preparados. Pode ser intra ou extrafamiliar, (muito mais frequente o primeiro) e ser repetido, ao longo da infância.

São exemplos deste tipo de abuso: a obrigação de a criança e o jovem conhecerem e presenciarem conversas ou escritos obscenos, espectáculos ou objectos pornográficos ou actos de carácter exibicionista; a utilização do menor em fotografias, filmes, gravações pornográficas, ou em práticas sexuais de relevo; a penetração com partes do corpo ou objecto; a manipulação dos órgãos sexuais; casamento infantil e violência sexual nas relações de intimidade.

4. Abuso emocional

Esta forma de abuso constitui um acto de natureza intencional caracterizado pela ausência ou inadequação, persistente ou significativa, activa ou passiva, do suporte afectivo e do reconhecimento das necessidades emocionais da criança ou jovem indispensáveis ao crescimento, desenvolvimento e comportamentos adequados.

Do referido abuso resultam efeitos adversos no desenvolvimento físico e psicossocial da criança ou jovem e na estabilidade das suas competências emocionais e sociais, com consequente diminuição da sua auto-estima.

São citados como exemplos insultos verbais, humilhação, ridicularização, desvalorização, ameaças, indiferença, discriminação, favoritismo, rejeição, culpabilização, críticas, bullying e cyberbullying, violência emocional no namoro e problemas relacionais entre pais e criança, nomeadamente de violência doméstica, assim como situações de alienação parental.

Como se depreende, este tipo de maus tratos está presente em todas as outras situações de maus tratos, pelo que só deve ser considerado isoladamente quando constituir a única forma de abuso.

O diagnóstico de qualquer destas situações requer, em geral, um exame médico e psicológico da vítima, e uma avaliação social e do seu contexto familiar.

5. Síndroma de Munchausen por procuração

5.1 Definição

Abordar a problemática dos maus tratos na criança implica também a referência especial a uma situação designada por síndroma de Munchausen por procuração. Trata-se dum quadro clínico em que um dos progenitores – invariavelmente a mãe – está implicado, simulando ou causando sinais e sintomas de doença orgânica no filho levando como consequência à realização de procedimentos de diagnóstico exaustivos e recurso a técnicas invasivas com hospitalizações frequentes. Esta situação é perpetrada em crianças incapazes ou não desejosas de identificar a agressão e o agressor

5.2 Etiopatogénese

Existem várias possibilidades quanto à etiopatogénese: o progenitor propicia uma história clínica inventada; poderá falsificar os resultados ou o nome do titular de exames complementares laboratoriais; poderá provocar sintomatologia na criança através de diversos estratagemas: lesão traumática em condições especiais, administração de determinados fármacos tirando partido de determinados efeitos dos mesmos; simulação de síndroma febril exibindo o termómetro previamente introduzido em líquido quente; exposição repetida a determinada toxina; apneia e convulsões provocadas, por exemplo, por sufocação; coloração de fezes e urina com o sangue simulando respectivamente rectorragias e hematúria, etc..

Muitas vezes a mãe tem experiência de ambiente médico-assistencial, estando familiarizada com nomes e sintomas de determinadas doenças. As manifestações estão sempre associadas à proximidade entre a mãe e a criança.

Noutras circunstâncias, a mãe incute no filho a ideia de situação de risco ou mesmo de doença, o que origina da parte da criança o desejo de mais dependência e de estar com ela, implicando, por exemplo, absentismo escolar.

Neste contexto, o cenário habitual é o de um pai que tem um papel passivo e distante deixando a cargo da mãe todas as diligências relativas aos cuidados a prestar ao filho.

5.3 Manifestações clínicas

A detecção da síndroma de Munchausen por procuração requer um elevado índice de suspeita; os sintomas e sinais, atípicos e incompatíveis com processos mórbidos naturais e reconhecidos, poderão ser indiciadores.

As manifestações são diversas e dedutíveis das circunstâncias etiopatogénicas atrás referidas, conforme a idade da criança; por exemplo: hiperactividade, sonolência, febre, convulsões, apneia, cefaleias, dor abdominal. Podem atingir qualquer aparelho ou sistema orgânico e sugerir uma variedade de processos patológicos.

Por vezes existem antecedentes maternos da referida síndroma.

Classicamente a síndroma é mais frequente em crianças que ainda não falam; no entanto, estão descritos casos no período pubertário.

De referir no entanto que por vezes existe doença orgânica associada.

5.4 Diagnóstico

Face às suspeitas da situação, para além de redobrada vigilância estando a criança hospitalizada, haverá que proceder a exames complementares comprovativos estritamente necessários e minimamente invasivos segundo o princípio de “primum non nocere”.

A propósito de exames complementares, cabe salientar que submeter uma criança a procedimentos invasivos excessivos, sem fundamentação aparente, poderá ser considerado eticamente mau trato ou abuso.

Aspectos epidemiológicos

É impossível determinar a verdadeira incidência de casos de maus tratos em qualquer país e, consequentemente, a morbilidade e mortalidade a eles associadas. Tal dificuldade deve-se ao facto de um elevado número de casos acontecer em meio familiar (sendo assim de difícil visibilidade), à aceitação social de muitos deles, ao medo da represália por parte das vítimas e testemunhas, à vergonha, à baixa credibilidade e desvalorização dos relatos da criança, às dificuldades no seu diagnóstico e à falta de notificação sistemática dos mesmos.

A maior parte dos maus tratos surge em todos os grupos sociais. Admite-se que acontecem com maior frequência nas classes sociais mais desfavorecidas, em virtude das carências económicas a que se associam as más condições habitacionais, o baixo nível ou ausência de instrução escolar e da promiscuidade, e a desorganização da vida profissional, social e familiar.

Segundo a OMS, e com base em inquéritos de autorrevelação, estima-se que na Europa, em 2013, 9,5% das crianças até aos 18 anos tenham sido vítimas de abuso sexual, 22,9% vítimas de violência física, e 29,1% de abuso psicológico; estes dados são muito superiores aos registados pelas fontes oficiais. Algumas estimativas sugerem que o número de casos detectados corresponde apenas a 30-35% do total.

De acordo com o estudo epidemiológico realizado em Portugal por Fausto Amaro, em 1985, haveria 20 mil casos de crianças maltratadas. Ao tempo, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco apurou a seguinte frequência relativa:

  • Negligência e abandono: 65,8%;
  • Maus tratos físicos e psicológicos: 28,7%;
  • Abuso sexual: 5,5%.

Em 2015 existiam em Portugal 277 Núcleos anteriormente citados, distribuídos do seguinte modo: 83% a nível dos Cuidados de Saúde Primários, e 13% a nível Hospitalar. O trabalho desenvolvido ao longo do tempo traduziu-se globalmente, entre Janeiro de 2008 e Dezembro de 2015, em 47.172 sinalizações.

Durante o período 2008-2015 verificou-se uma tendência de aumento do número de sinalizações podendo reflectir, quer um aumento verdadeiro, quer um incremento na sensibilização e capacidade de os profissionais detectarem casos, quer ainda a conjugação de factores.

De acordo com o Relatório da ASCJR/DGS publicado em Dezembro de 2016, e tomando como referência o ano de 2015, a tipologia das situações de maus tratos sinalizada em Portugal Continental (n= 8684), pode assim sintetizar-se:

  • Negligência: 70%;
  • Mau trato físico: 7%;
  • Abuso sexual: 5%;
  • Mau trato psicológico: 15%;
  • Outras situações: 3%.

Tomando como exemplo o mau trato mais frequente (negligência), no período entre 2008 e 2015 a proporção de sinalizações oscilou entre 67% (em 2012) e 73% (em 2014).

Factores de risco

São considerados factores de risco dos maus tratos todas as influências que aumentam a probabilidade de ocorrência ou de manutenção de tais situações. Contudo, na sua avaliação deve imperar sempre o bom senso, tendo em conta o contexto da situação, uma vez que qualquer destes factores, isoladamente, poderá não constituir um factor de risco.

Tais influências estão relacionadas com características individuais dos pais, da criança ou jovem, assim como do contexto familiar, social e cultural.

As características individuais dos pais são múltiplas, enumerando-se as mais frequentes: alcoolismo, toxicodependência; perturbação da saúde mental ou física; antecedentes de comportamento desviante; personalidade imatura e impulsiva; baixo auto-controlo e reduzida tolerância às frustrações; baixa auto-estima; antecedentes de maus tratos na infância; idade muito jovem (inferior a 20 anos, sobretudo as mães); baixo nível económico e cultural; desemprego; perturbações no processo de vinculação com o filho (especialmente mãe/filho no período pós-natal precoce); excesso de vida social ou profissional que dificulta o estabelecimento de relações positivas com os filhos.

As características da criança ou jovem mais frequentemente associadas ao tópico em análise são: a vulnerabilidade em termos de idade e de necessidades; a personalidade e temperamento não ajustados aos pais; a prematuridade; baixo peso de nascimento; perturbação da saúde mental ou física (anomalias congénitas, doença crónica), défice cognitivo e/ou físico, temperamento “difícil”, comportamento desafiante, hiperactividade, comportamento de oposição, baixa auto-estima, baixa tolerância à frustração, etc..

As características do contexto familiar, isto é, as fontes de tensão susceptíveis de facilitar os maus tratos são: gravidez não desejada; família monoparental, reconstituída com filhos de outras ligações, com muitos filhos, não estruturada (relação disfuncional entre os pais, crises na vida familiar, mudança frequente de residência ou emigração); famílias com problemas socioeconómicos e habitacionais (extrema pobreza, situações profissionais instáveis, isolamento social), entre outras.

Também as características do contexto social e cultural, tais como a atitude social para com as crianças, as famílias e atitude social em relação à conduta violenta, são factores de intensificação do trauma.

Diagnóstico

Tal como em qualquer outra patologia, a abordagem dos maus tratos deve ser feita com vista a atingir o diagnóstico da situação clínica e social, notificar, e instaurar o tratamento e/ou orientação adequados assegurando a protecção da criança. Assim, importa realizar correctamente uma história clínica integrando: anamnese, exame físico, exames complementares, tratamento e orientação/intervenção.

Anamnese

A realização da anamnese é fundamental, assim como o seu correcto registo. É importante evitar múltiplas entrevistas ao menor, uma vez que pode levar a uma vitimização secundária, pelo que esta deve ser feita pelo mínimo de profissionais da equipa, num ambiente privado.

No interrogatório importa atender a certos indicadores que nos podem alertar para a existência de maus tratos tais como:

Incongruências: atraso na procura de ajuda por parte dos cuidadores; explicação pouco concreta sobre a origem ou mecanismo da lesão; versões diferentes sobre o mecanismo da lesão; lesões não concordantes com o desenvolvimento psicomotor da criança.

Comportamentos: medo dos progenitores/cuidadores; atitude receosa face ao contacto físico; pais excessivamente severos e rígidos manifestando uma percepção negativa do filho. 

Não podemos ignorar o contexto social, tendo em conta as circunstâncias pessoais, familiares e sociais nas quais a criança ou jovem se desenvolve, com o intuito de pesquisar possíveis factores de risco (já referidos anteriormente).

Exame físico

O exame físico deve ser completo e minucioso, incluindo a avaliação da pele, cabelo, unhas, roupa, etc.. Devemos registar o estado de higiene, somatometria e realizar uma avaliação sumária do desenvolvimento psicomotor. 

As manifestações clínicas evidenciadas pelo exame físico são muito variadas, dependendo do tipo de mau trato; com efeito, não existindo lesões patognomónicas, importa atitude ter um elevado índice de suspeita diagnóstica.

Com efeito, existem lesões físicas que, pelas suas características, nos fazem suspeitar de maus tratos:

  • Lesões cutâneas ou das mucosas (equimoses, hematomas, feridas, cicatrizes): localizadas em zonas de punição/castigo (fora do rebordo ósseo); normalmente múltiplas e, por vezes, podem reproduzir padrão de objecto;
  • Queimaduras: localizadas em zonas cobertas ou distais, em luva (por imersão), classicamente respeitam as pregas profundas, apresentam bordos bem delimitados e sem lesões de salpicos;
  • Mordeduras humanas: são múltiplas ou recorrentes, de forma ovóide reproduzindo a arcada humana e de tamanho do adulto;
  • Lesões osteoarticulares: fracturas dos ossos longos (metafisárias por estiramento ou em espiral por torção do membro), das costelas (posteriores ou laterais), e vertebrais (por hiperextensão/flexão); são características de maus tratos fracturas em múltiplas localizações e em várias fases de evolução;
  • Traumatismo cranioencefálico: fracturas cranianas que são bilaterais, de trajecto não linear e que cruzam suturas, ou afundadas. O hematoma subdural, associado invariavelmente a trauma, é o tipo mais comum de hemorragia intracraniana nos maus tratos;
  • Achados sugerindo síndroma da criança abanada (descrita em 1946 por Caffey): hematoma subdural e hemorragias retinianas em 60-90% dos casos; por vezes associada a múltiplas fracturas dos ossos longos.

No abuso sexual as lesões físicas são raras e a cicatrização é bastante rápida e completa pelo que, o diagnóstico diferencial é extenso. Existem, no entanto, alguns sinais e sintomas que nos façam suspeitar de estarmos perante situações de abuso:

  • Lesões externas dos órgãos genitais;
  • Leucorreia vaginal persistente ou recorrente;
  • Rubor dos órgãos genitais externos;
  • Lesões cutâneas: rubor, inflamação petéquias ou atrofia cutânea perineal ou perianal;
  • Lesões no pénis;
  • Lacerações ou fissuras genitais ou anais, sangrantes ou cicatrizadas;
  • Laceração do hímen;
  • Hemorragia vaginal ou anal;
  • Laxidão anormal do esfíncter anal ou do hímen, fissuras anais;
  • Equimoses e/ou petéquias na mucosa oral e/ou lacerações do freio dos lábios;
  • Sugilações (“chupões”) no pescoço/mamas;
  • Infecções urinárias de repetição;
  • Infeções de possível transmissão sexual: gonorreia, herpes genital, verrugas genitais (por vírus do papiloma humano-VPH), sífilis, infecção por vírus da imunodeficiência humana-VIH, infecção por Clamídia, hepatite B e C;
  • Presença de esperma no corpo da criança/jovem;
  • Gravidez.

Intervenção

Na suspeita de maus tratos, a vítima (criança ou jovem) deve ser internada ou temporariamente afastada do meio familiar, com um duplo objectivo: em primeiro lugar, a sua protecção, impedindo que os maus tratos continuem e provoquem lesões mais graves; em segundo lugar, dispor de tempo suficiente para um estudo familiar e social completo. Esta actuação vai permitir que se tomem as diligências necessárias ao seu encaminhamento correcto.

Contudo, nalgumas situações de maus tratos perpetrados por alguém não próximo da criança/jovem em que não são necessários cuidados médicos, pode ponderar-se a eventualidade de a criança/jovem voltar ao seu domicílio, desde que os pais sejam “de confiança” e protectores, permitindo um acompanhamento seguro em situação de não internamento.

A observação do comportamento dos pais, da criança, e da relação entre ambos, pode fornecer elementos adicionais importantes para a formulação do diagnóstico de maus tratos. Ao contrário do que acontece com as situações acidentais em que os pais se mostram geralmente preocupados com o estado de saúde da criança, nas situações de maus tratos devem ser considerados suspeitos: os que recusam o tratamento ou o internamento dos filhos; os que se mostram indiferentes ou agressivos; ou os que colocam as suas preocupações acima do estado de saúde da criança.

Por sua vez, as crianças podem mostrar-se demasiado assustadas, não acalmando com a presença ou com as carícias dos pais ou assumindo posturas de defesa à aproximação de adultos.

A atitude da equipa (multidisciplinar) que orienta estes casos deve pautar-se sempre por extrema prudência e calma, mostrando uma atitude de compreensão e evitando juízos de crítica ou atitudes de punição da família. É fundamental, pois, perceber que se está perante uma família doente e que uma intervenção de ajuda é a mais correcta e comprovadamente mais eficaz.

Consequências orgânicas e psicossociais

Não é possível estabelecer uma relação simples entre o tipo de maus tratos e as suas consequências a longo prazo, dado que na maior parte das vezes se trata de situações mistas, em todas elas estão subjacentes os maus tratos emocionais que, pela sua natureza, são difíceis de identificar e controlar.

Os maus tratos intrafamilares são aqueles que mais graves consequências têm para crianças e jovens, dado que dos mesmos resultam uma profunda quebra de confiança e uma importante perda de segurança em casa, por sua vez uma ameaça profunda para o desenvolvimento.

É sabido que uma criança vítima de maus tratos corre sérios riscos de morte, de lesões cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro ano de vida, se não for diagnosticada e não se providenciarem as medidas adequadas à sua protecção.

A grande maioria dos casos fatais de maus tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos. As causas mais frequentes são os traumatismos cranianos dos pequenos lactentes, seguidos pelas lesões intra-abdominais (ruptura de vísceras), asfixia e sufocação. Nas crianças mais velhas, em idade escolar, não existe geralmente risco de vida. A repetição dos maus tratos físicos ou psicológicos vai ter, contudo, repercussões graves na vida futura da vítima; importa, por isso, estar atento a estas questões no sentido de as prevenir, identificar e tratar.

Em síntese, são consideradas, a longo prazo, as seguintes consequências psicossociais: atraso de crescimento, atraso de desenvolvimento, atraso de linguagem, insucesso escolar, alterações de comportamento, risco elevado de delinquência, diminuição da auto-estima, dificuldades no relacionamento social, baixas expectativas de vida e transmissão do mau trato às gerações futuras.

Prevenção

Em todo o processo de protecção da infância, a prevenção dos maus tratos constitui a sua prioridade fundamental. Existem três níveis de prevenção, consoante os objectivos e os alvos a que é dirigida:

  • Primária – prestação de serviços à população em geral, tendo em vista evitar o aparecimento de casos de maus tratos;
  • Secundária – prestação de serviços a grupos específicos de risco, a fim de tratar ou evitar novos casos, promovendo o regresso da criança à família;
  • Terciária – prestação de serviços a vítimas de maus tratos, para minorar a gravidade das consequências e evitar a recidiva.

prevenção primária engloba vários tipos de medidas que devem ser dirigidas a dois alvos de níveis distintos, pelo que se designam prevenção primária inespecífica, ou específica.

prevenção primária inespecífica é dirigida à população em geral e deve começar por fomentar uma cultura anti-violência, passando pela informação da comunidade; pela promoção da saúde materno-infantil; pela preparação de técnicos que trabalham com crianças; pelo ensino aos futuros pais; pela estimulação da relação mãe-filho; pela protecção legal, e pela criação de estruturas sociais de apoio à maternidade e a criança e ao jovem. Deve incluir ainda medidas muito mais vastas de cariz social, como a promoção da melhoria das condições de vida, da saúde, e do emprego; e o combate ao trabalho infantil, ao alcoolismo e à toxicodependência, entre outras.

prevenção primária específica tem como principal objectivo a identificação das crianças e famílias em risco. A estratégia de intervenção depende do tipo de problemas identificados em cada família.

A identificação de crianças em risco na maternidade deve levar a maior vigilância e apoio à mãe: ensino de regras de puericultura; estimulação do aleitamento materno e da relação mãe-filho; acompanhamento mais estreito nas consultas de saúde infantil; promoção de programas de visitas domiciliárias; ensino da prevenção de acidentes; tratamento da desintoxicação alcoólica ou toxicodependência dos pais; auxílio na aquisição de benefícios sociais; melhoria das condições habitacionais; integração em creches; e ocupação dos tempos livres. Estas medidas devem ser desenvolvidas em todas as situações familiares de risco.

prevenção secundária inclui: o tratamento adequado da criança e intervenção na família, e o apoio e vigilância no domicílio e na comunidade. As visitas domiciliárias a cargo de enfermeiras, assistentes sociais, a colaboração do médico de família, e a integração das crianças em creches ou jardins de infância são medidas que devem fazer parte deste deste tipo de prevenção.

As modalidades de abordagem acima referidas não terão êxito se não puderem contar com o apoio de meios adequados e legislação que, garantindo os direitos humanos, permita a sua aplicação. Assim, as estruturas políticas deverão ser consideradas como parceiros sociais nas acções de prevenção relativas aos maus tratos.

A reflexão sobre os programas de prevenção do mau trato permite deixar uma nota de optimismo desde que o apoio seja precoce e continuado e, sobretudo, se se conseguir o estabelecimento de uma relação respeitosa e de confiança entre os técnicos e as famílias das crianças maltratadas.

Esta intervenção reestruturante da anarquia das relações familiares consegue muitas vezes estabilizá-las de forma a permitir o desabrochar das potencialidades intelectuais e afectivas das crianças e jovens vítimas de maus tratos.

Reportando-nos ao papel da Rede de Núcleos no âmbito da DGS, importa salientar que as respectivas equipas não se têm limitado ao trabalho de detecção e sinalização, pois também têm participado em numerosas acções de formação. Além disso, continuam a ser levadas a cabo numerosas iniciativas de carácter informativo e de prevenção no âmbito do tópico em análise.

BIBLIOGRAFIA

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