Definições
O conceito de psicose diz respeito a um conjunto de sintomas que alteram gravemente as funções mentais, nomeadamente o pensamento, a percepção, a cognição e os afectos. Os sintomas psicóticos, os delírios e as alucinações afectando profundamente a relação com a realidade, têm assim um potencial devastador na vida mental.
Os sintomas psicóticos podem aparecer associados a vários quadros psicopatológicos, tais como perturbações depressivas e bipolares, constituindo, nestes casos, um indicador de gravidade. Por outro lado, podem organizar-se como doença principal, constituindo as perturbações do espectro da esquizofrenia: estas incluem, para além da esquizofrenia propriamente dita, as perturbações: psicótica breve, esquizotípica, esquizoafectiva, esquizofreniforme, delirante, catatonia, psicótica induzida por substância/medicamento ou determinada entidade clínica.
Relativamente à esquizofrenia, cabe referir que esta patologia representa desde a Grécia Antiga, o paradigma da loucura. Somente no século XVIII, com More, a doença passou a ser considerada como entidade clínica própria designada demência precoce.
Os quadros psicopatológicos distinguem-se entre si, não só pela qualidade, intensidade e desencadeantes dos sintomas, mas também pelo tempo de evolução.
Os sintomas psicóticos podem também surgir no contexto de patologias neurológicas, genéticas, metabólicas, infecciosas e autoimunes, por efeitos adversos de fármacos ou por exposição a substâncias psicoactivas.
Na idade pediátrica, os sintomas transitórios de carácter psicótico podem aparecer, na ausência de psicopatologia, ou como manifestações em contexto de situações traumáticas agudas.
Aspectos epidemiológicos e factores de risco
As perturbações do espectro da esquizofrenia têm o seu início típico no final da adolescência e início da idade adulta, entre os 14 e os 25 anos. Afectando classicamente as últimas etapas do desenvolvimento, há cada vez mais tendência para entendê-las como perturbações do neurodesenvolvimento.
Predominando no sexo masculino (2:1), a sua prevalência na população geral é estimada em cerca de 1%.
Na infância os sintomas psicóticos são particularmente difíceis de identificar, não existindo dados confiáveis sobre a sua prevalência. Aos 13 anos, esta última evidencia taxa de 0,9/10.000, aumentando aos 18 anos para 1/500.
Existe uma vulnerabilidade genética reconhecida, aparentemente comum a outras perturbações que cursam com sintomas psicóticos (autismo, doenças afectivas).
Como factores de risco incluem-se: problemas perinatais, problemas psicossociais (pobreza, migração, vida em grandes meios urbanos, situações de negligência e abuso) e consumo de substâncias psicoactivas (nomeadamente canabinóides) durante a adolescência.
Manifestações clínicas
O modo de início das perturbações pode ser:
- Insidioso, englobando sintomas prodrómicos, numa personalidade com alguns traços de sintomas negativos; ou
- Agudo, com um quadro inaugural de delírios e alucinações.
Entre os sintomas prodrómicos, inespecíficos e variáveis, citam-se como mais representativos os seguintes: diminuição da atenção e concentração, falta de motivação, estado de ânimo depressivo, perturbações do sono, isolamento social e irritabilidade.
As perturbações do espectro da esquizofrenia caracterizam-se por um leque de sintomas relacionados com o pensamento, emoções e comportamento que se agrupam, classicamente, em dois tipos: positivos e negativos consoante correspondam respectivamente a uma alteração por excesso ou por defeito de uma função.
Entre os sintomas positivos encontram-se as alucinações e os delírios.
As alucinações são alterações da percepção, salientando-se como mais frequentes as alucinações auditivas, habitualmente sob a forma de vozes. Por vezes associam-se alucinações visuais, tácteis ou olfactivas. A existência de alucinações visuais isoladas é extremamente rara e deve levar fortemente a considerar outras hipóteses de diagnóstico.
Os delírios constituem alterações do conteúdo do pensamento determinando convicções que não são postas em causa através dos dados da realidade. Podem apresentar uma temática persecutória, religiosa, grandiosa ou sexual. As alterações formais do pensamento incluem a perda da coerência associativa, bloqueios do pensamento (traduzidos frequentemente por uma paragem súbita do discurso) e pensamento hiperinclusivo.
Os sintomas negativos manifestam-se por um empobrecimento dos afectos e da sua expressão: fácies inexpressiva, mímica facial pobre, restrição do contacto visual e pobreza verbal. De referir ainda, alterações da motricidade traduzidas por aumento do tempo de latência das respostas, posturas bizarras e imobilidade catatónica ou acatísia. Podem surgir também alterações acentuadas na atenção, anedonia (incapacidade para sentir prazer) e comportamento impróprio ou bizarro nos contactos sociais.
O diagnóstico de esquizofrenia é o mais frequente e o mais grave deste grupo pelas suas implicações terapêuticas e prognóstico. É, no entanto, um diagnóstico de exclusão: para poder ser efectuado, o curso da doença deve ter uma duração superior a seis meses.
Em suma, trata-se duma doença grave e estigmatizante que causa grande deterioração cognitiva e funcional, e tanto mais quanto mais precoce for a sua aparição. Na adolescência, o consumo de cannabis pode ser o desencadeante de um episódio psicótico de gravidade variável.
Diagnóstico diferencial
Para além do diagnóstico diferencial dos quadros psiquiátricos, é fundamental a detecção de etiologias orgânicas como verdadeiras causas ou factores potenciadores dos sintomas.
Os sintomas psicóticos podem constituir as primeiras manifestações de patologia neurológica (tumores, epilepsia, traumatismos cranianos), assim como de quadros infecciosos (do sistema nervoso central ou sistémicos), patologias autoimunes (lúpus, tiroidite, encefalites), síndromas paraneoplásicas, patologias genéticas ou metabólicas (doença de Wilson), uso de substâncias psicoactivas (cannabis), ou efeitos adversos de terapêuticas farmacológicas (por ex. corticóides).
Diagnóstico
Na presença de sintomas psicóticos inaugurais é fundamental a elaboração exaustiva da história clínica (do foro médico geral e psiquiátrico) incluindo colheita de dados sobre antecedentes familiares de doenças do foro psíquico, gravidez e desenvolvimento, doenças crónicas ou recorrentes, terapêuticas previamente realizadas ou em curso, defeitos congénitos, funcionamento cognitivo pré-mórbido e actual, etc.. Destaca-se ainda a necessidade de detectar eventuais vivências traumáticas ou o uso de substâncias tóxicas.
Na presença de sintomas psicóticos inaugurais, a investigação complementar requer sempre uma avaliação neurológica.
Devem ser realizados exames laboratoriais de base: hemograma, marcadores inflamatórios (VS, PCR), ionograma sérico englobando Cl, Na, K, Ca e Mg, urina (análise sumária e com pesquisa de agentes tóxicos), e parâmetros das funções tiroideia, hepática e renal.
Perante as primeiras manifestações psicóticas, poderá estar indicada a realização de RM CE (com espectroscopia) e EEG. Estes exames são obrigatórios perante manifestações neurológicas associadas a sintomas psicóticos.
De acordo com os dados da anamnese, da observação clínica (incluindo exame do estado mental) e da investigação laboratorial de base, ou quando estejam presentes sintomas neurológicos, sinais dismórficos, deterioração cognitiva recente ou resistência à terapêutica, poderá estar indicada uma investigação mais aprofundada. Esta pode incluir um estudo analítico da ceruloplasmina, vitamina B12, ácido fólico e homocisteína, aminoácidos no sangue e urina, ácidos orgânicos na urina, estudo imunológico (anticorpos antitiroideus, ANAS e anticorpos antineuronais (NMDA -R, VKC) e eventualmente um estudo genético.
De referir que a associação de quadros clínicos orgânicos a sintomatologia psicótica ocorre raramente. No entanto, o seu reconhecimento atempado poderá possibilitar um tratamento específico, prevenindo a progressão da doença, e evitando ou minorando as sequelas.
Tratamento
A intervenção terapêutica baseia-se na utilização de fármacos antipsicóticos (antagonistas da dopamina) em monoterapia ou em associação. Quando os sintomas estão ligados a uma outra condição médica, o tratamento desta última é fundamental.
Quando é diagnosticada esquizofrenia, a medicação antipsicótica deve manter-se para além dos episódios agudos, numa dose de manutenção que permita evitar recaídas uma vez que cada novo surto psicótico determina um défice no funcionamento global.
Alguns exames são importantes para a monitorização de potenciais efeitos adversos dos fármacos antipsicóticos. Destacam-se: determinação regular do peso, frequência cardíaca e pressão arterial, ECG inicial, controlo regular da prolactina, perfil lipídico, glicémia e HbA1c, assim como parâmetros das funções hepática e renal.
A determinação do nível sérico dos antipsicóticos, quando possível, poderá contribuir para o esclarecimento de dúvidas sobre a adesão à terapêutica.
O internamento psiquiátrico é habitualmente necessário nas fases iniciais e de agudização.
Como importantes estratégias de actuação citam-se:
- Intervenção psicossocial, fundamental para promover a reintegração dos pacientes (em geral na idade da adolescência) na família e na escola, por vezes após internamentos prolongados;
- Treino de competências sociais; e
- Integração da família no projecto terapêutico.
Evolução
A esquizofrenia (forma mais grave e mais frequente deste grupo) evolui em cerca de 30% dos casos para formas crónicas com incapacidade acentuada. Em cerca de 50% dos casos o curso da doença permite certo grau de reintegração social e, até mesmo, profissional.
A ausência de tratamento, ou a má adesão ao mesmo, conduzem a uma deterioração cognitiva progressiva.
As outras perturbações do espectro da esquizofrenia têm uma evolução em geral menos incapacitante. Quando associadas a situação patológica doutro tipo (co-morbilidade), o prognóstico está muito dependente da patologia de base e do seu tratamento.
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