ASPECTOS DO DIAGNÓSTICO DA DOENÇA ALÉRGICA

Aspectos básicos de imunopatogénese

O papel fundamental do sistema imune é proteger o organismo (hospedeiro) contra agentes patogénicos microbianos e, ao mesmo tempo, manter a tolerância de antigénios (do próprio organismo e exógenos) considerados não agressivos ou “inofensivos”. A falência quantitativa e/ou funcional dos mecanismos de defesa implica uma sensibilidade aumentada a infecções, ao passo que a alteração dos mecanismos de tolerância resulta em alergia ou autoimunidade.

Ao nível celular as células dendríticas e os linfócitos T desempenham um papel crucial na homeostase imune. A este respeito salienta-se a diferenciação das células T nativas em vários subtipos (Th ou T helper): Th1, Th2, Th17 e células T reguladoras (Treg).

As células Th1, produzindo interferão gama, e tendo papel importante de cooperação na produção de anticorpos IgG, são essenciais na defesa contra agentes patogénicos intracelulares (vírus e bactérias). As células Th2, produzindo interleucinas (IL)-4 e IL-13, essenciais para a produção de IgE pelas células B, têm papel crucial na defesa contra infecções parasitárias. As células Th17, em associação a IL-17, desempenham papel importante na mobilização dos neutrófilos, sendo essenciais contra certos agentes patogénicos, nomeadamente fungos.

Quanto às células Treg, as mesmas desempenham um papel fundamental na modulação da resposta imune e na manutenção da homeostasia, por controlo da resposta das restantes populações de células T helper. As células Treg podem actuar por contacto directo célula a célula ou pela produção de IL-10 e TFG-β (transforming growth factor).

Recentemente tem sido descrito o papel de células B, para as quais se reconhecem também subpopulações de função reguladora, abandonando-se a ideia de serem células apenas envolvidas na produção de anticorpos.

A doença alérgica pode ser mediada pela produção de anticorpos IgE, sendo designada por doença IgE mediada, ou pode surgir sem a sua intervenção, sendo designada por doença não IgE mediada, sendo estas reacções resultantes da activação de populações celulares T helper ou por vezes T citotóxicas. Actualmente define-se atopia como a tendência, pessoal e/ou familiar, para a produção de anticorpos IgE dirigida contra aeroalergénios comuns.

Anamnese

O diagnóstico da doença alérgica baseia-se essencialmente na história clínica. A anamnese é fundamental e deve esclarecer: a idade de início dos sintomas e circunstâncias do seu aparecimento; a presença de factores desencadeantes, tais como esforço físico, exposição a alergénios (ácaros do pó, pólenes, fungos, epitélios de animais, látex, entre outros) ou ingestão de alimentos ou fármacos. É importante avaliar a frequência, a duração e a gravidade dos sintomas, incluindo recurso ao serviço de urgência e eventual internamento, e a resposta à terapêutica instituída, assim como a variabilidade circadiana e sazonal dos sintomas.

A avaliação do contexto ambiental em que a criança vive é fundamental, particularmente em termos de exposição alergénica (pó, animais domésticos, pólenes mais frequentes na zona de residência) e exposição a tabagismo passivo e outros poluentes ambientais, em ambiente doméstico ou fora de casa.

As doenças alérgicas têm um reconhecido impacte negativo sobre a qualidade de vida da criança e dos seus prestadores de cuidados; tal impacte deve ser pesquisado em cada caso, nomeadamente sobre tolerância ao exercício e interferência nas actividades do quotidiano, períodos de interrupção do sono, perturbação de afectos familiares e sociais, e grau de absentismo escolar.

Os antecedentes pessoais da criança, nomeadamente a coexistência de outras doenças alérgicas e os antecedentes familiares de alergia apoiam o diagnóstico de doença alérgica.

A sensibilização precoce na criança, por via digestiva ou inalatória, desencadeia o início da chamada marcha alérgica. Segundo este conceito clássico, a expressão clínica da atopia varia durante a vida, iniciando-se na primeira infância sob a forma de alergia alimentar e eczema atópico, com evolução ulterior, variável segundo a experiência de vários autores, para alergia respiratória, rinite e asma.

Algumas particularidades clínicas das doenças alérgicas mais prevalentes na criança serão em seguida sucintamente referidas, como complemento do que foi descrito no capítulo anterior.

Asma: entidade clínica caracterizada por episódios recorrentes de tosse, pieira e dificuldade respiratória, parcial ou completamente reversíveis, espontaneamente ou após terapêutica com broncodilatador; em algumas crianças, queixas induzidas pelo exercício físico ou tosse crónica podem ocorrer isoladamente. Apoiam o diagnóstico, a periodicidade dos sintomas, a sintomatologia nocturna, o agravamento com esforço físico, ar frio e exposição a alergénios, bem como a resposta favorável à terapêutica broncodilatadora. Frequentemente documenta-se história familiar de asma parental e história pessoal de rinite e eczema atópico.

De acordo com a definição do Grupo GINA – Global Initiative for Asthma), é uma doença inflamatória crónica das vias aéreas na qual intervêm muitas células particularmente mastócitos, eosinófilos e células T. Nos indivíduos susceptíveis esta inflamação provoca episódios recorrentes de pieira, dispneia, retracção torácica e tosse, os quais podem ser parcial ou totalmente reversíveis, espontaneamente ou por tratamento. A asma alérgica é mediada por mecanismos imunológicos, particularmente IgE, ao contrário da asma não alérgica.

Rinite alérgica: os sintomas incluem rinorreia serosa, prurido nasal, espirros paroxísticos e obstrução nasal (como aspecto característico na ausência de processos infecciosos). A coexistência de sintomas oculares alérgicos (prurido ocular, hiperémia conjuntival, lacrimejo) apoia fortemente este diagnóstico. A variabilidade sazonal, bem como a relação com a exposição alergénica com agravamento no ambiente fora de casa é característica das polinoses.

Eczema atópico: surge, habitualmente, após os 3 meses de vida e caracteriza-se pelo prurido cutâneo intenso, que tipicamente se agrava após o banho, com a sudação e durante a noite, e pela distribuição e morfologia típica das lesões cutâneas, com evolução crónico-recidivante.

Alergia alimentar / medicamentosa: associação entre a ingestão de alimentos / fármacos e o aparecimento dos sintomas, de forma reprodutível após exposição. A forma de manifestação clínica mais frequente é mucocutânea, com urticária e angioedema; no entanto, reacções anafilácticas graves podem ocorrer.

Os alimentos mais frequentemente implicados em idade pediátrica no nosso país são o leite, o ovo e o peixe; o trigo, o amendoim, os frutos secos, os frutos frescos e o marisco são também importantes. Contudo, qualquer alimento pode estar envolvido, incluindo produtos muitas vezes encarados pelos pais / prestadores de cuidados como inofensivos, como é o caso de alguns tipos de fórmulas lácteas, ou produtos contaminados por alergénios alimentares ocultos, cujos vestígios podem passar despercebidos.

Em relação aos fármacos, em idade pediátrica, destacam-se os antibióticos, particularmente beta-lactâmicos, e os anti-inflamatórios não esteróides.

Exame físico

O carácter intermitente das doenças alérgicas, de um modo geral, determina que na maioria das vezes o exame físico da criança seja normal. Alguns sinais e sintomas característicos, podendo ser detectados ao realizar o exame físico, e descritos de modo sucinto neste capítulo, integram entidades clínicas bem individualizadas, sendo abordados ulteriormente de modo mais pormenorizado noutros capítulos.

Asma: durante uma exacerbação pode verificar-se taquipneia, utilização dos músculos acessórios da respiração, hiperinsuflação torácica, prolongamento do tempo expiratório e sibilos na auscultação pulmonar; situações mais graves podem cursar com cianose, diminuição generalizada do murmúrio vesicular e alterações do estado de consciência.

Rinite alérgica: fácies característica da criança com obstrução nasal crónica, com respiração oral com boca entreaberta, existência de prega atópica nasal e olheiras; a observação das fossas nasais permite-nos visualizar habitualmente, para além da rinorreia aquosa, hipertrofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores (ver adiante).

Conjuntivite alérgica: são aspectos característicos a hiperémia e a quemose (edema) conjuntivais, secreção serosa e frequentemente edema palpebral, habitualmente bilateral; a observação da conjuntiva tarsal pode evidenciar a presença de papilas.

Rinoconjuntivite: situação em que há sintomas de reacção de hipersensibilidade mediada imunologicamente com tradução clínica nas fossas nasais e conjuntiva, na maioria das vezes mediada por IgE.

Urticária e angioedema e anafilaxia: com uma base fisiopatológica comum, estas situações são abordadas com mais pormenor no capítulo dedicado à alergia de expressão cutânea.

Exames complementares de diagnóstico in vivo

Testes cutâneos

Os testes cutâneos por picada ou “prick” constituem o método diagnóstico de eleição para avaliação da presença de sensibilização alergénica, inclusive em idade pediátrica, pela facilidade de execução, rapidez de obtenção de resultados, segurança, baixo custo e elevada sensibilidade. No entanto, contrastando com a facilidade de execução, estes testes podem ser influenciados por diversos factores, pelo que é imprescindível que a sua interpretação seja efectuada por especialista e que sejam realizados com uma metodologia correcta, obedecendo a normas padronizadas.

A utilização dos testes cutâneos por picada permite a identificação, se existente, do alergénio sensibilizante. A introdução do alergénio na camada superficial da pele leva ao aparecimento de uma reacção imediata, dependente da desgranulação dos mastócitos e envolvendo também factores neurogénicos, com libertação de histamina e outros mediadores originando uma resposta de pápula e eritema. Esta resposta visível é máxima aos 15 minutos, regredindo habitualmente aos 30 minutos.

Os testes cutâneos podem ser influenciados por uma série de variáveis, que podem determinar os resultados e condicionar a precisão dos mesmos, tais como: factores técnicos, factores biológicos e factores externos não alérgicos. Os factores técnicos estão relacionados com a preparação do alergénio (potência, qualidade, composição e estabilidade) e com a metodologia do teste. Os factores externos não alérgicos incluem fármacos, como anti-histamínicos, e condições patológicas intercorrentes, como neoplasias, infecções e exacerbação de eczema, que podem inibir a reactividade cutânea. Os factores biológicos incluem a idade do indivíduo e a variação sazonal relacionada com a exposição alergénica.

A selecção dos extractos alergénicos a utilizar deve estar de acordo com a história clínica e a frequência de sensibilizações alergénicas na população. Na nossa população os alergénios mais importantes são os ácaros do pó (Dermatophagoides pteronysinus, Dermatophagoides farinae e Lepidoglyphus destructor). Outros aeroalergénios comuns poderão estar implicados, nomeadamente pólenes de gramíneas, parietária / outras herbáceas e de árvores localmente relevantes, animais, particularmente gato, cão, baratas e fungos (Alternaria, Arpergillus e Cladosporium).

Podem ainda ser incluídos outros testes segundo a localização geográfica ou em presença de dados particulares fornecidos pela história clínica. Habitualmente, através da utilização de um número limitado de aeroalergénios comuns é possível confirmar ou excluir a presença de atopia. A evidência de sensibilização alergénica foi identificada em vários estudos prospectivos como factor de risco de persistência da sintomatologia respiratória, isto é, de asma activa em idade escolar, com elevado valor preditivo positivo, com valor diagnóstico e prognóstico da asma na criança.

Assim, o factor etário não deve ser um factor limitante para a execução dos testes cutâneos na criança, devendo, pelo contrário, ser considerados como rotina na investigação de atopia. Os testes cutâneos por picada negativos permitem excluir a presença de atopia e, deste modo, evitar a utilização de medidas de evicção de alergénios não apropriadas. Apesar de identificarem a sensibilização a determinado alergénio, os testes cutâneos não permitem avaliar a sua relevância clínica se valorizados independentemente da história clínica. A presença de testes cutâneos positivos em pacientes assintomáticos pode ser factor de risco de início de sintomatologia alérgica, mas não identificam, por si só, doença. Ou seja, os conceitos de sensibilização alergénica, ou atopia, e doença alérgica são distintos e independentes. No entanto, na presença de clínica sugestiva, a relação entre os testes cutâneos por picada positivos e as provas de provocação específicas é altamente significativa. Os testes cutâneos com painel de aeroalergénios é fundamental para a avaliação do doente com alergia respiratória, asma e/ou rinite, ou alergia ocular.

Na alergia alimentar os testes cutâneos devem ser realizados com os alergénios alimentares identificados como suspeitos pela história clínica. Os alergénios alimentares mais frequentemente implicados variam com a população e a região geográfica estudada. Na nossa população, em idade pediátrica, o leite e o ovo são os mais importantes, seguidos do peixe, trigo, amendoim e frutos secos. Os referidos testes apresentam um excelente valor preditivo negativo, mas menor valor preditivo positivo, pelo que, exceptuando os casos em que haja uma íntima associação entre a ingestão do alimento e o aparecimento das queixas ou uma reacção anafiláctica grave, a positividade dos mesmos apenas serve para seleccionar os alimentos com os quais deverão ser efectuadas provas de provocação. A utilização de testes cutâneos com o alimento na forma natural pode ser necessária em algumas situações, particularmente na suspeita de alergia a frutos frescos, legumes e marisco, quando persistir a suspeita clínica, e o extracto comercial não estiver disponível ou for negativo.

Os testes cutâneos intradérmicos são mais invasivos, e menos específicos; de salientar o risco de ocorrência de reacções adversas graves durante a sua execução, o que contra-indica a sua utilização por rotina e em centros não especializados. A sua utilização deve ser reservada a situações para avaliação de alergia medicamentosa, como na suspeita de alergia à penicilina, e alergia a veneno de himenópteros, nomeadamente abelha e vespa. Estes testes apresentam um elevado valor preditivo negativo, ou seja, quando negativos permitem excluir a presença de sensibilização IgE mediada, na grande maioria dos doentes.

Caso não seja possível a realização dos testes cutâneos, esteja limitada a sua interpretação por existência de dermografismo, de diminuição da reactividade cutânea, ou seja, necessário o esclarecimento de casos discordantes ou duvidosos, deverá ser efectuada a determinação sérica de IgE específicas. No entanto, salienta-se, a menor sensibilidade diagnóstica e o custo mais elevado dos testes in vitro (Quadro 1).

QUADRO 1 – Testes cutâneos por picada e testes séricos de IgE específica: vantagens

Testes cutâneos (in vivo)Testes séricos de IgE específica (in vitro)
EconómicosIndependentes da interferência de fármacos que inibem a reactividade cutânea
Resultados imediatosNão influenciados por dermografismo ou doenças cutâneas
Valor educacionalTotalmente seguros
Maior sensibilidadeMaior especificidade

Exames complementares in vivo em situações específicas

Asma

A realização de provas de função respiratória é fundamental para confirmar o diagnóstico, para seguimento e monitorização terapêutica e para avaliação de casos de apresentação atípica. As mesmas permitem quantificar as repercussões funcionais ao nível das vias aéreas.

Existe uma panóplia de provas de função respiratória disponíveis; as mais comummente utilizadas na prática clínica são a espirometria e a pletismografiacorporal. A espirometria, incluindo a realizada em idade pré-escolar, avalia a existência e grau de obstrução brônquica, bem como a sua reversibilidade após inalação de broncodilatador; deve ser o exame de primeira linha. A pletismografia corporal permite a determinação da resistência das vias aéreas e dos volumes pulmonares, avaliando o grau de insuflação pulmonar, só sendo possível efectuar a partir da idade escolar. Em idade pré-escolar apenas é possível quantificar a resistência específica das vias aéreas (as crianças não toleram o encerramento da válvula do pneumotacógrafo, sendo impossível medir volumes estáticos); valores elevados são preditivos de asma.

Provas de provocação brônquica: no período intercrítico, a avaliação funcional respiratória da criança asmática apresenta-se frequentemente dentro de parâmetros de normalidade e, muitas vezes, para confirmar o diagnóstico de asma, há que recorrer a provas de broncomotricidade, as quais podem ser broncodilatadoras ou broncoconstritoras.

prova de broncodilatação é habitualmente efectuada no decurso do estudo da função respiratória, por espirometria ou pletismografia corporal. Nesta prova avalia-se o grau de reversibilidade, 15 minutos após inalação de um β2-agonista de curta acção. Considera-se a prova positiva quando há um aumento do FEV1 (volume expiratório máximo no primeiro segundo) de ≥ 12% e ≥ 200mL em relação ao valor basal. A existência de uma prova positiva permite confirmar o diagnóstico clínico de asma.

Em doentes com sintomatologia atípica, quando os parâmetros funcionais são normais, para demonstrar a existência de hiperreactividade brônquica, recorre-se a provas broncoconstritoras.

prova de esforço é particularmente importante, pela fácil exequibilidade e por apresentar uma elevada especificidade para o diagnóstico de asma, nomeadamente na criança, permitindo se positiva (ou seja, quando ocorre uma redução do FEV1 ≥ 10% após a realização do esforço normalizado) confirmar o diagnóstico.

prova da metacolina apresenta uma baixa especificidade, sendo positiva em várias situações que apresentam hiperreactividade brônquica tais como fibrose quística, bronquiectasias, insuficiência cardíaca e infecções víricas. Salienta-se, no entanto, o seu elevado valor preditivo negativo. Esta prova considera-se positiva quando ocorre uma redução do FEV1 ≥ 20%. Outras provas de provocação avaliam a hiperreactividade brônquica a estímulos como a água destilada, soluções hiperosmolares como o manitol e hiperventilação de ar seco e frio. A prova de provocação brônquica com alergénio não é habitualmente utilizada, excepto em estudos de investigação; só deve ser efectuada em circunstâncias especiais e em ambiente hospitalar, pois desencadeia uma resposta imunológica imediata e tardia, com riscos acrescidos.

A asma brônquica é uma doença inflamatória crónica. Partindo desta premissa, existem técnicas que avaliam o grau de inflamação, tais como óxido nítrico, análise do esputo induzido e condensados exalados, e até mesmo estudos mais elaborados de metabolómica. De entre estes, a avaliação do óxido nítrico é a única utilizada na prática clínica, pela sua fácil execução e interpretação, estando os valores elevados de óxido nítrico associados a uma boa resposta à terapêutica anti-inflamatória com corticosteróides inalados.

Rinite alérgica

Em situações de rinite de difícil controlo sintomático, como critério de exclusão, poder-se-á complementar a avaliação por endoscopia nasal, no diagnóstico diferencial das causas de obstrução nasal fixa; e por estudo imagiológico, nomeadamente tomografia computorizada das fossas nasais e seios perinasais nas formas de rinossinusite de difícil tratamento médico. Actualmente considera-se não existir utilidade da radiografia dos seios perinasais.

Em alguns casos podem realizar-se provas de provocação específicas, nomeadamente nasais e conjuntivais, com o alergénio suspeito, mas habitualmente a sua utilização é limitada a estudos de investigação. De igual modo, podem ser realizadas rinomanometrias de modo a avaliar, pontualmente nos casos refratários à terapêutica ou em investigação, a permeabilidade das fossas nasais.

Eczema atópico

Em algumas situações, nomeadamente no caso de haver suspeita de dermatite de contacto, poderá efectuar-se a realização de testes epicutâneos (testes empregando adesivo ou patch). Nos casos em que a suspeita de alergia alimentar é pertinente, deve proceder-se a dietas de exclusão e a provas de provocação oral para excluir ou confirmar o diagnóstico.

Alergia Alimentar / Medicamentosa

Provas de provocação oral com alimentos / fármacos: são administradas por via oral doses crescentes do alergénio suspeito em intervalos regulares, até ao aparecimento de reacção, ou até ser atingida uma dose cumulativa correspondente à quantidade ingerida habitualmente numa refeição, ou à dose terapêutica diária, consoante se trate de prova de provocação alimentar ou medicamentosa. Na criança, habitualmente, são realizadas segundo um protocolo aberto; no entanto, em determinadas situações, nomeadamente se as queixas referidas forem subjectivas, poderá justificar-se a utilização de protocolo com ocultação. Estas provas são utilizadas para confirmação ou exclusão do diagnóstico de alergia alimentar ou medicamentosa. Estes procedimentos só devem ser realizados em ambiente hospitalar, geralmente em regime de hospital-de-dia, tendo disponíveis os meios terapêuticos necessários para a eventualidade de reacção sistémica, com a supervisão de especialistas experientes nesta área.

Na abordagem da alergia alimentar em idade pediátrica, habitualmente transitória, as provas de provocação, para além da finalidade diagnóstica, são imprescindíveis para determinar o momento em que se obtém a tolerância ao alimento; neste caso, a calendarização das provas deve ser feita tendo em conta o quadro clínico apresentado, o conhecimento existente sobre a história natural da sensibilização ao alimento implicado, e a evolução dos níveis de IgE específica sérica.

Alergia ao látex

Pode ser efectuada, em casos seleccionados, prova de provocação por contacto quando exista dúvida clínica, para distinguir entre existência de sensibilização assintomática e alergia ao látex. A prova mais utilizada é o teste de uso com luva de látex. Esta prova acompanha-se de risco de reacção sistémica.

Urticária ao frio

O teste do cubo de gelo é realizado pela aplicação do estímulo frio (0 a 4ºC) na face anterior do antebraço por um tempo sequencial que pode ir de 3 até 20 minutos de estimulação, até obtenção da resposta positiva (pápula). Esta prova acompanha-se de risco de reacção sistémica.

Exames complementares de diagnóstico in vitro

IgE total

O doseamento da IgE total sérica é um teste de baixa especificidade e sensibilidade no diagnóstico da doença alérgica. Para a generalidade dos autores, e de acordo com estudos efectuados em pares de gémeos, a síntese de IgE total terá um determinismo essencialmente genético; a síntese de IgE específica será fundamentalmente influenciada pela exposição ambiental. Apesar de intimamente relacionada com a doença alérgica, a determinação da IgE total sérica tem um interesse relativo quando avaliada isoladamente, podendo estar elevada por várias razões, nomeadamente nas parasitoses, na aspergilose pulmonar, na síndroma hiper-IgE ou associada ao tabagismo.

A concentração de IgE total varia com a idade. É um teste de baixo custo e rápido. No entanto, o facto de uma determinação de IgE total evidenciar valores normais não significa que não haja aumento de alguma IgE específica nem que seja excluída doença alérgica. Alguns estudos prospectivos têm documentado para este teste, um maior valor prognóstico do que diagnóstico, nomeadamente na criança asmática.

Os níveis de IgE total no cordão umbilical foram propostos e utilizados como factor preditivo da ocorrência de doença alérgica. Este entusiasmo inicial não foi, no entanto, apoiado por estudos mais recentes, revelando-se um método pouco sensível; por outro lado não permite também prever o tipo de doença alérgica.

IgE específica

A identificação do alergénio suspeito, para além de poder ser efectuada pelos testes cutâneos (in vivo), pode também ser efectuada por métodos in vitro, que permitem determinar as concentrações de IgE específica para um determinado alergénio (Quadro 2).

A presença de IgE específica para um alergénio, por si só, não pode ser usada para o diagnóstico de doença mediada por IgE porque a verificação de IgE específica sérica não significa que a criança seja necessariamente alérgica, podendo traduzir uma sensibilização assintomática. A situação deve ser sempre interpretada em conjunção com a história clínica.

A IgE específica não é um bom método de rastreio, sendo os respectivos custos muito elevados. O doseamento de IgE específicas séricas deveria estar reservado para uma avaliação mais diferenciada, tendo em conta a história clínica e o resultado dos testes cutâneos. Esta determinação é extremamente importante em determinadas situações (Quadro 3), nomeadamente: na monitorização de imunoterapia específica; na alergia alimentar, para controlo do correcto cumprimento da dieta e para avaliar o grau de tolerância, diminuindo o risco de provas de provocação positivas; e na suspeita de alergia a veneno de himenópteros e penicilina, alergénios com risco acrescido na realização dos testes cutâneos (intradérmicos).

Os alergénios também se têm desenvolvido quer em variedade, quer em qualidade, de modo a limitar a ocorrência de perda de constituintes essenciais durante o processo de fabrico, sendo os alergénios recombinantes um bom exemplo desta evolução.

QUADRO 2 – Resultados quantitativos e qualitativos de IgE específica

Resultados quantitativos (kU/L)Resultados semi-quantitativos (classes)Resultados qualitativos
< 0,350Ausente ou indetectável
0,35 a 0,701Baixo
0,71 a 3,502Moderado
3,51 a 17,503Alto
17,51 a 50,04Muito alto
50,01 a 1005Muito alto
> 1006Muito alto

QUADRO 3 – Testes séricos de IgE específica (in vitro)

· Dermografismo ou doenças cutâneas, com limitação na interpretação dos testes cutâneos
· Testes cutâneos duvidosos ou negativos com forte suspeita clínica
· Alergénios com risco da realização de testes cutâneos (intradérmicos)
· Avaliação de resultados da evicção alergénica / Controlo do grau de evicção do alergénio
· Avaliação do grau de tolerância / Decisão de realização de provas de provocação
· Monitorização da imunoterapia específica

Painéis de alergénios múltiplos

São testes de rastreio, constituídos por uma mistura de vários alergénios definida pelo fabricante. Existem painéis para alergénios inalantes, como o Phadiatop® (mistura de aeroalergénios comuns, incluindo ácaros, pólenes, fungos e epitélios de gato e cão) e painéis para alergénios alimentares, do qual o mais utilizado na criança é o Fx5® (que inclui leite de vaca, clara de ovo, bacalhau, trigo, amendoim e soja) da Thermo Fisher Scientific. Tendo em conta os valores de sensibilidade, especificidade e valor preditivo negativo, consideramos estes testes bons métodos de rastreio, podendo ser utilizados em consultas não especializadas. Os mesmos proporcionam uma informação global, qualitativa, em termos de resultado positivo ou negativo.

Detecção múltipla de IgE específicas – tecnologia microarray

Mais recentemente surgiu a possibilidade de avaliar simultaneamente numa mesma amostra de sangue a presença de anticorpos IgE para um painel fixo de 112 componentes de 51 fontes alergénicas diferentes, na sua forma nativa ou recombinante, através do ImmunoCAP ISAC® (Thermo Fisher Scientific) utilizando a técnica de microarray em alergologia molecular.

O ImmunoCAP ISAC® é a primeira ferramenta de diagnóstico in vitro multiplex que se baseia exclusivamente em componentes alergénicos. Permite, usando uma quantidade mínima de soro, identificar os componentes alergénicos para os quais o doente está sensibilizado, e determinar reactividades cruzadas potenciais com base em epítopos homólogos.

Salienta-se que estão disponíveis no mercado alguns testes, designados de intolerância alimentar, que são publicitados erradamente como úteis para o diagnóstico de alergia alimentar. Estes ensaios baseiam-se na quantificação de anticorpos IgG dirigidos para alimentos e não têm qualquer validade para o diagnóstico de alergia alimentar. De facto, a Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica e a Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica já emanaram comunicados que salientam a inutilidade destes ensaios.

Marcadores de inflamação

A introdução de novas tecnologias permitiu o desenvolvimento de métodos para avaliação da libertação de mediadores produzidos pelas células intervenientes na inflamação alérgica, incluindo: ECP (proteína catiónica dos eosinófilos); triptase sérica; TAB (teste de activação de basófilos); CAST (teste celular de estimulação antigénica); formas solúveis de moléculas de adesão como ICAM-1 e VCAM-1; citocinas de perfil Th2 como IL-4 e IL-13. O estudo de mediadores e da sua determinação como marcadores de inflamação constitui um dos campos florescentes da investigação imunoalergológica. A sua utilização é habitualmente restrita a estudos de investigação, sendo potenciais instrumentos para o diagnóstico, monitorização e prognóstico das doenças alérgicas.

Pela sua importância em termos clínicos, salienta-se a determinação da triptase sérica. A triptase pode confirmar o diagnóstico de anafilaxia, pelo que o seu doseamento terá importância no serviço de urgência, durante a reanimação ou mesmo no estudo de casos fatais. A sua utilização poderá ainda ter interesse na monitorização de provas de provocação. Deve salientar-se, porém, que o seu aumento pode estar associado a mastocitose sistémica ou a doenças hematológicas, e que um doseamento de triptase sérica normal não excluiu o diagnóstico de anafilaxia.

No domínio da investigação da alergia medicamentosa e alimentar têm sido publicados vários estudos que demonstram a importância do TAB para a avaliação de reacções alérgicas a fármacos e alimentos, não mediadas por IgE, mas sim mediadas por células, permitindo em alguns casos obviar a realização de provas de provocação.

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DOENÇAS ALÉRGICAS NA CRIANÇA – EPIDEMIOLOGIA E PREVENÇÃO

Importância do problema

As doenças alérgicas correspondem a um tipo de patologia que, pela sua frequência e importância, estão na primeira linha no grupo etário pediátrico.

Cerca de 35% da população europeia apresenta sintomas alérgicos e a tendência é para o seu aumento, fruto do estilo de vida que caracteriza as populações dos países industrializados.

É importante referir o efeito das reacções alérgicas no comportamento emocional e social dos doentes e suas famílias.

Nomenclatura

Actualmente existe uma nomenclatura internacionalmente aceite e publicada pela European Academy of Allergology and Clinical Immunology recentemente actualizada pela World Allergy Organization que permite definir com rigor o significado dos termos e patologias mais frequentemente ligados à alergia. Discrimina-se seguidamente o significado de alguns termos relacionados com esta problemática; algumas situações são definidas com mais pormenor noutros capítulos desta Parte XII.

Alergia – É uma reacção de hipersensibilidade iniciada por mecanismos imunológicos a qual pode ser mediada por anticorpos ou células, sendo na grande maioria dos casos o anticorpo responsável pela reacção alérgica pertencente ao isotipo IgE.

Os indíviduos afectados podem ser referidos como sofrendo de uma alergia mediada por IgE.

Alergénios – São antigénios que causam alergia. Muitos dos alergénios que reagem com IgE e IgG são proteínas. A exposição a antigénios ambientais ocorre por inalação, ingestão, contacto cutâneo ou por via parentérica.

Sensibilização – Este termocom significado diferente de alergia, traduz o aparecimento de anticorpos IgE específicos para determinado alergénio no soro; isto é, o indivíduo fica sensibilizado ao referido antigénio, não significando que é alérgico a este. Quando um indivíduo é clinicamente alérgico, os anticorpos IgE ligam-se a recptores à superfície dos mastócitos de modo que a exposição a alergénios leva a activação destes com libertação de mediadores (histamina, prostaglandinas, leucotrienos, etc.),e a sintomas (reacção alérgica IgE mediada).

Atopia – É um estado constitucional devido a desregulação imunitária ou uma tendência pessoal ou familiar frequente na infância e na adolescência para se ficar sensibilizado e produzir IgE em resposta a uma exposição a grande variedade de alergénios. Como consequência, nestes individuos podem desenvolver-se sintomas característicos de asma, rinoconjuntivite e eczema. Os termos “atopia” e “atópico” devem ser reservados para descrever uma predisposição genética (genes indutores) para sensibilização a alergénios comuns durante uma exposição ambiental sendo que, na maioria dos individuos, não se produz uma resposta prolongada mediada por IgE.

Eczema – Palavra derivada do grego (fervura), constitui tipo de inflamação cutânea com características clínicas e histopatológicas expressivas. Os termos eczema e dermite (ou dermatite) são utilizados muitas vezes como sinónimos embora, em rigor, dermite designe qualquer fenómeno inflamatório da pele, do qual eczema constitui padrão particular. O que distingue o eczema como tipo particular de dermite são as suas características clínicas e histopatológicas. No que respeita ás primeiras, no eczema destaca-se o prurido e a erupção eritematovesiculosa na fase aguda, e a liquenificação na fase crónica. Associando este tipo de inflamação à palavra atopia, nesta obra consideram-se sinónimos os termos dermite/dermatite atópica e eczema atópico.

Hipersensibilidade – Corresponde a um conjunto de sinais ou sintomas(reacções adversas) objectivamente reprodutíveis e desencadeados pela exposição a um estímulo definido tolerado pelos indivíduos ditos normais ou saudáveis.

Hipersensibilidade não alérgica – É o termo preferido para descrever reacção adversa ou hipersensibilidade na qual não é possível demonstrar a presença de mecanismos imunológicos.

De acordo com a classificação de Gell e Coombs são descritos os seguintes tipos clássicos de hipersensibilidade: Tipo I (ou hipersensibilidade imediata): resultante da produção de IgE contra um antigénio;estas imunoglobulinas fixam-se na membrana de mastócitos e de basófilos. A ulterior reacção antigénio-IgE leva à desgranulação das referidas células com libertação de mediadores farmacologicamente muito activos . Constituem paradigmas deste mecanismo patogénico a asma brônquica, a rinite alérgica e o eczema atópico; Tipo II (ou hipersensibilidade citotóxica):resultante do facto de existir um antigénio estrutural que é “atacado”por um anticorpo específico;como consequência verifica-se fagocitose das células ou a sua lise, em geral com a mediação do complemento; Tipo III (ou hipersensibilidade mediada por imunocomplexos) resultante da formação de grande quantidade de moléculas de antigénio-anticorpo as quais, não sendo adequadamente removidas pelos mecanismos habituais de fagocitose do SRE, precipitam em determinados órgãos como rins, articulações, pele, originando respectivamente quadros clínicos diversos como glomerulonefrite, arterite e vasculite; Tipo IV (ou hipersensibilidade retardada):resultante da produção de linfocinas por linfócitos T sensibilizados em relação a determinados antigénios. Constituem paradigmas deste tipo de resposta imune a reacção tuberculínica e o eczema de contacto alérgico.

A realidade nacional

O estudo da prevalência das doenças alérgicas de crianças em Portugal e no mundo está actualmente bem caracterizado através do projecto ISAAC (International Study of Asthma and Allergies in Childhood) que foi executado ao longo de 10 anos envolvendo mais de um milhão de jovens em mais de 60 países entre 1993 e 2003. Ele teve por objectivo desenvolver a investigação epidemiológica sobre asma, rinite, conjuntivite e eczema atópico através da padronização a nível de definições dos casos e da metodologia utilizada com base em questionários, podendo comparar diferentes países e centros de cada país. Composto por 3 fases, foi concebido de forma a poder comparar populações quanto à prevalência desta doença em todo o mundo. Um dos objectivos mais importantes foi examinar as tendências temporais de prevalência da asma, rinoconjuntivite alérgica e eczema atópico ao longo de 8 anos (centros que cumpriram as fases I e III).

Em Portugal o estudo envolveu na fase I (entre 1993/95) 5036 jovens de 6-7 anos provenientes de 207 escolas, e em 11.427 jovens de 13-14 anos, oriundos de 84 escolas. Na fase III (2002) o grupo de 6-7 anos envolveu 9081 jovens tendo participado 408 escolas. O grupo de 13-14 anos era oriundo das mesmas regiões e envolveu 12.905 jovens de 142 escolas.

Ao centrarmos a análise comparativa dos resultados globais nas mesmas regiões da população inquirida que já teve pieira (sintomas – sibilância recorrente), asma (diagnóstico médico), rinite (sintomas) ou eczema (diagnóstico médico/sintomas) verificamos no grupo de 6-7 anos:

 19952002Valor-p
Pieira28,2%28,1%0.936
Asma11%9,4%0.008
Rinite23,8%29,1%<0.001
Eczema11,2%14,1%<0.001

Quando comparamos populações de 6-7 anos inquiridas que tiveram pieira, asma, rinite ou eczema nos últimos 12 meses, foram obtidos os seguintes resultados:

 19952002Valor-p
Pieira12,9%12,9%0.983
Rinite19,9%24%<0.001
Eczema13,9%15,6%0.013

Em relação ao grupo de 13-14 anos foram obtidos os seguintes resultados:

 19952002Valor-p
Pieira18,2%21,8%<0.001
Asma11,8%14,7%<0.001
Rinite30,2%37,1%<0.001
Eczema11,7%12,7%<0.014

Na comparação das populações inquiridas de 13-14 anos que declararam ter tido pieira, asma, rinite ou eczema nos últimos 12 meses, os resultados foram:

 19952002Valor-p
Pieira9,2%11,8%<0.001
Rinite21,2%26,5%<0.001
Eczema7,6%8,7%0.002

Da análise dos valores nacionais mais significativos sobre o estudo do inquérito ambiental e estilo de vida realizado em 2002 salientamos, comparando os grupos de 6-7 e 13-14 anos (Quadro 1):

QUADRO 1 – Projecto ISAAC (Portugal): Resultados do inquérito sobre ambiente e estilos de vida

 6-7 anos13-14 anos
a) Alimentação nos últimos 12 meses  
carne: três ou mais vezes por semana65,8%49%
peixe: três ou mais vezes por semana44,8%39,3%
fruta: três ou mais vezes por semana82,3%66,5%
vegetais: três ou mais vezes por semana52%37,7%
cereais (incluindo pão): três ou mais vezes por semana84,8%71,0%
arroz: três ou mais vezes por semana58,2%48,1%
manteiga: três ou mais vezes por semana55,2%37,2%
leite: três ou mais vezes por semana86,9%75,1%
ovos: três ou mais vezes por semana18,5%17,9%
hamburgers três ou mais vezes por semana3,2%8,5%
“fast-food”, uma vez por semana18,6%40,5%
aleitamento materno78,5% 
b) Actividade física – 3 vezes por semana ou mais9,3%22,5%
c) Horas de televisão – 3 ou mais horas/dia17,3%31,3%
d) Antibióticos no primeiro ano de vida54,9% 
e) Nível de escolaridade da mãe da criança:  
básico27%39%
secundário34%32%
universitário19,3%21,9%
f) Gato em casa no primeiro ano de vida9,3% 
Gato em casa nos últimos 12 meses15%25,2%
g) Cão em casa no primeiro ano de vida22% 
Cão em casa nos últimos 12 meses29,6%49,3%
h) Mãe fumadora no primeiro ano de vida15,6% 
Percentagem de não fumadores no agregado familiar36,7%34,3%

A análise dos resultados obtidos revela um aumento global da prevalência das doenças alérgicas do grupo 13-14 anos no país, o que se atribui provavelmente a uma mudança de hábitos que leva muitos jovens a preferir cada vez mais uma actividade localizada dentro de casa (computador e televisão) e a um aumento da utilização de comida rápida/hamburgers com consequente maior susceptibilidade para as doenças alérgicas, respiratórias e de expressão cutânea. Ao contrário, no grupo dos 6-7 anos, o facto de não haver ao longo dos anos um aumento da prevalência de asmáticos pode atribuir-se a um melhor conhecimento, pelos familiares (responsáveis pelos inquéritos neste grupo etário) e pelos profissionais de saúde, acerca dos problemas relacionados com as doenças alérgicas em geral, e do modo de fazer a sua prevenção, particularmente nas crianças de risco.

Prevenção

O aumento de prevalência das doenças alérgicas e o facto de se tratar de doenças de elevada morbilidade, sobretudo na idade pediátrica, levou a uma progressiva preocupação sócio-sanitária e económica com este problema. A utilização de normas profilácticas genéricas, sobretudo na alergia respiratória, levou a que uma maior informação fosse difundida entre as populações, sobretudo no que se refere à exposição aos agentes em meio habitacional.

Como observámos anteriormente, a tendência em Portugal acompanhando os países industrializados, para uma cada vez maior exposição alergénica e desenvolvimento de uma sensibilidade alérgica dentro de casa, é fruto de uma progressivo estado de vida sedentário da criança que cada vez mais utiliza o seu tempo livre em frente da televisão e do computador. Por outro lado, a cada vez mais precoce frequência de infantários por crianças mais pequenas, localizados em habitações que não estão, na maioria das situações, devidamente preparadas para receber tantas crianças, leva a preocupações acrescidas, devendo incidir-se atenção especial sobre as condições em que se encontram as salas onde permanecem aquelas. É, no entanto, no quarto de dormir onde o jovem passa cerca de um terço da sua vida (± 8 horas/dia), que devem centrar-se mais as nossas preocupações.

Os 3 níveis de prevenção: primária – que promove a prevenção de atopia; secundária – que promove a prevenção das sensibilizações já existentes e que são consequência da aptidão genética e da exposição a alergénios; e a terciária que não é mais que a prevenção das consequências clínicas motivadas pelas manifestações alérgicas, devem ser tratados em conjunto. De um modo geral as medidas ambientais exequíveis nos referidos níveis de prevenção passam por uma boa identificação dos alergénios em causa.

A sensibilização na criança ocorre geralmente nos primeiros meses e até aos 2 anos, através de alergia alimentar sobretudo às proteínas do leite de vaca e ovos; a sensibilização IgE específica para os alergénios alimentares é detectável em cerca de 10% das crianças de 1 ano de idade. Os alergénios inalantes aparecem geralmente a partir dos 3 anos, passando a sensibilização a ser particularmente evidente aos ácaros do pó da casa, animais domésticos, pólens e fungos; com efeito a rinite e a asma alérgica passam a ter uma expressão clínica muito mais significativa que as alergias de expressão cutânea.

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ALTERAÇÕES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR

Sistematização

A alimentação constitui um domínio privilegiado de expressão psicopatológica: a mesma comporta uma dimensão social e representa a primeira grande função fisiológica que marca a génese e o desenvolvimento da vida afectiva. As alterações do comportamento alimentar podem ser sistematizadas do seguinte modo:

Quantitativas

  • por defeito: anorexia nervosa restritiva, inicialmente por recusa alimentar (sitiofobia) e, depois, por perda de apetite (anorexia); perturbação da ingestão alimentar por evicção;
  • por excesso: hiperfagia paroxística, ou seja, bulimia (ou hiperorexia ou poliorexia);
  • hiperfagia regular e compulsão alimentar conduzindo a excesso de suprimento energético e a obesidade.

Qualitativas

  • incidindo sobre a sede e a ingestão de bebidas (potomania);
  • incidindo sobre substâncias não nutritivas (pica, geofagia, coprofagia nas situações de deficiência profunda);
  • incidindo sobre substâncias tóxicas (alcoolismo, toxicomania);
  • incidindo sobre a escolha de alimentos (vegetarianismo).
  • mericismo (ou perturbação de ruminação): regurgitação repetida de alimentos após a alimentação ou ingestão; os alimentos parcialmente digeridos voltam à boca sem aparente náusea, vómito forçado ou repugnância.

Recentemente, tem-se dado maior relevância à perturbação da ingestão alimentar de evicção/restritiva, caracterizada pela alteração da ingestão ou alimentação (por aparente falta de interesse em se alimentar ou na comida; atitude de evitar alimentos com base nas características sensoriais dos mesmos; preocupação sobre consequências aversivas da alimentação – como, por exemplo, o temor a vomitar) manifestada por incapacidade persistente de atingir as necessidades nutricionais e/ou energéticas associada a 1 (ou mais) das seguintes circunstâncias: a) perda de peso significativa (ou incapacidade de atingir o ganho de peso esperado ou crescimento alternante nas crianças); b) deficiência nutricional significativa.; c) dependência de alimentação entérica ou de suplementos nutricionais orais.; d) interferência marcada com o funcionamento psicossocial.

Esta perturbação, muitas vezes encontrada em crianças com temperamentos ansiosos, é frequente na primeira e segunda infância, mas também em adolescentes. De salientar que nesta perturbação não existe uma preocupação excessiva com a percepção corporal nem existe receio de engordar.

anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN) são situações que bem tipificam as alterações do comportamento alimentar. Contudo, de acordo com a sistematização anterior, verifica-se que existe um espectro variado doutras manifestações que, não preenchendo os critérios de AN e BN (ver adiante), integram fundamentalmente duas categorias: alterações não especificadas (EDNOS, sigla da literatura em inglês eating disorder no otherwise specified) e perturbação de ingestão alimentar compulsiva (ou BED, sigla de binge eating disorder).

Etiopatogénese

De acordo com os especialistas em psicopatologia, a designação de perturbações do comportamento alimentar não é correcta, pois o problema alimentar é apenas uma das manifestações de problema mais vasto. Seria talvez mais correcto denominá-las como perturbações do medo obsessivo de aumentar de peso ou engordar, acarretando uma série de medidas compulsivas destinadas a evitar essa consequência tão temida. Em particular o termo anorexia, que significa literalmente a perda de apetite, é particularmente incorrecto para designar uma doença na qual os que a padecem estão constantemente atormentados por pensamentos – e até sonhos – obsessivos com comida, e no que devem fazer para resistir à fome extrema de que padecem e para evitar o ganho de peso.

No estado actual dos conhecimentos admite-se a comparticipação associada de factores socioculturais, familiares, psicológicos (por ex. défice de autoestima, ansiedade, depressão), genéticos, etc.. Alguns casos estão associados a situações de disfunção familiar e a certos estereótipos de ideal de beleza e feminilidade associados a corpo magro. Estudos recentes apontam para a hipótese de certos genes determinarem maior predisposição quanto a comportamento. Embora não tenham sido implicados genes específicos, diversos estudos demonstraram níveis hormonais alterados de leptina, assim como de certos neuropéptidos, como a serotonina. Anteriormente julgava-se que as alterações do comportamento alimentar ocorriam apenas em famílias de robusto poder económico nas culturas ocidentais; no entanto, estudos recentes têm identificado incidência semelhante em populações de cultura dita oriental e de fracos recursos económicos.

Neste capítulo procede-se à descrição da anorexia nervosa (AN) e da bulimia nervosa (BN).

1. ANOREXIA NERVOSA

Definição e aspectos epidemiológicos

De acordo com os critérios da DSM-5, a síndroma anorexia nervosa (AN) é uma perturbação do comportamento alimentar caracterizada por:

  1. Restrição do consumo de energia relativamente às necessidades, conduzindo a um peso excessivamente baixo para a idade (abaixo do mínimo ideal), estatura e sexo.
  2. Medo acentuado de ganhar peso, ou de engordar, ou comportamentos persistentes que interferem com o ganho de peso, mesmo quando este é excessivamente baixo.

Apreciação distorcida do peso e da imagem corporal, não influência do peso ou da forma corporal na autoavaliação, ou não reconhecimento da gravidade do peso excessivamente deficitário.

Critérios como a “recusa alimentar ou a existência de amenorreia” foram retirados recentemente dos critérios clínicos. O primeiro, por implicar uma intencionalidade da parte do doente e ser difícil de aferir. O segundo, por não poder ser aplicado a doentes do sexo masculino e raparigas em fase pré-púbere, ou a raparigas a tomar anticonceptivos orais.

São considerados dois subtipos:

  • restritivo (abstenção voluntária de alimentos ou restrição do suprimento energético e/ou exercício físico excessivo).
  • compulsivo/purgativo (ingestão excessiva de alimentos seguida de autoadministração de laxantes, diuréticos, enemas, ou de provocação de vómitos).

Estima-se, segundo dados da literatura científica, maior frequência do tipo restritivo e, entre adolescentes, em especial com idades compreendidas entre 13 e 18 anos. Diversos estudos em populações com idade média de 15 anos apontam para taxas (entre 0,1 e 4,1%) sendo que mais de 90% dos casos ocorrem no sexo feminino. No entanto, os achados epidemiológicos nas últimas décadas têm mudado, verificando-se um aumento da prevalência no sexo masculino, minorias étnicas e em crianças com idades pré-púberes.

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

O início do quadro clínico da AN passa frequentemente despercebido em fase inicial. Existe, em geral, uma atitude psicológica estereotipada: não reconhecimento sistemático dos sintomas, interesse por questões relacionadas com alimentos e regimes alimentares, atitudes de esconder alimentos em diversos locais, de dividir alimentos em pequenas porções, de preparar alimentos para outras pessoas sem os saborear, de não ter refeições na presença dos outros, e de observar o que os outros comem, etc..

Existem geralmente dificuldades relacionais importantes, relações sociais pobres, e vida sexual nula. Podem associar-se outros elementos: tomas excessivas de laxantes e vómito provocado (o sinal de Russel ou cicatriz no dorso da mão por introdução frequente desta na boca indicia tal). Outras manifestações incluem: sintomas depressivos (muito frequentemente associados à desnutrição), irritabilidade, hiperactividade, alterações do humor, intolerância ao frio e acrocianose, diminuição da líbido, etc..

A restrição alimentar com as consequências inerentes de emagrecimento em determinado contexto clínico conduzem à necessidade de diagnóstico diferencial com outras situações tais como: SIDA, doença neoplásica, síndroma da artéria mesentérica superior, síndroma depressiva, esquizofrenia, etc.. Importa referir que queixas gastrintestinais podem ser, em simultâneo, consequência, mas também a desculpa para uma doença do comportamento alimentar (i.e., justificar a restrição alimentar com queixas gastrintestinais).

Evolução, complicações e exames complementares

A duração da síndroma pode durar anos, sendo que a regressão espontânea não é habitual; conclui-se, pois, que o prognóstico é reservado considerando o risco vital (ver adiante síndroma de realimentação).

O regresso da menstruação é frequentemente considerado como uma melhoria franca, salientando se que apenas um em cada três doentes se cura definitivamente com a inserção social. As principais complicações da AN implicam a realização de determinados exames complementares, a planear caso a caso (para apreciar a repercussão biológica do estado de desnutrição e eliminar eventual causa orgânica). Os mesmos podem ser deduzidos das alterações verificadas na AN, integrando o Quadro 1.

QUADRO 1 – Anorexia nervosa

Alterações da homeostase térmica
– Hipotermia

Alterações cardiovasculares
– Hipotensão, bradicárdia, diminuição da tolerância ao esforço, edema periférico

Alterações do SNC
– Atrofia cerebral

Alterações renais
– Insuficiência pré-renal

Alterações hematológicas
– Anemia

Alterações gastrintestinais
– Atraso do esvaziamento gástrico, dilatação gástrica, défice de lipase e lactase intestinais

Alterações endócrinas
– Défice hormonal (hormona luteinizante, estrogénio, progesterona, estimulante folicular, tiroxina, tri-iodotironina, etc)
– Excesso hormonal (tri-iodo-tironina reversa, cortisol, GH, etc.)
– Diabetes insípida

Alterações metabólicas e hidroelectrolíticas
– Hipoglicémia, hipercolesterolémia, aumento do teor de enzimas hepáticas, desidratação, hipocaliémia, etc..

Síndroma de realimentação
– Hipofosfatémia (sinal cardinal) – consultar texto

Tratamento

As medidas gerais do tratamento da AN (com a actuação multidisciplinar das especialidades de pediatria, pedopsiquiatria e apoio de nutricionista) devem implicar uma relação com a pessoa doente, humanizada, muito personalizada e compreensiva, mas firme (referida pelo Professor Elysio de Moura como “mão de ferro em luva de veludo”); os objectivos fundamentais são a recuperação do peso adequado e a educação para a saúde sobre nutrição com a colaboração da família como forma de motivação para o tratamento, evicção das recaídas e tratamento da comorbilidade. Para a prossecução destes objectivos são adoptadas determinas estratégias a seguir descritas.

Intervenção nutricional

Os incrementos de peso para se atingir o peso adequado devem processar-se lentamente por etapas, tornando-se por vezes necessário o internamento no período inicial (Quadro 2).

Em regime de internamento são programados incrementos da ordem de 800-1200 gramas/semana e, ulteriormente, em regime ambulatório, entre 250-500 gramas/semana. Na fase inicial o suprimento energético, acompanhado de suplementos vitamínicos, deve ser da ordem de 30-40 kcal/kg/dia, progredindo até cerca de 70-100 kcal/kg/dia.

Ao abordar a intervenção nutricional no contexto de AN, cabe uma referência especial à chamada síndroma de realimentação, na base da qual estão desvios de fluidos e electrólitos decorrentes da intervenção referida, e em situação de má-nutrição grave. Tal síndroma pode ocorrer nos casos de peso para a altura < 80%, de altura para a idade < 85%, e de perda maciça de peso em situações de obesidade, marasmo ou kwashiorkor. O sinal cardinal é hipofosfatémia. Com efeito, durante a realimentação o suprimento de glucose origina secreção de insulina que, por sua vez, estimula a síntese de glicogénio, gordura e proteínas. De tal resultam:

  • a entrada de potássio, magnésio e fosfato nas células, com consequentes hipofosfatémia, hipopotassémia e hipomagnesiémia;
  • lesão celular secundária podendo originar arritmia cardíaca, disfunção cardíaca;
  • em formas graves, paragem cardiorrespiratória relacionável com diminuição do cálcio e magnésio séricos.

A excessiva administração de glucose pode levar a excesso de produção de CO2 e a insuficiência respiratória. A carência em tiamina, que é habitual na desnutrição grave, pode originar quadro de encefalopatia (estado confusional, ataxia, hipotermia, coma) se a administração de glucose for rápida. Para a prevenção da síndroma de realimentação, há que respeitar certas regras, destacando: a) avaliação seriada do balanço hidroelectrolítico; b) administração de tiamina antes da realimentação; c) suprimento energético inicial lento (<>60-70% das necessidades calculadas), com incrementos graduais durante 3 a 4 dias.

Intervenção psicoterapêutica

Este tipo de intervenção é essencial ao tratamento, existindo várias modalidades usadas especialmente no contexto da AN. As modalidades vão desde estratégias motivacionais (inspiradas no tratamento da toxicodependência), terapias cognitivo-comportamentais (destinadas à modificação de convicções e comportamentos patológicos) e terapias sistémicas ou familiares; com efeito, torna-se essencial incluir a família na intervenção psicoterapêutica.

Intervenção psicofarmacológica

Uma metáfora frequentemente usada no tratamento da AN é a de que a alimentação é o medicamento. Este deve ser administrado de forma precisa às horas precisas e de forma não negociável.

Embora o uso de medicamentos psicoactivos não seja consensual e tenha resultados modestos, em situações seleccionadas (e apenas após a fase inicial de recuperação do peso), é por vezes útil o tratamento com inibidores selectivos da recaptação de serotonina tais como a sertralina e fluoxetina (nomeadamente quando coexistem sintomas depressivos ou obsessivo-compulsivos). O uso de olanzapina em doses baixas (2,5 mg – 5 mg) pode ajudar a reduzir o pensamento obsessivo e melhorar a tolerância ao ganho de peso (também numa fase ulterior).

QUADRO 2 – Critérios de internamento na anorexia nervosa

Um ou mais dos seguintes critérios justifica o internamento:

1. ≤ 75% do IMC para idade e sexo

2. Desidratação

3. Alterações hidroelectrolíticas (hipopotassémia, hiponatrémia e hipofosfatémia)

4. Alterações do ECG (prolongamento de QTc e bradicárdia)

5. Instabilidade clínica

– Bradicardia grave (< 50/min de FC diurna e < 45/min de FC nocturna)

– Hipotensão arterial (< 90/45 mmHg)

– Hipotermia (Temperatura < 35.6ºC)

– Hipotensão ortostática

6. Hipocrescimento

7. Insucesso no tratamento em ambulatório

8. Recusa alimentar aguda

9. Comportamentos purgativos e de binge eating incontroláveis

10. Complicações médicas da má-nutrição (síncope, convulsões, insuficiência cardíaca, pancreatite, etc..)

11. Complicações médicas e psiquiátricas que condicionam o tratamento da AN em ambulatório (ex: depressão grave, ideação suicida, diabetes mellitus tipo 1)

1. BULIMIA NERVOSA

Definição e aspectos epidemiológicos

De acordo com os critérios da DSM-5, a bulimia nervosa (BN) é uma perturbação do comportamento

alimentar definida por episódios recorrentes de ingestão alimentar compulsiva caracterizados por:

  • ingestão de grande quantidade de alimentos num período curto de tempo (até 2 horas), superior ao que a maioria das pessoas consideradas normais comeria;
  • sensação de incapacidade para controlar a quantidade e qualidade dos alimentos;
  • comportamento de compensação no sentido de prevenir o incremento de peso: indução de vómito, abuso de laxantes, diuréticos, enemas, jejum ou exercício físico excessivo;
  • ocorrência de ingestão alimentar compulsiva e de comportamentos de compensação com a frequência de, pelo menos, 2 vezes por semana, e durante, pelo menos, 3 meses;
  • preocupação excessiva com o peso e a imagem corporal;

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

No que respeita ao estado nutricional, as manifestações de BN não são tão exuberantes como na AN; com efeito, os doentes com BN têm em mais de 80% dos casos peso normal. Raramente existe obesidade, salientando-se que os episódios bulímicos nos obesos são pouco frequentes. Como manifestações mais típicas citam-se: perturbações gastrintestinais, como vómitos, dores abdominais associadas frequentemente a gastrite e esofagite, alterações da motilidade esofágica e gástrica, dilatação gástrica aguda, síndroma do cólon irritável, alterações dentárias (erosão do esmalte pela acção do suco gástrico), risco aumentado de pancreatite, etc.. É frequente encontrar, nestes doentes, irregularidades menstruais, problemas de fecundidade, episódios convulsivos inexplicados, e fadiga crónica.

Os doentes com bulimia nervosa e a sua família, parecem ser mais vulneráveis a síndromas depressivas e abuso de substâncias. Sendo mais frequente no início da vida adulta, durante muito tempo pensou-se que a BN teria um início mais tardio que a AN. Contudo, estudos recentes demonstram que o seu início ocorre tipicamente durante a adolescência sendo, no entanto, mais difícil o seu reconhecimento pelo facto de não acarretar necessariamente a perda de peso manifesta, tal como acontece na AN. A BN tem também sido reconhecida cada vez mais em rapazes homossexuais.

O diagnóstico diferencial da BN faz-se com a AN de tipo compulsivo/purgativo, síndroma depressiva atípica e perturbações da personalidade. A propósito, e como nota de síntese, importa reter a seguinte noção: certos bulímicos são antigos anorécticos e cerca de metade dos anorécticos são bulímicos.

Complicações

As principais complicações da BN, nem sempre fáceis de distinguir das próprias manifestações, (implicando, por vezes, a realização de determinados exames complementares para apreciar a repercussão sobre o estado geral e eliminar eventual causa orgânica), são sistematizadas no Quadro 3.

QUADRO 3 – Complicações da bulimia nervosa

Alterações gastrintestinais

– Dilatação e perfuração gástricas, hérnia do hiato esofágico, perfuração esofágica, pneumomediastino.

Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas

– Desidratação, hiponatrémia, hipoclorémia, hipomagnesiémia, alcalose metabólica, etc..

Tratamento e evolução

As medidas gerais do tratamento da BN, que pode ser efectivado em regime ambulatório (com a actuação multidisciplinar das especialidades de pediatria, pedopsiquiatria e apoio de nutricionista), devem implicar uma relação personalizada médico-doente, humanizada e compreensiva, mas firme; os objectivos fundamentais são a alteração do padrão alimentar compulsivo e de manobras purgativas, promover a educação para a saúde sobre nutrição com a colaboração da família como forma de motivação para o tratamento, corrigir ideias pré-concebidas e atitudes disfuncionais, prevenção das recaídas e tratamento da co-morbilidade. Para a prossecução destes objectivos são adoptadas resumidamente as seguintes estratégias:

Intervenção nutricional

Este tipo de intervenção consiste fundamentalmente na promoção de regime alimentar equilibrado e saudável com vista à manutenção de peso adequado.

Intervenção psicoterapêutica

Este tipo de intervenção abrange a chamada terapia cognitivo-comportamental (técnicas de alteração de comportamentos inadequados, reeducação alimentar reduzindo, designadamente os regimes restritivos, automonitorização da ingestão alimentar, pesagem regular etc.), psicoterapia interpessoal, psicoterapia individual ou de grupo, orientação e terapia familiares.

Intervenção psicofarmacológica

Este tipo de intervenção pode englobar, nomeadamente, a utilização de fármacos inibidores de recaptação selectiva da serotonina com efeito nas perturbações do humor e ansiedade (como por exemplo, a fluoxetina em doses 20-60 mg). Há quem preconize a utilização de fármacos que atenuam os efeitos de uma hiperemese excessiva (inibidores selectivos da bomba de protões, suplementos de potássio), mas tal actuação é controversa. A evolução das perturbações, bem como a resposta ao tratamento, são muito variáveis (desde muito boas a muito más).

Pode ser necessário o internamento temporário de doentes com bulimia nervosa, quando os comportamentos purgativos são incontroláveis e acarretam consequências médicas graves (arritmias cardíacas, acalasia, etc..)

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REGIMES VEGETARIANOS E ERROS ALIMENTARES

Importância do problema

A popularidade dos regimes vegetarianos tem aumentado nas últimas décadas, estimando-se que nos Estados Unidos cerca de 4% da população os pratique. Cerca de 2% das crianças e adolescentes entre os 6-17 anos são vegetarianas e 0,5% deste grupo etário é vegan (ver adiante), ou seja, não consome qualquer produto de origem animal, como carne, derivados lácteos ou ovos.

Este facto tem importância pela probabilidade de tais práticas serem veiculadas às crianças e adolescentes as quais têm maior vulnerabilidade para determinados distúrbios nutricionais face ao crescimento e desenvolvimento que os caracteriza.

 Os motivos para a escolha de tais dietas ou regimes alimentares têm como base a defesa de princípios ecológicos, luta antipoluição do ambiente, motivos religiosos ou de preocupação com a saúde: regimes ricos em amido e desprovidos de açúcar e sais refinados; maior riqueza em produtos contendo fibra; menor teor em gordura e maior riqueza em poli-insaturados; menor incidência de coronariopatia aterosclerótica, cancro, obesidade, hipertensão e colelitíase.

Sistematização

Os regimes vegetarianos podem ser classificados em três categorias principais: vegetarianos parciais, vegetarianos tradicionais e os chamados vegetarianos novos ou atípicos.

Nos regimes vegetarianos parciais ou semi-vegetarianos são excluídos alguns alimentos de origem animal, designadamente carnes vermelhas, permitindo ingestão de peixe e de carne de aves (pesco e polo-vegetarianos).

Nos regimes vegetarianos tradicionais (também chamados lacto- ou lacto-ovo-vegetarianos) são consumidos produtos lácteos e/ou ovos, estando proibidos a carne e o peixe. No grupo tradicional está incluído o subgrupo designado porveganou vegetariano puro que exclui qualquer produto de origem animal; os seus seguidores praticam determinada filosofia para além das práticas estritamente alimentares: não usam peles, lãs ou sedas e não comem mel nem gelatina. No entanto, as mães vegan em geral, amamentam, estando descritos, casos de raquitismo e de anemia megaloblástica nos respectivos lactentes na ausência de suplementação de vitamina B12 e ácido fólico durante a gravidez.

Os regimes vegetarianos atípicos (que admitem determinadas “propriedades metafísicas” de determinados produtos) incluem a chamada prática macrobiótica com diferentes tipos de regimes, desde o uso exclusivo de cereais, até à permissão de alguns produtos animais.

Impacte da dieta vegetariana

Uma dieta vegetariana poderá ser saudável e promover um crescimento e desenvolvimento normais se planeada, variada e equilibrada, com acompanhamento médico e de nutricionista. No entanto, sociedades científicas como a Sociedade Europeia de Gastrenterologia-Hepatologia e Nutrição Pediátricas (ESPGHAN) consideram inadequada uma dieta vegan em lactentes e crianças pequenas, aconselhando consumos mínimos semanais de leite e peixe.

Salientam-se, contudo, determinados estudos concluindo que crianças com regime vegetariano são mais magras e evidenciam níveis de colesterol sérico inferiores em relação às não vegetarianas. De facto, em tal contexto é propiciado um regime alimentar mais rico em vegetais, fruta e fibra e menor proporção de colesterol, gorduras saturadas e gordura total.

Por outro lado, pelas características inerentes à dieta vegetariana, existe o risco de carência de determinados nutrientes, fundamentais em qualquer fase da vida, e principalmente nas crianças e adolescentes. Trata-se de aminoácidos essenciais, cálcio, ferro, zinco, vitamina B12, vitamina D e ácidos gordos de cadeia 3.

Nesta perspectiva, para evitar situações de défice, foram elaboradas recomendações adequadas à criança e adolescente, com indicações bem definidas de grupos de alimentos e quantidades diárias aconselhadas.

Contrariamente ao que antes se julgava, a proteína vegetal poderá ser semelhante à proteína animal no que respeita ao fornecimento de aminoácidos essenciais, desde que seja ingerida de forma variada ao longo do dia. Como exemplos citam-se os legumes em geral, a soja, o tofu, o feijão e outras leguminosas “secas” como as lentilhas. legumes.

Fontes de origem vegetal ricas em cálcio são por exemplo o feijão preto, grão de bico, figo e os vegetais de folha verde.

O ferro apesar de em menor quantidade e biodisponibilidade nos produtos de origem vegetal, existe por exemplo, nos vegetais de folha verde (espinafre, couve, grãos de soja, tofu, lentilhas).

Os ácidos gordos de cadeia 3, abundantes no peixe, serão encontrados nas nozes, óleo de noz, tofu e soja.

Quanto à vitamina D poderá ser fornecida por alimentos fortificados, como por exemplo cereais, leite ou iogurte de soja ou como suplemento (pelo menos, 200 UI/ dia).

A vitamina B12 é o único micronutriente exclusivamente de origem animal. A sua carência pode originar anemia megaloblástica assim como lesões neurológicas irreversíveis. Podendo ser encontrada em alguns alimentos enriquecidos ou fortificados como os cereais, aconselha-se, no entanto, o seu doseamento sérico. Nos casos de regime vegan, a suplementação é obrigatória (0,4 – 2,4 mcg/dia em função da idade.

Actuação prática

Na perspectiva do dever ético de humanização e de respeito pelas diferenças culturais dos povos, o clínico e o profissional de saúde em geral, responsáveis pela vigilância de saúde da criança ou adolescente (tendo especial atenção aos sintomas e sinais de determinadas carências) deverão esclarecer os pais sobre eventuais riscos e esclarecer-se sobre o tipo de regime, mais ou menos restritivo que os pais desejam para a criança.

Determinadas deficiências em nutrientes poderão ter de ser corrigidas fazendo misturas de diferentes vegetais. A inclusão de leite e ovos afigura-se fundamental para compensar eventuais carências em proteínas, ferro, cálcio e vitamina B12. Poderá igualmente estar indicada a suplementação em ácido fólico. Uma ideia importante a reter é a de que uma dieta vegetariana poderá camuflar uma alteração do comportamento alimentar.

No âmbito dos problemas de ordem nutricional que traduzem défice ou excesso de nutrientes foram abordadas já as seguintes situações clínicas: síndromas de má nutrição energético-proteica, raquitismo carencial comum por défice de vitamina D, e cálcio e fosfato, carência de vitamina A e obesidade. A anemia por carência de ferro (ferripriva) é abordada na parte XVIII.

Erros alimentares mais frequentes

Enunciam-se alguns erros a evitar, os quais traduzem o não cumprimento de regras fundamentais da alimentação saudável em qualquer idade: alimentação suficiente, completa, harmónica e adequada.

Estes erros a evitar têm particular relevância no primeiro ano de vida, período fundamental de aprendizagem, quer de boas, quer de más práticas; são salientados os seguintes:

  • Não atender a que o apetite da criança varia de refeição para refeição. Para além do que foi referido a propósito da alimentação com leite materno, a criança não deverá ser forçada a terminar o biberão;
  • A noite “é para dormir”; mas, se a criança acordar “com fome”, a mamada ou biberão não deverão ser recusados;
  • Iniciar o glúten antes dos 4 ou depois dos 7 meses. De acordo com as recomendações da ESPGHAN, o glúten deve ser introduzido entre os 4-7 meses de idade em quantidade progressiva e ainda durante o aleitamento materno. Um estudo mais recente aponta, no entanto, para a ineficácia do leite materno na prevenção do aparecimento da doença celíaca nesta faixa etária em crianças susceptíveis;
  • Dar leite de vaca em natureza antes do 1 ano de idade;
  • Administrar sal, mel ou açúcar antes do 1 ano;
  • Introduzir novos alimentos diversificados com intervalo inferior a 1 semana entre cada um;
  • Forçar a criança a terminar a sopa de legumes “de que não gosta” logo nos primeiros dias, sem tentar que se adapte;
  • Administrar farinha de cereais e sopa de legumes por biberão;
  • Substituir a sobremesa de fruta por doces ou compotas;
  • Substituir uma refeição com alimentos integrando proteínas, por fruta;
  • Continuar a dar alimentos em puré, muito desfeitos e não granulosos, para além dos 10 meses;
  • Não verificar o suprimento em ferro nem providenciar a sua eventual suplementação no regime alimentar da criança que duplicou o peso de nascimento, data em que as reservas de ferro se esgotam;
  • Idem nos casos em que a criança tenha sido submetida a regime eventualmente desequilibrado e essencialmente farináceo – lácteo;
  • ”Premiar” a criança com doces, chocolates ou guloseimas em geral, na hipótese de a refeição ter sido cumprida;
  • Dar refrigerantes em vez de água quando a criança tem sede, ou à refeição;
  • Dar leite (ou produtos lácteos como iogurte, queijo, etc.) em quantidades excessivas (quanto ao leite: mais de 1 Litro, ou menos de 400 mL por dia);
  • Abusar de fritos;
  • Não dar fruta e produtos hortícolas ao almoço e jantar.

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CARÊNCIAS VITAMÍNICAS E MINERAIS

Introdução

Como foi referido no primeiro capítulo da Parte sobre Nutrição, os micronutrientes compreendem 13 vitaminas e 17 minerais essenciais. Nas sociedades industrializadas, pressupondo regime alimentar equilibrado, os quadros clínicos das respectivas carências por insuficiência de suprimento são raros actualmente, surgindo contudo em certas circunstâncias de risco. Entre os factores de risco com maior relevância, destacam-se as síndromas de malabsorção e o aumento das necessidades nutricionais no contexto de certas doenças crónicas.

Quanto aos minerais, no referido capítulo (Quadro 10) são descritos sucintamente os sinais e sintomas de diversas carências, em paralelo com os quadros clínicos de excesso.

Neste capítulo é dada ênfase às carências de vitamina D, A e C.

1. CARÊNCIA DE VITAMINA D e RAQUITISMO

Definição e importância do problema

As síndromas raquíticas (ou raquitismos em geral) são situações clínicas caracterizadas por falência do ritmo normal de mineralização da matriz óssea devida a inadequadas concentrações de iões cálcio e de fosfato mono-hidrogeniónico nos líquidos do organismo em crescimento, com consequente acumulação de osteóide não mineralizado. Portanto, o cálcio e ou o fosfato podem estar deficitários nos raquitismos. O desequilíbrio fosfo-cálcico tem repercussões multissistémicas: sistema ósseo (de modo especial ao nível da zona metafisária de crescimento activo), muscular, pulmonar, etc..

Se tal perturbação surgir num organismo após se completar o crescimento linear (idade adulta), a síndroma denominar-se-á osteomalácia (com sintomatologia mais discreta).

A carência de vitamina D continua a ser a causa mais prevalente de raquitismo em todo o mundo, mesmo nos países industrializados (raquitismo carencial comum/RCC). Uma vez que a vitamina D pode ser obtida, quer de fontes exógenas nutricionais, quer através da síntese cutânea por acção directa (sem interposição de roupa ou vidraça) da luz solar através da radiação ultravioleta B e A, conclui-se que a carência em vitamina D na infância pode ser devida a combinação de défice de suprimento e de insuficiente síntese cutânea. De salientar o baixo teor em vitamina D no leite materno, implicando a necessidade de os bebés amamentados receberem suplemento de vitamina D ou, se possível, de exposição solar.

Etiopatogénese

Embora a vitamina D activa se encontre pouco difundida na natureza, os seus precursores ou pró-vitaminas (esteróis) derivados do colesterol, encontram-se largamente distribuídos, quer nas plantas, quer nos animais.

A provitamina D das plantas (ergosterol) é susceptível de ser transformada em vitamina D2 ou ergocalciferol.

A provitamina D animal (7-de-hidro-colesterol), produzida na mucosa intestinal, dirige-se, depois, para a camada malpighiana da pele onde adquire actividade vitamínica (vitamina D3 ou colecalciferol) quando exposta aos raios ultravioletas (290-320 mm) – síntese cutânea.

A fotossíntese epidérmica pode estar comprometida de vários modos:

  1. inefectividade da acção dos raios solares na época fria em que a criança usa mais roupa, e em latitudes do globo > 50º designadamente no inverno e primavera;
  2. menor exposição solar face ao receio com o cancro cutâneo;
  3. pigmentação cutânea em crianças de pele negra; 4) poluição e efeito de filtração dos raios UVB < 334 nm pelo vidro das janelas.

A carência de suprimento oral em vitamina D poderá decorrer de certas práticas de raiz cultural como dietas vegetarianas, ingestão de leite de soja ou leite de “arroz”, por exemplo.

Se o ergocalciferol ou o colecalciferol forem veiculados pelos alimentos, a sua absorção é rápida, verificando-se sobretudo ao nível do duodeno-jejuno e por via linfática (Figura 1).

FIGURA 1. Metabolismo da vitamina D (Cerca de 80% da vitamina D no organismo deriva da exposição solar e 20% da alimentação)

A seguir à conversão fotoquímica na pele ou à absorção intestinal, a vitamina D2 ou a vitamina D3 são transportadas em direcção ao fígado com o auxílio duma globulina alfa-2; no fígado sofrem uma 25-hidroxilação ou transformação nos respectivos derivados 25-hidroxilados por intermédio da 25-hidroxilase, enzima do sistema microssómico (família das oxidases do citocrómio P450).

A actividade da 25-hidroxilase específica é regulada por um mecanismo de retroacção representado pela taxa sérica dos compostos 25-hidroxilados e do cálcio.

Os compostos 25-hidroxilados circulam também ligados a uma globulina alfa-2, sendo a sua semivida de 19,6 dias (a semivida do ergo ou cole-calciferol é apenas de 12 a 25 horas).

A acção dos compostos 25-hidroxilados (25-HC) consiste essencialmente no transporte de cálcio ao nível do intestino, na mobilização do cálcio ósseo e na reabsorção tubular proximal de sódio e fosfato.

Ao nível do rim gera-se, depois, a forma metabolicamente activa, o 1-25 hidroxicolecalciferol (ou 1-25 hidroxi-ergocalciferol) (1-25-HC ou calcitriol) a partir do 25-HC (ou calcidiol) que sofre nova hidroxilação em posição 1, com o concurso duma enzima que faz parte dum sistema mitocondrial das células tubulares: a 1-alfa-hidroxilase.

A actividade de 1-alfa hidroxilase é regulada, quer pela carência do organismo em vitamina D, quer pela taxa de cálcio circulante, directamente ou por intermédio da paratormona e calcitonina; depende, ainda, da fosforémia e do teor em fosfatos do tecido renal.

Em caso de normocalcémia ou hipercalcémia, poderá originar-se um composto hidroxilado em 24-25 que não tem qualquer função específica, pois tende a degradar-se.

A acção dos compostos di-hidroxilados (1-25 HC) traduz-se no transporte de cálcio e fósforo ao nível do intestino (quantitativamente a sua acção quanto a este aspecto é cerca de 1 vez e meia superior aos compostos 25-HC) e na mobilização do cálcio ósseo (acção cerca de 100 vezes superior à dos 25 HC). Quanto à reabsorção tubular de sódio, fosfato e cálcio, o seu efeito pode considerar-se, ao contrário, mínimo em relação aos 25-HC.

Quer a vitamina D3, quer os seus derivados 25-hidroxilados, são susceptíveis de se armazenarem ou constituirem em depósitos ao nível dos tecidos adiposo e muscular. Existe, no entanto, uma diferença de comportamento entre os dois: enquanto a vitamina D3 é mais lipossolúvel e se concentra rapidamente no tecido adiposo e por muito tempo – cerca de 80% do seu depósito inicial pode ser encontrado ao cabo de 3 meses – os 25 HC são armazenados em menor quantidade pela sua menor lipossolubilidade, constituindo as formas circulantes por excelência (Figura 1).

A vitamina D não actua directamente sobre as células intestinais ou ósseas; com efeito os seus metabolitos hidroxilados induzem a síntese duma proteína necessária ao transporte activo do cálcio (a CaBP-Calcium-Binding-Protein) e à ligação a receptores.

Demonstrou-se que existem hormonas reguladoras dos fosfatos – as fosfatoninas – de que a principal é o chamado factor de crescimento 23 do fibroblasto (FGF23). Esta fosfatonina diminui a reabsorção tubular de fosfato e a síntese de 1-25-HC, interferindo nos co-transportadores de sódio-fosfato no rim. Em situações de normalidade o FGF23 é degradado em compostos inactivos, não produzindo efeitos adversos. Tal factor é produzido no esqueleto(particularmente osteoblastos e osteócitos), o que tipifica fisiologicamente o chamado eixo osso-rim, regulando a homeostase do fosfato.

De salientar que todos os tecidos do organismo humano (incluindo o tecido ósseo, alvo mais reconhecido desde há muito) contêm um receptor para a vitamina D. Nesta perspectiva, diversos estudos sugerem efeitos da vitamina D nos sistemas imune, cardiovascular e pâncreas endócrino, tendo-se demonstrado papel de protecção contra o cancro, doenças cardiovasculares, infecções, e doenças autoimunes como esclerose múltipla e diabetes mellitus tipo 1. Muito recentemente, em 2019, foram publicados resultados de estudos de meta-análise questionando o papel protector contra cancro e doenças cardiovasculares.

Classificação dos raquitismos

Se nos reportarmos ao ciclo da vitamina D será relativamente fácil deduzir uma classificação etiopatogénica das síndromas raquíticas. Assim, podemos estabelecer dois grandes grupos. (Quadro 1).

  1. Grupo calciopénico que decorre da interferência num ou vários «passos» do ciclo metabólico da vitamina D por parte de determinados factores ou circunstâncias, o que condicionará uma diminuição da concentração dos metabólitos (25-HC e 1-25HC); o perfil bioquímico característico deste grupo é constituído pela deficiência em cálcio ou interrupção no suprimento ou utilização da vitamina D.
  2. Grupo fosfopénico devido a suprimento inadequado de fosfato na dieta ou a perda tubular renal excessiva. As maioria das situações que integram o subgrupo A corresponde ao chamado raquitismo carencial comum, vitamino-sensível ou vitaminoprivo; como se referiu, é o que surge com maior frequência, é evitável com profilaxia correcta e é curável com doses usuais de vitamina D.
    As situações que integram os subgrupos B, C e D surgem com profilaxia correcta e não são curáveis com doses terapêuticas usuais de vitamina D (na designação antiga classificados como vitaminorresistentes).

Na Parte XX (Endocrinologia) são abordadas noções sucintas sobre alguns raquitismos carenciais não comuns.

Neste capítulo é dada ênfase ao raquitismo carencial comum (RCC).

QUADRO 1 – Carência e alterações do metabolismo da vitamina D – Raquitismos

Abreviaturas: CLCN5: Chloride channel, voltage-sensitive 5; DMP1: Dentin matrix protein; ENPP1: Ectonucleotide pyrophosphatase/phosphodiesterase; FGF23: Fibroblast growth factor 23; FGFR1: Fibroblast growth factor receptor; GNAS1: Guanine nucleotide-binding protein, a-stimulating activity polypeptide 1; PHEX: Phosphate-regulating gene with homologies to endopeptidases on the X chromosome; PTH1R: Parathyroid hormone 1 receptor; OCRL1: Oculocerebrorenal syndrome of Lowe; NPT2: Type II sodium/phosphate cotransporter

A – Raquitismo Calciopénico

i. Défice de vitamina D / Carencial comum
Prematuridade
Défice nutricional por ingestão insuficiente de nutrientes
Exposição solar inadequada
Má-absorção intestinal associada a doença celíaca, fibrose quística, pancreatite ou outras causas de esteatorreia
Doença hepática levando a alteração da produção de 25-hidroxi-vitamina D
Medicamentos (corticóides, anticonvulsantes)

ii. Alterações do metabolismo da vitamina D
Raquitismo vitamina D dependente tipo 1B associado a défice de 25OHD (mutação do gene da 25-hidroxilase)
Raquitismo vitamina D dependente tipo 1A associado a défice de 1,25 (OH)2D (mutação do gene da 1a-hidroxilase)

iii. Resistência periférica à vitamina D
Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR (mutação do gene VDR)
Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B com VDR sem alterações

iv. Ingestão insuficiente de cálcio
Dieta vegetariana
Ingestão insuficiente de nutrientes

B – Raquitismo fosfopénico

i. Ingestão insuficiente de fosfato
Baixo peso de nascimento
Má absorção intestinal
Ingestão prolongada de antiácidos

ii. Perda renal de fosfato associada a aumento de FGF23
Raquitismo hipofosfatémico autossómico dominante (mutação do gene FGF23)
Raquitismo hipofosfatémico autossómico recessivo 1 (mutação do gene DMP1)
Raquitismo hipofosfatémico autossómico recessivo 2 (mutação do gene ENPP1)
Raquitismo hipofosfatémico dominante ligado ao X (mutação do gene PHEX)
Síndroma de McCune-Albright (mutação do gene GNAS)
Displasia osteoglofónica (mutação do gene FGFR1)
Condrodisplasia metafisária de Jansen (mutação do gene PTH1R)
Raquitismo tumoral
Síndroma do nevus sebáceo linear

iii. Perda renal de fosfato associada a hipercalciúria
Raquitismo hipofosfatémico hereditário com hipercalciúria (mutação do gene SLC34A3)
Acidose tubular renal de tipo distal
Doença de Dent (mutação do gene CLCN5)
Síndroma oculocerebrorrenal de Lowe (mutação do gene OCRL1)
Síndroma de Fanconi primário ou secundário (cistinose, galactosémia, etc.) com perdas renais de glucose, fosfato, aminoácidos

Manifestações clínicas, radiológicas e laboratoriais do RCC

O RCC constitui o exemplo paradigmático de carência extrema de vitamina D a qual se estabelece de modo progressivo antes de os sinais clínicos se tornarem evidentes.

As manifestações do RCC podem assim ser sistematizadas, salientando-se que a deficiência de vitamina D pode ser assintomática:

a) Sinais clínicos ósseos

Os sinais clínicos característicos, dependendo da idade de apresentação, decorrem de alterações ósseas indolores, simétricas, localizando- se na zona de crescimento activo com evolução (em geral com início desde os primeiros meses, progredindo no primeiro ano de vida no sentido crânio-caudal): cranio-tabes (consistência mole do crânio, evidente sobretudo ao nível da região parieto- occipital, dando a sensação de palpação de bola de ping-pongue – após compressão, o osso volta à posição inicial), atraso de encerramento das suturas cranianas cujos bordos são moles, deformações diversas do crânio relacionadas com a diminuição de consistência da calote craniana susceptível de deformação postural, atraso da erupção dentária,tumefacção esferóide ao nível das articulações condrocostais por hipertrofia das respectivas cartilagens (por acumulação de osteóide) cujo conjunto ao longo do tórax aparenta um rosário (é o chamado rosário costal); deformação do tórax, em sino, com alargamento da base e evidência do chamado sulco de Harrison; alargamento das epífises dos ossos longos especialmente notória ao nível dos punhos (chamados “de boneca”) e regiões tíbio- társicas; deformações dos membros inferiores (tíbias em “parêntesis”, genu varum, etc.); ao nível da coluna pode verificar-se cifose com formação de saliência lombar típica nas formas exuberantes – saliência ou gibosidade do raquis, donde o nome de raquitismo).

De referir a relação que existe entre a velocidade de crescimento e o aparecimento do quadro clínico; ou seja, a probabilidade de aparecimento do quadro clínico é tanto maior quanto maior a velocidade de crescimento (Figuras 2, 3 e 4). Nos lactentes poderão surgir sinais atípicos como cardiomiopatia e, nos adolescentes, dores e fraqueza musculares.

FIGURA 2 – Criança com raquitismo: deformação torácica (NIHDE)

FIGURA 3 – Raquitismo: cifose dorso-lombar e deformação da coluna com gibosidade (NIHDE)

FIGURA 4 – Raquitismo: “ Punho de boneca”/alargamento dos punhos (NIHDE)

b) Sinais clínicos músculo-ligamentosos

Salienta-se a hiperlaxidão dos ligamentos e a hipotonia muscular as quais condicionam o atraso do desenvolvimento motor (início do sentar-se e da marcha), designadamente.

c) Sinais radiológicos

As lesões ósseas com tradução radiológica têm, sobretudo, uma localização metafisária: a metáfise dos osssos longos está alargada, côncava, “em taça”, com aspecto franjado e limite irregular; as diáfises evidenciam diminuição da densidade óssea com trabeculação nítida e aspecto de duplo contorno, por vezes sinais de fracturas e de calos de fracturas; espaço epífise- metáfise alargado podendo haver atraso de aparecimento dos núcleos de osssificação; ao nível do tórax, em complemento dos sinais clínicos já referidos, torna- se evidente o alargamento das articulações condro- costais em “raquete” (Figuras 5 e 6).

FIGURA 5 – Sinal radiológico de raquitismo: metáfise do rádio e cúbito ao nível de punho, alargamento em taça, de contorno irregular (NIHDE)

FIGURA 6 – Sinal radiológico de raquitismo: esboço de aparecimento da linha de calcificação preparatória ao nível das metáfises alargadas (rádio e cúbito) como resposta do tratamento (maior densidade óssea relativamente à figura 5) (NIHDE)

Pode haver sinais de infecção parenquimatosa (pneumonia, bronquite) face à susceptibilidade para as infecções, enquadrando a situação classicamente conhecida por “pulmão raquítico”. (ver capítulo sobre Pneumonia).

Os primeiros sinais aparecem em geral entre os 4 e 6 meses; no caso de não tratamento, a forma exuberante é notória por volta do final do 1º ano de vida e durante o 2º ano.

d) Sinais laboratoriais

Os valores séricos do cálcio, fósforo e fosfatase alcalina podem variar em função da fisiopatologio, já exposta: fase precoce com hipocalcémia e fósforo normal; fase intermédia resultante da estimulação da PTH, com normocalcémia e fósforo diminuído; fase avançada com cálcio e fósforo baixos por insuficiente mobilização a partir do osso. A fosfatase alcalina está aumentada em todos os tipos de raquitismo, e mais intensamente nas formas calciopénicas. A PTH está sempre aumentada nas formas calciopénicas e muitas vezes normal nas formas fosfopénicas.

Determinando o valor decálcio x fósforo séricos em mg/dL para o diagnóstico, classicamente considera- se: 30 (raquitismo certo); 30-40 (raquitismo possível); > 40 (raquitismo impossível ou em via de cura).

Sendo possível o doseamento dos metabólitos da vitamina D, considera-se que o valor do metabólito mono – hidroxilado (25-HC) ou 25-hidroxivitamina D <15 ng/mL corresponde a carência ou deficiência de vitamina D. Valores entre 15-30 ng/mL correspondem a insuficiência, e >30 ng/mL a suficiência.

Relacionando os sinais clínicos com os laboratoriais e radiológicos, chama- se a atenção para uma forma clínica (fase precoce) de carência de vitamina D ocorrendo habitualmente no lactente, sobretudo antes dos 6 meses com o seguinte quadro: sintomas de hipocalcémia- cálcio ionizado inferior a 3-4 mg/dl ou total inferior a 7-7.5 mg/dl (irritabilidade neuromuscular incluindo convulsões, tetania, espasmo carpo pedal, laringospasmo) com ou sem evidência radiológica de raquitismo. É a chamada “tetania” do lactente por carência de vitamina D, hoje rara no nosso país.

A hipocalcémia susceptível de originar tetania (não manifesta ou latente) pode ser identificada através da pesquisa dos clássicos sinais de Chvostek, Trousseau e de Erb.

A hipocalcémia sintomática é mais frequente nas idades extremas (1ª infância e adolescência), a que correspondem períodos de crescimento rápido.

Esta situação é hoje rara.

Tratando-se duma síndroma com repercussão sistémica, nas formas de deficiência extrema, também já raras, é habitual o quadro de anemia hipocrómica, traduzindo carência concomitante em ferro. No entanto, poderá igualmente surgir anemia megaloblástica por carência de vitamina B12 ou ácido fólico e anemia pluricarencial.

Uma forma clássica, rara, é a anemia de Von-Jaksch-Luzet ou anemia pseudo leucémica cursando com hiperleucocitose e hepatosplenomegália, relacionável com eritropoiese compensadora ectópica.

São citadas situações raras na actualidade por razões didácticas e históricas.

Diagnóstico diferencial

A anamnese é fundamental para a destrinça com outras situações acompanhadas de alterações esqueléticas.

O craniotabes não é patognomónico do raquitismo, podendo surgir nalgumas displasias ósseas.

As deformações do tórax poderão enquadrar-se em situações acompanhadas de anomalias congénitas.

O rosário costal pode surgir igualmente no escorbuto (défice de vitamina C), hoje praticamente uma raridade, sendo acompanhado doutras carências; no entanto, nesta última situação o rosário costal resulta de luxação condrocostal e os sinais radiológicos esqueléticos são diferentes: é típica a hemorragia subperióstica, e as alterações esqueléticas são acompanhadas de dor. Podem também surgir hematúria e hemorragias petequiais.

Uma história familiar de raquitismo poderá sugerir forma hereditária, sendo o raquitismo hipofosfatémico ligado ao X o mais frequente. Antecedentes familiares de consanguinidade poderão apontar para raquitismo vitamina D dependente do tipo II, raro.

Prevenção

Este tópico integra duas possíveis estratégias: exposição solar ou administração de vitamina D

Exposição solar

O RCC (deficiência primária de vitamina D) é susceptível de prevenção através da exposição directa à luz solar (fracção leve da radiação ultravioleta B / UVB) ou da administração de vitamina D. Sobre esta questão, a comunidade científica tem debatido sobre o balanço entre risco de cancro da pele pela exposição solar, e o benefício da exposição.

De acordo com os resultados de diversos estudos, considera-se eficaz e segura a prevenção através da exposição directa diária (~30 minutos) da face e membros superiores nas latitudes da Europa do Sul. Com regra geral, é estabelecido que, quanto maior o afastamento do equador, maior o tempo necessário de exposição, e menor o risco.

No que respeita ao risco da exposição solar para a retina, os especialistas aconselham, já em lactentes, designadamente em tempo de praia, para além doutras medidas, o uso de óculos de sol com protecção contra UVB:

Administração de vitamina D

Sobre esta questão, não totalmente consensual, salientando que têm sido produzidas recomendações variando ao longo do tempo em função de estudos científicos), e tendo em conta a diversidade do panorama da saúde, dos hábitos culturais e do ambiente em diversas latitudes do globo, importa descrever certas noções essenciais a aplicar em grávidas e mulheres lactantes, e em lactentes, crianças e adolescentes considerados, de resto, saudáveis:

  • a grávida e a lactante (mulher que amamenta) devem ingerir 1.000 UI de vitamina D diariamente. (Segundo as normas NICE: 400 UI/dia -ver bibliografia- Wood Cl, et al, 2016).
  • em lactentes alimentados com leite materno na maioria dos casos de raquitismo carencial comum, este pode ser prevenido através da administração diária de 400 UI de vitamina D. (Segundo as normas NICE, 2016: 0-6 meses à 340 UI/dia; 6 meses -5 anos à 280 UI/dia).
  • os lactentes e crianças que não recebam teor adequado de vitamina D através das fórmulas preparadas ou da dieta (ou alimentados com fórmula suplementada se ingerirem < 500 mL/dia), e que não tenham exposição à luz solar directa considerada suficiente, também devem receber 400 U de vitamina D diariamente.
  • embora não haja consenso no âmbito dos vários organismos internacionais, e excluindo situações clínicas especiais, é recomendada a dose diária de 400 U de vitamina D durante toda a vida, devendo entrar em consideração com o teor em vitamina D no leite e no regime alimentar em geral, e igualmente com a exposição regular e directa ao sol.

Notas importantes:

  1. De acordo com diversos estudos, o suplemento de vitamina D entre 200 e 400 UI por dia garante a manutenção do nível sérico de 25-hidroxi-vitamina D > 25 nmol/ L (10 ng/ml) compatível com ausência de deficiência de vitamina D. Idealmente o referido nível sérico deverá ser igual ou superior a 30ng/ml.
  2. Dum modo geral as fórmulas para lactentes contêm cerca de 400 UI/Litro, sendo de salientar que a concentração da vitamina D no leite humano é muito mais baixa, embora mais biodisponível (cerca de 25 UI /Litro) .

Tratamento

Na criança ou adolescente, para o tratamento do RCC (deficiência de vitamina D) estão indicadas doses orais diárias de 50-150 mcg (2.000- 10.000 UI) de vitamina D3 ou de 0.5-2 mcg de 1,25- di-hidroxi-colecalciferol durante 8-12 semanas; com cerca de 2-4 semanas de tratamento produz-se uma melhoria dos sinais radiológicos traduzida pelo aparecimento da chamada “linha de calcificação preparatória” ao nível das metáfises (Figura 6).

Uma vez verificada a resposta inicial, a dose diária deve ser reduzida para [400 UI (até idade de 1 ano) ou 600UI (> 1 ano) ] como esquema profiláctico.

O doseamento sérico do metabólito mono-hidroxilado (25-hidroxi-colecalciferol) serve de orientação para avaliação do resultado terapêutico, salientando-se que o valor sérico de 25-HC vit. D não deverá ultrapassar 100 ng/mL.

Para além da avaliação clínica, o efeito da terapêutica poderá também ser comprovado mais objectivamente com doseamentos séricos e urinários de cálcio, assim como da fosfatase alcalina (cujos valores decrescem com a melhoria).

Como alternativa, poderá optar- se por outro esquema de administração de vitamina D: 50.000 UI semanais durante 8 semanas, ou uma simples dose (anteriormente designada “choque vitamínico”) de 150.000 a 600.000 UI em função da idade do doente e do estado clínico.

Se não ocorrer resposta ao tratamento a curto prazo, tratar-se-á provavelmente, não de um RCC, mas de uma deficiência secundária de vitamina D ou de forma fosfopénica.

Recorda-se que em situações de carência de cálcio, a calcémia pode ser normal ou baixa e que a hipocalcémia sintomática é pouco comum.

Uma vez iniciado o tratamento com vitamina D, está indicado o suplemento de cálcio-elemento (30-75 mg/kg/dia).

O regime alimentar deverá logicamente conter cálcio e fósforo através da ingestão de leite e produtos lácteos.

A correcção da hipocalcémia sintomática obriga a terapêutica de substituição emergente com gluconato de cálcio, a qual é abordada noutro capítulo.

Em situações específicas e graves acompanhadas de deformações esqueléticas sequelares, poderá haver necessidade de intervenção ortopédica.

2. CARÊNCIA DE VITAMINA A

Importância do problema

Faz-se uma breve referência a este estado carencial, raro em crianças saudáveis com regime alimentar equilibrado, mas com elevada prevalência nos países em desenvolvimento, sobretudo da África, constituindo um grave problema de saúde pública.

Poderá surgir igualmente como resultado de síndromas de má-absorção e em situações com deficiência de ingestão em lípidos.

As consequências de tal carência, que surgem insidiosamente, verificam-se sobretudo ao nível do sistema ocular: essencialmente, xerose da conjuntiva e da córnea com ulterior opacificação desta; dificuldade de adaptação à escuridão e cegueira nocturna. A pele é seca e descamativa.

O tratamento consiste na administração diária de doses entre 1500 e 3000 mcg de vitamina A por via oral com vigilância da evolução clínica tentando evitar a toxicidade. Na xeroftalmia são utilizadas doses maiores. Vários organismos internacionais e várias equipas de profissionais de saúde colaboram em campanhas nos países mais afectados.

3. CARÊNCIA DE VITAMINA C

O quadro clínico típico de carência de ácido ascórbico (vitamina C) designa-se por escorbuto. O défice de tal vitamina (que acelera as reações de hidroxilação da prolina na formação do colagénio), contribui para a fragilidade de determinados tecidos, designadamente da parede vascular.

Poderá surgir no primeiro ano de vida em lactentes alimentados com leite de vaca não suplementado e com regime alimentar isento de frutos, designadamente citrinos e vegetais frescos. Com a fervura, a fonte de ácido ascórbico nestes produtos naturais é destruída.

Na idade pediátrica, as manifestações clínicas incluem essencialmente irritabilidade, gengivite ulcerosa e sangrante, hemorragia subperióstica originando dores ósseas, hipomobilidade dos membros simile paralisia, rosário condrocostal e hematúria. Na ausência de tratamento correctivopoderão surgir petéquias, hiperqueratos dos folículos do cabelo e alterações mentais.

Nas formas crónicas poderá verificar-se anemia secundária à perda sanguínea, diminuição da absorção do ferro, assim como alteração do metabolismo do folato.

O tratamento consiste na administração diária de vitamina C (250-500 mg/ dia). Nos casos de malabsorção, devem ser utilizadas doses superiores.

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DESNUTRIÇÃO

Definições e importância do problema

Reportando-nos ao capítulo sobre nutrientes, e sendo a nutrição o processo pelo qual se incorporam no organismo os nutrientes dos alimentos (prótidos, glúcidos e lípidos, para além de micronutrientes) fornecendo energia para assegurar as funções do organismo e o crescimento, torna-se fácil a compreensão do conceito de subnutrição ou desnutrição: tal conceito está associado às situações em que, existindo défice de ingestão dos alimentos ou disfunção no processo metabólico celular de incorporação dos respectivos nutrientes, o resultado final é o suprimento insuficiente de energia, o qual pode ter início ainda in utero.

As mais importantes consequências da desnutrição/subnutrição (peso deficitário, emagrecimento, inanição de grau variável, e défice em micronutrientes) situam-se nos primeiros 1.000 dias de vida, desde a concepção até por volta dos 24 meses de idade pós-natal. Tais consequências traduzem-se em compromisso do crescimento e desenvolvimento, défice do rendimento escolar e toda uma gama de problemas adversos a especificar no âmbito da alínea sobre Etiopatogénese.

Existindo por vezes discrepâncias na terminologia utilizada em diversas fontes bibliográficas, (em que se considera má-nutrição/malnutrição um sinónimo de desnutrição ou subnutrição), cabe salientar que o termo de má-nutrição/malnutrição tem um sentido mais amplo, pois abarca um largo espectro de situações clínicas desde a desnutrição ou subnutrição, isto é, de défice, às situações de excesso, estas últimas, tipificadas pelo excesso de peso e obesidade.

Ainda no que respeita a terminologia, os autores actuais recomendam que se evite o termo “má-nutrição energético-proteica” por implicitamente omitir uma gama muito mais variada de outros nutrientes em défice. Contudo, “toleram” outros termos de cariz semiológico que ajudam a sistematizar e compreender melhor a fisiopatologia de um problema com largo espectro de manifestações, como se disse:

  1. marasmo (inanição grave ou atrépsia resultante de carência global, calórica e de outros nutrientes, com carência proteica proporcional),
  2. kwashiorkor (caracterizado por edema bilateral correspondente às situações com carência predominante de proteínas de elevado valor biológico, sem redução do valor calórico total), e
  3. kwashiorkor marasmático (inanição grave + edema) com factores etiopatogénicos mistos.

Reconhecendo-se que os quadros clínicos não são estanques quanto ao predomínio dos nutrientes em défice, os especialistas consideram ainda duas designações relacionadas com o modo como se instala o estado de desnutrição/subnutrição:

  • forma aguda (wasting, ~ emagrecimento ou a inanição);
  • forma crónica (stunting, ~ hipocrescimento).

Por razões didácticas os três termos referidos anteriormente (1-, 2-, 3-) foram mantidos no texto do capítulo. Por outro lado, considerámos os termos má-nutriçãosubnutrição e desnutrição como sinónimos, tendo a situação de obesidade sido abordada noutro capítulo.

Salienta-se que as síndromas de desnutrição constituem um problema de grande magnitude e impacte social, sobretudo nos países de fracos recursos e em desenvolvimento, sendo responsáveis, directa ou indirectamente, por cerca de 50% dos óbitos de crianças com menos de 5 anos. Nalgumas regiões do globo, em relação com défice de condições de higiene, culturais e económicas, podem atingir cerca de 25-35% da população em idade pediátrica (dados de 2000).

Nos países industrializados podem surgir em nichos de população desprotegida e marginalizada como resultado de negligência, pobreza e ileteracia.

Avaliação do estado nutricional

Para a avaliação do estado de nutrição, podem ser utilizados critérios clínicos e laboratoriais:

  • Inquérito nutricional – com o objectivo do esclarecimento sobre os nutrientes supridos durante vários dias, permitindo calcular, com a maior aproximação possível, na base do peso dos alimentos ingeridos, a percentagem do VCT de proteínas, gorduras e hidratos de carbono. 
  • Antropometria – Os parâmetros que devem ser determinados são: peso, altura, perímetro braquial e prega tricipital. Na prática, os índices mais largamente utilizados para avaliar o grau de má- nutrição são os de Waterlow e de Gomez, respectivamente.

De acordo com Waterlow são considerados dois índices:

  1. peso para a altura (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 90 um estado de desnutrição aguda, ou seja, compromisso mais significativo do peso;
  2. altura para a idade (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 95 um estado de desnutrição crónica, ou seja, compromisso mais significativo da altura.

De acordo com Gomez, é considerada apenas a relação:

  1. peso para a idade (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 75, quer má – nutrição crónica, quer má – nutrição aguda, traduzindo compromisso do peso e da altura.

Adoptando as três relações (de acordo com os critérios referidos) é possível discriminar diversos graus de má-nutrição (Quadro 1).

QUADRO 1 – Graus de desnutrição

 Classificação de WaterlowCritério de Gomez
GrauPeso/Altura
(% da mediana)
Altura/Idade
(% da mediana)
Peso/Idade
(% da mediana)
0 grau>90>95
1º grau (ligeira)81-9090-9575-85
2º grau (moderada)70-8085-8964-74
3º grau (grave)<70<85<64

Tais avaliações devem ser seriadas valorizando um conjunto de determinações e não apenas uma, isoladamente. De referir que:

  1. nas situações agudas, para além do défice em nutrientes, assumem relevância as alterações hidro-electrolíticas;
  2. nas situações crónicas assumem relevância os défices de mais que um nutriente.
  • Composição corporal – A massa corporal integra 2 compartimentos: 1) massa gorda ou reserva de gordura; 2) massa magra que compreende a água total, reserva de proteínas viscerais e musculares, e de minerais.
    As reservas de gordura subcutânea podem ser avaliadas medindo a espessura das prega cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e supra-ilíaca; a massa muscular esquelética é avaliada através da determinação da prega tricipital em conjunto com o perímetro braquial. Segundo as curvas da OMS, em crianças com idades entre 6- 59 meses, valor do perímetro braquial < 115 mm denota inanição extrema com necessidade de tratamento.
    A medição da espessura da prega cutânea é difícil de determinar em crianças pequenas. (ver Anexos -Vol 3: Avaliação do estado nutricional).
  • Exames laboratoriais – Os parâmetros a avaliar são: albumina plasmática; excreção urinária de creatinina proporcional à massa muscular, pré-albumina ligada à tiroxina, proteína ligada ao retinol, e concentração plasmática de determinadas vitaminas e de determinados minerais (em circunstâncias especiais, conforme a história clínica, constituem elementos adjuvantes para o diagnóstico).
    A imunodeficiência é comum nas situações de má-nutrição; as provas cutâneas relacionadas com o estado de imunidade celular (provas cutâneas com antigénios como por exemplo a prova da tuberculina) evidenciam anergia.
  • Exames biofísicos – Em determinados centros especializados são utilizadas a densitometria para avaliação massa gorda, e a bioimpedância para a avaliação da massa magra. No Laboratório de Nutrição do Hospital Dona Estefânia (Lisboa) são utilizadas técnicas mais rigorosas e exequíveis nos primeiros meses de idade, tais como a absorciometria bifotónica (dual energy X ray absorptiometry-DEXA) e a pletismografia por deslocação de ar.
    No campo da investigação e com escassa exequibilidade na prática clínica, citam-se, entre outras, a determinação do potássio total, a hidrometria por diluição de isótopos estáveis, a ressonância magnética, a espectrofotometria próxima dos infravermelhos e a calorimetria indirecta.

Etiopatogénese

Aspectos gerais

Na sua origem podem ser invocados um conjunto de factores com influência recíproca encerrando um círculo vicioso.

  1. Nos países ditos em desenvolvimento, a ignorância e a pobreza em primeiro lugar desempenham um papel decisivo e estão em causa os recursos precários em nutrientes e as deficientes condições de higiene, de saneamento básico e de evicção de insectos vectores. Como consequência, existe maior frequência e maior gravidade de infecções e infestações parasitárias no grupo populacional em tais condições, contribuindo para estabelecimento de estados de desnutrição, ou para o seu agravamento. Por sua vez, a desnutrição propicia o desenvolvimento de infecções, como se fundamentará adiante.
  2. Nos países ditos desenvolvidos, embora existam nichos de população com precariedades várias semelhantes às dos países referidos em 1., têm papel preponderante as doenças crónicas comportando necessidades calóricas mais elevadas (infecções, febre, etc.) e alterações digestivas comprometendo a absorção dos nutrientes; exemplificando: fibrose quística, infecções por VIH, doenças do tracto digestivo, cancro e terapêutica respectiva, cardiopatias congénitas e doenças do foro neurológico (paralisia cerebral) e muscular, alergias alimentares, vegetarianismo, entre outras. No âmbito da raridade de certas situações susceptíveis de serem diagnosticados em países com recursos, cita-se uma situação do foro genético: polimorfismo C825T no gene GNB3 que, determinando menor sensação de fome e menos sensação de mal estar por tal circunstância, leva a menor ingestão de alimentos.
  3. As situações de baixo peso de nascimento e ou prematuridade com restrição do crescimento fetal (ou da nutrição fetal) obrigam a uma menção especial no contexto do tema subnutrição/desnutrição e no das repercussões futuras. Hales e Barker, entre 1999 e 2001 admitiram a chamada hipótese da poupança ou do feto poupado(thrifty hypothesis) segundo a qual o feto responde à sua subnutrição (que pode ter várias causas) com uma série de mecanismos de adaptação que incluem o armazenamento de gordura, redução do metabolismo não essencial, hipocrescimento e redistribuição do fluxo sanguíneo e nutrientes para órgãos nobres ou “funcionalmente prioritários para a sobrevivência” (por ex. cérebro, coração e suprarrenais) em detrimento doutros que podem ficar com lesões. Ou seja, a privação de nutrientes pode originar no feto um fenómeno de adaptação (designada por programação, em inglês programming) que conduz a lesões estruturais e metabólicas permanentes. Tais alterações “de adaptação” na vida intrauterina que “o feto adoptou”, poupando, não se tornarão evidentes ou tão evidentes se o organismo na sua condição extrauterina continuar a viver em ambiente nutricionalmente pobre. No entanto, se o organismo for exposto a ambiente nutricionalmente rico (isto é, passar a ser alimentado de modo “não poupado”, mas a que se “habituara”, sem restrições em nutrientes), surgirão mais tarde (desde a idade pediátrica, entrando na idade adulta) problemas clínicos de vária ordem como diabetes do tipo 2, doença coronária, hipertensão arterial, dislipidemia e aterosclerose prematura, obesidade troncular, etc..
  4. No que respeita à patogénese do défice de suprimento de nutrientes levando à depleção de depósitos de gordura e glicogénio no organismo importa sintetizar os seguintes fenómenos: – elevação do cortisol; – hipossecreção de insulina e certo grau de resistência perifériva e esta hormona; – elevação de GH com pobre resposta de IGF-1; – aumento da produção de aldosterona; – predisposição especial para infecções por alterações nas respostas imunes, com diminuição de linfócitos, de IgA, e da fagocitose, com alterações do complemento e diminuição de certas citocinas (IL-1, IL-6, TNF).

Aspectos específicos

No caso de desnutrição no contexto do marasmo a situação mais típica é a da criança que nos primeiros meses de vida é precocemente desmamada, continuando a alimentação com leite industrial (ou leite de vaca em natureza nas situações mais precárias), em quantidade insuficiente ou excessivamente diluído.

Por vezes, nalgumas sociedades, este quadro de desnutrição é já bem patente ao nascer traduzindo desnutrição fetal ou restrição do crescimento fetal como resultado de condições nutricionais deficientes da grávida.

No caso do kwashiorkor o perfil etiopatogénico, na sua forma típica, é o seguinte: criança alimentada ao peito para além dos 12 meses (em situações extremas a criança ainda está a ser amamentada quando surge nova gravidez da mãe). Uma vez desmamada, o regime alimentar, como foi referido, tende a ser constituído por suprimento elevado em hidratos de carbono, sobretudo de farináceos (à base de milho, mandioca, etc.), tal como nos restantes membros da família. Assim, a criança é alimentada com número suficiente de kcal (energia), mas não de proteínas.

Manifestações clínicas

Marasmo

Sob o ponto de vista clínico, a característica mais marcante diz respeito à deficiente progressão ponderal, seguindo-se estabilização e ulterior diminuição. O critério peso é, pois, fundamental para definir a situação em que a criança se encontra, reportando-nos a uma tabela de percentis.

Na alínea antropometria referida atrás, foram definidos os critérios de Waterlow e de Gomez; nesta perspectiva, o Quadro 1 dá-nos uma ideia integrada da classificação dos graus de desnutrição englobando os dois critérios.

Para além da perda de peso, observa-se diminuição do panículo adiposo subcutâneo (correspondente à utilização das reservas energéticas, fundamentais para a subsistência), o que pode ser avaliado através da manobra do pregueamento da pele entre dois dedos do observador.

Com efeito, a pele e os tecidos moles periféricos duma criança em situação de nutrição normal evidenciam uma textura e elasticidade especial chamada turgescência ou turgor. A perda do turgor resultante da diminuição do panículo adiposo origina o “sinal da prega”, mantida após se aliviar o pregueamento. Este sinal também ocorre na desidratação aguda, mantendo-se a prega neste último caso por mais tempo.

Tratando-se duma situação crónica, o desaparecimento do panículo adiposo segue uma ordem topográfica bem determinada: primeiramente desaparece no abdómen, depois no tórax e ombros, mais tarde braços, coxas e nádegas (“nádegas em bolsa de tabaco”ou seja, exibindo sulcos ou pregueamento transversal da pele da nádegas e face interna das coxas) e, finalmente, na face com desaparecimento do panículo adiposo da bochecha ou “bola de Bichat” dando lugar à chamada “fácies senil ou de Voltaire”, com rugas, olhos vivos e abertos. O desaparecimento da “bola de Bichat” é típico da desnutrição do 3º grau (Figuras 1 e 2).

FIGURA 1. Quadro clínico de marasmo (NIHDE)

FIGURA 2. Quadro de marasmo: nádegas em “bolsa de tabaco” (NIHDE)

A avaliação da altura oferece, em geral, menos interesse que o peso; com efeito, a estabilização de tal parâmetro somente se verifica em situações de desnutrição grave, sendo evidente sobretudo após os 6 meses.

A cor da pele é tipicamente acinzentada, parecendo fria ao contacto. Tal aspecto resulta, em parte, da anemia que frequentemente existe, e da hipoperfusão tecidual. As mucosas nem sempre estão pálidas. Oscabelos são finos e escassos, sem brilho. Não existe edema.

É muito frequente a observação de dermatites variadas e de intertrigo que poderão ser a consequência de deficiência nos cuidados gerais prestados.

O tono muscular pode estar alterado; na maior parte das vezes existe hipotonia, a qual explica outro sinal característico: distensão abdominal que pode ser muito pronunciada estando em relação, quer com a hipotonia da musculatura da parede abdominal, quer com a hipotonia da musculatura lisa das ansas intestinais e o défice de potássio. Por vezes o abdómen pode estar deprimido.

Os mecanismos de adaptação metabólica do organismo conduzem a hipotermia, bradicárdia, hipotensão arterial e hipoglicémia

De referir igualmente a perturbação do psiquismo; embora estes doentes estejam despertos e interactivos com o ambiente que os rodeia quando estimulados, manifestam tristeza e apatia, com um choro monótono.

Existe tendência para infecções as quais, por sua vez, se repercutem negativamente sobre a desnutrição. Efectivamente, como anteriormente foi referido, a infecção limita o apetite produzindo frequentemente vómitos e diarreia o que compromete a absorção de nutrientes; por outro lado, o processo infeccioso produz hipercatabolismo.

A imunidade humoral está pouco comprometida (pode haver elevação das imunoglobulinas séricas como resposta a infecções repetidas) enquanto a imunidade timodependente está seriamente afectada.

Considerando os diversos tipos de infecções, cabe uma referência especial às infecções respiratórias (pneumonias) pela sua potencial gravidade. Na sua forma de manifestação mais típica, trata-se de formas graves de pneumonia de localização paravertebral, favorecidas pelo decúbito prolongado em relação com a precariedade dos cuidados; não existindo, em geral, febre nem tosse, são muitas vezes subdiagnosticadas.

A desnutrição compromete o desenvolvimento do sistema nervoso central, o que tem consequências a longo prazo. A este respeito é importante ter em conta que o cérebro é um órgão com um crescimento muito rápido nos últimos meses da vida intra-uterina necessitando, por consequência, de um elevado suprimento de nutrientes durante esse período.

As consequências são diversas: atraso (por vezes regressão) do neurodesenvolvimento psicomotor, sensorial e comportamental; perímetro cefálico de menores dimensões; desenvolvimento intelectual inferior ao da população geral. O resultado final depende também do défice de estimulação destas crianças as quais vivem em ambiente social e cultural muito precário.

Ao nível do aparelho digestivo há que salientar a diminuição da actividade da lactase. Estudos de biópsias jejunais demonstraram anomalias histológicas consideradas de menor relevância (altura diminuída do epitélio e invasão da lamina propria por linfócitos e eosinófilos) e outras, funcionais, traduzidas sobretudo por diminuição da actividade lactásica. Este último achado tem implicações na prática clínica obrigando à utilização de produtos isentos de lactose na recuperação nutricional.

Kwashiorkor

Sendo o regime alimentar hipoproteico complementado por suprimento em hidratos de carbono, conduzindo a relativo cumprimento das necessidades energéticas totais, as manifestações clínicas, pelo menos numa fase inicial, poderão passar despercebidas.

O edema por hipoproteinémia (diminuição da pressão oncótica do plasma) que, entretanto, surge, constitui a característica predominante deste tipo de desnutrição. O aspecto geral da criança é o de uma criança com edema generalizado, sobressaindo as bochechas tumefactas pelo referido edema o qual se localiza também noutras áreas (pálpebras, membros superiores e inferiores). O peso pode ser adequado para a idade, ou até superior ao valor médio, por motivo do edema .

Quanto ao psiquismo, as crianças revelam um aspecto deprimido e de tristeza.

FIGURA 3. Criança com Kwashiorkor (NIHDE)

A musculatura participa no quadro clínico: a hipotonia impede, muitas vezes, que a criança ande ou permaneça sentada.

Como resultado da consequente perturbação funcional do hepatócito surge degenerescência gorda, hepatomegália e, em situações mais graves, cirrose hepática.

Tal como no marasmo, surge perturbação funcional do enterócito com especial incidência no jejuno, a qual conduz a diminuição das dissacaridases e diarreia.

Poderão surgir igualmente infecções e infestações intestinais. A anorexia é habitual.

As alterações dermatológicas são muito típicas, sendo frequentes áreas de hipopigmentação alternando com áreas de hiperpigmentação (discromia) nem sempre revertidas com a intervenção nutricional. Poderão evidenciar- se igualmente queilite e estomatite.

Ao nível dos cabelos as alterações tróficas são muito típicas e notórias na raça negra; a despigmentação produz uma cor avermelhada dos cabelos, aspecto que originou o nome de kwashiorkor que significa, na linguagem duma tribo do Gana “criança com cabelos vermelhos”.

Em certos casos, através do cabelo, pode reconhecer- se o momento em que se iniciou o processo de desnutrição, pois a parte distal, mais antiga, aparece com a cor normal enquanto a parte proximal exibe a cor alterada; os cabelos aparecem assim divididos em duas partes com cores diversas, relativamente bem delimitadas que, quando bem esticados aparentam “as cores duma bandeira”. Daí o nome de “sinal da bandeira”.

Para além das perturbações do psiquismo, poderão ser notados tremores (cuja etiopatogénese é incerta), anemia de causa multifactorial, e défice imunológico, com compromisso mais significativo da imunidade celular e da relacionada com os linfócitos T.

No que respeita à repercussão sobre o sistema endócrino, de salientar a possibilidade de hipofunção tiroideia e de défice dos níveis de somatomedina C (Figura 3).

Tratamento

Marasmo

A intervenção terapêutica eficaz nas situações de marasmo, com resultados mantidos, não constitui tarefa fácil uma vez que a mesma tem a ver com a mudança das circunstâncias predisponentes do meio em que a criança vive e que ultrapassam a componente exclusivamente biomédica e nutricional.

Sob o ponto de vista de intervenção nutricional, o regime deve proporcionar proteínas de elevado valor biológico e em quantidade não inferior a 2 gramas/kg/dia, sendo as proteínas do leite de vaca adequadas a este respeito; no entanto, tendo em conta a possível intolerância à lactose pelas razões atrás apontadas, poderá surgir diarreia. Na prática estão indicados produtos lácteos em que a lactose tenha sido substituída por glucose ou dextrina- maltose, sendo de referir que o amido é bem tolerado.

O referido regime deve ser hipercalórico com um suprimento energético de cerca de 150 kcal/kg/dia e incluindo suplementos vitamínicos e de oligoelementos (nomeadamente cobre e zinco). Havendo sideropenia torna-se obrigatório adicionar ferro ao regime (1-2 mg/kg/dia).

Kwashiorkor

O tratamento do kwashiorkor é essencialmente de ordem dietética: regime com elevado suprimento em proteínas de elevado valor biológico, e normocalórico. Não obstante, há que contar com algumas dificuldades surgidas na fase de recuperação relacionadas com intolerância ao leite, infestações intestinais, infecções recorrentes, etc.. A anorexia obriga, por vezes, à necessidade de utilização de sonda gástrica.

Devem ser dados alimentos à base de hidrolisados de proteínas do leite de vaca, glucose como hidrato de carbono e ácidos gordos de cadeia média como lípidos.

Estão também indicados suplementos vitamínicos e ferro.

Actualmente advoga-se a utilização de agentes antioxidantes.

NB- Pela possibilidade da chamada síndroma de realimentação os incrementos devem ser lentos, designadamente nas formas clínicas com peso para a altura < 70%.

Prognóstico

O prognóstico, quer do marasmo, quer do kwashiorkor, é reservado tendo em conta, designadamente o risco de infecções conduzindo a elevada mortalidade (mais elevada nos casos de kwashiorkor) nos países do continente africano, mais pobre; no caso do kwashiorkor há que salientar a elevada probabilidade de desenvolvimento de cirrose hepática.

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Obesidade

Importância do problema

Em Março de 1997 a obesidade foi definida como uma doença crónica pelo Consenso Internacional para a Obesidade realizado em Washington DC. Considerada um dramático problema de saúde pública – a epidemia do século XXI – e uma das doenças mais difíceis e frustrantes de tratar, a obesidade é hoje encarada como uma síndroma complexa, multifactorial crónica, conducente a alterações físicas, psíquicas e sociais graves, com a sua génese na idade pediátrica.

De realçar dois factos importantes: uma comprovada associação de maior risco de obesidade no adulto quando esta ocorre em idade pediátrica (aproximadamente 50-80% dos adultos obesos foram crianças/adolescentes com obesidade); e os elevados custos que a situação só por si acarreta, não apenas numa perspectiva pessoal, mas também social e de saúde pública, na dependência da suas complicações que, cada vez mais, surgem em idades cada vez mais precoces.

Perante o exposto torna-se inquestionável a responsabilidade de quem lida com crianças na educação, na saúde e na modulação de comportamentos.

Definição

Por definição simples, obesidade é um excesso de gordura corporal total capaz de condicionar doença e reduzir a esperança de vida (OMS, 2000). Em idade pediátrica, a distinção entre excesso de peso e obesidade é ainda uma questão em debate devido às características dinâmicas do processo de crescimento e maturação. Esta dificuldade é acrescida por outras duas razões: a inexistência de um método simples, de baixo custo, confiável e reprodutível, de quantificação da gordura corporal total, e a inexistência de padrões de referência para valores de massa gorda durante o crescimento que permitam identificar indivíduos considerados de risco, moderado ou elevado, de patologia cardiovascular ou metabólica na infância e adolescência.

O índice de massa corporal (IMC = peso em kg / estatura2 em metros) é recomendado pela OMS como um método simples e barato para o rastreio do excesso de peso e obesidade, devido à sua forte correlação com a magnitude da adiposidade, quer em crianças/ adolescentes, quer em adultos.

 O valor do IMC em idade pediátrica deve ser considerado em curvas de percentis ou de z-score e em função do sexo e da idade, tendo como base tabelas de referência. Valores de IMC superiores ou iguais ao percentil 85 (z-score de 1,01) alertam para uma situação de risco. Quando os valores se encontram entre o percentil 85 e o 95 (z-score de 1,62) definem uma situação de excesso de peso; valores superiores ou iguais ao percentil 95 definem uma situação de obesidade; e valores superiores ao percentil 99 (z-score de 2,85) traduzem uma situação de obesidade grave.

A maior adequação ao padrão de crescimento saudável traduzida pelas novas curvas da OMS leva à recomendação da sua utilização, por rotina, na vigilância do estado nutricional da criança e do adolescente. A adopção destas curvas pela maioria dos países a nível mundial recomenda a utilização dos seus pontos de corte quando se petendem realizar estudos de prevelência.

Aspectos epidemiológicos

A obesidade atingiu proporções epidémicas em todo o mundo registando-se, sobretudo nas últimas duas décadas, um aumento transversal da sua prevalência a nível mundial. Actualmente prevê-se que cerca de 250 milhões de pessoas, o que equivale aproximadamente a 7% da população mundial, apresente obesidade.

Pela primeira vez na história do Homem, a sua prevalência excedeu a da desnutrição, tendo adquirido o estatuto da patologia do foro nutricional mais frequente, não só em países tecnologicamente desenvolvidos como em países em desenvolvimento. Um dos exemplos mais extremos reporta-se aos Estados Unidos onde, entre a avaliação de 1976-1980 (National Health and Nutrition Examination Survey IV) e a efectuada entre 1999-2002, a prevalência de excesso de peso duplicou em crianças (6-11 anos) e triplicou nos adolescentes (12-17 anos). No que respeita à obesidade, cerca de 14-15% dos adolescentes de 15 anos nos EUA são obesos, registando-se uma predisposição particularmente elevada entre os afro-americanos, hispânicos e índios Pima. De acordo com estudos efectuados em vários países europeus verificou-se maior prevalência de excesso de peso nos países de ocidente e sul, atingindo valores entre 20-40% nos países que rodeiam a bacia do Mediterrâneo, enquanto os do norte apresentam taxas na ordem dos 10-20%.

Até 2003 em Portugal existiam os registos de dois estudos transversais que apontavam para valores de prevalência de excesso de peso (incluindo obesidade) e obesidade em crianças (7 – 10 anos) respectivamente de 20,3% e 11,3 %, e em adolescentes de 11 – 15 anos valores de 12,9% e 3,6% respectivamente.

Em 2008-2009 decorreram os 2 primeiros estudos nacionais de prevalência da obesidade pediátrica: um estudo de vigilância sob os auspícios da OMS (Childhood Obesity Surveillance Iniciative – COSI) (6-10 anos) e um estudo da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO) (2-5 anos; 11-15 anos; dados não publicados) apontam para valores de prevalência de exceso de peso (incluindo obesidade) de 30% e de obesidade de cerca de 12%, transversalmente à idade pediátrica. Os Açores (40,3 %) e a Madeira (30,2 %) são as regiões de maior prevalência de excesso de peso (incluindo obesidade) seguidas da região norte do continente (30,2 %), enquanto o Algarve apresenta a menor prevalência (16,5%) (COSI, 2008/09).

Em 2012, com o Estudo do Padrão Alimentar e de Crescimento na Infância (EPACI Portugal 2012), foram demonstradas prevalências de excesso de peso (incluindo obesidade) e de obesidade respectivamente de 31,4% e 6,5%, em crianças de 2-3 anos de idade, traduzindo um inicio precoce e uma elevada prevalência da obesidade pediátrica no nosso país.

Regista-se uma forte estabilidade (ou tendência para se manter a situação) entre a ocorrência de obesidade na infância e na idade adulta. Sendo conhecida a elevada comorbilidade associada à obesidade na idade adulta, é de referir que o aumento da prevalência mundial de obesidade na idade pediátrica tem sido também acompanhado de um aumento das complicações médicas a ela associadas. Para além dos elevados custos que acarreta esta doença crónica, ela cursa com elevada mortalidade em todas as idades. As estratégias de prevenção, a detecção e intervenção precoces e a avaliação das tendências de prevalência na população mundial são imprescindíveis para a redução do compromisso da saúde das gerações futuras.

Etiopatogénese

Genes e sistema neuroendócrino

A evolução filogenética da espécie humana mostra-nos que o Homem sempre esteve sujeito a situações de estresse, funcionando a maior capacidade de acumular energia sob a forma de gordura como factor de selecção natural. Esta capacidade genética em acumular energia e o actual estilo de vida – elevados índices de sedentarismo e acesso fácil a ingestão de alimentos de elevada carga calórica – contribuem, em associação e potenciando-se, para o aumento do peso e para a obesidade. O actual estilo de vida condicionará um balanço energético positivo que, particularmente em indivíduos genéticamente mais susceptíveis, será responsável pela acumulação gradual de massa gorda e consequente ocorrência de obesidade, dita primária ou nutricional, a mais prevalente em idade pediátrica (95-97% dos casos).

O mapa genético da obesidade humana continua a desenvolver-se, estando identificados, na mais recente actualização, cerca de 430 genes, marcadores e regiões cromossómicas associadas ou ligadas a fenótipos da obesidade humana. Todos os cromossomas, excepto o Y, apresentam loci implicados no fenótipo da obesidade, registando-se uma especificidade de alguns genes para a ocorrência particular de obesidade visceral. Assim, é altamente provável que a obesidade humana tenha características de hereditariedade poligénica, com uma susceptibilidade na dependência de factores genéticos complexos.

Para além da reconhecida importância de vários polimorfismos genéticos determinantes do aumento de prevalência da obesidade humana, existem situações na dependência de alterações monogénicas.

A leptina foi a primeira substância identificada na espécie humana à qual corresponde um gene específico com reconhecida importancia na regulação do peso. Para além do deficite de leptina, actualmente estão descritas e identificadas sete síndromas de obesidade monogénica, a maioria envolvendo a via reguladora leptina-melanocortina (receptor pro-opiomelanocortina da leptina – POMC; da pró-hormona convertase 1 e do receptor 3 e 4 da melanocortina). As mutações do receptor 4 da melanocortina (MC4R) são a mais frequente causa de obesidade humana monogénica conhecida, ocorrendo em cerca de 4% dos casos de obesidade pediátrica grave. O início precoce de uma obesidade de elevada magnitude, resistente à intervenção terapêutica e frequentemente acompanada de um fenótipo sindrómico e compromisso cognitivo são características de suspeição de obesidade monogénica.

No que respeita aos mecanisos endógenos da regulação do peso cabe salientar as seguintes noções: 1) O controlo da ingestão alimentar (apetite e saciedade) verifica-se através dum mecanismo neuroendócrino de retorno com ponto de partida no tecido adiposo e tracto gastrintestinal (hormonas) e dirigido ao SNC (nucleus arcuato); 2) As hormonas gastrintestinais tais como a colecistoquinina (CCK), o péptido 1 semelhante ao glucagon e o péptido PYY promovem saciedade, enquanto a grelina estimula o apetite; 3) O tecido adiposo liberta leptina e adiponectina; 4) As hormonas actuam ao nível do nucleus arcuato onde existem centros receptores relacionados, quer com a estimulação, quer com a inibição do apetite.

Com a intervenção de neuropéptidos actuando como mediadores da grelina ao nível do nucleus arcuato (NA), verificam-se os seguintes mecanismos: a grelina tem efeito positivo na área da estimulação do apetite do referido NA, enquanto o PYY e a leptina têm efeito negativo; a CCK e a leptina têm efeito positivo na área de inibição do apetite do NA; isto é, a leptina actua, de modo diverso nas referidas 2 áreas do NA.

De modo muito sucinto pode afirmar-se que os defeitos genéticos relacionados com as hormonas, receptores e ou mediadores implicados neste complexo sistema de regulação neuroendócrina podem conduzir a alterações do apetite e a obesidade.

Ambiente e factores biológicos

Conforme foi referido, os genes desempenham um papel permissivo e interagem com os factores ambientais no sentido da ocorrência de obesidade. Efectivamente, as experiências nutricionais precoces serão responsáveis pela modulação da expressão de alguns genes, através de mecanismos de “silenciamento” ou “potenciação” da informaçao neles contida. É este o mecanismo da programação metabólica.

De entre as experiências nutricionis precoces com efeito modulador na expressão do fenótipo futuro saúde / doença, importa referir o estado nutricional da mulher antes de engravidar bem como o ambiente in utero. Situações de desiquilibrio da oferta nutricional ao feto – por excesso, em casos de obesidade materna, excessivo ganho ponderal durante a gravidez ou diabetes gestacional; por defeito, em situações de desnutrição materna ou de disfunção placentar – resultam numa adaptação de sobrevivencia a curto prazo (através da modulação do padrão de crescimento e da composição corporal do feto bem como da estrutura e função de todos os orgãos), sobrevivencia essa que, num ambiente carateristicamente obesogénico dos nossos dias, resultará em maior risco de obesidade, diabetes, doença cardiovascular e cancro na idade adulta.

Também a alimentação neonatal e nos primeiros anos de vida parece desempenhar um papel importante no risco de ocorrência de obesidade. A duração do aleitamento materno, o teor de ingesta proteica e a velocidade de incremento ponderal nos primeiros meses (anos) de vida são, entre outros, alguns dos factores apontados por alguns autores como, respectivamente protegendo de, ou favorecendo obesidade.

Com efeito, lactentes alimentados com fórmulas lácteas têm um suprimento energético e proteico superior, com diferenças mais notórias a partir do 4º mês de vida, ao registado em lactentes alimentados exclusivamente com leite materno, resultando num padrão de crescimento e de composição corporal diferentes e maior prevalência de excesso ponderal /obesidade aos 2 e 6 anos para o 1º grupo. Nos alimentados com fórmulas lácteas, particularmente nas de maior teor proteico, registam-se níveis circulantes de insulina e IGF-I superiores, provavelmente na dependência dos elevados niveis plasmáticos e tissulares de aminoácidos libertadores de insulina (aminoácidos de cadeia ramificada tais como a leucina, isoleucina e valina) , resultando numa aceleração ponderal e maior acção adipogénica. É possível que outros factores biológicos fornecidos pelo leite tenham também um papel importante na produção de IGF-1 enquanto o leite materno fornece factores biológicos reguladores do apetite (leptina).

Actualmente coloca-se a questão do impacte do nível sócio-económico, da raça e do sexo na predisposição para a ocorrência de obesidade. Estudos populacionais revelam que um nível sócio-económico e cultural baixo, minorias raciais e étnicas, e o sexo feminino apresentam maior risco de desenvolvimento de obesidade.

No que respeita ao papel da actividade física e hábitos alimentares, estudos usando sensores de movimento revelam que crianças que gastam menos tempo em actividade física de intensidade moderada a vigorosa têm maior risco de se tornarem obesas na infância ou adolescência. É recomendada a pratica diária de de 60 minutos de actividade fisica de moderada a elevada intensidade, considerada de uma forma comulativa, visando a promoção da saúde em idade pediátrica. Independentemente da actividade fisica, o sedentarismo tem um papel determinante no risco de excesso de peso/obesidade, sendo a televisão e os jogos de consola os principais responsáveis. Para além de promover a inactividade, o excesso de ecrain está associado ao concomitante consumo de alimentos densamente energéticos bem como ao favorecimento de escolhas alimentares menos saudáveis, registando-se uma correlação positiva entre o número de horas em frente da televisão e o valor do peso e a composição corporal, especialmente em adolescentes.

A alteração dos hábitos alimentares na dependência da oferta publicitária conduz a uma inversão da pirâmide alimentar, traduzindo-se numa elevada ingesta de açúcar e gordura em alimentos com elevada densidade e baixo valor nutricional. Omitir o pequeno-almoço, ingerir grandes porções sobretudo ao jantar, consumir regular e excessivamente bebidas doces e carbonatadas, poucos vegetais e frutos, bem como o abuso de fast-food, são algumas das modificações dos hábitos alimentares registadas nas últimas décadas. Neste contexto importa referir que, também o comportamento alimentar poderá ser “programado”, quer através da diversidade da dieta da mulher durante a gravidez quer do treino precoce de paladares e texturas, durante o período da diversificação alimentar e os primeiros anos de vida.

Como previamente referido, existem períodos de maior vulnerabilidade à influência do ambiente na expressão fenotípica de uma predisposição individual para a ocorrência de obesidade. O período pré-natal mas particularmente os período da gestação e póst-natal/infância precoce (2 primeiros anos de vida), caraterizados por uma elevada velocidade de crescimento e de desenvolvimento / maturação dos orgãos e sistemas, desempenham uma importante acção moduladora precoce, não apenas do risco de ocorrência de obesidade, mas de patologia degenerativa e neoplásica do adulto. Ao longo do processo de crescimento regista-se uma correspondência relativamente baixa entre a ocorrência de obesidade na infância precoce e a obesidade no adulto, mas uma elevada concordância entre a ocorrência de obesidade aos 5-7 anos (idade do ressalto adipocitário fisiológico) e a sua persistência na idade adulta (50 %) particularmente na presença de obesidade parental (65%); por outro lado, crianças obesas que chegaram à idade da adolescência com obesidade apresentam elevado risco (mais de 85%) de se manterem adultos obesos, independentemente da existência de obesidade parental. Tal estabilidade resulta do facto de a ocorrência de obesidade em idade pediátrica cursar não apenas com um processo de hipertrofia, mas sobretudo, de hiperplasia adipocitária resultando na criação de um “excedente estável” de adipócitos para a vida. Outra particularidade da obesidade em idade pediátrica resulta no facto da deposição electiva de gordura ocorrer, independentemente do sexo, a nível intrabdominal (andróide) e subcutâneo, em detrimento da deposição do tipo ginóide (na anca-coxas), resultando na ocorrência precoce de uma relação cintura/altura tradutora de maior risco cardiometabólico. Efectivamente, já em idade pediátrica (a partir dos 5 anos), um valor superior a 0,5 para esta relação está associado a maior risco de expressão precoce de comorbilidade. Relativamente à noção de “tendência de manutenção do problema” (termos sinónimos: estabilidade ou “tracking”) em períodos ou idades diferentes – designadamente, criança à adolescente à adulto – cabe referir que o IMC é um indicador de adiposidade com elevada sensibilidade. O ponto mínimo atingido fisiológicamente pelo IMC ocorre por volta dos 6 anos de idade. Em regra, é por volta desta idade (6-7 anos) que se regista o ressalto adipocitário (início da subida do IMC a partir do seu valor mínimo), sendo a sua precocidade tradutora de um risco elevado de desenvolvimento de obesidade na adolescência e idade adulta.

Obesidade secundária

Muito embora com uma menor contribuição percentual (3-5%), a obesidade pediátrica poderá ser secundária a alterações endócrinas, alterações neurológicas na dependência de lesões do sistema nervoso central e de determinado tipo de terapêutica farmacológica, entre outras. No âmbito da patologia endócrina há a referir as deficiências de hormona do crescimento (GH), de hormona tiroideia e o hipercortisolismo; tais situações têm de comum o facto de se associarem a uma combinação de baixo gasto energético e reduzida velocidade de crescimento, resultando numa deposição de adiposidade predominantemente central numa criança com baixa estatura.

Lesões cerebrais graves, tumores cerebrais e/ou irradiação craniana são também situações frequentemente associadas à ocorrência de obesidade. Embora se desconheçam os mecanismos responsáveis, admite-se que uma redução da actividade física na dependência da redução da actividade do sistema nervoso simpático, aliada a alterações dos neuropéptidos hipotalâmicos e a um aumento da actividade da desidrogenase do 11-b hidroxiesteróide, poderão estar implicados.

Finalmente algumas drogas podem predispor ao aumento, de gordura corporal, nomeadamente: glucocorticóides usados prolongadamente, valproato, alguns antipsicóticos e risperidona entre outras.

O Quadro 1 sintetiza os critérios clínicos que suportam a suspeição diagnóstica da etiologia da obesidade em idade pediátrica.

QUADRO 1 – Classificação da obesidade pediátrica

PrevalênciaPrimária
95%-97%
Secundária
3-5%
Causa– Desequilíbrio do balanço energético

– Síndromas genéticas

– Lesões do SNC

– Doenças endócrinas

– Fármacos

Critérios de diagnóstico

– Estatura igual ou superior à média

– Maturação sexual adequada ou precoce

– Desenvolvimento normal

– História familiar de obesidade

– Baixa estatura

– Disfunção cognitiva

– Ausência de história familiar de obesidade

Neste capítulo importa referir ainda a obesidade sindrómica. De suspeição diagnóstica relativamente fácil, dado cursar com compromisso do desenvolvimento cognitivo e fenótipos sugestivos, as síndromas de Bardet Biedl, de Cohen e de Prader Willi constituem as formas mais frequentes.

Diagnóstico

Para o diagnóstico é necessário, antes de mais, distinguir entre uma situação de obesidade primária ou idiopática e as restantes e mais raras situações de obesidade secundária. Uma anamnese rigorosa inquirindo, designadamente, sobre antecedentes de obesidade e de doença cardiovascular e metabólica familiar, o exame físico cuidado e exames laboratoriais a ponderar em função das hipóteses formuladas, orientarão para o diagnóstico.

Na prática poderá dizer-se que uma criança ou adolescente com uma estatura igual ou superior à média para o sexo e idade, com antecedentes familiares de obesidade em um ou ambos os progenitores, com um desenvolvimento intelectual adequado e com um exame físico sem particularidades sugestivas de uma situação sindrómica apresentará, muito provavelmente, uma situação de obesidade primária.

No que respeita à anamnese haverá que inquirir sobre a antropometria ao nascimento, a história nutricional (tempo de aleitamento materno, idade de diversificação alimentar, quantificação da ingesta actual em termos energéticos totais e de distribuição dos diferentes grupos de nutrientes), actividade física, índice de sedentarismo e existência de indicadores sugestivos de síndroma de apneia obstrutiva do sono tais como roncopatia, sonolência diurna ou mau rendimento escolar, entre outros.

O exame físico deverá incluir de uma forma geral, a observação do hábito externo no sentido de detectar situações de suspeita de obesidade secundária, tendo ainda em atenção a existência de alterações cutâneas sugestivas de síndroma metabólica (acantose), de alterações ortopédicas e do estádio pubertário.

Finalmente, a avaliação do estado nutricional deverá incluir, para além da medição do peso e estatura, o cálculo do IMC, a medição do perímetro da cinta, o cálculo da razão cinta/altura e ainda, se possível, a composição corporal por impedância bioeléctrica. Na impossibilidade da realização de impedância bioeléctrica, a utilização do valor da prega cutânea tricipital associado ao do IMC aumenta a sensibilidade da determinação da percentagem de massa gorda; exige, no entanto, experiência do observador e apresenta uma baixa reprodutibilidade.

Como foi referido, o perímetro da cinta ou a relação perímetro da cinta/altura (a partir dos 5 anos de idade) têm uma forte correlação com a deposição intrabdominal de gordura e são preditivos de risco cardiovascular e de complicações metabólicas, não apenas no adulto mas também na criança e adolescente. Efectivamente, um valor superior a 0,5 é considerado um marcador de risco cardiovascular.

No que respeita à avaliação da gordura corporal total, existem métodos mais específicos e confiáveis mas cujo custo, dificuldade de realização na clínica diária (hidrodensitometria; DEXA, RM) e elevada radiação envolvida (tomografia computadorizada) lhes retiram a justificação para uso corrente; assim, com tais limitações, estão indicados apenas em casos de excepção.

A ecografia abdominal orientada para a pesquisa de infiltração gorda do fígado (esteatose, mais frequente) e baço, deve constar da avaliação do paciente obeso. A presença de esteatose está fortemente associada a risco cardiometabólico, independentemente da idade e da magnitude da obesidade. No que respeita aos exames laboratoriais, o perfil lipídico, as funções hepática, renal, tiroideia e adrenal, o ácido úrico bem como a glicémia e insulinémia em jejum devem constar de uma abordagem inicial. O cálculo do HOMA-ir (utilizando o valor da glicose e da insulina em jejum), marcador de insulinorresistência, poderá fazer suspeitar de alteração do metabolismo da glicose quando forem verificados valores superiores a 3. Os doseamentos da glicose e insulina aos 30 minutos no período pós-prandial (ou em contexto de prova de tolerância oral à glicose) estão indicados na adolescência (mais de 10 anos) quando existe suspeita de alterações do metabolismo da glicose ou história familiar positiva de diabetes.

Comorbilidade

A obesidade é uma doença crónica, multissistémica e multifactorial que cursa com um processo inflamatório de baixo grau e activação de adipocinas e marcadores de stresse oxidativo, sendo reconhecida como um grave problema médico e de saúde pública.

Em idade pediátrica não é clara a associação entre a magnitude do IMC e a comorbilidade observada. No entanto, vários estudos têm recentemente demonstrado um risco crescente de ocorrência de patologia cardiovascular e de alterações do metabolismo da glicose se os valores de IMC forem superiores ao percentil 85. A idade de início da doença e o tempo de duração da mesma, para além de variáveis de susceptibilidade genética individual, constituem, para além da magnitude da ponderosidade (IMC) ou da adiposidade (massa gorda) factores moduladores do tempo de expressão de comorbilidade cardiometabólica da obesidade em idade pediátrica.

Considerando as complicações associadas à obesidade em idade pediátrica, a alterações psicossociais são provavelmente as mais precoces. Uma redução da auto-estima e uma crescente insatisfação com a imagem corporal levam frequentemente ao insucesso escolar, ao ostracismo e à depressão que, em casos extremos, são mesmo acompanhados de tentativa de suicídio.

Na última década a diabetes mellitus tipo 2 (DM2) em idade pediátrica (anteriormente associada apenas ao adulto) tem registado, na Europa, América e Japão, um aumento da sua prevalência com uma trajectória paralela à do aumento da prevalência da obesidade. Actualmente é responsável por mais de 1/5 de novos diagnósticos de diabetes em adolescentes. Embora não seja recomendado o rastreio universal, a Academia Americana de Pediatria e a Associação Americana de Diabetes recomendam que todos os adolescentes com excesso de peso e que tenham, pelo menos, 2 outros factores de risco, sejam avaliados aos 10 anos, no início da puberdade e periodicamente cada 2 anos; entende-se por factores de risco haver antecedentes de DM2 em pais ou avós, pertencer a certos grupos rácicos/étnicos (afro-americano, hispânico, japonês) ou ainda apresentar sinais associados a insulino-resistência tais como hipertensão, dislipidemia, acantose nigricans, ou síndroma do ovário policístico.

Outra complicação frequentemente observada, já em idade pediátrica, é a doença cardíaca e a hipertensão arterial. A obesidade produz uma série de alterações estruturais cardíacas, alterações da íntima-média das artérias resultando em compromisso hemodinâmico e ainda alteração da função renal; com efeito, é actualmente considerada a principal causa de hipertensão em idade pediátrica, registando-se uma forte correlação positiva em crianças e adolescentes entre a pressão arterial sistólica e IMC, gordura subcutânea avaliada por pregas, a relação cinta/anca e a relação cinta/altura. Factores genéticos, metabólicos e hormonais tais como resistência à insulina, a elevação dos níveis séricos de aldosterona, a sensibilidade ao sal e alterações dos níveis de leptina poderão também estar relacionados com a hipertensão da obesidade.

Um perfil lipídico desfavorável, caracterizado por valores elevados de colesterol total, triglicéridos e apolipoproteína B, e valores baixos de colesterol-HDL, é frequentemente observado, já em idade pediátrica, na dependência da obesidade.

Para além da comorbilidade individualmente descrita, ocorre já em idade pediátrica e independentemente da idade cronológica, agregação de factores de risco cardiometabólico. Esta agregação ocorre num contexto, ou não, de definição de síndroma metabólica, e associa-se à presença de marcadores cutâneos, tais como acantose. Efectivamente, dados actuais apontam para o facto de crianças e adolescentes portugueses com idades entre 2-18 anos (média 10,2 anos), em 52% se observar uma agregação de mais de 2 factores de risco cardiometabólico, independentemente da idade.

Não menos frequentes são: os problemas ortopédicos (doença de Blount, necrose da cabeça do fémur, pé plano, espondiloslistese entre outros), os problemas respiratórios (síndroma de apneia obstrutiva do sono), a doença hepática não-alcoólica (necessariamente subdiagnosticada e variando em termos de apresentação num espectro que vai desde a esteatose hepática não progressiva a esteato-hepatite com progressão para a fibrose e cirrose), a litíase vesicular, às alterações neurológicas (pseudo-tumor cerebral na dependência de hipertensão intracraniana) entre outras.

Tratamento

O único tratamento eficaz é, sem dúvida, a intervenção preventiva; quanto mais precoce for esta, maior a taxa de sucesso. Importa ter particular atenção na identificação precoce de “crianças de risco”, nomeadamente recém-nascidos com retardo de crescimento intrauterino ou leves para a idade gestacional, recém-nascidos grandes para a idade gestacional, ou de mães obesas, ou com diabetes gestacional, e ainda crianças com progenitores obesos. No âmbito da prevenção, é de extrema importância a vigilância do estado nutricional e do padrão de crescimento, evitando incrementos ponderais rápidos, particularmente nos primeiros anos de vida.

Entretanto, pelas características particulares inerentes ao processo de crescimento, todas as estratégias deverão ser individualizadas, obedecendo ao objectivo primordial de restabelecer o equilíbrio entre a energia ingerida e a energia despendida. Um parâmetro confiável na monitorização da intervenção é o valor absoluto do IMC, ou mais sensível ainda, o valor do z-score do IMC. A estabilização do peso em crianças / adolescentes em crescimento é traduzida por uma redução do valor absoluto do IMC e do valor do z-score do IMC, devendo ser fortemente encorajada, dado traduzir um aumento estatural significativamente superior ao ponderal. Estudos recentemente publicados mostram que existe um aumento exponencial do risco de ocorrência de alterações do metabolismo da glicose, de hipertensão, de dislipidémia, se os valores de IMC forem superiores ao percentil 85.

A educação comportamental, quer suportada na promoção de hábitos alimentares saudáveis quer de estilos de vida activa e de actividade fisica regular, passa sempre por uma abordagem em contexto familiar, particularmente na criança. No adolescente, a motivação baseada na co-responsabilização e no reforço positivo e assente em metas objectivas e exequiveis é, por vezes, a chave para a mudança.

Os programas de redução de peso baseados na intervenção familiar são aqueles que evidenciam maior sucesso a curto prazo, sendo a mudança de atitude dos pais e famílias mantida a médio e longo prazo o factor mais determinante do resultado. Uma restrição calórica moderada, baseada numa mudança de comportamento familiar, não apresenta riscos e é geralmente eficaz. Regimes altamente restritivos em calorias, incluindo as dietas hiperproteica ou de muito baixo valor calórico conduzem a perdas ponderais mais acentuadas mas não devem ser efectuadas em ambulatório pois comportam riscos não desprezáveis. Regimes desequilibrados podem conduzir a situações deficitárias em vitaminas e minerais, bem como a um compromisso do crescimento estatural e da maturação biológica.

No que respeita ao exercício físico, os seus efeitos são mediados, pelo menos parcialmente, pela redução nas reservas de gordura total e visceral e pelo aumento da massa magra; esta última é responsável por um aumento do gasto energético em repouso, tendo em conta que a capacidade individual de tolerância ao exercício diminui na proporção directa do aumento de IMC.

O tratamento farmacológico deverá ser encarado como um complemento da intervenção comportamental – dieta e exercício físico – em casos seleccionados. São considerados 3 grandes grupos de fármacos utilizados na terapêutica da obesidade: os estimulantes do gasto energético, os inibidores do apetite e os que limitam a absorção e / ou modulam a produção e /ou acção da insulina.

Do primeiro grupo, de momento nenhum dos fármacos (hormonas tiroideias, dinitrofenol, anfetaminas, fenfluramina, efedrina, etc.) tem indicação ou aprovação para este uso, apresentando efeitos colaterais que proscrevem a sua utilização.

Dos agentes inibidores do apetite, a sibutramina foi recentemente retirada do mercado.

No grupo dos fármacos que limitam a absorção de nutrientes, de referir o orlistat, único aprovado pela FDA para utilização em adolescentes com idade superior a 12 anos. Actuando como inibidor da lipase pancreática, aumenta a perda fecal nomeadamente em triglicéridos; por vezes é mal tolerado, e conduz à redução dos níveis de vitaminas A, D e E, mesmo em situações de suplementação vitamínica.

Finalmente, a metformina que, não sendo um fármaco para a terapêutica da obesidade, efectivamente reduz o apetite e a reserva adiposa do organismo resultando, numa redução do peso corporal. É geralmente bem tolerada, estando aprovada pela FDA para o tratamento, não da obesidade ou da insulinorresistência, mas da DM2. De referir que o seu uso regular conduz a situações deficitárias em vitaminas B1 e B6, devido a um aumento da respectiva excreção urinária.

Por fim, uma referência ao tratamento cirúrgico, com indicações precisas e considerado uma opção em adolescentes, com maturidade biológica completa (crescimento estatural residual), com obesidades de elevada magnitude e/ou com comorbilidade, e desde que apresentem estabilidade emocional e familiar. É um recurso em situações de falência da terapêutica e são escassos os estudos prospectivos sobre este tópico. O balão intragástrico, não sendo uma técnica cirúrgica, é uma abordagem restritiva reversível a considerar em alguns casos pontuais, e dentro da cirurgia bariática, há a referir a banda gástrica, a ansa em y-de roux ou o slleve, devendo a recomendação ser sempre numa perspectiva individual.

Relativamente à comorbilidade cardiometabólica da obesidade, a questão que se coloca é: quando e quem tratar, sendo esta questão motivo de controvérsia pela ausência se recomedações baseadas em estudos em que foi salvaguardada a segurança. Certo é que a implementação de mudanças comportamemntais conducentes à redução da magnitude da obesidade (IMC e massa gorda corporal toral) resultam numa redução da expressão da comorbilidade cardiometabólica.

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GLOSSÁRIO

Acantose > Espessamento da camada de Malpighi da epiderme, que se observa também em afecções como por ex. as verrugas.

z-score (ZS) > Z-score (ZS) de uma variável é calculado através da razão entre: o respectivo valor determinado no indivíduo (VI), subtraído do valor de referência (VR), e o desvio padrão (DP) da população de referência.
Fórmula: ZS=[(VI-VR)/DP].

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ALIMENTAÇÃO APÓS O PRIMEIRO ANO DE VIDA INCLUINDO AS IDADES PRÉ-ESCOLAR, ESCOLAR E ADOLESCÊNCIA

Importância do problema

Uma vez completado o primeiro ano de vida, a velocidade de crescimento diminui. Por isso, é natural que as necessidades nutricionais da criança se reduzam, o que se traduz em grande variabilidade no apetite no dia-a-dia. Este facto, preocupando os pais menos esclarecidos com a falsa “falta de apetite” duma criança que mantém a sua actividade normal e aparentando perfeita saúde, obrigará o médico assistente e o profissional de saúde a um exercício contínuo da tarefa de educação para a saúde, desmistificando certos receios infundados.

Princípios gerais

São definidos alguns princípios a seguir para uma alimentação saudável, com especial incidência para o período após os 1-2 anos de vida em que a criança passa progressivamente a estar integrada no regime familiar:

  1. Suprimento de gorduras não ultrapassando ~30% do valor calórico total (VCT) com um teor de gorduras saturadas inferior a 10% do VCT, suprimento de colesterol não excedendo 300 mg/dia, ácidos gordos poli-insaturados (7-8% do VCT), e ácidos gordos mono-insaturados (12-13% do VCT). Utilização de óleos vegetais em vez de gordura de origem animal (privilegiando, designadamente o azeite “em natureza, cru, não aquecido” e nunca óleo de palma nem óleo de coco). As crianças com menos de 2 anos são, como foi dito, excluídas destas recomendações específicas dado que as gorduras constituem uma fonte importante de energia para o regime alimentar.
  2. Consumo diário de frutas e verduras, aumentando-o progressivamente; o consumo de fibras em gramas/dia (AI ou RDA) pode calcular-se somando à idade da criança em anos +5. Sendo o consumo de fibras na alimentação um hábito saudável (regulação do trânsito intestinal e estabilidade dentro da normalidade da glicémia) há, no entanto, a considerar que o excesso (>25 gramas/dia) poderá interferir na absorção de aminoácidos, ferro, zinco e magnésio.
  3. Consumo de lácteos ou derivados: 300-500 mL diários, em função da idade. Apesar de ser aceitável a introdução do leite de vaca a partir do ano de idade, o ideal segundo as recomendações da ESPGHAN, é manter um leite adaptado sempre que o aleitamento materno não for possível. Se a opção for a introdução mais precoce do leite de vaca, deve optar-se por um leite gordo até aos 2 anos e, só posteriormente, pelo leite meio gordo. Refira-se, entretanto, que depois do primeiro ano de vida o leite de vaca inteiro dá um contributo importante ao regime alimentar da maioria das crianças.
  4. Fomentar o consumo de carne magra branca (por ex. frango sem pele) e peixe, evitando a ingestão de enchidos.
  5. Incrementar a ingestão de alimentos ricos em hidratos de carbono complexos e com resíduos como arroz, cereais, farinha de milho, reduzindo, por outro lado, o consumo de açúcares refinados (máximo de sacarose: 20-30 gramas, em função da idade).
  6. Consumo de sal mínimo (3-5 gramas/dia) e, caso possível, eliminá-lo do regime alimentar.
  7. Promover um regime variado ao longo do dia incluindo alimentos de todos os grupos e um máximo de três ovos por semana.
  8. Às refeições utilizar sempre água em detrimento de sumos não naturais.
  9. Realizar quatro ou cinco refeições diárias incluindo uma a meio da manhã e uma a meio da tarde (intercalares), se possível à base de fruta, associando sempre uma fonte de hidratos de carbono complexos (pão, por exemplo).
  10.  Evitar comer entre as refeições.
  11.  Estimular que a criança coma por si só, habituando-a a normas de higiene.
  12.  Promover também bons hábitos de socialização durante as refeições, evitando distracções desnecessárias (televisão, rádio, tablet, telemóvel), de forma a promover uma saudável interacção familiar e com os companheiros nesses momentos.
  13.  Estimular a actividade física, (designadamente evitando o sedentarismo, tipificado por exemplo pelo número excessivo de horas à frente da televisão ou do computador a jogar e a comer snacks ou sumos hipercalóricos).
  14.  Estabelecer um equilíbrio entre o suprimento alimentar e o consumo energético para garantir um peso saudável.
  15.  Suprimir o consumo de refrigerantes e bebidas de cola, com edulcorantes, de guloseimas ou de bolos de pastelaria em geral confeccionados à base de gorduras saturadas; evitar também a utilização de tais produtos como recompensa ou entretenimento, bem como a sua proibição absoluta, tentando fazer uma diminuição escalonada (se não for deste modo, a probabilidade de fracasso é elevada, tendo em conta o efeito persuasivo da publicidade e o seu fácil acesso).
  16.  Todas as acções de educação alimentar dirigidas à criança serão mais eficazes se igualmente forem praticadas pelos restantes membros do agregado familiar.

Relativamente à alínea 9., importa uma referência especial às refeições “pequeno almoço” e “merenda”:

Pequeno-almoço

  1. O dia deve ser iniciado com um pequeno-almoço garantindo um suporte nutricional adequado em quantidade e qualidade. As principais vantagens são, por um lado, melhorar o rendimento físico e intelectual com repercussão positiva no trabalho escolar e, por outro, diminuir a probabilidade de consumo de snacks prevenindo a obesidade.

  2. De realçar que a omissão do pequeno-almoço interfere nos processos cognitivos e de aprendizagem, sobretudo nas crianças consideradas de risco nutricional.

  3. Esta refeição deve conter hidratos de carbono complexos em detrimento dos alimentos ricos em gorduras. Aconselha- se a tríade de grupos de alimentos composta respectivamente por lácteos (leite, iogurte), cereais ou pão, e frutas frescas com o objectivo de se alcançar, com tal suprimento, 20-25% do VCT diário.

  4. É igualmente desejável que tal refeição não seja rápida, dedicando-lhe entre 15-20 minutos, e seja realizada em ambiente calmo, com a criança sentada à mesa com a família.

Merenda

Nesta refeição intercalar a meio da tarde são desaconselhadas igualmente bebidas derivadas da cola, sumos não naturais ou snacks. Haverá que evitar os alimentos hipercalóricos e com ácidos gordos saturados (certas margarinas, pastelaria industrial e enchidos, etc.), procurando que se realize a uma hora que não produza saciedade para garantir a não interferência com a refeição seguinte (o jantar).

São dados a seguir alguns exemplos de regimes alimentares aplicáveis respectivamente a crianças de 1-2 anos e a adolescentes, em obediência aos princípios gerais atrás enunciados.

Crianças de 1-2 anos

Pequeno almoço

  • 1 prato com leite gordo/leite de continuação (80-100 c.c. + cereais (± 100 gramas) ou 1 ovo cozido;
  • fruta natural (por ex.: 1 banana média ou 2-3 morangos grandes, ou outra fruta).

Refeição intercalar (a meio da manhã)

  • 1 fatia de pão torrado ou 1 papo-seco (de preferência de pão escuro) com queijo fresco (5 gramas) ou manteiga de girassol sem sal (5 gramas) e 1 peça de fruta.

Almoço

  • 1 prato de sopa de legumes (100-120 c.c.);
  • 1 prato à base de arroz ou massa ou batata ~ 200 gramas, incluindo legumes verdes, reforçado com: peixe; ou carne (20 gramas/refeição); ou ovo cozido, este último até 3 vezes/semana;
  • 1/2 a 1 peça de fruta ralada ou aos pedaços (natural ou cozida) sem açúcar.

Merenda (a meio da tarde)

  • 1/2 a 1 papo-seco com queijo fresco ou manteiga de girassol sem sal ou com fiambre magro e 1 copo de leite idem ou 1 iogurte natural; ou
  • 1 chávena de leite idem com 4-5 colheres de cereais e 1 peça de fruta.
    Nota: não se justifica pão + fruta.

Jantar

  • Semelhante ao almoço, variando os ingredientes e o tipo de sopa.

Adolescência

Na adolescência (~11 -18 anos) as necessidades nutricionais têm em consideração as características especiais de crescimento rápido e o tipo de actividade física desenvolvida, verificando-se maior vulnerabilidade para carências em ferro e cálcio. Com efeito, durante a adolescência há incremento da massa esquelética em cerca de 45%; e, igualmente, incremento das necessidades em ferro relacionadas com a maturação sexual, e o início dos ciclos menstruais no sexo feminino.

As DRI para o cálcio são ~1.300 mg/dia, e para o ferro ~15 mg/dia no sexo feminino, e ~11 mg/dia no sexo masculino.

Salienta-se que o zinco é fundamental para o crescimento e maturação sexual (DRI ~7-9,5 mg/dia). Relativamente às vitaminas há necessidades aumentadas de vitaminas B6, B12, D, A, e C, com as respectivas DRI: 1-1,5 mg/dia; 1,2-1,5 mcg/dia; 7,5 mcg/dia; 600-900 mg de equivalente de retinol; 35-35-40 mg/dia.

De acordo com o Food Nutrition Board-National Research Council dos Estados Unidos, as RDA (Recommended Dietary Allowances) apontam para os seguintes valores:

11-14 anos

(peso médio: 45 kg)

  • proteínas: 45 g-46 g
  • kcal: 2200-2700 

(sexo F – sexo M)

15-18 anos

(peso médio: 55-65 kg)

  • proteínas: 46-56 g
  • kcal: 2100-2800

(sexo F – sexo M)

O suprimento de hidratos de carbono deverá corresponder a 50% do VCT; deduzindo-se o suprimento energético em proteínas atrás referido (globalmente entre 45-56 g/dia), atribui-se às gorduras a restante percentagem do VCT.

Ao longo do dia a ingestão deverá ser dividida por cinco refeições com a seguinte repartição do VCT:

  • Pequeno almoço – 20%
  • Refeição intercalar da manhã – 10%
  • Almoço – 30%
  • Merenda ou refeição intercalar da tarde – 10%
  • Jantar – 30%

Poderá realizar-se eventualmente uma sexta refeição à noite (ceia constando de leite e 1-2 bolachas sem açúcar), devendo a percentagem do VCT atribuída ao jantar ser distribuída por este e pela ceia.

Educação para a Saúde e Alimentação

No nosso País, em 1977, no âmbito da Campanha de Educação Alimentar Saber Comer é Saber Viver, foi criada uma representação gráfica com o objectivo de explicar a escolha e a combinação dos alimentos, agrupando-os segundo a respectiva composição e semelhanças.

Este material educativo, aplicável à criança, tendo em conta, no entanto, as especificidades dos dois primeiros anos de vida, foi designado por Roda dos Alimentos, e apresentado em forma circular, por analogia com o prato utilizado nas refeições.

Tal grafismo engloba 5 grupos de alimentos sem indicação das porções recomendadas por dia:

  1. Leite e derivados;
  2. Carne peixe e ovos;
  3. Óleos e gorduras;
  4. Cereais e leguminosas;
  5. Hortaliças, legumes e frutos.

Ulteriormente foi divulgada uma versão mais completa, designada por Nova Roda dos Alimentos. Com o mesmo formato circular e acrescentando a água em posição central por ser essencial à vida e se encontrar em todos os alimentos, exibe 7 grupos de alimentos indicando a respectiva proporção de peso recomendada:

  1. Cereais e derivados, tubérculos – 28%;
  2. Hortícolas – 23%;
  3. Fruta – 20%;
  4. Lacticínios – 18%;
  5. Carnes, pescado e ovos – 5%;
  6. Leguminosas – 2%;
  7. Gorduras e óleos – 3%.

FIGURA 1. Pirâmide alimentar

Noutros Países, com objectivo semelhante, é utilizado outro formato, não circular. Trata-se da Pirâmide dos Alimentos considerando diferente critério para a colocação dos mesmos (Figura 1).

Com esta simbologia é apresentada uma pirâmide com diversas faces, com “escadas” da base para o vértice, cada uma com a sua cor, sendo que cada cor representa determinado tipo de nutriente:

  • Cor de laranja → cereais
  • Cor verde → vegetais
  • Cor de tijolo → frutos
  • Cor azul → leite e derivados
  • Cor roxa → carne e leguminosas secas
  • Cor amarela → gorduras

No topo da pirâmide localizam-se os alimentos a usar moderadamente (ricos em açúcar e gordura), e na base os que constituem importante fonte de energia (hidratos de carbono complexos como amiláceos, arroz, massa, batata e pão). Como nota importante, chama-se a atenção para o número de porções aconselhado.

De acordo com o que consta pormenorizadamente no sítio mypyramid.gov, a designação “Pirâmide” pretende significar que não existe somente um guia alimentar para todos os indivíduos; efectivamente, importa reter a noção de que as necessidades em nutrientes variam conforme a idade, sexo, peso, altura e tipo de actividade física.

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ALIMENTAÇÃO DIVERSIFICADA NO PRIMEIRO ANO DE VIDA

Definição e importância do problema

Está hoje demonstrado que muitas doenças chamadas da “civilização” têm as suas raízes na idade pediátrica. Para essas doenças contribuem de modo determinante factores ambientais relacionados fortemente com a alimentação na primeira infância. O adequado estado de nutrição (e de saúde) está, assim, muito dependente de factores relacionados com hábitos alimentares, sendo desejável um correcto plano de alimentação do lactente desde o seu nascimento.

São desde há muito conhecidas as vantagens imediatas do leite materno, nomeadamente a protecção conferida por numerosos factores anti-infecciosos. Estudos epidemiológicos recentes têm também registado efeitos benéficos a longo prazo, relativamente à massa corporal, com uma menor prevalência de excesso de peso/obesidade nos alimentados com leite materno, e à pressão arterial, com valores inferiores nos amamentados.

É unanimemente reconhecida pelos peritos em nutrição e amplamente recomendada pela OMS, a alimentação com leite materno de modo exclusivo nos primeiros 6 meses de vida.

diversificação alimentar* é definida genericamente pelo especialista mundial em alimentação infantil –Fomon- como aquela que se compõe de qualquer alimento sólido, ou líquido distinto do leite humano ou de fórmula, substituindo gradualmente o leite exclusivo dos primeiros meses.

Reitera-se que a alimentação do lactente deve idealmente iniciar-se com o leite materno logo desde os primeiros minutos de vida e durante, pelo menos, o decurso do primeiro ano de vida. Quando não é possível o aleitamento materno, é recomendável a utilização de uma fórmula láctea.

Em situações particulares, como os casos de alergia às proteínas do leite de vaca, ou de refluxo gastresofágico, estão indicadas fórmulas especiais com uma composição adequada para tais situações.

A diversificação alimentar – princípios gerais e fundamentação

Dum modo geral a partir do 6º mês de vida, não sendo possível suprir de modo adequado todas as necessidades em macro e micronutrientes com o leite materno como alimentação exclusiva, torna-se necessário iniciar um plano alimentar com introdução progressiva de novos alimentos (começando com pequenas porções).

Efectivamente, a partir daquela idade, o suprimento pelo leite materno, quer energético, quer em micronutrientes, como o ferro, é também claramente insuficiente para a maioria dos lactentes. De salientar, no entanto, que o aleitamento materno a par de alimentação diversificada, pode continuar até aos 12 meses. Entre os 6 meses e 12 meses, a par da alimentação diversificada, a alimentação com leite não deve ultrapassar 700 ml/dia nem ser inferior a 500 ml.

A diversificação alimentar deve obedecer a um planeamento que, não sendo rígido, deve ser fundamentado em certos princípios, a saber:

  1. Necessidade de suprir o lactente de modo adequado em todos os nutrientes, sem risco, quer de certas carências que neste período crítico do crescimento e desenvolvimento conduziriam a alterações irreversíveis a nível físico em diferentes domínios comportamentais, psicomotores, sensoriais e cognitivos, quer de excessos nomeadamente energético e proteico, predispondo a situações de excesso de peso e de obesidade.
  2. Necessidade de respeitar limitações morfológicas e maturativas próprias dos primeiros meses de vida nomeadamente do tracto digestivo. São exemplos:
    • Capacidade gástrica: o volume gástrico vai aumentando progressivamente, desde cerca de 20 ml nas primeiras semanas de vida, até cerca de 250 ml no final do primeiro ano.
    • Maturação enzimática: nos primeiros meses algumas enzimas importantes para a clivagem de macronutrientes não atingem ainda níveis suficientes. Tal ocorre com a amilase (ainda que a glucoamilase intestinal possa, em parte, participar na digestão do amido ou de moléculas intermédias) e com a tripsina pancreáticas. Também a concentração de sais biliares está diminuída nas primeiras semanas de vida.
    • Protecção imunológica: nos primeiros meses de vida o sistema imunológico intestinal não está suficientemente desenvolvido, o que permite uma maior permeabilidade à passagem de macromoléculas proteicas com aumento do risco de sensibilização e ocorrência ulterior de alergias alimentares. A diminuição da proteólise intestinal e a deficiência transitória da produção de IgA secretora são factores de maior risco de sensibilização alérgica.
  3. Neurodesenvolvimento e comportamento: a aquisição progressiva de determinadas competências no primeiro ano de vida permite que a criança se vá adaptando aos alimentos semi-sólidos e sólidos introduzidos na boca; pelos 4 a 6 meses – desaparecido o reflexo de extrusão que “expulsa os alimentos não líquidos da boca”, a mobilidade ântero-posterior da língua permite empurrar aqueles para a faringe, assim como a deglutição; entre 6 e 10 meses – surgem movimentos rítmicos do maxilar inferior com tendência para abrir e fechar a boca em aproximação ou em fuga ao alimento; surgindo movimentos de “mastigação” e o controlo manual e ocular, torna-se possível beber líquidos pelo copo; entre os 10 e 12 meses – a capacidade de agarrar os alimentos (em pinça e com a mão) levando-os à boca permite que, a pouco e pouco vá comendo cada vez com “mais autonomia”.
  4. Maturação progressiva da função renal que condiciona também a alimentação do lactente:
    • são exemplos de imaturidade renal a incapacidade de manuseamento de sobrecargas de sódio e de concentração renal nas primeiras semanas de vida; desta particularidade decorrem riscos de ocorrência de desidratação hipernatrémica com a utilização de alimentos de elevada osmolaridade.
  5. Necessidade de conhecimento pormenorizado da história familiar de determinadas patologias que poderão condicionar a opção por determinados alimentos, quer quanto à idade indicada para a sua introdução, quer quanto à quantidade recomendada.

* Como sinónimos de diversificação alimentar são frequentemente empregues outros termos como: complementar, suplementar, de transição, não láctea exclusiva, weaning, “beikost”, significando “para além de”, “à-côtés”, solid foods, etc.. (ver Glossário)

Um exemplo em que a história familiar poderá levantar algumas dúvidas relativamente à selecção dos alimentos a introduzir é a que se reporta à existência de dislipidémia familiar, ou simplesmente ao risco aterosclerótico que o consumo de alguns alimentos acarreta, particularmente as fontes alimentares de gordura animal.

Relativamente a este grupo de patologia importa referir que não está recomendada qualquer manipulação dietética específica, já que os riscos de dietas restritivas são claramente superiores aos eventuais efeitos benéficos relativamente à expressão fenotípica da dislipidemia ou ao risco de desenvolvimento da aterosclerose, particularmente a médio e longo prazo.

De acordo com os peritos de nutrição essa manipulação deverá ocorrer somente a partir dos 24 a 36 meses idade, idade a partir da qual se deve proceder ao rastreio das referidas patologias. Assim, durante aquele período não deve haver restrições à ingestão de gordura, já que os ácidos gordos e o colesterol são vitais para o desenvolvimento do sistema nervoso central e para o crescimento em geral.

A idade de início

De acordo com as recomendações nacionais e internacionais (nomeadamente, Comissão de Nutrição da SPP, OMS, AAP e ESPGHAN), a alimentação diversificada deve ser iniciada muito proximamente aos 5- 6 meses de vida; ou seja, sem intenção de redundância, importa salientar que não deverá ocorrer antes das 17 semanas de vida (~4 meses + 1 semana), nem depois das 26 (~ 6 meses).

Nunca é demais reforçar que a introdução de novos alimentos, para além de respeitar características maturativas, deve, necessariamente, ter em conta características culturais e sócio-económicas. Assim, não há regras rígidas, não há verdades absolutas.

Demonstrou-se que não há qualquer benefício nutricional em ser iniciada antes dos 5 meses de vida sendo vários os riscos do seu início precoce:

  • Interferência com a lactação materna: diminuição progressiva da produção de leite materno. redução da biodisponibilidade da maioria dos macro e micronutrientes do leite materno.
  • Fornecimento de alimentos com aumento da osmolaridade. Os alimentos sólidos têm, no geral, um teor mais elevado em sódio, de que poderá resultar um maior risco de ocorrência de hipernatrémia.
  • Maior risco de alergia alimentar pelos motivos já acima referidos.
  • Suprimento energético excessivo com risco de condicionar excesso de peso ou mesmo obesidade, logo desde o primeiro ano de vida.
  • Suprimento proteico excessivo que, para além da sobrecarga renal, parece ser também um factor que favorece a ocorrência de obesidade.
  • Suprimento de componentes desnecessários ou mesmo prejudiciais em período ainda muito vulnerável:
    1. Sacarose, criando desde muito cedo uma maior apetência pelos doces, para além do potencial risco cariogénico;
    2. Nitratos, com o risco de condicionar o aparecimento de metemoglobinémia;
    3. Fitatos, com interferência na absorção de micronutrientes nomeadamente de oligoelementos, sobretudo ferro, cobre e zinco;
    4. Aditivos e contaminantes presentes numa grande variedade de alimentos utilizados na alimentação do lactente.

Quanto às consequências da diversificação tardia, apontam-se como principais as seguintes:

  • Insuficiência energética do leite em exclusivo;
  • Risco de suprimento deficiente em certos nutrientes como o zinco e o ferro;
  • Compromisso da aquisição e desenvolvimento das capacidades motoras (como coordenação da deglutição, mastigação, etc.) e sensoriais (paladar, texturas, etc.).

A cronologia da introdução de novos alimentos e evolução

É importante referir que a cronologia da introdução dos diferentes alimentos não pode ser rígida e deve ter em consideração uma série de factores de ordem social e cultural, tais como costumes de cada região, questões sócio-económicas, temperamento da criança, disponibilidade do agregado familiar e ainda particularidades do lactente (ex: atopia, alergias alimentares, patologia específica, etc.).

Efectivamente, também não existe base científica para a recomendação no sentido de se respeitar uma determinada ordem sequencial de introdução de novos alimentos.

Importa lembrar que os alimentos, de início fornecidos exclusivamente na forma líquida (regime lácteo exclusivo nos primeiros 4-6 meses), devem evoluir na textura, a qual deverá progressivamente passar da cremosa a grumosa e a pastosa, antes dos alimentos fornecidos na forma sólida a partir do 2º ano de vida.

Esta evolução é fundamental para uma correcta aprendizagem da mastigação, competência que se verifica progressivamente no lactente a partir dos 7-8 meses de vida.

Não estimular o lactente à transição progressiva da textura dos alimentos no decurso do segundo semestre de vida pode levar a grandes dificuldades quanto à aceitação de alimentação sólida e à integração na alimentação familiar no segundo ano de vida.

Esta evolução gradual, permitindo que a criança, habituada a deglutir líquidos, retenha por mais tempo na boca os alimentos mais consistentes, submetendo-os, por isso mais tempo à acção da saliva, amolecendo-os, constitui um passo fundamental da educação alimentar no que respeita à aprendizagem da mastigação – aprender a mastigar bem e devagar constitui uma atitude fundamental com benefícios para toda a vida.

Quanto ao treino dos sabores e texturas cabe salientar as seguintes noções na generalidade: 1-a sensação gustativa para o doce e salgado/amargo é inata, registando-se forte preferência para o doce; 2-a sensação para o azedo e amargo implicam aprendizagem a partir do 5º mês, isto é, os mecanismos inatos de preferência alimentar podem ser contrariados à medida que persiste a diversificação alimentar; 3-a variabilidade do paladar do leite materno facilita a aceitação de novos sabores pelo bebé; 4-a exposição pré-natal e pós-natal a determinado sabor facilita a aceitação do referido sabor em alimentos sólidos.

Relativamente à sensibilidade ao sabor salgado, convém particularizar a importância concomitante de factores ambientais, associados a factores hereditários; com efeito, a exposição mais precoce aumenta o interesse por esse sabor. Esta noção tem implicações práticas importantes a curto, médio e longo prazo (ver alínea seguinte).

Cabe salientar que o comportamento alimentar tem uma base de programação genética, com selecção de genes ao longo de milhões de anos.

Os alimentos a introduzir

Cereais

Os cereais enriquecidos em ferro devem ser dados ao lactente até aos 18 – 24 meses, tendo em conta que a ferropénia é também muito prevalente no segundo ano de vida.

Os cereais são fornecidos sob a forma de farinhas, lácteas (com maior teor proteico, desaconselhadas por alguns autores) ou não lácteas, constituídas por um ou vários cereais. sem ou com glúten. Estas últimas poderão ser reconstituídas com leite materno ou leite de fórmula.

As recomendações actuais vão no sentido da não introdução de glúten antes dos 4 nem após os 7 meses, devendo a introdução ser gradual e preferencialmente acompanhada pela manutenção do aleitamento materno, visando uma redução do risco de diabetes mellitus tipo 1, de doença celíaca e de alergia ao trigo. Tal como as fórmulas infantis, também os cereais a partir do 6º mês deverão ser enriquecidos em ferro, de forma a reduzir o risco de ferropénia ou anemia ferripriva prevalentes nesta fase do crescimento. Diversos estudos demonstraram que a introdução do glúten após os 7 meses de idade está associada a maior risco de diabetes mellitus tipo 1.

Os cereais são fonte rica de hidratos de carbono (polissacarídeos amiláceos e não amiláceos) e ainda de proteínas de origem vegetal (trigo), de ácidos gordos essenciais (trigo, milho), de minerais (fósforo: aveia, milho e cevada; magnésio e cálcio: trigo) e vitaminas (B1 e B6: arroz). De referir o elevado valor energético das farinhas (cerca de 400 kcal/100 g) mas particularmente o seu considerável teor proteico (12 a 18 g/100 g). Uma refeição deve corresponder a cerca de 35 a 50 g de farinha (o que evita um suprimento energético-proteico excessivo).

Constituem, pois, uma fonte energética indispensável numa fase em que se verifica uma actividade motora progressiva a qual despende energia. Estas farinhas são tratadas por hidrólise térmica e enzimática de modo a facilitar a absorção dos seus nutrientes.

No exemplo da Figura 1 (ver adiante) considerou-se o início da diversificação com a farinha de cereais (pressupondo início em idade não rígida, desde que não antes das 17 semanas de vida).

Frutos

São fonte importante de vitaminas, minerais e de fibras. Para além do seu importante papel nutricional, são de extrema relevância os benefícios para a saúde na dependência dos compostos não-nutricionais dos frutos (antioxidantes e fitoesteróides) pelo que se aconselha o seu consumo regular e variado em detrimento dos suplementos farmacológicos vitamínicos ou minerais. Os frutos ricos em vitamina C deverão preferencialmente ser consumidos em simultâneo com legumes ricos em ferro (feijão, lentilha, agrião, salsa, etc.) ou cereais, pois aumentam a absorção do ferro não hémico. Poderão ser introduzidos por volta do 6º mês, mas nunca deverão constituir uma refeição, pois o volume necessário para suprir as necessidades energéticas seria incomportável sob o ponto de vista de tolerância digestiva, devido ao elevado teor de fibra que poderia conduzir a desequilíbrios em micronutrientes por compromisso absortivo. A maçã e a pêra (cozidas ou assadas com casca e caroço ou em vapor) e a banana, são habitualmente os primeiros frutos a ser utilizados.

Devem privilegiar-se as frutas frescas e maduras evitando as potencialmente alergénicas ou as libertadoras de histamina como os morangos, o kiwi e o pêssego. Não devem adicionar-se na sua preparação outros alimentos como o mel ou o açúcar.

Aliás não será de esquecer a regra fundamental (respeitando situações especiais): sacarose (e sal) não devem ser acrescentados ao regime alimentar no primeiro ano de vida.

Não parece haver nenhuma vantagem em iniciar o fornecimento de fruta sob a forma de sumos relativamente à fruta completa. Os 4 principais açúcares nos sumos são a sacarose, a glucose, a frutose e o sorbitol com diferentes percentagens de absorção e em proporções variáveis de fruto para fruto. A concentração global de hidratos de carbono nos sumos varia de 11 a 16 g/100 ml (0,44 a 0,64 Kcal/ml).

Importa lembrar que não devem nunca ser utilizadas bebidas artificiais de fruta, actualmente disponíveis no mercado em múltiplas composições.

Poderá, em resumo, dizer-se que os sumos não têm qualquer interesse nutricional no primeiro semestre de vida e não oferecem qualquer vantagem relativamente à fruta completa a partir do segundo semestre podendo mesmo, se fornecidos em excesso, condicionar à ocorrência de distúrbios da nutrição.

Legumes e produtos hortícolas

Fornecendo particularmente vitaminas, minerais e fibras, facilitam a formação do bolo fecal, exercendo uma acção favorável sobre o peristaltismo intestinal. São inicialmente dados sob a forma de caldos e, posteriormente, sob a forma de purés.

Dado que o sabor doce é inato, em princípio não requerendo treino, é importante iniciar-se a estimulação / treino do paladar para sabores não doces. Daí a fundamentação segundo alguns autores, para o início da diversificação com caldo de legumes, isto é, precedendo a farinha de cereais. Os legumes mais utilizados são: batata, cenoura, abóbora, alho francês, alface, couve branca, brócolo e curgete, inicialmente agrupados 2 a 3 e, depois, 4 a 5, perfazendo o total de ~120 gramas.

Outros legumes como nabo, nabiça, e beterraba, pelo elevado teor de nitrato e fitato deverão ser reservados para idades de 11-12 meses.

As hortaliças e tubérculos, com baixo valor energético (40 – 80 kcal/ 100 g), são importantes fontes de macronutrientes (excepto gordura) e micronutrientes (batata: vitamina B1; abóbora: zinco, magnésio, potássio; alface: cobre e ácido fólico; agrião: vitamina C, fósforo, cálcio e ferro; etc.). Atendendo à completa ausência de gordura nos legumes e hortícolas, e ao reconhecimento da sua importância na estruturação das membranas celulares e na maturação do SNC, retina e sistema imunológico, devem ser adicionados 5 – 7,5 mL de azeite cru a cada dose de puré ou caldo de legumes.

Nota importante:

  • À luz do conhecimento actual acerca do padrão de crescimento desejável no 1º ano de vida, acrescido do facto de o sabor doce ser inato, não necessitando de treino, importa estimular precocemente o treino do paladar para sabores não doces. Assim, a tendência actual é proceder à diversificação entre o 5º e o 6º mês com um caldo ou puré de legumes, e não com a tradicional farinha de cereais.

Dentro do grupo dos fornecedores de proteínas de alto valor biológico incluem-se a carne, o peixe e o ovo.

Carne e peixe

A carne e o peixe são importantes fornecedores de proteína (20% de proteína de alto valor biológico por 100 g de alimento) mas também de outros nutrientes com uma função determinante no desenvolvimento.

 A carne (branca ou vermelha) é uma importante fonte nutricional de minerais de elevada biodisponibilidade (nomeadamente zinco e ferro) bem como de ácido araquidónico, o maior ácido gordo poli-insaturado de cadeia longa da série n-6. O consumo elevado de proteínas de origem animal particularmente o leite durante o primeiro ano de vida tem sido associado a uma aceleração do ganho ponderal, mediado sobretudo pelo teor proteico. Ingestas proteicas elevadas têm sido associadas a um risco acrescido de obesidade.

Como nota importante, refere-se que a melhor fonte de ferro a partir do segundo semestre de vida é a carne. O ferro apresenta-se na forma de ferro hémico com uma biodisponibilidade muito superior à do ferro não-hémico fornecido pelos cereais, legumes e produtos hortícolas. A presença de carne ou de peixe numa refeição favorece a absorção do ferro não-hémico.

É suficiente o fornecimento de 30 a 35 gramas de carne ou peixe por dia, começando-se com 10-15 gramas/dia aos 6 meses.

Ovos

Fornecem todos os aminoácidos essenciais. A gordura encontra-se na sua quase totalidade na gema, onde se encontram também as vitaminas lipossolúveis, estando as hidrossolúveis maioritariamente presentes na clara.

A clara do ovo poderá desencadear, com mais probabilidade, reacções alérgicas do que a gema; por isso, aquela deverá ser introduzida mais tardiamente, ou seja, a partir do primeiro ano de vida (ou após os dois anos em situações com antecedentes familiares de patologia alérgica). Os ovos devem ser dados cozidos, alternando com carne ou peixe.

Nota importante:

  • De acordo com os peritos da AAP, não está provado que retardar a introdução de alimentos potencialmente alérgicos como o carne, peixe e ovo reduz alergias, quer haja ou não história familiar de patologia alérgica.

Iogurtes

Embora se trate um alimento obtido do leite de vaca sem modificação qualitativa, é bem tolerado pela diminuição do conteúdo em lactose e pela hidrólise parcial das suas proteínas; tem, tal como o leite completo, um teor elevado em ácidos gordos saturados.

Recomenda-se a sua utilização a partir dos 10 meses. Estão actualmente disponíveis no mercado iogurtes com uma composição qualitativa mais adequada ao lactente pelo que a sua utilização poderá iniciar-se um pouco mais precocemente.

Leguminosas frescas e secas

Classicamente utilizam-se no nosso meio: grão, feijão, favas, ervilhas e lentilhas. Com um teor muito mais elevado em proteínas do que os produtos hortícolas, são também fonte importante de oligoelementos, vitaminas e fibras. Podem ser oferecidos na alimentação a partir dos 10 meses, mas em pequenas quantidades, para evitar flatulência e favorecer a digestão.

Leite de vaca em natureza

O leite de vaca em natureza não deverá ser utilizado no primeiro ano de vida. Com efeito, o leite de vaca não fornece os nutrientes de modo adequado às necessidades da criança nesta faixa etária: é elevado o seu teor em ácidos gordos saturados e é muito reduzido o conteúdo em ácidos gordos essenciais. No 2º ano de vida é ainda prevalente a ferropénia como se referiu, tendo o leite de vaca um teor de ferro que, além de baixo, é muito pouco biodisponível.

Exemplifica-se na Figura 1, um plano de diversificação alimentar no decurso do primeiro ano de vida.

FIGURA 1. Exemplo de diversificação alimentar no primeiro ano de vida

Minerais e outros nutrientes na alimentação do lactente

Agência Europeia para a Segurança Alimentar, é o órgão que tem como função elaborar as recomendações sobre micronutrientes na Europa. A EURRECA (EURopean micronutriente RECommendations Aligned), (http://www.eurreca.org/everyone), financiada pela Comissão Europeia (CE colabora com a Agência Europeia para a Segurança Alimentar.

Esta rede europeia considera que os micronutrientes prioritários são o ácido fólico, a vitamina D e o ferro. Dois destes micronutrientes elegidos como os prioritários são, especialmente importantes no primeiro ano de vida, dado o leite materno ser, precisamente, pobre em ferro e em vitamina D.

O ferro é um mineral que necessita de recomendações em Portugal pela frequência da deficiência e suas consequências. Há deficiência de ferro e anemia por deficiência de ferro em lactentes de outra forma saudáveis e é, talvez, o único mineral em deficiência na Europa.

Num documento relativo à alimentação no primeiro ano de vida, as recomendações relativas ao ferro serão apenas genéricas e necessitariam pela sua importância de um documento mais detalhado. Fica apenas aqui referido o ideal que aponta para a amamentação exclusiva até aos 6 meses de vida, seguida por suplemento de ferro de 1 mg/kg/dia dos 6 aos 12 meses, ou até se obter um suprimento diário de 11 mg/dia de ferro através dos alimentos. Em Portugal, o suplemento de ferro deve ser dado à refeição, porque o veículo do ferro elementar na única formulação em solução oral para lactentes é mais bem absorvido com os alimentos.

Há macrominerais que no primeiro ano de vida devem ser excluídos da dieta como o é o caso do sódio, na forma de sal (NaCl) acrescentado.

Sobre as principais funções e fontes alimentares de macrominerais e Microminerais, sugere-se a consulta do capítulo sobre Nutrientes.

Aspectos práticos

São enumeradas a seguir algumas regras práticas em relação com a alimentação diversificada.

  1. Não deve forçar-se o lactente à ingestão da totalidade do volume da refeição oferecida. É importante que o lactente controle a ingestão alimentar em função da sua saciedade, a qual pode variar ao longo do dia e dos dias. Regimes hiper-proteicos e hiper-energéticos são a principal causa de excesso de peso e de obesidade logo desde o primeiro ano de vida.
  2. Não deve adicionar-se açúcar aos alimentos (leite, iogurte, etc.) que, para além de criar a apetência pelo doce, tem ainda um indesejável efeito cariogénico. Também o mel, qualquer que seja a forma de apresentação, não traz qualquer vantagem nutricional podendo mesmo haver alguns riscos, pelo que não deve ser dado, pelo menos no primeiro ano de vida.
  3. Proscrita deve ser também a adição de edulcorantes como o aspartame. Com efeito, o aspartame inclui metanol (10%) para além do ácido aspártico (40%) e fenilalanina (50%). A sua adição pode provocar efeitos indesejáveis alguns dos quais de difícil identificação no lactente.
  4. Nunca é de mais repetir: não é necessária nem desejável a adição de sal aos alimentos; o respectivo teor de sal intrínseco é suficiente para suprir as necessidades diárias em sódio.
  5. A partir do início da alimentação diversificada, os alimentos (designadamente os não líquidos) devem ser dados à colher. Trata-se duma regra básica da educação alimentar. Para além dos aspectos estritamente nutricionais, há que atender à estimulação progressiva com a aquisição de experiências sensoriais (tácteis, térmicas, gustativas, etc.). Actualmente verifica-se a tendência de se aconselhar que a criança, numa fase de “aprendizagem”, confrontada com alimentos sólidos no prato, seja estimulada a pegar livremente nos mesmos, levando-os à boca. Tal procedimento, implicando vigilância rigorosa por parte do prestador de cuidados, poderá contribuir para o desenvolvimento de capacidades motoras e sensoriais, designadamente.
  6. Por outro lado, para que a digestão dos alimentos sólidos dados (inicialmente farinha de cereais e depois legumes) se realize eficazmente é indispensável que os mesmos tenham um contacto relativamente prolongado com a saliva e maior tempo de permanência na boca. Inversamente, a maior rapidez com que os alimentos passam pela boca quando administrados por biberão, impede a sua mistura homogénea com a saliva, comprometendo, por isso, a digestão.
  7. Refira-se que é possível verificar um comportamento de sensibilidade ao sódio desde a primeira infância o que aumenta o risco de valores elevados de pressão arterial logo desde os primeiros anos de vida.
  8. Sublinhe-se a este respeito que os alimentos enlatados podem conter grandes quantidades de açúcar e de sal, para além de outros conservantes, devendo, por isso, estar proscritos na alimentação do lactente. O suprimento em fibras não deve ser preocupação durante o primeiro ano de vida.
  9. Apenas a partir dos 2 anos de vida se recomenda um suprimento mínimo de fibra equivalente à idade mais 5 gramas/dia. Sugerem-se como limites de segurança para a criança, os valores de 5 a 10 gramas/dia.
  10.  Uma oferta variada de alimentos é outra atitude que contribui para o estabelecimento de bons hábitos alimentares em etapas posteriores da vida; de notar que a monotonia do regime favorece a anorexia.
  11.  Uma referência importante relativamente à consistência dos alimentos sólidos (legumes, carne e peixe, etc.) e às sensações tácteis e gustativas que os mesmos despertam. Tais alimentos devem ser dados de forma progressivamente menos fraccionada e mais consistente; desaconselha-se, por isso, a utilização por tempo muito prolongado de máquinas trituradoras que transformam os alimentos sólidos em semi-líquidos ou cremosos muito fluidos; passagem progressiva da trituradora eléctrica para o clássico passe-vite manual.
  12.  É importante garantir que a alimentação diversificada forneça densidade energética adequada com VCT mínimo de 25% e boas fontes de ferro, proteínas e zinco.
  13. Não deverá igualmente ser esquecida a componente social dos actos alimentares e das refeições; idealmente a criança deverá (deveria, na medida do possível) ter as suas refeições convivendo com a família.
  14. Com o início da diversificação alimentar deve oferecer-se água extra (~400-600 mL/dia) ao longo do dia (não outra bebida), salientando-se que os chás de ervas interferem na absorção de minerais e na motilidade intestinal.

Fontes alimentares

Especifica-se, a seguir, a composição de algumas fontes alimentares utilizadas na composição da alimentação diversificada.

Cereais
(composição por 100 g)

Arroz Trigo Soja Milho
Proteínas (g) 7,3 12,6 36,8 8,3
Glúcidos (g) 85,8 68,5 23,5 75,3

Em regra, o valor calórico por 100 gramas é cerca de 400 kcal. A sua constituição é sobretudo à base de glúcidos, polissacáridos, amido e pequenas quantidades de proteínas vegetais, ácidos gordos essenciais, minerais e vitaminas do complexo B.

Cereais manipulados
(composição por 100 g)

Massa Pão branco Pão de mistura
Proteínas (g) 8,7 6,3 6,5
Energia (kCal) 358 246 278
Cálcio (mg) 7 110 100

Frutos
(composição por 100 g)

Maçã Pêra Banana Laranja
Vitamina C (mg) 14 6 11 54
Fibra (g) 1,6 2,2 1,1 1,2

As papas de frutas de preparação caseira têm um valor calórico aproximado de 120 kcal/100 gramas; salienta-se que o valor calórico dos preparados comerciais (boiões) é cerca de 220 kcal/100 ml.

Legumes/hortaliças
(composição por 100 g)

Em geral as hortaliças e verduras (cenoura, batata, abóbora, alface) têm um baixo valor calórico – cerca de 40 a 80 kcal/100 gramas, sendo fonte importante de minerais, oligoelementos, vitaminas, alto conteúdo em celulose e variável de fibras.

Carne, peixe e ovo
(composição por 100 g) 

Relativamente a estes alimentos salienta-se a composição em ferro (respectivamente em mg/100 gramas) das seguintes variedades:

 FrangoVacaPorcoCoelhoPescadaLinguado
Ferro (mg)7,312,636,81,71,00,6

A carne e o peixe contêm cerca de 15-20% de proteínas/100 gramas e, entre 5-10% de gordura/100 gramas. Um ovo de 60 gramas fornece cerca de 80 kcal e a mesma quantidade de proteínas que 10 gramas de carne ou peixe.

Leguminosas
(composição por 100 g)

Quanto a estes alimentos (fornecendo cerca de 8-16 gramas de proteínas/100 gramas) salienta-se a composição em ferro, cálcio, magnésio, fósforo e fibra das seguintes variedades:

 ErvilhaFeijãoLentilhaGrão
Ferro (mg)1,563,51,2
Cálcio (g)1989220,4
Magnésio (mg)2915034
Fósforo (mg)130360130
Fibra (g)4,5103,82,5

Produtos lácteos
(composição por 100 g)

 IogurteLeite inteiroQueijo
Proteínas (g)3,23030
Glúcidos (g)4,34,60,2
Lípidos (g)3,23,014
Cálcio (mg)125126850

Leites (valor energético)

  • Leite (fórmula padrão): 500 ml <>335 Kcal
  • Leite materno: 500 ml <>335 – 370 Kcal
  • Leite de vaca em natureza: <>300 – 438 Kcal

Seguidamente são referidos exemplos práticos de regimes alimentares aplicáveis a crianças saudáveis até ao 1 ano de idade.

Plano de refeições

  • 1.º Trimestre
    • Refeições de leite:
      • Materno (n.º variável) ou
      • Fórmula: 6 biberões
  • 2.º e 3.º Trimestres
    • Refeições de leite:
      • Materno (n.º variável) ou
      • Fórmula: 3 biberões
    • Alimentos sólidos:
      • Farinha / cereais: 1 (após 4 meses)
      • Refeição diversificada (caldo de legumes): 1 (após 5 meses)
      • Introduzir fruta a partir dos 6 meses
  • 4.º Trimestre
    • Refeições de leite:
      • Fórmula: 1 biberão
    • Alimentos sólidos:
      • Farinha de cereais: 1
      • Refeição diversificada com sobremesa de fruta: 2

Nota: Tratando-se de alimentação com fórmula/leite, o nº de biberões pode variar (± 1) em função do volume de leite distribuído pelo número de biberões/dia.

O Quadro 1 exemplifica um esquema alimentar diário para criança de 6-7 meses.

QUADRO 1 – Exemplo de esquema alimentar diário para criança de 6-7 meses

 Proteínas (g)Gorduras (g)Hidratos de carbono (g)

(*) A partir dos 10 meses a refeição de cereais poderá ser substituída por 1 iogurte natural, sem açúcar; g= gramas; (“) A designação de caldo ou puré de legumes relaciona-se com a consistência da refeição diversificada em função do volume de água utilizado; (# Carne: depois dos 6-7 meses, peixe depois dos 7-8 meses com incremento progressivo até 30-35 gramas/dia – fase de 2 refeições diversificadas com carne ou peixe, por dia)

Fórmula/Leite de transição a 15% (2 x 200 ml)8,912,231,8
Farinha não láctea (*)3,62,741,0
– pó de farinha: 40 g2,00,635,6
– leite de transição: 2 medidas1,62,15,4
Água: 200 ml   
Caldo de legumes (2 x 200 ml) (“)6,95,029,7
– Cenoura: 50 g0,33,2
– Cebola: 50 g0,50,11,9
– Batata: 120 g3,024,0
– Hortaliça: 30 g1,00,30,6
– Carne ou peixe: 10 g (#)2,10,6
– Azeite cru (no fim da cozedura)
(1 colher de sobremesa)
4,0
Fruta: 60 g0,48,0
Total:19,619,6110,2

Nesta refeição tipo os legumes podem ser cozidos no vapor empregando um utensílio apropriado ou um simples passador de rede que se coloca numa caçarola com água fervente. No passador, que não deve mergulhar na água, colocam-se os legumes que devem ser cozidos tapados. Depois de cozidos, os legumes passam-se na trituradora manual ou eléctrica.

A refeição designada por <> Fruta poderá ser dada duas vezes por dia, a seguir a cada uma das sopas, em função do apetite e características da criança.

Neste esquema a que corresponde o valor calórico total (VCT) de 696 kcal/dia para o peso ~ 7.700 gramas <> 93 kcal/kg/dia, as percentagens de VC estão assim distribuídas: Glúcidos ~64%; Proteínas ~11%; Lípidos~ 25%.

As quantidades dos ingredientes destas refeições são pesadas somente quando se realizam os primeiros cozinhados. A prática e a utilização, por ex., de colheres, chávenas, etc., dispensam depois tais pesagens.

Como exemplo de refeição diversificada incluindo leguminosas secas (grão ou feijão ou ervilha ou lentilha), mais consistente que o caldo ou sopa de legumes (tipo puré), a introduzir cerca dos 10 meses para substituir uma das duas sopas de legumes mencionadas no esquema anterior, são descritas duas variedades de puré de leguminosas secas:

1.  Puré de lentilhas

  • gema de ovo – 1
  • massa / estrelinha – 15 gramas
  • lentilhas – 35 gramas
  • cebola – 30 gramas
  • tomate – 40 gramas
  • azeite (no fim da confecção) – 5 gramas
  • água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc.

A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é: 1 cc./ 1 kcal.

Tratando-se duma refeição mais consistente, prevê-se que se ofereça água por copo à criança, alternando com as colheres que vão sendo dadas.

 2. Puré de feijão (com carne ou peixe)

  • carne – 25 gramas; ou peixe -30 gramas
  • massa / estrelinha – 20 gramas
  • feijão – 35 gramas
  • cebola – 30 gramas
  • azeite (no fim da confecção) – 5 gramas
  • água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc.

A relação calórica/peso nesta refeição-tipo é: 1 cc./ 1 kcal.

Como pormenor da confecção dos “purés de leguminosas secas”, estas deverão ser postas de molho de água desde a véspera para uma correcta lavagem; depois desta operação as mesmas levam-se ao lume com os restantes ingredientes e com nova água.

GLOSSÁRIO

Desmame > Separação da criança do seio materno ou da ama

Ablactação > Transição da alimentação láctea exclusiva para o regime alimentar comum

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PROBIÓTICOS, PRÉ-BIÓTICOS E MICROBIOTA

Microbioma

A designação de microbiota refere-se ao conjunto de microrganismos ou micróbios (termo antigo, mas actualmente “reabilitado”) que se encontram localizados em tecidos orgânicos – no interior ou à superfície – em maior concentração no tubo digestivo, mas também na pele e mucosas (boca, conjuntivas, vagina, etc.). Ao genoma que expressa o microbiota dá-se o nome de microbiomaA situação de desequilíbrio nos componentes do microbiota é designada disbiose, situação que poderá estar associada a cólicas infantis.

Tais microrganismos, cerca de triliões (em número dez vezes superior ao da totalidade das células do corpo humano), agrupados em colónias (número superior ao da totalidade das células do organismo humano), distribuídos por mais de 10.000 espécies, incluem bactérias e fungos, por sua vez transportando vírus.

Não produzindo doença, designam-se por microbiota normal. Produzindo doença (em períodos variáveis)designam-se por microbiota transitório.

O epitélio intestinal, constituindo a maior superfície de mucosa do corpo humano com uma complexidade de funções de absorção de nutrientes, de motilidade, neuroendócrina e imunológica, contém um microbiota muito extenso localizado principalmente no cólon; inclui cerca de 100 triliões de bactérias pertencentes a centenas de espécies diferentes e incorporando mais de 600.000 genes.

A diversidade microbiana entre indivíduos é enorme. Com efeito cada indivíduo (hospedeiro) possui um padrão próprio, distintivo quanto à composição microbiana intestinal, o qual depende de diversos factores: da genética daquele, da respectiva colonização inicial no momento do parto (por sua vez dependente do tipo de parto e, consequentemente, do microbiota materno vaginal e intestinal), do tipo de nutrição e também da exposição ao meio ambiente.

Recorda-se, a propósito, que a colonização do intestino do recém-nascido pelas bactérias começa na altura do parto; e que o microbiota intestinal materno é a única fonte natural de bactérias benéficas para o intestino.

Pormenorizando, é importante atender ao facto de determinados factores, actuando durante a gravidez (obesidade materna, antibioticoterapia materna, exposição a terapia intensiva e dieta) influenciam o desenvolvimento do microbioma durante a própria gravidez, no RN, e no lactente.

De referir também que o desenvolvimento do microbiota intestinal dos lactentes alimentados com fórmulas padrão é diferente do dos lactentes amamentados, particularmente, no que diz respeito a progressão das bifidobactérias que, no último caso, se tornam os microrganismos dominantes.

O microbioma gastrintestinal, o epitélio intestinal e o sistema imune da respectiva mucosa constituem uma unidade funcional altamente integrada e complexa designada por ecossistema gastrintestinal, pelo que alterações intrínsecas ou adquiridas em qualquer destes componentes poderão originar alterações do carácter patológico ao nível do tubo digestivo.

O ecossistema intestinal humano compõe-se fundamentalmente de três grandes grupos bacterianos, consoante o papel que desempenham (Quadro 1).

QUADRO 1 – Composição do microbiota bacteriano intestinal

Bactérias benéficas

Bifidobacterium spp.

Lactobacillus spp.

Eubatterium spp.

Bactérias potencialmente nocivas

Staphylococcus spp.

Clostridium spp.

Proteus spp.

Pseudomonas (sp. aeruginosa)

Veillonella spp.

Bactérias oportunistas

Escherichia (sp. coli)

Streptococcus spp.

Bacteroides spp.

Enterococcus spp.

Probióticos

Antecedentes históricos

Reza a história que o iogurte mais antigo era egípcio (3500 AC) e que Hipócrates descreveu as propriedades benéficas do iogurte e dos leites fermentados. Só muito mais tarde, na Bulgária e na Turquia, se vulgarizou o seu consumo. Uma das bactérias usadas na sua fermentação recebeu o nome científico de Lactobacillus bulgaricus, e foi da tradição oral destes povos que nos chegou o nome de “iogurte” por “contribuir para a enorme longevidade” dos seus habitantes.

Os benefícios para a saúde das bactérias produtoras de ácido láctico foram pela primeira vez estabelecidos no início do século XX pelo cientista russo Elie Metchnikoff, defendendo os benefícios invocados na Antiguidade. As suas observações baseavam-se no conceito de “auto-intoxicação” e consequente “envelhecimento intestinal” por agentes capazes de produzir substâncias proteolíticas (Clostridium, por exemplo).

Em 1919, Isaac Carasso, fundador da Danone, começou a produzir industrialmente o iogurte que nessa época, por ser considerado um medicamento, era vendido nas farmácias. Posteriormente, por conter bactérias cujo principal alvo era a microflora intestinal com efeitos benéficos para a saúde do hospedeiro, passou a ser considerado um alimento funcional, salientando-se o estudo científico de Metchinikoff no Instituto Pasteur de Paris.

Definição

A designação de probióticos é conhecida desde 1965 (Lilley & Stilwell); contudo, foi Fuller que em 1989, definiu probióticos como microrganismos vivos, componentes de alimentos, que produzem efeitos benéficos no hospedeiro através da melhoria do balanço microbiano do seu microbiota intestinal.

Os probióticos, pelo seu interesse, constituem um motivo de investigação actual em várias áreas de medicina, em veterinária e na indústria alimentar. Por isso, em 1999 foi elaborado pela Comunidade Europeia um documento de consenso que define probiótico como um alimento que incorpora microrganismos vivos (lactobacilos, bifidobactérias) o qual, consumido em quantidades suficientes, produz efeitos benéficos para a saúde e para o bem-estar, para além dos efeitos nutricionais.

Alguns produtos considerados como probióticos são constituídos por lisados bacterianos ou produtos inactivados pelo calor que, quando ingeridos, também exercem efeitos benéficos para a saúde do hospedeiro pela capacidade de inibir a adesividade de bactérias patogénicas às células da mucosa intestinal, melhorando o equilíbrio microbiano intestinal do hospedeiro.

Os microrganismos que fazem parte dos probióticos mais utilizados são:

  • Bactérias vivas produtoras de ácido láctico
    • Lactobacillus (bulgaricus, acidophilus, casei, rhamnosus GG (LGG), plantarium, shirota, reuteri, brevis, clusei), componentes importantes da microflora intestinal e dominantes no intestino delgado.
    • Bifidobacterium (lactis, longum, bifidus, infantum, termophilus), que são dominantes no cólon, e também componentes importantes do microbioma intestinal. Predominam no intestino dos recém-nascidos e dos lactentes alimentados com leite materno. As bifidobactérias são germes anaeróbios e utilizam uma via específica para metabolizar a lactose da alimentação produzindo acido láctico, (como outros probióticos), mas também acido acético com maior efeito bacteriostático.
    • Streptoccocus (thermophilus, lactis, salibarius, faecium, beta-hemolítico, intermedius) que têm uma forte actividade lactásica e que pela sua resistência à hidrólise, chegam em grandes quantidades ao intestino.
    • Cocos Gram-negativos ( coli)
  • Leveduras, células vivas
    • Saccharomyces (boulardii, cerevisiae), resistente aos antibióticos. (Quadro 2)

De salientar que um preparado probiótico pode conter uma ou mais estirpes de microrganismos.

As condições a que deve obedecer um probiótico são:

  1. Resistência à acidez gástrica, à bílis e às enzimas pancreáticas;
  2. Boa adesividade às células da mucosa intestinal;
  3. Boa capacidade de colonização;
  4. Tolerância imunológica com os micróbios autóctones;
  5. Ausência de translocação;
  6. Modulação do trânsito intestinal ajudando a evitar obstipação;
  7. Melhor digestibilidade dos nutrientes aumentando o seu valor nutricional;
  8. Comprovados efeitos benéficos para a saúde.

Mecanismos de acção

Os principais mecanismos de acção, dos quais se podem deduzir os determinados efeitos, são sucintamente descritos no Quadro 2.

QUADRO 2 – Principais mecanismos de acção dos probióticos

Imunológicos

· Activação dos macrófagos locais promovendo a apresentação de antigénios aos linfócitos B

· Aumento local e sistémico da secreção de imunoglobulina A secretória

· Modulação do perfil de citocinas

· Indução de menor intensidade da resposta a antigénios alimentares

Não imunológicos 

· Digestão de alimentos e competição com os microrganismos patogénicos por determinados nutrientes

· Alteração do pH local para criar condições desfavoráveis ao crescimento de agentes patogénicos

· Produção de substâncias que inibem o crescimento de outros microrganismos

· Eliminação de radicais livres de oxigénio

· Estimulação da produção epitelial de mucina

· Estimulação da função de barreira intestinal

· Competição pela adesão à mucosa

· Modificação de toxinas patogénicas

Principais efeitos

Os principais efeitos, intestinais e extraintestinais, em parte sobreponíveis aos mecanismos de acção, podem ser assim sistematizados:

  1. Actividade antimicrobiana contra as bactérias patogénicas: pela inibição do crescimento bacteriano competindo com o consumo de nutrientes; pela síntese de péptidos e outras substâncias bactericidas; pelo impedimento da sua adesividade às células da mucosa intestinal, pela inactivação de toxinas ( coli, V cholorae, C difficille).
  2. Aumento da secreção de mucina com diminuição da permeabilidade intestinal; daí o efeito barreira contra as bactérias patogénicas (coli).
  3. Acidificação do pH intestinal pela produção de ácidos gordos de cadeia curta e consequente menor pH fecal (fezes mais ácidas).
  4. Inibição da actividade enzimática bacteriana no cólon e aumento da actividade de algumas enzimas intestinais (lactase, maltase e sacarase); também melhor absorção de cálcio e ferro evitando a sua utilização pelas bactérias patogénicas.
  5. Imunomodulação do sistema imunitário intestinal com (estímulo da fagocitose contra os agentes patogénicos) e efeito anti-alérgico aos alimentos.
  6. Melhoria da circulação entero-hepática e da desagregação dos ácidos biliares o que reduz os níveis sanguíneos de amónia em doentes com hepatopatia.

Utilidade na prática clínica

Os probióticos mais utilizados (Lactobacillus spp e Bifidobacterium spp), podendo ser incluídos em diferentes tipos de produtos, incluindo alimentos, fármacos e suplementos alimentares, têm aplicação diversificada na prevenção e tratamento de diversas situações clínicas a seguir discriminadas.

Diarreia infecciosa

Os mecanismos de acção dos probióticos na diarreia aguda parecem ser os seguintes: -promoção da função de barreira intestinal; – inibição da adesão e colonização da mucosa por agentes patogénicos; – interacção com o sistema imune inato do organismo; – estimulação da produção de IgA secretórias específicas de antigénio.

Diarreia associada a antibióticos

Vários estudos têm comprovado a eficácia dos probióticos na prevenção e no tratamento da diarreia associada a antibioticoterapia. Os mais utilizados têm sido as Bifidobacteria, os Lactobacillus rhamnosus GG (LGG) e o Saccharomyces boulardii.

Diarreia do viajante

A diarreia do viajante é a doença mais comum durante a visita às regiões tropicais. O efeito preventivo dos probióticos em tal contexto não está suficientemente demonstrado e os estudos são contraditórios. No entanto, alguns ensaios clínicos referem uma redução de incidência da diarreia, variando consoante as regiões visitadas e as doses utilizadas.

Síndroma do cólon irritável

Embora seja referida a diminuição de dor abdominal e da diarreia nesta patologia, os resultados dos estudos em crianças são contraditórios. Em suma, apesar de com algumas espécies se ter obtido alívio sintomático, ainda não existem provas científicas legitimando recomendar o seu uso neste contexto.

Doença inflamatória crónica do intestino e outras situações do foro digestivo

Os estudos realizados em adultos sobre a utilização de probióticos na doença inflamatória intestinal parecem demonstrar que existe um efeito benéfico, mas os estudos em populações pediátricas não obtiveram os mesmos resultados. Com efeito, quer na doença de Crohn, quer na colite ulcerosa, não se observou qualquer benefício relativamente à indução ou prolongamento da remissão. Portanto, no âmbito destas duas entidades clínicas, na fase actual do conhecimento não está indicado o uso de probióticos.

Têm sido referidos resultados animadores com a utilização de probióticos na síndroma do intestino curto e em casos de alergia alimentar, provavelmente pela diminuição da permeabilidade intestinal e da imunomodulação. Está referida a eficácia dos probióticos (L. casei e S. boulardii) no tratamento e profilaxia de recidivas da colite pseudomembranosa induzida pelo Clostridium difficile.

Enterocolite necrosante

O papel protector dos probióticos nesta situação está actualmente bem estabelecido, tendo-se demonstrado uma redução quer da incidência, quer da mortalidade. Assim, numa revisão da Cochrane sobre esta entidade clínica, foi recomendado o uso preventivo de probióticos em recém-nascidos pré-termo.

Cólicas

O efeito dos probióticos na cólica infantil está bem estudado e foi inclusivamente alvo de uma revisão da Cochrane incidindo sobretudo sobre L. reuteri. Admite-se que o seu mecanismo de acção quanto à redução do desconforto abdominal se prende com a alteração do padrão de fermentação no cólon e com menor produção de gás e, consequentemente, com diminuindo o desconforto. Contudo, há resultados doutros estudos gerando controvérsia.

Doenças atópicas

Através da sua modulação do sistema imune intestinal, os probióticos parecem ter algum efeito na promoção da formação de linfócitos Th1 (supressores) em relação aos linfócitos Th2 (pró-alérgicos). No entanto, as provas científicas não suficientes para suportar o seu uso para prevenção de dermatite atópica, alergias alimentares ou hipersensibilidades.

Obstipação

O efeito dos probióticos nesta situação pode dever-se aos seguintes mecanismos:

  • Diminuição do tónus da sigmóide;
  • Estimulação da motilidade do cólon; e
  • Redução do tempo de motilidade intestinal, devido às alterações no microbioma.

Numa revisão da Cochrane de 2016 concluiu-se que os probióticos têm uma eficácia superior ao placebo nesta situação com um grau de evidência moderado, pelo que os mesmos podem ser considerados uma opção terapêutica.

Intolerância à lactose

Um dos efeitos dos probióticos (particularmente Lactobacillus spp. e Bifidobacterium spp.) é estimular a produção de lactase, pelo que o seu uso neste contexto parece lógico; reduzindo a má absorção, diminuirá a intensidade das manifestações clínicas. Os estudos parecem demonstrar esse benefício, mas também nesta área são necessários mais ensaios clínicos para poder suportar uma recomendação formal do seu uso.

Infecção por Helicobacter pylori

A utilização de probióticos pode ajudar a diminuir os efeitos colaterais das terapêuticas de erradicação para H. pylori. Parece haver também um efeito benéfico nas taxas de erradicação com essa administração conjunta, mas os estudos que avaliam esses benefícios são em pequena escala, o que não permite suportar uma recomendação formal para o uso de probióticos nesta situação.

Infecções do tracto urinário

O fundamento para utilização dos probióticos nas infecções do tracto urinário prende-se com o facto de em alguns estudos se ter demonstrado que a sua administração por via oral aumenta as taxas de colonização vaginal com os referidos microrganismos (por contiguidade). Essa colonização serviria assim como uma espécie de barreira microbiológica natural contra infecções ascendentes. Trata-se, pois, duma área promissora requerendo no entanto mais investigação para avaliar a sua eficácia.

Relativamente ao tratamento das infecções do tracto urinário, o uso de probióticos é bastante controverso, pois os dados publicados na literatura são contraditórios e não justificam uma recomendação para o seu uso.

Dislipidémias e hipertensão arterial

Uma das propriedades das bifidobactérias é a sua influência no metabolismo lipídico. Alguns estudos clínicos apresentam como resultado de utilização dos probióticos reduções significativas dos níveis do colesterol total pela diminuição do colesterol-LDL, enquanto os níveis de colesterol-HDL aumentam ligeiramente. O efeito hipocolesterolemiante das bifidobactérias resulta da diminuição da absorção e do transporte do colesterol alimentar para o fígado (via quilomicrones) e, por outro lado, pela desconjugação dos sais biliares com menor absorção do colesterol pelo intestino. A niacina formada pelas bifidobactérias reduz o fluxo de ácidos gordos livres que, ao diminuir a biossíntese da lipoproteína VLDL, contribui para a redução dos níveis plasmáticos dos triglicéridos.

Além da acção sobre o colesterol, as bifidobactérias produzem um conjunto de tripéptidos que foram identificados como efectivos na redução da angiotensina e, consequentemente, na hipertensão arterial.

Estes efeitos benéficos de combate aos factores de risco das doenças cardiovasculares levam a fomentar a inclusão de alimentos funcionais com probióticos no regime preventivo.

Obesidade e diabetes

Estudos recentes em animais e humanos demonstraram uma relação importante entre a composição do microbiota intestinal, e obesidade e diabetes tipo 2. Alguns dos mecanismos capazes de justificar essa relação são os seguintes:

  • Fermentação no cólon de alimentos não digeridos no intestino delgado formando ácidos gordos de cadeia curta (AGCC) que são absorvidos pelo intestino, o que aumenta a recuperação calórica;
  • Inflamação intestinal de baixo grau, que aumenta a permeabilidade intestinal e altera a absorção dos nutrientes;
  • Alimentação hipercalórica que altera a composição do microbiota intestinal.

Assim, a administração de probióticos permitiria, desse modo, normalizar o microbiota intestinal, reduzir o estado inflamatório, diminuir a permeabilidade intestinal e melhorar a função de barreira intestinal.

Outras situações clínicas

Embora com resultados ainda mal definidos, os probióticos estão a ser utilizados na candidíase mucocutânea, na fibrose quística, nas infecções urogenitais e nas vaginites, tendo em conta a sua acção imunoestimulante, inibição da actividade enzimática bacteriana e recolonização do tracto vaginal com lactobacilos.

Quanto à tolerância, uma extensa revisão de ensaios com probióticos contendo Lactobacillus, Bifidobacterium, Streptococcus thermophilus, Saccharomyces boulardii não evidencia quaisquer efeitos indesejáveis. Não estão também referidos quaisquer efeitos adversos em lactentes alimentados com fórmulas incorporando probióticos.

Centenas de anos de experiência com o uso de produtos lácteos fermentados e do iogurte atestam a sua inocuidade. A administração controlada de probióticos poderá ser muito útil para reduzir o potencial patogénico do microbioma intestinal.

Assim os probióticos pelos seus efeitos na prevenção dos factores de risco e no tratamento de algumas situações patológicas, representam um contributo promissor para a Saúde pela Nutrição, e um vasto campo para a Investigação.

Pré-bióticos

Antecedentes históricos

A influência da nutrição na composição do microbioma do sistema digestivo passa a ser cada vez mais determinante a partir da segunda semana de vida e tal facto reflecte-se nas diferenças encontradas entre o microbioma gastrintestinal de bebés alimentados com leite materno e o de bebés alimentados com fórmulas para lactentes.

No primeiro caso (alimentação com leite materno) desenvolve-se um microbioma com predomínio nítido de Bifidobacterium e, em menor escala com StaphylococcusStreptococcus e Lactbacillus.

No segundo caso (alimentação com leite de fórmula) desenvolve-se um microbioma mais complexo, com maior número de bactérias anaeróbicas, particularmente EnterococcusEnterobacteriaeClostridium e Klebsiella.

Estas diferenças quanto ao perfil dos mencionados microbiomas parecem depender, essencialmente de certos componentes presentes no leite materno, particularmente no que respeita ao seu elevado teor em oligossacáridos e em certos mediadores da resposta imune, nomeadamente IgA secretória, citocinas e factores de crescimento (IL-1, IL-6, IL-8, G-CSF, M-CSF, TNF-alfa e IFN-gama).

Com efeito, o leite materno é muito rico oligossacáridos complexos (mais de 100 tipos diferentes) na quantidade de 10-12g/L, o que espelha uma diferença muito significativa em relação ao leite de vaca que, para além de os conter em muito menor quantidade, os respectivos isómeros são também diferentes.

Especificando melhor, os oligossacáridos do leite materno, estimulando o desenvolvimento de Bifidobacterium e Lactobacillus, modificam as condições do meio intestinal, designadamente diminuindo o risco de colonização e invasão por bactérias patogénicas pelo efeito sobre a permeabilidade da mucosa intestinal.

Tais características do microbiota intestinal de crianças amamentadas têm assim efeitos benéficos, tais como:

  • Inibição do crescimento de agentes patogénicos;
  • Redução dos níveis sanguíneos de amónia;
  • Produção de vitaminas e enzimas digestivas

Definição e mecanismo de acção

Do que foi relatado na alínea anterior nasce o conceito de pré-bióticos, que são ingrediente ou substâncias dietéticas (a maioria consistindo em fibras solúveis ou hidratos de carbono complexos) que não digeríveis e não metabolizados a nível intestinal. Têm como característica o facto de influenciariam a composição e/ou actividade do microbioma intestinal, favorecendo o crescimento de bactérias anaeróbicas benéficas do intestino, sobretudo do cólon, particularmente das bifidobactérias e dos lactobacilos, em detrimento das bactérias nocivas, contribuindo assim para melhorar o estado de saúde e bem-estar do hospedeiro.

Para serem consideradas pré-bióticos, as referidas substâncias deverão obedecer aos seguintes requisitos:

  • Não podem ser hidrolisadas ou absorvidas no tracto gastrointestinal superior;
  • Devem funcionar como substracto selectivo para bactérias específicas do cólon, tais como Lactobacillus e Bifidobacterium spp;
  • Devem ter a capacidade para alterar o microbioma intestinal para um padrão mais benéfico para o indivíduo.

Assim, qualquer componente alimentar que chegue ao cólon na sua forma inalterada é potencialmente um pré-biótico. Ao contrário dos probióticos, muitos pré-bióticos são utilizados como ingredientes alimentares (em bolachas e cereais, por exemplo).

Principais efeitos e utilidade na prática clínica

Com base nos efeitos benéficos do leite materno, os pré-bióticos mais estudados em larga escala são os galacto-oligossacáridos (GOS) e os fruto-oligossacáridos (FOS). Na última década foram muitos os avanços realizados nesta área, tendo sido demonstrados os seguintes efeitos atribuídos à mistura GOS/FOS:

  1. Efeito de biomassa – A presença de oligossacáridos em grande quantidade no intestino distal promove o desenvolvimento selectivo da flora bifidogénica, reduzindo a percentagem de BacteroidesClostridium e Fusobacterium. O mestabolismo fermentativo determina a produção de ácidos gordos de cadeia curta (AGCC), aminoácidos, poliaminas, factores de crescimento, vitaminas e antioxidantes, compostos que participam em inúmeros processos metabólicos. Os AGCC têm ainda um efeito trófico na mucosa intestinal, diminuem a reabsorção de água, reduzem o pH intestinal e ajudam a regular o crescimento bacteriano;
  2. Efeito de fibra – Como atingem grandes concentrações no cólon, aumentam a massa fecal e o número de dejecções;
  3. Efeito imunomodulador – Os AGCC, tal como o butirato, reduzem as necessidades de glutamina por parte do epitélio e mantêm a imunocompetência do sistema imune intestinal;
  4. Efeito anti-infeccioso – Este efeito pode ser conseguido através de mecanismos directos e indirectos. Os primeiros estão relacionados com a estrutura química dos oligossacáridos, que é semelhante à dos locais de ligação das bactérias ao epitélio intestinal. Como resultado, actuam competitivamente como receptores solúveis desprovidos de função, bloqueando a acção dos agentes patogénicos, salientando-se que este efeito protector parece existir também no tracto respiratório superior. O mecanismo indirecto compreende a redução do pH intestinal, o que dificulta o crescimento bacteriano.

FIGURA 1. Estrutura química de oligossacáridos pré-bióticos



Os efeitos descritos, resultante de investigação em centros devotados à nutrição pediátrica conduziram ao desenvolvimento de uma mistura de fibras GOS/FOS como pré-bióticos para enriquecer as fórmulas infantis com 0,8g /dL de oligossacáridos (GOS/FOS na proporção de 9:1). (Figura 1)

A Comissão Científica dos Alimentos da Comissão Europeia aceitou em Dezembro de 2001 a utilização de GOS/FOS como ingredientes nas fórmulas de continuação, numa concentração referida.

A eficácia pré-biótica está relacionada com a maior ou menor capacidade de estimular o crescimento de estirpes benéficas para o microbioma intestinal, sobretudo do cólon, em detrimento de outras potencialmente patogénicas.

Quanto à tolerância dos pré-bióticos existem diversos estudos que demonstram a inocuidade de oligossacáridos GOS/FOS em doses recomendadas e o normal crescimento e desenvolvimento de lactentes alimentados com fórmulas com este tipo de suplemento funcional.

Outros exemplos de pré-bióticos frequentemente utilizados na prática clínica são a inulina e a lactulose; esta última é um dissacárido sintético utilizado designadamente em situações de obstipação e encefalopatia hepática.

Simbióticos

Definição, efeitos e utilização prática

Os simbióticos são combinações de prebióticos e probióticos, pelo que os seus efeitos benéficos se prendem com a acção concertada de ambos.

Este conceito é aplicado na prática às fórmulas infantis, designadamente às de continuação. Assim, as fórmulas de continuação com simbióticos contêm:

  • Um inóculo de bactérias produtoras de ácido láctico e leveduras que chegam ao intestino delgado e ao cólon onde desenvolvem uma interacção benéfica com a microflora intestinal – é o probiótico.
  • Um substrato não digerível nem metabolizável de oligossacáridos neutros que serve de nutriente para certos microrganismos benéficos da microflora intestinal, sobretudo para as bifidobactérias e para os lactobacilos, promovendo o crescimento dos mesmos – é o pré-biótico.

Desta combinação resulta uma fórmula com simbiótico. O simbiótico fornece, assim, microrganismos benéficos para um microbioma intestinal mais saudável e, simultaneamente, os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento e actividade.

Neste momento, gera-se a dúvida sobre o que será mais importante:

  1. Se reforçar o microbiota intestinal benéfico, introduzindo através da fórmula os microrganismos benéficos como as bifidobactérias, os lactobacilos e as leveduras;
  2. Se fornecer oligossacáridos naturais que, servindo de nutrientes, estimulam o desenvolvimento daqueles microrganismos benéficos da microflora intestinal;
  3. Se combinar o probiótico e o pré-biótico para obter um simbiótico com efeito sinérgico e consequente aumento da eficácia das bifidobactérias e dos lactobacilos.

Os conhecimentos relativos ao mecanismo de acção dos probióticos e dos pré-bióticos, embora bastante avançados, são ainda restritos. São necessários mais estudos com rigor científico para determinar a sua verdadeira eficácia e segurança.

Em suma, a possibilidade de aumentar a eficácia dos probióticos pela sua associação aos pré-bióticos parece vantajosa, mas deve ser mais averiguada. A suplementação das fórmulas com os mesmos tem sido proposta como meio de reconstituição do microbioma intestinal e, assim, recriar o estado ecológico protector do intestino tanto quanto possível próximo do dos bebés alimentados ao peito.

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LEITES E FÓRMULAS INFANTIS

Importância do problema

Existe uma grande variabilidade na composição do leite de cada espécie, que pretende dar resposta às particularidades do crescimento e desenvolvimento do recém-nascido até à aquisição de uma capacidade própria de alimentação e de sobrevivência, na ausência da sua mãe.

Os leites dos mamíferos em geral, e o leite de mulher em particular, contêm todos os nutrientes necessários ao crescimento dos seus recém–nascidos, bem como todos os mediadores de crescimento e de diferenciação celular e ainda múltiplos factores de defesa contra antigénios e agentes infecciosos. O leite de cada espécie veicula igualmente hormonas, enzimas e oligossacáridos.

O leite materno, tal como foi referido no capítulo anterior, constitui indubitavelmente o alimento ideal nos primeiros meses de vida, fornecendo nas proporções adequadas todos os nutrientes necessários, nomeadamente proteínas, gorduras, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e água bem como as substâncias bioactivas desejáveis para o adequado crescimento do lactente. Reconhece-se, contudo, que muitos dos constituintes nutricionais ou imunológicos do leite materno se encontram ainda por estudar, ou mesmo por descobrir.

Quando não é possível o aleitamento materno, dispõe-se hoje de alternativas nutricionalmente seguras, as fórmulas infantis (FI), sendo que a composição do leite materno constitui o guia para a sua composição. Os indicadores de referência são o crescimento somático, bem como marcadores biológicos, proteicos e lipídicos entre outros, relativamente a lactentes saudáveis alimentados exclusivamente com leite materno (4-6 meses).

Neste capítulo procede-se a uma abordagem das FI, tendo em consideração as recomendações e as FI que se encontram disponíveis no mercado português.

Classificação dos leites e fórmulas infantis

Tendo por base a lei interna do país, e de acordo com as Directivas Comunitárias, são estabelecidas algumas definições consideradas importantes para uma correcta compreensão e prescrição, a saber:

  1. A fonte proteica deverá estar claramente definida. A classificação de “Leite” depende da circunstância de a fonte proteica estar na dependência exclusiva do leite de um mamífero, sendo permitida a utilização da proteína do leite de vaca ou de cabra. Quando a fonte proteica é de origem vegetal (soja, arroz) deverá designar-se por “Fórmula”. Importa, no entanto, ter em consideração que o termo “Fórmula” pode ser aplicado a um leite, não sendo verdade o inverso.

  2. Classificação dos leites tendo em conta o grupo etário. Existem actualmente três grandes grupos de FI: as FI para lactente (0-36 meses), as FI de transição (6-36 meses) e as FI de continuação (mais de 12 meses). Para um lactente saudável que necessite de suplementar e/ou substituir o leite materno por uma FI, deverá sempre recomendar-se uma FI standard, muito embora em cada um dos grupos existam vários tipos de FI, adequados a diversas situações clínicas.

  3. Definição e indicações. Leites e Fórmulas para lactentes são géneros alimentícios com indicações nutricionais específicas, destinados a lactentes durante os primeiros 6 meses de vida e que satisfaçam totalmente as necessidades nutricionais deste grupo etário.
    Leites e Fórmulas de transição são géneros alimentícios com indicações nutricionais específicas, destinados a crianças com mais de 6 meses e até aos 12, eventualmente 36 meses, que constituam o componente líquido principal de um regime progressivamente diversificado deste grupo etário.
    As fórmulas para lactentes, recomendadas desde o nascimento, podem também ser satisfatoriamente utilizadas em lactentes até aos 12-36 meses, desde que sejam enriquecidas com ferro, requisito que é cumprido em todas as FI para lactente comercializadas em Portugal.

  4. Regulamentação da composição. Todos os leites e fórmulas têm uma composição relativa em macro e micronutrientes que respeita os valores mínimos e máximos recomendados pela União Europeia (EU) para os diferentes grupos de leites (Legislação CEE 1999, 2000 e 2013). Para além da Comissão da Comunidade Europeia, também o Comité de Nutrição da European Society of Paediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) tem publicadas as recomendações respeitantes à composição das fórmulas para lactentes e das fórmulas de transição.
    Quer para as fórmulas para lactente, quer para as de transição, o valor energético estabelecido oscila entre 60 e 70 Kcal/ 100 ml.

Preparações à base de proteínas do leite de vaca

Proteínas

O teor proteico oscila entre 1,8 e 3,0 g/ 100 kcal, com uma relação caseína/proteínas solúveis inferior a 1 e, portanto, similar à observada no leite maduro de mulher (45/55).

Desde há bastante tempo que se tem alertado para o teor excessivo de proteínas nas FI. Na realidade, a utilização de leites para lactentes com um baixo teor proteico (1,8 g/ 100 Kcal) e elevada qualidade da proteína (enriquecimento em lactalbumina), resulta em indicadores plasmáticos do metabolismo proteico mais próximos dos registados em lactentes alimentados com leite materno, independentemente da relação caseína/ lactoproteínas do soro. Paralelamente, a constactação da redução das necessidades em proteína a partir do 4º – 6º mês (RDA<> 1,2 g/kg/d) aliada à demonstração da segurança nutricional bem como da redução do risco de obesidade e doença cardiometabólica mais tarde na vida, tem conduzido a investigações recentes visando a redução do teor proteico das FI de transição, bem como tem suportado a recomendação da manutenção de uma FI para lactente até à introdução do leite de vaca em natureza (nunca antes dos 12 e preferencialmente após os 24-36 meses).

Importa lembrar que o perfil de aminoácidos da proteína bovina é claramente diferente do da proteína humana. Tais diferenças repercutem-se nos níveis de aminoácidos em lactentes alimentados com leites com predomínio de proteínas do soro (treonina, valina, leucina, isoleucina, metionina) ou de caseína (tirosina, fenilalanina, valina, metionina) com valores superiores aos registados em lactentes alimentados com leite materno. A indústria tem procurado corrigir estes desequilíbrios ajustando a composição dos leites naqueles aminoácidos.

Também o aminoacidograma e a relação entre aminoácidos essenciais e aminoácidos totais de lactentes alimentados com leite de baixo teor proteico são similares ao observado nos alimentados com leite materno. No entanto, apesar destas similitudes, registam-se algumas diferenças relativas ao teor plasmático de alguns aminoácidos, quer por excesso (fenilalanina, metionina, isoleucina e citrulina), quer por defeito (triptofano, taurina). Tais diferenças estão também dependentes da relação entre a caseína e as lactoproteínas do soro naquelas fórmulas, bem como do perfil qualitativo destas, o que tem levado a indústria a reduzir o teor de β-lactoglobulina e a aumentar o conteúdo em α-lactalbumina, de modo a ultrapassar alguns desequilíbrios no perfil plasmático de aminoácidos, o que permitiu aumentar o teor de triptofano, precursor da serotonina, neurotransmissor com papel importante nos sistemas de alternância fome/saciedade e de sono/vigília.

Como referido, leites com teores ainda mais reduzidos de proteínas (< 1,8 g/ 100 Kcal) têm também sido ensaiados, alertando-se, no entanto, para o risco nutricional que tais fórmulas acarretam no primeiro semestre de vida, muito embora a sua possível adequação após este período.

Desde há alguns anos que algumas FI são enriquecidas com nucleótidos. Os nucleótidos, considerados ingredientes funcionais, representam 0,1 a 0,15% do conteúdo de nitrogénio do leite materno e, ainda que os estudos não sejam consensuais, para além do seu papel na síntese de DNA e RNA, têm-lhes sido atribuídas algumas funções benéficas, nomeadamente a nível imunológico, promovendo a maturação dos linfócitos T. Outras vantagens descritas dependentes da inclusão de nucleótidos nas fórmulas (aumento da biodisponibilidade do ferro, modificação da flora intestinal, mais favorável metabolismo das lipoproteínas e melhor aproveitamento metabólico dos ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa – AGP-CL, ou LC PUFA na nomenclatura inglesa), ainda não estão amplamente comprovadas.

Hidratos de carbono e pré-bióticos

Relativamente aos hidratos de carbono, as FI podem ser compostas exclusivamente por lactose ou por uma associação de vários açúcares.

Têm também surgido leites para lactentes e de transição que incluem oligossacáridos (pré-bióticos) na sua composição com provável efeito benéfico. Refira-se que o leite materno tem teores elevados de oligossacáridos (2,2 e 1,2 g/dl respectivamente no colostro e no leite maduro), não havendo objecções à inclusão até 0,8 g/100 ml, de galacto-oligossacáridos (GOS – 90%) e fruto-oligossacáridos (FOS – 10%) nas fórmulas para lactentes e de transição.

Lípidos

Dada a limitada capacidade de síntese de AGP-CL pelo lactente nas primeiras semanas de vida, as diferenças entre o suprimento naqueles ácidos gordos nos alimentados com leite materno relativamente aos alimentados com leite convencional sem AGP-CL, reflectem-se na composição dos lípidos plasmáticos, da membrana do eritrócito, da retina e do cérebro. Considerados ingredientes opcionais, actualmente é recomendada a sua adição às FI para lactente, suportada em alegação nutricional e para a saúde, nomeadamente do ácido araquidónico (AA) e ácido docosa-hexanóico (DHA) nas porporções, respectivamente, de pelo menos 0,35 e 0,2 do teor total de ácidos gordos.

A inclusão de triglicéridos incorporando o ácido palmítico, predominantemente na posição β do glicerol, parece ter efeitos benéficos significativos relativos à absorção de gordura e cálcio em recém-nascidos de termo saudáveis.

Minerais

São considerados “Substâncias nutritivas”. O teor de sódio tal como de todos os outros minerais (potássio, cloro, magnésio, zinco, cobre, iodo, selénio, manganês e flúor) é sobreponível nas fórmulas para lactente e de transição.

No que respeita ao ferro, este é considerado um nutriente essencial, com importante papel fisiológico ao longo de toda a vida, particularmente nos primeiros meses/anos, estando a sua carência, com ou sem anemia, associada a compromisso do desenvolvimento cognitivo e motor. A elevada prevalência de anemia em lactentes alimentados com fórmula vs leite materno, bem como a baixa biodisponibilidade do ferro no leite de vaca, levou à recomendação de suplementação das fórmulas infantis, particularmente após os 4-6 meses de vida.

Ainda a propósito do ferro, importa referir que: – nas fórmulas para lactente e de transição comercializadas em Portugal, os valores de suplementação são sobreponíveis; – nas fórmulas com proteína de soja, dado que a presença de ácido fítico inibe a absorção de ferro, a referida suplementação deve ser superior.

A relação cálcio/fósforo é determinante para a formação da massa óssea e estrutura dentária, para a condutibilidade neuronal e contracção muscular (o cálcio), e para a constituição das membranas celulares e de algumas enzimas (o fósforo). Concluiu-se a este propósito que uma relação superior a 1 e inferior a 2 é mais efectiva. No entanto, nas fórmulas com proteína de soja, a menor biodisponibilidade do fósforo obriga a um ajuste em alta para o enriquecimento neste mineral.

Alguns leites são suplementados com selénio, um importante oligoelemento envolvido em sistemas enzimáticos com acção antioxidante. Tal reforço, particularmente importante nos leites para recém-nascidos pré-termo e imprescindível em fórmulas com proteína de soja (pela importância da incorporação nas membranas celulares), é feita sob a forma de selenito ou de selenato, com similar taxa de retenção de selénio pelo organismo.

Vitaminas

Tal como os minerais, as vitaminas são consideradas “Substâncias nutritivas” e a sua inclusão nas FI é cientificamente suportada pelo grupo de peritos da ESPGHAN.

O leite materno é rico em vitamina A, suprindo as necessidades do lactente até à diversificação alimentar; contudo, os níveis plasmáticos de β-caroteno e de outros carotenóides decresce rapidamente em lactentes alimentados com fórmula. O β-caroteno, susceptível de ser metabolizado em vitamina A, e com importante acção antioxidante, tem sido incluído nalguns leites.

No que toca à vitamina D existe fundamento para a sua adição (sob a forma de vitamina D3) às FI.

Quanto à adição de vitamina E, importante antioxidante biológico lipossolúvel, existe cabimento particularmente nas fórmulas enriquecidas com ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa (LC-PUFA). Com efeito, a adição de LC-PUFA aos leites aumenta o risco potencial de agressão oxidante. (ver adiante)

Probióticos

Existem no mercado leites para lactentes com a adição de probióticos (microrganismos vivos que melhoram o equilíbrio do microbioma intestinal).

Trata-se de espécies bacterianas particulares não patogénicas, produtoras de ácido láctico, com grande afinidade para a membrana apical do epitélio intestinal e com alguns efeitos benéficos para a saúde. Entre estes, destacam-se efeitos a nível imunofisiológico intestinal com repercussão favorável nalgumas patologias infecciosas e alérgicas, bem como a nível da biodisponibilidade de minerais, e ainda, a nível sistémico, sobre o metabolismo lipídico, pressão arterial e patologia neoplásica. (ver próximo capítulo)

A sua inclusão nas FI é facultativa, mas não recomendada, pela ausência de comprovada segurança em FI utilizadas em lactentes com menos de 4 meses, prematuros ou doentes.

Fórmulas à base de proteínas de soja

Não devem ser entendidas como uma FI standard, pelo que não são a 1ª opção para alimentar um RN/lactente saudável. De acordo com o grupo de peritos da ESPGHAN, não é aconselhada a sua utilização na prevenção de patologia alérgica e não devem ser usadas para tratar a alergia à proteína do leite de vaca (APLV), pelo menos durante o 1º semestre de vida.

Relativamente à sua composição, e no que respeita aos glúcidos, estas fórmulas são isentas de lactose e incluem uma mistura de açúcares, preferencialmente polímeros de glicose. A proteína de soja tem menor valor biológico que a proteína do leite de vaca e, de forma a melhorar o seu valor nutricional, estas fórmulas são enriquecidas em metionina e L-carnitina, devendo esta última estar presente em valor superior a 7,5 mmol/100 kcal. A composição relativamente aos restantes nutrientes segue as mesmas directivas definidas para os leites para lactentes, excepto no que reporta ao ferro e ao fósforo.

Aponte-se que o teor de fitato das fórmulas de soja, ou a sua relação molar com o zinco, interfere com a absorção deste oligoelemento; por isso, é desejável a remoção total de fitato destas fórmulas.

A suplementação das fórmulas de soja com selénio proporciona concentrações plasmáticas e eritrocitárias no lactente mais adequadas que as ocorridas com fórmulas não suplementadas.

Estudos realizados registaram diferenças quanto à eficácia nutricional de diferentes fórmulas hidrolisadas de proteínas do leite de vaca e de soja: valores superiores de aminoácidos não essenciais, como a glicina e a hidroxiprolina ao 1 mês de vida, em lactentes alimentados com hidrolisado de soja. Mais estudos serão, pois, necessários para chegar a conclusões definitivas relativamente à segurança nutricional destas fórmulas, nomeadamente no que reporta à acção pró-estrogénica dos fitoesteróides da soja no crescimento e saúde futura.

Fórmulas à base de proteínas de arroz

Mais recentemente foi comercializada uma FI com proteína de arroz extensamente hidrolisada (2,6 g/100 kcal), com um perfil de aminoácidos semelhante ao do leite materno e que apresenta, como vantagem relativamente à proteína de soja, um baixo teor em ácido fítico e a ausência de fitoestrogénios.

Muito embora não existam de momento estudos de segurança nutricional que suportem a sua recomendação (estudos de curta duração e tamanho amostral reduzido), a sua utilização está associada a um padrão de crescimento sobreponível ao de lactentes alimentados com FI com proteína do leite de vaca.

É uma fórmula sem lactose que, pelas suas características, poderá ser utilizada em situações de alergias múltiplas, nomeadamente à proteína do leite de vaca e à lactose. Recentemente a ESPGHAN alertou para o risco para a saúde, na dependência da contaminação do arroz com arsénio.

Leites de transição

Diferem do leite de vaca essencialmente no conteúdo proteico, em ferro (20 vezes superior), gordura, hidratos de carbono, outros minerais e vitaminas. Contêm, de uma forma geral, um teor mais elevado de proteínas e um enriquecimento em minerais e vitaminas, praticamente sobreponível ao das FI para lactentes.

Muito embora, de acordo com o Scientific Committee on Food – SCF, tenha sido reduzido o teor proteico mínimo destas fórmulas para 1,8 g/ 100 kcal, valor idêntico ao anteriormente já estabelecido para os leites para lactentes, na maioria da FI de transição os valores são mais elevados, condicionando, nesta fase de diversificação alimentar e de menor velocidade de crescimento, uma sobrecarga metabólica com possíveis repercussões para a saúde.

A relação caseína/lactoproteínas do soro é superior a um, e próxima da do leite de vaca (80/20). O seu maior teor em caseína, ao condicionar um esvaziamento gástrico mais lento, permite uma maior saciedade.

Não é exagero realçar a total inadequação da utilização do leite de vaca inteiro nesta idade, prática ainda frequente entre nós e noutros países europeus. Na realidade, o suprimento proteico médio de lactentes alimentados com leite de vaca é 20 a 100% superior à de lactentes alimentados com leites para lactentes ou com leites de transição, e é 2 a 3 vezes superior ao definido como “nível de segurança da ingestão proteica”.

Por outro lado, a utilização do leite de vaca na alimentação do lactente constitui um factor de risco importante de anemia por carência de ferro, situação ainda frequente, mesmo nos países mais industrializados. Por seu turno, os leites para lactentes, como oportunamente foi referido, podem ser utilizados até aos 12-36 meses, desde que sejam adequadamente enriquecidos em ferro, facto verificado em FI comercializadas no nosso país.

Alguns leites de transição são enriquecidos com probióticos; outros há que são também suplementados em selénio, em β-caroteno e em nucleótidos.

Leites “de crescimento” ou de continuação

Os chamados leites de “crescimento” ou de continuação, qualitativamente sobreponíveis aos leites de transição, são destinados a crianças na faixa etária dos 1 aos 3 anos. Estes leites oferecem relativamente ao leite de vaca claras vantagens nutricionais, dado o seu menor teor proteico, um maior valor relativamente a alguns oligoelementos (ferro e zinco) e algumas vitaminas, nomeadamente vitamina D, para além de conterem nutrientes opcionais e funcionais (pré- e pró-bióticos, nucleótidos e ácidos gordos essenciais).

Existem no mercado sob a forma de pó (para ser reconstituído com água) ou na forma líquida, já preparado para ser consumido, sem grandes diferenças entre elas no que respeita à composição nutricional.

Outros leites

Leites acidificados

O aparecimento do microbioma no tubo digestivo do recém-nascido depende essencialmente das bactérias procedentes da mãe e do meio ambiente. No lactente alimentado com leite materno, após um período inicial de predomínio de colibacilos, as bifidobactérias passam a predominar, contrariamente ao que ocorre em lactentes alimentados com leite/fórmula, em que o microbioma é mais heterogéneo.

Mais do que a composição da preparação, parece ser o pH e o poder tampão do leite/ fórmula e das fezes que determinam a composição do copromicrobioma, sendo o escasso poder tampão do leite materno o responsável pela criação de um meio intestinal ácido favorável ao crescimento de bifidobactétrias, e desfavorável aos germes potencialmente patogénicos.

Sendo a sua composição muito parecida com a do leite para lactentes, tais leites são caracterizados pelo facto de serem enriquecidos em bífidus, e de na sua composição entrarem fermentos lácticos, factores que favorecem a presença de bifidobactérias no microbioma intestinal do lactente.

Por outro lado, esta acidificação tem a vantagem de acelerar a digestão das proteínas, aumentar a acção da pepsina, favorecer a absorção do cálcio e, transformando a lactose restante em ácido láctico, criar condições para o desenvolvimento de um microbioma com bifidobactérias predominantes.

Embora se trate de leites com uma mistura de açúcares (maltodextrina e amido) apresentam um predomínio de lactose e são enriquecidos em α-lactalbumina, zinco, selénio e vitamina A, visando um efeito imunomodulador a nível intestinal. Tais particularidades tornam estas FI uma opção em situações de cólicas do lactente, obstipação e flatulência, bem como, muito embora sem especificação para tal, no decurso de diarreias.

Leites com hidrólise da proteína

1. Leites parcialmente hidrolisados

Os leites parcialmente hidrolisados, corrente e erradamente designados de hipo-alergénicos (HA), são leites em que as proteínas, embora hidrolisadas, contêm ainda fragmentos de dimensão suficiente para induzir reacção alérgica em crianças sensibilizadas.

As proteínas são parcialmente hidrolisadas pela acção combinada da hidrólise enzimática e do tratamento térmico a altas temperaturas, permitindo a degradação dos péptidos até um peso molecular de 5.000 Daltons. A sua composição relativamente aos restantes nutrientes é muito semelhante à do leite com proteínas não modificadas.

Estes leites não são, de facto, verdadeiramente hipo-alergénicos, já que não garantem ausência de reacções em, pelo menos, 90% dos lactentes ou crianças que os tomam, com comprovada APLV. Salienta-se que a Directiva 96/4/EC de 16 de Fevereiro de 1996 exige dados objectivos e cientificamente comprovados da redução do risco de alergia às proteínas do leite para que seja utilizada a terminologia de fórmulas lácteas hipo-alergénicas (ou hipo-antigénicas).

Não sendo possível o aleitamento materno, segundo as recomendações da European Society for Paediatric Allergology and Clinical Immunology (ESPACI) e da European for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN), para a prevenção das reacções adversas às proteínas do leite de vaca em lactentes com risco hereditário documentado de atopia (progenitor ou irmão) é recomendada a alimentação com uma fórmula de mais reduzida alergenicidade: uma fórmula HA (parcialmente hidrolisada) ou uma fórmula extensamente hidrolisada, pelo menos até aos 6 meses de vida.

De facto, alguns estudos, entre os quais há a salientar o GINIStudy, evidenciaram um efeito preventivo variável na asma, eczema ou rinite alérgica até à adolescência (15 anos) em lactentes de risco (história familiar positiva), através da intervenção precoce com o uso de diferentes fórmulas hidrolisadas. A diferença de resultados depende do grau de hidrólise e, também, do tipo das proteínas hidrolisadas.

2. Leites extensamente hidrolisados

Estudos prospectivos estimam em 2-3% a incidência de alergia às proteínas do leite de vaca durante a infância; contudo, a mesma pode ocorrer, mesmo em lactentes amamentados exclusivamente com leite materno, com uma incidência menor (cerca de 0,5%).

Nestes leites, as proteínas do leite de vaca são extensamente hidrolisadas por tecnologia complexa (a maior parte do nitrogénio encontra-se na forma de aminoácidos e péptidos inferiores a 1500 Daltons). Assim, é marcadamente reduzida a alergenicidade, embora não totalmente eliminada, dado que existem certos antigénios de pesos moleculares <3 000 D que são resistentes às técnicas aplicadas.

De acordo com estudos realizados, em termos ideais as fórmulas lácteas hidrolisadas devem conter péptidos, tão curtos quanto possível para diminuir a alergenicidade das proteínas, e tão longos quanto possível para melhorar o seu valor nutricional. (consultar Parte Imunoalergologia)

Devendo ser entendidos como leites terapêuticos, a sua principal indicação é o tratamento da alergia comprovada à proteína do leite de vaca, não sendo de excluir a sua recomendação na prevenção da expressão de doença alérgica (asma, eczema ou dermatite atópica), em crianças com história familiar de atopia.

Dietas baseadas em proteínas não modificadas do leite de outras espécies (ex. cabra e ovelha) ou as FI com proteína de soja, não devem ser utilizados no tratamento da alergia às proteínas do leite de vaca (APLV).

“Dieta” semi-elementar

Em lactentes com alergia às proteínas do leite de vaca ou com reacções adversas a outras proteínas alimentares e síndromas de má-absorção, deve utilizar-se uma fórmula extensamente hidrolisada ou mistura de aminoácidos, sem lactose e com triglicéridos de cadeia média; é este o conceito de “dieta” semi-elementar.

Excepcionalmente, certas crianças podem apresentar alergia a estes hidrolisados, ou mesmo intolerâncias a múltiplas proteínas da dieta, preconizando-se nestes casos uma fórmula contendo aminoácidos livres.

Leites anti-regurgitação

Importa antes de mais reconhecer que as FI anti-regurgitação (AR) não são fórmulas standard, devendo a sua prescrição ser parcimoniosa, suportada numa clínica eniquívoca de refluxo gastresofágico patológico e mantida durante o mínimo tempo possível.

O refluxo gastresofágico fisiológico deve ser tratado com medidas posturais e redução do volume das mamadas. Em caso de refluxo patológico, o tratamento médico poderá incluir, para além da terapêutica farmacológica, a utilização de fórmulas lácteas industrialmente espessadas (AR).

A composição destes leites aproxima-se globalmente da dos leites para lactente ou de transição, residindo a diferença na sua composição glucídica. O objectivo é atribuir-lhe a capacidade de espessamento, o que é conseguido com a adição de amido de milho, ou amido de batata ou farinha de semente de alfarroba. A farinha de alfarroba (polímeros de glúcidos não metabolizáveis), acalórica, é resistente à hidrólise digestiva, podendo ocasionalmente provocar sintomatologia dispéptica, tal como diarreia, cólicas e flatulência. Os amidos de milho, de arroz ou de batata, relativamente fluidos em pH neutro, tornam-se extremamente viscosos em pH ácido a 37ºC (proporcionado pelo meio gástrico), sendo bem tolerados.

O teor mais elevado em hidratos de carbono destes leites, e menor em gordura, acelera o esvaziamento gástrico, o que também contribui para a diminuição dos episódios de refluxo.

Para além da eficácia anti-refluxo importa também que estes leites sejam seguros do ponto de vista nutricional. Tem sido discutida a interferência dos diferentes espessantes utilizados pelas fórmulas anti-refluxo com a biodisponibilidade dos principais macro e microminerais. A biodisponibilidade do cálcio, ferro e zinco parece superior nas fórmulas espessadas com hidratos de carbono digeríveis comparativamente às espessadas com hidratos de carbono não digeríveis. Regista-se também uma diminuição mais evidente da absorção de minerais por fibras solúveis nos leites com predomínio de caseína relativamente às lactoproteínas do soro. Tais factos levam a que a sua recomendação, como referido, deva ser bem fundamentada na clínica, e a sua utilização deverá ocorrer durante o menor tempo possível.

Leites para recém-nascidos pré-termo (PT) ou de baixo peso (BP), com ou sem restrição de crescimento intra-uterino (RCIU)

O recém-nascido (RN) pré-termo (PT) é caracterizado por imaturidade das suas funções vitais e dos sistemas reguladores (enzimáticos, excretores, etc.) o que o torna muito mais sensível a situações de carência ou de sobrecarga.

O perfil de crescimento é claramente diferente do registado no recém-nascido de termo, verificando-se um crescimento de recuperação particularmente evidente nos primeiros 2-3 meses de vida.

Muito embora o leite de mãe de RN-PT esteja adaptado às necessidades destes recém-nascidos, dado ser mais rico em proteínas e minerais que o leite de mãe de recém-nascido de termo, necessita, todavia, de ser suplementado.

Na ausência de leite materno, os leites para RN-PT, ou para recém-nascidos de baixo peso, deveriam garantir um crescimento semelhante ao ocorrido in utero. A densidade energética (68–80 Kcal/100 ml) e o teor proteico destes leites é mais elevado (cerca de 3,0 g/100 Kcal) do que o observado nos leites para lactentes, ocupando as proteínas solúveis um lugar maioritário de forma a ser obtido o melhor coeficiente de utilização digestiva possível.

Têm sido utilizados leites para recém-nascidos pré-termo (RN-PT) com proteína parcialmente hidrolisada ou extensamente hidrolisada. Embora não dispondo de resultados de estudos prospectivos suficientemente prolongados, os resultados de algumas investigações têm apontado no sentido de não se registarem diferenças relativamente ao crescimento, marcadores do metabolismo proteico e perfil plasmático de aminoácidos entre RN-PT alimentados, quer com fórmula hidrolisada, com fórmula convencional para PT, quer com leite materno suplementado ou enriquecido. Todavia estes resultados não são totalmente consensuais.

Nos RN-PT e nos com RCIU as reservas de ácido araquidónico (AA) e de ácido docosa-hexanóico (DHA) são muito reduzidas. Acresce ainda o facto de aqueles recém-nascidos não terem capacidade enzimática para a “elongação” e dessaturação dos ácidos linoleico e α-linolénico naqueles ácidos gordos polinsaturados de cadeia longa (AA e DHA). De acordo com as recomendações de um grupo de peritos, as fórmulas para RN-PT devem incluir, pelo menos, 0,35% de DHA e 0,4% de AA relativamente ao teor total de ácidos gordos. A suplementação dos leites para RN-PT com AGP-CL, na proporção existente no leite materno, resulta num perfil plasmático e na incorporação nos fosfolípidos da membrana celular semelhante ao registado com lactentes alimentados com leite materno.

Importa referir que a adição de AGP-CL aos leites aumenta o risco potencial de agressão oxidante. Sendo a vitamina E o principal antioxidante biológico, torna-se vital a existência de um teor adequado daquela vitamina nestas fórmulas lácteas, cujo valor é definido tendo por base o teor de ácidos gordos poli-insaturados. O respeito por este pressuposto poderá justificar a ausência de efeitos adversos relativamente à biodisponibilidade dos aminoácidos de leites enriquecidos com AGP-CL.

De igual modo, um teor equilibrado em AA e DHA e uma adequada protecção antioxidante, não interfere com o crescimento nem tem outros efeitos adversos.

Cerca de 20% do seu teor lipídico deverá ser suprido sob a forma de triglicéridos de cadeia média (TCM), os quais são rapidamente metabolizados e preferencialmente utilizados como fonte energética.

Tendo em conta a limitada actividade lactásica nos RN-PT, parte da lactose destes leites é substituída por polímeros de glicose (5 a 10 moléculas de glicose), que são clivados por acção da maltase ou glucoamilase, esta última com uma elevada actividade já pelas 28 semanas de gestação.

O conteúdo em minerais está aumentado, nomeadamente em sódio, fósforo e cálcio, permitindo assim uma maior retenção cálcica e uma melhor absorção das gorduras.

Tem sido advogado o uso de fórmulas especiais para lactentes com antecedentes de baixo peso de nascimento e destinados ao período que se segue à alta hospitalar: as chamadas PDF ou “Post-Discharge Formula”. São fórmulas com uma densidade proteica mais elevada e com um maior teor em macrominerais, nomeadamente em cálcio.

Embora nalguns estudos se tenha registado um efeito benéfico no crescimento, particularmente nos primeiros meses de vida, os estudos não são consensuais no tocante, quer ao crescimento estaturoponderal, quer à composição corporal nos primeiros 18 meses de vida. De igual modo não se observaram diferenças relativamente a nível comportamental e de neurodesenvolvimento, registados também até aos 18 meses, em lactentes com fórmulas PDF relativamente a fórmulas convencionais.

A análise dos resultados conhecidos permitiu concluir que os dados até à data são limitados e não ligitimam a recomendação de fórmulas com elevado teor proteico-energético relativamente às fórmulas convencionais no momento da alta em RNBP.

Leites sem lactose

A lactose é um dissacárido formado por glicose e galactose, necessitando de ser enzimaticamente degradado nos seus açúcares simples para ser absorvido. A dissacaridase, lactase existente nas microvilosidades dos enterócitos maduros das vilosidades intestinais, pode ser deficitária por imaturidade, ou por destruição dos enterócitos maduros no decurso de gastrenterite aguda.

Leites sem lactose, constituídos a partir do leite de vaca, apresentam apenas uma modificação da fracção glucídica, em que a lactose é substituída por glicose ou por dextrinomaltose. Estão indicados prioritariamente em situações de défice primário de lactase, e em situações de diarreia aguda. Salienta-se uma menor osmolaridade quando comparados com os leites para lactentes e de transição, sendo qualitativamente adequados às necessidades do lactente, e eficazes e seguros em termos nutricionais. Alguns são suplementados com nucleótidos e com β-carotenos.

Aspectos práticos relacionados com a alimentação com leite não materno

O número de refeições lácteas diárias, desde o nascimento até os 12 meses, varia entre 6-8 ou mais (de início) até somente 2 ou 3 quando o bebé completa 1 ano.

O intervalo entre refeições varia de bebé para bebé, oscilando entre as 3 e as 4 horas.

Nos primeiros 2 meses de vida as refeições são tomadas ao longo das 24 horas; ulteriormente, à medida que o volume por refeição aumenta, a criança, adaptando-se aos hábitos da família, manifesta tendência para dormir mais horas seguidas de noite, período em que somente se alimenta se acordar.

No que respeita à quantidade de leite por biberões, sendo prescrito o volume de água em função das necessidades, e procedendo à mistura do “leite” em pó com a água (concentração padrão de uma medida rasa para 30 ml de água ou ~15%), em geral não se ultrapassa 180 (excepcionalmente 210) mL /biberão.

Após o início da alimentação diversificada, os cálculos em volume total/ 24 horas contemplam a ingestão de leite, acrescida da ingestão de alimentos semi-sólidos.

O volume de lácteos ingerido diariamente deverá rondar os 500-750 mL desde o início da diversificação alimentar até aos 12 meses, decrescendo após o 1º ano para 300-500 mL/dia. Volumes superiores não apresentam vantagens; pelo contrário, possuem um efeito anorexiante selectivo, comprometem a absorção de alguns micronutrientes, estando associados a maior risco de obesidade.

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ALIMENTAÇÃO COM LEITE MATERNO

“O leite de mulher tem uma composição ideal: fornece cerca de 180 elementos em equilíbrio perfeito, fundamentais para o crescimento e desenvolvimento harmoniosos nos primeiros seis meses de vida”
(Applebaum RM, 1975)

Importância do problema

O aleitamento materno é uma função biológica que tem a mesma idade da própria Humanidade. Até aos finais do século XIX todas as mães amamentavam e a sobrevivência da criança estava na dependência absoluta deste tipo de alimentação natural; e, se a criança não tinha a possibilidade de sugar no peito da mãe ou da “ama”- como no caso da prematuridade extrema- era considerada inviável.

Embora haja documentos comprovativos do uso de recipientes para alimentação com leite de outras espécies animais desde a antiguidade (História Egípcia, 2500 anos AC), a alimentação infantil com leite heterólogo teve pouco sucesso até ao fim do séc. XIX pela elevada incidência de infecções gastrintestinais e de perturbações nutricionais que comportava.

A partir das duas primeiras décadas do séc. XX, coincidindo com enorme surto de desenvolvimento industrial e de tecnologias que permitiram, de modo progressivo, “imitar” quantitativamente a composição do leite humano a partir de modificações do leite de vaca, começou a verificar-se uma mudança radical no modo tradicional de alimentar a criança nos primeiros meses explicada pelo número crescente de mulheres trabalhadoras fora de casa. No entanto, a partir da década de 70 do século passado, a situação em Portugal (e no mundo) inverteu-se por circunstâncias diversas- designadamente pela legislação produzida propiciando maior disponibilidade da mãe por força da licença de parto, por campanhas a favor do aleitamento materno, e pelo papel desempenhado pelos profissionais de saúde chamando a atenção para as vantagens do leite materno, cada vez mais fundamentadas por estudos científicos. (ver adiante)

No estado actual dos conhecimentos considera-se situação ideal a que permite que o bebé seja amamentado exclusivamente nos primeiros 6 meses de vida; caso tal não seja possível, pelo menos nos primeiros 4 meses.

Composição do leite materno

Não cabe no âmbito desta obra uma análise pormenorizada da composição do leite humano; no entanto, de modo sucinto, pela observação do Quadro 1 pode concluir-se que existem diferenças qualitativas e qualificativas relativamente ao leite de vaca. Globalmente, o teor em proteínas e em minerais é superior no leite de vaca e o de hidratos de carbono é inferior. Por outro lado, é importante notar que a composição é variável desde o início ao fim da mamada e que existem também diferenças de composição comparando o leite da mãe que teve o parto de termo com a que o teve pré-termo.

QUADRO 1 – Nutrientes: composição média por litro

Adaptado de Michaelsen, 2011

 Leite humanoLeite de vaca
Energia (Kcal)670-740600-880
Proteínas (g)935
Gorduras (g)4537
Hidratos de carbono (g)6849
Lactose (g)6849
Minerais
Cálcio (mg)3401170
Fósforo (mg)140920
Sódio (mEq)722
Potássio (mEq)1335
Cloro (mEq)1129
Ferro (mg)9,50,45
Zinco (mg)1,13,9
Vitaminas
A (UI)18981025
Tiamina (μg)160440
Ribofiavina (μg)3601750
Niacina (mg)1,50,9
Piridoxina (μg)100640
Ácido fólico (μg)5255
B 12 (μg)0,34
C (mg)4311
D (UI)2214
E (UI)20,4
K (μg)1560

Com efeito, o leite materno pré-termo tem uma carga energética superior, teor superior em proteínas, sódio, cloro, e teor inferior em lactose relativamente ao leite materno, de termo ou “maturo”. Embora tais diferenças, que persistem durante o primeiro mês pós-parto, sejam consideradas benéficas para todas as crianças nascidas prematuramente, após este período o referido leite humano pré-termo não satisfaz completamente as necessidades dos lactentes pré-termo em crescimento, nomeadamente no que respeita a proteínas, cálcio, fósforo, sódio, ferro, cobre, zinco e algumas vitaminas. Daí a necessidade de, em tais circunstâncias, o leite materno ser suplementado com “alimentos de reforço” ou “fortificantes.

Para além dos nutrientes mencionados, deve salientar-se a presença de compostos bioactivos integrando um microbioma com papel relevante no estado de saúde da criança, actual e futuro. De modo sucinto citam-se os seguintes componentes: probióticos (sintetizando ácidos gordos ómega 3 com acção na função imunitária), pré-bióticos (induzindo a proliferação de bífidobactérias e de lactobacilos os quais bloqueiam a adesão de bactérias patogénicas às células do endotélio intestinal), macrófagos, neutrófilos, linfócitos T e B, lactoferrina (com acção anti-infecciosa fúngica, vírica e bacteriana, antioxidante e antiproteases), lisozima, interleucinas, imunoglobulinas (predominantemente IgA secretórias, com menor quantidade de IgM e Ig), factores de crescimento, hormonas, etc.. Muitos destes componentes têm, para além do efeito anti-inflamatório e de bloqueio de toxinas e de agentes microbianos, acção na modulação do desenvolvimento imunológico e na homeostase de tipo metabólico (por exemplo manutenção da euglicémia no lactente amamentado cujo risco de hipoglicémia nos intervalos e entre refeições é vinte vezes menor do que nos lactentes alimentados com fórmulas).

Vantagens

O Quadro 2 é suficientemente elucidativo. De facto, não é apenas o aspecto nutricional, que deve ser valorizado, mas outros não menos importantes: está provado que a incidência de infecções e de problemas alérgicos, pelo menos enquanto a criança está a ser amamentada é, significativamente menor relativamente àquela alimentada com leite industrial.

QUADRO 2 – Vantagens do aleitamento materno

• Reforço da ligação afectiva mãe – filho (vinculação)

• Menor incidência de infecções nomeadamente gastrintestinais, intestinais, e de otite média (protecção imunitária)

• Menor incidência de enterocolite necrosante e de doença inflamatória intestinal, doença celíaca

• Menor incidência de diabetes mellitus 1 e 2, e obesidade

• Menor probabilidade de HTA e hipercolesterolémia

• Desenvolvimento psicomotor, sensorial e comportamental mais adequados

• Menor probabilidade de cólicas pelo teor mais elevado em melatonina

• Condições de higiene mais segura, e mais económico

De salientar que o aleitamento materno constitui uma das quatro estratégias mais importantes da Organização Mundial de Saúde para melhorar a sobrevivência, sobretudo no primeiro ano de vida, com implicações óbvias nos países em desenvolvimento.

As vantagens do leite materno em relação aos leites industriais são mais difíceis de demonstrar nos países desenvolvidos, por um lado dada a impossibilidade de levar a cabo estudos aleatorizados e, por outro, dada a existência dos chamados “factores que confundem interferindo no significado dos resultados como a classe social, o nível educacional e os hábitos de tabagismo.

Outro aspecto relacionado com as vantagens diz respeito ao neurodesenvolvimento e comportamento, sobretudo nas crianças com antecedentes de prematuridade tendo em conta o papel crucial dos ácidos gordos PUFA.

A alimentação natural, por outro lado, associa-se a menor incidência futura de doença inflamatória intestinal e de diabetes mellitus, de obesidade, e de cancro da mama na lactante. As hipóteses de redução da incidência de transtornos alérgicos a longo prazo e de síndroma de morte súbita no lactente (SMSL) não se confirmaram em estudos realizados. Curiosamente, em estudos recentes, demonstrou-se que o uso da chupeta diminui o risco de SMSL.

Período pré-natal

O acto de amamentar é um processo activo integrando dois participantes. Para que a alimentação ao peito venha a ter sucesso é fundamental que a mãe tenha sido motivada (e educada desde os bancos de escola) e não coagida. É igualmente de grande utilidade que a mulher neo-lactante obtenha os conselhos e apoio doutras mães com experiência para a resolução das primeiras dificuldades.

Idealmente, a decisão de amamentar deverá ser tomada numa fase precoce da gravidez, período de extraordinária sensibilidade, pressupondo-se um esclarecimento prévio por parte do obstetra e outros profissionais desde a primeira consulta pré-natal e, se possível, antecedendo a gravidez. Idealmente, a decisão não deverá ser deixada para o período pós-parto.

Tomada a decisão de amamentar, é fundamental realizar o exame das glândulas mamárias com o objectivo de detectar eventuais anomalias como por exemplo, mamilos invertidos ou retrácteis ou sinais de técnicas cirúrgicas já levadas a cabo anteriormente (como a mamiloplastia que poderá ter comprometido, quer as estruturas ductulares, quer as nervosas), as quais poderão contribuir para o insucesso da lactação.

Embora ao pediatra e médico de família não esteja classicamente cometido este papel, eles poderão de algum modo motivar o obstetra, no sentido de o referido exame se concretizar, de modo sistematizado.

Como deverá, então, ser feita a preparação do mamilo?

Existem várias técnicas que poderão ser ensinadas à grávida; as mais práticas incluem:

  1. Rolar os mamilos entre o polegar e indicador algumas vezes durante o dia;
  2. Expor ao ar os mamilos durante alguns minutos;
  3. Expressão diária de algumas gotas de colostro durante o último trimestre.

Tais manipulações contribuem para alongar e tornar mais elástico o mamilo, constituindo implicitamente um treino da técnica de expressão manual que poderá ser usada mais tarde.

Está desaconselhado o uso de tópicos irritantes como sabão e álcool que contribuem para secar a pele e para o aparecimento de fissuras. A partir do 2º trimestre o sutiã deverá ser mole e confortável.

É importante que o profissional de saúde incuta na futura mãe a noção de que o tratamento da mama não tem qualquer relação com a capacidade de amamentar.

Caso tenham sido detectados no período pré-natal mamilos invertidos, há um certo número de medidas que poderão ser tomadas. As mais fáceis de executar constituem a chamada “manobra de Hoffman” que consiste em colocar dois dedos diametralmente opostos sobre as margens da aréola exercendo, depois tracção no sentido centrífugo, alternadamente, segundo os diâmetros vertical e horizontal.

O objectivo desta manobra, a executar várias vezes por dia, e que poderá ser intensificada no 3º trimestre da gravidez, é desfazer as aderências da base do mamilo que contribuem para a sua umbilicação.

Período intraparto

O sucesso ou insucesso do aleitamento materno depende dum certo número de factores que estão discriminados no Quadro 3.

Os factores que influenciam de modo mais negativo a amamentação são a rigidez de horários e a administração intempestiva de leite para lactentes (leite industrial/fórmula).

Nesta fase, mais uma vez o profissional de saúde desempenha papel primordial quanto ao apoio e confiança que pode transmitir à mãe. Dado que os verdadeiros estímulos da secreção láctea são a sucção vigorosa e frequente, e o esvaziamento completo da glândula mamária, assume particular importância a aplicação da norma de rotina, em todas as maternidades de “pôr o RN ao peito, logo na sala de partos”, “ pele com pele”.

De facto, essa atitude de a mãe ver e sentir o seu filho desde as primeiras horas estimula não só o vínculo mãe-filho, mas também permite uma ingestão mais precoce do colostro, facilitando a “subida do leite” e a eliminação do mecónio.

QUADRO 3 – Factores de sucesso e insucesso do aleitamento materno

Factores de insucesso

· Separação mãe-filho (pós-parto e depois)

· Horário rígido

· Suplementos de leite industrial (intempestivos)

· Biberão de noite

· Oferta de leite industrial (amostras) antes da alta

· Não esclarecimento prévio da mãe

· Não respeito pela opção da mãe; a mãe poderá eventualmente não desejar amamentar; haverá que respeitar tal opção

Factores de sucesso

· Técnica correcta de amamentação

· Transmissão de confiança à mãe

· RN ao peito na sala de partos (pele com pele)

· Verdadeiros estímulos: sucção vigorosa e frequente/esvaziamento da glândula mamária

· Horário livre

Técnicas da mamada

A posição (de conforto e de descontracção) que a mãe deve adoptar durante a mamada é a seguinte: sentada sobre almofada mole e estável, apoiando os pés num pequeno banco a poucos centímetros do chão.

O braço que sustém a cabeça da criança deve também assentar sobre uma superfície mole (por exemplo, uma pequena almofada).

A cabeça da criança deve ficar no alinhamento da glândula mamária com a face voltada para a mãe. Com a mão livre, a mãe comprime com dois dedos o bordo da aréola procurando tornar o mamilo mais procidente de forma que a criança introduza na boca (bem aberta com o lábio inferior dobrado bem para fora) não só o mamilo mas também a aréola. A posição da boca da criança deve ser tal que a porção superior da aréola deve ficar mais visível que a sua porção inferior.

Assim sendo, as fossas nasais ficarão livres do contacto com a pela da mama e a respiração processar-se-á normalmente.

Para desencadear o reflexo da sucção a mãe deve passar o mamilo sobre os lábios do bebé procurando não o introduzir bruscamente na boca.

Durante a estadia na maternidade a mãe poderá dar de mamar deitada, colocando-se em decúbito lateral; a posição da mãe e bebé deverá ser ajustada de modo que a criança e peito do mesmo lado fiquem em plano superior.

No fim da mamada (e ainda com o mamilo + aréola dentro da boca da criança) neutralizar de modo progressivo o vácuo bucal criado, contribuindo para que se evite o traumatismo do mamilo por repuxamento brusco e intempestivo do mesmo no fim da mamada.

As alterações do mamilo, nomeadamente do mamilo invertido impedindo a penetração deste e da aréola na boca, dificultam a sucção e provocam ingurgitamento dos seios com maior probabilidade de fissuras por traumatismo.

Esquema de amamentação

O Quadro 4 resume os aspectos fundamentais do esquema prático da amamentação.

Nunca será de mais repetir:

  1. Que o horário rígido deve ser desencorajado e que a preocupação inicial no pós-parto é, não propiciar calorias, mas estimular a sucção;
  2. Que o RN deve estar sempre junto da mãe.

Classicamente aconselha-se “dar” em cada mamada os dois peitos, começando de um lado e terminando no outro; na mamada seguinte o peito a ser dado em primeiro lugar será o que foi último na mamada anterior.

São desaconselhadas as mamadas prolongadas que contribuem para maceração do mamilo e formação de fissuras.

Após a “subida do leite”, está provado, nos bebés de termo, saudáveis e vigorosos, que a sucção a ritmo rápido (de 1 sucção por segundo), em 5-7 minutos permite a extracção de leite para as necessidades, por cada mamada. Desaconselha-se a mamada de duração total superior a 20 minutos pela probabilidade crescente à medida que se desenrola a mamada, de o bebé “perder” a força de sucção e passar a deglutir mais ar do que leite, o que contribui para meteorismo e mal-estar.

QUADRO 4 – Actuação prática

RN com a mãe
(alojamento conjunto ou “rooming – in”)

  • Primeira mamada na sala de partos (se possível na 1ª hora pós-parto)
  • 2º dia: 2–5 minutos de cada lado (alternar) – colostro
  • 2º dia e seguintes: no máximo: 10 minutos em cada lado (alternar)
    • Frequência: horário livre; sempre que “chore com fome”; respeitar o “apetite”; em regra o lactente saudável não pré-termo necessita entre 6-8 mamadas/24 horas; quanto mais curtas forem as mamadas, maior a probabilidade de maior número de mamadas. Não é consensual a rotina de acordar o bébé saudável e de termo, de noite para mamar; determinados factores de crescimento no leite materno garantem a estabilização da glicémia
    • Limites a respeitar:
      • intervalo mínimo entre mamadas: 1 hora
      • duração máxima (total) da mamada: 20 minutos
    • Precaução – lavagem da aréola e mamilo com água fervida no fim da mamada; secagem antes de tapar a mama. A aplicação do próprio leite materno no mamilo-aréola previne as fissuras, dado o efeito cicatrizante do mesmo (recordar os factores de crescimento anteriormente referidos)
      • a vigilância da glicémia apenas está indicada nos casos de dificuldades na lactação e/ou suspeita de hipogalactia, baixo peso de nascimento, macrossomia, etc.
    • Êxito da lactogénese se: estímulo da sucção; esvaziamento mamário completo

Nota importante:
O choro (estímulo sonoro) da criança junto da mãe, antecipando a mamada, estimulando o hipotálamo e a hipófise, promove a secreção da ocitocina (contracção do útero e esvaziamento da glândula) e da prolactina (estímulo da secreção láctea).

Em situações de aleitamento materno exclusivo e desde que se tenha já verificado a chamada “subida do leite” não se torna necessário dar água extra ao bebé, dado que o leite materno tem 87% de água e a criança saudável terá ingesta ad libitum. São excepções: períodos de calor/Verão, febre ou outras situações específicas avaliadas pelo médico. De notar também que, enquanto não se verificar a”subida do leite” ou secreção láctea “em pleno” notada pela mãe, a não ingestão de água suplementar nas primeiras horas poderá levar a desidratação hipernatrémica.

Avaliação do aleitamento

O papel do profissional de saúde (médico, enfermeiro ou outro) é fundamental nos primeiros dias após o parto no sentido de manter confiança da mãe, tentando diminuir-lhe a ansiedade e o receio pela eventual insuficiência do leite.

Em regra, no 5º dia de vida já haverá uma ideia sobre a evolução do aleitamento, tendo sempre em conta o decréscimo fisiológico no peso de nascimento que, por vezes, é cerca de 5-7%; por isso, torna-se fundamental que haja uma comunicação com a mãe. Por outro lado, há também que desdramatizar o problema da evolução ponderal. Refira- se que, dum modo geral, a evolução ponderal nos lactentes alimentados ao peito é mais discreta do que nos alimentados com leite industrial (argumento positivo, pois a probabilidade de obesidade nas crianças alimentadas com leite materno é menor).

Reitera-se que a mãe deverá ser informada de que, em condições fisiológicas, existe sempre perda de peso inicial, e que se poderá considerar satisfatório se houver recuperação do peso de nascimento pelo 8º-12º dia.

Desaconselha-se a pesagem diária pela ansiedade que origina na mãe; em geral e em condições normais será suficiente, nas primeiras semanas a verificação semanal do peso.

Fármacos, contaminantes ambientais e aleitamento materno

Nos casos em que a mãe lactante está submetida a determinados tratamentos com fármacos, há que atender a que os mesmos podem ser transferidos para o leite, quer por difusão passiva, quer por transporte activo, variando a concentração do medicamento no leite de diversos factores tais como a concentração sanguínea materna e o tempo decorrido entre a administração e a mamada. Na prática, são raras as situações em que se deverá interromper o aleitamento.

Nesta perspectiva, os clínicos responsáveis pela assistência à lactante e ao lactente deverão consultar as normas de actuação que consideram essencialmente três tipos de fármacos:

  1. Fármacos que não devem ser administrados à lactante:
    Atropina, anticoagulantes, antitiroideus, citostáticos, di-hidro-taquiferol, iodetos, narcóticos, substâncias radioactivas, brometos, tetraciclinas, metronidazol, cimetidina.
  2. Fármacos que obrigam a vigilância do lactente no caso de a lactante os tomar, não sendo necessária a suspensão da amamentação:
    Corticóides, diuréticos, contraceptivos orais, ácido nalidíxico, sulfonamidas, carbonato de lítio, reserpina, difenil-hidantoína, barbitúricos, cumarinas, heparina, tiroxina.
  3. Fármacos ou substâncias sem qualquer efeito significativo sobre o lactente:
    Insulina, epinefrina, administração ocasional de paracetamol ou ácido acetilsalicílico, uso moderado de álcool, cafeína, chá.

NB – Relevando as incontestáveis vantagens do aleitamento materno, há que referir, no entanto, e em contextos especiais, a probabilidade de contaminação da lactante com determinados poluentes ambientais que, sendo lipossolúveis, se acumulam no tecido mamário e constituem risco para o bebé. Tal poderá comprovado por estudos analíticos realizados na lactante.

Infecção e aleitamento materno

Embora o leite materno tenha um papel crucial na redução da incidência de infecções em geral, há que referir, no entanto algumas infecções maternas raras que são limitativas da amamentação. Trata-se essencialmente, (para citar as principais) das infecções pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH), pelo vírus humano da leucemia de células T (VHLT tipos I e II), de infecções mamárias pelo vírus herpes, da varicela materna, e de formas de tuberculose materna evolutiva.

Casos especiais

É importante chamar a atenção para dois pontos:

  1. A administração de soluto glucosado, designadamente no pós-parto, antes da subida do leite, dum modo geral não deverá ser fomentada. De facto, a técnica de administração de soluto adocicado poderá desmotivar o bebé para receber o colostro que tem sabor “salgado”;
  2. A mãe deve ser ensinada a dar eventual suplemento se se justificar, à colher, e sempre depois da mamada, pelo facto de o biberão exigir menos esforço, o que poderá também contribuir para a ulterior recusa do peito;
  3. A mãe deve ser esclarecida que, durante a primeira semana, de adaptação do bebé, as necessidades calóricas e em líquidos são inferiores àquelas a partir do 8º-10º dia.

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NUTRIENTES

Importância do problema

Considera-se alimentação adequada aquela que propicia os nutrientes que promovem o crescimento e o desenvolvimento adequados, nomeadamente do sistema nervoso, o que constitui garantia para a saúde e bem-estar da criança, adolescente e futuro adulto.

O termo nutriente refere-se ao componente nutritivo do alimento, sendo este último definido como o composto ingerido; o alimento engloba, por sua vez, elementos nutritivos e não nutritivos.

São consideradas sete categorias principais de nutrientes:
1. Água;
2. Energia;
3. Proteínas;
4. Hidratos de carbono;
5. Gorduras;
6. Vitaminas;
7. Minerais (minerais major e oligoelementos). Os chamados micronutrientes compreendem 13 vitaminas e 17 minerais essenciais (destacando-se, entre estes, os oligoelementos).

O termo nutrição diz respeito ao conjunto de trocas que se verificam entre o organismo vivo e o meio que o rodeia.

Com efeito, as crianças são mais vulneráveis aos estados de subnutrição do que os adultos por três razões fundamentais: a) mais baixas reservas de nutrientes, (e tanto mais quanto mais baixos forem o peso corporal e a idade) pelo risco de mais rápido esgotamento; b) maiores necessidades para o crescimento que é mais rápido, sobretudo nos primeiros dois anos e, particularmente, no primeiro ano de vida (período em que o peso de nascimento triplica, o comprimento aumenta 50% e o cérebro atinge cerca de 70% do tamanho adulto); c) rápido desenvolvimento neuronal durante o último trimestre da gravidez e nos primeiros dois anos de vida pós-natal, sendo de salientar que a complexidade das conexões neuronais é extremamente vulnerável à subnutrição. Efectivamente, considera-se hoje, com base científica, que os primeiros 1.000 dias de vida, desde a data da concepção, são de crucial importância para a saúde futura da criança e adulto.

Os princípios da nutrição na actualidade repousam ainda numa certa base de empirismo e de hábitos transmitidos de geração em geração. De facto, é difícil ainda avaliar as possibilidades de adaptação e de compensação do organismo em desenvolvimento (regulada geneticamente) quanto à absorção, metabolismo e excreção de determinados nutrientes face à carência de outros.

Por outro lado, as chamadas “curvas ou tabelas“ de crescimento concebidas matematicamente com base nos dados colhidos em grande número de indivíduos de determinada população e região, poderão não se aplicar com rigor noutra população com características e padrão nutricional diversos para avaliação da “normalidade” dos incrementos em peso, altura e outros parâmetros, o que constitui uma limitação.

Talvez, num futuro próximo, os progressos da biologia molecular ajudem a compreender melhor a grande variabilidade dos mecanismos homeostáticos do metabolismo que expliquem, nomeadamente, as variações de susceptibilidade e de tolerância a carências e a excessos de nutrientes.

Critérios para o cálculo de nutrientes

As necessidades em macronutrientes (hidratos de carbono, lípidos, prótidos) e em micronutrientes (minerais e vitaminas) variam de indivíduo para indivíduo em função da idade, velocidade de crescimento, grau de actividade física e de factores genéticos interagindo com factores ambientais.

Diversos organismos como a FAO, OMS, UNICEF, a National Academy of Sciences e o Food and Nutrition Board, produzindo ao longo dos anos um acervo de dados científicos sobre nutrição, determinaram as necessidades nutricionais adequadas de algumas substâncias susceptíveis de originarem, quando em défice, estados carenciais; de referir que os valores estabelecidos são periodicamente revistos.

 O mesmo Food and Nutrition Board publicou os chamados “valores de referência a utilizar para o cálculo do regime alimentar” (Dietary Reference Intakes ou DRI) relativos ao cálcio, fósforo, magnésio, vitamina D, flúor, folato e vitaminas do complexo B, restantes nutrientes, água e electrólitos e fibras.

No conceito de DRI são abrangidos os seguintes parâmetros:

  • EAR (Estimated Average Requirement) – “necessidade média ou valor quantitativo estimado” significando o suprimento de determinado nutriente que satisfaz as necessidades de 50% da população considerada saudável em relação aos critérios utilizados como referência. Dum modo geral são considerados os valores diários durante uma semana ou durante uma etapa concreta da vida.
  • RDA (Recommended Dietary Allowance) ou “suprimento nutricional recomendado” significando o valor quantitativo de determinado nutriente que satisfaz as necessidades da maioria 97%–98% da população saudável.
    A relação quantitativa entre RDA e EAR é estabelecida pela seguinte equação: RDA = EAR + 2 DP (desvios-padrão).
  • AI (Adequate Intake) ou “suprimento adequado” ou Nutrient Intake Values (NIV).

Nos casos em que não se dispõe de dados suficientes para calcular o EAR, emprega-se a AI para determinar o consumo médio de nutrientes (por ex., nos recém-nascidos a AI baseia-se no consumo diário de nutrientes de um lactente saudável nascido de termo e alimentado exclusivamente com leite materno); globalmente pode afirmar-se que a AI se baseia no suprimento diário de determinado nutriente em indivíduos saudáveis.

Segundo os peritos dos organismos anteriormente referidos foi recomendado que se empreguem as AI para todos os nutrientes em crianças com menos de 1 ano, e, para o cálcio, vitamina D e flúor, em todas as etapas da vida.

  • ULs (Tolerable Upper Limits) ou “limite superior tolerável“ do nutriente que não comporta risco de efeitos adversos em indivíduos saudáveis; ou seja, o risco de efeitos adversos e de toxicidade aumenta com o aumento de consumo do nutriente acima de tal limite.
    É provável que, com o desenvolvimento de estudos e o conhecimento de mais resultados, os EAR venham a substituir os RDA.
  • UNL (Upper Nutrient Level) ou “suprimento máximo tolerável“ significando o suprimento máximo diário de determinado nutriente que não origina efeitos adversos na quase totalidade de um grupo da população saudável.

De acordo com as recomendações dos peritos internacionais em nutrição em idade pediátrica dos organismos atrás referidos assim como doutros (American Academy of Pediatrics/AAP, Food and Agriculture Organization/FAO da Organização Mundial de Saúde, European Society for Pediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition/ESPGHAN) abrangendo estudos populacionais representativos de todas as partes do globo, na prática é recomendado que se utilizem quanto aos suprimentos em nutrientes, os critérios DRI ou RDA.

Dado que para algumas substâncias essenciais ainda não se conhecem estes dados, poderá admitir-se que um regime alimentar variado seja a única forma prudente de as fornecer após o período da lactação. O leite humano parece fornecer todos os elementos essenciais durante um período prolongado. Ainda que alguns nutrientes essenciais devam ser incluídos no regime alimentar diário, outros são armazenados pelo organismo, podendo, por consequência ser administrados periodicamente.

Necessidades nutricionais e recomendações

1. Água

A água (o solvente do nosso organismo) é essencial para a existência, surgindo a morte por carência absoluta em número variável de dias. O conteúdo em água é maior nas crianças mais pequenas em relação às maiores e aos adultos – cerca de 75-80% do peso corporal nos recém-nascidos (RN) contra 55-60% nos adultos.

A água corporal total distribui-se pelos seguintes compartimentos: intracelular (IC) e extracelular (EC); o EC, por sua vez, compreende o interstício e o plasma.

No adulto as respectivas proporções são as seguintes: IC <> 2/3;EC<> 1/3. No EC: 3/4 <> ao interstício e 1/4 <> ao plasma.

Na criança a água corporal está diferentemente distribuída. No recém- nascido o EC <> 45% do peso corporal e o IC<> 35%. Com a idade a proporção do IC vai aumentando e a do EC diminuindo, atingindo-se os valores semelhantes aos do adulto quando é atingido o peso de 15 kg (EC<> 20-25%; IC<>30-40%.

Embora os líquidos administrados constituam o principal suprimento em água, parte desta obtém-se da oxidação dos alimentos (os regimes alimentares mistos fornecem aproximadamente 12 gramas de H2O/100 Kcal) e, em caso de necessidade, dos próprios tecidos corporais (fonte endógena: cerca de 5-10 mL/kg/dia).

A oxidação de 100 gramas de gordura, de hidratos de carbono e de proteínas produz respectivamente 107, 55 e 41 gramas de água.

As necessidades de água dos seres humanos dependem do consumo de energia (calorias) de que o organismo necessita (taxa metabólica), das perdas globais de líquidos incluindo as perdas insensíveis, e do funcionamento renal, o que pode ser avaliado de modo sumário e fora de situações patológicas, pela densidade urinária.

O valor de RDA para a água actualmente não está determinado, esperando- se no futuro que o Food and Nutrition Board defina o DRI.

O Quadro 1 resume globalmente as necessidades em água no grupo etário pediátrico.

O Quadro 2 resume as necessidades diárias de manutenção em líquidos aplicáveis na idade pediátrica.

QUADRO 1 – Necessidades em água

IdadePeso médio (kg)Água (ml/kg/24 horas)

d= dias; m= meses; a= anos

3 d3,080-100
10 d3,2125-150
3 m5,4140-160
6 m7,3130-155
9 m8,6125-145
12 m9,5120-135
2 a11,8115-125
4 a16,2100-110
6 a20,090-100
10 a28,770-85
14 a45,050-60
18 a54,040-50

QUADRO 2 – Necessidades de líquidos/Líquidos de manutenção

1-10 kg100 ml/kg
11-20 kg1000 ml + 50 ml / cada kg acima de 10
21 kg e mais1500 ml + 20 ml / cada kg acima de 20

 

Recorda-se, a propósito, o que foi referido na Parte X a propósito da terminologia água/hídrico versus fluidos/líquidos, assumindo relevância quando se trata de administração por via IV.

O consumo diário de líquidos por parte do RN saudável equivale a 10-15% do peso corporal, em comparação com 2-4% no adulto. De referir que o alimento habitual dos recém-nascidos e crianças mais pequenas (o leite) tem um grande conteúdo em água (cerca de 89%) o qual aumenta para 95% como resultado da oxidação a que atrás nos referimos; a maior parte dos alimentos sólidos do regime alimentar duma criança contém cerca de 60-70% de água e, muitas das verduras e frutas cerca de 90%.

A água absorve-se, em grau variável, em todo o trajecto do tubo intestinal. A quantidade de água que existe no compartimento intersticial muda com facilidade para manter o equilíbrio homeostático entre os compartimentos intracelular e vascular. As trocas de água entre estes compartimentos dependem das respectivas concentrações de proteínas e de electrólitos. Em função da velocidade de crescimento, fica “retida” no organismo uma percentagem variável do suprimento em líquidos (entre 0,5-3%). Num “lactente de referência do sexo masculino”, a retenção de água varia entre 9-25 mL/24 horas durante o primeiro ano de vida.

O equilíbrio hídrico depende de variáveis tais como o conteúdo de proteínas e minerais no regime alimentar o qual, por sua vez, determina a carga de solutos a ser submetida a excreção renal, as taxas metabólica e respiratória, e a temperatura corporal.

A osmolaridade do plasma traduz a osmolaridade do organismo a qual é mantida em valores da ordem de 287 mOsm/L para que o volume celular se mantenha constante.

O RN consome quantidades de água por unidade de peso corporal muito maiores que o adulto; contudo, fazendo os cálculos por unidade de ingestão calórica, as quantidades necessárias são quase idênticas. Como regra geral pode estabelecer-se que as necessidades são 60 ml/kg no primeiro dia de vida, atingindo-se 125-150 ml/kg/dia no 7º dia.

No RN de muito baixo peso (RNBP ou de peso inferior a 2500 gramas) e idade gestacional inferior a 37 semanas em circunstâncias consideradas de estabilidade clínica, em crescimento, e de ambiente de termoneutralidade com uma humidade entre 50-80%, as necessidades oscilam entre 130- 180 ml/kg/dia para um suprimento energético de 130 kcal/kg/dia (ver adiante).

No período de recém-nascido as perdas fecais são escassas (5-10 ml/kg/dia) e as perdas insensíveis entre 30-60 ml/kg/dia.

Por outro lado, mantendo o rim o equilíbrio hidro-electrolítico do organismo, o mesmo promove a excreção renal de água da ordem de 90 ml/kg/dia, variando a concentração osmolar e o volume de urina. A osmolaridade urinária máxima no RN é 600-700 mOsm/L, mais limitada que na criança maior.

De referir que as necessidades de água para o crescimento nesta fase da vida são 10 ml/kg/dia, estabelecendo-se a relação de 1,5 ml de H2O por kcal consumida.

2. Energia

Em metabolismo, a unidade de calor é a caloria grande ou kilocaloria (1 Cal= 1 Kcal); esta medida emprega-se para nos referirmos ao conteúdo energético dos alimentos. Uma kilocaloria define-se como a quantidade de calor necessária para elevar a temperatura de 1 kg de água, de 14,5ºC para 15,5ºC. A produção de calor por oxidação varia com os distintos alimentos. Ora, medindo-se a quantidade de O2 consumido, ou os produtos finais da oxidação (CO2+H2O), são obtidos valores sobreponíveis aos obtidos por calorimetria directa.

O kilojoule é outra medida utilizada com a seguinte correspondência: 1 kilojoule = 4,2 kcalorias.

As necessidades energéticas das crianças variam muito com as distintas idades e circunstâncias.

Cerca de 50% da energia fornecida pelos nutrientes é destinada a cobrir as necessidades do metabolismo basal.

Por cerca de 100 kcal ingeridas são produzidos cerca de 100 ml de água (água metabólica de acordo com o conceito atrás descrito).

O crescimento origina um consumo de energia da ordem de 20-30% da energia disponível. Tal consumo é directamente proporcional à velocidade de crescimento (mais elevado no primeiro ano de vida e, mais tarde, na adolescência).

A actividade física, em regra mais elevada na criança que no adulto, despende cerca de 10 a 25% da energia. No pequeno lactente o choro corresponde a um tipo de actividade física.

A acção dinâmica específica (ADE) ou incremento do metabolismo por dispêndio de energia acima dos valores basais originado pela ingestão, digestão e transporte dos nutrientes até à sua conversão final em ATP, corresponde a valores entre 5 a 10% da energia disponível. A ADE é mais elevada para as proteínas do que para as gorduras e mais elevada para estas do que para os hidratos de carbono.

As perdas fecais correspondem a cerca de 8% da energia, fundamentalmente como gordura não absorvida.

O metabolismo basal mede-se à temperatura ambiente (20ºC) entre 10 e 14 horas após uma refeição, com o indivíduo física e emocionalmente tranquilo. Para cada grau centígrado de temperatura o metabolismo basal aumenta aproximadamente 10%.

Nos RN as necessidades basais correspondem aproximadamente a 55 kcal/kg/24 horas, diminuindo progressivamente para 25-30 kcal/kg/24 horas à medida que avança o processo de maturação.

A digestão de proteínas pode elevar o metabolismo até 30% acima do nível basal excepto quando se verifica a sua deposição nos tecidos; por outro lado, as gorduras e os hidratos de carbono têm um efeito de “poupança” sobre a ADE das proteínas, produzindo incrementos mais discretos daquela, respectivamente 4% e 6%.

Nos RN a ADE corresponde a cerca de 7-8% do suprimento calórico, e a 5% nos lactentes e crianças maiores.

O cálculo da energia necessária para formar tecido corporal (crescimento) obtém-se calculando a diferença entre as calorias ingeridas e as utilizadas para outros fins.

Estudos populacionais realizados pela OMS/ FAO e outros peritos estabeleceram a seguinte relação de gasto ou consumo energético para o crescimento: 4,8 kcal – 5,6 kcal/grama de incremento de peso.

As necessidades médias para a actividade física são cerca de 15-25 kcal/kg/24 horas com máximos até 50-80 kcal/kg/24 horas durante períodos curtos.

Ainda que seja mais rigoroso calcular as necessidades calóricas a partir da superfície corporal do que em relação ao peso e à idade, o critério final para avaliar as necessidades na criança depende do modelo de crescimento, da sensação de bem-estar que se verifique, e da saciedade.

De acordo com a OMS/FAO e estudos de peritos internacionais as necessidades energéticas em kcal/kg/dia são resumidas no Quadro 3.

Globalmente, pode afirmar-se que as necessidades diárias após o primeiro ano de vida diminuem cerca de 10 kcal/kg por cada três anos.

Nos períodos de crescimento e desenvolvimento rápidos em torno da puberdade, haverá que incrementar o consumo de calorias.

Como regra geral é estabelecido que, por cada 100 kcal, devem ser fornecidos 120 ml de água.

O Quadro 4 relaciona estados mórbidos diversos com variação das necessidades calóricas.

QUADRO 3 – Relação de necessidades energéticas em kcal/kg/dia

m= meses; a= anos; RN= recém-nascido
(*) Em função da actividade (ligeira ou moderada) o coeficiente de variação é +- 20%

Idade

Suprimento energético
(Kcal/kg/dia) recomendado (RDI) (*)

0-1 m80-125 (110-165 no RN pré-termo)
2-3 m90-116
4-5 m84-103
6-9 m84-95
10-12 m93-101
1-3 a90-110
4-6 a80-90
7-9 a70-80
10-12 a45-70
13-18 a40-60
adulto40-50

QUADRO 4 – Relação entre estados mórbidos diversos e variação das necessidades calóricas

Estado mórbidoVariação das necessidades calóricas
Inanição-20 a + 20%
Estado pós-operatório+10 a + 20%
Fracturas/politraumatismo+7 a + 25%
Infecção sistémica grave+15 a + 50%
Queimaduras do 3º grau com >20% de área da pele afectada+35 a + 100%

A distribuição calórica de proteínas, gorduras e hidratos de carbono (percentagem do valor calórico total ou % VCT) no leite humano é semelhante à que se verifica na maioria dos leites industriais para lactentes num regime alimentar considerado equilibrado.

Assim, considera-se regime equilibrado aquele em que cerca de 7-15% das calorias derivam das proteínas, 35-55% dos hidratos de carbono, e 30-55% das gorduras.

Na criança maior, 10-15% das calorias devem proceder das proteínas, 55-60% dos hidratos de carbono e, aproximadamente 30%, das gorduras.

Cada grama de proteína ou hidrato de carbono ingerido proporciona 4 kcal. Um grama de ácidos gordos de cadeia curta proporciona 5,3 kcal; um grama de ácidos gordos de cadeia média gera 8,3 kcal e 1 grama de ácidos gordos de cadeia longa, 9 kcal. Um suprimento calórico continuado superior ou inferior ao consumo do organismo conduzirá a que a gordura corporal aumente ou diminua. Em geral, um desequilíbrio calórico constante de 500 kcal/dia modifica o peso corporal na proporção de cerca de 450 gramas/semana.

De referir que no primeiro ano de vida as curvas de referência baseadas em estudos de lactentes alimentados com leite materno exclusivo nos primeiros 6 meses de vida não se sobrepõem às baseadas em estudos de lactentes alimentados com leite industrial no mesmo período da vida, concluindo-se que as necessidades energéticas no primeiro caso-alimentação com leite materno- são inferiores (menos 10-25 kcal/kg/dia).

3. Proteínas

As proteínas, (moléculas que contêm azoto e constituídas por unidades básicas chamadas aminoácidos) correspondem aproximadamente a 20% do peso corporal do adulto.

Na idade pediátrica o processo de síntese e de proteólise estão aumentados, sendo que o processo de síntese predomina sobre o de proteólise com consequente acréscimo de proteínas que se traduz em crescimento e em balanço azotado positivo. Um dos mecanismos de regulação do metabolismo proteico depende da insulina que tem papel anabolisante contribuindo para o incremento de peso.

No adulto saudável o balanço de azoto é nulo.

Foram identificados 24 aminoácidos que são utilizados na síntese das proteínas; destes, 9 são essenciais (isto é, não sintetizados pelo organismo, o que obriga ao respectivo suprimento no regime alimentar): treonina, valina, isoleucina, leucina, lisina, triptofana, fenilalanina, metionina e histidina. Para além destes, a arginina, a cistina, a taurina, a glicina e a tirosina são também essenciais para os recém-nascidos pré-termo.

Como funções essenciais das proteínas cabe citar o seu papel no incremento ou formação de novos tecidos (massa magra), na função imunitária e no desenvolvimento de capacidades relacionadas com o comportamento.

De salientar que não se pode formar tecido novo se todos os aminoácidos essenciais não estiverem presentes no regime alimentar ao mesmo tempo; ou seja, a ausência ou défice de apenas um aminoácido essencial condiciona um balanço nitrogenado negativo.

As proteínas desdobram-se durante o processo digestivo em oligopéptidos e aminoácidos. O ácido clorídrico do estômago propicia o pH óptimo para a cisão dos péptidos através da acção da pepsina. A quimiosina transforma a caseína do leite em paracaseína a qual é hidrolisada pela pepsina juntamente com outras proteínas. As diversas proteases têm maior apetência para uniões peptídicas específicas; algumas provocam rupturas de uniões no interior da cadeia peptídica, e outras actuam em zonas de ligações mais terminais.

No meio alcalino do intestino, a tripsina, a quimiotripsina e a carboxipeptidase do pâncreas hidrolisam estas proteínas e peptonas em péptidos e em alguns aminoácidos; outras peptidases dos sucos intestinais promovem a digestão até à fase de aminoácidos.

Embora quantidades mínimas de certas proteínas se possam absorver “intactas” com é demonstrado através das reacções imunitárias, em condições ditas normais de maturidade do tubo digestivo, ou na ausência de patologia, são os produtos hidrolisados (aminoácidos) e alguns péptidos que se absorvem através da mucosa intestinal com a intervenção de transportadores específicos. Os oligopéptidos de maiores dimensões podem absorver-se durante os primeiros meses de vida ou na sequência de episódios de gastrenterite.

Os aminoácidos são transportados ao fígado pela circulação portal e, a partir daí, são distribuídos pelos diversos tecidos. Os mesmos reorganizam-se em forma de proteínas humanas funcionais (por ex. albumina, hemoglobina, hormonas) sendo que as porções nitrogenadas dos aminoácidos excedentários se convertem em ureia no fígado e se excretam pelo rim.

A oxidação do carbono dos aminoácidos é muito semelhante à dos hidratos de carbono e à das gorduras, sendo alguns glucogénicos e outros cetogénicos.

As proteínas não se podem armazenar de forma eficaz. Nas situações de carência proteica as proteínas dos músculos são destruídas para servirem de fonte de aminoácidos para utilização em zonas do organismo consideradas mais importantes, como o cérebro, ou para a síntese enzimática.

As anomalias do metabolismo das proteínas e dos aminoácidos, que serão abordados na Parte XXXII, constituem uma parte importante das entidades patológicas conhecidas vulgarmente por doenças hereditárias do metabolismo.

O suprimento nutricional recomendado para as proteínas em diversas idades tendo como base o teor em proteínas no leite humano, é inferior aos anteriormente divulgados pela OMS/FAO, com especial realce para o 1º ano de vida.

De acordo com dados divulgados em 2015 do Food and Nutrition Board, Institute of Medicine foram estabelecidos os seguintes valores considerados seguros (AI): 0-12 meses → 1,5 g/kg/dia; 1-3 anos → 1,1 g/kg/dia; 4 -13 anos → 0,95 g/kg/dia; 14-18 anos → 0,85 g/kg/dia; adultos → 0,8 g/kg/dia; grávidas e mulheres lactantes com base no peso pré-gravidez → 1,1 g/kg/dia.

No que respeita a RDA: 7-12 meses → 11 g/dia ou 1,2 g/kg/dia ; 1-3 anos → 13g/dia;

4-8 anos → 19 g/dia; 9-13 anos → 34 g/dia; 14-18 anos → 52 g/dia (sexo M) e → 46 g/dia (sexo F).

Quanto à EAR foram estabelecidos os seguintes valores: 7-12 meses → 0,98 g/kg/dia; 1-3 anos → 0,86 g/kg/dia; 4-8 anos → 0,76 g/kg/dia.

NB – Admitindo-se um coeficiente de variação de 12%, os valores referentes a RDA são obtidos multiplicando os de EAR por 1,24.

A justificação para os valores mais baixos de proteínas actualmente recomendados tem a ver com o facto de ter sido demonstrado que nem todo o azoto não proteico é utilizado na síntese proteica, sendo de referir que o leite materno é muito rico em azoto não proteico. Por outro lado, também se demonstrou que se pode obter idêntica eficiência da utilização das proteínas do regime alimentar com suprimentos mais baixos que os anteriormente recomendados.

O chamado “valor biológico”(VB) ou “qualidade” das proteínas relaciona-se com o perfil de aminoácidos que as constituem. O mesmo indica a eficácia da sua utilização. Uma proteína de elevado VB deve conter, além dos aminoácidos não essenciais, todos os nove aminoácidos essenciais em proporção aproximada à existente em proteínas de referência (do ovo e do leite humano). Esta característica permite sintetizar, de novo, tecidos corporais com mínimo de resíduos de acordo com os estudos do balanço nitrogenado.

Quanto aos suprimentos recomendados para o lactente alimentado com leite industrial, segundo a ESPGHAN não deverá ser ultrapassado o teor de 1,8-2,8 g/100 kcal nas fórmulas para lactentes tendo em vista diminuir o risco cardiovascular e metabólico.

4. Hidratos de carbono (ou glúcidos)

Os hidratos de carbono dividem-se em dois grandes grupos: digeríveis e não digeríveis.

Os hidratos de carbono digeríveis, para além de fornecerem a massa necessária para o regime alimentar, proporcionam a maior parte da energia necessária para o organismo. Na sua ausência, o organismo utiliza as proteínas e gorduras para obter energia. No entanto, a energia fornecida pelos hidratos de carbono a médio e longo prazo não pode ser substituída por energia obtida apenas através das fontes de gorduras e de proteínas.

Na sua maioria de origem vegetal, com excepção da lactose, são armazenados fundamentalmente como glicogénio no fígado e nos músculos; provavelmente os hidratos de carbono não constituem mais do que 1% do peso corporal.

Os hidratos de carbono oxidam-se sob a forma de glucose (dextrose), mas consomem-se de diversos modos: monossacáridos (glucose, frutose, galactose), dissacáridos (sacarose, lactose, maltose, isomaltose) e polissacáridos (amidos, dextrinas, glicogénio, gomas, celulose). As pentoses absorvem-se deficientemente.

Mediante uma série de reacções enzimáticas e químicas no tubo digestivo, os hidratos de carbono complexos são desdobrados em estruturas mais simples. As amilases salivar e pancreática desempenham um papel fundamental na decomposição do amido em oligossacáridos (dextrinas) e dissacáridos (fundamentalmente maltose). A amilase intestinal pode estar diminuída durante os primeiros quatro meses de vida. Os dissacáridos absorvem-se intactos através das células intestinais da “bordadura em escova” por acção das dissacaridases das microvilosidades as quais completam a hidrólise até monossacáridos: uma molécula de maltose transforma-se em duas moléculas de glucose; a sacarose, em glucose e frutose; a lactose em glucose e galactose.

Os monossacáridos absorvem-se rapidamente; a glucose e a galactose são absorvidas em função de gradientes de concentração, enquanto a absorção da frutose é passiva. Durante a absorção, os radicais “transportadores” de ácido fosfórico unem-se às hexoses na mucosa intestinal para atravessar a membrana celular. Quando a concentração extra-intestinal de açúcar é baixa, é necessário que haja sódio para que continue a absorção. Estes fosfatos de hexoses voltam a separar-se nos seus componentes, permitindo que o açúcar se difunda na circulação sanguínea portal.

Parte da glucose pode ser oxidada directamente, como ocorre no cérebro e no coração.

A maior parte do açúcar absorvido converte-se em glicogénio, ainda que noutros tecidos também se verifique a glicogénese. Até cerca de 15% do peso do fígado e 3% da massa muscular podem ser constituídos por glicogénio, encontrando-se pequenas quantidades, inferiores àquelas, em todos os órgãos. Dado que o cérebro praticamente só utiliza como substracto energético a glicose, a qual existe em teor escasso no referido órgão, tal implica que o débito sanguíneo cerebral veiculando aquele nutriente seja adequado tendo em conta a forte dependência e o papel crucial do suprimento da mesma glicose.

A glicogenólise, que tem lugar no fígado, produz glicose como principal produto, ao passo que a decomposição do glicogénio nos músculos gera ácido láctico. A oxidação global da glucose tem duas fases: a anaeróbia (glucólise) e a aeróbia (ciclo dos ácidos tricarboxílicos). Na primeira, a glucose decompõe-se em ácido pirúvico; na segunda, o ácido pirúvico é completamente oxidado em CO2 e H2O. De referir que a regulação deste processo depende da acção da insulina e das hormonas hipofisárias e suprarrenais; nas reacções enzimáticas participam igualmente o ácido nicotínico, a tiamina, a riboflavina e o ácido pantoténico.

Os hidratos de carbono que não se oxidam nem se armazenam como glucose são convertidos em gordura.

Os não digeríveis ou fibras alimentares (constituídos por polissacáridos e lenhinas) estão presentes nas paredes celulares de todas as plantas. Podem ser solúveis (por ex.: pectinas, gomas, mucilagens, algumas hemiceluloses, farelo de aveia, cevada, legumes, etc.) e insolúveis (cuja principal fonte é constituída pelo invólucro dos grãos de sementes de cereais).

Os chamados SCFAs (short chain fatty acids ou ácidos gordos de cadeia curta) são subprodutos da fermentação de hidratos de carbono não digeríveis que, ao nível do cólon, estimulam a absorção de fluidos e electrólitos (sobretudo sódio); foi demonstrada uma acção trófica (através de factor de crescimento) ao nível do cólon.

As principais anomalias do metabolismo dos hidratos de carbono (abordadas noutros capítulos) são a diabetes mellitus, as doenças por depósito de glicogénio (glicogenoses), a galactosémia, a intolerância à frutose e a intolerância à glucose.

As situações clínicas associadas a défices de enzimas que promovem a degradação de açúcares no intestino (lactase, maltase, isomaltase) associam-se a diarreia e má absorção, secundárias ao efeito osmótico do açúcar não absorvido, do que resulta fermentação dos hidratos de carbono pelas bactérias intestinais. (Parte Gastrenterologia). O Quadro 5 discrimina as DRI para os hidratos de carbono em gramas/dia.

QUADRO 5 – Suprimento de hidratos de carbono (gramas/dia)

m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino
(National Academy of Sciences, 2004)

0-6 m60 (AI)
7-12 m95 (AI)
1-3 a130 (RDA)
4-8 a130 (RDA)
9-13 a
M130 (RDA)
F130 (RDA)
14-18 a
M130 (RDA)
F130 (RDA)

5. Gorduras

As gorduras ou seus produtos metabólicos, eficientes reservas de energia, constituem parte integrante das membranas celulares cuja permeabilidade e fluidez depende das primeiras. Tais nutrientes dão sabor aos alimentos e servem de veículo para as vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K). Aproximadamente 98% das gorduras naturais encontram-se na forma de triglicéridos (ou seja, conjunto de três ácidos gordos naturais combinados com o glicerol). A parcela restante de 2% é formada pelos ácidos gordos livres, os monoglicéridos, os diglicéridos, o colesterol e outros compostos lipídicos como lecitina, cefalina, esfingomielina e cerebrósidos.

As gorduras da natureza contêm ácidos gordos de cadeia linear, saturados e insaturados, com um comprimento em função do número de átomos de carbono, variando entre 4 e 24. O coeficiente de absorção parece depender do ponto de fusão, do grau de insaturação e da posição dos ácidos gordos na molécula de glicerol; ela é directamente proporcional ao número de duplas ligações (grau de insaturação) e inversamente proporcional ao número de átomos de carbono da sua cadeia.

Os triglicéridos ingeridos são parcialmente hidrolisados pela lipase lingual e emulsionados no estômago. No duodeno a lipase pancreática promove a hidrólise dos triglicéridos formando monoglicéridos e ácidos gordos os quais, juntamente com os sais biliares, constituem micelas, o que aumenta a solubilidade das gorduras. Os triglicéridos (e os diglicéridos) não cindidos são insolúveis.

Como particularidade no recém-nascido de baixo peso refere-se a diminuição da quantidade de bílis e mais baixa taxa de absorção de gorduras.

Provavelmente, os ácidos gordos de cadeia longa (ou long chain poly unsaturated fatty acids ou LC-PUFA) e os monoglicéridos (com mais de 10 átomos de carbono), convertidos em micelas, são absorvidos para o interior das células da mucosa intestinal por difusão. Para o transporte através da célula, estes ácidos gordos terão de ser esterificados de novo (ácidos gordos e monoglicéridos, em triglicéridos).

Constituem-se, assim, depois, os quilomicrons, composto lipídico com uma parte interna com um invólucro membranoso. A parte interna inclui predominantemente triglicéridos e pequenas porções de colesterol livre e esterificado, vitaminas lipossolúveis e outras substâncias lipossolúveis; o invólucro membranoso contém sobretudo fosfolípidos e proteínas designadas apoproteínas.

Os quilomicrons sofrem processo de exocitose para o sistema linfático intestinal em direcção à circulação venosa por intermédio do canal torácico. As proteínas de transporte são proteínas de muito baixa densidade (VLDL – “very low density lipoproteins”), baixa densidade (LDL – “low density lipoproteins”) e alta densidade (HDL – “high density lipoproteins”), sintetizadas no fígado.

Os triglicéridos de cadeia curta e média seguem outro caminho; a lipase pancreática hidrolisa-os rapidamente para ácidos gordos livres os quais são transportados através da célula intestinal. De acentuar que quando a hidrólise no lume intestinal é inadequada por défice de lipase pancreática ou de sais biliares, estas gorduras são absorvidas e hidrolisadas para ácidos gordos livres dentro da célula por acção da lipase da mucosa. Estes ácidos gordos livres não são esterificados nem formam de seguida quilomicrons; outrossim entram directamente nas veias intestinais em direcção ao fígado pela via porta.

Esta via alternativa para os triglicéridos de cadeia curta e média é aproveitada na administração de preparados a crianças com graves problemas de absorção.

Há a salientar que ao nível do lume intestinal existe uma interacção entre cálcio e gorduras: maiores quantidades de cálcio comprometem a absorção de gorduras e vice-versa, pelo facto de se formarem sabões insolúveis.

Constituindo o leite materno um modelo nutricional contendo cerca de 40-55% de lípidos como parcela do VCT, com um coeficiente de absorção de cerca de 90%, no primeiro ano de vida o suprimento recomendado em lípidos deverá contemplar aquela percentagem.

De acordo com a National Academy of Sciences 2004 apenas foi determinado o suprimento (AI) de gorduras em gramas/dia até aos 12 meses: 0-6 meses → 31 g/dia; 7-12 meses → 30 g/dia.

Far-se-á uma referência especial aos ácidos gordos essenciais e aos ácidos gordos trans.

5.1 Ácidos gordos essenciais

Os ácidos gordos poli-insaturados (sigla internacional: PUFA ou poly-unsaturated fatty acids) denominam-se conforme a posição das duplas ligações. O átomo de carbono mais afastado do grupo carboxilo é o carbono omega ou n. Em nutrição infantil assumem grande importância os ácidos gordos omega ou n6 e omega ou n3 pelo facto de não serem sintetizados pelo organismo humano, obrigando ao seu fornecimento no regime alimentar (ácidos gordos essenciais).

O ácido linoleico, o ácido araquidónico e o ácido docosapentanóico pertencem à série omega ou n6. O ácido linolénico, o ácido eicosapentanóico e o ácido docosa-hexanóico pertencem à série omega ou n3.

O ácido araquidónico, que tem como precursor o ácido linoleico, é um importante constituinte dos fosfolípidos das membranas celulares e um precursor das prostaglandinas, prostaciclina, tromboxanos e leucotrienos.

O ácido docosa-hexanóico é componente dos fosfolípidos das membranas celulares, dos foto-receptores da retina e da substância cinzenta cerebral.

Dum modo geral os ácidos gordos essenciais têm acção importante nos fenómenos de neurotransmissão, sendo necessários para o crescimento, o desenvolvimento cognitivo, a integridade da pele e do cabelo e a regulação do metabolismo do colesterol, diminuindo a adesividade das plaquetas.

De acordo com as recomendações da ESPGHAN, para RN de termo não alimentados com leite materno, o suprimento em ácido linoleico deve constituir 4,5-10,8% do VCT e o de ácido linolénico 0,5% do mesmo VCT, para garantir uma relação ácido linoleico/ácido linolénico média de 10/1 (com limites entre 5/1 e 15/1).

É também recomendada a adjunção de LC (long chain) PUFA ou ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa tendo como modelo o leite materno respeitando a relação n-6/n-3 de 2/1 ou, respectivamente, 1%/0,5% do total de ácidos gordos.

Nos regimes alimentares em que a % do VCT de ácido linoleico é inferior a 1-2% será necessário fornecer maior número de calorias totais para se obter crescimento comparável aos dos regimes com aquela percentagem superior.

De referir que o excesso de ácidos insaturados aumenta a peroxidação, do que poderá resultar destruição das membranas celulares.

Nos lactentes pequenos em fase de crescimento rápido submetidos a regimes com baixo conteúdo em ácido linoleico verifica-se o aparecimento de sinais cutâneos (intertrigo, secura e descamação na pele). O Quadro 6 discrimina as AI para o ácido linoleico e alfa-linolénico.

QUADRO 6 – Suprimento de ácidos gordos essenciais (AI) (gramas/dia)

m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino

(National Academy of Sciences, 2004)

 Ácido LinoleicoÁcido Alfa-Linolénico
0-6 m4,40,5
7-12 m4,60,5
1-3 a70,7
4-8 a100,9
9-13 a
M121,2
F101
14-18 a
M161,6
F111,1
5.2 Ácidos gordos trans

Os ácidos gordos trans formam-se como resultado da hidrogenação parcial dos óleos vegetais; desta transformação resulta modificação das características físicas (maior consistência). A isomerização trans dos ácidos gordos não saturados confere-lhes características semelhantes aos saturados; daí as suas desvantagens e riscos em termos de maior predisposição para aterogénese.

6. Minerais

No recém-nascido o conteúdo mineral corresponde aproximadamente a 3% do peso corporal, aumentando ao longo da infância. Por cada grama de proteína retida armazena-se 0,3 gramas de matéria mineral. No fim da adolescência tal conteúdo corresponde a 4,3% do peso corporal distribuído, sobretudo, pelo esqueleto (cerca de 83%) e pelo músculo (cerca de 10%).

O cálcio, o sódio, o potássio e o magnésio constituem os principais catiões. O cloro, o fósforo e o enxofre constituem os aniões mais importantes. O ferro, o cobalto e o iodo formam importantes complexos orgânicos.

Quanto a oligoelementos (por definição elementos cujo conteúdo no organismo constitui menos de 0,01% do peso corporal), destacam-se o zinco, flúor, manganês, cobre, cobalto, cromo (ou crómio), selénio e molibdénio com funções importantes em diversos processos metabólicos; com efeito, os mesmos são componentes de sistemas enzimáticos ou actuam como componentes de metaloenzimas, ou como cofactores de determinadas enzimas (Quadro 7).

QUADRO 7 – Doses recomendadas de alguns oligoelementos*

mg= miligrama; mcg= micrograma

Segundo a NAS, 2004

Idade (meses)Ferro (mg)Zinco (mg)Iodo (mcg)Selénio (mg)Cobre (mcg)Manganês (mg)Crómio (mcg)Molibdénio (mcg)Flúor (mg)
0-60,27 (AI)2 (AI)110 (AI)15 (AI)200 (AI)0,003 (AI)0,2 (AI)2 (AI)0,01 (AI)
7-1210 (RDA)5 (RDA)130 (AI)20 (AI)220 (AI)0,6 (AI)5,5 (AI)3 (AI)0,25 (AI)

Nesta alínea referente a minerais será dada ênfase especial ao cálcio, fósforo, magnésio, ferro e flúor discriminando-se por fim, em quadro sinóptico, os principais sinais e sintomas de situações em que se verificam carências ou excessos de minerais. Relativamente ao cloro, sódio e potássio o Quadro 8 resume as RDA estabelecidas em mg/dia no primeiro ano de vida.

QUADRO 8 – Sódio, potássio e cloro (RDA em mg/dia)

IdadeSódioPotássioCloro
(0-6 meses)120500180
(6-12 meses)200700300
6.1 Cálcio

A absorção de cálcio, que pode variar de 20 a 70% da quantidade ingerida, relaciona-se fundamentalmente com os níveis de vitamina D e de paratormona, podendo ser facilitada por certos factores como a presença de lactose, lisina, arginina e ácido ascórbico no regime alimentar, e pela acção dos sais biliares.

Pelo contrário, a absorção pode diminuir com o suprimento excessivo de fosfato, oxalatos, e fibra, assim como em situações em que existe défice de absorção de gorduras.

O leite materno fornece cerca de 300 mg de cálcio/dia com uma taxa de absorção de 75%; nos lactentes alimentados com leites industriais (fórmulas) tal absorção é inferior: cerca de 20-50%.

De acordo com a NAS, 2004 a dose (AI) recomendada de cálcio a ingerir é 210 mg/dia no primeiro semestre e 270 mg/dia no segundo semestre. Entre o 1 ano e 9 anos as doses aumentam respectivamente de 500 mg para 700 mg e de 900 para 1000 mg dos 10 aos 16 anos.

Em todas as idades não devem ser ultrapassadas as doses de 2500 mg/dia.

A relação Ca/P afecta a absorção mineral, variando largamente em diferentes alimentos: vegetais verdes-2,8/1; leite humano – 2/1; leite de vaca – 1,2/1; carne -0,6/1. A relação Ca/P favorável no leite humano é particularmente importante para assegurar a mineralização óssea e a formação da estrutura dentária.

6.2 Fósforo

Relativamente ao fósforo, as doses (AI) recomendadas pela NAS, 2004 são: 150 mg/dia dos 0-6 meses e 275 mg/dia dos 5-12 meses.

A ESPGHAN (European Society for Pediatric Gastroenterology-Hepatology and Nutrition) recomenda suprimentos de 30 mg/100 kcal (20 mg/100 ml) e um máximo de 50 mg/100 kcal com uma relação Ca/P entre 1,2 e 2.

Entre o 1 ano e 16 anos as doses sobem progressivamente para valores entre 300 mg/dia e 850 mg/dia.

Os lactentes alimentados com fórmulas de alto conteúdo em fósforo, superior ao do leite materno (15 mg/100 ml), excretam grande parte deste mineral pela urina com consequente aumento da osmolalidade urinária. De referir, no entanto, que as fórmulas à base de proteína de soja apresentam uma menor biodisponibilidade do fósforo presente, pelo que possuem, geralmente, um maior teor deste elemento.

Por outro lado, um excesso de fósforo pode conduzir a hiperfosfatémia e, secundariamente, a hipocalcémia.

6.3 Magnésio

As doses recomendadas de magnésio (AI) pela NAS, 2004 no primeiro ano de vida oscilam entre 30 mg/dia (0-6 meses) e 75 mg/dia (7-12 meses). Até aos 16 anos as doses (RDA) sobem progressivamente até 200 mg/dia.

Salienta-se que, relativamente ao cálcio, fósforo e magnésio, a inexistência até aos 12 meses de dados seguros quanto aos suprimentos RDA conduziu à substituição por suprimento AI.

Após os 12 meses de idade apenas existem dados sobre RDA relativamente ao fósforo e magnésio.

6.4 Ferro

O ferro desempenha um importante papel no organismo, sendo fundamental para o crescimento em geral, e o desenvolvimento cognitivo. Assim, a carência do referido mineral comporta riscos imediatos e a longo prazo, pelo que se torna fundamental evitar tal situação, particularmente nos primeiros anos de vida e, mais tarde, na adolescência. Embora o leite humano e o leite de vaca contenham um fraco teor em ferro (respectivamente 0,50 mg/litro versus 0,25-0,75 mg/litro) a sua taxa de absorção é cerca de 50% no caso do leite humano, muito superior à que se verifica com o leite de vaca (7-15%).

O leite humano pode cobrir as necessidades nos primeiros 4-6 meses de vida após gravidez de termo. No recém-nascido pré-termo há que ter em conta as reservas deficitárias que se esgotam quando duplica o peso de nascimento.

Os lactentes entre os 4-12 meses absorvem, em geral, 0,8 mg/dia.

Entre os 0-6 meses a criança necessita aproximadamente de 0,27 mg/dia (AI) (Quadro 7). Entre os 14 e 18 anos as doses recomendadas oscilam entre 10 e 12 mg/ dia (RDA).

Para minorar o risco de anemia ferropénica no primeiro ano de vida, deve ser garantido a todos os lactentes, entre os 3 e os 12 meses de idade, um suprimento em ferro de cerca de 1 mg/kg/dia, pelo menos até que a sua ingestão alimentar assegure os 11 mg/dia. Neste contexto, é recomendável que as fórmulas lácteas sejam enriquecidas com ferro, com uma concentração de 10-12 mg/L. (ver capítulo sobre Anemia Ferropénica)

6.5 Flúor

Actualmente, considera-se polémico o papel do flúor como nutriente essencial e indubitável quanto ao efeito benéfico na prevenção da cárie dentária. Por razões históricas e científicas dá-se a conhecer ao leitor o Quadro 9, eventualmente aplicável em Portugal nas zonas onde se conhece o teor em flúor da água de consumo público. Por outro lado, considera-se fundamental consultar o Quadro 2 (baseado no Programa de Promoção da Saúde Oral da Direcção Geral da Saúde) no capítulo sobre Cárie Dentária, abordando-se a importância do flúor tópico em detrimento da administração do flúor por via oral, somente levada a efeito em situações de excepção.

QUADRO 9 – Suplementação de flúor (mg/dia) de acordo com a idade e o teor em ião flúor na água de consumo público na zona onde a criança vive 

Obs.: 2,2 mg de fluoreto de sódio contém 1 mg de ião flúor; 1 ppm= 1 mg/Litro (segundo CDC). Consultar capítulo sobre Cárie Dentária.

(ppm= partes por milhão)

Idade<0,3 ppm0,3-0,6 ppm>0,6 ppm
6 m-3 anos0,2500
> 3-6 anos0,500,250
> 6-16 anos1,000,500
6.6 Zinco, Iodo, Selénio, Cobre, Manganês, Crómio e Molibdénio

O Quadro 7 resume as doses recomendadas de ingestão (RDA e AI) destes minerais no primeiro ano de vida tendo como base o conteúdo dos mesmos no leite humano.

6.7 Carência e excesso de minerais

O Quadro 10 resume os principais sinais e sintomas de carência e de excesso de minerais.

QUADRO 10 – Sintomas e sinais de carência e de excesso de minerais

· Alumínio (excesso: alterações do sistema nervoso central)
· Boro (deficiência: anomalias de calcificação)
· Cálcio (deficiência: tetania, osteomalácia; excesso: obstipação, bloqueio cardíaco)
· Cloro (deficiência: alcalose)
· Crómio (deficiência: diabetes em animais)
· Cobalto (deficiência: carência de vitamina B12 e hipotiroidismo; excesso: cardiomiopatia)
· Cobre (deficiência: anemia, osteoporose; excesso: cirrose)
· Iodo (deficiência e carência: bócio)
· Ferro (deficiência: anemia, alterações do comportamento; excesso: hemossiderose)
· Chumbo (excesso: neuropatia)
· Magnésio (deficiência: hipocalcémia, hipocaliémia)
· Molibdénio (pouco conhecidos os efeitos de excesso ou de deficiência)
· Fósforo (deficiência: raquitismo; excesso: carência em cálcio)
· Potássio (deficiência: fraqueza muscular; excesso: bloqueio cardíaco)
· Selénio (deficiência: cardiomiopatia; excesso: alterações das unhas e cabelo, odor a alho)
· Sódio (deficiência: hipotensão; excesso: edema)
· Enxofre (deficiência: hipocrescimento; excesso: desconhecido)
· Zinco (deficiência: hipocrescimento, dermatite; excesso: vómitos, diarreia, dermatose)

7. Vitaminas

As vitaminas são substâncias indispensáveis ao crescimento e ao funcionamento dos órgãos, fornecidas, na sua maior parte, em pequena quantidade pela alimentação, que o organismo não é capaz de sintetizar. Com actividades muito diversas, actuam em doses mínimas, participando como cofactores no metabolismo celular, na elaboração de hormonas e de enzimas, quer favorecendo a sua produção, quer entrando directamente na sua composição química.

As vitaminas de origem alimentar classificam-se como: vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) e hidrossolúveis (vitaminas do grupo B e vitamina C).

As necessidades de vitaminas foram estabelecidas no Codex Alimentarius.

Food and Nutrition Board, através das RDA (Recommended Dietary Allowances) em 1998 modificou as doses de ingestão respeitantes a vitaminas hidrossolúveis e vitamina D.

Antes duma abordagem sucinta sobre as vitaminas hidrossolúveis e lipossolúveis é importante referir três noções importantes em Nutrição na idade pediátrica:

  • O leite materno é deficitário em vitamina D e em vitamina K nos primeiros dias;
  • A modalidade de fórmula adaptada (tópico a analisar em mais pormenor no capítulo 55) cobre as necessidades se o lactente receber como mínimo 750 ml por dia;
  • Os suplementos vitamínicos são desnecessários a partir do primeiro ano de vida completo no pressuposto de que a alimentação variada cobre todas as necessidades.
7.1 Vitaminas lipossolúveis
Vitamina D

A vitamina D é uma verdadeira hormona secosteróide, com receptores em todos os tecidos humanos, salientando-se a sua acção ao nível do esqueleto, há muito conhecida. Actualmente, diversos estudos demonstraram igualmente efeitos na função imune, na protecção contra o cancro, doenças cardiovasculares, infecções e em doenças autoimunes como diabetes mellitus tipo 1 e esclerose múltipla. Como marcador do património ou “estado” da vitamina D no organismo utiliza-se a concentração do metabólito de vitamina D 25(OH) -vitamina D: deficiente se <15 ng/mL; insuficiente se entre 15 e 30 ng/mL; e suficiente se >30 ng/mL.

As principais acções bioquímicas (de tipo hormonal) são: a formação de uma proteína de ligação e de transporte do cálcio nas células epiteliais da mucosa duodenal; absorção do fósforo e a reabsorção óssea. Estas acções dependem da paratormona e da ingestão de cálcio.

De acordo com a ESPGHAN, 2013 foi estabelecida a ingestão recomendada (AI) de 400 UI/dia (10 mcg/dia de colecalciferol) no pressuposto de que é insuficiente, ou se desconhece, ou não existe exposição à luz solar. O nível máximo foi estabelecido em 1000 UI /dia (25 mcg/dia de colecalciferol). A suplementação deve ser feita diariamente a todos os lactentes e, a partir dos 12 meses de idade, sempre que a exposição solar for insuficiente. (ver adiante capítulo sobre Carências de vitaminas e minerais).

A maioria das fórmulas contém 1,5 mcg (60 UI) de vitamina D por 100 kcal (ou 10 mcg/Litro).

Em países como os EUA e Canadá é recomendada a suplementação em vitamina D nos casos de alimentação ao peito exclusiva. Por outro lado, diversos estudos demonstraram que a referida não suplementação em tal circunstância comporta risco de deficiência em vitamina D entre os 2 e 3 meses de idade.

Vitamina A

A vitamina A (retinol, axeroftalmol) é um álcool de cadeia pesada que se encontra na natureza essencialmente sob a forma de ésteres de ácidos gordos; pode apresentar-se sob 16 formas isómeras; destas, o chamado retinol “all trans” é a forma biologicamente mais activa.

A vitamina A somente se encontra em produtos de origem animal (óleo de fígado de peixes como pescada, bacalhau, atum, etc.). As pró-vitaminas (ou carotenóides, cujo representante principal é o beta-caroteno) encontram-se, sobretudo, em vegetais (cenouras, espinafres, couves), mas também em órgãos (como rim, fígado, baço). A bílis é indispensável para a sua absorção.

A vitamina A desempenha um papel importante: na manutenção da integridade dos epitélios favorecendo a síntese de mucopolissacáridos e a secreção de muco; como indutor enzimático com especial relevância ao nível dos microssomas hepáticos; e na formação da púrpura retiniana do pigmento vermelho retiniano ou rodopsina, receptor da luz para a visão de fracas intensidades (visão crepuscular). A dose diária recomendada de vitamina A (que é armazenada no fígado e requerendo uma proteína de ligação para circular) é 60 mcg de equivalentes de retinol (EAR) por 100 kcal (200 UI), sendo de referir que 1 mcg de retinol corresponde a 3.31 UI.

Na prática considera-se: dos 0-12 meses → 400-500 mcg/dia (AI); entre 1 e 18 anos → 300-900 mcg/dia (RDA).

Vitamina K (naftoquinonas)

Tem papel fundamental na coagulação do sangue contribuindo para a formação dos factores II, VII, IX, X, e das proteínas C, Z, S. Sintetizada pelas bactérias intestinais, a bílis é indispensável para a sua absorção.

Ao contrário doutras vitaminas, as reservas e os níveis séricos de vitamina K dos recém-nascidos de mães bem nutridas são baixos. Nesta conformidade, constitui rotina a administração de vitamina K a todos os recém-nascidos no pós-parto (0,5-1 mg) para prevenção da doença hemorrágica do recém-nascido. Posteriormente aconselham-se doses (AI) de 2 mcg/dia até aos 6 meses e 2,5 mcg/dia até ao 1 ano. A partir desta idade as doses sobem progressivamente entre 30 e 75 mcg/dia até ao final da adolescência e idade adulta.

A vitamina K está presente na maioria das fórmulas, não necessitando o lactente de suplemento. De referir que o teor em vitamina K no leite materno é inferior ao das fórmulas infantis.

Vitamina E (tocoferol)

Trata-se do principal antioxidante biológico lipossolúvel com um papel importante na estabilização das membranas biológicas prevenindo a peroxidação dos ácidos gordos poli-insaturados. A sua absorção depende da acção da bílis e do suco pancreático.

Os lactentes de termo requerem aproximadamente 0.7 UI de acetato de alfa-tocoferol (sendo 1 UI = 1 mg) por 100 kcal. As necessidades aumentam com a administração de grandes quantidades de ácidos gordos poli-insaturados. Entre os 0-12 meses as doses (AI) oscilam entre 4 e 5 mg/dia. Entre o 1 ano e a idade adulta as doses (RDA) sobem proporcionalmente à idade entre 6 e 10 mg/dia.

A vitamina está largamente distribuída nos óleos vegetais e nas sementes de cereais.

7.2 Vitaminas hidrossolúveis

As necessidades em vitaminas hidrossolúveis (complexo B e colina) são resumidas no Quadro 11.

QUADRO 11 – Suprimento diário (RDA) e (AI) de vitaminas hidrossolúveis (complexo B e colina)

(NAS, 2004)

Idade (meses)Tiamina (mg)Riboflavina (mg)Niacina (mg)Vit. B6 (mg)Folato (mcg)Vit. B12 (mcg)Ácido pantoténico (mg)Biotina (mcg)Colina (mg)
0-6 (AI)0,20,320,1650,41,75125
>6-12 (AI)0,30,440,3800,51,96150
(anos)
1-18 (RDA)0,4-1,10,5-1.35-150,5-1,3150-4000,9-2,42-5 (AI)8-30 (AI)200-400 (AI)

Dum modo geral pode afirmar-se que as carências em vitaminas hidrossolúveis são raras em crianças alimentadas, quer com leite materno, quer com fórmulas.

As vitaminas do complexo B são essenciais para o metabolismo das proteínas, gorduras e hidratos de carbono; actuam igualmente nas reacções de oxidação-redução, transaminação, descarboxilação, glicólise e hematopoiese.

A vitamina C é absorvida por simples difusão. Quanto às acções bioquímicas, desconhecem-se os mecanismos exactos, sendo de salientar o seu papel no metabolismo da folacina, na biossíntese do colagénio, na absorção e transporte do ferro, e no metabolismo da tirosina.

No leite materno existe quantidade de vitamina C necessária para cobrir as necessidades da criança durante o período de aleitamento exclusivo, não estando indicado nenhum tipo de suplementação.

Tendo em conta que o teor em vitamina C varia com o regime alimentar da mãe, de acordo com certas correntes é recomendado o suplemento de 35 mg/dia, durante o primeiro ano de vida e ulteriormente; saliente-se que as doses recomendadas para o adulto são cerca de 70 mg/dia (RDA/AI).

De acordo com a ESPGHAN recomenda-se a relação molar de 5:1 entre vitamina C e ferro na composição das fórmulas lácteas, o que equivale a estabelecer um valor mínimo de vitamina C de 16 mg /100 kcal.

Uma chamada de atenção para os riscos da ingestão de doses exageradas de vitamina C (500 mg–1500 mg) nos adultos (eventualmente extrapoláveis para a idade pediátrica) durante período superior a duas semanas: risco de nefrolitíase e de compromisso da absorção de vitamina B12, entre outros.

8. Carência e excesso de vitaminas

O Quadro 12 resume os principais sintomas e sinais de carência e de excesso de vitaminas.

QUADRO 12 – Sintomas e sinais de carência ou excesso de vitaminas

Vitamina A (carência: pele áspera, xeroftalmia, cegueira, predisposição para infecções; excesso: dores ósseas, pseudo tumor cerebri)

Vitamina D (carência ou deficiência: raquitismo, desmineralização óssea; excesso: obstipação, hipercalcémia, calcificações renais, insuficiência renal)

Vitamina E (carência: hemólise no recém-nascido pré-termo, neuropatia; excesso: interferência com o metabolismo da vitamina K predispondo a hemorragias)

Vitamina K (carência: hipoprotrombinémia, hemorragias, hematomas; excesso: hemólise)

Tiamina / vitamina B1 (carência: ataxia, beribéri)

Riboflavina / vitamina B2 (carência: queilose, seborreia)

Niacina / vitamina B3 ou PP (carência: pelagra; excesso: rubor)

Piridoxina / vitamina B6 (carência: convulsões, anemia; excesso: neuropatia)

Biotina / vitamina B8 ou H (carência: dermatite)

Folato (carência: anemia megaloblástica)

Vitamina B12 / cianocobalamina (carência: anemia megaloblástica, acidúria metilmalónica)

Vitamina C / ácido ascórbico (carência: escorbuto, gengivite ulcerosa, hemorragia subperióstica, rosário condrocostal, hematúria, etc.; excesso: nefrolitíase, compromisso da absorção da vitamina B12)

 

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REIDRATAÇÃO

Aspectos gerais

O esquema terapêutico da desidratação (ou reidratação) é um processo dinâmico que implica vigilância constante ou frequente “à cabeceira do doente”, devendo, pois, ser individualizado.

A reidratação pode ser levada a cabo por via oral, por via endovenosa ou pelas duas vias em combinação.

Em muitos casos poderá haver necessidade de modificação de estratégias inicialmente planeadas face à evolução clínica, o que é explicável: pelos mecanismos de compensação do organismo que variam em função da gravidade; pela possibilidade de, a partir de determinada fase, o doente passar a tolerar a administração de solutos por via oral (nos casos de se ter iniciado a correcção por via endovenosa), ou o contrário (nos casos em que a correcção iniciada por via oral passar a ser inviável por diversos motivos).

Numa primeira fase haverá que calcular o valor das perdas, ou seja, o défice em líquidos.

Os exames complementares considerados essenciais são: ionograma sérico, (prioritário) determinação de ureia e creatinina no sangue, pH e gases no sangue, análise sumária de urina (densidade e osmolalidade) e hematócrito. Em casos especiais pode estar indicado o ionograma urinário de 12 ou 24 horas.

Quantificação do défice

Quantificando a desidratação pela percentagem de perda de peso relacionada com os sinais e sintomas atrás apontados são adoptados os seguintes procedimentos para reposição do défice:

  • Défice entre 3-5%
    Pode ser corrigido, em geral, com solutos por via oral e em regime ambulatório mantendo o regime alimentar habitual com algumas restrições (ver adiante).
  • Défice entre 6-10%
    Pode ser corrigido, em geral, com solutos por via endovenosa inicialmente, seguindo-se a administração ulterior de solutos por via oral, dependendo da tolerância digestiva (vómitos ou não).
  • Défice superior a 10%
    Nesta situação acompanhada ou não de choque, há indicação de fluidoterapia endovenosa e de seguimento inicial no hospital. Para melhor compreensão do problema é descrita primeiramente, como modelo, a correcção por via endovenosa.

Reidratação endovenosa

1ª Fase: reposição da volémia em situação de défice >10-15% (choque)

Trata-se duma actuação prioritária tendo em vista a preservação da função cardiovascular para garantia de eficaz perfusão dos órgãos, com especial relevância para o encéfalo e rins.

Actuação prática: solução isotónica (em geral “soro” fisiológico ou lactato de Ringer) ao ritmo de 10-20 mL/kg/hora; a duração desta fase, (entre 1 a 2 horas) variará em função do contexto clínico, grau de desidratação e resposta inicial.

Este procedimento pode ser repetido duas a três vezes até obtenção de pressão arterial adequada à idade e de diurese. Caso não haja resposta deverá ser monitorizada a pressão venosa central (PVC) mediante a colocação de cateter venoso central e solicitado internamento em unidade de cuidados intensivos pediátricos.

No caso de se tratar de situação com predomínio de vómitos (por exemplo estenose hipertrófica do piloro com perdas de conteúdo gástrico, ácido), dada a probabilidade de surgir alcalose metabólica, não está indicado o lactato de Ringer que pode exacerbar esta última.

2ª Fase: reposição do défice de líquidos e electrólitos

O plano de reposição do défice implica a obediência a um conjunto de princípios: administração concomitante, nesta fase, dos líquidos e electrólitos para a manutenção; reposição do défice em tempo a determinar, variando em função do tipo de desidratação; relativamente ao catião potássio (K+), predominantemente intracelular, a compensação/reposição das perdas não pode ser imediata pelos perigos que tal envolve: somente deverá ser incorporado no soluto de manutenção após comprovação de diurese mantida respeitando certos limites no suprimento (não exceder 40 mEq/litro de solução nem 0,5 mEq/kg/hora).

Tipo de solução

Na prática utiliza-se soluto salino fisiológico (SF ou NaCl a 0,9%) contendo 154 mEq da Na e 154 mEq de Cl.

Planos
I) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes com peso <25 kg
  • SF em dextrose a 5%;
  • Volume: correspondente ao défice (por exemplo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, será 1000 mL);
  • Débito ou “velocidade” de administração: 6-8 horas (chamando-se a atenção para a necessidade de vigilância constante para avaliação da resposta do doente e, eventualmente, modificação da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o défice; planeando para 8 horas, o débito será 125mL/hora;
  • Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao soluto na proporção, em regra empírica, de 20 mEq/L de solução após o doente ter tido duas micções.

Notas importantes:

  1. Este plano implicando administração de “grande volume” de soluto em ritmo relativamente rápido não é aplicável em doentes com mais de 25 kg, adolescentes, desidratação com défice/perda de peso superior a 10%, com cetoacidose diabética nem com desidratação hipernatrémica.
  2. Com este plano, está implícita a estratégia de considerar a contabilização das necessidades de manutenção somente após a correcção do défice (no exemplo atrás referido, somente após as 6-8 horas, corrigido o défice após administração de 1000 mL);
  3. Na desidratação hiponatrémica poderá haver necessidade de administrar sódio extra (a acrescentar à solução atrás referida (SF em dextrose a 5%) em função da natrémia entretanto determinada, aplicando a fórmula:
    Défice em sódio = (130 – Na sérico) x 0,6 x peso (em kg).

Em lactentes com perdas de carácter grave, os défices prováveis, por Kg peso, são os descritos no Quadro 1.

II) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes com peso ≥25 kg

Como particularidade nesta situação, está implícita a estratégia de reposição do défice mais lenta, e de contabilização concomitante, já nesta fase, das necessidades de manutenção.

  • SF em dextrose a 5%;
  • Volume: correspondente a metade do défice acrescentado das necessidades de manutenção (por exemplo doente de 26 kg e desidratação <> 10%, será 2600 mL + 1620 mL);
  • Débito ou “velocidade” de administração: 6-8 horas (chamando-se a atenção para a necessidade de vigilância constante para avaliação da resposta do doente e, eventualmente, modificação da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o défice; assim, o débito nas primeiras 8 horas será metade de 2600 mL, isto é 1300 mL, acrescentando-se, para as 16 horas seguintes (ou 24 horas menos 8 horas = 16 horas) os restantes 1300 mL aos cálculos da manutenção: (ou seja, 1300 mL + 1620 mL = 2920 mL) o que corresponde a um ritmo ou débito de 182 ml /hora.
    Alguns autores contabilizam o volume calculado para as 24 horas seguintes; no exemplo citado, para o volume calculado, o débito seria então 121,6 mL/hora.
  • Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao soluto na proporção, em regra empírica de 20 mEq/L de solução após o doente ter tido duas micções.

Notas importantes:
Quer o plano I, quer o plano II poderão ser aplicados em casos de doentes com desidratação hipotónica ou isotónica em geral, mas não em crianças e lactentes com quadro de desidratação hipertónica.

QUADRO 1 – Défices prováveis/kg de peso em lactentes com quadro de desidratação grave

DesidrataçãoH20 (mL)Na (mEq)K (mEq)Cl (mEq)
Isotónica100-1208-108-105-10
Hipertónica100-1202-40-4(-2) a (-6)
Hipotónica100-12010-128-1010-12
Vómitos    
(Estenose do piloro)100-1208-1010-1210-12
III) Desidratação hipertónica

No caso da desidratação hipertónica a reposição do défice de líquidos e electrólitos tem particularidades relacionadas essencialmente com a necessidade de duração superior à referida para a forma iso-hipotónica; por outro lado, a particularidade de manifestação dos sinais subestima muitas vezes a gravidade da situação. Tratando-se duma forma de desidratação em que há predomínio de perda de água em relação ao sódio (Na) com consequentes hipernatrémia e hiperosmolaridade séricas, para a correcção não deverão ser utilizados solutos hipotónicos pelo risco de passagem rápida de água para o espaço intracelular, e de edema celular com implicações graves ao nível do sistema nervoso central (edema cerebral podendo originar, por exemplo, convulsões). Com efeito, neste tipo de desidratação predominantemente intracelular o encéfalo “gera” osmoles idiogénicos para manter o volume celular; assim, a correcção do défice deve ser realizada de modo muito lento.

Na prática, e não existindo sinais de choque (cujo tratamento é prioritário e semelhante ao que foi referido noutras formas de desidratação), procede-se do seguinte modo:

  • Soluto: SF em dextrose a 5%;
  • Débito ou “velocidade” de administração sempre superior a 24 horas, dependendo da natrémia (Na em mEq/L):
    • 145-157 → em 24 horas;
    • 158-170 → em 48 horas;
    • > 170 mEq/L → superior a 48 horas.

(Salienta-se que mais importante do que a composição do soluto é a lentidão da correcção do défice).

  • Volume inicial: correspondente a metade do défice, acrescentado das necessidades de manutenção (por exemplo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, com valor de natrémia de 160 mEq/L implicando reposição do défice em 48 horas), será:
    • 500 mL (metade do défice para as primeiras 24 horas + 1000 mL de soluto de manutenção);
    • a restante metade do défice nas restantes 24 horas (ou os restantes 500 mL do défice) + 1000 mL de soluto de manutenção;
  • Cloreto de potássio (KCl) a acrescentar segundo a regra empírica de 20 mEq/L de solução após o doente ter tido duas micções (diurese >1 ml/kg/hora).

Complicações que podem ocorrer no contexto da desidratação hipernatrémica/hipertónica:

  • Hipocalcémia; se for sintomática, deve proceder-se à sua correcção administrando gluconato de cálcio por via endovenosa com monitorização cardíaca (ver tratamento da hipocalcémia) sendo que na solução de gluconato de cálcio (Ca) a 10%: 1 mL <> 100 mg de gluconato de cálcio e 9 mg de Ca elemento <> 0,45 mEq de Ca++ ionizado;
  • Acidose metabólica (ver tratamento da acidose); neste caso ter-se-á em conta o suprimento de Na que é veiculado com o bicarbonato administrado para correcção da acidose metabólica, o que implica diminuir o suprimento correspondente de Na no soluto de reposição a administrar calculado; tal poderá condicionar a administração de SF diluído a 1/2 ou mesmo a 1/3, sob pena de induzirmos o agravamento da hiperosmolaridade e hipernatrémia. Contudo, ao contrário do defendido por alguns clínicos, é fundamental a correcção da acidose metabólica grave na desidratação hipertónica, mesmo correndo o risco de agravar ligeiramente a hipernatrémia, atendendo a que órgãos como coração, rim e SNC estão em sofrimento agudo e podem sofrer danos irreversíveis. É este frágil equilíbrio hidroelectrolítico que torna particularmente difícil e de risco a correcção da desidratação hipertónica, particularmente quando grave e associada a acidose, exigindo monitorização clínico-laboratorial apertada;
  • Hiperglicémia (relacionada com défice de secreção de insulina e diminuição da sensibilidade dos receptores celulares à mesma). Ao avaliar a taxa de declínio da natrémia, há que entrar em linha de conta com o efeito da hiperglicémia; ou seja, o valor de Na sérico/natrémia determinado é mais baixo que a “verdadeira natrémia” em cerca de 1,6 mEq/L por cada 100 mg/dL de glicémia acima de 100 mg/dL. Exemplificando: o valor de uma natrémia de 170 mEq/L determinada em situação de glicémia de 600 mg/dL corresponde, de facto, a um valor real de 178 mEq/L de Na sérico.

Monitorização

Sendo a reidratação um processo dinâmico, chama-se a atenção para a necessidade de vigilância permanente com avaliação dos seguintes parâmetros:

  • Sinais vitais (frequência cardíaca/pulso, frequência respiratória, pressão arterial);
  • Peso;
  • Temperatura corporal;
  • Balanço com registo de suprimento e de “saídas” de líquidos (fezes, urina, perdas insensíveis, líquidos de drenagem, perdas para o “terceiro espaço”);
  • Ionograma sérico (natrémia, caliémia e calcémia), osmolalidade sérica, densidade urinária (elevada inicialmente entre 1020 e 1030);
  • Eventualmente: azotémia, creatinina e hematócrito, etc..

Estes procedimentos têm em vista possível reajustamento do débito e do volume em cada 8, 12 e 24 horas em função do tipo de resposta do doente.

O débito de administração deve ser ajustado de modo que se verifique diminuição da natrémia ao ritmo aproximado de 0,5 mEq/L/hora ou 12 mEq/L/dia (caso específico da desidratação hipertónica hipernatrémica).

Em cada 24 horas, no mínimo, deverá proceder-se a nova programação de débito e de volume contabilizando as necessidades de manutenção.

Concretizando com várias hipóteses:

  1. Se o doente evidenciar taquicardia persistente mantendo-se os sinais de desidratação, o grau de desidratação poderá ter sido subavaliado inicialmente ou poderá haver perdas superiores às inicialmente previstas. Em tais circunstâncias o débito da administração deverá ser aumentado;
  2. Se o doente melhorar rapidamente e a densidade urinária diminuir progressivamente, a fase da reposição do défice poderá ser encurtada, passando-se para a 3ª fase. (ver adiante)
  3. Se a natrémia (Na) diminuir rapidamente, diminuir o débito ou aumentar a concentração de Na no soluto;
  4. Se o Na diminuir muito lentamente (<12 mEq/L/dia ou <0,5 mEq/L/hora), diminuir a concentração de Na do soluto, ou aumentar o débito do mesmo. Sublinhe-se, contudo, que é preferível uma descida mais lenta do que demasiado rápida, tendo em conta que nem sempre é possível conseguir a descida do Na de acordo com o programado.

Salienta-se que as perdas, entretanto verificadas, deverão ser sempre contabilizadas ao longo do processo de correcção do défice.

3ª Fase: manutenção

A abordagem desta fase considerada separadamente, por razões de melhor compreensão, da fase de reposição do défice, é aplicável nas situações de desidratação iso-hipotónica (plano I) pois, de facto já foi feita referência à mesma a propósito das situações de desidratação hipernatrémica e de desidratação em casos de peso igual ou superior a 25 kg de peso.

  • Débito ou “velocidade” de administração: os cálculos são feitos tendo como base as necessidades em líquidos para 24 horas, contabilizando também, tanto quanto possível, as perdas para o “terceiro espaço”.
  • Soluto: soluto de manutenção (SF diluído a 1/5) em volume discriminado no Quadro 3 do primeiro capítulo desta Parte, acrescentado de KCl na dose de 20 mEq/L desde que haja garantia de diurese mantida.
  • Duração: em função da situação clínica, iniciando-se, logo que possível em concomitância, a reidratação oral (ver adiante).
  • Particularidades: se as perdas para o terceiro espaço forem significativas e prolongadas, dever-se-á determinar a composição em electrólitos das mesmas sendo necessário proceder à compensação em volume e em composição.

Reidratação oral/entérica

Indicações

A reidratação com solutos por via oral, utilizada actualmente na maioria dos casos, está indicada nos casos de desidratação ligeira a moderada por diarreia aguda (desidratação correspondente a perda de menos de 10% do peso); por vezes, se a situação o permitir, poderá ser levada a cabo concomitantemente com a reidratação por via endovenosa, contabilizando com rigor o suprimento dos respectivos solutos.

Contra-indicações

Esta modalidade de reidratação está contra-indicada nas seguintes situações: desequilíbrios hidroelectrolíticos importantes, choque, sépsis, íleo paralítico, vómitos incoercíveis, perdas fecais superiores a 10 mL/kg/hora, disfunção renal, alterações da consciência, idade inferior a 3 meses e falência de reidratação oral prévia.

Fundamentação

A base fisiológica que legitima a administração de soluções (água e electrólitos) por via oral relaciona-se com a verificação de que a absorção de água e sódio por via intestinal pode ser rendibilizada com a adição de glucose.

De acordo com estudos realizados demonstrou-se que as soluções de reidratação oral (SRO) podem corrigir com maior segurança a desidratação hipernatrémica do que os solutos por via endovenosa, havendo menor risco de convulsões.

Preparados comerciais

Existe grande variedade de preparados comerciais de soluções para reidratação oral (sigla ORS em inglês).

A composição-tipo por litro (/L) é a seguinte:
glicose /hidrato de carbono → 20 a 30 gramas; Na → 75 a 60 mEq; Cl → 35 a 80 mEq; k→ 20 a 25 mEq; citrato → 30 a 34 mEq; e 200 a 330 mOsm.

Como particularidades há a salientar diferença entre a solução tipo OMS/UNICEF (cuja relação Na/K em mEq/L é 90/20) e a solução tipo ESPGHAN em que a mesma relação é 60/20. O soluto OMS/UNICEF foi inicialmente concebido para o tratamento de situações de cólera em África e países em desenvolvimento; daí o seu teor superior em sódio.

No nosso meio, segundo a ESPGHAN (Portugal e países desenvolvidos sem aquele problema) estão mais indicadas as SRO com teor mais baixo em sódio; com efeito, a diarreia fora daquela situação (cólera) é constituída por líquido hipotónico.

Procedimento

Na prática:

  • Desidratação ligeira → alternar SRO com alimentação;
  • Desidratação moderada → SRO na dose de 15-25 ml/kg/hora (1 a 2 colheres das de chá de 5 em 5 minutos) durante 4 horas, mantendo alimentação por via oral (com leite materno ou fórmula).

Em regra, considera-se necessário o suprimento de cerca de 10 mL/kg por cada dejecção.

Quando a reidratação oral não é possível, pode recorrer-se à reidratação por via entérica por sonda gástrica (oro ou naso-), tão ou mais eficaz que a via endovenosa; com efeito, comporta menor risco de reacções adversas, obrigando em geral a menor duração do internamento.

Situações especiais

Seguidamente são sintetizados aspectos semiológicos e os procedimentos a realizar perante as alterações mais frequentes do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base associadas, por vezes, a quadros clínicos de desidratação.

Acidose metabólica na desidratação (hipertónica ou iso-hipotónica)

Substituir parcialmente o soro fisiológico (Na Cl 0,9% em que 1 ml=0,154 mEq de Cl e 0,154 mEq de Na+) por bicarbonato de sódio a 8,4% em que 1 ml=1 mEq de H– CO3 e 1 mEq de Na+).
Aplicar as fórmulas: nº de mEq de H COa administrar: peso em Kg x Défice de Base x 0,3 (ou 0,5 se se tratar de recém-nascido).
Se pH <7.15: administrar 1/2 da dose calculada em injecção intravenosa (i.v. directa em 30-60 minutos), diluída como se referiu atrás, e 1/2 em perfusão lenta a juntar à perfusão prescrita.

N.B.

  • Após correcção da acidose, verificar calcémia e caliémia e corrigir em conformidade, se necessário.
  • Nunca juntar no mesmo frasco bicarbonato de sódio com gluconato de cálcio a 10%.
  • O défice de base de 0 a 5 não necessita de correcção.
  • A acidose metabólica pode ser acompanhada ou não de hiato aniónico alterado.
  • Na hipótese de hiato aniónico >11 com clorémia normal há que admitir a possibilidade de acumulação de compostos tóxicos ácidos (por ex. ácidos orgânicos e respectivos metabolitos, ou de lactato e corpos cetónicos).
  • Na hipótese de hiato aniónico entre 4 e 11 associado a pH urinário alcalino, na ausência de ácido láctico aumentado e de hipoglicémia, há que admitir a probabilidade de acidose tubular renal.
  • Na hipótese de acidose metabólica não completamente esclarecida e acompanhada de hiato aniónico >11, há que admitir a probabilidade de doença hereditária do metabolismo.

Hiponatrémia (Na+ inferior a 130 mEq/l)

a) De depleção (proteinémia e hematócrito normais ou aumentados); perda de Na+ por: vómitos e/ou diarreia; pelo rim (causa renal – tubulopatia; – ou suprarrenal); ou pela administração de NH4.
Sinais de desidratação.

  • Procedimento: para elevar a natrémia (Na ordem dos 10 mEq): P em Kg x0,6×10=nº de mEq de NaCl a administrar.

b) De diluição (proteinémia e hematócrito diminuídos); intoxicação pela água ou SIADH (síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética) (Quadros 2 e 3).

  • SIADH: coma, ausência de sinais de desidratação, convulsões ou letargia, ausência de edema.
  • Intoxicação pela água: salivação, secreção lacrimal, vómitos, edema, convulsões.
    • Procedimento na SIADH: restringir líquidos; administrar sódio, sob a forma de NaCl isotónico (ou hipertónico se houver coma ou convulsões segundo a fórmula e esquema referido antes).
    • Procedimento na intoxicação aquosa: a) Manitol a 10%: 10 ml/Kg que pode ser repetido; b) Administrar Na+ segundo a fórmula atrás referida; em caso de convulsões, administrar NaCl a 3%, 1 ml/min. até máximo de 12 ml ou até que cessem as convulsões.

O Quadro 3 resume as principais causas de SIADH.

QUADRO 2 – Diagnóstico de síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH)

Ausência de insuficiência renal, suprarrenal, hipotiroidismo, insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica, cirrose, ingestão de diuréticos, desidratação

Diagnóstico diferencial laboratorial: 
*Padrão de natrémia e osmolaridade sérica diminuídas (simile SIADH): intoxicação pela água, hipoaldosteroismo, perda renal de sódio, suprimento insuficiente de sódio, e SIADH associada a depleção de sódio.
*Osmolaridade urinária: diminuída na intoxicação pela água e na perda renal de sódio; e aumentada na SIADH, hipoaldosteronismo, SIADH associada a depleção de sódio, e suprimento insuficiente de sódio.

· Osmolaridade urinária >100 mOsm/Kg (em geral superior à sérica)
· Osmolaridade sérica <280 mOsm/Kg
· Natrémia <135 mEq/L
· Natriúria normal ou >30 mEq/L

QUADRO 3 – Principais causas de SIADH

· Patologia intracraniana (tumores, meningite, trauma, hemorragias, etc.)
· Patologia torácica (infecções, tumores, etc.)
· Outras causas (leucemia, SIDA, fármacos-carbamazepina, vincristina, vinblastina, etc.)

Hipernatrémia sem sinais de desidratação ou intoxicação salina (Na+ superior a 150 mEq/L)

Procedimentos: a) Diuréticos (Furosemido 0,5-1 mg/Kg); b) Perfusão i.v. de dextrose a 5%; c) Administração de sais de potássio (K+); d) Eventualmente diálise peritoneal para natrémias superiores a 175 mEq/L.

Hiperpotassémia (K+ superior a 6 mEq/L)

As etiologias mais frequentes relacionam-se com: insuficiência suprarrenal (hiperplasia SR), suprimento em excesso, hemólise, hipotermia, acidose, etc.). Sinais: apatia, bradicardia colapso, ondas T pontiagudas (Quadros 4 e 5). O procedimento é o seguinte:

Tratar o choque hipovolémico quando presente.

  • Gluconato de cálcio a 10%: 0,5-1 mL/kg/dose i.v. em 5-10 minutos;
  • Salbutamol nebulizado ou i.v.: (4 mcg/kg em 15 mL de dextrose a 5% em 15 minutos);
  • Furosemido: 0,5-1 mg/kg i.v.
  • Alcalinização rápida (Preferir HNaCO3 M/2, em que 1 ml=0,5 mEq de bicarbonato), dando 2 a 4 mEq/Kg/em 1 hora;
  • Dextrose a 50%: 1-2 mL/kg i.v. em 30 minutos + Insulina rápida 0,1-0,2 UI/kg (1 UI por cada 5 g de dextrose);
  • Aspiração gástrica;
  • Resinas permutadoras de iões: 1 grama/kg/dose;
  • Diálise peritoneal. N.B.

No caso de estar em causa insuficiência suprarrenal, dar NaCl:
1 g/Kg/dia + Hidrocortisona: 10 mg/Kg/dia.

Hipopotassémia (K+ inferior a 3,5 mEq/L; grave se inferior a 2,5 mEq/L)

As etiologias mais frequentes são: vómitos e/ou diarreia, tubulopatias, coma diabético, administração excessiva de fluidos endovenosos promovendo diurese excessiva e arrastando K+) (Quadros 4 e 5)

QUADRO 4 – Manifestações clínicas da híper e hipotassémia

Hiperpotassémia

Apatia, torpor, obnubilação

Formigueiros

Pele pálida e fria

Bradicardia e arritmia

Colapso periférico com tons cardíacos apagados

Paralisia flácida dos membros (raramente)

Síncope cardíaca

Hipopotassémia

Hipotonia muscular ou paralisia

Dispneia e cianose

Taquicardia

Distensão abdominal, náuseas e vómitos

Dilatação cardíaca, tensão venosa elevada

Síncope cardíaca

QUADRO 5 – Alterações electrocardiográficas da hipo e da hiperpotassémia

Hiperpotassémia (>6 mEq/L)

Onda T pontiaguda

Intervalo P-R alargado

Ausência de onda P

Alargamento do QRS

Fibrilhação ventricular terminal

Hipopotassémia (<3,5 mEq/L)

Onda T de baixa voltagem

Presença da onda U

Depressão de S-T

Achatamento da onda T com onda U proeminente

Paragem cardíaca terminal

  • O aspecto clínico mais relevante da hipopotassemia iatrogénica é a inoperância duma reidratação aparentemente correcta com persistência do desequilíbrio hidroelectrolítico.
  • Sinais e sintomas de alerta: hipotonia, íleo paralítico, dispneia, taquicardia, poliúria, diminuição da amplitude até ao desaparecimento das ondas T, depressão negativa de ST, ondas U.
  • Procedimento: a correcção deve ser lenta, podendo durar 3-4 dias; a finalidade será obter potassémias de segurança (3,5 mEq/L), com vigilância seriada dos sinais do ECG.
  • Podem ser adoptados dois esquemas práticos:
    • Administrar K+ (KCl) na dose de 4-5 mEq/Kg/dia (ou 0,2-0,3 mEq/Kg/hora em perfusão i.v. não ultrapassando 50 mEq/litro); abstenção de injecções directas de KCl com seringa.
  • No caso de existir acidose hiperclorémica, optar por outro sal de K, v.g. acetato ou lactato de K; ou
    • Aplicar a fórmula seguinte para calcular a dose de KCl a administrar:
      KCl (em mg) = 74,6 x (3,5 – potassémia do doente) x volémia
      Volémia = 80 ml x peso em Kg
      1 mEq de K+ = 74,6mg de K

NB – Verificando-se carência de potássio (K+) o rim “poupa” este catião à custa de H+, o qual é eliminado pela urina criando-se assim uma situação de alcalose metabólica com urina paradoxalmente ácida. O problema é agravado pela hiponatrémia.
Verifica-se situação de acidose intracelular por mecanismo semelhante: o K+ intracelular que se perde é substituído por H+ e Na+

Acidose respiratória

O tratamento da acidose respiratória será primordialmente o da anomalia respiratória casual.

Alcalose respiratória

Não precisa de correcção por ser auto-limitada.

Alcalose metabólica (pH >7,5 e paCO2 entre 30-50 mmHg)

A alcalose metabólica não constitui uma emergência. Deve ser tratada se persistir após o reequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base. A patologia subjacente mais frequente é a estenose hipertrófica do piloro (alcalose metabólica, hipocaliémia e hipoclorémia), cujas alterações regridem espontaneamente após cirurgia, reidratação e administração de KCl. Mais raramente pode ser devida a hiperadosteronismo/hiperreninemia como a síndroma de Bartter.

Hipocalcémia (convulsões, colapso, apneia, etc.)

A normalização da acidose seguida de alcalose (iatrogénica) diminui a fracção ionizada do cálcio, o que poderá determinar a chamada “tetania pós-acidótica”.

  • Tratamento de emergência: gluconato de cálcio a 10%, na dose de 1 a 2 ml/ Kg/dose, i.v. (máximo 20 ml) em 20 a 60 minutos, não ultrapassando 5 ml/ minuto; excepcionalmente, 5 ml de gluconato de cálcio a 10% + 5 ml de dextrose a 5%, i.v. directo, ao ritmo de 1 ml/minuto, com vigilância de ECG.
  • Dose de manutenção: 700-800 mg de gluconato de cálcio/kg/dia.
  • ECG nas hipocalcémias: aRaT/RR superiora 0,50 (referências: vértices de R e de T).

NB: 1 – A fracção ionizada do cálcio é inversamente proporcional ao pH do plasma. 2 – A hipoproteinémia pode levar ao falso diagnóstico de hipocalcémia porque o cálcio total sérico está baixo, embora o cálcio ionizado esteja normal.

Aspectos importantes a considerar no tratamento da desidratação

  • No decurso duma desidratação é frequente verificar-se alteração transitória da função renal; assim, são frequentes os achados de hiperazotémia, albuminúria, glicosúria, etc..
  • Se surgir hipo-osmolalidade urinária (traduzida por densidade inferior a 1005) associada a hipernatrémia (Na+ superior a 150 mEq/L), há que admitir poliúria insípida.
  • Admitir síndromas de perda de sal se natrémia inferior a 130 mEq/L com:
    • Natriúria superior a 20 mEq/L, pH urinário superior a 6, pH sanguíneo inferior a 7.2 (acidose) → provável uropatia/tubulopatia.
    • Natriúria inferior a 10 mEq/L, associada a hipopotassémia → provável causa suprarrenal.

NB – A perda de sal de causa suprarrenal é mais frequente nos primeiros meses.
       – A perda de sal de causa renal é mais frequente após os primeiros meses, excepção feita para o chamado pseudo–hipo-aldosteronismo congénito.

O Quadro 6 elucida de modo prático sobre a conversão de unidades mg/dl – mEq/L – mmol/L, relativamente ao cálcio, fósforo e magnésio.

QUADRO 6 – Factores de conversão

 UnidadeFactorUnidade

Nota: os valores em unidades da coluna da esquerda são convertidos em unidades da coluna da direita multiplicando-os pelo factor de conversão; os valores em unidades da coluna da direita são convertidos em unidades da coluna da esquerda dividindo-os pelo factor de conversão.

Fósforo mg/dl0,32mmol/L
Magnésiomg/dl
mEq/L
mg/dl
0,41
0,50
0,82
mmol/L
mmol/L
mEq/L
Cálciomg/dl
mEq/L
mg/dl
0,25
0,50
0,50
mmol/L
mmol/L
mEq/L

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DESIDRATAÇÃO AGUDA

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Condições anómalas podem causar perda aguda excessiva para o exterior, ou desvio para espaço não funcional, de água e electrólitos, em proporções variadas (desidratação aguda).

Exemplos: diarreia, vómitos, fibrose quística, golpe de calor, queimaduras, peritonite, ascite, etc..

De todas as etiologias referidas a mais frequente é a causada por diarreia.

Para calcular o défice hidro-electrolítico a corrigir, ou o valor das perdas, é necessário avaliar o grau de desidratação de acordo com a semiologia clínica e a perda de peso (%):

  • Desidratação ligeira (3-5%) – frequência cardíaca normal ou aumentada, diminuição do débito urinário, secreção lacrimal mantida, observação clínica normal;
  • Desidratação moderada (6-10%) – taquicardia, diurese escassa ou ausente, olhos encovados e fontanela deprimida, diminuição de lágrimas, mucosas secas, prega cutânea moderada, pele fria e pálida, tempo de recoloração capilar aumentado e letargia ou irritabilidade;
  • Desidratação grave (>10%) – pulso rápido e filiforme, pressão arterial diminuída, ausência de débito urinário, olhos e fontanela muito deprimidos, ausência de lágrimas, mucosas muito secas, prega cutânea marcada, pele fria e marmoreada (choque).

Para o cálculo deste défice é, pois, fundamental, em primeiro lugar proceder à anamnese e ao exame objectivo; em casos especiais de interpretação mais difícil, de gravidade comprovada e/ou em regime hospitalar realizam-se determinados exames complementares. Saliente-se, no entanto, que a experiência clínica e a observação cuidadosa atendendo à valorização de determinados sinais clínicos poderá tornar dispensáveis os exames complementares, referidos adiante.

A proporção relativa da perda de electrólitos e de água determina o tipo de défice e de desidratação. Este aspecto é importante, pois em função do referido tipo são adoptados procedimentos diversos relacionados com a composição dos solutos e a velocidade de administração:

Hipotónica

Na desidratação hipotónica há um desvio de água do compartimento extracelular EEC para o EIC, o que condiciona um agravamento da depleção intravascular e clínica exuberante de desidratação.

Neste tipo o sódio sérico é inferior a 130mEq/L e a osmolalidade sérica é inferior a 270. Os sinais clínicos são sobreponíveis aos da desidratação isotónica, embora mais notórios. Na hipotónica e na isotónica a desidratação é predominantemente extracelular. (Quadro 1).

Hipertónica

Pelo contrário, na desidratação hipertónica há um desvio de água do EIC para o EEC com a consequente preservação de volume intravascular, quadro clínico de desidratação menos exuberante, manutenção do débito urinário e pressão arterial até estádios mais avançados de desidratação.

Neste tipo, a natrémia é superior a 150 mEq/L (osmolalidade sérica superior a 310), chamando-se a atenção para os sinais clínicos diversos dos da desidratação hipotónica.

Trata-se duma desidratação predominantemente intracelular com elevada morbilidade na ausência de tratamento correcto por exempo: trombose, hemorragia intracraniana, etc.. (Quadro 1)

Isotónica

Neste tipo, caracterizado pelos sinais e sintomas resumidos no Quadro 1 o sódio sérico encontra-se dentro dos limites da normalidade (Na+: 130-150 mEq/L) explicável por perda proporcional de água e de electrólitos. A osmolalidade sérica varia entre 270-300). Trata-se do tipo mais frequente (cerca de 85% dos casos).

QUADRO 1 – Sinais e sintomas de desidratação

Desidratação hipertónicaDesidratação hipotónicaDesidratação isotónica
Perda acentuada de pesoPerda de pesoPerda de peso
IrritabilidadeProstraçãoProstração
Hipertonia/convulsões  
MeningismoHipotonia muscularHipotonia muscular
Pele quentePele acinzentada e friaPele pálida e fria
Fontanela deprimida/normalFontanela deprimidaFontanela deprimida
Língua muito seca (~”lixa”)Língua pastosaLíngua seca
Sede intensaAusência de sedeSede moderada
Olhos pouco encovadosOlhos encovadosOlhos encovados
FebreFebre inconstanteFebre inconstante
Pedra de turgor ligeiraPerda de turgor acentuadaPerda de turgor acentuada
Prega abdominal +Prega abdominal ++++Prega abdominal +++
OligúriaOligúriaOligúria
EscleredemaTaquicardiaTaquicardia
Pressão arterial +/- mantidaHipotensão acentuadaHipotensão
Respiração de KussmaulRespiração de KussmaulRespiração de Kussmaul
 ChoqueChoque
N.B.

Nos casos de obesidade é mais frequente a  desidratação hipertónica.
São importantes os sinais a pesquisar:
– Olhos encovados
– Mucosas secas
– Turgor mantido (o tecido adiposo tem menor quantidade de água)

Nos casos de subnutrição são importantes os seguintes sinais de desidratação:
– Taquicardia (o subnutrido hidratado tem habitualmente bradicardia)
– Fontanela deprimida
– Mucosas secas
– Olhos encovados
– Prega abdominal

Na desidratação isotónica ambos os mecanismos descritos atrás estão presentes.

De referir que a concentração de sódio sérico e a osmolalidade sérica permitem, em princípio, determinar o tipo de desidratação.

No entanto, se este facto se verifica na maior parte das patologias, tal não acontece nalgumas situações (por exemplo na cetoacidose diabética) em que ocorre desidratação hipertónica hiponatrémica (a hipertonia ou hiperosmolalidade é condicionada pela hiperglicémia e não pela hipernatrémia).

Este aspecto relaciona-se com o papel dos osmoles*. Outro exemplo é a insuficiência renal aguda em que se observa desidratação iso/hiponatrémica hipertónica condicionada pelos elevados níveis séricos de ureia.

Conceitos fundamentais:

  • Osmole – Unidade de medida de pressão osmótica. É a pressão osmótica exercida por uma molécula-grama dum corpo (substância) não ionizado dissolvido em 1 litro de água; ou por um ião-grama se se tratar dum corpo completamente ionizado, dissolvido em 1 litro de água.
  • Miliosmole – É a milésima parte do osmole. Trata-se da unidade empregue em biologia para exprimir a pressão osmótica dos diferentes corpos (substâncias) dissolvidos nos líquidos do organismo, em função da sua concentração molecular ou iónica. Para traduzir em miliosmole (mosM) a pressão duma solução cuja concentração é conhecida em peso, divide-se o nº de miligramas/litro pelo peso molecular do corpo (substância) [se se tratar de corpo não ionizado] ou pelo peso atómico do ião [se se tratar de corpo ionizado].

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EQUILÍBRIO HIDROELECTROLÍTICO E ÁCIDO-BASE

Homeostase da água, líquidos e electrólitos

Líquidos corporais, compartimentos e osmoles

O organismo humano necessita de água e electrólitos para manter a sua actividade metabólica.

Ao nascer, a água corresponde a cerca de 75-80% do peso corporal, diminuindo esta percentagem ao longo do primeiro ano de vida até 55% a 60%, semelhante à do adulto.

A totalidade da água corporal distribui-se principalmente por dois espaços (E) ou compartimentos: o intracelular (contendo LIC ou líquido intracelular) e o extracelular (contendo LEC distribuído pelo espaço entre as células ou interstício, e pelo espaço através do qual circula sangue ou espaço intravascular).

Ao nascer o LEC corresponde aproximadamente a 45% do peso corporal e o LIC a cerca de 35%.

O LEC diminui rapidamente a partir da data do nascimento, ao contrário do LIC que vai aumentando, o que é relacionável com o crescimento celular; atingida a idade de 1 ano, a relação entre estes dois compartimentos, semelhante à que se verifica no adulto, passa a ser a seguinte: LEC 20% a 25% do peso corporal, e LIC 30 a 40% do peso corporal.

O LEC compreende a água do plasma (cerca de 5% do peso corporal) e o líquido intersticial (cerca de 15% do peso corporal). O volume de sangue (volémia) na criança em geral, sendo o hematócrito de 40%, corresponde a cerca de 8% do peso corporal (ou 80 ml x peso corporal em kg); em termos comparativos, no recém-nascido pré-termo e/ou de peso inferior a 1500 gramas, a volémia corresponde a cerca de 10% do peso corporal.

O LEC e o LIC têm composições diferentes, sendo o respectivo volume determinado por partículas osmoticamente activas dentro de cada compartimento (aniões e catiões).

No LEC, entre os catiões predomina o sódio (Na+: cerca de 140 mEq/L), seguindo-se quantitativamente o potássio (K+: cerca de 4 mEq/L); entre os aniões predominam o cloro (Cl: cerca de 104 mEq/L), seguindo-se o bicarbonato (HCO3: cerca de 24 mEq/L), e as proteínas ou aniões orgânicos (Prot: cerca de 14 mEq/L).

No plasma a soma de catiões (154 mEq/L) deve ser igual à soma de aniões (154 mEq/L) para que seja mantida a neutralidade eléctrica.

A este propósito é importante abordar sucintamente a noção de hiato iónico (aniões GAP) com implicação prática importante na interpretação de certas alterações do equilíbrio ácido-base; hiato iónico é a diferença entre o valor medido do catião Na+ e o dos aniões Cl e HCO3.

Hiato Iónico = Na+ – [(Cl) + (HCO3)]

(Normal: 4-11)

Hiato iónico é igualmente a diferença entre catiões não medidos (K+, Ca++, Mg++) e aniões não medidos (albumina, fosfato, urato, sulfato).

A situação de acidose metabólica (ver adiante) pode estar associada ou não a hiato iónico alterado, considerando valores normais os compreendidos entre 4 e 11.

No LIC entre os catiões predomina o potássio (K+, cerca de 155 mEq/L) e entre os aniões (orgânicos): o fosfato (P: cerca de 95 mEq/L) e as proteínas (Prot: cerca de 65 mEq/L) (Quadro 1).

QUADRO 1 – Iões e compartimentos corporais

PlasmaPlasmaLíquido
intersticial
Líquido
intracelular
Catiões (mEq/L)
Na+1401389
K+58155
Ca++584
Mg++4632
Aniões (mEq/L)
Cl1001195
HCO3262610
Proteínas19765
Ác. Orgânicos66
HPO4=2195
SO4=112

Os dois subcompartimentos do EEC (de acordo com referido atrás o componente intravascular e o espaço intersticial), estão separados pela membrana capilar; esta possui características dialíticas, permitindo a livre passagem de água e solutos, permanecendo impermeável às substâncias de elevado peso molecular (proteínas). Estas localizam-se no espaço intravascular sem passar para o interstício, fixando a água e condicionando a distribuição de líquidos de acordo com a pressão oncótica e as leis de Starling. Ou seja, o volume plasmático é mantido pela pressão oncótica exercida pelas proteínas do plasma (designadamente, albumina).

No que respeita à diferença de composição entre LEC e LIC quanto aos catiões K+ e Na+, tal é explicável pela actividade energética duma bomba ATPase que promove, respectivamente, a entrada de potássio para o espaço intracelular e a saída de sódio para o espaço extracelular. Relativamente aos restantes iões, as diferenças relacionam-se com permeabilidade ou impermeabilidade da membrana celular aos mesmos.

Ocorrem alterações do volume dos LIC e LEC como consequência do movimento de água através da membrana celular, a qual possui canalículos intramembranares (chamados aquaporinas), de modo a estabelecer o equilíbrio osmótico. Uma alteração na concentração de sódio (Na+) no sector plasmático do LEC rompe o equilíbrio osmótico entre o LIC e LEC, o que leva a movimentação de água através da membrana, para restabelecer novo equilíbrio osmótico. A osmolalidade extracelular é efectivamente determinada pela concentração de Na+ no LEC. Tal facto, por sua vez, influencia o volume do LIC, pois o volume total dos fluidos (solutos) corporais é relativamente constante.

O volume do LIC quase sempre aumenta (edema celular) quando a concentração de Na+ plasmático diminui (hiponatrémia) levando a movimento de fluido no sentido [plasma  célula] como mecanismo compensatório de normalização da natrémia; pelo contrário, o volume do LIC diminui (retracção celular) quando a concentração de Na+ plasmático aumenta (hipernatrémia) levando a movimento de fluido no sentido [célula ® plasma] como mecanismo compensatório de normalização da natrémia.

Existem diversos mecanismos que regulam a normal manutenção, quer da volémia, quer da composição dos LIC e LEC em electrólitos, quer da osmolalidade do plasma a qual deverá oscilar entre 285 e 295 mOsm/L. Tal corresponderá a densidade urinária de cerca de 1.010 ou osmolalidade urinária de 280- 310 mOsm/L (urina isotónica)*.

A chamada osmolalidade efectiva (que corresponde à força osmótica que determina o movimento de água entre o espaço EC e o espaço IC) calcula-se através da fórmula:

Osmolalidade efectiva = 2 x [Na] + [Glucose]/18

Em situações de hiperglicémia, a qual responsável por elevação da osmolalidade plasmática, ocorre movimento de água do espaço intracelular (IC) para o extracelular (EC) o que pode levar a hiponatrémia (de diluição).

A magnitude deste efeito pode ser calculada através da fórmula: [Na] corrigido = [Na] valor laboratorial + 1.6 x ([Glucose] – 100 mg/dL) / 100

O valor de [Na] corrigido constitui um achado mais representativo da verdadeira concentração de Na plasmático.

Habitualmente a diferença entre a osmolalidade medida laboratorialmente e a calculada pela fórmula atrás referida não ultrapassa 10 mOsm/L.

Os mecanismos homeostáticos que dizem respeito aos movimentos da água entre a célula e o espaço extracelular são regulados pela intervenção dum conjunto de processos integrando hormonas e outros componentes de características hormonais, os quais têm particularidades e limitações no recém-nascido (RN).

Em tais mecanismos intervêm essencialmente: o rim e o sistema renina-angiotensina, o péptido natriurético e a hormona antidiurética (HAD).

O rim e o sistema renina–angiotensina

De modo sucinto, pode afirmar-se que o rim tem a capacidade de alterar a percentagem de sódio filtrado no glomérulo em função da taxa de reabsorção tubular. Com efeito, o aparelho justaglomerular produz renina como resposta à diminuição do volume intravascular; os estímulos da secreção da renina são: diminuição da pressão de perfusão ao nível da arteríola aferente do glomérulo, diminuição do teor em sódio que atinge o túbulo distal, e a elevação do nível de agonistas beta-adrenérgicos como reacção à hipovolémia.

A renina, enzima proteolítica, produz uma clivagem da angiotensina, do que resulta o composto designado por angiotensina I que, por acção da enzima de conversão da angiotensina, se transforma em angiotensina II.

A angiotensina II tem duas acções principais: estimulação da reabsorção proximal tubular de sódio e da secreção de aldosterona pela supararrenal; esta última, por sua vez, aumenta a reabsorção de sódio ao nível do túbulo distal.

Péptido natriurético

Este péptido, produzido no miocárdio auricular sempre que se verifica distensão da cavidade auricular, tem as seguintes acções: aumento da taxa de filtração glomerular, inibição da reabsorção tubular de sódio, o que tem como consequência facilitar o aumento da excreção urinária de sódio.

Hormona antidiurética (HAD)

A secreção da HAD aumenta como reacção à osmolalidade plasmática elevada; a consequência é maior reabsorção tubular de água e diminuição do débito urinário. Em situações de diminuição acentuada da volémia verifica-se estimulação da HAD e da sede independentemente da osmolalidade plasmática.

Relativamente à manutenção da volémia, considerando que o sódio constitui o principal catião extracelular, praticamente confinado a este compartimento (LEC), pode inferir-se que, para a manutenção da volémia, se torna absolutamente necessário o suprimento em sódio dentro de determinados limites.

Perdas e necessidades de fluidos
(Manutenção)

Na perspectiva da administração de água e electrólitos (fluidoterapia) e da garantia de manutenção das condições fisiológicas (homeostase), torna-se fundamental conhecer as respectivas necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas) e anormais. É igualmente importante reter as seguintes noções:

  1. O movimento e renovação (turnover) de água no organismo (entrada/suprimento e saídas/perdas) são, relativamente ao peso, tanto maiores e mais rápidos quando menor a idade a velocidade do crescimento; deduz-se que esta particularidade cria maior vulnerabilidade e maior probabilidade de desequilíbrio em crianças mais pequenas;
  2. A água é fundamental para o crescimento;
  3. Como resultado dos processos metabólicos produz-se água endógena;
  4. Ao falar-se em necessidades em fluidos em termos gerais a noção de fluido (ou líquido) engloba igualmente os lípidos; de facto, se falarmos em necessidades hídricas (em água) os lípidos, que são anidros, ficam excluídos, tendo, no entanto, impacte na volémia e hemodinâmica; este aspecto é importante em nutrição parentérica.

Perdas

As perdas habituais ou fisiológicas verificam-se principalmente através da pele e aparelho respiratório (perdas de água sem electrólitos por evaporação ou perdas insensíveis), urina (perdas urinárias) e fezes (perdas fecais).

Em circunstâncias anómalas, para além destas perdas, há ainda que contar: com as chamadas perdas para o terceiro espaço (desvio de líquidos do espaço intravascular para o espaço intersticial); e com as perdas através de tubos de drenagem (por exemplo, torácicos, abdominais).

Saliente-se que as perdas através da sudação não são consideradas perdas insensíveis: as perdas de água por evaporação não contêm electrólitos enquanto as perdas por sudação contêm água e electólitos.

Sistematizando, apontam-se os seguintes valores:

Perdas insensíveis
  • 30 ml/kg/dia no lactente (valores superiores no recém-nascido, sobretudo se de muito baixo peso (inferior a 1500 gramas).
  • 12 ml/kg/dia na criança maior.
    Como regra prática em função do contexto clínico: 0,5 a 1 ml/kg/hora.
    Situações como temperatura ambiente elevada. (incremento de 12% por cada grau acima de 38ºC), taquipneia, traqueostomia, febre, fototerapia, etc. aumentam as perdas insensíveis; outras, como ambiente em incubadora com humidade relativa aumentada, diminuem tais perdas. Refira-se que as queimaduras aumentam as perdas, não só de água, mas de electrólitos.

QUADRO 2 – Composição aproximada de fluidos orgânicos em electrólitos

ProveniênciaNa+ mEq/LK+ mEq/LCl mEq/L
Suco gástrico20-805-20100-150
Suco pancreático120-1405-1590-120
Intestino delgado100-1405-1590-130
Bílis120-1405-1580-120
Fezes de diarreia10-9010-8010-110
SuorNormal10-303-1010-35
Fibrose quística50-1305-2550-110
Perdas urinárias
  • 2 ml//kg/hora (1 a 3 ml/kg/hora); cerca do 1 ano de idade: 400-500 ml/dia).
Perdas fecais
  • 5 ml/kg/dia.
    Em situações de diarreia tais perdas de água e de electrólitos aumentam significativamente.

As perdas para o chamado “terceiro espaço” são difíceis de quantificar. Manifestam-se por edema e/ou ascite, podendo o clínico confrontar-se com uma situação especial: sinais de hipovolémia e aumento do peso explicado pelo edema.

O Quadro 2 discrimina o conteúdo em electrólitos de vários líquidos orgânicos, a considerar em caso de perdas anormais.

Líquidos de manutenção

Tendo em consideração as perdas atrás referidas (perdas ordinárias), em condições de normalidade– criança apirética, em estado de normovolémia, sem que seja necessária compensação renal atrás descrita, produzindo urina isotónica (densidade ~1.010), as mesmas deverão ser compensadas (para que não se gere desequilíbrio) através do suprimento de líquidos e electrólitos (líquidos de manutenção).

Para melhor compreensão do problema da fluidoterapia a realizar nos casos de desequilíbrio (desidratação ou outros problemas), opta-se por considerar a modalidade de manutenção de líquidos por via endovenosa.

Para o cálculo do volume de líquidos de manutenção há que atender também ao consumo energético no pressuposto de que existe uma fonte endógena de água – a água resultante dos processos de oxidação celular) (ver parte Nutrição).

Na prática, para atingir o referido equilíbrio, utiliza-se habitualmente a tabela de correspondência de Holiday e Segar em termos de necessidades em volume de líquidos de manutenção na base de 100 mL de água exógena por cada 100 kcal de energia despendida. O objectivo principal é manter a normovolémia. (Quadro 3)

Por exemplo, no caso de uma criança que pese 14 kg, o cálculo será: 1000 mL para os primeiros 10 kg+ 50 mL/kg para os restantes 4 kg, ou seja, 200 mL. O total será, pois, 1200 mL para um dispêndio energético de 1200 kcal/dia.

Composição em electrólitos

Com base em estudos empíricos, as necessidades em electrólitos a veicular em função do volume de líquidos atrás definido são assim estabelecidas:

Por cada 100 mL de líquido administrado/por 100 kcal despendidas:

  • Na: 2 a 4 mEq (em média, 3 mEq)
  • Cl: 2 a 4 mEq
  • K: 2 mEq

QUADRO 3 – Necessidades em volume de líquidos de manutenção

Peso (kg)Kcal ou mL/kg/diamL/kg/hora

(100 mL/100 kcal despendidas)

1-10100~ 4
11-201000 + 50x (Peso Kg-10)40 + 2x (Peso Kg-10)
21-801500 + 20x (Peso Kg-20)60 + 1x (Peso Kg-20)

À água que serve de veículo acrescenta-se 5 gramas de dextrose por cada 100 mL (dextrose a 5%), o que permite suprimento calórico suficiente para impedir o catabolismo proteico e a cetose. Em situações especiais utiliza-se a 10%.

Em suma, o modelo recomendado de solução a administrar por via endovenosa para a manutenção contém: quer Cl, quer Na → 20 a 40 mEq/L (média 30 mEq/L); K → 20 mEq/L; dextrose → 50 gramas/L.

Na prática, trata-se dum soluto de “soro” fisiológico diluído a 1/5 (SF a 1/5) acrescentado de 20 mEq/L de cloreto de potássio (KCl).

Uma vez que o Cl é também veiculado pelo “soro”, ou melhor, soluto fisiológico (NaCl a 9/1000 ou SF-isotónico), o conteúdo de Cl excede, de facto, as necessidades; na prática, tal excesso face aos cálculos efectuados é irrelevante, sem qualquer implicação.

O Quadro 4 resume vários tipos de solutos que poderão ser utilizados em fluidoterapia endovenosa.

A obtenção de “soros” a 1/2, 1/3, etc., pode alcançar-se por simples mistura “soro” salino fisiológico a “soro” glicosado ou dextrosado a 5 ou a 10%. Por ser mais prático, utilizamos o soluto de cloreto de sódio a 20%, que adicionamos nas quantidades referidas ao soro glicosado. Assim:

  • Para obter soro a 1/2: adicionar a um litro de dextrose a 5% (ou 10%) 22 ml de soluto de cloreto de sódio a 20%;
  • Para obter soro a 1/3: adicionar a um litro de dextrose a 5% (ou 10%) 15 ml de soluto de cloreto de sódio a 20%;
  • Para obter soro a 1/5: adicionar a um litro de dextrose a 5% (ou 10%) 9 ml de soluto de cloreto de sódio a 20%.

QUADRO 4 – Composição de solutos utilizados em fluidoterapia endovenosa

Electrólitos e lactato em mEq/L; Osmolaridade em mOsm/L

 Na+ClK+Ca++LactatoOsmolaridade
SF154154308
SF a 1/27777154
SF a 1/53434~60
Lactato de Ringer1301094328271

Equilíbrio Ácido – Base

Fisiopatologia (noções fundamentais)

Tendo em conta o papel importante do pulmão e do rim na regulação do equilíbrio ácido-base, é importante recordar:

  • O conceito básico de pH: número que exprime o logaritmo do inverso da concentração hidrogeniónica em hidrogeniões – grama/litro. (pH= log 1/[H+])
  • O conceito de reacção de equilíbrio (anidrase carbónica) CO2 + H2O → H2CO3 → H+ + HCO3
    (A maior parte do COé transportado pelo sangue sob a forma de HCO3, havendo apenas uma pequena porção de CO2 livre dissolvido no plasma)
  • A equação do Henderson – Hasselbalch: pH = pH + log [H CO3]/[PCO2]O pH do sangue depende, em cada momento, da quantidade de base (HCO3) e de CO2 livre
  • As funções do túbulo renal
    • Proximal
      Reabsorção passiva da maior parte da água filtrada, do sódio, do potássio e do bicarbonato
    • Distal
      Reabsorção activa do sódio
      Concentração da urina
      Excreção de [iões H+] e acidificação da urina

O pulmão, eliminando através da respiração o CO2, impede a acumulação de COproduzido pelo metabolismo normal do organismo.

Assim, a hiperventilação promove a eliminação de CO2, assim como a hipoventilação contribui para diminuir a eliminação de COaumentando a sua acumulação no organismo.

Enquanto o pulmão regula o CO2, o rim regula a concentração de bicarbonato sérico por um processo em que simultaneamente, por um lado, os túbulos renais reabsorvem o bicarbonato que é filtrado no glomérulo e, por outro, os túbulos excretam hidrogeniões.

Por sua vez, a excreção urinária de hidrogeniões gera bicarbonato que vai neutralizar a produção de ácido endógeno.

Assim, o aumento de CO2 (acidose respiratória) conduz ao aumento da reabsorção tubular proximal de bicarbonato, enquanto a redução de CO(alcalose respiratória) diminui a reabsorção tubular proximal de bicarbonato.

Por outro lado, a perda excessiva de bicarbonatos pelas fezes em caso de diarreia pode condicionar acidose metabólica, secundariamente compensada por uma eliminação de CO(acidose metabólica compensada respiratoriamente). Neste caso a redução do pH sérico aumenta a frequência respiratória causando descida de CO2, condicionando, por outro lado, subida compensadora de pH sérico.

A subida de CO2 pode, assim, ser devida a uma alcalose respiratória primária, ou secundária a compensação respiratória por acidose metabólica. Por sua vez, a compensação respiratória de uma alcalose metabólica primária traduz-se pela retenção respiratória de CO2.

Num processo respiratório primário há uma compensação renal; com efeito, se se verificar acidose respiratória (hipoventilação), o rim aumenta a produção de bicarbonatos, enquanto numa situação de alcalose respiratória (hiperventilação), por ansiedade ou crise asmática ligeira, o rim excreta maior quantidade de bicarbonatos, reduzindo a concentração sérica de bicarbonatos durante cerca de 72 a 96 horas.

Comparativamente, cabe referir que a compensação respiratória de processos metabólicos decorre em tempo mais curto: 12 a 20 horas.

Na maior parte das situações surgem alterações de tipo misto; são exemplos a criança com displasia broncopulmonar, em que podem coexistir acidose respiratória (pela patologia pulmonar crónica) e alcalose metabólica iatrogénica secundária à utilização de furosemido (por falência cardíaca direita).

Outro exemplo é o da sépsis, situação emergente, em que podem coexistir acidemia e acidose metabólica grave por acidose láctica devido a hipoperfusão, bem como, acidose respiratória por falência respiratória.

Define-se acidose metabólica como diminuição do pH sérico (<7.35) secundária a um aumento de hidrogeniões.

Define-se alcalose metabólica como elevação do pH sérico (>7.42) secundária a excesso de bases.

Os termos acidémia e alcalémia referem-se a anomalia bioquímica do pH em contraposição, respectivamente, a acidose e alcalose que traduzem o processo fisiopatológico subjacente. Por exemplo: a acidémia é sempre acompanhada de acidose; contudo, determinado doente pode apresentar acidose com pH normal se se tiver processado a compensação respiratória.

Valores de referência no sangue (equilíbrio ácido-base, PCO2 e PO2)

São descritos seguidamente os valores dos parâmetros classicamente considerados:

  • Défice de base:
    RN: (-10) a (-2) mmol/L
    Lactente: (-7) a (-1) mmol/L
    Criança/adolescente: (-4) a (+3) mmol/L
  • Bicarbonato:
    21 a 28 mmol/L (sangue arterial)
    22 a 29 mmol/L (sangue venoso)
  • PCO2: 32 a 48 mmHg
  • PaO(sangue arterial):
    RN (1 hora – 1 dia): 55 a 95 mmHg
    Após período neonatal: 80 a 108 mmHg
  • pH: 7.34 a 7.46

Conceitos fundamentais:

  • Osmolalidade – concentração de partículas osmoticamente activas existentes numa solução, expressa em osmoles por kg de solvente.
  • Osmolaridade – tensão osmótica expressa pela quantidade de moléculas-grama existentes num litro de solução.
  • Mole – molécula-grama.
  • Soluto – Uma substância que é dissolvida num líquido (solvente) para formar uma solução. (ver capítulos seguintes)

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DOENÇA ATEROSCLERÓTICA

Importância do problema

A doença cardiovascular (DCV) constitui a principal causa de morte no mundo, seguindo-se a doença neoplásica e a doença respiratória.

Nos Estados Unidos da América (EUA) cerca de 1 milhão de pessoas morre anualmente devido a DCV, sendo de referir que cerca de 60 milhões de americanos vivem com alguma forma de DCV.

A principal representante das DCV é a doença coronária cardíaca (DCC), clinicamente manifestada fundamentalmente por angor pectoris, enfarte do miocárdio ou morte súbita. Outras formas de manifestação da DCV incluem a doença vascular cerebral e as vasculopatias renais e periféricas; o fator causal básico desta patologia é a aterosclerose.

Em Portugal, no ano de 2013 foram publicados pelo INE dados estatísticos sobre taxas de mortalidade bruta em todas as idades, considerando as entidades clínicas doença cerebrovascular/DCV, enfarte agudo do miocárdio/EAM, doença isquémica do miocárdio/DIM e doenças do sistema circulatório/DSCos referidos dados são expressivos: 1 → DCV: 117/100.000; 2 → EAM: 43/100.000; 3 → DIM: 66/100.000; 4 → DSC: 301/100.000.

As repercussões económicas deste tipo de patologia são preocupantes tendo em conta, designadamente, o seu elevado custo e o aumento crescente da sua incidência. Com efeito, no que respeita à prevenção e controlo da mesma, não tem sido possível obter resultados tão bons como aconteceu com as doenças transmissíveis, o que se pode explicar pela complexidade dos respectivos factores etiopatogénicos.

De acentuar que os melhores resultados obtidos se relacionam com programas de intervenção incidindo sobre mudanças do estilo de vida e de hábitos alimentares como sejam: combate ao sedentarismo, aos regimes alimentares ricos em gorduras saturadas e colesterol, à obesidade e aos hábitos de fumar tabaco; tal intervenção será tanto mais eficaz quanto mais precocemente tiver início.

Tendo em conta que o estilo de vida e os hábitos alimentares se adquirem na infância, conclui-se que o pediatra (ou o clínico que presta cuidados à pessoa em idade pediátrica) tem uma grande responsabilidade na redução do impacte da DCV.

Aterosclerose

A aterosclerose é um processo crónico degenerativo e progressivo de base genética, caracterizado por depósito lipídico na íntima das artérias, de modo mais acentuado nas de calibre grande ou médio (coronárias, cerebrais, extremidades inferiores, aorta, etc.).

Apresenta-se inicialmente sob a forma de lesão endotelial vascular englobando, sob o ponto de vista morfológico, dois tipos: as estrias gordas provocadas pela acumulação de gordura, precursoras das chamadas placas fibrosas que aparecem mais tarde.

Tais lesões originam fenómenos obstrutivos vasculares com consequente isquémia nos territórios irrigados (angor, enfarte do miocárdio, acidente vascular cerebral de tipo isquémico, lesões renais, doença isquémica dos membros inferiores podendo evoluir para gangrena) manifestando-se na idade adulta; é igualmente possível o desprendimento de trombos de lesões vasculares ulceradas e/ou hemorrágicas.

As lipoproteínas LDL ou Low Density Lipoproteins na sua forma oxidada desempenham papel primordial na génese das estrias gordas, as quais poderão ser já evidentes em exames post mortem na íntima da aorta desde a infância.

Stary encontrou também em exames post mortem lesões coronárias em 20% de crianças falecidas por lesões traumáticas; e, em autópsias de soldados americanos mortos no Vietnam e Coreia há décadas, foram detectadas lesões do tipo descrito em percentagens oscilando entre 45 e 70%.

Em estudos realizados em adolescentes com valores elevados de colesterol no sangue, através de exames ecográficos foi possível demonstrar sinais de placas fibrosas nas carótidas em 10% dos casos.

Mais recentemente, no âmbito dos estudos de Bogalusa em 1992, e no estudo PDAY (Pathobiological Determinants of Atherosclerosis in Youth) em 2002, foram detectadas lesões ateroscleróticas na aorta a partir dos 3 anos de idade e nas coronárias na segunda década da vida, tendo sido possível relacionar o maior grau de défice da função endotelial com o mais baixo peso de nascimento. Uma década mais tarde, as equipas de investigação do projecto PDAY demonstraram uma relação significativa entre a espessura da prega abdominal e a extensão da aterosclerose encontrada em autópsias entre os 15 e 34 anos.

Através da ecografia não invasiva de alta resolução e desde idades precoces pode avaliar-se a estrutura e função das grandes artérias (por ex. carótida, artéria braquial) através de determinados marcadores pré-clínicos, designadamente: medição da espessura da íntima-média, grau de distensibilidade com o fluxo sanguíneo, e diâmetro interno (lume vascular). Investigações recentes concluíram que o peso elevado de nascimento se associa a maior espessura da íntima da artéria radial.

Tal procedimento, a realizar em centros especializados, tem grande interesse em situações com factores de risco de aterosclerose associados desde idades jovens para detecção de sinais precoces de doença vascular, na perspectiva de intervenção preventiva. Com a tecnologia actualmente disponível foi possível, por outro lado, demonstrar em diversos estudos o papel benéfico do exercício físico, o qual, promovendo a libertação de NO endotelial durante e após o mesmo, melhora o fluxo sanguíneo pela vasodilatação e diminuição da resistência vascular que daí resulta.

Salienta-se a importância das células progenitoras ou estaminais endoteliais que se formam na medula óssea, as quais têm potencialidades para reparar a parede endotelial quando esta é lesada.

Através de técnicas especiais é hoje possível proceder à determinação quantitativa de tais células progenitoras, sendo de referir que indivíduos com mais elevado número de células progenitoras, em presença de factores de risco, têm maior probabilidade de manter a normalidade da função endotelial cardiovascular.

Em suma, a aterosclerose é uma doença que tem início na idade pediátrica, apesar de habitualmente só ter expressão clínica na idade do adulto. Por consequência, a prevenção da aterosclerose e das suas complicações deve iniciar-se desde a idade pediátrica.

Factores de risco

Considerando factores de risco (noção decorrente de estudos epidemiológicos) as características identificáveis que, quando presentes, se associam a mais elevada incidência da doença, relativamente à aterosclerose foram estabelecidos os discriminados no Quadro 1 englobados, numa perspectiva prática, em factores modificáveis e não modificáveis; noutra perspectiva, a referida lista engloba factores genéticos e factores ambientais.

Nem todas as crianças, com estrias gordas apenas, desenvolvem aterosclerose na idade adulta, do que resulta o papel de conjugação de outros factores. De facto, para além dos factores de risco clássicos, influências de tipo metabólico, infecção, inflamação, assim como a influência programada desde a vida fetal, podem afectar a função endotelial vascular e o consequente desenvolvimento de aterosclerose.

Serão abordadas, a seguir, as questões fundamentais relacionadas com os referidos factores, os quais podem actuar associados, registando-se, por outro lado,correlação entre os factores de risco na criança e nos progenitores. Pode concluir-se, reportando-nos ao Quadro 1, que a prevenção fica limitada à intervenção sobre os factores de risco ambiental.

QUADRO 1 – Factores de risco de aterosclerose

Não modificáveis Modificáveis

Hereditariedade

Género

Idade

Raça

Dislipoproteinémias

Hipertensão arterial

Tabagismo

Obesidade

Sedentarismo

Estresse

Diabetes

Baixo peso de nascimento

Dislipoproteinémias

As dislipoproteinémias são situações clínicas caracterizadas por alterações do nível plasmático de colesterol total, (CT), triglicéridos, e das lipoproteínas habitualmente determinadas: LDL, VLDL, HDL, apo A, apo B, Lp (a).

Os valores elevados de colesterol, principalmente do transportado pelas proteínas de baixa densidade (sobretudo LDL oxidadas) estão associados a patogénese das estrias gordas e placas fibrosas (placa de ateroma).

Diversos estudos epidemiológicos, experimentais, clínicos e de anatomia patológica, demonstraram uma relação entre coronariopatia, enfarte do miocárdio e angor, e valores plasmáticos mais elevados de colesterol, por sua vez em relação com suprimentos alimentares mais elevados de gorduras saturadas.

Inversamente, foi demonstrado que os indivíduos com doença aterosclerótica e coronariopatia melhoravam com a diminuição dos valores de colesterol total. Tal melhoria traduziu-se pela comprovação de regressão do ateroma e da diminuição da mortalidade em 2% por coronariopatia, reduzindo em 1% o valor da colesterolémia, segundo o Lipid Research Clinics Program (LRP).

Segundo o mesmo LRP, o risco de acidente agudo relacionado com caronariopatia de base é da ordem dos 5% aos 30 anos em indivíduos com valores elevados de colesterolémia (total >300 mg/dL e colesterol LDL >240 mg/dL), aumentando o risco para 50% aos 50 anos.

Noutros estudos concluiu-se que a redução em 10% dos valores da colesterolémia antes dos 40 anos se traduziu numa diminuição da incidência coronariopatia na ordem dos 50%.

Acontece que as lipoproteínas circulantes na idade pediátrica tendem a manter-se com idênticos valores na idade adulta. É esta a noção de estabilidade ou de “tracking” empregando a terminologia muito corrente da língua inglesa. Nos estudos de Bogalusa e Muscatine concluiu-se que: 1) os valores de colesterolémia aferidos aos 20 anos constituem um factor preditivo de risco de coronariopatia entre os 50 e 60 anos; 2) 50% das crianças com valores de colesterolémia acima do percentil 75 evidenciavam hipercolestrolémia 10 a 15 anos mais tarde; 3) entre as crianças com valores baixos de colesterol HDL pelos 10-14 anos, cerca de 40% apresentavam idêntica tendência 12 anos mais tarde.

No conjunto das hipercolesterolémias, a capacidade aterogénica é variável em função das lipoproteínas a que se liga o colesterol. Como factor-chave de risco mais elevado é chamada a especial atenção ao papel das lipoproteínas de baixa densidade /LDL.

Estando a hipertrigliceridémia (valor de triglicéridos acima do ponto de corte entre 90 e 200 mg/dL) frequentemente associada a outros factores de risco (por ex. diabetes tipo 2, hipertensão arterial, excesso de peso, obesidade, e valores baixos de lipoproteína HDL) de acordo com diversos estudos tem sido difícil considerar os triglicéridos, de forma independente como aterogénicos, não se recomendando o seu rastreio. Contudo, salienta-se que valores muito elevados constituem risco de pancreatite e fazem parte da síndroma metabólica.

1. Rastreios

Relativamente aos rastreios com o objectivo de identificar através do perfil lipoproteico os casos com mais elevado risco de DCV, ao longo do tempo foram considerados dois tipos: o rastreio universal e o rastreio selectivo. Os prós e os contras de se preconizar uma ou outra modalidade, e o facto de as normas para rastreios terem sofrido modificações, por vezes discrepantes, traduzem certo grau de controvérsia que se instalou no âmbito da comunidade científica.

Em 1992, o Program of the National Heart, Lung and Blood Institute preconizava o rastreio selectivo tendo como base os critérios sintetizados no Quadro 2: colheita de sangue em jejum de 12 horas, entre os 2 e 10 anos. Se os valores ultrapassassem 200 mg/dL, a norma era proceder ao estudo doutros parâmetros, designadamende colesterol-LDL e colesterol-HDL, triglicéridos, apoA-I, apoB e, eventualmente, Lp (a).

QUADRO 2 – Rastreio selectivo de dislipoproteinémias

Antecedentes familiares

· Coronariopatia ou doença cerebrovascular antes dos 55 anos em progenitor ou avô

· Hipercolesterolémia >240 mg/dL em progenitor

· Dislipoproteinémia primária em progenitor ou familiar

· Morte súbita

· História familiar desconhecida e/ou factores de risco associados

Estilo de vida de risco da criança/adolescente

· Hábitos tabágicos

· Sedentarismo

· Obesidade

· Hipertensão arterial

· Fármacos com efeito dislipoproteinémico

Se valor de colesterol-LDL (C-LDL) fosse < 110 mg/dL, a análise deveria ser repetida em função do contexto clínico, em geral 4-5 anos depois.

Se C-LDL entre 110-130 mg/dL, a análise deveria ser repetida.

Se C-LDL >130 mg/dL, era indicado regime alimentar restritivo e eventual farmacoterapia.

Investigações ulteriores demonstraram entretanto que, com os critérios adoptados, cerca de 50% das crianças com valores elevados de C-LDL não eram rastreadas.

Em 2011, quer a American Academy of Pediatrics, quer o National Heart, Lung and Blood Institute passaram a recomendar o rastreio universal integrado nos exames de saúde electivos em períodos etários-chave: entre os 9 e 11 anos e, também ulteriormente entre os 17 e 21 anos tendo em conta que os valores de C-LDL diminuem durante a puberdade.

Em função do contexto clínico de cada caso, se eventualmente numa determinada criança se verificarem os critérios adoptados para o rastreio selectivo, o procedimento poderá ser realizado a partir dos 2 anos. (ver Parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo).

Um aspecto novo que acompanha as recentes normas para rastreio relaciona-se com a utilidade/recomendação de a primeira colheita a efectuar ser em não jejum e, havendo condições técnicas adequadas, poder ser de sangue capilar.

Parece estar demonstrado efectivamente que somente os triglicéridos são o parâmetro mais influenciado pelo não jejum.

Em tal circunstância, no caso de o colesterol não HDL (C-total – C-HDL) ser >145 mg/dL deve proceder-se ulteriormente a duas determinações separadas no tempo, em jejum – com intervalo mínimo de 2 semanas e máximo de 3 meses.

Se os resultados destas duas análises em jejum separadas no tempo evidenciarem colesterol não HDL >130 mg/dL, deve ser realizada outra série de duas análises em jejum separadas no tempo com o mesmo critério de intervalo.

Em suma, perante suspeita de dislipoproteinémia, para o diagnóstico definitivo torna-se obrigatório confirmar os resultados em duas amostras de sangue obtidas em ocasiões separadas.

Nos casos em que se detectem anomalias bioquímicas, deverá ser estabelecido um esquema de vigilância periódica incluindo determinações do perfil lipoproteico cada 2 a 3 anos, para além do esquema alimentar restritivo quanto a suprimento de gorduras e doutros tipos de intervenção referidos nas partes sobre Nutrição e Doenças Hereditárias do Metabolismo.

Nos casos de antecedentes de hipercolesterolémia familiar está indicado o rastreio no recém-nascido (sangue do cordão umbilical).

2. Intervenção e recomendações

Nos primeiros 2 anos não está indicada a restrição no suprimento em colesterol tendo em consideração o crescimento rápido do sistema nervoso central e o facto de os lípidos constituírem o substrato essencial para a mielinização.

Após este período etário há que respeitar as recomendações de consenso internacional publicadas por diversos organismos: (American Heart Association, American Academy of Pediatrics, ESPGHAN, etc.) referidas na parte Nutrição.

Actualmente, de modo consensual consideram-se como valores aceitáveis para o colesterol total em crianças e adolescentes: < 170 mg/dL; como valores limite: 170-199 mg/dL; como valores elevados: >200 mg/dL. Para o colesterol-LDL: aceitáveis <110 mg/dL; limite 110-129 mg/dL; elevados >130 mg/dL. O colesterol-HDL deve estar >40 mg/dL.

Reiterando o que foi já explanado, são mencionadas as seguintes medidas dietéticas que interferem nos níveis plasmáticos de lipoproteínas:

  • As fibras, além de diminuírem a absorção do colesterol e de ácidos gordos saturados, competem com a síntese hepática de LDL;
  • As frutas e os vegetais, possuindo propriedades antioxidantes e preservando a estrutura e função do endotélio vascular, contribuem para prevenir a formação de placas de ateroma.

Relativamente ao estilo de vida, deverão ser promovidas a actividade física de forma regular e contínua (30 minutos diários, pelo menos 5 dias por semana), a prevenção do consumo de álcool e de tabaco nos adolescentes como formas de prevenir e controlar as dislipoproteinémias.

Os fármacos a utilizar (estatinas, colestiramina, etc.), com especificação das respectivas indicações e mecanismos de acção, são abordados no capítulo sobre dislipoproteinémias.

Relativamente às hipertrigliceridémias, como primeira linha terapêutica é recomendado estilo de vida saudável (redução do peso, cessação do tabagismo, redução do álcool ingerido, e ingestão de gorduras não saturadas). Valores acima de 500 mg/dL implicarão farmacoterapia [ácidos gordos ómega 3 (DHA, EHA), niacina, fibratos, etc.].

3. Aspectos epidemiológicos

Num rastreio oportunista por nós realizado com a colaboração laboratorial do Departamento de Bioquímica da FCM/NMS/UNL em crianças da clínica privada e da consulta externa do Hospital Dona Estefânia (amostras de sangue obtidas na circunstância de existir prioritariamente a indicação de outros exames analíticos do sangue), foi encontrada uma prevalência de dislipoproteinémias primárias da ordem de 5%, na sua maioria hipercolesterolémia de tipo poligénico (10 casos em 203 crianças aparentemente saudáveis); havia antecedentes familiares de hipercolesterolémia (em um dos progenitores) em 26% dos casos.

Noutra amostra constituída por 232 crianças aparentemente saudáveis, com idade compreendida entre 12 meses e 18 anos, e sem factores de risco cardiovascular, foram obtidos os valores de CT, C-LDL e de triglicéridos, que constam do Quadro 3 sobreponíveis aos valores de referência obtidos por outros autores.

QUADRO 3 – Perfil lipídico duma amostra de crianças e jovens sem factores de risco

Idades

Colesterol Total Média (DP)

Colesterol LDL Média (DP)

Triglicéridos Média (DP)

12-24 M

23

185 (15)

102 (29)

89 (33)

>2-4 A

57

173 (28)

97 (25)

76 (32)

5-9 A

83

174 (31)

102 (23)

67 (22)

10-14 A

59

180 (28)

103 (25)

71 (44)

15-18 A

10

172 (25)

99 (12)

64 (32)

Valores em mg/dL; DP= desvio-padrão; A= anos; M= meses (JMV Amaral, 2005)

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Wiegman A, Hutten BA, de Groot E, et al. Efficacy and safety of statin therapy in children with familial hypercholesterolemia. JAMA 2004; 292: 331-337

Wong B, Kruse G, Kutikova L, et al. Cardiovascular disease risk associated with familial hypercholesterolemia. Clin Ther 2016; 38: 1696 – 1709

HIPERTENSÃO ARTERIAL EM SAÚDE INFANTIL E JUVENIL

Importância do problema

A hipertensão arterial sistémica (HTA) na população pediátrica é actualmente um problema clínico com implicações muito relevantes em termos de morbilidade e mortalidade.

Constituindo uma das doenças mais prevalentes a nível nacional em adultos, na idade pediátrica é causa major de mortalidade e morbilidade, envolvendo riscos vários a longo prazo se não tratada.

Em décadas anteriores, a verificação hipertensão arterial (HTA) na idade pediátrica era quase exclusivamente considerada secundária, isto é, decorrente de patologia de base, renal, cardiovascular ou endócrina. No entanto, estudos epidemiológicos recentes em várias regiões do globo, demonstraram que: – a chamada HTA designada por “essencial” ou primária é mais frequente que a secundária atingindo cerca de 2% da população pediátrica e; – a sua prevalência tem aumentado paralelamente à da obesidade, designadamente na pré-adolescência e adolescência.

Dados estatísticos da Academia Americana de Pediatria apontam para proporções de HTA sistémica secundária de 1% em crianças e jovens, e de 2,5% de HTA primária essencial em pré-adolescentes e adolescentes. 

A detecção e diagnóstico do problema em análise dependem duma correcta definição dos critérios de normalidade na idade pediátrica – caracterizada pelo crescimento e desenvolvimento – no pressuposto de que a pressão arterial aumenta com a idade (exemplificando tão somente com o período entre os 5 anos e o início da puberdade, importa referir que a pressão arterial sistólica aumenta a um ritmo de 1-2 mmHg/ano e a pressão arterial diastólica a um ritmo de 0,5-1 mmHg/ano).

Nesta perspectiva, tendo em consideração as particularidades anatomofisiológicas da população pediátrica, em 1987 foram publicadas as primeiras tabelas de percentis para a pressão sistólica e pressão diastólica específicas para a idade, aferidas para o peso e altura, tendo em consideração a superfície corporal, em ambos os sexos.

A referidas tabelas basearam-se em dados obtidos de 11 rastreios internacionais em que foram avaliados mais de 83.000 crianças (primeira e segunda infância) distribuídas igualmente por ambos os géneros. Estes dados, revistos em 1996 e 2004 e incorporando os dados dos gráficos de percentis do crescimento, permitiram estabelecer os limiares para definição de hipertensão arterial, concretamente, com base nos percentis acima do 90 para a idade, género e altura da criança.

Definição

pressão arterial normal é definida pela verificação de valores de pressão sistólica e diastólica inferiores aos do percentil 90 para a idade, género e estatura.

Considera-se hipertensão arterial (HTA) a situação clínica acompanhada de valores de pressão arterial sistólica ou diastólica correspondendo ao percentil 95 ou percentil >95 para a idade, o género e a altura em 3 ocasiões diferentes.

A chamada HTA limite ou pré-hipertensão corresponde às situações em que os valores da pressão arterial sistólica ou distólica correspondem aos do intervalo entre os percentis 90 e 95 para a idade, género e altura, ou para valores superiores a 120/80 mmHg em qualquer adolescente, mesmo que estes valores estejam abaixo do percentil 90 (exemplo no Quadro 1).

De notar que a Sociedade Europeia de Hipertensão considera obrigatório que o diagnóstico de HTA se baseie em medição obtida em consulta e em confirmação através do registo ambulatório da PA em 24 horas.

QUADRO 1 – Percentil 95 da pressão arterial considerando os percentis 50 e 75 de altura em crianças e adolescentes

(Task Force/AHA, EUA, 2014)

Idade (anos)

Percentil 95 da PA (mmHg)
sexo feminino
Percentil 95 da PA (mmHg)
sexo masculino
 Percentil 50 de alturaPercentil 75 de alturaPercentil 50 de alturaPercentil 75 de altura
1104/58105/59103/56104/58
6111/74113/74114/74115/75
12123/80124/81123/81125/82
17129/84130/85136/87138/87

As condições técnicas e os critérios para medição correcta, incluindo os relacionados com a medição da PA abaixo dos 3 anos constam dos Quadros 2 e 3. A distribuição dos valores de referência quanto a percentis da pressão arterial segundo idade, género  e percentis da altura constam dos quadros  4, 5, 6 e 7. 

QUADRO 2 – Indicações de medição da pressão arterial em crianças com idade <3 anos

· Antecedentes de prematuridade, muito baixo peso de nascimento ou outra complicação neonatal requerendo cuidados intensivos
· Cardiopatia congénita (corrigida ou não)
· Infecções urinárias de repetição, hematúria ou proteinúria
· Doença renal ou urológica conhecida
· Antecedentes familiares de doença renal congénita
· Transplantação de órgão sólido
· Transplantação medular
· Terapêutica com fármacos que podem elevar a PA
· Doenças sistémicas associadas a HTA (neurofibromatose, esclerose tuberosa, etc.)
· Hipertensão intracraniana

QUADRO 3 – Dimensões recomendadas das braçadeiras para medir pressão arterial

*Medido de forma que a braçadeira circunde pelo menos 80% da área do braço onde se aplica.

IdadeLargura (cm)Comprimento (cm)Circunferência máxima
do braço (cm) *
Recém-nascido4810
Lactente61215
Criança91822
Adulto pequeno102426
Adulto133034
Adulto grande164252
Coxa204252

QUADRO 4 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)

Idade
(anos)
Percentil
Pressão arterial*
Pressão arterial sistólica / percentil estatura mmHg**
5%10%25%50%75%90%95%

* Percentil de pressão arterial determinada por uma única leitura

** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento

(Adaptado da DGS com autorização, 2007)


Nota importante
: em clínica pediátrica é necessário dispor de braçadeiras/garrotes de diversas larguras a aplicar no braço em função da idade: – Lactentes: 2,5 cm; 1 – 4 anos: 5,6 cm; 5 – 8 anos: 9 cm; >8 anos: 12 cm.
No que respeita ao comprimento da braçadeira, o mesmo deverá ser suficiente para envolver completamente o braço. Se a pressão arterial for determinada no membro inferior (coxa), pode utilizar-se a mesma braçadeira com o respectivo bordo inferior a 3-5 cm do cavado popliteu.

190979899100102103104
 95101102103104105107107
2909999100102103104105
 95102103104105107108109
390100100102103104105106
  95104104105107108109110
4 90101102103104106107108
 95105106107108109111111
590103103104106107108109
 95107107108110111112113
6 90104105106107109110111
 95108109110111112114114
790106107108109110112112
 95110110112113114115116
890108109110111112113114
 95112112113115116117118
990110110112113114115116
 95114114115117118119120
1090112112114115116117118
  95116116117119120121122
1190114114116117118119120
 95118118119121122123124
1290116116118119120121122
 95120120121123124125126
1390118118119121122123124
 95121122123125126127128
1490119120121122124125126
95123124125126128129130
1590121121122124125126127
 95124125126128129130131
1690122122123125126127128
 95125126127128130131132
1790122123124125126128128
 95126126127129130131132

QUADRO 5 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)

*Percentil de pressão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)

Idade
(anos)
Percentil
Pressão arterial*
Pressão arterial diastólica / percentil estatura mmHg**
5%10%25%50%75%90%95%
19053535354555656
9557575758596060
29057575858596061
9561616262636465
39061616162636364
9565656566676768
49063636465656667
9567676869697071
59065666667686869
9569707071727273
69067676869697071
9571717273737475
79069696970717272
9573737374757676
89070707171727374
9574747575767778
99071727273747475
9575767677787879
109073737374757676
9577777778798080
119074747575767777
9578787979808181
129075757676777878
9579798080818278
139076767778787980
9580808182828384
149077777879798081
9581818283838485
159078787979808182
9582828383848586
169079797980818282
9583838384858686
179079797980818282
9583838384858686

QUADRO 6 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)

* Percentil de pressão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)

Idade
(anos)
Percentil
Pressão arterial*
Pressão arterial sistólica / percentil estatura mmHg**
5%10%25%50%75%90%95%
19094959798100102102
959899101102104106106
2909899100102104105106
95101102104106108109110
390100101103105107108109
95104105107109111112113
490102103105107109110111
95106107109111113114115
590104105106108110112112
95108109110112114115116
690105106108110111113114
95109110112114115117117
790106107109111113114115
95110111113115116118119
890107108110112114115116
95111112114116118119120
990109110112113115117117
95113114116117119121121
1090110112113115117118119
95114115117119121122123
1190112113115117119120121
95116117119121123124125
1290115116117119121123123
95119120121123125126127
1390117118120122124125126
95121122124126128129130
1490120121123125126128128
95124125127128130132132
1590123124125127129131131
95127128129131133134135
1690126126128130132133134
95129130132134136137138
1790128129131133134136136
95132133135136138140140

QUADRO 7 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)

Idade
(anos)
Percentil
Pressão arterial*
Pressão arterial sistólica / percentil estatura mmHg**
5%10%25%50%75%90%95%

* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura
** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)

19050515253545455
9555555657585959
29055555657585959
9559596061626363
39059596061626363
9563636465666767
49062626364656666
9566676768697071
59065656667686969
9569707071727374
69067686970707172
9572727374757676
79069707172727374
9574747576777878
89071717273747575
9575767677787980
99072737374757677
9576777879808081
109073747475767778
9577787980808182
119074747576777878
9578797980818283
129075757677787879
9579798081828383
139075767677787980
9579808182838384
149076767778798080
9580818182838485
159077777879808181
9581828383848586
169079798081828283
9583838485868787
179081818283848585
9585858687888989

Actualmente a hipertensão arterial é classificada em 3 graus ou estádios: pré-hipertensão: se os valores da pressão arterial (PA) estiverem entre os do percentil 90 e os do 95; estádio I: se valores PA superiores aos do percentil 95 mas inferiores ou iguais aos do 99; e estádio II se os valores de PA forem superiores aos do percentil 99, adicionados de 5 mmHg.

Em caso de discrepâncias quanto à classificação deve considerar-se sempre o grau mais elevado.

Aspectos epidemiológicos

A hipertensão arterial (HTA) constitui um factor de risco independente e importante para doença crónica do adulto, em especial para a DCV e para a doença vascular cerebral. Com efeito, a elevação de apenas 5 mmHg na pressão diastólica resulta, respectivamente, em aumento de risco de DCV da ordem de 20%, e de 35% para a doença vascular cerebral. Por sua vez, a HTA constitui ainda um factor de risco para doença renal terminal na idade adulta.

Relativamente a dados epidemiológicos relacionados com este problema, cabe dizer que afecta mais de 60 milhões de de pessoas nos EUA e cerca de 1 milhão em Portugal.

Como a HTA essencial na criança e adolescente é habitualmente assintomática uma vez que os níveis tensionais se encontram apenas moderadamente elevados embora acima do percentil 95 para o grupo etário, o seu reconhecimento só é feito se a medição da pressão arterial passar a constituir um procedimento de rotina no âmbito do exame clínico de rotina ou exame de saúde.

Num estudo recente que avaliou os critérios simplificados de pré-hipertensão e de hipertensão contra os critérios aferidos para o percentil de altura definidos em 2004, em 1225 adultos do Bogalusa Heart Study (seguimento de 27,1 anos desde a infância), os investigadores verificaram que ambos os critérios permitiam igualmente avaliar o risco de ocorrência de hipertensão e de DCV subclínica em idade adulta.

Nas crianças com hipertensão verificou-se ainda aumento da velocidade da onda de pulso (uma medida da rigidez arterial), espessamento aumentado da íntima-média das carótidas, e hipertrofia ventricular esquerda.

As incidências da hipertensão arterial variam entre países, entre regiões de cada país, o que reflecte diferenças genéticas e ambientais.

Embora o peso e a altura influenciem a PA, estas relações não se tornam evidentes em antes da idade escolar; explica-se assim que os primeiros valores de percentis publicados em 1987 não tivessem reflectido tal influência.

Vários investigadores encontraram correlação entre valores de PA obtidos nos pais e nos respectivos filhos. Este aspecto familiar da PA, tal como da obesidade, é detectável desde cedo na idade pediátrica.

É importante acentuar que a HTA não reconhecida em idade pediátrica e, consequentemente não tratada, manifesta tendência para se manter durante a idade adulta; ou seja, a noção de estabilidade, ou tendência para a manutenção (tracking) aplicada às dislipoproteinémias em idade pediátrica aplica-se também a este problema clínico.

Etiopatogénese

Admite-se hoje que a HTA essencial, doença poligénica, tem a sua origem na infância, sendo a sua etiopatogénese relacionada com factores hereditários, estresse, suprimento em sal e obesidade.

A PA é determinada pelo equilíbrio entre o débito cardíaco e a resistência vascular periférica. Um aumento de qualquer uma destas variáveis sem que ocorram descidas compensatórias na outra, causa um aumento da PA média.

O débito cardíaco pode ser afectado pelos seguintes factores: barorreceptores, volume extracelular, débito cardíaco efectivo (hormonas natriuréticas, mineralocorticóides, angiotensina) e síndroma simpática. A resistência vascular periférica é influenciada por agentes vasopressores: angiotensina II, cálcio intracelular, catecolaminas, sistema nervoso simpático e vasopressina; e por agentes vasodepressores: hormona natriurética, factores de relaxamento endotelial, citocinas, prostaglandina E2 e I2.

Alguns destes factores são ainda afectados por alterações da homeostase electrolítica, em particular do sódio, cálcio e potássio.

O sistema renina-angiotensina tem um papel fundamental na regulação da pressão arterial e na homeostase do sódio, salientando-se que os genes que fazem parte da cascata enzimática do referido sistema são genes candidatos para a HTA essencial e para algumas manifestações clínicas associadas. Cita-se, a propósito, a relação entre HTA sensível ao sódio e o polimorfismo do gene da enzima conversora da angiotensina (ECA), admitindo-se associação entre os genótipos II ou DI e maior prevalência de sensibilidade ao sal. A HTA sensível ao sal também pode estar associada a valores baixos da renina.

A obesidade é reconhecida como um dos mais importantes e independentes factores de risco para HTA em crianças a partir dos 5 anos, e com maior relevância a partir da adolescência. O efeito da obesidade é condicionado pelo hiperinsulinismo que se verifica em crianças obesas, o qual determina aumento da reabsorção do sódio e do tono simpático.

Outro factor de ordem ambiental implicado diz respeito à ingestão de sal na alimentação; de referir, a propósito, alguns estudos de intervenção alimentar: a restrição de sal durante os primeiros 6 meses promove a descida dos valores de pressão sistólica.

O potássio também actua na regulação da PA através da indução da natriurese e da acção sobre a renina, suprimindo a sua produção e libertação.

Dados preliminares também constituem argumento para uma correlação inversa entre suprimento de cálcio no regime alimentar e pressão arterial: tal suprimento, conduzindo a maior teor em cálcio intracelular, tem influência na diminuição do tono vascular e na resistência arteriolar.

Outro aspecto – abordado no capítulo anterior diz respeito à relação entre baixo peso de nascimento e HTA na vida adulta.

Orientação diagnóstica

A avaliação diagnóstica em doentes com HTA deve ser orientada prioritariamente pela história clínica (anamnese e exame físico); realizada a história clínica, e em função dos dados colhidos no seu conjunto, poderá estar indicada a realização fundamentada e metódica de exames complementares, dos mais simples para os mais complexos, reservando-se para a fase final os exames invasivos.

A idade de início da HTA pode orientar para os respectivos factores etiopatogénicos mais frequentes. (ver Capítulo sobre HTA e doença renal na Parte sobre Nefro-Urologia).

Um achado anómalo evidenciado pelo hemograma poderá relacionar uma eventual anemia com doença renal crónica. Resultados anómalos de exames de bioquímica do soro (por exemplo valores de creatinina e ureia) poderão indicar igualmente a presença de doença renal.

Hipocaliémia na ausência de terapêutica com diuréticos poderá estar associada a hiperaldosteronismo, o que implicará confirmação por estudo hormonal respectivo.

Poderão ainda ser avaliados outros estudos como o doseamento da renina: a elevação do seu teor poderá indicar doença renovascular ou coarctação da aorta; a sua diminuição poderá indicar excesso de mineralocorticóides ou síndroma de Liddle.

Os doseamentos de catecolaminas (adrenalina, noradrenalina ou dopamina) podem ser relevantes para o diagnóstico de feocromocitoma.

Poderá ainda ser importante a realização de urocultura e o doseamento de sódio na urina: a primeira para avaliar processo de eventual infecção crónica, e a segunda para avaliar os níveis de ingestão de sódio.

Recomenda-se ainda em crianças obesas a análise do lipidograma e a prova de tolerância à glucose para avaliar a presença de síndroma metabólica.

Em casos seleccionados os doseamentos de drogas (sérico, urinário ou noutros produtos biológicos) poderão ser importante para excluir tais substâncias como causa de HTA.

Uma avaliação cardíaca em doentes com HTA é essencial para excluir cardiopatia e para avaliar as repercussões cardíacas da PA elevada.

A ecocardiografia permite avaliar a função e as dimensões ventriculares esquerdas e excluir a presença de obstrução a nível da aorta.

A ecografia abdominal pode ser importante para a exclusão de alterações estruturais renais e para a avaliação do fluxo das artérias renais por Döppler, bem como a identificação de eventuais massas anormais.

A monitorização ambulatória da pressão arterial (MAPA) permite pormenorizar o registo da evolução e das alterações da PA em função da actividade fisiológica e dos estímulos ambientais durante o sono. De salientar que este exame é útil para a avaliação inicial da HTA, a estratificação de risco e a avaliação da resposta ao tratamento.

Outros exames para identificação de lesões de órgão alvo decorrentes da HTA incluem a realização de fundoscopia que apenas raramente e em casos de HTA grave não controlada evidenciará anomalias.

O cateterismo e angiografia reservam-se para os casos com indicação para terapêutica percutânea como é o caso da coarctação da aorta e da estenose da artéria renal.

Exames de imagem como a RM e a angio-TC podem ser relevantes para melhor definição de lesões específicas, quer a nível renal, quer vascular, não sendo no entanto exames fundamentais para o diagnóstico da HTA.

Por fim, haverá que ponderar em casos específicos um exame polissonográfico para diagnóstico de apneia do sono no contexto de HTA.

O algoritmo que integra a Figura 1 sintetiza os principais aspectos do exame clínico e dos exames fundamentados orientando no sentido do diagnóstico etiopatogénico da HTA.

FIGURA 1 – Algoritmo sobre a orientação diagnóstica e a actuação prática em caso de HTA (Adaptado de Algoritmos em Pediatria, Afonso AC, Lisboa: Lidel, 2015)

Actuação

O Programa –Tipo de Actuação em Saúde Infantil e Juvenil da Direcção Geral da Saúde e a Academia Americana de Pediatria recomendam a medição da pressão arterial a partir dos 3 anos. Tal medição deverá ser levada a cabo com técnica e equipamentos adequados, tendo em conta, nomeadamente, a aferição dos aparelhos e a largura da braçadeira, esta última devendo ser adaptada para cada idade.

Em complemento do que é referido no Capítulo sobre HTA e doença renal na parte sobre Nefro-Urologia cuja consulta se sugere, acentuam-se os seguintes pontos que fazem parte da actuação preventiva:

  • Restrição de sal no regime alimentar (3-5 gramas /dia; ~1,4 gramas/100 gramas de pão);
  • Prevenir e combater a obesidade;
  • Estimular o consumo de alimentos ricos em potássio;
  • Promover a actividade física;
  • Prevenir o baixo peso de nascimento.

O tratamento da HTA deve ser dirigido à causa da mesma. Torna-se por isso essencial excluir as causas tratáveis de HTA, em particular a coarctação da aorta a qual pode ocorrer numa criança de forma assintomática.

A redução do peso deverá ser o objectivo em todas as crianças obesas com HTA, independentemente da sua etiologia. O exercício aeróbico e isotónico exercem um benefício directo nos valores da PA, assim como ajudam a reduzir o peso e a manter o peso ideal. Apenas as crianças e adolescentes com HTA não controlada e anomalias cardíacas devem ter restrição para a prática dos esforços físicos.

A apneia do sono, situação por vezes subdiagnosticada em idade pediátrica, pode levar a hipertensão secundária ao alterar o padrão de sono e, desta forma, o equilíbrio hormonal. Nestas circunstâncias, a perda de peso, a adenoidectomia e amigdalectomia ou o uso de ventilação com pressão positiva contínua podem melhorar a qualidade do sono e a PA.

Tratamento farmacológico

A terapêutica farmacológica da HTA crónica pode ser efectuada com diversas categorias de fármacos, devendo como sempre a selecção basear-se, como sempre, no balanço entre o modo de acção e os potenciais efeitos secundários. A terapêutica só deve ser iniciada depois de um diagnóstico confirmado de HTA. (ver Capítulo sobre HTA e doença renal- Parte sobre Nefro-Urologia).

A Associação Americana recomenda a utilização de:

  • IECA ou ARA apenas em crianças com diabetes e microalbuminúria ou doença renal com proteinúria; e
  • Beta-bloqueantes ou bloqueantes dos canais de cálcio em crianças com HTA e enxaqueca.

Deve iniciar-se o tratamento com uma dose baixa de apenas um fármaco; tal dose pode ser aumentada em caso de insucesso.

Os casos de HTA primária não complicada considera-se que estão controlados quando os valores estão abaixo do percentil 95 para a idade, sexo e altura.

Naqueles com complicações, em particular com atingimento ou lesão de órgão-alvo, ou associados a diabetes, insuficiência renal crónica, considera-se que estão controlados quando os valores estão abaixo do percentil 90.

Quando o controlo não é possível com as medidas farmacológicas até então tomadas, deve associar-se um segundo fármaco de outra classe. Se mesmo assim o controlo não se verificar, deve investigar-se mais intensamente uma causa secundária antes de adicionar um terceiro fármaco.

Em suma, o tratamento da HTA em crianças e adolescentes requer experiência e conhecimentos particulares, raramente acessíveis aos pediatras. Assim, é aconselhável referenciar os doentes em tais circunstâncias a médicos com larga experiência no tratamento da HTA, designadamente a cardiologistas pediátricos.

Os casos de HTA aguda (crises hipertensivas) constituindo situações de emergência, devem ser tratados com medicação endovenosa (nomeadamente com nitroprussiato de sódio e labetal).

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www.dgs.pt [acesso em Março 2019]

ww w.pordata.pt [acesso em Março 2019]

Agradecimentos

Agradecimento muito sentido ao grande amigo e colega José Carlos Peixoto, recentemente falecido, que deu contributo fundamental para a elaboração deste capítulo

DOENÇAS DO FETO COM REPERCUSSÃO NO ADULTO – GENERALIDADES

“Em ciência, o importante é mudar as ideias à medida que a Ciência progride”
Claude Bernard, 1877

Importância do problema

O ser humano, desde a concepção à adultícia, cresce e desenvolve-se modelado pela interacção de factores genéticos e ambientais. Estes últimos poderão, em determinadas circunstâncias, comportar-se como adversos, já na fase pré-natal, determinando um largo espectro de morbilidade cuja expressão clínica poderá ser mais notória na idade adulta.

A realização em Bombaim, Índia, em 2001, de um congresso mundial, reunindo especialistas de diversas áreas, pediatras e não pediatras, sobre doenças do adulto com origem no feto, traduz em certa medida a importância de um verdadeiro problema em saúde pública, que foi identificado.

Um dos tópicos discutidos foi o panorama da saúde na Índia, em que a coronariopatia e a diabetes mellitus de tipo 2 alcançaram proporções epidémicas, em associação a uma das mais elevadas prevalências de baixo peso de nascimento do mundo – cerca de 30%.

Nesse mesmo congresso foi dada ênfase ao papel do pediatra e do perinatologista num conjunto de intervenções na tentativa de inverter tendências de incremento de tal patologia.

A este propósito, e como resultado da investigação e dos progressos da tecnologia, importa referir uma vasta lista de entidades clínicas que a comunidade científica considera como doenças crónicas originadas no feto(Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças crónicas no adulto com origem fetal

· Diabetes mellitus
· Obesidade
· Dislipidémia
· Hipertensão arterial
· Coronariopatia
· Acidente vascular cerebral
· Falência renal – glomerulosclerose
· Falência hepática – colestase, esteatose
· Anomalias pulmonares – displasia broncopulmonar, doença da via aérea reactiva
· Disfunção imune
· Redução da massa óssea
· Doença de Alzheimer
· Depressão, ansiedade, perturbação bipolar, esquizofrenia
· Cancro

 

Neste capítulo são abordados sucintamente alguns dos aspectos mais representativos de tal morbilidade. 

Programação e Epigenética

Na última década do século passado, o grupo de investigação do epidemiologista David Barker na Grã-Bretanha, divulgando a hipótese segundo a qual a doença coronária tem origem na vida fetal, verificou que na população estudada o “baixo peso de nascimento” se correlacionava com elevadas taxas de mortalidade por doença cardiovascular aos 20 anos de idade.

Em ulteriores investigações experimentais e em humanos, quer do referido grupo, quer de outros, chamando-se a atenção para a existência dos chamados períodos críticos do desenvolvimento fetal (períodos de maior susceptibilidade a certas noxas ou factores adversos), foi comprovado que as noxas poderão originar alterações permanentes de variada tipologia – estrutural, funcional, metabólica ou outras – em diversos sistemas, incluindo o cardiovascular.

Dos resultados descritos nasceu o conceito de programação (em inglês, programming) significando o processo de adaptação fetal traduzido pelas referidas alterações resultantes do “ambiente” adverso, com consequências fisiopatológicas:

  • A curto prazo, como baixo peso de nascimento com ou sem restrição do crescimento intrauterino/RCIU, afecções relacionadas com a adaptação à vida extrauterina; e
  • A médio e longo prazo, como hipocrescimento, desregulação da homeostasia, surgimento de hipertensão arterial, aterosclerose, diabetes, obesidade, alterações em diversos sistemas, tais como o SNC, etc..

Como exemplos de ambiente fetal adverso são citados os principais factores, tais como, défice de suprimento em nutrientes (por ex. em relação com desnutrição materna e/ou disfunção placentar), obesidade materna, hipóxia, exposição a agentes tóxicos, e o estado psicológico e de tensão emocional/estresse da grávida. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Factores de ambiente fetal adverso

1. Nutrição disfuncional
2. Hipóxia materno-fetal
3. Agentes tóxicos
4. Estado psicológico e tensão emocional da grávida

Importa referir que a sistematização em quatro grupos não é estanque; de facto, pode existir interligação entre alguns e, em determinadas situações, pode verificar-se efeito de mais do que um factor. Por exemplo, a poluição ambiental pode interagir com o estresse, assim como os efeitos da exposição a tóxicos poderão ser exacerbados ou atenuados pelo estado nutricional.

Este aspecto, relacionado com o papel dos diversos factores adversos, será retomado adiante, a propósito da actuação prática.

Sobre o mecanismo de acção dos factores adversos a nível molecular, o desenvolvimento da Epigenética (área com interesse não só para bioquímicos e geneticistas, mas também para clínicos, pelas potencialidades em medicina preditiva e preventiva) tem contribuído para uma melhor compreensão do problema, estabelecendo uma ponte com o conceito de Programação.

A propósito da Epigenética, importa recordar algumas noções básicas:

  1. Os mecanismos epigenéticos dizem respeito às modificações químicas do genoma, sem que se verifique alteração da sequência dos nucleótidos do ADN. Tais modificações químicas são de três tipos: metilação do ácido desoxirribonucleico (ADN), acetilação e metilação das histonas (proteínas envolvidas nos processos de organização espacial das moléculas do ADN no núcleo), e modificação na estrutura quantitativa do micro ARN.
  2. As mesmas modificações (que correspondem a mecanismos de regulação da expressão dos genes) têm como efeito activar algumas sequências do genoma, pondo a funcionar determinados (em on), desactivando outros (em off).
  3. As modificações químicas que estão na base dos mecanismos epigenéticos de regulação da expressão génica podem ser induzidas principalmente por factores nutricionais e, também, por variações nos níveis séricos de várias hormonas, quer na mãe, quer no feto. Ou seja, o ambiente em que o feto se desenvolve (principalmente hormonal e nutricional) será o factor condicionante das alterações epigenéticas que ocorrem na estrutura do ADN.
  4. Os processos epigenéticos envolvem quatro características específicas:
    • Estabelecimento de novo por factores ambientais;
    • Propagação do processo, no sentido em que uma modificação química numa dada localização induz modificações nas localizações vizinhas;
    • Transmissibilidade, isto é, manutenção das modificações químicas do genoma durante os processos de divisão celular com probabilidade de transmissão a, pelo menos, duas gerações; e
    • Reversibilidade, significando a possibilidade de regressão das referidas modificações em resultado de alterações ambientais (considerando a noção de ambiente no sentido lato, designadamente de tipo micro).

Embora todas estas características tenham aparentemente implicações práticas importantes no âmbito das medidas a tomar para prevenir ou minorar os problemas clínicos, importa referir que a confirmação de que mecanismos epigenéticos estejam por definição subjacentes à hipótese de Barker (mediação epigenética entre as alterações do crescimento fetal e as doenças no adulto) não é consensual entre a comunidade científica, o que constitui uma limitação obrigando ao aprofundamento da investigação neste campo.

Ambiente adverso in utero

1. Nutrição disfuncional

Tendo como base a sistematização do Quadro 2, independentemente do processo de programação e da comparticipação epigenética, e na continuidade do que foi descrito no início do capítulo, importa desenvolver os aspectos mais relevantes da repercussão clínica dos factores ambientais adversos in utero.

Desnutrição materna e disfunção placentar

Sobre estes tópicos, sistematizámos as principais ideias-chave:

1) A nutrição do feto e, por consequência, o respectivo peso, depende do suprimento em nutrientes através da circulação materno-placentar-fetal, por sua vez em relação com a nutrição materna e o metabolismo e função placentares. A regulação da transferência de nutrientes para o feto depende não só do próprio suprimento, mas também da insulina fetal e do factor de crescimento designado por IGF-I (sigla de “insulin-like growth factorI) (IGF-I). Salienta-se a propósito que este factor é considerado um indicador do estado nutricional do feto e recém-nascido.

2) Verificando-se défice nutricional do feto, neste surgem mecanismos de adaptação incluindo armazenamento de gordura, redução do metabolismo não essencial, restrição do crescimento e redistribuição do fluxo sanguíneo e nutrientes para órgãos nobres (cérebro, coração e suprarrenais) em detrimento de outros.

Barker descreveu três padrões de hipocrescimento fetal correspondentes a outros tantos mecanismos de subnutrição actuando em diferentes fases da gravidez, com implicações futuras em termos de manifestação de problemas clínicos na idade adulta:

  • A subnutrição na fase precoce da gravidez (período de hiperplasia entre as 4-20 semanas caracterizado por mitose activa e aumento do conteúdo de DNA) que origina baixo peso de nascimento com uma relação harmónica, simétrica ou bem proporcionada entre peso, comprimento e perímetro cefálico. Este fenótipo corresponde à forma de restrição de crescimento intrauterino inicialmente descrita por Clifford como “crónica” e afectando os tecidos moles, o esqueleto e o crânio.
    A este perfil somatométrico associou-se deficiente incremento ponderal no primeiro ano de vida, e risco elevado de subsequente desenvolvimento de hipertensão arterial e de acidente vascular cerebral na idade adulta;
  • A subnutrição entre as 20-28 semanas (período caracterizado por hiperplasia e hipertrofia), condicionando baixo peso de nascimento com um baixo índice ponderal (relação peso em gramas x 100/comprimento em centímetros elevado ao cubo), inferior a 2,32.
    Neste grupo verificou-se risco ulterior, na idade adulta, de hipertensão arterial, de coronariopatia e de diabetes não insulinodependente;
  • A subnutrição no final da gravidez, após as 28 semanas; é a fase da hipertrofia em que, em condições normais, se acumula tecido adiposo e ocorre aumento das dimensões celulares. A forma clínica resultante é designada por RCIU assimétrica ou desarmónica (subaguda na nomenclatura de Clifford) com crescimento relativamente mantido da cabeça, tronco e esqueleto, mas hipotrofia das massas musculares (sarcopenia), do tecido celular subcutâneo, osteopenia e diminuição do desenvolvimento do timo e tecido linfóide. A este fenótipo associou-se o risco, na vida adulta, de hipertensão, de dislipidémias (sobretudo hipercolesterolémia à custa das lipoproteínas de baixa densidade – LDL), doença coronária, maior susceptibilidade a infecções e acidente vascular cerebral.

O modelo proposto por Barker foi questionado por outros investigadores concluindo que: no sexo masculino é o peso ao 1 ano e não o baixo peso ao nascer que se associa a coronariopatia; no sexo feminino, pelo contrário, verificou-se associação entre o baixo peso ao nascer e coronariopatia, intolerância à glucose e colesterol-LDL elevado, mas não com outros factores como hipertensão arterial e hiperfibrinogenémia.

3) O quadro designado por “desnutrição materna crónica” pode ser tipificado pela chamada grande fome (Dutch Famine Cohort) ocorrida na Holanda -1944-1945- durante a Segunda Guerra Mundial, em que a população, que incluía grávidas, foi obrigada a restrições alimentares dramáticas com ingestão diária de 400-800 kilocalorias. Os efeitos de tal carência a curto prazo traduziram-se no nascimento de crianças de baixo peso com restrição de crescimento intrauterino; a longo prazo, décadas depois, nos filhos que enquanto fetos tinham sofrido maiores carências no primeiro trimestre da gravidez, surgimento de perfil lipídico aterogénico, coronariopatia e obesidade; verificando-se maiores carências no segundo trimestre, microalbuminúria por menor desenvolvimento de nefrónios; se no terceiro trimestre, intolerância à lactose.

4) A evidência da associação entre baixo peso de nascimento (com ou sem RCIU) e determinados problemas metabólicos na idade adulta (essencialmente diabetes de tipo 2 e obesidade de tipo central) e/ou coronariopatia levaram, segundo Hales e Barker, à criação do conceito de “fenótipo da poupança ou da frugalidade” – thrifty hypothesis – preparando o organismo para o ambiente de “fome”.

Assim, as alterações neuro-endócrino-metabólicas (mediadas através de alterações do eixo hipotálamo-hipofisário-suprarrenal-gónadas (HHSR-G), e surgidas como resposta de adaptação à subnutrição fetal), mantendo-se na vida extrauterina, influenciam ulteriormente a secreção de insulina e promovem alterações morfofuncionais ao nível da parede vascular. As referidas alterações são consideradas benéficas se a escassez nutricional se mantiver após o nascimento dado que o organismo ficara “preparado” geneticamente para viver em situação de “fome”.

No entanto, se na vida extrauterina a alimentação for abundante, as referidas alterações endócrino-metabólicas podem predispor a obesidade ou a peso excessivo e a anomalias da tolerância à glucose.

5) Um aspecto merece ser realçado – o que se refere à acumulação de gordura intrabdominal profunda:

  • Nos casos de RCIU, a maior acumulação de gordura intrabdominal ou visceral (detectável e quantificada por ressonância magnética/RM) relaciona-se com eventos adversos durante a gravidez e com ulterior resistência à insulina;
  • Não se verificando eventos adversos, há maior tendência para acumulação de gordura subcutânea em vez de abdominal, o que condiciona melhor prognóstico em termos metabólicos futuros. (ver adiante)

Importa recordar que a gordura visceral, metabolicamente activa, é em grande parte responsável pela dislipidémia aterogénica, hipertensão arterial, estado inflamatório crónico endotelial e estado protrombótico (síndroma metabólica e risco cardiovascular).

6) Se o feto estiver exposto a restrição proteica predominante, o resultado será diminuição da proliferação das células beta dos ilhéus pancreáticos conduzindo a hipossecreção de insulina, hiperglicemia, e círculo vicioso com ulterior estimulação das células beta, as quais, entretanto, entrarão em esgotamento funcional.

Carência em ácidos gordos polinsaturados de cadeia longa (LCPUFA)

Não cabendo no âmbito deste capítulo uma descrição exaustiva dos quadros carenciais de todos os macro e micronutrientes, importa no entanto abordar de modo sucinto o papel destes micronutrientes, designadamente os designados por ómega 3 (n-3) e ómega 6 (n-6) que têm como precursores respectivamente o ácido alfa-linolénico (AAL) e o ácido linoleico (AL).

São hoje atribuídas diversas acções aos LCPUFA, cujas reservas são deficitárias no RN pré-termo.

A gravidez e a lactação são as principais fontes de LCPUFA n-3 e n-6. Uma dieta materna deficitária ou uma diminuição da transferência placentar podem levar a carência fetal em LCPUFA.

Tais ácidos gordos, que funcionam como substracto energético, são preferencialmente incorporados nas membranas das células neurais e retina, o que influencia o desenvolvimento visual e cognitivo. Contribuem também, na ordem dos 25%, para integrar o componente lipídico das células com funções imunitárias. Os mesmos LCPUFA também são incorporados nas membranas doutras células como as dos endotélios vasculares, o que poderá explicar o seu efeito na distensibilidade da parede das artérias. Efectivamente, foi demonstrado que em adultos hipertensos o regime alimentar suplementado com n-3 LCPUFA é susceptível de reduzir os valores tensionais em comparação com os que não são suplementados.

Tendo como base a noção de que as crianças alimentadas com leite materno têm valores mais baixos de pressão arterial que as alimentadas com fórmulas industriais (não suplementadas com LCPUFA) verificou-se que da suplementação com tais ácidos gordos n-3 LCPUFA resultam valores mais baixos de pressão arterial na infância, o que tem implicações na prática clínica tendo em conta a tendência para os referidos valores se manterem até à idade adulta; desconhece-se, até ao momento se, tal influência dependerá do tempo que durou o tipo de alimentação.

De referir ainda estudos que levantaram a hipótese de o défice de LCPUFA na primeira infância, condicionando disfunção da membrana celular e da barreira hemato-encefálica, facilitar a entrada de determinados agentes infecciosos promovendo a degradação acelerada da mielina e a génese do quadro de esclerose múltipla. (consultar parte sobre Nutrição)

Carências nutricionais específicas de expressão tardia

O suprimento inadequado de determinados nutrientes à criança pode originar mais que uma doença por mecanismos diversos.

Tais doenças, associadas a carências específicas, manifestam-se classicamente em idade pediátrica, ou seja, após um período curto de latência uma vez verificada a situação biológica de carência; neste contexto, não se pode excluir predisposição genética.

São exemplos as seguintes associações, algumas das quais têm elevada prevalência nos países em desenvolvimento: tiamina-béri-béri, niacina-pelagra, vitamina D-raquitismo, iodo-bócio, vitamina C-escorbuto, vitamina A – xeroftalmia e ceratomalácia, ácido fólico e/ou vitamina B12 – anemia megaloblástica, flúor-cárie dentária, ferro-anemia ferripriva.

Embora cada micronutriente tenha um papel–chave no metabolismo de diversos tecidos, a manifestação que diz respeito à doença considerada clássica ou “index”, traduz a maior vulnerabilidade de determinado tecido.

Em confronto com o conceito de doenças de carência nutricional manifestando-se após um período de latência curto, cabe referir um conjunto de outros problemas igualmente de tipo carencial, mas de manifestação após um período de latência longo, atingindo a idade adulta.

São citados três exemplos de carências:

1) De cálcio: foi descrito um mecanismo, associando a carência em cálcio a uma elevação “paradoxal” de cálcio ionizado intracelular e a uma diminuição da capacidade de ligação ácidos gordos – ácidos biliares; este achado biológico é relacionado com cancro do cólon na idade adulta.

2) De vitamina D: um dos efeitos do calcitriol – para o qual existem receptores em muitos tecidos – é induzir a diferenciação e regular a proliferação celulares. O seu défice tecidual (que poderá coincidir com valores séricos normais) poderá ter, por isso, efeito oncogénico pelo défice da regulação exercida sobre a proliferação celular. A este respeito, cabe referir que existem investigações demonstrando uma associação entre níveis baixos de calcitriol e mais elevada incidência de cancro da próstata.

Chama-se a atenção igualmente para diversas repercussões da deficiência em vitamina D, traduzindo a acção desta em vários sistemas: risco cardiometabólico (obesidade, HTA, hiperglicémia, cardiomiopatia, síndroma metabólica), diabetes mellitus tipo 1, esclerose múltipla, esquizofrenia, etc.. Regulando também o genoma humano, o défice da referida vitamina tem igualmente influência na vida reprodutiva, designadamente em raparigas adolescentes.

3) De ácido fólico: nas doenças – index (anemia megaloblástica e defeitos do tubo neural no feto em situações de carência na gravidez), o efeito da carência é explicado pela alteração da síntese de ADN; no caso dos defeitos do tubo neural intervém igualmente a hiper-homocisteinémia secundária ao défice de ácido fólico. Em termos de expressão da doença após longo período de latência, comprovou-se que a homocisteína tem um papel importante na degradação das proteínas de tecido elástico, conduzindo a um processo degenerativo do tecido conectivo com repercussão em vários territórios: sistema ocular (ectopia lentis), tecido ósseo (osteoporose), sistema vascular (doença vascular oclusiva), sistema nervoso central (demência). De salientar que a homocisteína, cujos níveis séricos se elevam com suprimento abundante em proteínas, tem uma acção pró-oxidante e pró-coagulante ao nível do endotélio vascular, favorecendo a aterogénese. (ver parte sobre Nutrição).

Peso de nascimento e morbilidade na idade adulta

Para o clínico prático, importa sintetizar algumas conclusões de diversos estudos de investigação, com valor prognóstico.

  • Associação entre baixo peso de nascimento e hipocrescimento no primeiro ano de vida, com osteoporose e diminuição da massa óssea no adulto, e risco de fractura do colo do fémur na idade avançada relacionável com densidade mineral óssea deficitária.
  • Baixo peso mantido durante o primeiro ano de vida é preditivo de coronariopatia na idade adulta.
  • Restrição de crescimento intrauterino (RCIU) associada a recuperação no primeiro ano de vida é preditiva de resistência a insulina pelo 1 ano de idade; nos casos de aumento ponderal rápido até aos 3 anos, existe maior probabilidade de resistência à insulina e de acumulação central de gordura na referida idade.
  • RCIU de tipo assimétrico com recuperação de peso até aos 2 anos é preditiva de aumento do índice de massa corporal (IMC) com adiposidade central.
  • Nos recém-nascidos (RN) pré-termo com idade gestacional inferior a 33 semanas e antecedentes neonatais de doença grave existe maior propensão para acumulação de gordura abdominal profunda (visceral ou intrabdominal) associada a resistência à insulina; nos casos com características antropométricas e gestacionais semelhantes, mas sem antecedentes de patologia neonatal grave, existe maior propensão para acumulação de gordura abdominal superficial (subcutânea).
Excesso de peso, obesidade na pré-grávida, ou grávida, e cancro

1) Em campo oposto à desnutrição na grávida a obesidade e/ou o excesso de peso podem ter também repercussões futuras no feto pela transferência excessiva de nutrientes através da placenta. Em resposta à exposição in utero de níveis elevados de glicose, lípidos e citocinas inflamatórias ocorrem alterações epigenéticas que podem conduzir a alterações transitórias e ou permanentes na programação metabólica fetal.

Na mulher obesa os níveis de leptina estão aumentados e os de adiponectina diminuídos, o que conduz a um estado de insulinorresistência.

Demonstrou-se também que grávidas com excesso de peso são mais susceptíveis à diabetes gestacional e à intolerância à glicose, o que, por sua vez, incrementa a probabilidade de gestação com fetos macrossómicos mais propensos a obesidade na infância, hipertensão arterial, dislipidémia, e a diabetes tipo 2 na adolescência (síndroma metabólica).

Também, noutros estudos se verificou maior propensão para pré-eclâmpsia e HTA em mulheres com IMC aumentado antes e durante a gravidez.

Outros efeitos da obesidade sobre o feto (possivelmente relacionáveis com associação a diabetes periconcepcional) traduzem-se pela verificação de risco mais elevado (cerca de 1,4 vezes) de defeitos congénitos major, com predomínio de defeitos do tubo neural, cardíacos e da parede abdominal.

2) Diversos estudos prospectivos observacionais têm demonstrado uma associação positiva entre peso de nascimento elevado, obesidade pediátrica e risco subsequente de diversos tipos de neoplasias na idade adulta.

Em 1990, Trichopoulos admitiu a hipótese de o cancro da mama poder ter a sua origem in utero. Num estudo realizado no Reino Unido e na Suécia, envolvendo 5358 mulheres, verificou-se uma associação a risco de cancro da mama antes dos 50 anos 3,5 vezes superior nos casos de antecedentes de macrossomia ao nascer (peso igual ou superior a 4.000 gramas), em relação aos casos com idêntica idade gestacional, mas peso de nascimento inferior a 3.000 gramas.

De acordo com diversas investigações demonstrou-se o papel da elevada concentração de estrogénios endógenos nas mulheres com cancro da mama em idades pós-menopausa. Nos casos de associação entre macrossomia e ulterior cancro da mama em idade pré-menopáusica, demonstrou-se que havia elevadas concentrações de IGF-I (insulin-like growth factor) comprovada nos casos que evoluíram para cancro da mama pré-menopáusica.

3) Relativamente ao cancro colorrectal, encontrou-se uma incidência maior nos casos associados a antecedentes de macrossomia fetal. Embora a base etiopatogénica não esteja ainda perfeitamente esclarecida, admite-se que a sequência de eventos biológicos associados (macrossomia com hiperinsulinémia) tenham papel importante na carcinogénese colorrectal.

2. Hipóxia materno-fetal

Têm sido descritos vários mecanismos interligados através dos quais a hipóxia materno-fetal poderá repercutir-se no feto, futuro adulto.

A propósito da má-nutrição fetal relacionável com insuficiente transferência de nutrientes no sentido mãe-feto por disfunção placentar, foram abordados diversos mecanismos de adaptação. Salienta-se uma redistribuição do fluxo sanguíneo para órgãos “nobres” como o cérebro, coração e suprarrenais em detrimento de outros, restando estes últimos em condição ainda mais deficitária.

Ou seja, falando-se em disfunção placentar, esta conduz igualmente a transferência deficitária de oxigénio, com consequente hipóxia fetal; e esta, tal como acontece quando se trata de nutrientes deficitários, também conduz a lesões estruturais e metabólicas permanentes de órgãos e tecidos no feto, tais como hipocelularidade e hipoplasia.

Em diversos estudos apurou-se que o défice de transferência de oxigénio no sentido mãe-feto se associou a hipercrescimento da placenta (placenta relativamente grande) e elevada ratio de peso da placenta/peso de nascimento.

Demonstrou-se, por outro lado, que a discordância entre o peso fetal (deficiente ou baixo) e o tamanho (grande) da placenta pode conduzir a fenómeno de adaptação circulatória no feto, com alteração estrutural progressiva das grandes artérias na criança, traduzida por alterações nas escleroproteínas com repercussão na distensibilidade e consequente hipertensão arterial na idade adulta.

Abordar a questão da hipóxia fetal como factor adverso com respercussões futuras a longo prazo, implica uma referência aos estudos realizados em humanos em zonas do globo a elevadas altitudes, onde a concentração do oxigénio no ar inspirado é baixa.

Entre múltiplas conclusões, cabe citar muito sucintamente que a hipóxia crónica isoladamente (sem interferência do défice em nutrientes) pode originar um quadro morfofuncional de disfunção placentar por hipodesenvolvimento vascular, RCIU com hipoinsulinismo, e alteração da função endotelial com repercussão óbvia no sistema cardiovascular.

3. Agentes tóxicos

A exposição do ser humano a agentes tóxicos, físicos e químicos (que fazem parte dos chamados xenobióticos ou agentes estranhos ao organismo), é uma realidade em todo o Mundo, com impacte durante toda a vida. Tais agentes tóxicos estão largamente distribuídos na comunidade, em ambientes domésticos ou de trabalho contaminando alimentos, água, ar e produtos de consumo.

Num estudo realizado em 2011 pelo National Health and Nutrition Examination Survey dos Estados Unidos foram identificados em grávidas compostos como chumbo, mercúrio, tolueno, perclorato, alcalóides, polifenóis, ftalatos, nitritos, nitratos, pesticidas, perfluoroquímicos, etc. que, atravessando a placenta, são altamente lesivos para o feto.

No caso do metil-mercúrio, há descrições de níveis séricos mais elevados no feto do que na grávida, o que equivale a dizer, segundo os investigadores, de modo alarmante, que “o feto já nasce poluído”.

Reportando-nos aos já citados períodos críticos ou de maior vulnerabilidade do ser em desenvolvimento a noxas, importa salientar que agentes adversos ou “tóxicos”, interferindo na programação, originam alterações epigenéticas desde o período fetal à infância e adolescência.

A este propósito reitera-se uma das características das alterações epigenéticas, que é a transmissibilidade, determinando a manutenção das modificações químicas do genoma durante os processos de divisão celular e a probabilidade de transmissão a futuras gerações.

Como resultado de alterações epigenéticas, neste campo dos tóxicos contaminantes, têm sido descritas doenças do neurodesenvolvimento e de tipo degenerativo, não somente em adultos, ex-crianças lesadas já na condição de fetos, mas também em descendentes de crianças.

Em suma, será fundamental que se crie um ambiente saudável à mulher desde a fase pré-concepcional, assim como ao feto em desenvolvimento, não bastando que exista a preocupação de o futuro recém-nascido ser saudável; na perspectiva do futuro, como ser adulto, importa que, desde as fases primordiais da vida, se tenham promovido acções para uma programação de saúde plena, desde a infância à idade adulta.

4. Estado psicológico e tensão emocional da grávida

Estudos recentes, já no século XXI, demonstraram que o estado emocional da mãe na gravidez pode predispor o seu filho para uma variedade de problemas comportamentais, nomeadamente do foro psicopatológico (esquizofrenia, depressão, entre outros), e salientaram o efeito benéfico quanto à moderação de tais efeitos com a relação precoce mãe-filho no pós-parto imediato.

Em experimentação animal verificou-se que, em indivíduos submetidos a estresse pré-natal, os genes programadores do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal-gónadas (HHSR-G) sofreram modificações epigenéticas as quais, posteriormente, são transmitidas a gerações seguintes.

Ulterior investigação experimental concluiu que a alteração das respostas do eixo HHSR-G, transmitida aos primeiros descendentes ou a descendentes de subsequentes gerações, é responsável por alterações comportamentais.

Por outro lado, na espécie humana, a desregulação do eixo HHSR-G foi demonstrada em estudos prospectivos, verificando-se activação ou supressão duradoira desse eixo em função do estado psicológico, tensão emocional, estresse ou ansiedade durante a gravidez; quanto a efeitos, verificou-se que a ansiedade é mais nociva do que a depressão.

Em consonância com o que foi referido em alíneas anteriores, foi provado cientificamente que o ambiente hormonal em que o feto se desenvolve determina alterações epigenéticas que ocorrem na estrutura do ADN, explicáveis maioritariamente por adição ou redução de grupos metil no ADN ou histonas, e alteração do micro ARN. Estas alterações puderam ser demonstradas em análises de sangue do cordão umbilical de recém-nascidos de mães submetidas a violência pelo parceiro durante a gravidez.

Por outro lado, tendo sido demonstrado que existem mecanismos de comunicação bidireccional por via nervosa, imunológica e endócrina entre o SNC e diversos órgãos com a participação do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal (HHSR), surgiu uma nova área do conhecimento designada por psico-neuro-endócrino-imunologia. Nesta perspectiva, concluiu-se igualmente que o estresse psíquico influencia os sistemas nervoso, endócrino e imunitário.

Para além das alterações hormonais associadas ao estresse, importa referir outro efeito deste último: trata-se da comprovação de alterações da estrutura e função neuronais, com repercussões óbvias no neurodesenvolvimento a curto, médio e longo prazo. Em Portugal, o perinatologista e investigador ligado à Universidade de Coimbra JC Peixoto realizou investigação sobre este tópico, realçando a importância de medidas preventivas, as quais se enquadram nas medidas gerais adiante discriminadas.

E, a propósito da epidemia da fome ligada à IIª Grande Guerra na Holanda – Dutch Famine Cohort – importa salientar que o impacte do estresse psíquico da grávida, (com efeito neurotóxico sobre a função e estrutura dos neurónios do feto, e levando a doença mental no filho, anteriormente feto), já tinha sido então mencionado por investigadores. Efectivamente, concluiu-se que os efeitos deletérios da fome a longo prazo não eram explicados exclusivamente pelo défice em micro e macronutrientes.

Importa assim relevar a noção de que são diversos os factores determinantes de alterações epigenéticas e de consequente patologia futura no adulto: na circunstância descrita, assim como em circunstâncias semelhantes testadas em estudos experimentais, aos factores nutricionais somaram-se factores psíquicos, de estresse, químicos ou físicos que, em conjunto têm efeito tóxico lesivo ao nível neuronal.

Reportando-nos novamente aos conceitos de programação e de alterações epigenéticas, (considerando a possível reversibilidade ou possibilidade de regressão das referidas alterações se se proceder a modificações ambientais), facilmente se poderá deduzir o alcance que poderão ter as medidas de intervenção preventiva neste campo.

Aspectos da intervenção

Tendo em conta que:

  • O ambiente em que o feto se desenvolve constitui factor condicionante das alterações epigenéticas;
  • Entre os factores adversos para o feto sobressaem o nutricional e o hormonal (este último em relação com o estado psicológico e o estresse da grávida), é possível reverter, dentro de certos limites, alguns dos efeitos em termos de alterações epigenéticas.

Nesta alínea do capítulo (relacionada com a intervenção exequível), optou-se por dar ênfase à actuação prática no âmbito da prevenção, adoptando medidas nutricionais e comportamentais centradas na família, a aplicar à pré-grávida, grávida ou puérpera.

Sem minorar o papel dos outros factores adversos (efeitos de tóxicos e da hipóxia materno-fetal), subentende-se que os mesmos fazem parte da vigilância integrada da gravidez com a participação multidisciplinar do médico de família, da enfermeira especialista, do especialista em medicina materno-fetal e do pediatra/neonatologista. (ver capítulos sobre Aspectos da Medicina Perinatal- Parte XXXI)

Intervenção nutricional

Uma vez que a forma como a grávida se alimenta, marcando o desenvolvimento do feto, é determinante da protecção deste contra patologia crónica diversa, conclui-se que a mulher que planeie engravidar ou engravide, deve ter uma orientação nutricional correcta, já que os primeiros dias a seguir à concepção são seguramente os mais importantes.

Efectivamente, o suprimento energético deve assegurar um ganho de peso adequado ao índice de massa corporal (IMC) anterior à gravidez para garantir um parto de termo sem complicações. Assim, o regime alimentar duma mulher não grávida com IMC normal deve contemplar um suprimento energético de 1.800-2.000 kcal/dia.

Considerando a repercussão da grávida desnutrida e/ou das situações de insuficiência placentar (comprometendo a transferência placentar de nutrientes) sobre o feto, importa analisar sucintamente algumas modalidades de intervenção com vista a compensar ou minorar défices, os quais poderão ter efeitos a longo prazo.

Se a desnutrição da grávida tiver ocorrido antes da gravidez, o aumento da provisão energética e proteica da grávida determinará aumento do peso de nascimento.

Se a desnutrição ocorrer no final da gravidez, ou se a mesma tiver carácter agudo, o efeito será mais significativo do que na condição anterior, pois, para além do incremento do peso, poderá verificar-se melhoria da condição de RCIU.

Tratando-se de intervenção em caso de obesidade materna (com risco mais elevado se associada a resistência à insulina, pré-eclâmpsia, hiperinsulinémia e macrossomia fetais), está indicada mudança de estilos de vida (designadamente dieta com restrição em alimentos ricos em hidratos de carbono de absorção rápida e actividade física).

As actuais recomendações baseadas em estudos científicos idóneos apontam como objectivos: – ganhos de peso de 6,8 a 11,3 kg na grávida com excesso de peso, e de 5 a 9 kg na grávida com obesidade, no pressuposto de adequado crescimento fetal.

Intervenção comportamental

Aplicando diversas estratégias de terapia comportamental personalizada, idealmente centradas na família, pretende-se modificar o estado psicológico da mulher que pretende engravidar, já está grávida, ou já teve o parto, tentando minorar o efeito dos vários factores, adversos para o feto, de tensão emocional ou estresse.

Utilizando em primeira linha terapias não farmacológicas, importa referir que várias modalidades já foram submetidas a estudo; eis alguns exemplos, de fácil exequibilidade: -psicoterapia; – massagem; – ioga; – audição de música, esta última mais simples e mais acessível a mulheres de diversos meios socioeconómicos.

Em estudos realizados em grávidas para avaliação da eficácia de tais terapias, os resultados foram positivos quanto a diminuição da ansiedade associada a diminuição dos níveis séricos e salivares do cortisol. Também, em associação a mais significativo “relaxamento emocional”, e a mais “bem-estar” declarado, se verificou redução da actividade simpática (traduzida pela diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial), dos níveis séricos de noradrenalina, e aumento dos de dopamina.

O local de aplicação de tais medidas pode variar: desde o ambiente domiciliário ao ambiente institucional; contudo, importa dispor de profissionais com competências específicas, actuando com empatia especial e disponibilidade absoluta, o que implica programas de formação profissional nesta área.

Na fase pré-concepcional importa investir na preparação para a maternidade como estratégia preventiva da depressão materna. Esta estratégia diz respeito fundamentalmente a duas áreas: – preparação para a vinculação; e – promoção de comportamentos sensíveis. Importa referir que os pais devem ser ajudados a compreender e a encontrar fontes de apoio.

Preparando para a vinculação, os pais são ajudados a antecipar o período após o nascimento, os cuidados ao bebé, assim como o tipo de relacionamento a estabelecer com este, exercitando-os no sentido de se sentirem autoconfiantes e seguros.

No que respeita a promoção de comportamentos sensíveis existem várias experiências internacionais de apoio aos pais na aprendizagem, treino e melhoria na relação com os filhos realçando-se a importância da empatia, da compreensão das necessidades afectivas da criança e da regulação emocional. A área da chamada medicina narrativa insere-se nesta filosofia.

Como se poderá depreender, todas as estratégias resumidamente relatadas assumem ainda maior importância no contexto de famílias disfuncionais, em que o estresse e a tensão emocional se associam ao mais elevado grau de adversidade para o feto e bebé.

A utilização de medidas farmacológicas para a redução do estresse e da tensão emocional (designadamente antidepressivos e benzodiazepinas, fármacos que atravessam a placenta), devem ser reservados para situações especiais seleccionadas e sujeitas a supervisão rigorosa.

Em suma, a intervenção utilizando diversas estratégias, deve obedecer a planos regulares, no domicílio ou em regime institucional ambulatório, e ser encarada como parte integrante do programa de cuidados integrados individuais, numa perspectiva humanista. (ver Parte XXXI)

Súmula

As investigações de Barker e do seu grupo há mais de duas décadas chamaram a atenção para a origem fetal de muitas afecções que têm expressão no adulto.

Este novo paradigma, inicialmente contestado e actualmente revalidado através de várias linhas de investigação de grande valor científico, tem importantes implicações preventivas na prática clínica.

O mesmo está em perfeita sintonia com o conceito genuíno de Pediatria como medicina integral de um grupo etário desde a concepção até ao fim da adolescência.

Daí a grande responsabilidade do especialista em medicina materno-fetal, do pediatra perinatologista e do médico que cuida de crianças, as quais são futuros adultos.

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Agradecimentos

Agradecimento muito sentido ao grande amigo e colega José Carlos Peixoto, recentemente falecido, que deu contributo fundamental para a elaboração deste capítulo

ADOLESCÊNCIA E COMPORTAMENTO – ABORDAGEM CLÍNICA

Síndroma da adolescência normal

As manifestações exteriores do comportamento dos adolescentes são diferentes conforme as diversas culturas, mas as bases, bem como as atitudes e ideias manifestas, são basicamente as mesmas em todo o mundo. Daí a descrição da chamada síndroma da adolescência normal a qual integra as várias características psicológicas do adolescente:

  1. Busca da identidade e de si próprio;
  2. Separação progressiva dos pais;
  3. Necessidade do grupo de pares;
  4. Desenvolvimento do pensamento formal;
  5. Vivência temporal singular;
  6. Flutuações do humor;
  7. Comportamento contraditório;
  8. Evolução da sexualidade;
  9. Crises religiosas;
  10. Atitude social reivindicativa.

Esta perspectiva permite ao clínico o conhecimento do desenvolvimento psicossocial do adolescente e uma maior compreensão dos comportamentos que o mesmo evidencia, com implicações práticas por permitir evitar diagnósticos errados e, por vezes, preconceituosos. As referidas características são analisadas a seguir.

1. Busca de identidade e de si próprio

Com o início da puberdade, as transformações corporais vão-se sucedendo. Vive a perda do corpo de infância (luto do corpo infantil), tendo que reformular o seu novo esquema corporal, o qual constitui a representação mental que o indivíduo faz de si mesmo, conduzindo mais tarde ao sentimento de identidade.

Nesta fase, em que se modificam as relações com o corpo, o pudor que o adolescente exibe deve ser devidamente respeitado. O mesmo passa longas horas fechado na casa de banho, olhando-se ao espelho e sentindo necessidade de se afastar fisicamente dos pais; por vezes torna-se mesmo agressivo, antipático e até mesmo rebelde.

Os pais deverão perceber que os seus filhos precisam desta mudança para que o desenvolvimento se processe de forma harmoniosa.

2. Separação progressiva dos pais

A separação progressiva dos pais tem início no nascimento, mas só se concretiza na adolescência. Ao contrário da infância em que a relação de dependência é a relação normal, desejável e habitual entre pais e filhos, na adolescência, os pais outrora considerados como seres ideais e supervalorizados, vão ser alvo de críticas surgindo a necessidade de um afastamento (luto dos pais da infância) que leva a uma maior autonomia e, consequentemente, à busca de outras pessoas que constituam figuras de identificação.

Com o crescimento físico dos filhos e conquista da sua independência, os pais sentem-se muitas vezes afastados, excluídos e até mesmo menos úteis.

Para que tal não aconteça, o estabelecimento de limites pelos pais é fundamental nesta fase, pois irá permitir que o jovem compreenda a diferença entre liberdade e permissividade, reduzindo substancialmente a tendência para comportamento de risco.

O clínico poderá ajudar os pais nesta fase da vida dos seus filhos, esclarecendo-os de modo a aceitarem a distância, mais física que psíquica.

3. Necessidade do grupo de pares

Na busca da sua individualidade, o adolescente vai deslocar a dependência dos pais para o grupo de companheiros e amigos no qual todos se identificam com cada um. O adolescente veste-se de modo semelhante, tem gostos idênticos, pois a aceitação revela-se na “obediência” a regras de grupo. Esta saída do núcleo familiar e entrada para o grupo com ulterior individualização é perfeitamente sadia, e até mesmo necessária, para um desenvolvimento harmonioso. Com efeito, a vinculação ao grupo pode favorecer o espírito de equipa e o aparecimento de lideranças, o que será muito saudável se persistir na idade adulta.

Nesta fase, a ambivalência dos familiares deve ser evitada. Frases como “já estás suficientemente crescido para…” seguidas de outras como “ainda és muito criança para…” só contribuem para tornar mais indefinidos os limites de actuação que ajudam a promover uma autonomia responsável.

4. Desenvolvimento do pensamento formal

O desenvolvimento do pensamento formal (Piaget) constitui, do ponto de vista cognitivo, uma das características da adolescência. O desenvolvimento intelectual fá-lo pensar, pôr em causa e formular teorias. A capacidade de intelectualização leva cada vez mais o adolescente a preocupar-se com princípios éticos, problemas sociais e a propor reformas que tornem o mundo melhor.

Nesta fase ele sente muito a necessidade de ter o seu próprio território (quarto, gaveta, armário, diário), contribuindo para um reconhecimento da sua identidade. E pensa que é importante o respeito pela privacidade e confidencialidade, aspecto fundamental no atendimento e na relação médico-doente.

5. Vivência temporal singular

O critério tempo é muito peculiar na adolescência, parecendo próximo o que é distante, e vice-versa. Por exemplo, o adolescente ao ser alertado para estudar para um exame no dia seguinte, é capaz de responder – “ainda tenho muito tempo”, e contudo, considerar “urgente ir comprar roupa nova para levar à passagem de ano” daí a dois meses!

A esta característica, associa-se o imediatismo; tal traduz uma incapacidade de conviver com a frustração da espera a qual interfere com vários factores da vida de relação e caracteriza a chamada geração micro-ondas! Exemplifica-se com o que se passa com a alimentação: preferência por alimentos prontos ou quase prontos, nem sempre os mais adequados.

Esta forma singular de lidar com o tempo pode interferir nas propostas terapêuticas. O jovem obeso tem frequentemente tendência para desistir do plano terapêutico por este não ter resultados rápidos e visíveis; interfere igualmente nas propostas de prevenção – tomar atitudes hoje, para prevenir coisas de amanhã – como, por exemplo, anticonceptivos para evitar a gravidez – praticamente impossível nesta fase da vida.

Por este motivo, a orientação preventiva é muito mais eficaz quando envolve questões do presente – não engravidar para não interromper todas as actividades de que gosta (desporto, música, etc.) e, sobretudo, o percurso saudável de adolescente.

6. Flutuações do humor

As flutuações do humor incluem múltiplas variações de humor que vão desde crises depressivas, sentimentos de angústia, solidão refugiando-se em si próprio, até às sensações de euforia e sucesso, durante as quais o adolescente se sente indestrutível, imortal e omnipresente.

É comum a adolescente, num dado momento, encontrar-se triste e chorosa (após o terminar um namoro ou uma nota má em exame) e momentos depois já poder estar feliz, de conversa ao telefone, falando com uma amiga, a planear novas conquistas, tendo esquecido o episódio de insucesso escolar.

7. Comportamento contraditório

A necessidade de o adolescente experimentar diferentes papéis na busca da sua identidade de adulto, faz com que, por vezes, tome atitudes profundamente contraditórias. Tal contradição é considerada normal; contudo, adolescentes com comportamentos rígidos permanentes deverão ser alvo de preocupação, necessitando de acompanhamento. Nestes casos, o jovem poderá não estar a beneficiar da liberdade necessária para experimentar e amadurecer de forma desejável.

8. Evolução da sexualidade

A sexualidade existe desde o início da vida intrauterina, na sua dimensão biológica, baseada em genes, cromossomas, hormonas, gónadas, etc.. Na pré-adolescência a identidade de género (sentido de feminilidade e masculinidade) já está estabelecida.

Com o início da puberdade a energia sexual transforma-se juntamente com as mudanças físicas conduzindo à etapa genital adulta.

Na fase inicial da adolescência surgem os caracteres sexuais secundários e, consequentemente a curiosidade acerca dessas mudanças. É a fase das fantasias sexuais (paixões imaginárias, sem contacto físico).

Na fase intermédia já está, em regra, completa a maturação física. A energia sexual mais desenvolvida leva ao maior interesse pelo contacto físico, sendo o comportamento sexual de natureza exploratória. A negação das consequências da actividade sexual é típica e fruto da imaturidade, tornando esta fase a de maior risco relativamente à probabilidade de ocorrência de doenças sexualmente transmitidas ou de uma gravidez não desejada.

Na fase tardia o comportamento sexual torna-se mais expressivo e estável, com relações íntimas e trocas de afectos vividas com mais maturidade.

Na adolescência pode ocorrer transitoriamente a proposta homossexual, a qual não é preditiva do comportamento sexual futuro. Nem todos os adolescentes que estão emocionalmente atraídos por um indivíduo do mesmo género se envolvem em actividade sexual. O jovem deverá ser informado da evolução que pode ter a sua identidade sexual, de forma a podermos evitar, quer uma auto-imagem negativa com risco de depressão e suicídio, quer um sentimento de ansiedade gerador de comportamentos anti-sociais (por ex. uso de drogas).

Os pais deverão igualmente ser esclarecidos, pois, na grande maioria reagem com vergonha e não-aceitação, exibindo frequentemente casos de psicossomatização.

9. Crises religiosas

Estas chamadas crises caracterizam-se por atitudes de radicalismo, desde situações extremas de fé, até ao ateísmo. O adolescente defende-as com grande convicção, como se fossem realidades momentâneas. O confronto religioso está frequentemente ligado à contestação de padrões vigentes no momento. Muitos dos valores apregoados voltam a ser reformulados já no final da adolescência, persistindo depois na vida adulta.

10. Atitude social reivindicativa

Trata-se do conjunto de procedimentos ou atitudes que o adolescente utiliza para reivindicar e contestar de forma a ser reconhecido por grupos de referência, como por exemplo, família, amigos, escola e a própria sociedade.

Tais procedimentos ou atitudes são reforçados por outras características do adolescente, já descritas: tendência grupal, pensamento abstracto e crítico, auto-afirmação e radicalismo.

A sociedade, por vezes sentindo como que “uma ameaça”, um incómodo ou até mesmo uma agressão, submete o adolescente a uma disciplina e a um comportamento quase sempre ineficazes.

É importante que se tenha em consideração que o jovem neste tipo de movimento não pretende propriamente agredir, mas sim conquistar o seu lugar, o que faz parte da sua caminhada para a adultícia. Os adultos deverão, por conseguinte, ser mais tolerantes, usando o diálogo e sabendo escutar a opinião do adolescente como formas de diminuir o conflito.

Abordagem clínica do adolescente

A equipa assistencial

A abordagem clínica do adolescente, à semelhança de outras áreas da Medicina, deve ser feita por equipa multidisciplinar. Esta equipa deve ser composta por médico – pediatra ou médico de clínica geral, ginecologista, endocrinologista, pedopsiquiatra, enfermeiro, dietista, assistente social e outros profissionais (sociólogo, professor, jurista, etc.). Não existindo equipa especialmente criada para o efeito, o problema pode ser resolvido através duma boa parceria – menos formal – entre especialistas e técnicos com a garantia de manutenção de diálogo permanente.

O elevado número de adolescentes seguidos na área de Pedopsiquiatria alerta para a necessidade de atender à necessidade de recursos humanos e de estreita colaboração com a Medicina do Adolescente.

Aspectos epidemiológicos

Tendo como base a experiência da equipa responsável pela Medicina do Adolescente do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, salientam-se os seguintes dados no âmbito da respectiva área do ambulatório:

  • Ano de 2014: 952 consultas, sendo 282 (29,6%) primeiras consultas
  • Média de idades: 14,8 anos, sendo 60,6% do sexo feminino
  • Entidades referenciadoras: consultas de especialidade hospitalar (30%), serviço de urgência (27%), serviços de internamento hospitalar (11%)
  • Diagnósticos mais frequentes: cefaleias (17,3%), perturbações mentais e ou do comportamento (24,5%), alterações neurológicas (20,9%), doenças endócrinas (18,5%)
  • Encaminhamento para Pedopsiquiatria (32,9%)
  • Altas após primeira consulta (4,9%)

Durante o período de um ano também, de acordo com a experiência do Serviço de Urgência Pediátrica do mesmo hospital, registaram-se 166 episódios de ingestão medicamentosa voluntária em adolescentes com idade média de 15 anos, predominantemente do sexo feminino (85%), dizendo respeito a ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, associados em 47% dos indivíduos. De referir que cerca de 50% dos pacientes tinha seguimento regular nas consultas de Pedopsiquiatria e ou de Medicina do Adolescente.

Consulta do adolescente

O atendimento ao adolescente tem determinadas particularidades:

  • os pais deixam de ser os únicos interlocutores
  • há necessidade de maior privacidade e confidencialidade como garantia de diálogo em ambiente de confiança
  • a consulta deve ser desburocratizada e de fácil acessibilidade, e efectuada em espaço próprio, separada da dos mais pequenos e sem longas esperas.

A consulta propriamente dita contempla seis etapas:

1ª – Entrevista com a família (anamnese)
2ª – Entrevista a sós com o adolescente
3ª – Exame físico do adolescente
4ª – Conversa com o adolescente
5ª – Nova entrevista com o adolescente e família
6ª – Diagnóstico e actuação

A abordagem correcta do adolescente deve englobar, para além dos dados da anamnese (incluindo anamnese psicossocial), o exame físico. Nesta avaliação, que por este motivo se considera global, deve ser estabelecida uma conversa aberta durante a consulta de vigilância de saúde, de forma a identificar, não só problemas de saúde, mas também factores de risco.

Se a anamnese psicossocial não for realizada, existirá maior dificuldade na identificação precoce de problemas, o que tem implicações na redução da morbilidade.

A doença, quando ocorre, é relacionada frequentemente com comportamentos de risco. O comportamento de risco pode, com efeito, trazer consequências trágicas. A causa mais frequente de mortalidade na adolescência é constituída pelos acidentes de viação os quais estão, em cerca de metade dos casos, relacionados com o consumo de álcool e drogas.

Como causas de morbilidade são referidas síndromas relacionadas com o estresse e depressão, doenças do comportamento alimentar e elevadas taxas de doenças sexualmente transmissíveis.

Pode depreender-se que todos estes problemas não são facilmente abordáveis no âmbito duma “consulta de rotina”.

A entrevista deverá ser reservada para uma ocasião em que o adolescente evidencie estado de aparente estabilidade emocional (i. e. esteja “relativamente bem”), com o objectivo de obtenção do máximo de informação com o mínimo de estresse.

A forma como se começa contribui de forma decisiva para o resultado final. Sempre que necessário, poderá realizar-se em mais que uma consulta, para assim se obter melhor colaboração.

Contudo, se o jovem evidenciar situação de crise quando se apresenta na consulta, ele deverá ser atendido de forma a sentir-se à vontade para falar sobre o problema que o inquieta.

Pais, assim como outros membros da família ou acompanhantes não deverão estar presentes a não ser que o adolescente o solicite expressamente ou dê autorização. Se os pais estiverem presentes, antes de iniciar a entrevista, o clínico deverá apresentar-se sempre em primeiro lugar ao adolescente; este gesto, valorizando de sobremaneira a pessoa do jovem, corresponde a um claro sinal de que o médico está disponível para estabelecer empatia com abertura e sem tecer juízos de valor.

Confidencialidade

Todo o adolescente deve ser informado acerca da confidencialidade garantida pelo clínico no início da entrevista e, posteriormente, antes de serem colocadas as questões relacionadas com sexualidade e consumo de drogas. Deve, entretanto, explicar-se que poderá haver alguns limites éticos e legais relativamente à confidencialidade.

Eis um exemplo prático, em que se reproduz o discurso directo do médico assistente:

“Nesta entrevista vou colocar-te algumas questões que são pessoais, de forma a poder conhecer-te melhor. As respostas que tu deres podem ser importantes para a tua saúde. Mas, como as questões são pessoais e delicadas, prometo-te que serão confidenciais, o que quer dizer que ficarão só entre mim e ti. Não revelarei aos teus pais, professores, ou outras pessoas, nada do que me contares, a não ser que me autorizes. Uma única excepção: no caso de tu ou outra pessoa estarem em risco de vida, ou no caso de haver implicações médico-legais. O que conversarmos ficará entre nós até que digas o contrário, ou a não ser que algum outro médico precise de saber de ti, para poder cuidar do teu caso na minha ausência, garantindo de igual forma a confidencialidade.”

Avaliação psicossocial /HEADSSS

Desenvolvida por Harvey Berman (1972), e reformulada mais tarde por Cohen e Goldenring, a metodologia de abordagem da história psicossocial do adolescente é conhecia pelo acrónimo HEADSSS, que significa (Quadro 1):

H – Home – Casa / família
E – Education – Ensino/projectos Eating Disorders – Distúrbios alimentares/alimentação
A – Activities – Actividades de lazer, desporto, amigos, grupos, trabalho
D – Drugs – Drogas (álcool, tabaco, etc.)
S – Security – Segurança
S – Sexuality – Sexualidade
S – Suicidal ideation – Ideação suicida

A ordem pela qual as questões são colocadas é aleatória devendo, contudo, ser deixadas para o final as que envolvem maior privacidade.

A experiência e a sensibilidade do médico são fundamentais para o sucesso da avaliação psicossocial e consequentemente, da investigação de comportamentos de risco.

QUADRO 1– HEADSSS – Avaliação psicossocial

Home / CasaActivities / Actividades

• Com quem vives? Onde? Tens quarto próprio?

• Como é o ambiente em casa?

• Qual a profissão dos pais?

• Vives em instituição? Em qual? Tentaste fugir? Por que motivo?

• Mudaste de casa recentemente?

• Tens pessoas novas com quem coabitas?

• Com quem tens confidências? Em quem confias?

• Com os pares (Que fazes com os teus amigos nos tempos livres? Onde, quando e com quem?)

• Tens grupo de amigos? Melhor amigo/a? Mudaste de amigos recentemente?

• Em casa? Em associações?

• Desporto – praticas com regularidade?

• Actividades religiosas; recreativas? Quais? Onde?

• Actividades preferidas (hobbies)

• Tens hábitos de leitura? De que tipo?

• Músicas preferidas

• Tens viatura própria?

• Estiveste envolvido em problemas com as autoridades?

Porquê? Quais as consequências?

Education / EscolaDrugs / Drogas

• Que escola frequentas?

• Em que ano estás?

• Mudaste recentemente de escola?

• Tiveste experiências marcantes no passado?

• Disciplinas preferidas?

• Disciplinas de que menos gostas; e que notas?

• Alguma vez reprovaste e em que anos?

• Já foste suspenso? E expulso? Abandono escolar?

• No futuro: planos de emprego ou profissionalização? E que objectivos?

• Tiveste ou tens emprego?

• Relacionamento com os colegas, professores e outros elementos da escola/ou colegas de trabalho?

• Mudança de escola? Quantas escolas frequentaste nos últimos 4 anos?

• Os teus amigos consomem drogas? E tu, já experimentaste? (inclusive álcool e tabaco)

• Sabes se alguém na família consome? (inclusivé álcool e tabaco)

• E tu, que quantidade consomes? Com que frequência? Que tipo de utilização (esporádica/habitual)?

• Que fonte? Como costumas pagar?

• Conduzes quando consomes?

Eating disorders / AlimentaçãoSecurity / Segurança

• Quantas refeições habitualmente fazes por dia?

• Nos fins-de-semana? Quando sais com os amigos?

• Quando praticas desporto?

• Alimentos preferidos? De quais menos gostas?

• Alguma vez fizeste dietas? Porquê? Com que duração?

• Quantas refeições fazes em família? E fora de casa ou na escola?

• Quando conduzes usas cinto de segurança ou capacete?

• Quando tens relações sexuais sabes que tipo de

prevenção deves ter? Qual costumas utilizar?

Sexuality / Sexualidade

• Orientação? Estás apaixonado? Por quem?

• Grau e tipos de actividade sexual e relações sexuais?

• Número de parceiros?

• Doenças sexualmente transmissíveis: Sabes sobre esta questão? Como as prevines?

• Contracepção? Frequência, uso?

• Conforto, prazer com a actividade sexual?

• História de abuso psíquico ou físico?

Suicidal Ideation / Ideação suicida

1. Perturbação do sono – problemas na indução, interrupção frequente no início, hipersónia e queixas de fadiga progressiva?

2. Perturbações do comportamento alimentar ou do apetite?

3. Sentimentos de aborrecimento, tristeza?

4. Explosões emocionais e comportamento altamente impulsivo?

5. História de afastamento/isolamento?

6. Sentimentos de desespero/abandono?

7. História de depressão, tentativa de suicídio?

8. História de depressão, tentativa de suicídio na família ou pares?

9. História de abuso de álcool, drogas, inaproveitamento e abandono escolares ou crimes?

10. História de acidentes graves recorrentes?

11. Sintomatologia psicossomática?

12. Ideação suicida (incluindo perdas significativas actuais ou no passado)?

13. Desinteresse na entrevista evitando encarar de frente o entrevistador – postura depressiva?

14. Preocupação com a morte (roupa, música, meios de comunicação social, arte)?

Perguntas mal elaboradas, baseadas em termos técnicos ou colocadas de forma insegura por parte do entrevistador, podem gerar respostas (falsamente) negativas por parte do jovem, levando ao encerramento precoce do diálogo.

As perguntas devem ser feitas com clareza, ainda que seja necessário repeti-las ou formular de novo a questão, explicando o porquê da pergunta e as vantagens em saber-se a resposta; efectivamente o adolescente pode sentir-se “intimidado”, ansioso, envergonhado ou assustado com a possibilidade de revelar a sua intimidade.

A qualidade do vínculo estabelecido entre o médico e o adolescente será determinante para que sejam abordadas questões mais pessoais e inclusive para uma melhor aceitação de esclarecimentos e doutras questões muitas vezes não consideradas importantes pelo jovem.

Um dos principais objectivos da entrevista psicossocial é procurar identificar elementos que se relacionem com a ansiedade e depressão, frequentes precursores do suicídio nos adolescentes.

Na avaliação de risco, mais do que estabelecer um diagnóstico de perturbação de saúde mental, é fundamental que seja identificada a suspeita ou perturbação de comportamento para que o adolescente possa ser correctamente orientado e posteriormente acompanhado.

Por vezes acontece ser o profissional de saúde o único adulto que interage repetida e confidencialmente com o adolescente ao longo do seu desenvolvimento. Compete, pois, àquele, saber atender e entender de forma integral o referido adolescente, procurando reconhecer as suas necessidades específicas de acordo com a idade e contexto (familiar, social e religioso) em que está inserido.

Saúde do adolescente – Objectivos para 2020

O Departamento de Saúde dos Estados Unidos da América do Norte divulgou recentemente um importante documento integrando 11 objectivos específicos, dirigidos não só ao adolescente mas também ao adulto jovem, tendo em perspectiva a melhoria do estado de saúde, de segurança, e de bem estar na referida faixa etária.

Como exemplos das acções (designadas AH ou Adolescent Health Objectives, numeradas de -1 a -11) a desenvolver pelo Department of Health and Human Services: Healthy People 20120 (www.hhs.gov/ash/oah/resources-and-publications/healthy-people -2020.html) citam-se, de modo aleatório:

  • AH-1 → incrementar a proporção de adolescentes com um exame de saúde anual;
  • AH-2 → incrementar a proporção de adolescentes com participação activa em actividades extra-curriculares e extra-escolares;
  • AH-3.1 → incrementar a proporção de pais/progenitores que assistam a actividades em que seus filhos adolescentes participam;
  • AH-5.3 → incrementar a proporção de estudantes com hábitos de leitura próprios do seu grau escolar ou acima do referido grau;
  • AH-6 → incrementar a proporção de escolas com um programa de pequeno almoço na própria escola;
  • AH-10 → diminuir a proporção de escolas com história de incidentes relacionados com violência;
  • AH-11.4 → diminuir o número de vítimas relacionadas com crimes e violência.

Trata-se, pois, duma iniciativa de base científica definindo certas prioridades alicerçadas numa cultura a desenvolver, essencialmente no campo da prevenção.

Em suma, a prática clínica lidando com problemas da adolescência implica a aquisição e desenvolvimento de competências específicas por parte do pediatra na perspectiva de uma abordagem holística nesta faixa etária, considerando o adolescente integrado no seu meio e, designadamente, na sua família.

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