Importância do problema

As doenças alérgicas correspondem a um tipo de patologia que, pela sua frequência e importância, estão na primeira linha no grupo etário pediátrico.

Cerca de 35% da população europeia apresenta sintomas alérgicos e a tendência é para o seu aumento, fruto do estilo de vida que caracteriza as populações dos países industrializados.

É importante referir o efeito das reacções alérgicas no comportamento emocional e social dos doentes e suas famílias.

Nomenclatura

Actualmente existe uma nomenclatura internacionalmente aceite e publicada pela European Academy of Allergology and Clinical Immunology recentemente actualizada pela World Allergy Organization que permite definir com rigor o significado dos termos e patologias mais frequentemente ligados à alergia. Discrimina-se seguidamente o significado de alguns termos relacionados com esta problemática; algumas situações são definidas com mais pormenor noutros capítulos desta Parte XII.

Alergia – É uma reacção de hipersensibilidade iniciada por mecanismos imunológicos a qual pode ser mediada por anticorpos ou células, sendo na grande maioria dos casos o anticorpo responsável pela reacção alérgica pertencente ao isotipo IgE.

Os indíviduos afectados podem ser referidos como sofrendo de uma alergia mediada por IgE.

Alergénios – São antigénios que causam alergia. Muitos dos alergénios que reagem com IgE e IgG são proteínas. A exposição a antigénios ambientais ocorre por inalação, ingestão, contacto cutâneo ou por via parentérica.

Sensibilização – Este termocom significado diferente de alergia, traduz o aparecimento de anticorpos IgE específicos para determinado alergénio no soro; isto é, o indivíduo fica sensibilizado ao referido antigénio, não significando que é alérgico a este. Quando um indivíduo é clinicamente alérgico, os anticorpos IgE ligam-se a recptores à superfície dos mastócitos de modo que a exposição a alergénios leva a activação destes com libertação de mediadores (histamina, prostaglandinas, leucotrienos, etc.),e a sintomas (reacção alérgica IgE mediada).

Atopia – É um estado constitucional devido a desregulação imunitária ou uma tendência pessoal ou familiar frequente na infância e na adolescência para se ficar sensibilizado e produzir IgE em resposta a uma exposição a grande variedade de alergénios. Como consequência, nestes individuos podem desenvolver-se sintomas característicos de asma, rinoconjuntivite e eczema. Os termos “atopia” e “atópico” devem ser reservados para descrever uma predisposição genética (genes indutores) para sensibilização a alergénios comuns durante uma exposição ambiental sendo que, na maioria dos individuos, não se produz uma resposta prolongada mediada por IgE.

Eczema – Palavra derivada do grego (fervura), constitui tipo de inflamação cutânea com características clínicas e histopatológicas expressivas. Os termos eczema e dermite (ou dermatite) são utilizados muitas vezes como sinónimos embora, em rigor, dermite designe qualquer fenómeno inflamatório da pele, do qual eczema constitui padrão particular. O que distingue o eczema como tipo particular de dermite são as suas características clínicas e histopatológicas. No que respeita ás primeiras, no eczema destaca-se o prurido e a erupção eritematovesiculosa na fase aguda, e a liquenificação na fase crónica. Associando este tipo de inflamação à palavra atopia, nesta obra consideram-se sinónimos os termos dermite/dermatite atópica e eczema atópico.

Hipersensibilidade – Corresponde a um conjunto de sinais ou sintomas(reacções adversas) objectivamente reprodutíveis e desencadeados pela exposição a um estímulo definido tolerado pelos indivíduos ditos normais ou saudáveis.

Hipersensibilidade não alérgica – É o termo preferido para descrever reacção adversa ou hipersensibilidade na qual não é possível demonstrar a presença de mecanismos imunológicos.

De acordo com a classificação de Gell e Coombs são descritos os seguintes tipos clássicos de hipersensibilidade: Tipo I (ou hipersensibilidade imediata): resultante da produção de IgE contra um antigénio;estas imunoglobulinas fixam-se na membrana de mastócitos e de basófilos. A ulterior reacção antigénio-IgE leva à desgranulação das referidas células com libertação de mediadores farmacologicamente muito activos . Constituem paradigmas deste mecanismo patogénico a asma brônquica, a rinite alérgica e o eczema atópico; Tipo II (ou hipersensibilidade citotóxica):resultante do facto de existir um antigénio estrutural que é “atacado”por um anticorpo específico;como consequência verifica-se fagocitose das células ou a sua lise, em geral com a mediação do complemento; Tipo III (ou hipersensibilidade mediada por imunocomplexos) resultante da formação de grande quantidade de moléculas de antigénio-anticorpo as quais, não sendo adequadamente removidas pelos mecanismos habituais de fagocitose do SRE, precipitam em determinados órgãos como rins, articulações, pele, originando respectivamente quadros clínicos diversos como glomerulonefrite, arterite e vasculite; Tipo IV (ou hipersensibilidade retardada):resultante da produção de linfocinas por linfócitos T sensibilizados em relação a determinados antigénios. Constituem paradigmas deste tipo de resposta imune a reacção tuberculínica e o eczema de contacto alérgico.

A realidade nacional

O estudo da prevalência das doenças alérgicas de crianças em Portugal e no mundo está actualmente bem caracterizado através do projecto ISAAC (International Study of Asthma and Allergies in Childhood) que foi executado ao longo de 10 anos envolvendo mais de um milhão de jovens em mais de 60 países entre 1993 e 2003. Ele teve por objectivo desenvolver a investigação epidemiológica sobre asma, rinite, conjuntivite e eczema atópico através da padronização a nível de definições dos casos e da metodologia utilizada com base em questionários, podendo comparar diferentes países e centros de cada país. Composto por 3 fases, foi concebido de forma a poder comparar populações quanto à prevalência desta doença em todo o mundo. Um dos objectivos mais importantes foi examinar as tendências temporais de prevalência da asma, rinoconjuntivite alérgica e eczema atópico ao longo de 8 anos (centros que cumpriram as fases I e III).

Em Portugal o estudo envolveu na fase I (entre 1993/95) 5036 jovens de 6-7 anos provenientes de 207 escolas, e em 11.427 jovens de 13-14 anos, oriundos de 84 escolas. Na fase III (2002) o grupo de 6-7 anos envolveu 9081 jovens tendo participado 408 escolas. O grupo de 13-14 anos era oriundo das mesmas regiões e envolveu 12.905 jovens de 142 escolas.

Ao centrarmos a análise comparativa dos resultados globais nas mesmas regiões da população inquirida que já teve pieira (sintomas – sibilância recorrente), asma (diagnóstico médico), rinite (sintomas) ou eczema (diagnóstico médico/sintomas) verificamos no grupo de 6-7 anos:

 19952002Valor-p
Pieira28,2%28,1%0.936
Asma11%9,4%0.008
Rinite23,8%29,1%<0.001
Eczema11,2%14,1%<0.001

Quando comparamos populações de 6-7 anos inquiridas que tiveram pieira, asma, rinite ou eczema nos últimos 12 meses, foram obtidos os seguintes resultados:

 19952002Valor-p
Pieira12,9%12,9%0.983
Rinite19,9%24%<0.001
Eczema13,9%15,6%0.013

Em relação ao grupo de 13-14 anos foram obtidos os seguintes resultados:

 19952002Valor-p
Pieira18,2%21,8%<0.001
Asma11,8%14,7%<0.001
Rinite30,2%37,1%<0.001
Eczema11,7%12,7%<0.014

Na comparação das populações inquiridas de 13-14 anos que declararam ter tido pieira, asma, rinite ou eczema nos últimos 12 meses, os resultados foram:

 19952002Valor-p
Pieira9,2%11,8%<0.001
Rinite21,2%26,5%<0.001
Eczema7,6%8,7%0.002

Da análise dos valores nacionais mais significativos sobre o estudo do inquérito ambiental e estilo de vida realizado em 2002 salientamos, comparando os grupos de 6-7 e 13-14 anos (Quadro 1):

QUADRO 1 – Projecto ISAAC (Portugal): Resultados do inquérito sobre ambiente e estilos de vida

 6-7 anos13-14 anos
a) Alimentação nos últimos 12 meses  
carne: três ou mais vezes por semana65,8%49%
peixe: três ou mais vezes por semana44,8%39,3%
fruta: três ou mais vezes por semana82,3%66,5%
vegetais: três ou mais vezes por semana52%37,7%
cereais (incluindo pão): três ou mais vezes por semana84,8%71,0%
arroz: três ou mais vezes por semana58,2%48,1%
manteiga: três ou mais vezes por semana55,2%37,2%
leite: três ou mais vezes por semana86,9%75,1%
ovos: três ou mais vezes por semana18,5%17,9%
hamburgers três ou mais vezes por semana3,2%8,5%
“fast-food”, uma vez por semana18,6%40,5%
aleitamento materno78,5% 
b) Actividade física – 3 vezes por semana ou mais9,3%22,5%
c) Horas de televisão – 3 ou mais horas/dia17,3%31,3%
d) Antibióticos no primeiro ano de vida54,9% 
e) Nível de escolaridade da mãe da criança:  
básico27%39%
secundário34%32%
universitário19,3%21,9%
f) Gato em casa no primeiro ano de vida9,3% 
Gato em casa nos últimos 12 meses15%25,2%
g) Cão em casa no primeiro ano de vida22% 
Cão em casa nos últimos 12 meses29,6%49,3%
h) Mãe fumadora no primeiro ano de vida15,6% 
Percentagem de não fumadores no agregado familiar36,7%34,3%

A análise dos resultados obtidos revela um aumento global da prevalência das doenças alérgicas do grupo 13-14 anos no país, o que se atribui provavelmente a uma mudança de hábitos que leva muitos jovens a preferir cada vez mais uma actividade localizada dentro de casa (computador e televisão) e a um aumento da utilização de comida rápida/hamburgers com consequente maior susceptibilidade para as doenças alérgicas, respiratórias e de expressão cutânea. Ao contrário, no grupo dos 6-7 anos, o facto de não haver ao longo dos anos um aumento da prevalência de asmáticos pode atribuir-se a um melhor conhecimento, pelos familiares (responsáveis pelos inquéritos neste grupo etário) e pelos profissionais de saúde, acerca dos problemas relacionados com as doenças alérgicas em geral, e do modo de fazer a sua prevenção, particularmente nas crianças de risco.

Prevenção

O aumento de prevalência das doenças alérgicas e o facto de se tratar de doenças de elevada morbilidade, sobretudo na idade pediátrica, levou a uma progressiva preocupação sócio-sanitária e económica com este problema. A utilização de normas profilácticas genéricas, sobretudo na alergia respiratória, levou a que uma maior informação fosse difundida entre as populações, sobretudo no que se refere à exposição aos agentes em meio habitacional.

Como observámos anteriormente, a tendência em Portugal acompanhando os países industrializados, para uma cada vez maior exposição alergénica e desenvolvimento de uma sensibilidade alérgica dentro de casa, é fruto de uma progressivo estado de vida sedentário da criança que cada vez mais utiliza o seu tempo livre em frente da televisão e do computador. Por outro lado, a cada vez mais precoce frequência de infantários por crianças mais pequenas, localizados em habitações que não estão, na maioria das situações, devidamente preparadas para receber tantas crianças, leva a preocupações acrescidas, devendo incidir-se atenção especial sobre as condições em que se encontram as salas onde permanecem aquelas. É, no entanto, no quarto de dormir onde o jovem passa cerca de um terço da sua vida (± 8 horas/dia), que devem centrar-se mais as nossas preocupações.

Os 3 níveis de prevenção: primária – que promove a prevenção de atopia; secundária – que promove a prevenção das sensibilizações já existentes e que são consequência da aptidão genética e da exposição a alergénios; e a terciária que não é mais que a prevenção das consequências clínicas motivadas pelas manifestações alérgicas, devem ser tratados em conjunto. De um modo geral as medidas ambientais exequíveis nos referidos níveis de prevenção passam por uma boa identificação dos alergénios em causa.

A sensibilização na criança ocorre geralmente nos primeiros meses e até aos 2 anos, através de alergia alimentar sobretudo às proteínas do leite de vaca e ovos; a sensibilização IgE específica para os alergénios alimentares é detectável em cerca de 10% das crianças de 1 ano de idade. Os alergénios inalantes aparecem geralmente a partir dos 3 anos, passando a sensibilização a ser particularmente evidente aos ácaros do pó da casa, animais domésticos, pólens e fungos; com efeito a rinite e a asma alérgica passam a ter uma expressão clínica muito mais significativa que as alergias de expressão cutânea.

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