Definições e importância do problema

Reportando-nos ao capítulo sobre nutrientes, e sendo a nutrição o processo pelo qual se incorporam no organismo os nutrientes dos alimentos (prótidos, glúcidos e lípidos, para além de micronutrientes) fornecendo energia para assegurar as funções do organismo e o crescimento, torna-se fácil a compreensão do conceito de subnutrição ou desnutrição: tal conceito está associado às situações em que, existindo défice de ingestão dos alimentos ou disfunção no processo metabólico celular de incorporação dos respectivos nutrientes, o resultado final é o suprimento insuficiente de energia, o qual pode ter início ainda in utero.

As mais importantes consequências da desnutrição/subnutrição (peso deficitário, emagrecimento, inanição de grau variável, e défice em micronutrientes) situam-se nos primeiros 1.000 dias de vida, desde a concepção até por volta dos 24 meses de idade pós-natal. Tais consequências traduzem-se em compromisso do crescimento e desenvolvimento, défice do rendimento escolar e toda uma gama de problemas adversos a especificar no âmbito da alínea sobre Etiopatogénese.

Existindo por vezes discrepâncias na terminologia utilizada em diversas fontes bibliográficas, (em que se considera má-nutrição/malnutrição um sinónimo de desnutrição ou subnutrição), cabe salientar que o termo de má-nutrição/malnutrição tem um sentido mais amplo, pois abarca um largo espectro de situações clínicas desde a desnutrição ou subnutrição, isto é, de défice, às situações de excesso, estas últimas, tipificadas pelo excesso de peso e obesidade.

Ainda no que respeita a terminologia, os autores actuais recomendam que se evite o termo “má-nutrição energético-proteica” por implicitamente omitir uma gama muito mais variada de outros nutrientes em défice. Contudo, “toleram” outros termos de cariz semiológico que ajudam a sistematizar e compreender melhor a fisiopatologia de um problema com largo espectro de manifestações, como se disse:

  1. marasmo (inanição grave ou atrépsia resultante de carência global, calórica e de outros nutrientes, com carência proteica proporcional),
  2. kwashiorkor (caracterizado por edema bilateral correspondente às situações com carência predominante de proteínas de elevado valor biológico, sem redução do valor calórico total), e
  3. kwashiorkor marasmático (inanição grave + edema) com factores etiopatogénicos mistos.

Reconhecendo-se que os quadros clínicos não são estanques quanto ao predomínio dos nutrientes em défice, os especialistas consideram ainda duas designações relacionadas com o modo como se instala o estado de desnutrição/subnutrição:

  • forma aguda (wasting, ~ emagrecimento ou a inanição);
  • forma crónica (stunting, ~ hipocrescimento).

Por razões didácticas os três termos referidos anteriormente (1-, 2-, 3-) foram mantidos no texto do capítulo. Por outro lado, considerámos os termos má-nutriçãosubnutrição e desnutrição como sinónimos, tendo a situação de obesidade sido abordada noutro capítulo.

Salienta-se que as síndromas de desnutrição constituem um problema de grande magnitude e impacte social, sobretudo nos países de fracos recursos e em desenvolvimento, sendo responsáveis, directa ou indirectamente, por cerca de 50% dos óbitos de crianças com menos de 5 anos. Nalgumas regiões do globo, em relação com défice de condições de higiene, culturais e económicas, podem atingir cerca de 25-35% da população em idade pediátrica (dados de 2000).

Nos países industrializados podem surgir em nichos de população desprotegida e marginalizada como resultado de negligência, pobreza e ileteracia.

Avaliação do estado nutricional

Para a avaliação do estado de nutrição, podem ser utilizados critérios clínicos e laboratoriais:

  • Inquérito nutricional – com o objectivo do esclarecimento sobre os nutrientes supridos durante vários dias, permitindo calcular, com a maior aproximação possível, na base do peso dos alimentos ingeridos, a percentagem do VCT de proteínas, gorduras e hidratos de carbono. 
  • Antropometria – Os parâmetros que devem ser determinados são: peso, altura, perímetro braquial e prega tricipital. Na prática, os índices mais largamente utilizados para avaliar o grau de má- nutrição são os de Waterlow e de Gomez, respectivamente.

De acordo com Waterlow são considerados dois índices:

  1. peso para a altura (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 90 um estado de desnutrição aguda, ou seja, compromisso mais significativo do peso;
  2. altura para a idade (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 95 um estado de desnutrição crónica, ou seja, compromisso mais significativo da altura.

De acordo com Gomez, é considerada apenas a relação:

  1. peso para a idade (% do valor da mediana ou do percentil 50 para a idade) exprimindo os valores percentuais abaixo de 75, quer má – nutrição crónica, quer má – nutrição aguda, traduzindo compromisso do peso e da altura.

Adoptando as três relações (de acordo com os critérios referidos) é possível discriminar diversos graus de má-nutrição (Quadro 1).

QUADRO 1 – Graus de desnutrição

 Classificação de WaterlowCritério de Gomez
GrauPeso/Altura
(% da mediana)
Altura/Idade
(% da mediana)
Peso/Idade
(% da mediana)
0 grau>90>95
1º grau (ligeira)81-9090-9575-85
2º grau (moderada)70-8085-8964-74
3º grau (grave)<70<85<64

Tais avaliações devem ser seriadas valorizando um conjunto de determinações e não apenas uma, isoladamente. De referir que:

  1. nas situações agudas, para além do défice em nutrientes, assumem relevância as alterações hidro-electrolíticas;
  2. nas situações crónicas assumem relevância os défices de mais que um nutriente.
  • Composição corporal – A massa corporal integra 2 compartimentos: 1) massa gorda ou reserva de gordura; 2) massa magra que compreende a água total, reserva de proteínas viscerais e musculares, e de minerais.
    As reservas de gordura subcutânea podem ser avaliadas medindo a espessura das prega cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e supra-ilíaca; a massa muscular esquelética é avaliada através da determinação da prega tricipital em conjunto com o perímetro braquial. Segundo as curvas da OMS, em crianças com idades entre 6- 59 meses, valor do perímetro braquial < 115 mm denota inanição extrema com necessidade de tratamento.
    A medição da espessura da prega cutânea é difícil de determinar em crianças pequenas. (ver Anexos -Vol 3: Avaliação do estado nutricional).
  • Exames laboratoriais – Os parâmetros a avaliar são: albumina plasmática; excreção urinária de creatinina proporcional à massa muscular, pré-albumina ligada à tiroxina, proteína ligada ao retinol, e concentração plasmática de determinadas vitaminas e de determinados minerais (em circunstâncias especiais, conforme a história clínica, constituem elementos adjuvantes para o diagnóstico).
    A imunodeficiência é comum nas situações de má-nutrição; as provas cutâneas relacionadas com o estado de imunidade celular (provas cutâneas com antigénios como por exemplo a prova da tuberculina) evidenciam anergia.
  • Exames biofísicos – Em determinados centros especializados são utilizadas a densitometria para avaliação massa gorda, e a bioimpedância para a avaliação da massa magra. No Laboratório de Nutrição do Hospital Dona Estefânia (Lisboa) são utilizadas técnicas mais rigorosas e exequíveis nos primeiros meses de idade, tais como a absorciometria bifotónica (dual energy X ray absorptiometry-DEXA) e a pletismografia por deslocação de ar.
    No campo da investigação e com escassa exequibilidade na prática clínica, citam-se, entre outras, a determinação do potássio total, a hidrometria por diluição de isótopos estáveis, a ressonância magnética, a espectrofotometria próxima dos infravermelhos e a calorimetria indirecta.

Etiopatogénese

Aspectos gerais

Na sua origem podem ser invocados um conjunto de factores com influência recíproca encerrando um círculo vicioso.

  1. Nos países ditos em desenvolvimento, a ignorância e a pobreza em primeiro lugar desempenham um papel decisivo e estão em causa os recursos precários em nutrientes e as deficientes condições de higiene, de saneamento básico e de evicção de insectos vectores. Como consequência, existe maior frequência e maior gravidade de infecções e infestações parasitárias no grupo populacional em tais condições, contribuindo para estabelecimento de estados de desnutrição, ou para o seu agravamento. Por sua vez, a desnutrição propicia o desenvolvimento de infecções, como se fundamentará adiante.
  2. Nos países ditos desenvolvidos, embora existam nichos de população com precariedades várias semelhantes às dos países referidos em 1., têm papel preponderante as doenças crónicas comportando necessidades calóricas mais elevadas (infecções, febre, etc.) e alterações digestivas comprometendo a absorção dos nutrientes; exemplificando: fibrose quística, infecções por VIH, doenças do tracto digestivo, cancro e terapêutica respectiva, cardiopatias congénitas e doenças do foro neurológico (paralisia cerebral) e muscular, alergias alimentares, vegetarianismo, entre outras. No âmbito da raridade de certas situações susceptíveis de serem diagnosticados em países com recursos, cita-se uma situação do foro genético: polimorfismo C825T no gene GNB3 que, determinando menor sensação de fome e menos sensação de mal estar por tal circunstância, leva a menor ingestão de alimentos.
  3. As situações de baixo peso de nascimento e ou prematuridade com restrição do crescimento fetal (ou da nutrição fetal) obrigam a uma menção especial no contexto do tema subnutrição/desnutrição e no das repercussões futuras. Hales e Barker, entre 1999 e 2001 admitiram a chamada hipótese da poupança ou do feto poupado(thrifty hypothesis) segundo a qual o feto responde à sua subnutrição (que pode ter várias causas) com uma série de mecanismos de adaptação que incluem o armazenamento de gordura, redução do metabolismo não essencial, hipocrescimento e redistribuição do fluxo sanguíneo e nutrientes para órgãos nobres ou “funcionalmente prioritários para a sobrevivência” (por ex. cérebro, coração e suprarrenais) em detrimento doutros que podem ficar com lesões. Ou seja, a privação de nutrientes pode originar no feto um fenómeno de adaptação (designada por programação, em inglês programming) que conduz a lesões estruturais e metabólicas permanentes. Tais alterações “de adaptação” na vida intrauterina que “o feto adoptou”, poupando, não se tornarão evidentes ou tão evidentes se o organismo na sua condição extrauterina continuar a viver em ambiente nutricionalmente pobre. No entanto, se o organismo for exposto a ambiente nutricionalmente rico (isto é, passar a ser alimentado de modo “não poupado”, mas a que se “habituara”, sem restrições em nutrientes), surgirão mais tarde (desde a idade pediátrica, entrando na idade adulta) problemas clínicos de vária ordem como diabetes do tipo 2, doença coronária, hipertensão arterial, dislipidemia e aterosclerose prematura, obesidade troncular, etc..
  4. No que respeita à patogénese do défice de suprimento de nutrientes levando à depleção de depósitos de gordura e glicogénio no organismo importa sintetizar os seguintes fenómenos: – elevação do cortisol; – hipossecreção de insulina e certo grau de resistência perifériva e esta hormona; – elevação de GH com pobre resposta de IGF-1; – aumento da produção de aldosterona; – predisposição especial para infecções por alterações nas respostas imunes, com diminuição de linfócitos, de IgA, e da fagocitose, com alterações do complemento e diminuição de certas citocinas (IL-1, IL-6, TNF).

Aspectos específicos

No caso de desnutrição no contexto do marasmo a situação mais típica é a da criança que nos primeiros meses de vida é precocemente desmamada, continuando a alimentação com leite industrial (ou leite de vaca em natureza nas situações mais precárias), em quantidade insuficiente ou excessivamente diluído.

Por vezes, nalgumas sociedades, este quadro de desnutrição é já bem patente ao nascer traduzindo desnutrição fetal ou restrição do crescimento fetal como resultado de condições nutricionais deficientes da grávida.

No caso do kwashiorkor o perfil etiopatogénico, na sua forma típica, é o seguinte: criança alimentada ao peito para além dos 12 meses (em situações extremas a criança ainda está a ser amamentada quando surge nova gravidez da mãe). Uma vez desmamada, o regime alimentar, como foi referido, tende a ser constituído por suprimento elevado em hidratos de carbono, sobretudo de farináceos (à base de milho, mandioca, etc.), tal como nos restantes membros da família. Assim, a criança é alimentada com número suficiente de kcal (energia), mas não de proteínas.

Manifestações clínicas

Marasmo

Sob o ponto de vista clínico, a característica mais marcante diz respeito à deficiente progressão ponderal, seguindo-se estabilização e ulterior diminuição. O critério peso é, pois, fundamental para definir a situação em que a criança se encontra, reportando-nos a uma tabela de percentis.

Na alínea antropometria referida atrás, foram definidos os critérios de Waterlow e de Gomez; nesta perspectiva, o Quadro 1 dá-nos uma ideia integrada da classificação dos graus de desnutrição englobando os dois critérios.

Para além da perda de peso, observa-se diminuição do panículo adiposo subcutâneo (correspondente à utilização das reservas energéticas, fundamentais para a subsistência), o que pode ser avaliado através da manobra do pregueamento da pele entre dois dedos do observador.

Com efeito, a pele e os tecidos moles periféricos duma criança em situação de nutrição normal evidenciam uma textura e elasticidade especial chamada turgescência ou turgor. A perda do turgor resultante da diminuição do panículo adiposo origina o “sinal da prega”, mantida após se aliviar o pregueamento. Este sinal também ocorre na desidratação aguda, mantendo-se a prega neste último caso por mais tempo.

Tratando-se duma situação crónica, o desaparecimento do panículo adiposo segue uma ordem topográfica bem determinada: primeiramente desaparece no abdómen, depois no tórax e ombros, mais tarde braços, coxas e nádegas (“nádegas em bolsa de tabaco”ou seja, exibindo sulcos ou pregueamento transversal da pele da nádegas e face interna das coxas) e, finalmente, na face com desaparecimento do panículo adiposo da bochecha ou “bola de Bichat” dando lugar à chamada “fácies senil ou de Voltaire”, com rugas, olhos vivos e abertos. O desaparecimento da “bola de Bichat” é típico da desnutrição do 3º grau (Figuras 1 e 2).

FIGURA 1. Quadro clínico de marasmo (NIHDE)

FIGURA 2. Quadro de marasmo: nádegas em “bolsa de tabaco” (NIHDE)

A avaliação da altura oferece, em geral, menos interesse que o peso; com efeito, a estabilização de tal parâmetro somente se verifica em situações de desnutrição grave, sendo evidente sobretudo após os 6 meses.

A cor da pele é tipicamente acinzentada, parecendo fria ao contacto. Tal aspecto resulta, em parte, da anemia que frequentemente existe, e da hipoperfusão tecidual. As mucosas nem sempre estão pálidas. Oscabelos são finos e escassos, sem brilho. Não existe edema.

É muito frequente a observação de dermatites variadas e de intertrigo que poderão ser a consequência de deficiência nos cuidados gerais prestados.

O tono muscular pode estar alterado; na maior parte das vezes existe hipotonia, a qual explica outro sinal característico: distensão abdominal que pode ser muito pronunciada estando em relação, quer com a hipotonia da musculatura da parede abdominal, quer com a hipotonia da musculatura lisa das ansas intestinais e o défice de potássio. Por vezes o abdómen pode estar deprimido.

Os mecanismos de adaptação metabólica do organismo conduzem a hipotermia, bradicárdia, hipotensão arterial e hipoglicémia

De referir igualmente a perturbação do psiquismo; embora estes doentes estejam despertos e interactivos com o ambiente que os rodeia quando estimulados, manifestam tristeza e apatia, com um choro monótono.

Existe tendência para infecções as quais, por sua vez, se repercutem negativamente sobre a desnutrição. Efectivamente, como anteriormente foi referido, a infecção limita o apetite produzindo frequentemente vómitos e diarreia o que compromete a absorção de nutrientes; por outro lado, o processo infeccioso produz hipercatabolismo.

A imunidade humoral está pouco comprometida (pode haver elevação das imunoglobulinas séricas como resposta a infecções repetidas) enquanto a imunidade timodependente está seriamente afectada.

Considerando os diversos tipos de infecções, cabe uma referência especial às infecções respiratórias (pneumonias) pela sua potencial gravidade. Na sua forma de manifestação mais típica, trata-se de formas graves de pneumonia de localização paravertebral, favorecidas pelo decúbito prolongado em relação com a precariedade dos cuidados; não existindo, em geral, febre nem tosse, são muitas vezes subdiagnosticadas.

A desnutrição compromete o desenvolvimento do sistema nervoso central, o que tem consequências a longo prazo. A este respeito é importante ter em conta que o cérebro é um órgão com um crescimento muito rápido nos últimos meses da vida intra-uterina necessitando, por consequência, de um elevado suprimento de nutrientes durante esse período.

As consequências são diversas: atraso (por vezes regressão) do neurodesenvolvimento psicomotor, sensorial e comportamental; perímetro cefálico de menores dimensões; desenvolvimento intelectual inferior ao da população geral. O resultado final depende também do défice de estimulação destas crianças as quais vivem em ambiente social e cultural muito precário.

Ao nível do aparelho digestivo há que salientar a diminuição da actividade da lactase. Estudos de biópsias jejunais demonstraram anomalias histológicas consideradas de menor relevância (altura diminuída do epitélio e invasão da lamina propria por linfócitos e eosinófilos) e outras, funcionais, traduzidas sobretudo por diminuição da actividade lactásica. Este último achado tem implicações na prática clínica obrigando à utilização de produtos isentos de lactose na recuperação nutricional.

Kwashiorkor

Sendo o regime alimentar hipoproteico complementado por suprimento em hidratos de carbono, conduzindo a relativo cumprimento das necessidades energéticas totais, as manifestações clínicas, pelo menos numa fase inicial, poderão passar despercebidas.

O edema por hipoproteinémia (diminuição da pressão oncótica do plasma) que, entretanto, surge, constitui a característica predominante deste tipo de desnutrição. O aspecto geral da criança é o de uma criança com edema generalizado, sobressaindo as bochechas tumefactas pelo referido edema o qual se localiza também noutras áreas (pálpebras, membros superiores e inferiores). O peso pode ser adequado para a idade, ou até superior ao valor médio, por motivo do edema .

Quanto ao psiquismo, as crianças revelam um aspecto deprimido e de tristeza.

FIGURA 3. Criança com Kwashiorkor (NIHDE)

A musculatura participa no quadro clínico: a hipotonia impede, muitas vezes, que a criança ande ou permaneça sentada.

Como resultado da consequente perturbação funcional do hepatócito surge degenerescência gorda, hepatomegália e, em situações mais graves, cirrose hepática.

Tal como no marasmo, surge perturbação funcional do enterócito com especial incidência no jejuno, a qual conduz a diminuição das dissacaridases e diarreia.

Poderão surgir igualmente infecções e infestações intestinais. A anorexia é habitual.

As alterações dermatológicas são muito típicas, sendo frequentes áreas de hipopigmentação alternando com áreas de hiperpigmentação (discromia) nem sempre revertidas com a intervenção nutricional. Poderão evidenciar- se igualmente queilite e estomatite.

Ao nível dos cabelos as alterações tróficas são muito típicas e notórias na raça negra; a despigmentação produz uma cor avermelhada dos cabelos, aspecto que originou o nome de kwashiorkor que significa, na linguagem duma tribo do Gana “criança com cabelos vermelhos”.

Em certos casos, através do cabelo, pode reconhecer- se o momento em que se iniciou o processo de desnutrição, pois a parte distal, mais antiga, aparece com a cor normal enquanto a parte proximal exibe a cor alterada; os cabelos aparecem assim divididos em duas partes com cores diversas, relativamente bem delimitadas que, quando bem esticados aparentam “as cores duma bandeira”. Daí o nome de “sinal da bandeira”.

Para além das perturbações do psiquismo, poderão ser notados tremores (cuja etiopatogénese é incerta), anemia de causa multifactorial, e défice imunológico, com compromisso mais significativo da imunidade celular e da relacionada com os linfócitos T.

No que respeita à repercussão sobre o sistema endócrino, de salientar a possibilidade de hipofunção tiroideia e de défice dos níveis de somatomedina C (Figura 3).

Tratamento

Marasmo

A intervenção terapêutica eficaz nas situações de marasmo, com resultados mantidos, não constitui tarefa fácil uma vez que a mesma tem a ver com a mudança das circunstâncias predisponentes do meio em que a criança vive e que ultrapassam a componente exclusivamente biomédica e nutricional.

Sob o ponto de vista de intervenção nutricional, o regime deve proporcionar proteínas de elevado valor biológico e em quantidade não inferior a 2 gramas/kg/dia, sendo as proteínas do leite de vaca adequadas a este respeito; no entanto, tendo em conta a possível intolerância à lactose pelas razões atrás apontadas, poderá surgir diarreia. Na prática estão indicados produtos lácteos em que a lactose tenha sido substituída por glucose ou dextrina- maltose, sendo de referir que o amido é bem tolerado.

O referido regime deve ser hipercalórico com um suprimento energético de cerca de 150 kcal/kg/dia e incluindo suplementos vitamínicos e de oligoelementos (nomeadamente cobre e zinco). Havendo sideropenia torna-se obrigatório adicionar ferro ao regime (1-2 mg/kg/dia).

Kwashiorkor

O tratamento do kwashiorkor é essencialmente de ordem dietética: regime com elevado suprimento em proteínas de elevado valor biológico, e normocalórico. Não obstante, há que contar com algumas dificuldades surgidas na fase de recuperação relacionadas com intolerância ao leite, infestações intestinais, infecções recorrentes, etc.. A anorexia obriga, por vezes, à necessidade de utilização de sonda gástrica.

Devem ser dados alimentos à base de hidrolisados de proteínas do leite de vaca, glucose como hidrato de carbono e ácidos gordos de cadeia média como lípidos.

Estão também indicados suplementos vitamínicos e ferro.

Actualmente advoga-se a utilização de agentes antioxidantes.

NB- Pela possibilidade da chamada síndroma de realimentação os incrementos devem ser lentos, designadamente nas formas clínicas com peso para a altura < 70%.

Prognóstico

O prognóstico, quer do marasmo, quer do kwashiorkor, é reservado tendo em conta, designadamente o risco de infecções conduzindo a elevada mortalidade (mais elevada nos casos de kwashiorkor) nos países do continente africano, mais pobre; no caso do kwashiorkor há que salientar a elevada probabilidade de desenvolvimento de cirrose hepática.

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