Importância do problema
A doença cardiovascular (DCV) constitui a principal causa de morte no mundo, seguindo-se a doença neoplásica e a doença respiratória.
Nos Estados Unidos da América (EUA) cerca de 1 milhão de pessoas morre anualmente devido a DCV, sendo de referir que cerca de 60 milhões de americanos vivem com alguma forma de DCV.
A principal representante das DCV é a doença coronária cardíaca (DCC), clinicamente manifestada fundamentalmente por angor pectoris, enfarte do miocárdio ou morte súbita. Outras formas de manifestação da DCV incluem a doença vascular cerebral e as vasculopatias renais e periféricas; o fator causal básico desta patologia é a aterosclerose.
Em Portugal, no ano de 2013 foram publicados pelo INE dados estatísticos sobre taxas de mortalidade bruta em todas as idades, considerando as entidades clínicas doença cerebrovascular/DCV, enfarte agudo do miocárdio/EAM, doença isquémica do miocárdio/DIM e doenças do sistema circulatório/DSC; os referidos dados são expressivos: 1 → DCV: 117/100.000; 2 → EAM: 43/100.000; 3 → DIM: 66/100.000; 4 → DSC: 301/100.000.
As repercussões económicas deste tipo de patologia são preocupantes tendo em conta, designadamente, o seu elevado custo e o aumento crescente da sua incidência. Com efeito, no que respeita à prevenção e controlo da mesma, não tem sido possível obter resultados tão bons como aconteceu com as doenças transmissíveis, o que se pode explicar pela complexidade dos respectivos factores etiopatogénicos.
De acentuar que os melhores resultados obtidos se relacionam com programas de intervenção incidindo sobre mudanças do estilo de vida e de hábitos alimentares como sejam: combate ao sedentarismo, aos regimes alimentares ricos em gorduras saturadas e colesterol, à obesidade e aos hábitos de fumar tabaco; tal intervenção será tanto mais eficaz quanto mais precocemente tiver início.
Tendo em conta que o estilo de vida e os hábitos alimentares se adquirem na infância, conclui-se que o pediatra (ou o clínico que presta cuidados à pessoa em idade pediátrica) tem uma grande responsabilidade na redução do impacte da DCV.
Aterosclerose
A aterosclerose é um processo crónico degenerativo e progressivo de base genética, caracterizado por depósito lipídico na íntima das artérias, de modo mais acentuado nas de calibre grande ou médio (coronárias, cerebrais, extremidades inferiores, aorta, etc.).
Apresenta-se inicialmente sob a forma de lesão endotelial vascular englobando, sob o ponto de vista morfológico, dois tipos: as estrias gordas provocadas pela acumulação de gordura, precursoras das chamadas placas fibrosas que aparecem mais tarde.
Tais lesões originam fenómenos obstrutivos vasculares com consequente isquémia nos territórios irrigados (angor, enfarte do miocárdio, acidente vascular cerebral de tipo isquémico, lesões renais, doença isquémica dos membros inferiores podendo evoluir para gangrena) manifestando-se na idade adulta; é igualmente possível o desprendimento de trombos de lesões vasculares ulceradas e/ou hemorrágicas.
As lipoproteínas LDL ou Low Density Lipoproteins na sua forma oxidada desempenham papel primordial na génese das estrias gordas, as quais poderão ser já evidentes em exames post mortem na íntima da aorta desde a infância.
Stary encontrou também em exames post mortem lesões coronárias em 20% de crianças falecidas por lesões traumáticas; e, em autópsias de soldados americanos mortos no Vietnam e Coreia há décadas, foram detectadas lesões do tipo descrito em percentagens oscilando entre 45 e 70%.
Em estudos realizados em adolescentes com valores elevados de colesterol no sangue, através de exames ecográficos foi possível demonstrar sinais de placas fibrosas nas carótidas em 10% dos casos.
Mais recentemente, no âmbito dos estudos de Bogalusa em 1992, e no estudo PDAY (Pathobiological Determinants of Atherosclerosis in Youth) em 2002, foram detectadas lesões ateroscleróticas na aorta a partir dos 3 anos de idade e nas coronárias na segunda década da vida, tendo sido possível relacionar o maior grau de défice da função endotelial com o mais baixo peso de nascimento. Uma década mais tarde, as equipas de investigação do projecto PDAY demonstraram uma relação significativa entre a espessura da prega abdominal e a extensão da aterosclerose encontrada em autópsias entre os 15 e 34 anos.
Através da ecografia não invasiva de alta resolução e desde idades precoces pode avaliar-se a estrutura e função das grandes artérias (por ex. carótida, artéria braquial) através de determinados marcadores pré-clínicos, designadamente: medição da espessura da íntima-média, grau de distensibilidade com o fluxo sanguíneo, e diâmetro interno (lume vascular). Investigações recentes concluíram que o peso elevado de nascimento se associa a maior espessura da íntima da artéria radial.
Tal procedimento, a realizar em centros especializados, tem grande interesse em situações com factores de risco de aterosclerose associados desde idades jovens para detecção de sinais precoces de doença vascular, na perspectiva de intervenção preventiva. Com a tecnologia actualmente disponível foi possível, por outro lado, demonstrar em diversos estudos o papel benéfico do exercício físico, o qual, promovendo a libertação de NO endotelial durante e após o mesmo, melhora o fluxo sanguíneo pela vasodilatação e diminuição da resistência vascular que daí resulta.
Salienta-se a importância das células progenitoras ou estaminais endoteliais que se formam na medula óssea, as quais têm potencialidades para reparar a parede endotelial quando esta é lesada.
Através de técnicas especiais é hoje possível proceder à determinação quantitativa de tais células progenitoras, sendo de referir que indivíduos com mais elevado número de células progenitoras, em presença de factores de risco, têm maior probabilidade de manter a normalidade da função endotelial cardiovascular.
Em suma, a aterosclerose é uma doença que tem início na idade pediátrica, apesar de habitualmente só ter expressão clínica na idade do adulto. Por consequência, a prevenção da aterosclerose e das suas complicações deve iniciar-se desde a idade pediátrica.
Factores de risco
Considerando factores de risco (noção decorrente de estudos epidemiológicos) as características identificáveis que, quando presentes, se associam a mais elevada incidência da doença, relativamente à aterosclerose foram estabelecidos os discriminados no Quadro 1 englobados, numa perspectiva prática, em factores modificáveis e não modificáveis; noutra perspectiva, a referida lista engloba factores genéticos e factores ambientais.
Nem todas as crianças, com estrias gordas apenas, desenvolvem aterosclerose na idade adulta, do que resulta o papel de conjugação de outros factores. De facto, para além dos factores de risco clássicos, influências de tipo metabólico, infecção, inflamação, assim como a influência programada desde a vida fetal, podem afectar a função endotelial vascular e o consequente desenvolvimento de aterosclerose.
Serão abordadas, a seguir, as questões fundamentais relacionadas com os referidos factores, os quais podem actuar associados, registando-se, por outro lado,correlação entre os factores de risco na criança e nos progenitores. Pode concluir-se, reportando-nos ao Quadro 1, que a prevenção fica limitada à intervenção sobre os factores de risco ambiental.
QUADRO 1 – Factores de risco de aterosclerose
Não modificáveis | Modificáveis |
Hereditariedade Género Idade Raça | Dislipoproteinémias Hipertensão arterial Tabagismo Obesidade Sedentarismo Estresse Diabetes Baixo peso de nascimento |
Dislipoproteinémias
As dislipoproteinémias são situações clínicas caracterizadas por alterações do nível plasmático de colesterol total, (CT), triglicéridos, e das lipoproteínas habitualmente determinadas: LDL, VLDL, HDL, apo A, apo B, Lp (a).
Os valores elevados de colesterol, principalmente do transportado pelas proteínas de baixa densidade (sobretudo LDL oxidadas) estão associados a patogénese das estrias gordas e placas fibrosas (placa de ateroma).
Diversos estudos epidemiológicos, experimentais, clínicos e de anatomia patológica, demonstraram uma relação entre coronariopatia, enfarte do miocárdio e angor, e valores plasmáticos mais elevados de colesterol, por sua vez em relação com suprimentos alimentares mais elevados de gorduras saturadas.
Inversamente, foi demonstrado que os indivíduos com doença aterosclerótica e coronariopatia melhoravam com a diminuição dos valores de colesterol total. Tal melhoria traduziu-se pela comprovação de regressão do ateroma e da diminuição da mortalidade em 2% por coronariopatia, reduzindo em 1% o valor da colesterolémia, segundo o Lipid Research Clinics Program (LRP).
Segundo o mesmo LRP, o risco de acidente agudo relacionado com caronariopatia de base é da ordem dos 5% aos 30 anos em indivíduos com valores elevados de colesterolémia (total >300 mg/dL e colesterol LDL >240 mg/dL), aumentando o risco para 50% aos 50 anos.
Noutros estudos concluiu-se que a redução em 10% dos valores da colesterolémia antes dos 40 anos se traduziu numa diminuição da incidência coronariopatia na ordem dos 50%.
Acontece que as lipoproteínas circulantes na idade pediátrica tendem a manter-se com idênticos valores na idade adulta. É esta a noção de estabilidade ou de “tracking” empregando a terminologia muito corrente da língua inglesa. Nos estudos de Bogalusa e Muscatine concluiu-se que: 1) os valores de colesterolémia aferidos aos 20 anos constituem um factor preditivo de risco de coronariopatia entre os 50 e 60 anos; 2) 50% das crianças com valores de colesterolémia acima do percentil 75 evidenciavam hipercolestrolémia 10 a 15 anos mais tarde; 3) entre as crianças com valores baixos de colesterol HDL pelos 10-14 anos, cerca de 40% apresentavam idêntica tendência 12 anos mais tarde.
No conjunto das hipercolesterolémias, a capacidade aterogénica é variável em função das lipoproteínas a que se liga o colesterol. Como factor-chave de risco mais elevado é chamada a especial atenção ao papel das lipoproteínas de baixa densidade /LDL.
Estando a hipertrigliceridémia (valor de triglicéridos acima do ponto de corte entre 90 e 200 mg/dL) frequentemente associada a outros factores de risco (por ex. diabetes tipo 2, hipertensão arterial, excesso de peso, obesidade, e valores baixos de lipoproteína HDL) de acordo com diversos estudos tem sido difícil considerar os triglicéridos, de forma independente como aterogénicos, não se recomendando o seu rastreio. Contudo, salienta-se que valores muito elevados constituem risco de pancreatite e fazem parte da síndroma metabólica.
1. Rastreios
Relativamente aos rastreios com o objectivo de identificar através do perfil lipoproteico os casos com mais elevado risco de DCV, ao longo do tempo foram considerados dois tipos: o rastreio universal e o rastreio selectivo. Os prós e os contras de se preconizar uma ou outra modalidade, e o facto de as normas para rastreios terem sofrido modificações, por vezes discrepantes, traduzem certo grau de controvérsia que se instalou no âmbito da comunidade científica.
Em 1992, o Program of the National Heart, Lung and Blood Institute preconizava o rastreio selectivo tendo como base os critérios sintetizados no Quadro 2: colheita de sangue em jejum de 12 horas, entre os 2 e 10 anos. Se os valores ultrapassassem 200 mg/dL, a norma era proceder ao estudo doutros parâmetros, designadamende colesterol-LDL e colesterol-HDL, triglicéridos, apoA-I, apoB e, eventualmente, Lp (a).
QUADRO 2 – Rastreio selectivo de dislipoproteinémias
Antecedentes familiares |
· Coronariopatia ou doença cerebrovascular antes dos 55 anos em progenitor ou avô · Hipercolesterolémia >240 mg/dL em progenitor · Dislipoproteinémia primária em progenitor ou familiar · Morte súbita · História familiar desconhecida e/ou factores de risco associados |
Estilo de vida de risco da criança/adolescente |
· Hábitos tabágicos · Sedentarismo · Obesidade · Hipertensão arterial · Fármacos com efeito dislipoproteinémico |
Se valor de colesterol-LDL (C-LDL) fosse < 110 mg/dL, a análise deveria ser repetida em função do contexto clínico, em geral 4-5 anos depois.
Se C-LDL entre 110-130 mg/dL, a análise deveria ser repetida.
Se C-LDL >130 mg/dL, era indicado regime alimentar restritivo e eventual farmacoterapia.
Investigações ulteriores demonstraram entretanto que, com os critérios adoptados, cerca de 50% das crianças com valores elevados de C-LDL não eram rastreadas.
Em 2011, quer a American Academy of Pediatrics, quer o National Heart, Lung and Blood Institute passaram a recomendar o rastreio universal integrado nos exames de saúde electivos em períodos etários-chave: entre os 9 e 11 anos e, também ulteriormente entre os 17 e 21 anos tendo em conta que os valores de C-LDL diminuem durante a puberdade.
Em função do contexto clínico de cada caso, se eventualmente numa determinada criança se verificarem os critérios adoptados para o rastreio selectivo, o procedimento poderá ser realizado a partir dos 2 anos. (ver Parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo).
Um aspecto novo que acompanha as recentes normas para rastreio relaciona-se com a utilidade/recomendação de a primeira colheita a efectuar ser em não jejum e, havendo condições técnicas adequadas, poder ser de sangue capilar.
Parece estar demonstrado efectivamente que somente os triglicéridos são o parâmetro mais influenciado pelo não jejum.
Em tal circunstância, no caso de o colesterol não HDL (C-total – C-HDL) ser >145 mg/dL deve proceder-se ulteriormente a duas determinações separadas no tempo, em jejum – com intervalo mínimo de 2 semanas e máximo de 3 meses.
Se os resultados destas duas análises em jejum separadas no tempo evidenciarem colesterol não HDL >130 mg/dL, deve ser realizada outra série de duas análises em jejum separadas no tempo com o mesmo critério de intervalo.
Em suma, perante suspeita de dislipoproteinémia, para o diagnóstico definitivo torna-se obrigatório confirmar os resultados em duas amostras de sangue obtidas em ocasiões separadas.
Nos casos em que se detectem anomalias bioquímicas, deverá ser estabelecido um esquema de vigilância periódica incluindo determinações do perfil lipoproteico cada 2 a 3 anos, para além do esquema alimentar restritivo quanto a suprimento de gorduras e doutros tipos de intervenção referidos nas partes sobre Nutrição e Doenças Hereditárias do Metabolismo.
Nos casos de antecedentes de hipercolesterolémia familiar está indicado o rastreio no recém-nascido (sangue do cordão umbilical).
2. Intervenção e recomendações
Nos primeiros 2 anos não está indicada a restrição no suprimento em colesterol tendo em consideração o crescimento rápido do sistema nervoso central e o facto de os lípidos constituírem o substrato essencial para a mielinização.
Após este período etário há que respeitar as recomendações de consenso internacional publicadas por diversos organismos: (American Heart Association, American Academy of Pediatrics, ESPGHAN, etc.) referidas na parte Nutrição.
Actualmente, de modo consensual consideram-se como valores aceitáveis para o colesterol total em crianças e adolescentes: < 170 mg/dL; como valores limite: 170-199 mg/dL; como valores elevados: >200 mg/dL. Para o colesterol-LDL: aceitáveis <110 mg/dL; limite 110-129 mg/dL; elevados >130 mg/dL. O colesterol-HDL deve estar >40 mg/dL.
Reiterando o que foi já explanado, são mencionadas as seguintes medidas dietéticas que interferem nos níveis plasmáticos de lipoproteínas:
- As fibras, além de diminuírem a absorção do colesterol e de ácidos gordos saturados, competem com a síntese hepática de LDL;
- As frutas e os vegetais, possuindo propriedades antioxidantes e preservando a estrutura e função do endotélio vascular, contribuem para prevenir a formação de placas de ateroma.
Relativamente ao estilo de vida, deverão ser promovidas a actividade física de forma regular e contínua (30 minutos diários, pelo menos 5 dias por semana), a prevenção do consumo de álcool e de tabaco nos adolescentes como formas de prevenir e controlar as dislipoproteinémias.
Os fármacos a utilizar (estatinas, colestiramina, etc.), com especificação das respectivas indicações e mecanismos de acção, são abordados no capítulo sobre dislipoproteinémias.
Relativamente às hipertrigliceridémias, como primeira linha terapêutica é recomendado estilo de vida saudável (redução do peso, cessação do tabagismo, redução do álcool ingerido, e ingestão de gorduras não saturadas). Valores acima de 500 mg/dL implicarão farmacoterapia [ácidos gordos ómega 3 (DHA, EHA), niacina, fibratos, etc.].
3. Aspectos epidemiológicos
Num rastreio oportunista por nós realizado com a colaboração laboratorial do Departamento de Bioquímica da FCM/NMS/UNL em crianças da clínica privada e da consulta externa do Hospital Dona Estefânia (amostras de sangue obtidas na circunstância de existir prioritariamente a indicação de outros exames analíticos do sangue), foi encontrada uma prevalência de dislipoproteinémias primárias da ordem de 5%, na sua maioria hipercolesterolémia de tipo poligénico (10 casos em 203 crianças aparentemente saudáveis); havia antecedentes familiares de hipercolesterolémia (em um dos progenitores) em 26% dos casos.
Noutra amostra constituída por 232 crianças aparentemente saudáveis, com idade compreendida entre 12 meses e 18 anos, e sem factores de risco cardiovascular, foram obtidos os valores de CT, C-LDL e de triglicéridos, que constam do Quadro 3 sobreponíveis aos valores de referência obtidos por outros autores.
QUADRO 3 – Perfil lipídico duma amostra de crianças e jovens sem factores de risco
Idades | Nº | Colesterol Total Média (DP) | Colesterol LDL Média (DP) | Triglicéridos Média (DP) |
12-24 M | 23 | 185 (15) | 102 (29) | 89 (33) |
>2-4 A | 57 | 173 (28) | 97 (25) | 76 (32) |
5-9 A | 83 | 174 (31) | 102 (23) | 67 (22) |
10-14 A | 59 | 180 (28) | 103 (25) | 71 (44) |
15-18 A | 10 | 172 (25) | 99 (12) | 64 (32) |
Valores em mg/dL; DP= desvio-padrão; A= anos; M= meses (JMV Amaral, 2005) |
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