FEOCROMOCITOMA

Definição e importância do problema

Os feocromocitomas e os paragangliomas são tumores neuroendócrinos que têm a sua origem nos paragânglios, pequenos órgãos na sua maioria microscópicos, formados por acumulações ganglionares de células derivadas da crista neural que se distribuem simetricamente ao longo do sistema nervosos autónomo, desde a pelve à base do crânio, seguindo o eixo longitudinal do corpo.

Os paragangliomas podem ser funcionantes e segregar catecolaminas que, ao oxidar-se com os sais de crómio, adquirem uma cor castanha escura (tumores cromafins).

Segundo a terminologia actual, o termo feocromocitoma refere-se unicamente aos paragangliomas derivados das células cromafins da medula suprarrenal (intra-adrenais), os quais explicam cerca de 90% dos casos deste tipo de patologia; por outro lado, o termo paraganglioma reserva-se para os tumores extra-adrenais que, por sua vez, se classificam em simpáticos e parassimpáticos (em cerca de 10% dos casos).

Dando ênfase neste capítulo ao feocromocitoma, reiteram-se as seguintes noções: as células cromafins são elementos constituintes: – da medula suprarrenal; e de outras estruturas secretoras de catecolaminas: – cadeia simpática abdominal juxta – aórtica, ao nível da artéria mesentérica inferior ou sua bifurcação, área peri-suprarrenal, bexiga, uréteres, região torácica, cervical, etc.; e – cadeia parassimpática, ao longo dos ramos cranianos e torácicos dos nervos glossofaríngeo e vago localizando-se na cabeça, pescoço e mediastino superior.

As referidas neoplasias são raras na idade pediátrica, sendo responsáveis por cerca de 0,5 a 2% dos casos de hipertensão arterial neste período da vida. Com maior incidência entre os 9 e 12 anos e predomínio no sexo masculino, estão descritos casos familiares associados por vezes às síndromas de neoplasias endócrinas múltiplas familiares (sigla corrente em inglês – síndromas MEN ou multiple endocrine neoplasia) com um tipo de hereditariedade autossómica dominante e penetrância incompleta; estes quadros relacionam-se com mutações do proto-oncogene RET no cromossoma 10 (10q11.2).

As neoplasias classicamente englobadas na síndroma MEN são: tumores do lobo anterior da hipófise, tumores dos ilhéus pancreáticos, hiperplasia paratiroideia, tumores neurais, e carcinoma da medular tiroideia; tais entidades deverão ser, pois, pesquisadas em situações de feocromocitoma confirmado.

O feocromocitoma pode estar igualmente associado a neurofibromatose e a doença de Von Hippel-Lindau, situações também familiares.*

*A doença de von Hippel-Lindau (VHL) é uma doença autossómica dominante afectando cerca de 1/36.000 indivíduos, iniciando-se em geral após a adolescência. O gene VHL resulta duma mutação no braço curto do cromossoma 3. A verificação de, pelo menos, um dos seguintes critérios, permite o diagnóstico: 1- mais de um hemangioblastoma do SNC ou retina; 2- um só hemangioblastoma da retina ou SNC + complicações viscerais, incluindo designadamente feocromocitoma; 3- qualquer das manifestações referidas em 1- e 2- , associada a história familiar.

Manifestações clínicas

Em cerca de 90% dos casos, o feocromocitoma é considerado uma situação benigna.

A maioria dos doentes apresenta a tríade clássica associada a crise de hipertensão arterial: cefaleia, sudação profusa e palpitações.

Especificando, pode afirmar-se que os sinais e sintomas deste tumor surgem em paroxismos como resultado do excesso de catecolaminas: hipertensão arterial (em geral a manifestação que se mantém constante), sudação, rubor, palpitações, taquicárdia, cefaleias, labilidade emocional, dores abdominais, náuseas, vómitos, obstipação, poliúria, polidipsia, etc.. Nas situações em que a criança é submetida a anestesia poderá surgir crise de encefalopatia hipertensiva. Estão descritos casos em que é identificável, pela palpação, tumor abdominal.

A malignidade (~10% dos feocromocitomas e paragangliomas) estabelece-se pela presença de metástases à distância (gânglios, fígado, pulmão e osso).

Exames complementares

Os exames complementares de diagnóstico podem ser sistematizados essencialmente em bioquímicos, de localização; e, no estado actual dos conhecimentos sobre a patologia em análise, pode afirmar-se que na idade pediátrica está também indicado o diagnóstico molecular (considerando-se como mais relevantes respectivamente, os genes: – VHL associado ao feocromocitoma; e SDHB associados a tumores malignos.

Segregando a medula suprarrenal epinefrina e nor-epinefrina cujos metabolitos podem ser doseados, o diagnóstico de feocromocitoma baseia-se classicamente na demonstração do aumento de catecolaminas plasmáticas e urinárias e seus metabolitos na urina de 24 horas.

As substâncias habitualmente doseadas na urina têm os seguintes valores de referência:

  • epinefrina urinária (< 273 nmol/24 horas ou < 50 µg/24 horas);
  • nor-epinefrina urinária (< 887 nmol/24h ou < 150 µg/24h); na criança predomina em relação à epinefrina;
  • ácido vanilmandélico (VMA) (419 ± 131 nmol/kg/24h ou 83 ± 26 µg/kg/dia);
  • os valores das catecolaminas podem estar falsamente aumentados se houver administração simultânea de ácido acetilsalicílico, penicilina, sulfamidas ou alimentos;
  • ácido homovanílico – 16,5-87,8 nmol/mg de creatinina (3-16 mg/mg creatinina).

Nos casos de neuroblastoma excretam-se igualmente metabolitos das catecolaminas, (sobretudo dopamina e ácido homovanílico) mas não se verifica hipertensão.

Para a localização do tumor estão indicados diversos estudos imagiológicos a seleccionar em função do contexto clínico: ecografia, tomografia computadorizada com emissão de positrões (PET), ressonância magnética, pielografia intravenosa, cintilografia com MIBG (meta-iodo-benzil-guanidina), etc..

Diagnóstico diferencial

A hipertensão obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com outras situações tais como: doença renovascular, coarctação da aorta, hipertiroidismo, défice de 11-b hidroxilase, de 17-a hidroxilase, de desidrogenase de 11-b hidroxisteróide, aldosteronismo primário, tumores adrenocorticais, porfiria, disautonomia familiar, etc..

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, sendo a técnica laparoscópica actualmente a primeira escolha; em casos bilaterais obrigando a suprarrenalectomia bilateral, deve providenciar-se, após a intervenção, o tratamento imediato da insuficiência suprarrenal primária.

Como actuação pré-operatória, a fim de bloquear a libertação intraoperatória de catecolaminas, utiliza-se nalguns centros a fenoxibenzamina (dibenzilina), bloqueante de alfa-adreno-receptores.

Havendo a possibilidade de recorrência do tumor, no período pós-operatório a curto e médio prazo torna-se obrigatório proceder à vigilância seriada da pressão arterial e do valor das catecolaminas.

Os tumores malignos, embora de evolução lenta, são resistentes à quimioterapia e à radioterapia.

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TUMORES DO CÓRTEX SUPRARRENAL

Importância do problema

Os tumores do córtex suprarrenal são raros, constituindo 0,2%-0,5% dos tumores na idade pediátrica. A sua incidência é cerca de 0,3/1.000.000 crianças com menos de 15 anos; a taxa mais elevada verifica-se na região sul do Brasil (3-4/1.000.000 de crianças com menos de 15 anos). Estes tumores são mais frequentes no sexo feminino, em crianças com menos de 5 anos e associados às seguintes situações: hemi-hipertrofia isolada, síndromas de Beckwith-Wiedemann, complexo de Carney, Li-Fraumeni*, neoplasias endocrinológicas múltiplas, defeitos congénitos das vias urinárias, hamartomas, hiperplasia congénita da suprarrenal e tumores cerebrais.

Têm sido encontradas mutações no gene supressor tumoral TP53 (ao nível do cromossoma 17p13.1) em doentes com carcinoma adrenocortical.

Os casos identificados no Brasil estão associados à presença em cerca de 90% dos casos de mutação germinal específica do gene TP53 (Arg337His) que codifica uma proteína supressora da oncogénese. A maioria dos casos (70%) associados a síndroma de Li-Fraumeni estão também associados a mutações germinais no gene TP53.

*A síndroma de Li-Fraumeni integra situações de cancro familiar compreendendo largo espectro de neoplasias malignas em familiares do 1º grau, incluindo cancro da mama, tumor cerebral, sarcoma dos tecidos moles, carcinoma adrenocortical, etc..

Manifestações clínicas

Os tumores do córtex da suprarrenal podem produzir diversas hormonas, o que condiciona formas de apresentação clínica muito heterogéneas.

Na maioria dos casos existem sinais exuberantes de virilização, de aparecimento recente: voz grave, aumento de volume do clítoris ou do pénis com testículos pequenos, pilosidade púbica e axilar, acne, odor corporal, hirsutismo explosivo, aumento das massas musculares e aceleração da velocidade de crescimento. Os níveis elevados de testosterona podem causar alterações do comportamento com irritabilidade, hiperactividade, jogos e brincadeiras violentas. Podem também manifestar-se como síndroma de Cushing, cujos sinais e sintomas podem aparecer isolados (5 a 8% dos casos, consoante as séries), ou associados a virilização (30% dos casos). A presença de massa abdominal ou pélvica palpável pode ser o único achado. A hipertensão arterial é frequente mesmo sem sintomas de síndroma de Cushing; pode ser grave, sob a forma de crises hipertensivas com convulsões.

Excepcionalmente, o tumor produz estrogénios (tumor feminizante), manifestando-se neste caso, como puberdade precoce periférica no sexo feminino, e ginecomastia no sexo masculino. Em cerca de 10% dos casos, não há quaisquer sintomas de hiperprodução hormonal. Por vezes a doença passa imperceptível, tendo a criança um aspecto saudável apesar dos sintomas de virilização.

Assim, qualquer criança com menos de 4 anos e pubarca precoce, ou lactente com acne, deverá ser estudado no sentido de excluir a presença de tumor da suprarrenal.

Exames complementares

Os níveis das hormonas produzidas podem também ser muito variados; os resultados dos doseamentos hormonais podem situar-se no limite superior para a idade. Face à suspeita clínica, é aconselhável proceder a doseamentos múltiplos e exames imagiológicos no sentido de esclarecer a situação:

  • O aumento nítido dos níveis plasmáticos de DHEA-S (> 600 µg/dL) e de 17-cetoesteróides urinários é muito sugestivo de tumor da suprarrenal. No entanto, o aumento da DHEA-S pode não ser tão exuberante;
  • Aumento do cortisol urinário e plasmático, perda do ritmo circadiano do cortisol, ↑ testosterona, ↑ Δ 4-androstenediona, ↑ estradiol e ↓ ACTH nos casos com sintomas de síndroma de Cushing;
  • Nos casos de virilização: ↑↑ testosterona (> 350 ng/mL no sexo feminino), ↑ Δ 4-androstenediona e ↑ 17-hidroxiprogesterona;
  • Se houver feminização: ↑↑ estrona e ↑↑ estradiol.

A não supressão do cortisol e outros metabolitos com a dexametasona é constante e diagnóstica: testosterona livre > 8 pg/mL, DHEA-S > 70 µg/dL e cortisol > 3 µg/dL.

  • Avanço da idade óssea em relação à idade cronológica.

Os exames de imagem (TAC/RM abdominal, ecografia, e por vezes PET) permitem a confirmação da localização do tumor e a definição do tumor em relação às estruturas vizinhas visando a programação da cirurgia.

Tratamento

O tratamento é cirúrgico: ablação seguida eventualmente de quimioterapia.

Prognóstico

O principal factor de bom prognóstico é a verificação de tumor pequeno (< 200 g), completamente ressecado.

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SÍNDROMA DE CUSHING

Definição e etiopatogénese

A designação de síndroma de Cushing aplica-se às situações clínicas causadas por concentração excessiva de glucocorticóides em circulação, resultante de administração exógena, ou de secreção endógena.

Apesar de se tratar dum quadro clínico raro na criança, coloca algumas vezes problemas de diagnóstico diferencial em casos de obesidade.

As causas da síndroma de Cushing estão descritas no Quadro 1, sendo mais frequente a relacionada com administração de corticóides para tratamento de várias doenças.

QUADRO 1 – Causas de síndroma de Cushing

1. Dependente de ACTH
    1. Iatrogénica
    2. Adenoma hipofisário produtor de ACTH (doença de Cushing)
    3. Secreção ectópica de ACTH
    4. Secreção ectópica de CRH
2. Independente de ACTH
    1. Iatrogénica
    2. Tumor adrenocortical (adenoma ou carcinoma)
    3. Hiperplasia adrenocortical primária
      – doença adrenocortical nodular pigmentada primária ou doença adrenal
      micronodular associada ou não ao complexo de Carney
      – hiperplasia adrenal macronodular
    4. Síndroma de McCune-Albright

Nas crianças com menos de 7 anos as causas adrenais são as mais frequentemente implicadas na etiologia da síndroma de Cushing.

Manifestações clínicas

Os sintomas mais frequentes na criança são aumento de peso e obesidade, associados a baixa estatura e atraso da idade óssea, ao contrário do que habitualmente acontece na obesidade exógena. (Figura 1)

FIGURA 1. Obesidade no contexto de síndroma de Cushing

Podem também existir: fácies peculiar designada habitualmente cushingóide, acne, hirsutismo/hipertricose, alterações menstruais ou atraso de progressão da puberdade, cefaleias, hipertensão arterial, hiperpigmentação, fadiga ou astenia, pele fina, estrias purpúreas e equimoses. A diminuição das massas musculares dos membros não é habitualmente muito marcada nas crianças. Mais raramente, verificam-se ainda: alterações psíquicas tais como depressão, irritabilidade e alterações do sono, osteopénia, cálculos renais, edema, necrose avascular da cabeça do fémur ou deslizamento da epífise da cabeça do fémur. Este quadro instala-se, em geral, de forma insidiosa, decorrendo em média 3 anos desde o início dos primeiros sintomas até ao diagnóstico; esta progressão lenta é evidente quando existem fotografias do doente ao longo dos anos.

A hiperplasia nodular associada ou não à síndroma de Carney (mixomas cardíacos e cutâneos, hiperactividade endócrina, lesões cutâneas lentiginosas, nevus azuis da pele e mucosas) caracteriza-se por obesidade, grande diminuição das massas musculares, osteoporose e hiperprodução cíclica de corticóides.

Exames complementares

O diagnóstico da síndroma, bem como da sua etiologia, pode ser muito difícil; com efeito, apesar de protocolos de diagnóstico muito elaborados, não há exame 100% sensível ou específico. O diagnóstico etiológico obriga a estudos endocrinológicos e de imagiologia para esclarecimento. A maioria destes exames só está disponível nalguns centros especializados. Assim, e face à suspeita clínica apoiada em determinados exames auxiliares, a criança deverá ser enviada para esclarecimento a uma consulta de Endocrinologia Pediátrica.

Os exames laboratoriais podem revelar:

  • Hemoglobina, hematócrito e eritrócitos no limite superior do normal;
  • Leucopénia e eosinopénia;
  • [Na+] dentro dos limites dos limites normais e ↓ [K+];
  • Hiperglicémia ou alteração da prova de tolerância à glucose;
  • Elevação do valor das lipoproteínas (VLDL, HDL, LDL);
  • Hipercalcémia e hipercalciúria.

As determinações endocrinológicas que permitem a confirmação ou a exclusão da síndroma de Cushing são:

  • Determinação da excreção de cortisol livre em urina de 24 horas, em 3 dias;
  • Estudo do ritmo circadiano do cortisol [9h, 18h, meia-noite (a dormir)]; o valor normal do cortisol à meia-noite a dormir é < 1,8 ug/dl;
  • Teste de supressão com dexametasona em dose baixa [0,5 mg (doentes com peso > 40 Kg) ou 30 ug/kg/d (doentes com peso < 40 kg)] de 6/6h (9, 15, 21, 3h) durante 48h com determinação do cortisol sérico no tempo 0 e 6h depois da última administração; o cortisol sérico deverá ser indetectável às 48h (< 1,8 ug/dl) nos casos normais.

Em caso de resultados negativos, face a forte suspeita clínica, dever-se-ão repetir os doseamentos, pois poderá existir apenas hipercortisolismo cíclico.

Tratamento

A terapêutica é variável consoante a etiologia, devendo ser individualizada consoante o doente. Na doença de Cushing está indicada a remoção do adenoma hipofisário por cirurgia transesfenoidal. Esta técnica neurocirúrgica é especialmente difícil nas crianças, e mesmo com neurocirurgiões experientes pode haver 50% de recidivas que obrigam a radioterapia. Pelo contrário, há também o risco de a remoção originar defeitos múltiplos da secreção hipofisária, obrigando a terapêutica de substituição.

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INSUFICIÊNCIA SUPRARRENAL

Definição e etiopatogénese

A insuficiência suprarrenal deve-se, como o nome indica, às consequências da incapacidade de produção de glucocorticóides (cortisol) e mineralocorticóides (aldosterona).

Pode ser provocada por grande número de situações (congénitas ou adquiridas) as quais podem ser divididas em dois grandes grupos: primárias quando a causa reside na suprarrenal; e secundárias quando se deve a insuficiente estimulação do córtex suprarrenal pela hipófise anterior (ACTH) ou hipotálamo (CRH). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de insuficiência suprarrenal

Adaptado de Pombo M, et al, 1997

A – Insuficiência suprarrenal primária ( Cortisol, ACTH / CRH)

Congénita

    • Hiperplasia suprarrenal congénita:
      • Défice de 21-OHase e 11β-OHase
      • Défice da proteína StAR (hiperplasia lipóide)
    • Hipoplasia suprarrenal congénita:
      • Esporádica
      • Miniatura
      • Citomegálica (mutação do gene AX-1)
      • Ligada a deleção de genes contíguos
      • (DAX-1, glicerol-cinase e Duchenne)
    • Alteração do gene SF-1
    • Adrenoleucodistrofia
    • Síndroma de Smith-Lemli-Opitz
    • Doença de Wolman
    • Doença de Refsum
    • Ausência de resposta à ACTH:
      • Isolada
      • Associada a alacrimia e acalasia
    • Défice de aldosterona:
      • Hipoaldosteronismo
      • Pseudo-hipoaldosteronismo

Adquirida

    • Auto-imune:
      • Isolada
      • Síndromas poliglandulares auto-imunes de tipo I ou APECED e tipo II
    • Infecciosa:
      • Tuberculose, coccidiomicose, histoplasmose
      • Meningococémia (síndroma de Waterhouse-Friderichsen)
    • Doenças infiltrativas:
      • Hemocromatose, amiloidose, sarcoidose
      • Metástases
    • Traumatismo:
      • Hemorragia neonatal
      • Cirurgia
    • Tumores
    • Fármacos:
      • Alteração da síntese de esteróides: cetoconazol
      • Aumento do metabolismo dos esteróides: rifamicina, fenobarbital, fenitoína
B – Insuficiência suprarrenal secundária ( Cortisol, ACTH / CRH)

Congénita

    • Défice de ACTH / CRH:
      • Isolado
      • Associado a outros défices hormonais
      • Associado a defeitos anatómicos (anencefalia)
      • Idiopático

Adquirida

    • Idiopática:
      • Défice isolado ou múltiplo
    • Auto-imune (hipofisite)
    • Tumores (craniofaringeoma)
    • Fármacos (esteróides exógenos)

Sob o ponto de vista etiopatogénico, a insuficiência suprarrenal primária pode dividir-se em 3 grandes grupos: disgenésia/hipoplasia da suprarrenal que inclui as alterações dos genes SF-1, DAX-1/NR0B1 e receptor de ACTH; destruição da suprarrenal por mecanismos auto-imune, infeccioso, hemorrágico ou adrenoleucodistrofia; alterações da esteroidogénese por anomalias da síntese de colesterol (abetalipoproteinémia e síndroma de Smith-Lemli-Opitz); ou por anomalias da síntese de esteróides (hiperplasia congénita da suprarrenal).

Na criança, se excluirmos a insuficiência iatrogénica pós-corticoterapia local ou sistémica, a causa mais frequente é a hiperplasia suprarrenal congénita, já descrita. Por isso serão abordadas as outras causas de insuficiência. A idade e o sexo da criança são importantes para o diagnóstico etiológico. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Causas de insuficiência suprarrenal de acordo com idade e sexo

Adaptado Ten S, et al, 2001
Sexo0-2 anos> 2-14 anos> 14 anos
Masculino
    • Hiperplasia congénita da suprarrenal
    • Hipoplasia congénita da suprarrenal (DAX-1 e deleção de genes contíguos)
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo I
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo II
    • Adrenoleucodistrofia
    • Hipoplasia congénita da suprarrenal
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo II
Feminino
    • Hiperplasia congénita da suprarrenal
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poli-glandular auto-imune
      • Tipo I
    • Síndroma poli-glandular auto-imune
      • Tipo II
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo II

Manifestações clínicas

A carência em glucocorticóides traduz-se clinicamente por: astenia (díficil de valorizar nas crianças), anorexia, cansaço fácil, perda de peso ou má progressão ponderal, infecções recorrentes, sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, dor abdominal, diarreia) e hipoglicémia.

A carência em mineralocorticóides traduz-se por hipovolémia, hipotensão postural, taquicárdia e, por vezes, choque.

Inicialmente pode apenas existir sintomatologia de uma das duas linhas, aparecendo depois os sintomas de insuficiência da outra.

Os sinais e sintomas de insuficiência suprarrenal podem instalar-se de forma lenta e progressiva, ou de forma aguda (1/3 dos casos). Os sintomas da crise aguda são: dor abdominal intensa, febre, obnubilação, alteração do estado de consciência, desidratação desproporcionada para a perda de líquidos calculada, e colapso cardiocirculatório. A crise aguda pode ser precipitada por vómitos, infecção intercorrente banal, traumatismo, intervenção cirúrgica, estadia em país quente, paragem de corticoterapia prolongada ou não aumento da dose de substituição em situação de estresse. Habitualmente a evolução é lenta (4 anos, em média); os seus sintomas são vagos e inespecíficos, o que dificulta o diagnóstico; muitas vezes, o défice crónico só diagnosticado aquando da descompensação aguda, pode mesmo confundir-se com doença psiquiátrica.

A clínica é também diferente se se tratar de lesão da própria glândula com eixo hipotálamo-hipofisário funcionante, ou se a insuficiência for secundária.

Assim, se a insuficiência for de causa suprarrenal a produção de glucocorticóides e a de mineralocorticóides encontra-se afectada; se a causa se localizar ao nível do eixo hipotálamo-hipofisário apenas a via glucocorticóide está alterada, pois a secreção de mineralocorticóides depende, sobretudo, do sistema renina-angiotensina-aldosterona.

No primeiro caso, a elevação da ACTH por falta de retrocontrolo produz hiperpigmentação da pele e mucosas, que é mais marcada na palma das mãos, pregas de flexão, cicatrizes, mucosa oral, mamilos, escroto e grandes lábios.

No segundo caso descreve-se uma pele “de alabastro” por ausência de estimulação melanocítica.

Exames complementares

A suspeita clínica obrigará à realização de um conjunto de exames complementares em centro especializado cujos resultados são orientadores.

1. Exames auxiliares gerais

Exames de sangue e outros:
    • ↓[Na+], ↑[K+], ↓[Cl] plasmáticos, podendo ser normais fora da crise aguda
    • ↑Ureia e creatinina
    • Anemia normocítica moderada
    • ↑Hematócrito
    • ↑Proteínas plasmáticas
    • Neutropénia com linfocitose relativa
    • Eosinofilia
    • Hipoglicémia
    • Acidose metabólica moderada
    • Cetonémia
    • Radiografia de tórax PA: coração “pequeno”
    • ECG: diminuição da voltagem, QRS vertical e amplo, segmento QT alterado, ondas T aplanadas
Exame de urina:
  • [Na+] urina ↑ ou normal apesar de [Na+] no plasma↓

2. Exames endocrinológicos

Na insuficiência suprarrenal aguda só é geralmente possível colher uma única amostra de sangue para os doseamentos endocrinológicos, dada a urgência do início da terapêutica.

Determinações basais
  • Cortisol plasmático (entre as 8.00 – 9.00 horas): < 10 µg/dL
  • 17OH-progesterona, Δ4-androstenediona, testosterona, 17OH-pregnenolona, DHEA, DHEA-S, desoxicortisol: normais
  • ACTH ↑ na insuficiência primária; ACTH normal, ou pouco elevada para os níveis de cortisol plasmático na insuficiência secundária
  • PRA ou renina activa normal ou ↑
Testes dinâmicos
  • Prova de estimulação pela ACTH (Synacthen®) por via endovenosa:
    • Cortisol aos 60 minutos depois da administração de ACTH: < 18 µg/dL ou inferior a 2 vezes o valor basal
    • Aldosterona aos 60 minutos depois da administração de ACTH: < 80 ng/dL ou inferior a 3 vezes o valor basal
  • Prova de estimulação pelo glucagom ou pela hipoglicémia insulínica para avaliação da reserva funcional da suprarrenal:
    • < 18 µg/dL ou subida < 8 µg/dL em relação ao valor basal

Nota: Estas provas permitem determinar também a resposta da hormona de crescimento (GH), importante no hipopituitarismo.

FORMAS CLÍNICAS

1. Insuficiência suprarrenal primária

Doença de Addison

É o paradigma da insuficiência suprarrenal primária descrita acima. Muitas vezes idiopática, deve-se à destruição progressiva do córtex suprarrenal por mecanismo autoimune, infeccioso, infiltrativo, hemorrágico ou traumático. Associa-se à presença de autoanticorpos e, por vezes, a doença de outros órgãos no quadro das várias síndromas poliglandulares autoimunes.

A história natural desta afecção é muito lenta, sendo diagnosticada após anos de evolução, uma vez que os sintomas são muito inespecíficos.

Nos doentes com doenças autoimunes a pesquisa de autoanticorpos em presença de sinais mínimos de insuficiência suprarrenal (por exemplo, hipoglicémias graves ou frequentes em doentes com diabetes mellitus tipo 1) ou nas famílias com casos de síndromas poliglandulares autoimunes, o rastreio sistemático da presença poderá permitir o diagnóstico em fase inicial, ou mesmo subclinical, da doença. (Quadro 1)

Síndroma poliglandular autoimune de tipo I (APECED)

O seu acrónimo tem como significado a associação de candidíase mucocutânea crónica, poliendocrinopatia (hipoparatiroidismo e insuficiência suprarrenal) e distrofia ectodérmica (Autoimmune PolyEndocrinopathy, Candidiasis, Ectodermal Dystrophy). É uma doença esporádica, por vezes familiar, com uma incidência variável. Associa-se a mutação do gene AIRE, localizado no cromossoma 21q22.3.

As manifestações clínicas são múltiplas, surgindo ao longo da vida do doente; quanto mais precoce é a primeira manifestação, tanto mais componentes irão, provavelmente, aparecer.

São manifestações major as seguintes: candidíase mucocutânea crónica, hipoparatiroidismo, insuficiência suprarrenal; como manifestações minor citam-se: hipogonadismo hipergonadotrófico, doença auto-imune da tiroideia, diabetes mellitus tipo 1, hipofisite.

Outras manifestações incluem: alopécia, vitíligo, ceratopatia, anemia perniciosa, gastrite atrófica, má-absorção e/ou esteatorreia, hepatite crónica activa, colelitíase, vasculite, asplenia, distrofia ectodérmica e síndroma de Sjögren*

*A síndroma de Sjögren constitui um problema inflamatório crónico autoimune em que se verifica infiltração progressiva de linfócitos e plasmócitos nas glândulas salivares, lacrimais e parótida. Daí os sintomas oculares (boca e olhos “secos” /xeroftalmia, xerostomia), e parotídeos.

A primeira manifestação clínica da doença é, em geral, a candidíase que aparece, habitualmente, durante o primeiro ano de vida. Trata-se de lesões da mucosa oral por Candida albicans, os vulgares “sapinhos” dos lactentes, que se tornam crónicas ou recorrentes; pode também existir candidíase cutânea, ungueal ou vulvovaginal. Em 3/4 dos casos, a primeira doença endócrina é o hipoparatiroidismo, a que se segue a insuficiência suprarrenal; inicialmente a tetania por hipocalcémia poderá só ocorrer em jejum, ou ser tão vaga que o doente parece ser só “desajeitado”. O hipogonadismo é mais frequente no sexo feminino (60%). A distrofia ectodérmica traduz-se por hipoplasia do esmalte dentário, perfurações punctiformes das unhas e atrofia da membrana do tímpano. (Figura 1)

FIGURA 1. Síndroma poliglandular auto-imune do tipo I. Hipoplasia do esmalte dentário e pigmentação da mucosa bucal.

Síndroma poliglandular auto-imune de tipo II

É mais frequente que a síndroma de tipo I descrita. Em 50% dos casos trata-se de uma situação familiar (autossómica dominante com penetrância incompleta), sendo mais frequente no sexo feminino. Está associada a determinados fenótipos do complexo major de histocompatibilidade (HLA).

Caracteriza-se pela associação de doença de Addison ou evidência serológica de anticorpos anti-suprarrenal, doença autoimune da tiroideia (em geral hipotiroidismo nas crianças), diabetes mellitus do tipo 1 e outras doenças auto-imunes como vitíligo, gastrite atrófica e doença celíaca.

Adrenoleucodistrofia
Definição e importância do problema

É uma doença metabólica, recessiva ligada ao cromossoma X (Xq28) causada pela mutação do gene ABCD1 que codifica a proteína ALDP ou ABCD1, uma proteína da membrana do peroxissoma pertencente à superfamília de transportadores ATP-binding cassette e que promove o transporte dos ácidos gordos de cadeia muito longa (AGCML) do citosol para o interior do peroxissoma.

Etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

Caracteriza-se bioquimicamente pela acumulação de ácidos gordos de cadeia média e longa (AGCML) nos tecidos levando a lesão desmielinizante da substância branca do sistema nervoso central e periférico e lesão do córtex suprarrenal. Desconhecem-se actualmente os mecanismos fisiopatológicos que ligam o excesso de AGCML à degenerescência axonal e à inflamação e desmielinização.

A sua incidência é de 1/17.000 recém-nascidos e a sua prevalência 1/20.000 a 1/50.000 indivíduos; trata-se da doença peroxissomal mais frequente.

Formas clínicas

Existem duas formas fenotípicas principais da doença: a adrenoleucodistrofia cerebral e a adrenomieloneuropatia, não existindo qualquer correlação genótipo/fenótipo.
A adrenomieloneuropatia é a forma mais frequente. Manifesta-se, em geral, na idade adulta, envolve predominantemente a medula e nervos periféricos e a sua progressão é lenta. No entanto, cerca de 20% dos doentes do sexo masculino acabam por desenvolver a forma cerebral da doença.
A adrenoleucodistrofia cerebral tem início na criança (sempre depois dos 2,5 anos), adolescente ou mesmo, no adulto. Inicialmente existe uma fase de desmielinizante lenta que é clinicamente assintomática ou apenas se traduz por ligeiras alterações cognitivas. Depois, e de forma imprevisível, inicia-se uma fase inflamatória intensa com desmielinização rápida e progressiva afectando primariamente os hemisférios cerebrais; quanto mais precoce o início desta fase, tanto mais rápida a progressão da doença, a qual se torna rapidamente progressiva e devastadora. Clinicamente traduz-se por perturbações do comportamento, insucesso escolar, disartria, cegueira, surdez e demência progressiva, até à morte, 2 a 5 anos depois. A realização de RM cranioencefálicas semestrais nas crianças entre os 3-12 anos permite detectar as alterações características da substância branca cerca de 6 meses antes da disfunção cognitiva. Cerca de 10% dos doentes com adrenoleucodistrofia cerebral não chegam a desenvolver a fase aguda da doença.
A insuficiência suprarrenal ocorre em cerca de 2/3 dos doentes do sexo masculino afectados. Os sintomas da insuficiência suprarrenal podem, em especial quando se iniciam antes dos 15 anos, preceder os sintomas neurológicos, podendo, também, coexistir ou desenvolver-se após a disfunção neurológica. Por outro lado, a insuficiência suprarrenal pode ser assintomática, diagnosticada por doseamentos hormonais. O défice da linha mineralocorticóide acaba por ocorrrer ao longo da vida em 50% dos doentes.
A partir da adolescência pode existir cabelo fino e esparso e, nos homens adultos, insuficiência testicular.
Cerca de 65% das mulheres portadores podem vir a apresentar sintomas neurológicos que são menos graves tais como paraparésia espástica.
Na mesma família podem coexistir formas diferentes da doença; podendo existir formas assintomáticas, é importante proceder ao rastreio de toda a família quando se diagnostica um caso index.

Diagnóstico

O diagnóstico faz-se através do doseamento dos ácidos gordos de cadeia muito longa no sangue periférico; nos heterozigóticos poderão ser obtidos resultados falsamente negativos.
A confirmação do diagnóstico pode ser feita por estudo molecular para identificação da mutação do gene; há mais de 1500 mutações diferentes identificadas, 8 delas em famílias portuguesas.
O estudo por imagem (RM cranioencefálica semestral) permite avaliar e seguir ao longo do tempo as alterações da substância branca determinando a indicação do transplante. (ver adiante)
O diagnóstico pré-natal pode ser feito pela pesquisa de mutação.

Tratamento

A única medida com resultados positivos na progressão da desmielinização se realizada precocemente é o transplante de células estaminais hematopoiéticas. Estão também descritos 2 casos de terapêutica génica utilizando como vector um vírus lento com resultados sobreponíveis ao transplante.

Hipoplasia congénita da suprarrenal

A hipoplasia congénita da suprarrenal é clinicamente muito semelhante à hiperplasia congénita da suprarrenal: má progressão ponderal, perda de sal e convulsões causadas por hipoglicémia. Distinguem-se quatro formas: esporádica, miniatura, citomegálica e citomegálica associada a deleção de genes contíguos.
A chamada hipoplasia citomegálica é uma doença recessiva ligada ao cromossoma X. O gene (DAX-1), cuja mutação provoca a doença, tem uma localização próxima dos genes que codificam o défice de glicerolcinase e a distrofia muscular de Duchenne, pelo que estas patologias podem associar-se à hipoplasia citomegálica.
A insuficiência suprarrenal inicia-se, em geral, nas primeiras semanas de vida, com má progressão ponderal e perda de sal; pode ocorrer deterioração súbita e rápida da função suprarrenal, pondo em risco a vida do lactente se a perda de sal não for reconhecida. Acompanha-se de hipogonadismo hipogonadotrófico, traduzido clinicamente por criptorquidia e atraso pubertário.
A forma com deleção de genes contíguos tem pior prognóstico que a forma associada a deleção do gene DAX-1.
A hipoplasia miniatura é uma doença recessiva que se acompanha, por vezes, de puberdade precoce.

Doença de Wolman

É uma doença metabólica recessiva do metabolismo do colesterol que se deve ao défice da lipase ácida lisossómica, enzima que permite a formação de colesterol livre utilizável pelas células do organismo. É progressiva e fatal. A sintomatologia inicia-se na infância e traduz-se por sintomas de perda de sal, de défice glucocorticóide, esteatorreia e hepatosplenomegália.

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz

Trata-se duma afecção transmitida de modo autossómico recessivo causada pela mutação do gene da enzima 7-dehidrocolesterol redutase, localizado no cromossoma 11q13.4; esta proteína cataboliza o passo final da síntese de colesterol levando à acumulação de 7-dehidrocolesterol e diminuição dos níveis séricos de colesterol. As manifestações fenotípicas podem ter gravidade variável. Os sinais físicos da doença relacionam-se com o grau das alterações bioquímicas; de salientar que as alterações do comportamento podem ocorrer em doentes com dismorfias discretas.
Como manifestações clínicas há a salientar: atraso do desenvolvimento psicomotor, alterações do comportamento e cognitivas, microcefalia, fácies característica com aspecto “em pera” (andar superior < andar inferior da face), fenda palatina, sindactilia em Y do 2º e 3º dedos dos pés, polegares de implantação externa, cardiopatia congénita, defeitos congénitos gastrintestinais e renais, masculinização variável do doente do sexo masculino (desde genitais externos normais, micropénis, hipospadia e criptorquidia até fenótipo feminino, neste último caso em 25% dos pacientes) e fotossensibilidade.

Nos casos mais graves pode existir insuficiência suprarrenal.

Hipoaldosteronismo

Existem dois tipos de défice exclusivo da linha mineralocorticóide: a) por défice enzimático de corticosteronametiloxidase II que leva a incapacidade de síntese de aldosterona e, consequentemente, com aldosterona baixa e aumento da PRA; b) por alteração do receptor da aldosterona (pseudo-hipoaldosteronismo) que cursa com valores elevados de aldosterona. Ambos se traduzem clinicamente por perda de sal.

Resistência familiar à ACTH ou défice familiar de glucocorticóides

Os sinais e sintomas aparecem precocemente e caracterizam-se por episódios recorrentes de convulsões e hipoglicémia acompanhados por hiperpigmentação exuberante. Existem duas formas: a) défice isolado; b) défice associado a outras manifestações da síndroma de Allgrove (o qual é abordado a seguir).

Síndroma de Allgrove ou Síndroma dos 3/4A

É uma doença recessiva causada pela mutação de um gene localizado no cromossoma 12. É caracterizada pela associação: insuficiência suprarrenal, acalasia, alacrimia e alterações neurológicas, em especial do sistema nervoso autónomo [Adrenalcortical insufficiency associated with Achalasia, Alacrima (3A), Autonomic and other neurologic abnormalities (4A)].

Há grande variabilidade na idade e na forma de apresentação. A insuficiência suprarrenal é progressiva e deve-se à insensibilidade à ACTH; traduz-se por perda de sal, hipoglicémia e convulsões. As manifestações neurológicas são habitualmente precoces e traduzem-se por hiperreflexia, diminuição da força muscular, disartria, ataxia, défice de inteligência, diminuição da variabilidade cardíaca, hipotensão postural, diminuição do diâmetro e da velocidade de constrição pupilar, e diminuição da velocidade de condução nervosa. Os doentes apresentam fácies característica, hiperqueratose e também cicatrização difícil.

2. Insuficiência suprarrenal secundária

A insuficiência suprarrenal secundária, mais frequente que a primária, é geralmente iatrogénica e causada por tratamento com corticóides. Está descrita supressão do eixo-hipotálamo-hipófise-suprarrenal, quer com a administração por via sistémica, quer por via cutânea ou inalatória, (por exemplo com fluticasona ou budesonido, utilizados no tratamento preventivo da asma, mesmo com pequenas doses) não implicando também administrações muito prolongadas (2 semanas ou menos, de tratamento sistémico, por exemplo).
Se a causa não for iatrogénica, a insuficiência suprarrenal associa-se geralmente a outros défices hipofisários nomeadamente hormona de crescimento (GH) e TSH. Em tal circunstância a insuficiência é, em geral moderada, afectando apenas a linha glucocorticóide; por vezes, só é demonstrável pela prova de estimulação da suprarrenal.
Os achados laboratoriais são semelhantes aos descritos para a insuficiência primária, não existindo alteração da PRA/renina activa, pois a linha mineralocorticóide não se encontra afectada. No entanto, poderá existir hiponatrémia causada por secreção inapropriada de hormona antidiurética associada ao défice de cortisol.
A terapêutica de substituição e da crise aguda é igual à anteriormente pormenorizada para os casos de formas clássicas de hiperplasia congénita da suprarrenal, exceptuando no que respeita à distribuição das doses de hidrocortisona (a dose maior deve ser administrada de manhã, a fim de imitar o ciclo de cortisol).
Nos casos de insuficiência suprarrenal secundária, a dose a administrar poderá ser menor que nas formas primárias. No entanto, em caso de estresse agudo, a dose preconizada é 40-60 mg/m2, não sendo suficiente duplicar ou triplicar a dose habitual. A adequação da terapêutica baseia-se em dados clínicos – melhoria da astenia, cansaço fácil, falta de forças, sensação de bem-estar – e não em doseamentos laboratoriais.
A educação do doente/família é fundamental a fim de evitar as descompensações agudas que podem ser muito graves ou mesmo fatais. Assim, quem presta os cuidados, deve ter instruções formais, por escrito das situações de estresse (febre alta > 38°C, vómitos, diarreia, letargia, intervenção cirúrgica, traumatismos, tratamentos dentários, etc.) em que a dose de hidrocortisona deve ser aumentada; esta dose deve ser actualizada pelo menos uma vez por ano. A criança deve ser sempre portadora de cartão de alerta médico descrevendo a sua situação clínica, a terapêutica realizada habitualmente e a dose prescrita para situações de estresse.

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HIPERPLASIA GONGÉNITA DA SUPRARRENAL

Etiopatogénese e generalidades

A hiperplasia congénita da suprarrenal (HCSR) é uma expressão que engloba um grupo de doenças autossómicas recessivas, causadas por défices enzimáticos da via de síntese de esteróides ou, muito raramente, por défice da proteína P450 oxirredutase (POR) interveniente em vários passos da síntese metabólica envolvendo transferência de electrões para o citocrómio P450 microssomal. (Figura 1 do capítulo anterior)

A perda do retrocontrolo negativo do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal e o défice de cortisol levam à secreção aumentada e estimulação permanente da ACTH, com consequente hiperplasia do córtex da SR e hiperprodução de metabolitos intermediários.

O défice mais frequente é o défice em 21-hidroxilase (destacada neste capítulo), responsável por 90 a 95% dos casos; todas as outras formas de hiperplasia são relativamente raras. Assim, é dada ênfase a esta forma, apresentando-se no Quadro 1 e de forma resumida, as principais características clínicas e laboratoriais de outros défices enzimáticos.

HCSR por DÉFICE de 21-HIDROXILASE

Etiopatogénese e epidemiologia

A incidência desta doença é variável consoante a população estudada: 1/280 no Alasca e 1/23.000 em França; considerando apenas as formas graves do recém-nascido e criança obtém-se valor de 1/14.000; incluindo as formas de apresentação tardia a taxa será ~1/1.000 nos indivíduos em geral e 1/27 nos judeus Ashkenazi.

Nos países da Europa e nos EUA, com programas de diagnóstico precoce, é possível identificar formas graves e algumas das formas mais ligeiras, sendo a respectiva incidência, também variável, oscilando entre 1/15 e 1/16.000.

Os 2 genes (CYP21P e CYP21) que codificam a 21-hidroxilase estão localizados no braço curto do cromossoma 6, muito perto dos locus dos HLA e C4; só um dos genes é activo, sendo o outro um pseudogene; a maioria dos doentes corresponde a duplos heterozigotos, tendo herdado duas mutações diferentes, sendo a gravidade do quadro clínico determinada pela mutação mais suave. A grande variedade de mutações associadas, determinando graus muito variáveis de função enzimática, origina formas clínicas de gravidade variável.

QUADRO 1 – Formas de hiperplasia congénita da suprarrenal**

Δ4A: Δ4-androstenediona; DHEA: de-hidroepiandrosterona; DHEA-S: sulfato de de-hidroepiandrosterona; DOC: desoxicorticosterona; F: feminino; HTA: hipertensão arterial; M:masculino PRA: actividade da renina plasmática; T: testosterona; PA: pressão arterial; * StAR é a designação da proteína de regulação aguda da esteroidogénese (Steroidogenesis Acute Regulatory protein), essencial para o transporte de colesterol do citoplasma da célula do córtex suprarrenal para a mitocôndria onde ocorrem alguns dos passos da síntese hormonal; ** Excluindo o défice de 21-hidroxilase, abordado no texto.
DéficeSíndroma (Frequência)Ambiguidade genitalVirilização pós-natal
Puberdade
Metabolismo
do sal
Crise aguda PAEsteróides ↑ ≠Esteróides ↓Localização do gene

Proteína P450
(oxirredutase (POR))

Fenótipo variável
por vezes associada a malformações semelhantes ao S. Antley-Bixler
Sim F e MNãoNãoNão17-OH-progesteronaDHEA, D4A e T7q
Proteína StAR*Hiperplasia lipóide (Rara)Marcada no sexo MNão
Ausência de puberdade no sexo F
Perda de sal de aparecimento tardio
↑ PRA
Frequente
PA ↓
NenhumTodos8p
3β OH
– Esteróide (Rara) desidrogenase
Clássica (Rara)Marcada no sexo M
Moderada no sexo F
Sim
Alterações da
puberdade
Perda de sal
­ ↑ PRA
Presente
PA ↓
DHEA, DHEA-S, 17OH – pregnenolonaAldosterona, T, cortisol1p
Não clássica (Frequente)NãoSim
Alterações da puberdade
NormalAusente
PA normal
DHEA, DHEA-S, 17OH – pregnenolona….?
17α – Hidroxilase(Rara)Sexo MNão
Ausência da
puberdade
no sexo F
↑ PRAAusente
HTA
DOC, corticosteronaCortisol, T,
DHEA, Δ4A,
17OHP, 17OH – pregnenolona
10q
11β – HidroxilaseClássica
(1 / 100.000)
Sexo FSim ↑ PRARara
HTA
11 – desoxicortisol
DOC, T, Δ4A
Cortisol± aldosterona 8q
Não clássica
(Frequente?)
Sexo FSim
Alterações da
puberdade
NormalAusente
PA normal
11 – desoxicortisol ±
DOC, T, Δ4A
 8q
Corticosterona
metiloxidase II
Perda de sal
(Rara)
NãoNãoPerda de salSó perda de sal18OH – corticosteronaAldosterona8q

FIGURA 1. Ambiguidade genital no contexto de HCSR

A actividade das suprarrenais inicia-se na vida intrauterina. Após o nascimento, a produção de cortisol e de aldosterona passa a ser de primordial importância para a sobrevivência.

Habitualmente, considera-se existirem duas formas de apresentação clínica e gravidade diferentes – a forma clássica virilizante com ou sem perda de sal, e a forma não clássica sem perda de sal; no entanto, esta classificação é artificial e arbitrária, considerando-se que existe um espectro contínuo de formas clínicas desde muito graves até assintomáticas.

1. Forma clássica virilizante, com ou sem perda de sal
Manifestações clínicas

Durante a gestação, a produção deficiente de cortisol e aldosterona não produz sintomas, mas a hiperestimulação mantida pela ACTH com produção excessiva de androgénios leva a virilização que pode ter graus variáveis: no sexo feminino poderá chegar à ambiguidade genital completa (genitais externos com aspecto “de rapaz” mas com criptorquidia bilateral e hipospadia); no sexo masculino poderá manifestar-se como macrogenitossomia e escroto hiperpigmentado, não chamando geralmente a atenção.

A Figura 1 mostra uma imagem de ambiguidade genital em criança de quatro anos.

No sexo masculino, a virilização poderá somente ser detectada mais tarde, geralmente entre os 3 e os 7 anos, por aceleração do crescimento e maturação óssea desencadeada pelos níveis elevados de androgénios suprarrenais (puberdade precoce periférica ou pseudopuberdade precoce). Tal situação pode mesmo desencadear uma puberdade precoce central após o início da terâpeutica. Em 75% dos casos de virilização existe perda concomitante de sal.

Os sintomas de insuficiência suprarrenal instalam-se lentamente durante as primeiras semanas de vida com má progressão ponderal, recusa alimentar, mau estado geral, desnutrição, vómitos, obstipação; os sintomas podem ainda instalar-se de forma aguda, gravíssima, com letargia, choro fraco, prostração, vómitos, diarreia, desidratação, hipotensão, acompanhados de hiponatrémia, hipercaliémia, hipoglicémia e acidose metabólica. Este quadro, se não for diagnosticado e tratado rapida e correctamente, pode mesmo conduzir ao colapso cardiocirculatório e morte. Esta é a forma de apresentação mais frequente no sexo masculino.

O diagnóstico diferencial da crise aguda de perda de sal faz-se com sépsis, gastrenterite e, sobretudo, com a estenose hipertrófica do piloro cujas manifestações clínicas são semelhantes. No entanto, nesta última situação surge hiponatrémia, hipocaliémia e alcalose metabólica.

Nas formas com virilização tardia, o exame objectivo mostra: estatura elevada com aceleração da velocidade de crescimento (haverá que comparar com a curva de crescimento da criança, se existirem dados anteriores), pilosidade púbica e/ou axilar (que se quantifica pelos estádios de Tanner), sudação com odor, e acne; no sexo masculino: pénis bem desenvolvido, testículos pequenos; no sexo feminino: clitoromegália e ausência de botão mamário. A presença de botão mamário e o aumento do volume testicular farão suspeitar puberdade precoce central desencadeada pelo avanço da idade óssea associado à hiperplasia congénita da suprarrenal. A hiperpigmentação é habitualmente mais marcada nas palmas das mãos, pregas de flexão, cicatrizes, mucosa oral, mamilos, escroto e grandes lábios.

Exames complementares

Os exames complementares de diagnóstico que apoiam a suspeita clínica de crise aguda com perda de sal são:

  • Ionograma plasmático: [diminuição de Na+], [elevação do K+];
  • pH e gases: acidose metabólica;
  • Glicémia: < 40 mg/dL;
  • Ureia: elevada;
  • Aumento dos níveis séricos de 17OH-progesterona, D4-androstenediona, testosterona, da actividade de renina plasmática (PRA) ou renina activa.

Nas formas graves os doseamentos basais são geralmente suficientes e os únicos que é possível obter face à emergência clínica do tratamento.

Para confirmação de forma virilizante não completamente esclarecida, pode ser necessário proceder à prova de estimulação com ACTH (Synacthen®) e determinação de 17OH-progesterona, D4-androstenediona, testosterona, DHEA, e 3-beta-desoxicortisol basais e 60 minutos após administração.

Os níveis séricos dos vários metabolitos variam de acordo com a idade e sexo da criança e, também, com os valores de referência de cada laboratório; por isso, devem utilizar-se para a interpretação dos resultados as tabelas locais de referência. A colheita de sangue para estes doseamentos deve ser efectuada entre as 8 e as 9 horas para evitar resultados falsamente negativos causados pela variação circadiana dos seus níveis plasmáticos.

Tratamento
1. De substituição

Glucocorticóide
O tratamento é, ainda hoje, uma das áreas que suscita mais discussão; tem por objectivo a administração de corticóide suficiente para frenar a produção de androgénios sem, no entanto, afectar o crescimento. Deve, assim, ser ajustada ao doente e alterada ao longo do tempo, de acordo com os dados clínicos (velocidade de crescimento, hiperpigmentação, pilosidade, genitais externos) e os níveis séricos dos metabolitos. Esta avaliação regular deverá ser trimestral nos 2 primeiros anos de vida podendo, depois, passar a semestral até à puberdade, altura em que os ajustamentos deverão voltar a ser trimestrais.

Nas crianças utiliza-se: hidrocortisona per os em doses de 10-15 mg/m2/dia dividida em 3 tomas, de preferência; nos recém-nascidos e lactentes administra-se 1,5 mg, 3 vezes por dia (papéis manipulados na farmácia).

Nas idades pós-fase de crescimento poder-se-á passar a dexametasona: 0,25-0,5 mg per os, à noite.

Mineralocorticóide

  • 9 alfa-fludrocortisona:
  • 50-300 µg/dia, per os, em 2 tomas nos lactentes;
  • 50-200 µg/dia, per os, em 2 tomas nas crianças.

NaCl: 1-3 g/dia per os nos lactentes

As crianças maiores não necessitam de doses tão elevadas de mineralocorticóides; após o período de lactente, os alimentos que as crianças recebem contêm maiores concentrações de sal e as mesmas desenvolvem também apetência por sal, pelo que não é necessário administrar já NaCl suplementar.

2. Em situações de estresse agudo

Os doentes com hiperplasia congénita da suprarrenal deverão ter sempre consigo uma informação acerca da sua situação clínica, terapêutica actualizada e indicações em caso de estresse.

A família deverá ser informada que em situações de estresse agudo (como febre alta > 38,5ºC, vómitos, diarreia, administração de vacinas nos lactentes), deverá duplicar-se ou triplicar-se a dose habitual de hidrocortisona, de acordo com a gravidade do caso. Este tratamento deverá ser mantido pelo menos durante 24 horas; os pais devem também estar instruídos sobre a importância de administrar à criança líquidos/alimentos açucarados em quantidade suficiente para evitar a hipoglicémia que pode acompanhar estas situações, em particular nos lactentes e crianças mais jovens.

Se a criança vomitar imediatamente após a administração da terapêutica, dever-se-á repetir a dose algum tempo depois; se não tolerar a terapêutica por via oral, deverá ser rapidamente encaminhada a um serviço de urgência.

3. Da crise aguda de perda de sal

Deverá ser instituída terapêutica com fluidos por via endovenosa. Deverá ser instituída imediatamente terapêutica com hidrocortisona em bólus IM ou IV (o que for mais fácil e rápido): < 1 ano ” 25 mg; 1-5 anos ” 50 mg; > 5 anos ” 100 mg mantendo-se depois estas doses IV de 6/6 horas até reversão do quadro clínico, continuando terapêutica com fluidos IV.

Dever-se-á colher sangue para a determinação de glicémia, ionograma, pH e gases.

Se existir choque: NaCl a 0,9% a administrar ao ritmo de 20 ml/kg/h.

Se ausência de choque: NaCl a 0,9% em dextrose a 5% a administrar de acordo com os cálculos para a manutenção + perdas calculadas.

Não é necessário administrar mineralocorticóides, pois as doses altas de hidrocortisona asseguram estas necessidades.

Há que manter a hidratação endovenosa enquanto necessário. Introduzir líquidos per os logo que possível. Passar a terapêutica oral com hidrocortisona em dose tripla e fludrocortisona o mais brevemente possível; manter estas doses altas enquanto se mantiver o estresse agudo.

4. Da ambiguidade sexual

A atitude de proceder à intervenção cirúrgica para correção do defeito, respeitando os princípios éticos e a opinião esclarecida dos pais/família, deverá ser realizada por cirurgião pediátrico e equipa cirúrgica com experiência nestas situações. Habitualmente opta-se pela feminização.

2. Forma não clássica sem perda de sal
Manifestações clínicas

Esta forma de apresentação corresponde, em geral, a formas menos graves de défice enzimático. A hiperestimulação da glândula pela ACTH permite manter níveis plasmáticos normais de cortisol, à custa do aumento dos níveis plasmáticos dos precursores.

Manifesta-se tardiamente por pubarca precoce (aparecimento de pilosidade púbica e/ou axilar antes dos 8 anos no sexo feminino e 9 anos no sexo masculino), virilização, hirsutismo peripubertário, acne quística, amenorreia ou alterações menstruais, e infertilidade na mulher adulta; pode mesmo não haver quaisquer sintomas, sendo esta forma clínica diagnosticada por investigação da família no âmbito do diagnóstico de um caso índice.

Esta forma não se acompanha de perda de sal clinicamente significativa.

Exames complementares
  • Radiografia da mão e punho esquerdos para avaliação da idade óssea:
  • Idade óssea avançada em relação à idade cronológica
  • Análises de sangue:
  • Ionograma normal
  • Níveis plasmáticos basais de 17OH-progesterona elevados. No sexo feminino e após a menarca, este doseamento deve ser realizado durante a fase folicular do ciclo
  • Testosterona, D4-androstenediona, DHEA e DHEA-S: valores variáveis e sobreponíveis a outras situações
  • PRA ou renina activa normais ou ligeiramente aumentadas
  • Prova de estimulação com ACTH* (Synacthen®) se os valores basais dos parâmetros hormonais atrás referidos não forem conclusivos
*Recorda-se a prova de ACTH sintética: medição do incremento do cortisol plasmático 30 minutos e 60 minutos após injecção IM de 0,25 mg de β1-24-corticotrofina.
Tratamento

Têm indicação para tratamento os casos em que existe: avanço da idade óssea com prognóstico estatural inferior à altura alvo da família; hirsutismo importante; acne grave; alterações menstruais; massas testiculares.

A terapêutica é semelhante à descrita atrás: hidrocortisona per os em doses de 10-15 mg/m2/dia, dividida em 3 tomas. Não é necessário habitualmente proceder a substituição mineralocorticóide.

Nos doentes em tratamento e em situação de estresse agudo dever-se-á também duplicar ou triplicar as doses.

Os casos assintomáticos, sem indicação para terapêutica continuada com hidrocortisona, deverão também ser submetidos a terapêutica em caso de estresse (40-60 mg/m2/dia) se a resposta do cortisol na prova de Synacthen for inferior a 18 ug/dl.

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DOENÇAS DA SUPRARRENAL – GENERALIDADES

Fisiologia do córtex suprarrenal

A suprarrenal é constituída por dois tecidos endócrinos distintos: o córtex e a medula.

O córtex da suprarrenal (SR) integra 3 zonas: externa (glomerular), intermédia (fasciculada), e interna (reticular). A zona glomerular sintetiza aldosterona, mineralocorticóide da espécie humana; a fasciculada sintetiza o cortisol, o mais potente glucocorticóide natural; e a reticular, os androgénios suprarrenais.

Sob o ponto de vista genético, para o desenvolvimento da SR são cruciais dois factores de transcrição esteroidogénicos (SF-1/NR5A1 no cromossoma 9q33, e DAX1/NEOB1 no cromossoma X).

A síntese de glucocorticóides, mineralocorticóides e androgénios verifica-se a partir do colesterol através de uma via metabólica complexa (Figura 1). A existência de bloqueios enzimáticos condiciona, não só a não produção das hormonas respectivas, como também a acumulação de metabolitos e a produção excessiva de outros metabolitos.

A síntese de cortisol é estimulada pela ACTH hipofisária, que tem também acção estimulante do melanócito. A ACTH é, por sua vez, influenciada pela CRH (corticotropin releasing hormone) hipotalâmica. O cortisol produzido irá depois inibir a produção de ACTH e CRH (Figura 2); os níveis de cortisol têm uma variação circadiana, com níveis máximos de manhã e mínimos durante a noite.

O cortisol actua em todo o organismo, permitindo a sobrevivência em caso de estresse; tem também uma acção anti-inflamatória e sobre o metabolismo intermediário com aumento da lipólise a nível do tecido adiposo, da proteólise muscular, e da neoglucogénese hepática levando a elevação da glicémia.

A aldosterona actua no rim promovendo a reabsorção de sódio e a excreção de potássio na urina. A produção de aldosterona é influenciada pelo sistema renina/angiotensina, pela concentração circulante de potássio, e pela ACTH. (Figura 3)

FIGURA 1. Síntese de glucocorticóides, mineralocorticóides, androgénios e estrogénios

FIGURA 2. Mecanismo de controlo da síntese de glucocorticóides

FIGURA 3. Mecanismo de regulação hidroelectrolítica e do metabolismo da aldosterona

Os androgénios suprarrenais têm uma acção que pode ser importante em ambos os sexos nos períodos fetal, neonatal, e na criança antes da puberdade; são também importantes no sexo feminino durante e após a puberdade em associação aos androgénios de origem ovárica. No sexo masculino, a partir da puberdade a acção dos androgénios suprarrenais é diminuta devido à preponderância da testosterona produzida pelo testículo. Os androgénios suprarrenais começam a ser produzidos entre os 6-8 anos nas raparigas, e entre os 7-9 anos nos rapazes. Estes períodos correspondem à chamada pubarca, em que se verifica aparecimento de pilosidade pública e/ou axilar. Esta deve-se à maturação da zona mais interna do córtex suprarrenal, a zona reticular, passando esta a produzir DHEA e o DHEA-S em resposta à ACTH. A produção de androgénios pelo ovário aumenta durante a puberdade. Os androgénios são necessários para a diferenciação do folículo piloso pré-pubertário em folículo piloso terminal e folículo sebáceo (unidade pilo-sebácea) nas áreas cutâneas sensíveis aos androgénios.

Os sinais e sintomas das doenças da suprarrenal devem-se à carência ou excesso das hormonas afectadas, o que poderá levar ao desenvolvimento precoce dos caracteres sexuais secundários. Alguns sintomas de doença suprarrenal podem estar associados a doença de outros órgãos, nomeadamente o ovário. Assim, as alterações da função suprarrenal podem causar um grande número de situações patológicas, com clínica, diagnóstico e terapêutica muito variados.

Fisiologia da medula SR

As principais hormonas segregadas pela medula SR são as catecolaminas fisiologicamente activas: dopamina, norepinefrina, e epinefrina. A síntese de catecolaminas também ocorre no cérebro, nas terminações dos nervos simpáticos e no tecido cromafim, extramedula SR.

Os metabólitos das catecolaminas são excretados na urina, destacando-se o ácido vanilmandélico (VMA ou ácido 3-metoxi-4-hidroximandélico).

Os efeitos das catecolaminas são mediados através de receptores adrenérgicos incorporando a chamadas proteínas G. Quer a epinefrina, quer a norepinefrina elevam a pressão arterial, mas somente a epinefrina aumenta o débito cardíaco. Relativamente ao efeito hiperglicémico, o mesmo é mais pronunciado no caso da epinefrina.

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ALTERAÇÕES DO CONTEÚDO ESCROTAL

Sistematização

O Quadro 1 sistematiza as principais situações clínicas relacionadas com alterações do conteúdo escrotal. A hérnia inguinoscrotal é abordada noutro capítulo.

QUADRO 1. Alterações do conteúdo escrotal

    • Testículo ectópico (localização anormal ou não descido)
    • Tumefacção do escroto e “escroto agudo”
    • Hérnia inguinoscrotal
    • Varicocele
    • Hidrocele
    • Quisto do cordão
    • Espermatocele
    • Tumor testicular

1. TESTÍCULO ECTÓPICO

Definições

Testículo ectópico (ou distopia testicular) significa testículo em situação anormal (ectopia ou distopia: significa situação anormal de um órgão, em geral de origem congénita). Tal situação verifica-se como resultado de os testículos não ocuparem a sua posição normal intraescrotal.

O âmbito da distopia abrange diversas modalidades em função da etiopatogénese:

1 – Criptorquidia que corresponde à situação de testículo não descido (que não pode ser manipulado para a bolsa escrotal, encontrando-se localizado em algum ponto do seu trajecto normal de descida); pode estar localizado no interior da cavidade abdominal, ou no canal inguinal (na maioria das vezes). Com uma incidência de cerca de 2% a 6% nos recém-nascidos de termo e cerca de 30% nos pré-termo, a criptorquidia é unilateral em 80-90% dos casos. Pode estar associada a anomalias diversas.

2 – Testículo ectópico propriamente dito (raro) que corresponde à situação de testículo fora do trajecto normal de descida, geralmente na coxa ou no períneo, região suprapúbica ou bolsa escrotal contralateral. Também unilateral em 80-90% dos casos.

3 – Testículo retráctil que corresponde à chamada situação de testículo “em ascensor”; há mobilidade do testículo no trajecto do canal inguinal, entre a bolsa escrotal e o anel inguinal superficial. Uma vez “agarrado” pelos dedos do observador é levado facilmente à bolsa escrotal, aí permanecendo sem grande tensão. Na maior parte dos casos é bilateral, explicando-se a “subida como um ascensor” pela hiperactividade do músculo cremasteriano. Esta tendência deixa de ser notória com a idade por diminuição progressiva da hiperreflexia cremasteriana.

Etiopatogénese

A descida normal do testículo processa-se por volta do 7º mês de gestação. A não descida pode explicar-se por diversos factores:

  • Alterações hormonais;
  • Disgenésia do testículo;
  • Anomalia anatómica.

Na primeira fase da descida testicular assumem importância o factor hormonal ILF3 (insulin-like factor 3) e o receptor LGR8 (leucin-rich repeat-containing G protein-coupled receptor 8).

As anomalias genéticas mais frequentemente associadas a criptorquidia são a síndroma de Klinefelter (47XXY ou 46XY / 47XXY) e as mutações no gene do receptor INSL3.

Quanto mais elevada a posição do testículo, maior é a probabilidade de disgenésia (anomalia de diferenciação sexual acompanhada de anomalia congénita) e, portanto, de infertilidade e de ulterior malignização.

Com efeito, como resultado da localização anómala, tornam-se evidentes alterações histológicas durante o segundo ano, as quais se caracterizam por insuficiência na transformação dos gonócitos em espermatogónias diferenciadas, com oligospermia, atrofia das células de Leydig e anomalias nas células de Sertoli. Têm sido descritas anomalias de desenvolvimento das células germinais no testículo contralateral nos casos unilaterais, o que sugere a possibilidade de um defeito de desenvolvimento global ou endócrino; tal é igualmente corroborado pela presença frequente de defeitos do epidídimo.

Quando se verifica criptorquidia isolada na data do nascimento, o testículo pode descer em 1/3 dos casos nos primeiros 6 meses de vida; e, se tal não acontecer até ao final do primeiro ano de vida, já não se verificará o processo de descida. De referir que o testículo pode estar localizado na bolsa na data do nascimento e subir depois.

A não descida do testículo é acompanhada de: hérnia inguinal em 90% dos casos (o que se torna lógico, pois o canal peritoneovaginal só se encerra depois de o testículo chegar ao fundo da bolsa escrotal); e de hipospadia em 10% dos casos.

Complicações

São descritas as seguintes complicações: torção, malignização (na terceira década de vida), atrofia, infertilidade (nos casos bilaterais) e psíquicas (em relação com problemas de estética anatómica).

Diagnóstico

A presença de hidrocele (ver adiante) no recém-nascido e a verificação de testículo retráctil entre os 6 meses e a puberdade, dificultam a identificação da posição do referido testículo.

Para o correcto diagnóstico torna-se importante salientar determinados gestos semiológicos.

A inspecção deve começar pela verificação da simetria das bolsas, bem como dos sulcos cutâneos transversais das mesmas. Quanto mais atrófica e aplanada for a bolsa, com os sulcos quase inexistentes, maior é a probabilidade de se estar em presença de um testículo atrófico intrabdominal, ou mesmo de ausência testicular.

Por outro lado, uma bolsa bem desenvolvida, com sulcos normais coexistindo com não palpação de testículo, deve levar a admitir a hipótese de ter sido habitada por um testículo que, entretanto, desapareceu gradualmente por um mecanismo de torção, com a consequente isquémia e atrofia; é o conceito de testículo evanescente.

A palpação deve ser feita em ambiente calmo, se necessário no banho, com aquecimento prévio das mãos e, na criança mais velha, em posição bípede e com a perna cruzada. Todas estas manobras têm como finalidade atenuar o reflexo cremasteriano e tentar diferenciar testículo não descido verdadeiro de testículo retráctil.

Se o testículo se palpar na região inguinal e não se conseguir colocar na bolsa ou, uma vez colocado nesta, ele subir de imediato, considera-se não descido. Se houver dúvidas deve repetir-se o exame noutra ocasião.

Na hipótese de o testículo não se palpar no canal inguinal, devem ser examinados possíveis locais de ectopia – púbis, coxas ou períneo, etc..

Exames complementares

Os estudos imagiológicos (ecografia) são pouco úteis para o diagnóstico, excepto em crianças obesas com testículos inguinais; são importantes, contudo, para o seguimento pós-operatório (dimensões e estrutura).

A ressonância magnética nuclear com injecção de gadolinium pode ser útil nalguns casos de ausência de identificação testicular quando se procede à exploração cirúrgica.

O método mais eficaz de localização (e tratamento) do testículo não palpável é a laparoscopia.

Tratamento

O tratamento engloba duas modalidades:

Hormonoterapia

Esta modalidade é controversa. A única indicação formal da terapêutica hormonal é a situação de testículo palpável bilateral retráctil alto. Utiliza-se gonadotrofina coriónica humana (HCG) em doses baixas – geralmente 9.000 UI, divididas em 6 doses parciais de 1.500 UI, por via intramuscular (2 vezes por semana, durante 3 semanas). Em doses pequenas os efeitos virilizantes não se verificam ou regridem facilmente.

FIGURA 1. Torção testicular. A – Tumefação e edema do escroto;

FIGURA 1. Torção testicular. B – Aspecto intra-operatório.

Há autores que preconizam HCG em pequenas doses em todos os casos de distopia, precedendo a intervenção cirúrgica no pressuposto de que tal terapêutica facilita a mesma.

Pode utilizar-se igualmente o factor libertador da hormona luteinizante (LHRH) por via intranasal durante 4 semanas.

Intervenção cirúrgica

A idade ideal para a intervenção cirúrgica situa-se entre 1 e 2 anos, consistindo em orquido-pexia. Pode ser feita em regime ambulatório, sendo as complicações raras: atrofia e retracção. Os doentes devem ser seguidos anualmente devido às possíveis complicações, em especial risco de malignização nos testículos disgenésicos na terceira década de vida.

A cirurgia está ainda indicada para tratamento das criptorquidias iatrogénicas, isto é, secundárias herniorrafia inguinal anterior.

2. TUMEFACÇÃO DO ESCROTO E ESCROTO AGUDO

A tumefacção do escroto pode ser aguda ou crónica, dolorosa ou indolor. Como exemplos de tumefacções dolorosas citam-se: torção do testículo, torção do apêndice testicular, epididimite, lesão traumática/hematocele, hérnia inguinoscrotal encarcerada, orquite da papeira, etc..

Como exemplos de tumefacções acompanhadas de desconforto ou não dolorosas são referidos: tumor testicular, edema escrotal no contexto de púrpura vascular (PHS), varicocele, hidrocele, hérnia inguinoscrotal, etc.. (ver adiante)

As situações classicamente designadas por escroto agudo abrangem um conjunto de entidades discriminadas no Quadro 2 as quais pressupõem a necessidade de intervenção urgente ou emergente. No caso de torção do testículo (com confirmação diagnóstica) haverá necessidade de intervir no período que não ultrapasse seis horas a fim de garantir viabilidade do mesmo. (Figura 1)

As manifestações clínicas do escroto agudo são essencialmente dor do escroto surgida de modo súbito (na criança pequena poderá ser o choro ou irritabilidade que alertam) e edema.

Uma nota importante para o papel indispensável da ecografia-doppler no diagnóstico diferencial entre epididimite e torção do testículo. Na hipótese de tal exame complementar ser inexequível, a intervenção cirúrgica não deve ser diferida, sendo preferível uma intervenção “branca” a um diagnóstico de torção não feito.

QUADRO 2 – Escroto agudo

Torção do testículo
No lactente ou na puberdade: testículo e cordão espermático dolorosos à palpação, hiperestesia e maior dureza ao tacto; rubor do escroto; pode surgir no feto, o que conduz inevitavelmente a testículo inviável.
Torção do epidídimo
Mais frequente entre os 4 e 8 anos: edema do escroto sem rubor aparente; aparentemente o pólo superior do testículo está mais sensível à palpação, verificando-se a este nível uma “mancha azulada” através da transiluminação.
Edema idiopático do escroto
Também mais frequente pelos 4-8 anos, acompanhando-se de eritema que ultrapassa os limites do escroto; dum modo geral não é doloroso à palpação.
Epididimite
Raramente surgindo antes da puberdade, o epidídimo está mais sensível ao tacto; esta situação é por vezes acompanhada de infecção urinária com refluxo.
Hérnia inguinal irredutível

3. VARICOCELE

Trata-se de varicosidades das veias testiculares, mais frequentes no lado esquerdo, podendo ocorrer na puberdade.

Em casos especiais poderá estar indicada a obliteração cirúrgica da veia testicular, utilizando a via laparoscópica.

4. HIDROCELE

O hidrocelo (ou a hidrocele) é uma acumulação de líquido na tunica vaginalis, situação que surge em cerca de 1-2% de RN do sexo masculino. Na maior parte dos casos é “não comunicante” o que resulta de o processus vaginalis ter ficado obliterado durante o processo de desenvolvimento. Em tais casos desaparece por volta do 1 ano de idade.

Se o referido processus vaginalis continuar permeável, o hidrocelo persiste, sendo que as suas dimensões aumentam “por enchimento” em posição bípede e diminuem em posição de decúbito.

Uma das complicações do hidrocelo comunicante é o desenvolvimento de hérnia inguinal.

O exame físico evidencia escroto distendido, não sob tensão, e difusão da luz por transiluminação, o que traduz a existência de líquido.

Nos casos que persistem para além dos 18 meses está indicada intervenção cirúrgica.

5. QUISTO DO CORDÃO

Trata-se duma tumefacção quística esferóide no trajecto do cordão espermático mais frequentemente na região inguinal. Resulta da persistência do canal peritoneovaginal, que é permeável a conteúdo líquido, manifestando-se clinicamente por uma tumefacção da região inguinal, o que implica diagnóstico diferencial com as massas inguinais.

O quisto do cordão evidencia ao exame clínico uma consistência relacionável com conteúdo fluido, móvel, não redutível; frequentemente é possível determinar os seus limites: orifício inguinal interno, na sua porção proximal e o orifício inguinal superficial, na sua porção mais distal.

Esta particularidade permite distinguir esta entidade da hérnia inguinal, em que há permeabilidade do canal peritoneovaginal para conteúdo visceral, sem limites definidos, uma vez que a hérnia pode ocupar todo o canal e ter extensão intra escrotal e ser redutível.

O diagnóstico diferencial faz-se com as massas inguinais, em geral.

Embora o exame clínico cuidadoso permita chegar ao diagnóstico, cabe referir o papel do exame ecográfico com sensibilidade e especificidade elevadas.

O aumento de volume ou dor constituem indicação para intervenção cirúrgica; esta consiste na laqueação alta do canal peritoneovaginal e na plastia do orifício inguinal profundo, procedimento cirúrgico que é realizado em regime de ambulatório.

6. ESPERMATOCELE

A espermatocele consiste numa dilatação quística do epidídimo devida a acumulação de secreções espermáticas; trata-se, pois, dum quisto do epidí- dimo.

Clinicamente é diagnosticada como uma tumefacção elástica, associada ao epidídimo, indolor e sem características inflamatórias.

A terapêutica pode ser realizada por punção aspirativa ou excisão cirúrgica por abordagem transcrotal.

7. TUMOR TESTICULAR

Os tumores testiculares podem aparecer em qualquer idade. Na maior parte dos casos constituem massas indolores que não transiluminam. Em caso de suspeita deve proceder-se a ecografia. A alfa-feto-proteína e a beta-gonadotrofina humana coriónica estão elevadas respectivamente nos teratomas, e nos coriocarcinomas e germinomas.

Nos casos de malignidade está indicada a orquidectomia radical.

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Anomalias do Pénis e Uretra

Sistematização

O Quadro 1 sistematiza as principais anomalias do pénis e uretra.

Neste capítulo, pela sua importância e maior frequência em clínica pediátrica, são abordados a fimose, a parafimose, a hipospadia e o falso micropénis. O micropénis pode estar associado a hipopituitarismo. A agenésia do pénis é raríssima (1/10 milhões).

1. FIMOSE

Definição

A fimose caracteriza-se pela presença de estenose fisiológica do prepúcio, não permitindo a exposição da glande quando se faz a retracção do mesmo.

QUADRO 1 – Anomalias do pénis e uretra

    • Fimose e parafimose
    • Hipospadia
    • Torção do pénis
    • Micropénis
    • Falso micropénis
    • Agenésia do pénis
    • Estenose do meato
    • Duplicação da uretra
    • Hipoplasia da uretra
    • Atrésia da uretra
    • Quisto parameatal da uretra
    • Prolapso da uretra feminina

A fimose é normal no período neonatal. Aos seis meses de idade apenas 20% dos lactentes permitem a retracção do prepúcio. Aos três anos de idade já é possível realizar a retracção prepucial em 90% dos casos.

A causa do aperto do anel fimótico não é conhecida, mas é considerada fisiológica pela generalidade dos autores. A fimose torna-se patológica quando existem processos inflamatórios balanoprepuciais conducentes ao estabelecimento de fibrose prepucial secundária.

Manifestações clínicas

O diagnóstico é redundante. A presença de fimose fisiológica enquanto a criança não controla os esfíncteres impede as lesões irritativas da glande pelo contacto com a urina na fralda. (Figura 1)

A presença de aderências balanoprepuciais, sem fimose associada, é corrente na primeira infância. Por vezes coexiste a presença de quistos de retenção de material sebáceo subprepucial, denominados “quistos de esmegma”, os quais podem ser eliminados com a retracção do referido prepúcio.

A ocorrência de balanite e postite, processo inflamatório balanoprepucial, pode ser de natureza recorrente e conduzir ao estabelecimento de fibrose prepucial secundária. Simultaneamente pode haver formação de uma “casca” fibrótica periglande e mesmo estenose inflamatória do meato urinário denominada balanite esclerótica obliterante (“balanitis xerotica obliterans”).

Actuação prática

A aplicação tópica de cremes com esteróides (por ex. propionato de fluticasona a 0,05%) duas vezes por dia poderá ser eficaz em certos casos. Se tal não resultar, a fimose fisiológica tem indicação cirúrgica (ressecção do prepúcio ou circuncisão): após a idade de controlo esfincteriano, na impossibilidade de retracção prepucial; ou antes da referida idade, na presença de fimose esclerótica obliterante ou de balanites de repetição.

Devido a condicionalismos étnicos, culturais e religiosos, a fimose fisiológica, pode também ter indicação cirúrgica a pedido de familiares.

A técnica cirúrgica mais utilizada é a postatoplastia postatoplastia de Duhamel (plastia dorsal do prepúcio) ou a circuncisão formal (ablação do prepúcio).

FIGURA 1. Fimose fisiológica em RN

Complicações pós-operatórias

As complicações da cirurgia correctiva da fimose têm uma incidência de 0,1% a 15%. As complicações mais frequentes prendem-se com a técnica cirúrgica ou com o status peniano pós-múltiplos episódios de balanite.

As complicações cirúrgicas mais correntes são: estenose do meato, infecção da ferida operatória, hematoma pós-operatório, excesso de pele ventral peniana e persistência do anel fimótico.

A reintervenção cirúrgica pode ser indicada por razões estéticas ou funcionais.

Seguimento

Após a plastia prepucial os familiares do doente devem favorecer a manutenção de bons hábitos de higiene local e realizar a retracção prepucial frequente para evitar a recorrência de aderências balanoprepuciais pós-operatórias.

Prognóstico

O prognóstico é, em geral, bom com cura cirúrgica em cerca de 98% dos doentes.

FIGURA 2. Parafirmose

2. PARAFIMOSE

A chamada parafimose consiste no estrangulamento e ingurgitamento da glande quando um prepúcio de abertura muito estreita é retraído até à zona proximal da glande, não podendo, depois, ser puxado até à sua posição inicial, o que é por sua vez dificultado pelo edema que também surge no próprio prepúcio.

Pela inspecção o edema do prepúcio peri-base da glande resultante de estase venosa assemelha-se a “pneu” que comprime a base da glande. (Figura 2)

O tratamento (redução) consiste em lubrificar o prepúcio e glande tentando fazer o referido “pneu” ultrapassar o sulco coronal no sentido distal, exercendo pressão suave sobre a glande ao nível do meato, no sentido meato-púbis, mas mantida, com o auxílio de analgesia.

Em casos raros poderá ser necessário proceder a circuncisão sob anestesia geral.

FIGURA 3. Pénis escondido ou “sepulto”

3. FALSO MICROPÉNIS (PÉNIS ESCONDIDO)

Nesta situação o pénis, de dimensões aparentemente normais está “mergulhado” ou camuflado por abundante almofada de gordura envolvente suprapúbica. Retraindo por compressão a gordura envolvente e repuxando distalmente o pénis verifica-se que as dimensões são aparentemente normais. Poderá estar indicada intervenção cirúrgica por razões cosméticas. (Figura 3)

4. HIPOSPADIA

Definição e importância do problema

A hipospadia é uma anomalia congénita do pénis, caracterizada pela associação de três alterações morfológicas, sendo a primeira de carácter constante:

  1. Localização ventral do meato urinário.
  2. Curvatura ventral do pénis.
  3. Presença de prepúcio com rafe não fundido na sua linha média e na sua porção ventral, como que “cortado” longitudinalmente.
  4. Ausência de artéria frenular.

Relacionando as alterações morfológicas com o desenvolvimento embriológico, a hipospadia pode ser definida como uma atrésia do raio ventral do pénis. O aspecto ventral do pénis é caracterizado pela existência de pele fina e aderente à parede da uretra, a glande é pouco desenvolvida e não encerrada ventralmente e, por fim, o corpo esponjoso, a jusante da abertura ectópica do meato urinário, é de aspecto atrésico.

Esta anomalia surge com uma incidência variando entre 8 e 15/1.000 nascimentos.

Etiopatogénese

Os factores etiológicos deste defeito não estão completamente esclarecidos, admitindo-se alterações da produção hormonal, dos receptores periféricos e anomalias vasculares locais, de base genética.

Nalguns estudos especulou-se sobre o possível papel da exposição in utero de agentes químicos com acção antiadrogénica ou estrogénica (fitoestrogénios, policlorobifenóis, etc.).

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico da hipospadia pode ser obtido no período pré-natal, por meio de estudo de ecografia morfológica realizada ao feto. Actualmente é possível obter a indicação diagnóstica indirecta da anomalia peniana pela existência de imagem ecográfica de curvatura peniana exagerada e de baixo percentil na medição do comprimento peniano.

Manifestações clínicas e classificação

Na maior parte dos casos, o diagnóstico da hipospadia é obtido no exame do recém-nascido (RN), no período pós-parto.

De acordo com a localização ectópica do meato, no sentido ântero-posterior é estabelecida a seguinte classificação anatómica e descritiva (Figura 4):

  1. Glanular.
  2. Coronal.
  3. Peniano anterior/médio/posterior.
  4. Peno-escrotal.
  5. Escrotal.
  6. Vulviforme/perineal.

A presença da curvatura ventral do pénis (corda), aspecto fundamental a ter em conta na descrição da hipospadia, deriva da confluência de quatro factores:

  1. Aderência da pele ventral à uretra.
  2. Aderência da placa uretral aos corpos cavernosos.
  3. Atrésia do corpo esponjoso a jusante do meato urinário.
  4. Assimetria dos corpos cavernosos.

A classificação correcta da hipospadia, que deverá incluir a localização do meato e a existência ou não de curvatura ventral, tem interesse não só para a planificação do acto cirúrgico, como também para o estabelecimento do prognóstico.

As Figuras 5 e 6 mostram aspectos de hipospadia anterior.

FIGURA 4. Localização ectópica do meato urinário (Hipospadia)

FIGURA 5. Hipospadia glanular em RN

FIGURA 6. Hipospadia coronal

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias são decorrentes do tipo de hipospadia, da localização do meato urinário ectópico e das técnicas utilizadas.

Assim, a sua frequência é maior nas hipospadias posteriores com curvatura ventral mais pronunciada, e em reintervenções relacionadas com complicações prévias.

A complicação mais frequentemente encontrada é a fístula. A sua incidência varia entre 4%, (nas formas mais distais) e 20%, nas formas mais complexas. O aparecimento de fístula deve-se a uma permeabilização do trajecto uretral devido a desvitalização do tecido utilizado, de natureza isquémica ou infecciosa.

Outras complicações importantes são: a infecção da sutura ventral peniana originando invariavelmente a deiscência da mesma, e a formação de uma fístula urinária; a estenose uretral, decorrente do processo de cicatrização excessiva da glanuloplastia; e a persistência da curvatura ventral implicando a revisão cirúrgica da situação para permitir uma erecção peniana completa.

Seguimento

Os doentes com hipospadia devem ser seguidos durante a idade pediátrica até à adultícia. A existência de uma frequência algo elevada de complicações pós-operatórias funcionais ou estéticas leva à necessidade de acompanhamento em serviço de cirurgia pediátrica durante longo período.

O seguimento deve ser orientado para a vertente funcional e estética e, igualmente, incluir a avaliação da situação clínica do ponto de vista fisiológico e psicológico.

Prognóstico

O prognóstico global da patologia é em geral bom, na ausência de defeitos associados da maturação renal da árvore excretora e da junção uréter-vesical conducentes a deterioração da função renal.

O prognóstico funcional depende do tipo de hipospadia, da técnica utilizada e das complicações pós-operatórias. Porém, apesar da presença de complicações cirúrgicas, é possível, na generalidade dos casos, concluir o tratamento com bom resultado funcional e estético.

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ALTERAÇÕES DA BEXIGA

Sistematização

Neste capítulo são abordadas de modo sucinto as alterações anátomo-funcionais da bexiga, sintetizadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Alterações anátomo-funcionais da bexiga

    • Extrofia da bexiga
    • Divertículos da bexiga
    • Anomalias do úraco
    • Bexiga neuropática
    • Alterações da micção
      • Enurese nocturna
      • Incontinência diurna
      • Síndroma de Hinman
      • Incontinência no sexo feminino

1. EXTROFIA DA BEXIGA

Definição, etiopatogénese e importância do problema

A extrofia da bexiga (sinónimo de extroversão) é uma anomalia em que se verifica ausência das paredes anteriores do abdómen e da bexiga, do que resulta exteriorização e saliência da mucosa vesical, (assim como dos ostia ureterais) ao nível do hipogastro, e diastase ou ausência de fusão da sínfise púbica.

Admite-se que o defeito embriológico esteja relacionado com a não migração mesenquimatosa entre o folheto endodérmico e ectodérmico da membrana da cloaca junto à emergência do tubérculo genital, após a migração completa do septo uro-rectal. A fragilidade da membrana da cloaca predispõe à sua ruptura, expondo o seio urogenital primordial.

Este defeito integra um complexo de anomalias raras do qual faz frequentemente parte a epispadia (ou anomalia de posição do meato uretral que se abre na face dorsal da glande ou do pénis). Daí o conceito de complexo extrofia – epispadia traduzindo etiopatogénese comum para o defeito da bexiga e da uretra.

A frequência do referido complexo de anomalias é cerca de 1/10.000 a 1/50.000 nascimentos, registando-se antecedentes familiares de tal patologia em cerca de 3% dos casos. A epispadia surgindo isoladamente é muito mais rara, ocorrendo com uma frequência de 1/100.000 nascimentos. A relação sexo masculino/feminino é cerca de 2,7/1 na extrofia pura, e de 3,5/1 na epispadia.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O complexo extrofia-epispadia abrange um espectro variado de apresentações clínicas: extrofia vesical isolada exposta ou recoberta secundariamente por pele; fissura vésico-intestinal (em que o intestino se abre na placa vesical) associada a imperfuração anal; epispadia rudimentar ou de diversos graus (balânica, peniana); divisão em duas partes dos órgãos genitais (clítoris e pénis). No sexo masculino os testículos têm localização abdominal. (Figuras 1 e 2)

No caso de ter sido realizado diagnóstico pré-natal, o aspecto sugestivo ecográfico é a verificação de sinais de bexiga sem conteúdo líquido, presença de “massa abdominal” correspondendo à placa vesical, e emergência do cordão umbilical em posição mais ventral.

Após o nascimento, está indicada ecografia renal e ureteral para detecção de eventuais alterações concomitantes do excretor alto e da diferenciação parênquimo-sinusal e córtico-medular do rim. O status nefrológico da criança é determinante para o prognóstico global do defeito.

A região inguinal deverá ser objecto de cuidado especial, para detecção de hérnia inguinal e de criptorquidia bilaterais. Deverá ser realizado um exame perineal para verificar a localização e permeabilidade do orifício anal. A conformação dos genitais externos deverá ser descrita e registada. A existência de anomalias associadas dos genitais externos tem também extrema importância prognóstica.

FIGURA 1. Extrofia da bexiga no recém-nascido: mucosa saliente na linha média entre o coto do cordão umbilical e o pénis. (NIHDE)

FIGURA 2. Extrofia da bexiga: aspecto de pormenor permitindo observar o pénis epispádico entre a mucosa vesical saliente e o escroto. (NIHDE)

Tratamento

A extrofia da bexiga tem sempre indicação operatória. O objectivo final da terapêutica cirúrgica é a criação de um reservatório vesical de boa capacidade, pressão interna normal, com mecanismo de continência eficaz e uma correcção da epispadia. Simultaneamente há que preservar a função renal.

O objectivo cirúrgico é difícil de atingir pela complexidade do defeito e das suas relações anátomo-fisiológicas entre diversas estruturas de diferente natureza histológica e funcional.

Por essa razão, na abordagem cirúrgica do complexo extrofia-epispadia, deve existir uma equipa multidisciplinar de cirurgia pediátrica, urologia pediátrica e ortopedia pediátrica. A correcção é realizada por fases.

A primeira etapa é completada no primeiro ou segundo dia de vida e destina-se a encerrar a placa vesical. Durante o segundo ou terceiro ano de vida é reconstruída a epispadia. Posteriormente, pelo quarto ano de vida, é reconstruído o colo vesical.

Complicações cirúrgicas pós-operatórias

Todas as fases da correcção cirúrgica descritas anteriormente podem originar complicações específicas e, fundamentalmente, comprometer o sucesso da fase seguinte.

As complicações mais frequentes e de difícil resolução surgem na primeira etapa. Destacam-se a deiscência total ou parcial do encerramento primário da placa vesical e a má derivação do fluxo urinário, favorecendo o aparecimento de fístulas urinárias.

Seguimento

Estes doentes necessitam de um seguimento pluridisciplinar e prolongado. A cirurgia de correcção do complexo extrofia-epispadia é muito exigente para todo o pessoal envolvido no tratamento. Com efeito, a dimensão bio-psico-social de tal situação clínica obriga a apoios de diversa ordem, não só médica, mas também social, escolar e de reabilitação funcional.

Há três factores indicativos da qualidade do seguimento destes doentes. Um deles, de apreciação objectiva e subjectiva, é a qualidade de vida pessoal e social de cada um. Outro factor prende-se com a capacidade de prevenir e diagnosticar precocemente o aparecimento de adenocarcinoma ou carcinoma espinocelular da mucosa vesical, o qual surge nestes doentes com uma frequência quatrocentas vezes superior à da população em geral. O último factor está dependente da capacidade de função sexual normal e de fertilidade. Actualmente, este objectivo é atingido em cerca de 70% dos casos.

Prognóstico

Hoje em dia, não só devido à melhoria das técnicas cirúrgicas, mas fundamentalmente pelo melhor acompanhamento multidisciplinar propiciado, poderá evitar-se a ocorrência de dois factores de mau prognóstico que são, essencialmente: a incontinência irreversível; e a degradação progressiva da função renal.

Esta abordagem multidisciplinar, permite que haja actualmente uma sobrevida global superior a 95%.

2. DIVERTÍCULOS DA BEXIGA

Em geral, os divertículos da bexiga ocorrem ao nível da junção ureterovesical, estando associados a RVU.

3. ANOMALIAS DO ÚRACO

Estas anomalias são mais frequentes no sexo masculino. Um úraco patente (relíquia embriológica) pode surgir isolado ou associado a VUP ou a síndroma de Prune-Belly. A manifestação clínica típica é a saída de urina pelo umbigo. O quisto do úraco é outra anomalia manifestada em geral por massa infra-umbilical/suprapúbica; pode haver infecção secundária.

Os estudos imagiológicos (ecografia ou TAC) são importantes para o diagnóstico de localização. O tratamento é cirúrgico.

4. BEXIGA NEUROPÁTICA

A disfunção vesical neuropática é geralmente congénita, podendo resultar de defeitos do tubo neural ou doutras anomalias espinhais.

As manifestações clínicas mais importantes são incontinência urinária, infecções urinárias e hidronefrose por RVU ou não sinergia detrusor-esfíncter (não relaxamento do esfíncter com a contração da bexiga), com probabilidade elevada de disfunção renal.

Entre as várias complicações cabe citar a perfuração, a formação de cálculos e o carcinoma. 

5. ENURESE NOCTURNA

Como complemento do que foi referido na Parte V do livro sobre Desenvolvimento e Comportamento, cabe referir o papel de factores genéticos: genes relacionados com a enurese, localizados nos cromossomas 12q e 13q.

6. INCONTINÊNCIA URINÁRIA DIURNA

A causa mais frequente desta situação é a chamada bexiga pediátrica instável (hiperactiva ou espasmódica) com manifestações, por vezes, até à adolescência.

Outras causas incluem a chamada micção vaginal por coalescência dos pequenos lábios ou por não afastamento das coxas durante a micção (por obesidade), uréter ectópico drenando para a vagina ou uretra posterior, etc..

7. SÍNDROMA DE HINMAN

Trata-se de não sinergia detrusor-esfíncter, (não relaxamento do esfíncter externo durante a micção). Pode surgir isoladamente ou fazer parte do quadro de bexiga neuropática.

8. INCONTINÊNCIA NO SEXO FEMININO

As causas mais frequentes são a ectopia ureteral (uréter drenando na vagina), a epispadia, e a incontinência desencadeada pelo riso (relaxamento súbito do esfíncter urinário). Neste último caso pode utilizar-se o metilfenidato em baixa dose.

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DOENÇA RENAL CRÓNICA

Definição e importância do problema

A doença renal crónica (DRC) é definida como lesão renal irreversível que leva à perda gradual da função renal ao longo do tempo, independentemente da etiologia. Internacionalmente é aceite o critério da Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) de 2012, considerando o diagnóstico de DRC quando 1 dos 2 critérios seguintes é preenchido:

  • TFG < 60 ml/min/1,73 m2 por um período superior a 3 meses*, com implicação na saúde do doente e independentemente de quaisquer outros marcadores de DRC;
  • TFG > 60 ml/min/1,73 m2 na presença de alterações estruturais ou outros marcadores de alterações funcionais do rim que incluem proteinúria, tubulopatia, alterações histológicas ou alterações imagiológicas.

* excepção para recém-nascidos e lactentes com menos de 3 meses desde que haja alterações estruturais confirmadas.

A KDIGO, em crianças com mais de 2 anos de idade, classifica a doença em cinco estádios em função da taxa de filtração glomerular (TFG) calculada pela fórmula de Schwartz (FS)** e, portanto, em função da gravidade, qualquer que seja a etiologia:

G1 – TFG Normal (≥ 90 ml/min/1,73 m2)
G2 – TFG entre 60 – 89 ml/min/1,73 m2
G3a – TFG entre 45 – 59 ml/min/1,73 m2
G3b – TFG entre 30 – 44 ml/min/1,73 m2
G4 – TFG entre 15 – 29 ml/min/1,73 m2
G5 – TFG < 15 ml/min/1,73 m2 (Insuficiência renal)

**Depois dos 2 anos à TFG = 0,55 x comprimento (cm) / creatinina sérica

A FS, dando-nos uma estimativa, tem limitações que devem ser ponderadas quando se interpretam os resultados, como por exemplo, relacionadas com diferenças de idade, sexo, estatura, redução da massa muscular, tipo de alimentação (vegetarianismo) e método de doseamento da creatina sérica. As crianças com menos de 2 anos de idade não podem ser classificadas de acordo com estes critérios uma vez que têm TFG baixas, mesmo fazendo a correcção para a superfície corporal. (Quadro 1)

No entanto, o valor estimado pode ser comparado com o desvio padrão (DP):

  • se considerado o valor entre 1-2 DP, pode admitir-se redução moderada da função;
  • se considerado o valor < 2 DP, pode admitir-se redução grave.

QUADRO 1 – Variações da TFG em função da idade

IdadeTFG
ml/min/1,73 m2
DP
ml/min/1,73 m2
RN < 34 semanas de idade gestacional
2-7 dias
8-28 dias
29-90 dias
11
20
50
11 – 15
15 – 28
40 – 65
RN > 34 semanas de idade gestacional
2-7 dias
8-28 dias
29-90 dias
39
47
58
17 – 60
26 – 68
30 – 86
 1 – 6 meses7739 -114
 6 – 12 meses10349 – 157
12 – 19 meses12762 – 191
2 – 12 anos12789 – 165

A DRC na criança e no adolescente tem particularidades relativamente ao adulto no que se refere ao seu impacte sobre o crescimento, o maior risco de complicações cardiovasculares a médio e longo prazo e a repercussão importante na qualidade de vida do doente e da família. Efectivamente, a DRC associa-se a uma menor esperança de vida. Estima-se que os doentes sob terapêutica dialítica de substituição têm uma esperança média de vida cerca de 50 anos, inferior relativamente aos indivíduos saudáveis da mesma idade e etnia. De salientar que a doença cardiovascular é a maior causa de morte nas crianças e adolescentes com DRC.

O diagnóstico e a intervenção precoces, com o objectivo de retardar a progressão para estádios mais graves, contribuem para reduzir a morbilidade e melhorar o prognóstico e a qualidade de vida.

Aspectos epidemiológicos

Os dados epidemiológicos, na maioria escassos e dificilmente comparáveis pelo facto de não existir uniformidadade quanto às fontes de informação, referem-se a populações restritas incluindo geralmente pacientes nos estádios 3 a 5, o que subvaloriza a realidade. Na Europa (registos da European Society for Pediatric Nephrology – ESPN/ERA-EDTA) os valores apontam para uma incidência anual de 11-12 novos casos nos estádios 3 a 5 por milhão da população pediátrica- /mpp – (< 18 anos), e prevalência aproximada de 55-60/mpp. A incidência parece manter-se estável mas a prevalência tem crescido à medida que melhoram os tratamentos disponíveis e a sobrevivência. A incidência e a prevalência são superiores no sexo masculino o que é explicável pelo facto de as anomalias congénitas do rim e tracto urinário (CAKUT), principal causa de DRC, serem mais frequentes nos rapazes.

Etiopatogénese

Na idade pediátrica, as CAKUT, onde se incluem as uropatias obstrutivas (como as secundárias a válvulas da uretra posterior – VUP), a hipoplasia ou a displasia renal, e o refluxo vesicoureteral, são as principais causas de DRC. Seguem-se as nefropatias hereditárias e as glomerulonefrites (por ex.: ciliopatias renais, síndroma de Alport, síndroma nefrótica corticorresistente – SNCR, nefrite lúpica). No conjunto, são responsáveis por mais de 70% dos casos.

As CAKUT são mais frequentes nos primeiros anos de vida enquanto as glomerulopatias têm maior incidência depois dos 12 anos. Tem-se assistido, ao longo dos anos, a uma maior sobrevida dos recém-nascidos de muito baixo peso que apresentam, logo no período neonatal precoce, uma redução significativa da massa renal. Este facto, independentemente da comorbilidade e da iatrogenia associadas à prematuridade, representa, só por si, um factor predispondo marcadamente a DRC. Por outro lado, a incidência crescente da obesidade na idade pediátrica e a identificação de mecanismos responsáveis pela disfunção renal precoce nestes doentes é, também, e já no presente, causa de DRC. A etiologia da DRC também influencia o ritmo de progressão para estádios mais avançados. As CAKUT caracterizam-se, em geral, por uma progressão mais lenta em comparação com as glomerulopatias.

A progressão da DRC, uma vez estabelecida a lesão, evolui em contínuo até ao estádio 5. Esta evolução resulta de insultos repetidos e crónicos sobre o parênquima renal conduzindo a lesão permanente. Qualquer perda de massa renal funcionante, independentemente da causa subjacente, conduz a hiperfiltração glomerular. Numa fase inicial, se a DRC for ligeira, a creatinémia e a TFG mantêm-se normais ou praticamente normais. Os glomérulos restantes perdem a capacidade de autorregulação da pressão intraglomerular; esta última, que aumenta, por sua vez conduz a hipertrofia glomerular com proteinúria, e a hipertrofia tubular.

Com o tempo, estes mecanismos compensatórios e o processo inflamatório crónico conduzem a esclerose glomerular, fibrose intersticial e atrofia tubular. O resultado é a perda de massa renal funcionante, num círculo vicioso permanente, aumentando cada vez mais a pressão intraglomerular e a hipertrofia dos glomérulos remanescentes.

A velocidade de agravamento deste quadro pode ser maior nas fases de mais elevada exigência metabólica relacionada com o rápido aumento do índice de massa corporal, como nos primeiros anos de vida e na adolescência.

Há outros factores que condicionam a rapidez desta evolução, como sejam o valor de creatinémia ou da TFG na altura do diagnóstico, a coexistência de HTA, proteinúria, anemia, acidose metabólica, hipercalciúria, hiperfosfatúria, hiperuricémia, hiperfosfatémia, hipocalcémia, hiperparatiroidismo secundário, excesso de peso/obesidade e dislipidémia.

Na maioria dos casos este status é potencialmente modificável em qualquer fase da doença, com intervenção nutricional e farmacológica, o que poderá retardar a progressão para DRC terminal. Outros factores, estes já não modificáveis, incluem os antecedentes familiares, a etnia e a genética.

A idade em que ocorre a perda significativa de massa renal influencia o grau de hipertrofia compensadora e o prognóstico a longo prazo. Doentes com agenesia renal unilateral congénita comportam maior risco de surgimento de proteinúria e de HTA do que os doentes que, por exemplo, perdem um rim numa fase mais tardia da vida, na sequência de trauma ou pós-cirurgia de tumor de Wilms. O crescimento renal compensador é tanto maior quanto mais precoce ocorrer a nefrectomia. Este aumento compensatório está associado a microalbuminúria em mais de 30% destes doentes.

A HTA e a proteinúria são factores de risco independentes de progressão da DRC. Estima-se que a prevalência da HTA nas crianças com DRC varie entre 20 e 80%, a qual poderá surgir em estádios tão precoces como o G2 e associada a etiologias não glomerulares.

Embora a maioria dos estudos tenha incidido em adultos, os resultados do estudo ESCAPE permitiram demonstrar o benefício do controlo da pressão arterial em valores normais/baixos, em crianças e adolescentes com glomerulopatias primárias ou hipo/displasia renal, ao retardar a progressão da DRC.

Vários estudos na idade pediátrica demonstraram os seguintes factos com implicações clínicas importantes: – a proteinúria associa-se a declínio da TFG nas nefropatias; – a proteinúria constitui factor preditivo de progressão da DRC em contexto de hipoplasia renal; e – a proteinúria residual, mesmo com a utilização do inibidor da enzima de conversão da angiotensina (IECA) constitui também factor de progressão da doença.

De acordo com vários outros estudos demonstrou-se que a obesidade e a síndroma metabólica são também factores preditivos independentes de lesão renal. A prevalência do excesso de peso/obesidade na criança elevou-se de 5% para 11% entre os anos 60 e os anos 90 do século passado. Na primeira década do século XXI em países em desenvolvimento, foram apuradas respectivamente na idade escolar e na idade pré-escolar, valores de 28% e 12% quanto a excesso de peso ou obesidade. A International Obesity Task Force prevê que em 2020 mais de 45% das crianças nos EUA tenham excesso de peso ou obesidade. A glomerulopatia relacionada com a obesidade (ORG), entidade já reconhecida, cursa com proteinúria moderada, a qual pode regredir com a diminuição do peso, a albuminémia elevada e colesterol total normal.

A obesidade relacionada com a progressão para DRC parece envolver múltiplas vias, algumas em comum com o desenvolvimento da HTA; fundamentalmente aponta-se o papel da activação do sistema nervoso simpático, do sistema renina-angiotensina-aldosterona, da hiperinsulinémia, das citocinas pró-inflamatórias, da diminuição da produção de óxido nítrico e da proteinúria.

Manifestações clínicas

A forma de apresentação da DRC, em regra multifacetada, depende da etiologia e da gravidade do compromisso da função renal na data do diagnóstico, relevando-se o facto de as fases iniciais da doença poderem ser assintomáticas.

Muitas vezes o diagnóstico é feito casualmente, seja na sequência de rastreio laboratorial de outra patologia ou aquando da realização de ecografia abdominal por um sintoma inespecífico como, por exemplo, dor abdominal recorrente.

Através do diagnóstico ecográfico pré-natal (DPN), a detecção de poli-hidrâmnio ou oligo-âmnio, poderá associar-se a defeitos renais e/ou do tracto excretor; estes defeitos, a confirmar e/ou a reavaliar após o nascimento, poderão dar lugar a intervenção preventiva e/ou curativa precoce, contribuindo para a melhoria do prognóstico.

Na ausência de DPN e nos primeiros anos de vida, as CAKUT podem manifestar-se como infecção do tracto urinário (ITU), sépsis, poliúria, desidratação, alterações iónicas (por ex. hiponatrémia), acidose metabólica, vómitos e deficiente progressão ponderal. Se a causa for uma glomerulopatia, as manifestações serão as da doença renal de base ou manifestações sistémicas extrarrenais.

Sinais e sintomas em crianças ou adolescentes, tais como baixa estatura, anemia, deformações ósseas ou mesmo sintomas e sinais inespecíficos como cansaço, astenia, adinamia, recusa alimentar ou vómitos, de causa não identificada, poderão indiciar DRC, a valorizar e a rastrear.

A anamnese e o exame físico podem orientar-nos para as etiologias mais prováveis. A anamnese deve incluir designadamente: antecedentes neonatais/DPN, ITU recorrentes, padrão do crescimento, a utilização de fármacos (nefrotoxicidade ou reacção com idiossincrasia).

A duração e a idade de início do quadro clínico, incluindo como exemplos – poliúria, polidipsia, enurese, cansaço, anorexia ou vómitos, menor rendimento escolar, febre, exantema, artralgia/artrite, alterações macroscópicas da urina ou do sedimento urinário – poderão indiciar repercussão sistémica de patologia renal ou doença sistémica com repercussão renal.

Inquirir sobre antecedentes familiares de doença renal e de hipertensão arterial constitui também passo obrigatório, designadamente no caso de se admitir a hipótese de DRC hereditária, o que poderá fundamentar ulterior estudo genético.

No âmbito do exame físico, assumem particular importância a somatometria, a medição da pressão arterial, a verificação de palidez da pele e mucosas, de sinais de vasculite ou doutras alterações cutâneas, de edema periférico, de sinais de hipervolémia, e de deformações esqueléticas sugestivas de doença mineral óssea (Chronic Kidney Disease-Mineral Bone Disorder CKD-MBD).

Este último achado, com a designação clássica de osteodistrofia renal, pode evidenciar-se como genu varum em crianças mais novas, ou como genu varum e genu valgum unilaterais em simultâneo em crianças mais velhas.

Os exames complementares de diagnóstico, racionalmente fundamentados pela anamnese e exame físico, sejam laboratoriais e/ou imagiológicos, permitirão identificar o quadro de DRC, sua gravidade e complicações associadas.

Complicações da DRC

À medida que a DRC progride vão surgindo complicações secundárias à incapacidade de o parênquima renal manter as suas múltiplas funções. Estas complicações incluem: – diminuição da capacidade de depuração/clearance das substâncias tóxicas resultantes do metabolismo; – desequilíbrio hidro-electrolíticos e ácido-base; – anemia; – HTA; – alterações endocrinológicas; – alterações no crescimento; – doença mineral óssea; – dislipidémia, etc.. Algumas destas complicações podem ocorrer em fases tão precoces como no estádio 1.

A anemia está presente nos doentes com DRC desde fases muito precoces, com prevalências de 31% no estádio 1, e de 73% no estádio 3. A etiopatogénese da anemia na DRC comporta múltiplos factores incluindo nomeadamente: – a diminuição da produção de eritropoietina pelos rins; – o défice de ferro (défice nutricional, inflamação crónica, efeito de medicamentos que competem com a absorção, perdas ocultas por via gastrintestinal intestinal); – menor semivida dos eritrócitos; – o hiperparatiroidismo secundário (hormona paratiroideia – PTH funcionando como inibidora da eritropoiese).

Geralmente é normocítica, normocrómica e hipoproliferativa. Com base na variabilidade do valor normal da hemoglobina (Hb) com a idade e sexo, o diagnóstico de anemia na DRC é baseado no valor de Hb quando este é inferior ao percentil 5 ou corresponde a – 2 desvios-padrão/DP do esperado para a idade e sexo.

6 m – 5 A< 11 g/dL
5 A – 12 A< 11,5 g/dL
12 A -15 A< 12 g/dL
> 15 A< 13 g/dL

Valores de ferritina ≤ 100 ng/mL obrigam a suplementação oral com ferro. Quando necessário utilizam-se estimulantes da eritropoiese (eritropoietina recombinante humana em administração subcutânea). Poderá associar-se suplementação com ácido fólico e vitamina B12.

O hipocrescimento é uma das maiores complicações na DRC. Os 2 primeiros anos de vida são cruciais para o crescimento pelo que, caso a DRC se apresenta muito precocemente, as repercussões serão mais relevantes. A etiopatogénese é multifactorial incluindo subnutrição energético-proteica, acidose metabólica, anemia, doença mineral óssea e resistência à acção da hormona de crescimento/GH.

A nutrição correcta, fundamental no tratamento da DRC, permite contrariar o estado de hipercatabolismo, fornecendo os nutrientes necessários para um crescimento tão adequado quanto possível apesar de, no contexto de disfunção renal, se tornar necessário restringir certos elementos como fósforo e potássio.

Nas crianças com compromisso tubular importante, com poliúria e perda de sal (que também contribui para o hipocrescimento), é necessário liberalizar o suprimento de água e a suplementação de NaCl/sal de cozinha. Sempre que a anorexia, a náusea e o vómito impeçam a alimentação adequada recorre-se a alimentação entérica por sonda nasogástrica ou gastrostomia e suplementação em hidratos de carbono e triglicéridos de cadeia média, se necessário.

A acidose metabólica resulta:

  • do défice de bicarbonato por aumento do seu consumo para excreção de amónia; e de
  • menor reabsorção a nível do túbulo proximal. A acidose contribui para a hipocalcémia, já que o cálcio do osso, passando a ser utilizado como tampão, determina também aumento do catabolismo, com repercussão negativa no crescimento. A sua correcção faz-se com bicarbonato de sódio oral em várias tomas por dia, com o objectivo de manter valores normais de bicarbonatémia.

A doença mineral óssea (CKD-MBD) associada à DRC engloba um espectro de alterações que não se resumem às alterações laboratoriais do fósforo, do cálcio, da PTH e da vitamina D. Incluem alterações na estrutura do osso (mineralização, volume e grau de renovação) e calcificações extra-ósseas, nomeadamente nos tendões e artérias contribuindo, neste último caso, para o aumento do risco cardiovascular. Estas repercussões podem ser observadas nas crianças em estádios precoces (G2), se não tratadas. Admite-se que a hiperfosfatémia seja a principal responsável pelo aumento da PTH mas, também, factor de risco cardiovascular independente. Por outro lado, o défice de 1,25-di-hidroxi-vitamina D3 contribui para a hipocalcémia resultante da menor absorção de cálcio a nível intestinal e consequente aumento da PTH.

O hiperparatiroidismo secundário condicionando alterações na mineralização óssea e repercussão no crescimento, é também factor contributivo importante de calcificações vasculares observadas nestes doentes. Nos estádios iniciais preconiza-se a restrição de alimentos ricos em fósforo na dieta e suplemento de vitamina D com o objectivo de manter a normocalcémia. À medida que a doença crónica progride torna-se necessário utilizar quelantes do fósforo (carbonato de cálcio, sevelamer) e análogos da vitamina D activada (alfacalcidol, calcitriol) para manter níveis de fósforo, de cálcio e de PTH normais.

Salienta-se que, apesar da tentativa de correcção e equilíbrio dos múltiplos factores implicados no hipocrescimento das crianças com DRC, parece haver uma resistência à acção da hormona de crescimento HC. Nesta perspectiva, uma vez assegurados o suprimento nutricional e o equilíbrio metabólico, poderá ser administrada hormona de crescimento/GH em obediência à legislação vigente em Portugal (depois dos 12 meses de idade e segundo protocolo estrito).

A hipercaliémia, outra alteração iónica presente na DRC, pode ser controlada com restrição de potássio na dieta, pelo menos nas fases iniciais da doença. Quando a função renal se agrava, há necessidade de administração de resina permutadora de iões (via oral ou em enema).

Na DRC, à semelhança doutras doenças crónicas, verifica-se alteração da função tiroideia em paralelo com o agravamento da função renal. Observa-se uma diminuição do valor da FT4, com TSH normal.

Sobre a relação entre elevação dos níveis de ácido úrico e DRC, importa sintetizar dados de investigação recente segundo os quais tais níveis elevados diminuindo a taxa de filtração glomerular renal e activando o sistema renina-angiotensina-aldosterona, através da influência sobre as citocinas, conduzem a estresse oxidativo e a desenvolvimento de fibrose.

Verifica-se, também, um atraso do desenvolvimento pubertário em cerca de 2 anos e meio, com alteração dos níveis de hormonas sexuais, em cerca de 2/3 dos doentes.

Nota final

São vários os factores de risco de ocorrência de doença renal ou de progressão da doença renal crónica já estabelecida, em muitas circunstâncias evitáveis com medidas preventivas através da promoção de estilos de vida saudáveis.

Os pediatras gerais, em ligação com os médicos de família e com os pediatras nefrologistas, têm um papel fundamental na identificação de crianças e jovens com potencial risco de desenvolvimento de DRC, promovendo a prevenção e o diagnóstico em fase precoce.

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LESÃO RENAL AGUDA

Nova nomenclatura e importância do problema

O conceito de insuficiência renal aguda (IRA) – entendido como a deterioração rápida da função renal com diminuição da taxa de filtração glomerular, consequente acumulação de produtos azotados e alteração da homeostase do organismo em 2/3 dos casos com diminuição da diurese – foi revisto em 2012 à luz da medicina baseada na evidência, considerando-se que deveria ser substituído por outro termo mais amplo – o de lesão renal aguda (LRA).

Assim, no conceito de LRA cabe a noção de disfunção renal como um processo contínuo desde a agressão inicial ao rim até à lesão deste em diversos estádios de gravidade, culminando com o desenvolvimento de doença renal crónica na idade adulta; neste contexto, foram elaboradas escalas de classificação com valor prognóstico, baseadas em determinados critérios, tais como: – redução do filtrado glomerular; – elevação da creatinina sérica; e – diminuição da diurese. (ver adiante)

De salientar que se torna fundamental a uniformização de critérios de diagnóstico e a detecção precoce da lesão enquanto não forem clinicamente validados melhores marcadores bioquímicos.

Aspectos epidemiológicos

Sendo difícil calcular a verdadeira incidência da LRA na idade pediátrica – a qual poderá ser subdiagnosticada pelo défice de consenso na sua definição em diversas séries, estimam-se os seguintes valores: 0,5-1% em crianças hospitalizadas, 2,5-5% em doentes em estado crítico, 23% em recém-nascidos (RN) e 40% em RN pré-termo.

A prevalência em RN internados em UCIN é estimada em 3-8%, variável conforme a definição usada e condicionada por factores de risco como muito baixo peso (18%), asfixia moderada (9%) a grave (56%), sépsis (22%) e pós-operatório de cardiopatia congénita (52%).

Senda a LRA um factor independente da mortalidade, aumenta contudo a probabilidade de lesão renal crónica, assim como a necessidade de tratamento substitutivo renal. A mortalidade é muito elevada: ~30%.

Etiopatogénese e classificação

Gobalmente, as causas mais frequentes de LRA em países desenvolvidos são a cirurgia associada a técnica extracorporal na correcção de cardiopatias congénitas, a sépsis e as doenças hemato-oncológicas.

No RN são mais habituais a hipóxia-isquémia perinatal, a sépsis e a acção de agentes nefrotóxicos. Uma vez que a nefrogénese decorre entre a 15ª e a 34-36ª semanas de gestação, e o desenvolvimento renal se prolonga no período pós-natal, torna-se compreensível a maior vulnerabilidade do RN pré-termo pela concomitante imaturidade funcional, a qual pode ser tipificada pela limitada capacidade de concentração urinária e de manutenção da autorregulação do fluxo sanguíneo renal em caso de alterações hemodinâmicas.

A agressão inicial, embora possa ter origem diversa e multifactorial, tem como ponto de partida a lesão isquémica do rico endotélio capilar renal com a consequente libertação de numerosos mediadores inflamatórios que expandem e perpetuam a cascata inflamatória e, assim, a isquémia renal.

Sob o ponto de vista etiopatogénico, a LRA classifica-se em três categorias: pré-renal, renal (intrínseca) e pós-renal (obstrutiva).

  • Pré-renal
    Os factores causais pré-renais, responsáveis por 85% dos casos, são todos aqueles que provocam hipoperfusão renal e diminuição do filtrado glomerular por hipovolémia ou diminuição do volume arterial efectivo.
    A hipovolémia estimula a libertação de substâncias vasoactivas para normalização do volume intravascular e da pressão arterial garantindo as perfusões cardíaca e cerebral, embora à custa da diminuição da perfusão renal.
    Ao nível do rim são postos em marcha mecanismos compensadores: libertação de prostaglandinas actuando como vasodilatadores intrarrenais, activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona que produz aumento da pressão hidrostática intraglomerular, e dilatação da arteríola aferente. A lesão renal inicial é funcional, mas se a noxa for intensa ou prolongada desencadeará LRA estrutural (renal/intrínseca).

  • Renal/Intrínseca
    Esta causa de LRA, surgindo em cerca de 11% das situações, como resultado da isquémia inicial mantida, pode resultar também doutros tipos de noxas actuando directamente ao nível das diversas estruturas renais, vasculares, glomerulares, tubulares ou intersticiais. Na ausência ou défice de mecanismos renais compensadores perpetua-se a lesão celular traduzida de vários modos como necrose tubular aguda, necrose cortical ou, mais raramente, necrose papilar ou nefrite intersticial. Esta subdivisão é meramente académica usando a definição de LRA.

  • Pós-renal/Obstrutiva
    Esta causa de LRA é em geral de origem urológica, relacionada com a obstrução mecânica, intrínseca ou extrínseca do tracto urinário, bilateral, ou unilateral em caso de rim solitário. A consequência é a interrupção do fluxo urinário, o que pode acontecer em cerca de 3% dos casos de LRA.
    Os referidos factores etiológicos, incluindo os que actuam no RN, são sistematizados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Principais factores etiológicos de LRA

Pré-renal
    • Hipoperfusão renal
      • Asfixia perinatal
      • Choque séptico
      • Hiperviscosidade
      • Hipovolémia
      • Desidratação
      • Suprimento hídrico insuficiente
      • Hemorragia
      • Transfusão feto-fetal
      • Hemorragia feto-materna no periparto
      • Prolapso/avulsão do cordão umbilical
    • Hipoalbuminemia
    • Patologia cardiovascular
      • Coarctação da aorta/síndroma da aorta média
      • Canal arterial patente
      • Tamponamento cardíaco
      • Cirurgia cardíaca
Renal/Intrínseca
    • Anomalias congénitas
    • Glomerulonefrites
      • Pós-infecciosa
      • Lúpus eritematoso
      • Púrpura de Henoch-Schonlein
      • Membranoproliferativa
      • Antimembrana basal glomerular
    • Síndroma hemolítica urémica
    • Necrose tubular aguda
    • Necrose cortical
    • Trombose da veia renal
    • Rabdomiólise
    • Nefrite intersticial aguda
    • Tumor
    • Síndroma de lise tumoral
    • Infecção
      • Pielonefrite
    • Obstrução intrarrenal
      • Ácido úrico, mioglobinúria ou hemoglobinúria
    • Fármacos nefrotóxicos
      • Aminoglicosídeos, Vancomicina
      • Inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA)
      • Anfotericina B, Aciclovir
      • AINE (Indometacina e outros)
Pós-renal ou Obstrutiva
    • Anomalias congénitas bilaterais
      • Ureterocele
      • Megauréter
      • Obstrução na junção ureteropiélica
      • Obstrução na junção ureterovesical
    • Anomalias congénitas unilaterais
      • Prepúcio imperfurado
      • Estenose da uretra
      • Válvulas da uretra posterior
    • Tumor
    • Urolitíase
    • Compressão extrínseca
      • Teratoma sacrococcígeo
      • Hematocolpos
    • Alterações vesicais
      • Bexiga neurogénica
      • Cistite hemorrágica

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas dependem da etiologia e do tipo de lesão renal. Salienta-se que não existe qualquer sintoma que oriente no sentido de desenvolvimento de LRA. Por vezes somente se verifica elevação da ureia ou creatinina séricas, o que poderá atrasar o diagnóstico.

No RN pode evidenciar-se por sinais clínicos frustres ou levar ao desenvolvimento de falência renal aguda com necessidade de terapêutica de substituição. Pode por vezes cursar com alterações analíticas diversas e graves como hipercaliémia, hiponatrémia, hiperfosfatémia, hipocalcémia e acidose metabólica. Apesar de a oligúria ser um achado frequente e relevante, a LRA pode cursar com um débito urinário normal ou poliúria.

Em qualquer idade são frequentes os sintomas derivados da sobrecarga de volume como no quadro de lesão renal oligúrica: edema, HTA, insuficiência cardíaca (fervores crepitantes nas bases pulmonares, turgescência das jugulares, hepatomegália, edema agudo pulmonar, edema periférico nomeadamente na face, pálpebras, lábios, dorso das mãos e pés, escroto/vulva), etc..

Nos quadros secundários a depleção do volume, em geral presentes desde o início da LRA de causa pré-renal, são notórios os sinais e sintomas de desidratação: mucosas secas, olhos encovados, fontanela deprimida, taquicardia, hipotensão e preenchimento capilar lento.

Outros achados podem ser: palpação de massa abdominal resultante de nefromegália no contexto de trombose dos vasos renais, ou verificação de globo vesical explicável por obstrução uretral, avaliação do jacto urinário.

O aparecimento de dismorfias, lesões cutâneas, sinais de artrite ou adenopatias pode levantar a suspeita de doença sistémica como vasculite ou lúpus.

Critérios de diagnóstico

1. Exames complementares

O diagnóstico de LRA deve basear-se na história clínica rigorosa (anamnese e exame objectivo) tentando identificar possíveis factores predisponentes e/ou causais e o grau de compromisso da função renal. Para tal será necessário proceder a um conjunto de exames complementares escolhidos de modo racional e fundamentado: genericamente, certas análises de sangue e urina e ecografia abdominal (ver adiante – Exames complementares). O diagnóstico precoce pode evitar a progressão para lesão renal irreversível.

A determinação da ureia e creatinina séricas juntamente com a avaliação da diurese continuam a ser genericamente os marcadores utilizados na prática clínica para valorizar o grau de lesão renal e o seu possível mecanismo desencadeante.

1.1 Creatinina sérica

A creatinina sérica continua a ser largamente utilizada como marcador da função renal na estimativa da avaliação taxa de filtração glomerular (TFG). Apresenta, contudo, algumas particularidades que a tornam oscilante no período de RN: aumento nos primeiros dias após o parto, seguido de uma diminuição, e ulterior estabilização na primeira semana de vida. Além disso, o seu aumento apenas é evidente 48-72 horas após o início da LRA e na presença de um atingimento significativo da função renal (perdas superiores a 25-50% da linha de base).

São inúmeras as variáveis que podem interferir no valor de creatinina sérica, nomeadamente:

  • Idade gestacional e idade pós-natal (Quadro 2);
  • Reabsorção e secreção de creatinina no epitélio tubular em grau
  • variável;
  • Influência da creatinina sérica materna (os níveis de creatinina são inicialmente um reflexo dos níveis maternos).

QUADRO 2 – Valores de creatinina sérica desde o nascimento

Idade gestacionalCreatinina sérica (mg/dL)
23-26 semanas0,77 – 1,05
27-29 semanas0,76 – 1,02
30-32 semanas0,70 – 0,80
33-45 semanas0,77 – 0,90
0-4 anos0,03 – 0,50
4-7 anos0,03 – 0,59
7-10 anos0,22 – 0,59
10-14 anos0,31 – 0,88
> 14 anos0,50 – 1,06
1.2 Débito urinário

Definindo-se oligúria como um débito urinário < 0,5-1 mL/kg/hora após as primeiras 24-48 horas, importa salientar que:

  • o débito urinário deve ser interpretado com precaução uma vez que cerca de 50% dos casos de LRA cursam com diurese normal ou poliúria; e
  • RN de termo, e nomeadamente o prematuro, têm uma fase oligúrica fisiológica nos primeiros dias de vida.
1.3 Taxa de filtração glomerular (TFG)

Utilizada como um parâmetro de avaliação da função renal. Calcula-se, de acordo com a fórmula de Schwartz, a partir da concentração sérica de creatinina e de acordo com a idade gestacional:

  • TFG (mL/min/1,73m2) = K x comprimento (cm) / creatinina sérica (mg/dL)
  • K (constante) = 0,33 no RN < 34 semanas; K = 0,45 no RN ≥ 35 semanas

No RN de termo a TFG aumenta progressivamente desde o nascimento até atingir o valor do adulto aos 1-2 anos de idade (100-125 mL/min/1,73m2).
No prematuro, estes valores são significativamente mais baixos e estão relacionados com a idade gestacional. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Média da TFG em RN pré-termo de acordo com a idade gestacional e idade pós-natal

DiaTFG média (mL/min/1,73 m2)
27 semanas28 semanas29 semanas30 semanas31 semanas
713,416,219,121,924,8
1416,219,121,924,827,6
2118,020,823,726,529,4
2821,023,926,729,632,4

O surgimento do conceito de LRA contribuiu largamente para simplificar e uniformizar a visão clínica, até então dispersa, quanto ao diagnóstico diferencial de entidades clínicas como necrose tubular aguda, necrose cortical, necrose papilar e lesão tubulointersticial.

A fim de padronizar a definição de LRA, classificar o respectivo padrão, e avaliar a gravidade e o prognóstico de cada situação, com base em determinados critérios adoptados inicialmente nos adultos, foi criado um acrónimo designado por RIFLE, com letras iniciais em inglês identificando cada critério, respectivamente, risk/risco, injury/lesão, failure/falência, loss/perda, e end-stage renal disease/estádio terminal da doença renal. Para a idade pediátrica e para crianças em estado crítico passou a adoptar-se o pRIFLE.

Considerando que o critério RIFLE se foca na taxa de filtração glomerular, passaram a ser considerados três estádios de acordo com a Acute Kidney Injury Network (AKIN) em função da elevação sérica da creatinina: estádio I > 150%; estádio II > 200%; estádio III > 300%.

Os Quadro 4, 5 e 6, documentando a aplicação de tais critérios aos períodos neonatal e pós-neonatal, permitem identificar objectivamente diversos graus de LRA, com valor prognóstico.

QUADRO 4 – Classificação da LRA (segundo os critérios RIFLE) – no RN

CritériosCreatinina/Taxa de filtração glomerular (TFG)Débito urinário
Risk/RiscoAumento da creatinina de 1,5 vezes
ou
Diminuição da TFG > 25%
≤ 0,5 mL/kg/h em 8 horas
Injury/LesãoAumento da creatinina de 2 vezes o valor basal
ou
Diminuição da TFG > 50%
≤ 0,5 mL/kg/h em 12 horas
Failure/FalênciaAumento da creatinina de 3 vezes
ou
Diminuição da TFG > 75%
≤ 0,3 mL/kg/h em 24 horas ou anúria em 12 horas
Loss/PerdaPerda completa da função renal > 4 semanas
End Stage/Estádio TerminalDoença renal em estádio terminal > 3 meses

QUADRO 5 – Classificação da LRA (critério RIFLE) – na idade pós-neonatal

CritériosEstimativa da Clearance da Creatinina (eCl-C)Débito urinário
Risk/RiscoDiminuída em 25%≤ 0,5 mL/kg/h em 8 horas
Injury/LesãoDiminuída em 50%≤ 0,5 mL/kg/h em 16 horas
Failure/FalênciaDiminuída em 75%
ou
eCl-C < 35 mL/min/1,73 m2
≤ 0,3 mL/kg/h em 24 horas ou anúria em 12 horas
Loss/PerdaPerda completa da função renal > 4 semanas
End Stage/Estádio TerminalDoença renal em estádio terminal > 3 meses

QUADRO 6 – Classificação da LRA (segundo os critérios AKIN)

EstádioCreatinina séricaDébito urinário
0Sem alteração ou aumento < 0,3 mg/dL≥ 0,5 mL/kg/h
I– Aumento ≥ 0,3 mg/dL em 48 horas
ou
– Aumento > 1,5-1,9 vezes em relação a valor menor anterior
<0,5 mL/kg/h por 6-12 horas
IIAumento ≥ 2,0-2,9 vezes em relação a valor menor anterior< 0,5 mL/kg/h > 12 horas
III– Creatinina sérica ≥ 2,5 mg/dL
– Aumento ≥ 3 vezes em relação a valor menor anterior
ou
– Diálise
< 0,3 mL/kg/h > 24 horas ou anúria > 12 horas

Em suma, os critérios que integram os Quadros 4, 5 e 6 (pRIFLE e AKIN) permitem detectar com maior sensibilidade e mais precocemente situações de LRA, objectivando a sua evolução; com efeito, de um limiar anteriormente considerado de creatinémia de 1,5 mg/dL, passou a valorizar-se de modo seriado o incremento da creatininémia e a evolução da diurese, o que permitirá estabelecer com maior rigor o prognóstico.

2. Outros exames complementares

2.1. O estudo analítico sanguíneo deve incluir hemograma, ureia e creatinina séricas, ionograma (cloro, sódio e potássio), cálcio, fósforo e gasometria. Na urina deve estudar-se o sedimento, pH, densidade/osmolalidade e ionograma. Em função do contexto clínico de cada caso, para além doutros exames, haverá que ponderar determinados parâmetros para estudo da inflamação e exames culturais perante suspeita de infecção.

2.2. Biomarcadores: devido às limitações dos parâmetros diagnósticos abordados, têm sido alvo de estudo vários possíveis marcadores de função renal independentes da TFG na tentativa de detecção precoce das alterações representativas de LRA; citam-se os seguintes, com relativo valor prognóstico:

  • cistatina C (sérica);
  • interleucina 18 (urinária);
  • calprotectina urinária;
  • lipocalina associada à gelatinase neutrofílica sérica e urinária (NGAL, neutrophil gelatinase associated);
  • molécula de lesão renal urinária (KIM-1, kidney injury molecule).

Num estudo recente, avaliando o papel dos últimos três marcadores quanto à avaliação do prognóstico, designadamente quanto ao risco de mortalidade e necessidade de terapia de substituição, concluiu-se que a calprotectina e a KIM-1 têm maior relevância quanto à previsão da necessidade de terapia de substituição, enquanto a NGAL revelou maior interesse preditivo quanto à mortalidade no contexto de LRA de diversa etiologia.

2.3. Avaliação imagiológica: a ecografia renovesical é o exame de imagem de primeira linha, permitindo a avaliação de anomalias congénitas, de alterações do parênquima renal, de obstrução urinária, de trombose da veia renal, bem como de estenose da artéria renal ou de lesões associadas a síndroma da aorta média (técnica com Doppler).

3. Diagnóstico diferencial entre LRA pré-renal e renal

Para o diagnóstico diferencial entre LRA pré-renal e renal tem interesse prático a valorização dos parâmetros que integram o Quadro 7.

QUADRO 7 – Parâmetros utilizados no diagnóstico diferencial entre LRA pré-renal e renal

FE Na = Fracção (%) excretada de Na = (Cr S x Na U / Cr U x Na S) x 100;
FE ureia = Fracção (%) excretada de ureia = (Cr S x ureia U / Cr U x ureia S) x 100; U = na urina; S = no sangue;
IFR = Índice de falência renal = Cr S x Na U / Cr U ; Cr = creatinina; Na = sódio; RN = recém-nascido
Índice LRA pré-renal LRA renal
Densidade urinária> 1.020< 1.020
Osmolalidade urinária> 500 mOsm/kg H2O
> 400 mOsm/kg H2O (RN)
< 300 mOsm/kg H2O
< 400 mOsm/kg H2O (RN)
Na urinário< 10 mEq/L
< 30 mEq/L (RN)
> 60 mEq/L
> 60 mEq/L (RN)
FE Na< 1%
< 2,5 %(RN)
> 2%
> 2,5% (RN)
FE ureia< 35%> 35%
Cr U/ Cr S> 40
> 30 (RN)
< 20
< 10 (RN)
IFR< 1
< 3 (RN)
> 1
> 3 (RN)

Tratamento

Aspectos gerais

O objectivo do tratamento da LRA é evitar as complicações, manter a homeostasia de líquidos e electrólitos, propiciar suporte nutricional adequado e iniciar tratamento substitutivo quando estiver indicado. Nos casos de LRA pré-renal (potencialmente reversível e cuja identificação deve ser precoce) importa proceder-se à correcção urgente da hipovolémia, hipotensão e hipoxémia mediante hidratação e ventilação adequadas para manter a perfusão renal. Salienta-se que importa verificar previamente a existência de factores de risco de sobrecarga cardiopulmonar e de obstrução urinária.

No caso de não estarem presentes tais factores de risco, a desidratação corrige-se com NaCl 0,9%, 10 mL/kg/hora, a repetir, se necessário. Em contexto de evolução favorável surgirá diurese de 2-3 mL/kg/hora nas próximas horas; se tal não acontecer um terceiro ciclo será útil, acautelando a eventualidade se estar em presença de LRA intrínseca ou pós-renal. O papel da furosemida e da dopamina é discutido adiante.

Na forma pós-renal, a identificação de retenção urinária estabelece a indicação de desobstrução urgente, medida que poderá ser suficiente para a reversão do problema.

Quanto à LRA renal/intrínseca, a actuação traduz-se por medidas preventivas e de suporte, nomeadamente, a correção de desequilíbrios hidroelectrolíticos, ácido-base e fosfocálcico. O ajuste posológico de fármacos nefrotóxicos é mandatório.

Aspectos específicos

Fluidoterapia

Pormenorizando com o modelo aplicado ao RN, importa referir que a monitorização do edema, diurese, balanço hídrico, parâmetros analíticos, e do peso cada 12 ou 6 horas permitirá fazer a avaliação da volémia e calcular o suprimento hidroelectrolítico.

A necessidade de fluidos varia de acordo com a etiologia da LRA, das perdas mensuráveis e das insensíveis (0,5-1 mL/kg/hora no RN de termo), sendo a regra de ouro na LRA do RN a manutenção de “traços” de edema periférico, mas sem evidência auscultatória de fervores crepitantes, nem de turgescência jugular.

Como regra geral, torna-se frequentemente necessária a restrição hídrica, a qual pode atingir os 25% das necessidades diárias.

Suporte nutricional

No RN a alimentação recomendada consiste no suprimento energético de 90-120 kcal/Kg/dia sem restrição proteica com o intuito de evitar o catabolismo e a produção excessiva de metabólitos nitrogenados.

A via de eleição é a entérica e o leite materno o ideal. A alternativa é a fórmula com baixa carga de solutos e baixo nível de potássio e fósforo.

Na necessidade de alimentação parentérica a carga proteica, incluindo aminoácidos essenciais, não deve exceder 1-2 g/kg/dia e a emulsão lipídica os 2 g/kg/dia (30-40% do total energético). O suprimento de glicose e outros solutos deve ser adequado a cada caso.

Uma vez que a necessidade de restrição hídrica em RN com oligúria condiciona a adequada ingestão calórica, é habitual a perda de peso na ordem dos 0,2-0,1% por dia (após a primeira semana de vida).

No período pós-neonatal é estabelecida a regra geral de restrição de sódio, potássio e fósforo. O suprimento proteico deve ser moderadamente reduzido, promovendo, tanto quanto possível em função do contexto de cada caso clínico, incrementar o suprimento calórico a fim de minorar a acumulação de catabólitos nitrogenados.

Nota: O suprimento dos nutrientes deve ter em conta a situação metabólica e a classificação pRIFLE.

Alterações electrolíticas

As alterações mais comuns são a hiponatrémia, hipercalémia e hiperfosfatémia, mas podem acontecer hipocalémia e hipomagnesémia (comum na toxicidade por aminoglicosídeos) dependendo da etiologia.

Hiponatrémia (Na sérico < 130 mEq/L)

A atitude prioritária na presença de hiponatrémia é a restrição hídrica uma vez que habitualmente se trata duma hiponatrémia de diluição por sobrecarga hídrica.

É importante relembrar que imaturidade renal cursa com excreção urinária de sódio aumentada, sendo necessário vulgarmente o suplemento com NaCL na alimentação entérica ou parentérica.

Na hiponatrémia sintomática (letargia, convulsões) ou grave (Na sérico <120 mEq/L), deve ser feita correção urgente com NaCl a 3%, utilizando-se a fórmula, admitindo como desejável atingir Na de 125 mEq/L:

mEq de Na requerido = 0,6 x peso em kg x 125 – Na actual em mEq/L.

Hipercaliémia (K > 6 mEq/L)

Os níveis de potássio sérico devem ser inferiores a 6,0 mEq/L e monitorizados frequentemente: se > 7,0 mEq/L deve administrar-se – gluconato de cálcio a 10% – 1 mL/kg IV em 3-5 minutos; – bicarbonato de sódio, 1-2 mEq/kg IV em 5-10 minutos; glicose/insulina (insulina regular 0,1U/kg com solução de glucose a 50%, 1 mL/kg em 1 hora.

A resina permutadora de catiões será eficaz na regularização mais sustentada do potássio, pois impede a absorção intestinal e deve iniciar-se se K > 6,5 mEq/L. O Resonium A® (resina permutadora de iões) e o Kayexalate® (sulfonato poliestireno de sódio) podem ser administrados por via rectal.

A terapêutica de substituição da função renal será opção no caso de hipercalémia refractária à terapêutica conservadora. (ver adiante)

Nota: Na LRA oligúrica, não deve ser administrado potássio (nem fósforo).

Hipocalcémia

O défice do metabólito activo da vitamina D e o hiperparatiroidismo secundário contribuem para a hipocalcémia, a qual potencia a toxicidade cardíaca da hipercaliémia.

Para tratamento da hipocalcémia, a actuação prioritária diz respeito à diminuição do fósforo sérico (dieta com diminuição do P, e quelantes do P facilitando a excreção gastrintestinal do mesmo – por ex. carbonato de cálcio 50-100 mg/Kg/dia, oral, 6/6h às refeições, misturado com leite. Posteriormente: gluconato de cálcio oral a 10% (5-8 mL/kg/dia).

Se sintomática/tetania: gluconato de cálcio a 10% IV, 1-2 mL/kg em 5-10 minutos: ponderar perfusão em 24 horas se hipocalcémia persistente na dose de 5-8 mL/Kg/dia.

Hiperfosfatémia

Em complemento do que foi referido a propósito da hipocalcémia, nesta situação específica, reitera-se:

  • a necessidade de reduzir o suprimento de fósforo na dieta através da utilização de leite materno ou de fórmulas lácteas com baixo teor em fosforo, em função da idade do paciente;
  • administração de quelantes de fósforo obrigatória.

Nota: Na LRA oligúrica, não deve ser administrado fósforo (nem potássio).

Alterações do equilíbrio ácido-base

Se acidose metabólica grave (pH < 7,2 e/ou HCO3 ≤ 12 mmol/L) deve administrar-se bicarbonato de sódio oral ou endovenoso, de acordo com a fórmula:

HCO3 (mEq) a administrar: (HCO3 desejado – HCO3 actual) x peso (kg) x 0,3

Uma vez que o tratamento da acidose metabólica diminui o nível de cálcio ionizado, é necessário assegurar valores séricos de cálcio adequados para prevenir tetania e convulsões.

Farmacoterapia

O uso de fármacos deve ser bem ponderado pois não está provado cientificamente o benefício da utilização de diuréticos de ansa e de dopamina, designadamente no que se refere ao prognóstico a curto e médio prazo. De acordo com normas actuais, não é recomendado. No RN, nos status pós-asfixia perinatal e no contexto de prevenção e tratamento da LRA, a dopamina também não é actualmente recomendada.

A teofilina, um antagonista do receptor de adenosina e, consequentemente, da vasoconstrição, está indicada nos casos de asfixia perinatal devendo a administração ser feita no pós-parto imediato (dose única) por se ter demonstrado efeito profiláctico da LRA neste contexto após ponderação de risco neurológico (KDIGO).

Hipertensão arterial

A hipertensão arterial é geralmente secundária ao aumento do volume intravascular ou à libertação de renina.

No primeiro caso, pode ser preconizada a utilização de diuréticos ou a diálise.

Em casos de falência de resposta ou associados a renina sérica elevada, preconiza-se a administração de fármacos anti-hipertensores como antagonistas de canais de cálcio (amlodipina – 0,1-0,6 mg/kg/24h) ou betabloqueantes (propranolol – 0,5-8,0 mg/kg/24h ou labetalol – 0,5-8,0 mg/kg/24h), mas não de inibidores da enzima de conversão da angiotensina.

Nas formas graves sintomáticas e implicando tratamento urgente ou emergente pode utilizar-se infusão contínua de nicardipina (0,5-5,0 mcg/kg/minuto).

Terapêutica de substituição da função renal (TSFR)

A TSFR, englobando diversas modalidades – diálise peritoneal, hemodiálise, hemofiltração e hemodiafiltração – é utilizada quando as medidas de suporte anteriormente enumeradas não resolvem as complicações. O seu tipo será seleccionado individualmente e o início deve ser precoce, pois condiciona o prognóstico.

As indicações da TSR incluem:

  • Anúria/oligúria;
  • Sobrecarga de volume com evidência de hipertensão e/ou edema pulmonar refractário à terapêutica diurética;
  • Hipercaliémia e acidose metabólica;
  • Urémia sintomática/ureia > 100-150 mg/dL (pericardite, neuropatia, encefalopatia);
  • Incapacidade de concretizar regime nutricional adequado tendo em conta a indispensável restrição de fluidos.

A retenção de fluidos, além de constituir o motivo principal para a instituição de TSFR, é considerada por si só um factor de mau prognóstico independente da LRA, mas directamente proporcional ao grau da mesma.

Dentro das diversas modalidades de TSFR, a diálise peritoneal continua a ser a mais utilizada pela fácil execução e pela relativamente baixa de complicações associadas.

Prognóstico

O prognóstico LRA depende da etiologia, gravidade, precocidade do diagnóstico e duração da lesão. A de causa pré-renal é potencialmente reversível e de excelente prognóstico. Pelo contrário, a de causa renal tem prognóstico reservado a avaliar pela taxa de mortalidade associada que pode atingir 25-50%.

São factores de mau prognóstico indiciando lesão renal permanente na idade adulta: oligoanúria, falência multiorgânica, instabilidade hemodinâmica, nefrouropatia congénita, necessidade de ventilação assistida e necessidade de TSFR.

Dada a elevada probabilidade de surgimento de doença renal crónica na sequência de LRA, esta última situação obriga à necessidade de seguimento contínuo especializado.

Em função do contexto clínico, o estudo dos biomarcadores séricos e urinários atrás citados poderão também contribuir para o prognóstico.

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DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL DAS UROPATIAS MALFORMATIVAS

Importância do problema

As anomalias nefro-urológicas constituem a patologia mais frequentemente detectada por ecografia fetal (variando entre 1 a 5% do total das gravidezes, sendo a dilatação do bacinete (ou piélica) e cálices, em grau variável (hidronefrose/HN, no sentido lato) a alteração mais comum, sugerindo a presença de processo obstrutivo.

Importa, contudo, realçar que o atraso na maturação do sistema urinário fetal poderá originar dilatação transitória da via excretora, designadamente do bacinete, no período pós-natal sem repercussão sobre a função renal. Tal dilatação surge em regra a partir da 28ª semana de gestação como resultado do aumento da produção da urina, a qual duplica entre a 32ª e 39ª semanas.

O maior benefício do rastreio pré-natal é permitir o diagnóstico e tratamento precoces das referidas anomalias, evitando complicações como infecção urinária, litíase e perda progressiva da função renal. No entanto, o tópico em análise suscita ainda certas controvérsias relacionadas sobretudo com os critérios diagnósticos para identificar casos de crianças em risco de lesão renal, o que tem implicações na actuação pós-natal.

Definição de hidronefrose pré-natal e dimensões do bacinete

O diâmetro ântero-posterior do bacinete em mm (DAPB) avaliado por ecografia fetal é o indicador mais estudado para avaliar a HN pré-natal, a qual poderá ter subjacente patologia diversa.

Existem diversos factores susceptíveis de influenciar o DAPB tais como a idade gestacional (particularidade já citada), o estado de hidratação da grávida e o grau de distensão da bexiga. Uma vez que as dimensões do bacinete aumentam normalmente com a idade gestacional, os investigadores estabeleceram valores-limite do referido diâmetro de acordo com a idade gestacional. (Quadro 1)

Relativamente ao critério DAPB utilizado como critério único há no entanto que atender a certas limitações, como: – a possibilidade de certo grau de variabilidade nas medições obtidas de observador para observador; e – não se considerar a dilatação dos cálices ou o grau de “compressão e de diminuição da espessura do parênquima” podendo indiciar grau mais acentuado de obstrução.

QUADRO 1 – Hidronefrose pré-natal e DAPB

Grau de HN pré-natal 2º Trimestre 3º Trimestre
Ligeira4 – < 7 mm7 – < 9 mm
Moderada7 – 10 mm9 – 15 mm
Grave> 10 mm> 15 mm

Ecografia fetal e risco de disfunção renal

De acordo com a Society for Fetal Urology (SFU) a gravidade da hidronefrose fetal é estabelecida com base nos achados ecográficos renais, considerando-se graus de 0 a 4 em função de critérios morfológicos especificados no Quadro 2.

QUADRO 2 – Classificação da gravidade da hidronefrose fetal/SFU

Grau de HNComplexo renal centralEspessura do parênquima renal
0IntactoNormal
1Ligeiro splittingNormal
2 Preenchimento do bacinete com ou sem dilatação dos cálicesNormal
3Grau 2 + dilatação uniforme dos cálices de menores dimensõesNormal
4Alterações iguais às do Grau 3Diminuída

O chamado índice de Zhan, segundo a experiência dalguns centros, quantificando os parâmetros DAPB em mm, a espessura do parênquima em mm, e a morfologia/grau de ectasia dos cálices, permite estabelecer a destrinça entre hidronefrose fisiológica e patológica.

 Os achados considerados representativos de perda funcional do parênquima são fundamentalmente: perda da diferenciação córtico-medular, parênquima hiperecogénico, e a presença de quistos renais.

Os aspectos da HN fetal mais provavelmente associados a patologia pós-natal são: a diminuição da espessura parenquimatosa, a dilatação dos cálices, dilatação ureteral, presença concomitante de anomalias cromossómicas, de anomalias congénitas múltiplas e de oligoâmnio.

De salientar que a avaliação do líquido amniótico é um indicador da função renal, com implicações no prognóstico; oligoâmnio grave na presença de uropatia está associado a mau prognóstico. Com base em estudos multivariados, a associação de oligoâmnio a válvulas da uretra posterior é preditiva de insuficiência renal crónica.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com a Society for Fetal Urology (SFU) e HT Nguyen, a hidronefrose detectada no período pré-natal é explicável por diversas situações surgindo com frequências diversas: transitória/fisiológica (50-70%) – a mais comum, obstrução uretero-pélvica (10-30%), refluxo vésico-ureteral (RVU) (10-40%), obstrução da junção uretero-vesical (5-15%), displasia renal multiquística (2-5%), válvulas da uretra posterior (1-5%), ureterocele (1-3%), situações mais raras (quistos renais, ectopia do uréter, síndroma prune-belly, rim poliquístico, etc.) (<1%).

Numa casuística da Unidade de Nefrologia do Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa, abrangendo 362 casos com anomalias ecográficas pré-natais num período de dez anos (1997-2006) verificou-se um predomínio de hidronefrose fetal (78,5%); quistos/displasia multiquística em 10,8%, oligoâmnio em 3,3%, e outras anomalias (não nefro-urológicas) em 3,8%. No estudo evolutivo pós-natal de 284 crianças com antecedentes de hidronefrose fetal confirmou-se uropatia em 44% dos casos. (M Abranches, J Baptista, et al)

Num estudo multicêntrico nacional no âmbito das Secções de Nefrologia, e Neonatologia da SPP, e da Sociedade de Cirurgia Pediátrica realizado em 2012, foram divulgados os dados ecográficos pré-natais/3º trimestre, os quais constam do Quadro 3. De acordo com o referido estudo, cabe salientar que em 81% das crianças evidenciando no período pré-natal sinais de ectasia piélica ou ureteral não obstrutiva (das quais 80% com DAPB < 16 mm) verificou-se evolução para a normalidade, ou para melhoria do grau de hidronefrose nos dois anos de seguimento pós-natal.

QUADRO 3 – Resultados de ecografias pré-natais no 3º trimestre

* excluídos 59 casos por DAPB não quantificado foram excluídos 59 casos; nos casos de patologia bilateral, foi considerado o bacinete com maior DAPB . (*) (Estudo multicêntrico nacional atrás citado).
(n= 736)*Hidronefrose620
Displasia multiquística37
Agenesia8
Megauréter7
Duplicidade pielo-ureteral3
Rim pélvico1
Rim em ferradura1

Actuação pré-natal imagiológica e intervenção

  1. É geralmente recomendado que a identificação de HN (DAPB > 4 mm no 2º trimestre, ou > 7 mm no 3º trimestre) obrigue a seguimento rigoroso.
  2. A presença de achados suspeitos de válvulas da uretra posterior (VUP), tais como bexiga dilatada, oligoâmnio, e hidroureteronefrose bilateral obriga a vigilância rigorosa da gravidez; em função da gravidade do oligoâmnio, poderá ser necessário estudo ecográfico fetal de 4-4 semanas.
  3. Em presença de oligoâmnio de gravidade crescente, está indicada a derivação vésico-amniótica a meio do 2º trimestre na tentativa de recuperação da função renal pela descompressão da uropatia obstrutiva em causa e, igualmente, com o objectivo de “recomposição” volumétrica do líquido amniótico susceptível de garantir o desenvolvimento do pulmão fetal. Todavia, com este procedimento têm sido obtidos resultados frustrantes nalguns centros.
  4. No que respeita à avaliação da função renal em situações de HN associada a uropatia obstrutiva grave, está indicada a punção vesical fetal para ionograma urinário.
  5. A análise de biomarcadores na urina fetal – a que se fez referência no capítulo sobre CAKUT em geral – poderá ajudar a seleccionar uropatias obstrutivas que beneficiem de intervenção pré-natal no sentido da preservação da função renal.
  6. Segundo estatísticas de centros de referência internacionais, a interrupção tem sido praticada em 60% dos casos de CAKUT incompatíveis com a vida (agenesia e/ou displasia multiquística bilateral), ou face a patologia com previsível má qualidade de vida (spina bífida, extrofia vesical/epispádia e síndroma prune-belly).

Actuação pós-natal

Verificando-se que na actualidade existe um melhor conhecimento da história natural e não se dispõe de exames complementares considerados gold standard relativamente às uropatias obstrutivas, a actuação pós-natal deve ser adaptada a cada caso concreto, valorizando à partida o grau de HN observado durante a avaliação fetal.

De acordo com o grau de dilatação do bacinete/DAPB nas datas e circunstâncias especificadas, deve adoptar-se o seguinte procedimento:

  • Ecografia renopélvica
    • 0 – 48 horas: se hidronefrose bilateral, megauréter, parede vesical espessada);
    • 3 – 7 dias: se hidronefrose bilateral;
    • 10-14 dias: se hidronefrose unilateral.

Embora não exista consenso em muitas questões relacionadas, a verificação pós-natal do DAPB = ou > 16 mm entre os 3 e 7 dias de vida pós-natal no contexto de HN isolada, obriga a ulterior investigação a seguir discriminada.

  • Cisto-uretrografia miccional seriada (CUMS)
    • detectar a presença e grau de refluxo vésico-ureteral (RVU);
    • avaliar a bexiga para detecção de divertículos e ureteroceles;
    • avaliar eventual obstrução na junção ureterovesical/ocorrendo em 10% dos casos de RVU;
    • avaliar a uretra para detecção de válvulas da uretra posterior.

     Notas:    

    • a realização universal de CUMS não se justifica com base no conhecimento da história natural de todas as patologias, sendo que muitas das mesmas cursam sem infecção do tracto urinário (ITU);
    • salienta-se que não são indicações de CUMS: DAPB < 16 mm no contexto de HN isolada, pois em tal circunstância o RVU, presente em 10-15% dos casos, é geralmente não patológico e de resolução espontânea até aos 12-18 meses.

  • Cisto-uretrografia radio-isotópica/gamacistografia
    A cisto-uretrografia radio-isotópica/gamacistografia é realizada com radiofármacos (mercaptoacetil triglicina-MAG-3) não absorvidos pela mucosa vesical. Tal procedimento expõe 100 vezes menos o paciente à radiação relativamente à CUMS.

  • Cirurgia urológica
    As indicações para cirurgia urológica nas primeiras semanas de vida são raras; para os primeiros dias de vida extrauterina a sua realização deve ser programada se houver suspeita de uropatia obstrutiva baixa (válvulas da uretra posterrior, prune-belly, etc).
    Atendendo ao risco acrescido de ITU/sépsis iatrogénica, deve ser protelada para além dos 9-12 meses nas outras situações, consideradas não consensuais: DAPB = ou > 16 mm, duplicidade, megauréter, parede vesical espessada.

  • Exames com radiofármacos – cintigrafia e renograma
    Trata-se de exames considerados complementares da ecografia, indicados para avaliação do grau de compromisso do parênquima renal, função renal diferencial e caracterizar o grau de obstrução. Como regra geral, a cintigrafia realiza-se após as 6 semanas de idade tendo em conta o processo de maturação renal.
    Para a realização de cintigrafia e de renograma são utilizados essencialmente dois radiofármacos:
    • MAG3-Tc99 (mercaptoacetiltriglicina, depurado por secreção tubular, possuindo alta fracção de extracção pelos rins); é útil no diagnóstico de obstrução, devendo ser adiado para além dos 4 meses, pois a interpretação de resultados está prejudicada pela imaturidade renal;
    • DMSA-Tc99 (ácido dimercapto-succínico, ligando-se principalmente às células dos túbulos proximais); confirma a ausência de função renal sendo útil na comprovação de exclusão renal funcional global (agenesia, hipodisplasia) ou sectorial (duplicidade com refluxo polar inferior).

Utiliza-se o estímulo diurético da furosemida (1 mg/kg) quando for visualizada a máxima distensão do bacinete. De referir que os bacinetes demasiado distendidos e sem obstrução servem como “reservatório”, não se verificando eliminação do radiofármaco após o estímulo diurético.
 

  • Ressonância magnética urográfica
    Apesar de proporcionar melhor informação morfofuncional que outros exames imagiológicos, tem maiores custos e exige sedação.

  • Biomarcadores e hidronefrose
    Sobre a importância dos biomarcadores sugere-se ao leitor a consulta do capítulo sobre CAKUT.

  • Profilaxia da infecção do tracto urinário (ITU)
    A justificação clássica da profilaxia da ITU com antimicrobiano reside no pressuposto de que nos casos de CAKUT e, nomeadamente em contexto de HN detectada no período pré-natal, existe risco aumentado daquela. De facto, está provado que o risco de ITU aumenta proporcionalmente ao grau de HN, apontando as estatísticas avaliadas aos 36 meses de idade para ITU em 40% das crianças com HN de grau 4, versus 11% nos casos de HN de grau ligeiro. Também se demonstrou que o risco é mais elevado nas situações obstrutivas do que nas não obstrutivas, e igualmente nos casos de hidroureteronefrose com ou sem RVU.
    Contudo a realidade aponta para o facto de não se verificar diferença estatisticamente significativa entre a proporção de doentes com ITU e antecedentes da referida profilaxia e a daqueles não submetidos à mesma medicação.
    Enquanto actualmente a maioria dos centros idóneos desaconselha a profilaxia, as normas da SFU de 2010 recomendam a profilaxia apenas para doentes com o grau mais elevado de hidronefrose, hidroureteronefrose e RVU, ou para os submetidos a drenagens para resolução de problemas obstrutivos.
    Contudo, na eventualidade de se optar por profilaxia, é possível gerar-se controvérsia dado que se torna fundamental ponderar a duração da medicação e a possibilidade de resistências a antimicrobianos a médio prazo, com risco de “escalada antimicrobiana”.
    Em suma, este panorama aponta para a necessidade de bom senso clínico e rigor na vigilância de situações complexas.
    Como regra geral, quando indicada e em toma única diária, utiliza-se o trimetoprim em suspensão a 1%, manipulada, na dose de 1 mg/kg/dia. 

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UROPATIA OBSTRUTIVA

Importância do problema

A obstrução do tracto urinário pode ser congénita (anatómica), ou adquirida, isto é, causada por traumatismo, neoplasia, cálculos, processos inflamatórios e, finalmente, como complicação de procedimentos cirúrgicos.

Na maior parte dos casos, trata-se de lesões de natureza congénita.

As lesões obstrutivas podem localizar-se a qualquer nível, desde o meato uretral às infundíbula caliciais.

As repercussões sobre o parênquina renal dependem do nível da obstrução, do seu grau, da idade da criança e do modo como surge (agudo ou crónico).

Seguidamente são descritas algumas das entidades clínicas mais representativas deste tipo de patologia.

SÍNDROMA DA JUNÇÃO PIELO-URETERAL

Definição e aspectos epidemiológicos

A síndroma da junção pielo-ureteral (SJPU) é uma anomalia do aparelho urinário superior caracterizada pela obstrução funcional ou estrutural da junção pielo-ureteral, de carácter completo ou parcial. Essa obstrução pode ser devida a um obstáculo mucoso endoluminal do uréter, a disposição anómala das fibras espirais da parede ureteral, a válvula anómala do uréter, a angulação do mesmo, a compressão extrínseca por bandas fibróticas retroperitoneais, ou por vaso anómalo originário da artéria renal polar inferior.

A SJPU é responsável por dilatação progressiva do bacinete e dos cálices renais e, em estádios mais avançados, por compressão do parênquima renal com alterações da diferenciação córtico-medular e parênquimo-sinusal.

Este defeito tem uma incidência de 1/2.000 nascimentos, sendo mais frequente no sexo masculino e no lado esquerdo. A anomalia pode ser bilateral em 20% dos casos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Actualmente, devido aos progressos verificados na vigilância pré-natal e à rotina do estudo ecográfico durante o referido período, esta anomalia do aparelho urinário é a mais frequentemente detectada por diagnóstico pré-natal.

De salientar que o achado ecográfico de dilatação do excretor superior não é sinónimo ou indicativo de obstrução mecânica total, podendo esta situação desaparecer no período neonatal precoce; contudo, tal achado obriga a uma atitude de observação clínica e imagiológica seriada.

Os factores de decisão quanto à atitude mais correcta a tomar são: a sintomatologia, a evidência de agravamento imagiológico, e a degradação progressiva da função renal.

Por essa razão, está indicado proceder a um conjunto de exames complementares que nos auxiliam na decisão terapêutica durante o período neonatal.

Nos doentes sem diagnóstico pré-natal ou sem sintomatologia neonatal, o quadro clínico pode ser muito variável. Pode manifestar-se como infecção urinária, como dor abdominal – lombar recorrente, como massa lombar pela dilatação extrema do bacinete, ou como hipertensão arterial.

Na segunda infância, a SJPU pode ser causa de hematúria macroscópica pós-traumatismo do rim, mesmo ligeiro.

O diagnóstico deste defeito é fundamentalmente imagiológico. A ecografia permite identificar a dilatação do bacinete e dos cálices renais, e também estabelecer a diferenciação córtico-medular e parênquimo-sinusal no rim afectado.

O renograma isotópico DTPA permite confirmar a presença de obstrução mecânica à excreção do radiofármaco, mais evidente na prova com furosemido. Salienta-se que estes exames podem ser unicamente realizados após a 3ª ou 4ª semana de vida por limitações técnicas que se prendem com o peso do recém-nascido, a sua capacidade de processamento do radiofármaco e a captação pelos aparelhos de leitura.

Actualmente, o uso de renograma com MAG3 pode encurtar o intervalo de estudo para a 2ª semana de vida. Com efeito, o renograma isotópico permite avaliar a função renal diferencial e a taxa de filtração glomerular.

A utilização de contraste iodado convencional na urografia endovenosa (de eliminação) está reservada apenas para casos particulares para delimitação anatómica (por imagem) do excretor alto.

Indicação cirúrgica e terapêutica operatória

Os critérios de indicação cirúrgica na SJPU são de carácter clínico e funcional.

Os critérios clínicos são:

  • Existência de massa renal palpável;
  • Sintomatologia dolorosa; ou
  • Infecção renal recorrente ou de carácter subclínico.

Os critérios funcionais são:

  • Valor da medição ecográfica do bacinete superior a 20 mm;
  • O atraso de excreção de radiofármaco superior a 20 minutos; e
  • Função renal diferencial (FRD) inferior a 35% (do lado afectado em relação ao contralateral).

As várias opções cirúrgicas disponíveis para a resolução do SJPU baseiam-se no princípio da ressecção da zona estenosada e ulterior anastomose alargada ao bacinete, permitindo uma drenagem passiva mais eficaz. A pieloplastia de Anderson-Haynes é a técnica cirúrgica mais utilizada na maior parte dos casos.

Complicações pós-operatórias

A pieloplastia é um procedimento cirúrgico com uma frequência baixa de complicações. As complicações pós-operatórias mais descritas estão associadas a infecção da ferida operatória e à pequena extravasão de urina pela anastomose pielo-ureteral.

Seguimento

O seguimento da situação é realizado em ambulatório com a realização de ecografia ao 3º mês e renograma de controlo ao 6º mês pós-operarório. Até então deverá ser mantida a profilaxia antimicrobiana iniciada, uma vez estabelecido o diagnóstico da situação. Sobre a profilaxia antimicrobiana existe controvérsia, não sendo utilizada em todos os centros.

Prognóstico

Na ausência de complicações cirúrgicas, nomeadamente urinoma pós- operatório ou estenose da anastomose pielo-ureteral, o prognóstico é em geral bom, tendo a cirurgia correctiva sucesso em mais de 95% dos casos.

MEGAURÉTER OBSTRUTIVO

Definição e aspectos epidemiológicos

O megauréter é uma anomalia funcional do uréter distal que dificulta a passagem da urina para a bexiga, de tal resultando dilatação a montante associada na maioria dos casos a dilatação pielocalicial.

Especificamente, o conceito de megauréter obstrutivo diz respeito à dilatação do uréter (> 7 mm) com aumento da pressão intraluminal, de natureza congénita obstrutiva, surgindo como resultado de estenose da junção ureterovesical, ou de implantação ectópica do mesmo. A incidência é cerca de 1/2.000.

O megauréter pode ser bilateral em cerca de 25% a 30% dos casos; o mesmo defeito, na grande maioria, está associado a duplicidade da árvore excretora.

Etiopatogénese

Esta anomalia é devida a uma alteração histológica da porção terminal do uréter com hipertrofia das fibras de colagénio, escassez de fibras musculares longitudinais e hiperplasia de fibras musculares circulares.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Esta situação tem diagnóstico pré-natal frequente (cerca de 65%), sendo característica do sexo masculino.

O quadro clínico, relativamente inespecífico, revela-se, na maior parte dos casos por infecção urinária recorrente.

A litíase ureteral pode também complicar o quadro obstrutivo em cerca de 5% dos casos. A existência de um megauréter obstrutivo agravado pelo encravamento distal de cálculos constitui uma urgência em urologia, tendo indicação para descompressão imediata.

Como exames complementares de diagnóstico, a ecografia renal, vesical e ureteral fornecem uma imagem de uréter-hidronefrose volumosa, muitas vezes associada a alterações da diferenciação córtico-medular e parênquimo-sinusal renal.

A cistografia com tempo miccional deverá ser realizada para exclusão da etiologia refluxiva do megauréter.

O renograma isotópico com DTPA ou MAG3 confirma a natureza obstrutiva da lesão e permite avaliar a função renal diferencial. A cintigrafia renal com DMSA faculta a imagem da perfusão do parênquima e a possível presença de cicatrizes renais pós-infecciosas. A urografia endovenosa permite realizar a definição anatómica da porção distal do uréter, e da sua relação com a junção uréter-vesical, ou da sua inserção ectópica.

Indicação cirúrgica e terapêutica operatória

A indicação cirúrgica desta situação é essencialmente colocada na presença de defeito anatómico da junção uréter-vesical e de implantação anómala do uréter ectópico no colo vesical. Outra indicação cirúrgica premente é a degradação progressiva da função renal, secundária à presença de infecção urinária recorrente associada a esta anomalia.

A terapêutica cirúrgica baseia-se na reimplantação uréter-vesical eutópica (ou no local normal) e na ureteroplastia de redução de calibre quando necessária, para se poder reimplantar, com segurança, o uréter na bexiga.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórias mais frequentes são a manutenção do quadro obstrutivo e a persistência de infecção urinária recorrente. Poderá também haver desenvolvimento de um quadro refluxivo, por ostium ureteral reimplantado com função anómala.

Seguimento

Importa salientar que as imagens de dilatação do uréter se mantêm na ecografia e na radiologia convencional mesmo após cirurgia de reimplantação com sucesso. Efectivamente, a dilatação ureteral no seu trajecto lombar e pélvico não é alterada com a intervenção cirúrgica; tal facto não deve ser considerado alarmante, excepto nos casos de manutenção do quadro de infecção urinária ou de dor lombar por distensão da árvore excretora.

O megauréter obstrutivo implica acompanhamento assíduo por equipa multidisciplinar (pediatra, imagiologista, etc.) pelo risco de degradação progressiva da função renal.

O seguimento imagiológico pós-operatório é realizado por meio de ecografia renal ao terceiro mês, e por renograma isotópico ao sexto mês. Posteriormente, é necessário realizar um renograma isotópico com uma periodicidade anual em simultâneo com estudo de parâmetros laboratoriais da função renal.

Prognóstico

O prognóstico desta patologia depende directamente do status da função renal pré-operatória. A correcção cirúrgica do megauréter, quando realizada com sucesso, pode evitar a degradação progressiva da função renal, mas não pode melhorar o status renal decorrente da situação pré-operatória.

Na ausência de complicações pós-operatórias e de degradação progressiva da função renal o prognóstico é, em geral, bom.

URETEROCELE

Definição

O ureterocele é uma dilatação quística terminal da porção intravesical do uréter, geralmente associada a estenose do ostium ureteral. Esta anomalia está associada a duplicidade do sistema excretor em 80% dos casos (pielão superior) e a ectopia e bilateralidade, respectivamente em 60% e 10% dos casos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Actualmente, cerca de 60% dos casos de ureterocele têm diagnóstico pré-natal. A clínica é muito pouco característica e manifesta-se fundamentalmente por infecção urinária. No sexo feminino pode manifestar-se por incontinência urinária primária permanente.

O diagnóstico é feito, na maior parte dos casos, por meio ecográfico, no âmbito da investigação de um quadro de infecção urinária. A ecografia fornece imagens características compatíveis com a presença de uma massa quística intravesical, com uréter pélvico visível. O exame ecográfico permite também diagnosticar a presença de sistemas duplos de drenagem renal. A urografia de eliminação permite delinear a anatomia do sistema excretor, a ectopia da relação distal do uréter, e a típica imagem translúcida de subtracção intravesical que é patognomónica. A cistouretrografia com tempo miccional permite diagnosticar a presença de refluxo para o pielão inferior nos sistemas duplos (50% dos casos), e para o uréter contralateral (25% dos casos).

Indicação operatória e terapêutica cirúrgica

O ureterocele tem sempre indicação cirúrgica, porque: – está associado a alterações anatómicas e funcionais da relação distal do uréter; e – cursa frequentemente com um quadro de infecção urinária recorrente.

O objectivo do tratamento do ureterocele é o controlo da infecção urinária, a preservação da função renal, a protecção funcional das unidades de drenagem renal normal homolaterais ou contralaterais, e a manutenção da continência urinária.

Nos ureteroceles pequenos, eutópicos e não associados a dilatação ureteral de grande dimensão, o tratamento cirúrgico pode ser realizado por via endoscópica transuretral com ressecção do mesmo. Este tipo de tratamento tem sucesso clínico em cerca de 85% dos casos; a descompressão do ureterocele está especialmente indicada no recém-nascido. Se houver RVU secundário ao procedimento, a reimplantação secundária é necessária.

Nos casos de ureteroceles de grande dimensão, associados a duplicidade da árvore excretora renal ou ectópicos, a terapêutica cirúrgica convencional é a mais indicada. Nesta abordagem cirúrgica, por incisão lombar, deverá ser feita a ressecção do pielão superior renal, com excisão do megauréter; e, por incisão vesical, a excisão do ureterocele, e reimplantação eutópica do uréter originário do pielão inferior no trígono vesical homolateral.

Complicações pós-operatórias

A complicação pós-operatória mais frequente é o estabelecimento de RVU secundário, quer ao procedimento endoscópico, quer à terapêutica cirúrgica. Ambas as situações obrigam a correcção ulterior por cirurgia anti-refluxiva. Por vezes, poderá haver lesões iatrogénicas do colo vesical secundárias à ressecção de ureteroceles gigantes interessando a região do colo, com consequente perturbação dos mecanismos de continência do colo.

Seguimento

O seguimento deve ser rigoroso e estar focado no controlo e preservação da função renal bilateral, assim como na manutenção dos mecanismos de continência urinária.

Estes doentes necessitam:

  • de controlo ecográfico na terceira semana pós-operatória para certificação do sucesso cirúrgico da ressecção do ureterocele;
  • da realização de cistografia miccional para rastrear o estabelecimento de RVU pós-procedimento; e
  • de estudo isotópico anual para controlo da função renal, total e diferencial.

Prognóstico

O prognóstico global depende da função renal residual. A terapêutica cirúrgica é correctiva em mais de 90% dos casos.

VÁLVULAS DA URETRA POSTERIOR

Importância do problema

As válvulas da uretra posterior (VUP) são pequenas pregas mucosas da uretra masculina, que se constituem como obstáculo ao fluxo anterógrado e normal de urina.

Estão localizadas na crista uretral, na proximidade do veru montanum. Tal anomalia já existe por volta da 12ª semana gestacional, quando começa a formar-se urina.

Considerando a globalidade dos processos obstrutivos infravesicais, as VUP constituem as situações de maior relevância, uma vez que o grau e duração da obstrução poderá conduzir a lesão renal irreversível na ausência de tratamento.

Quanto à localização, estas anomalias são classificadas do seguinte modo: tipo I (as mais frequentes e mais distais ao veru montanum); tipo II (muito raras, entre o colo da bexiga e o veru montanum) e tipo III (sobre o veru montanum).

Actualmente, as VUP integram-se na síndroma denominada síndroma válvula-bexiga, à qual está ligada um conceito funcional: a persistência de obstrução uretral origina disfunção vesical grave (bexiga permanecendo com baixa capacidade em repouso e elevadas pressões sob enchimento) e ulterior desenvolvimento de uréter-hidronefrose ascendente com repercussão funcional renal.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As manifestações clínicas deverão ser consideradas dentro de um espectro de gravidade variável.

As formas mais graves manifestam-se já no recém-nascido. Por outro lado, existem casos de obstrução discreta, assintomáticos durante um período longo de tempo.

Simultaneamente, existem formas de apresentação de extrema gravidade, de expressão ecográfica pré-natal com oligoâmnio, sinais de dilatação do aparelho excretor alto e alterações do normal desenvolvimento do parênquima renal bilateral.

As manifestações clássicas, já detectáveis no recém-nascido, são caracterizadas por jacto urinário fraco ou gotejante, sinais de retenção vesical (saliência hipogástrica dura e não depressível relacionada com bexiga de parede espessada e com hipertrofia muscular da mesma), massa abdominal-lombar compatível com mega-uréteres refluxivos, e hidronefrose marcada do excretor alto. Por vezes, por perfuração do tracto excretor, pode surgir ascite urinária volumosa.

A infecção urinária resultante da retenção grave pode ser complicada de sépsis urinária. As VUP podem igualmente ser causa de hipertensão arterial no recém-nascido.

O diagnóstico da situação é, por conseguinte, feito em função da clínica e dos exames complementares.

O exame ecográfico pós-natal pode oferecer imagem de uma bexiga de parede espessada por hipertrofia muscular, com trabeculação da mucosa, existência de divertículo da bexiga e dilatação do tracto excretor por refluxo vésico-ureteral de grau elevado. Pode verificar-se também a presença de hidronefrose do excretor alto. Dependendo do compromisso do desenvolvimento do parênquima renal, poderão ser evidentes imagens de displasia renal bilateral.

O exame de excelência ou padrão de ouro para o diagnóstico de VUP é a cistografia miccional. Este exame permite, na fase de enchimento vesical, quantificar a capacidade da bexiga, delimitar o contorno mucoso da mesma (presença de trabeculações), detectar a presença de divertículos e de refluxo vésico-ureteral; e, na fase miccional, evidenciar as alterações típicas da uretra posterior na presença de válvulas da uretra: alongamento e alargamento da uretra prostática e hipertrofia do colo da bexiga.

O exame que permite a definição anatómica de VUP é a uretrocistoscopia. Com esta técnica é possível obter a imagem em tempo real do tipo específico de VUP, assim como a sua localização em relação ao veru montanum. Por outro lado, com a mesma, é possível a terapêutica das VUP por ablação endoscópica. Esta manobra cirúrgica pode ser realizada no período neonatal.

Nos casos de incapacidade técnica de ablação endoscópica (por ex. RN de muito baixo peso), poderá ser necessário construir uma vesicostomia temporária para derivar o tracto urinário pré-uretral.

Prognóstico

As VUP são uma situação clínica cujo prognóstico decorre do espectro de apresentação e da precocidade da ablação cirúrgica.

Com efeito, o tratamento endoscópico precoce evita o agravamento progressivo da disfunção vesical e do refluxo vésico-ureteral de grau elevado, o que contribui para o não agravamento do status funcional renal. O estádio mais grave é caracterizado por displasia renal bilateral, com episódios de hipertensão e insuficiência renal de instalação progressiva (a qual poderá surgir com frequências oscilando entre 25 e 50%). (ver no capítulo sobre RVU – síndroma de Mitchel: válvula-bexiga-rim)

Inversamente, a evicção do obstáculo ao esvaziamento vesical promove o crescimento harmónico e cíclico da bexiga, contribuindo para uma capacidade normal, com pressões de enchimento e de esvazimento também normais. De igual modo, a inexistência de refluxo vésico-ureteral e de uretér-hidronefrose volumosa, evita a degradação renal progressiva, promovendo o desenvolvimento e diferenciação do rim do recém-nascido.

SÍNDROMA DE EAGLE BARRETT (prune-belly)

No âmbito da abordagem do tópico “Obstrução do tracto urinário” é clássico mencionar esta situação rara (1/40.000 RN) sendo 95% do sexo masculino, com elevada mortalidade fetal. Esta síndroma caracteriza-se fundamentalmente por deficiente desenvolvimento da musculatura abdominal e da bexiga, aspecto flácido e pregueado da pele abdominal (daí o nome de “barriga com aspecto de abrunho”), e obstrução do tracto urinário incluindo uretra. De tal resultam oligoâmnio, por vezes ascite urinária, fácies Potter e hipoplasia pulmonar. Outras anomalias incluem displasia renal, defeitos cardíacos, ectopia testicular, etc..

O prognóstico depende da hipoplasia pulmonar e do grau de disfunção renal. Há casos submetidos a transplante renal com bons resultados.

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REFLUXO VÉSICO-URETERAL

Definição e importância do problema

O refluxo vésico-ureteral (RVU) consiste no retorno da urina vesical para o uréter, isto é, no sentido contrário ao normal, por falência do mecanismo valvular que existe ao nível da junção ureterovesical.

O chamado RVU simples, de características não patológicas, é a situação urológica mais frequente com uma prevalência variando entre 0,4% e 1,8% em função do sexo, raça e idade. No lactente a incidência é cerca de 0,1-0,2%. No recém-nascido com dilatação piélica existe risco aumentado de RVU em 10-40% dos casos. Na idade escolar é cinco vezes mais frequente no sexo feminino.

O RVU patológico, a causa mais frequente de infecção urinária recorrente (cerca de 30%), associa-se frequentemente a anomalias congénitas do tracto urinário e a degradação progressiva da função renal, com desenvolvimento de hipertensão arterial (HTA), sobretudo na adolescência.

Etiopatogénese

O RVU primário é uma situação geneticamente determinada; havendo antecedentes familiares, a probabilidade de surgimento é 20-50 vezes maior. Cerca de 35% dos familiares em 1º grau de crianças afectadas têm a mesma patologia. As formas familiares têm transmissão autossómica dominante, por vezes relacionadas com mutações do gene UPK3A.

O fluxo urinário retrógrado pode atingir o bacinete, com uma prevalência de 50% no recém-nascido de termo. Desta população fazem parte dois subtipos: – benigno, que cura espontaneamente até aos 18 meses; – patológico, que pode cursar com infecções recorrentes, podendo ser isolado, ou associar-se a fácies sindromática, hipodisplasia renal principalmente no rapaz, e a duplicidade pielo-ureteral (polo inferior) e inserção ureteral ectópica vesical no sexo feminino.

A natureza do RVU deriva da manutenção da abertura do ostium ureteral, devida a uma conformação anómala do mesmo, ou de localização ectópica supratrigonal do mesmo, originando uma diminuição do comprimento do trajecto transvesical do uréter; como resultado de tais anomalias, surge falência do mecanismo valvular fisiológico que se opõe à deslocação retrógrada da urina.

As perturbações da função coordenada entre o detrusor e o esfíncter (não sinergia detrusor-esfincteriana), pode também propiciar um aumento de pressão intravesical e originar o estabelecimento de RVU.

Outras situações associadas a anomalias congénitas ao nível da junção ureterovesical explicam outras formas de RVU primário: duplicação ureteral, ureterocele com duplicação, ectopia ureteral, divertículo ureteral.

As formas de RVU secundário devem-se, em geral, a pressão intravesical aumentada, processos inflamatórios da bexiga ou a procedimentos cirúrgicos afectando a junção ureterovesical. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Tipos e causas de RVU

TipoCausa
PrimárioIncompetência congénita do mecanismo valvular da junção vesicoureteral
Primário associado a anomalias congénitas ao nível da junção vesicoureteralDuplicação ureteral
Ureterocele com duplicação
Uréter ectópico
Divertículo paraureteral
Secundária a pressão intravesical aumentadaMegauréter com RVU
Bexiga neuropática
Disfunção de bexiga (não neuropática)
Obstrução da junção vesicouretral
Secundário a processos inflamatóriosCistite bacteriana
Litíase vesical
Corpo estranho
Secundária a intervenção cirúrgica ao nível da junção ureterovesicalStatus pós-intervenção

A situação de megauréter associado a RVU merece uma menção especial. Esta anomalia congénita (dilatação extrema do uréter, geralmente associada à dilatação do bacinete) em oposição ao RVU simples, tem frequentemente expressão pré-natal, e encontra-se associada a degradação renal progressiva. Está dependente de um aumento de pressão intravesical devido a obstrução mecânica ao esvaziamento da bexiga (válvulas da uretra posterior/VUP ou a perturbações da função detrusor-esfíncter (contracções não inibidas do detrusor ou não sinergia do detrusor-dissinergia). O megauréter refluxivo está também presente na síndroma prune-belly.

Classificação

De acordo com o International Reflux Study Committee, o RVU classifica-se em cinco graus (G) de I a V, de envolvimento crescente. Também se pode classificar o RVU de acordo com a localização anatómica da inserção ureterovesical e a conformação dos ostia ureterais.

A Figura 1 esquematiza o padrão morfológico dos graus I, III e V.

Ligeiro
Grau I
Refluxo atingindo
apenas o uréter

Moderado
Grau III
Moderada dilatação
do uréter e bacinete

Grave
Grau V
Grande dilatação do
uréter, bacinete e cálice

FIGURA 1. Graus de RVU

Pormenorizando: nos graus I e II não há dilatação do uréter; no grau II a urina atinge o bacinete e cálices; no grau IV verifica-se dilatação franca do uréter, bacinete e cálices; o grau V corresponde a um refluxo maciço com tortuosidade e perda da impressão papilar.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O RVU gera um quadro de nefro-uropatia de refluxo, intimamente relacionado com a existência de infecção urinária (ver capítulo sobre infecção urinária). De salientar que a cronicidade desta situação patológica pode originar cicatrizes renais (CR) com degradação progressiva da função renal, predispondo a HTA.

O diagnóstico do RVU é feito por cistouretrografia miccional ou gamacistografia isotópica. A primeira permite uma melhor caracterização da uretra e a classificação mais precisa do grau de refluxo (graus I a V); a segunda, uma maior sensibilidade para a detecção de refluxo intermitente.

Importa igualmente proceder ao estudo de marcadores da função tubular renal, tais como capacidade de concentração urinária e avaliação da excreção urinária de acetilglucosaminidase (NAG) antes da cistouretrografia miccional na perspectiva de avaliar a gravidade do RVU. (ver adiante)

Indicação cirúrgica e terapêutica operatória

Os casos de RVU de G-I ou G-II apresentam uma resolução espontânea em cerca de 80% dos doentes, não sendo necessário proceder a intervenção cirúrgica correctiva.

A indicação operatória formal está reservada para os casos de RVU G-IV e G-V, em que não se verifica remissão espontânea.

Nos casos de RVU G-III, a opção cirúrgica coloca-se se não houver sucesso de terapêutica médica supressora, se se verificar gravidade progressiva, ou se surgirem cicatrizes renais pós-infecciosas.

A terapêutica cirúrgica baseia-se na criação de um ostium ureteral competente e no desenvolvimento de um túnel submucoso vesical, aumentando o trajecto ureteral transvesical, com uma relação entre o comprimento do túnel submucoso e do diâmetro do uréter de 4-5/1, favorecendo, assim, os mecanismos antirrefluxo.

Actualmente, pode optar-se por uma correcção por meio de uma injecção por cistoscopia para implante de material exógeno (teflon; copolímero de ácido hialurónico; hidroxiapatite) junto do ostium ureteral, criando um obstáculo físico ao refluxo. Esta técnica minimamente invasiva e já praticada no Hospital Dona Estefânia, está a ter uma aceitação cada vez maior, nomedamente nos refluxos de menor gravidade, permitindo uma rápida resolução do problema e obviando a necessidade de realizar cirurgia formal.

A indicação operatória no caso de síndroma de megauréter com refluxo é sobreponível à descrita no RVU simples. Deverá corrigir-se previamente a disfunção vesical ou a obstrução à drenagem vesical. A terapêutica cirúrgica consiste na reimplantação ureteral de acordo com os princípios enunciados anteriormente e com recurso a eventual remodelação (redução do calibre) da porção terminal do uréter.

A Figura 2 mostra o padrão obtido por cistouretrografia miccional (RVU de grau III). A Figura 3 mostra imagem de megauréter utilizando a mesma técnica.

A

B

FIGURA 2. A – RVU de grau III; B – RVU de grau III (pormenor) – imagem contrastada de bexiga e uréter. (NIHDE)

 

FIGURA 3. Megauréter demonstrado por cistouretrografia miccional. (NIHDE)

Complicações pós-operatórias

A complicação cirúrgica mais frequente é o insucesso da intervenção cirúrgica ou do implante de material exógeno, permanecendo o RVU. Poderá também originar-se uma obstrução ureteral: por uma reimplantação demasiado competente, ou por trajecto ureteral transvesical excessivamente longo e de trajecto anómalo.

Seguimento

O seguimento desta situação implica a manutenção do esquema de profilaxia antimicrobiana até ao sexto mês pós-operatório, data em que deverá ser realizada uma cistouretrografia de controlo com o objectivo de excluir a persistência de RVU. A gravidade do RVU é estimada em cerca de 10% dos casos.

Sobre a profilaxia antimicrobiana da infecção urinária existe controvérsia.

No caso da síndroma do megauréter (RVU secundário) há a salientar que as imagens ecográficas de dilatação ureteral se mantêm no seu trajecto lombar e pélvico, apesar do sucesso da terapêutica cirúrgica.

Prognóstico

O prognóstico global desta patologia depende do status inicial da função renal e da presença de cicatrizes renais pré-operatórias. O sucesso da terapêutica cirúrgica anti-refluxo permite evitar o agravamento da função renal por prevenção da nefropatia motivada pelas cicatrizes renais progressivas. Assim, o prognóstico é bom, descrevendo-se desparecimento de RVU em cerca de 95% a 97% dos casos.

O prognóstico nos casos de síndroma do megauréter com RVU secundário depende da natureza etiológica do megauréter.

No caso particular de síndroma de Mitchel, também denominada síndroma Válvula-Bexiga-Rim (megauréter refluxivo bilateral de natureza congénita e de expressão pré-natal devido à existência de válvulas da uretra posterior/VUP, coexistindo com displasia renal bilateral de causa refluxiva), o prognóstico não é favorável, devido a insuficiência renal progressiva.

De acordo com estudos recentes sobre marcadores da função tubular renal, é sugerido proceder à avaliação da capacidade de concentração renal e da excreção urinária da acetilglucosaminidase (NAG) para rastreio de RVU grave antes de proceder à cistouretrografia miccional.

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ANOMALIAS CONGÉNITAS DO RIM E TRACTO URINÁRIO

Definições e importância do problema   

O conjunto das anomalias congénitas, rim e tracto urinário, (internacionalmente conhecidas pela sigla CAKUT– congenital anomalies of kidney and urinary tract) resultam de defeitos na embriogénese desde a 5ª semana gestacional, até ao final da nefrogénese, e sua maturação (36ª semana).

As CAKUT compreendem um largo espectro de defeitos estruturais e funcionais ocorrendo ao nível do rim (por ex. hipoplasia e displasia), sistema colector (por ex. hidronefrose e megauréter), bexiga (por ex. ureterocele e refluxo vésico-ureteral/RVU), ou uretra (por ex. válvulas da uretra posterior).

Correspondendo a cerca de 20-30% do total das anomalias congénitas, atingem cerca de 10% da população e conduzem a insuficiência renal crónica terminal em 41,3% dos casos na idade pediátrica, e em 2,2% nos adultos.

Por sua vez, todas as situações de insuficiência renal em estádio avançado obrigam a terapia de substituição renal e 70% das mesmas cursam com hipertensão arterial e  elevada morbilidade cardiovascular associadas. Este tipo de patologia comporta uma taxa de sobrevivência cerca de 30 vezes menor em comparação com a de crianças saudáveis.

O diagnóstico é geralmente evocado por ultrassonografia fetal na proporção de 3-6/1.000 nados-vivos. Na sua maioria trata-se de situações esporádicas, identificando-se em 10% dos casos antecedentes familiares. Podem surgir isoladas, associadas entre si ou constituindo associações multiorgânicas, sindromáticas ou não.  

Sob a égide do consórcio internacional multidisciplinar designado EUCAKUT, a investigação tem investido no sistema de registo, no estudo genético, na identificação e mecanismo de acção dos factores etiológicos correlacionados com aspectos funcionais e com o prognóstico.

Neste capítulo, procedendo-se à classificação das CAKUT, é dada ênfase às situações mais frequentes, sendo que o refluxo vésico-ureteral, as uropatias obstrutivas, assim como o diagnóstico pré-natal das uropatias malformativas, as alterações da bexiga e da uretra fazem parte de capítulos próprios que integram esta Parte do livro (Nefro-Urologia).

Etiopatogénese

A etiopatogénese da maioria das anomalias congénitas rim e tracto urinário, complexa, continua desconhecida (designadamente no que respeita às formas não sindrómicas), sendo consensual, no entanto, que a maioria dos casos tem origem na interacção complexa de dezenas de genes disfuncionais identificados na última década entre centenas com potencial no desenvolvimento estrutural e funcional do aparelho urinário.

Têm sido identificados, ainda, diversos factores: ambientais, epigenéticos, de crescimento e de transcrição de genes, os quais se comportam como coadjuvantes do risco.

No que se refere aos factores genéticos, importa salientar que a patogénese monogénica se pode apresentar sob a forma autossómica dominante, autossómica recessiva, ligada ao X.

Um aspecto interessante relacionado com a patogénese manogénica decorreu da investigação experimental em ratos: mutações simples de determinados genes  (designados genes do desenvolvimento renal/GDR) podem afectar o desenvolvimento do tracto urinário em diversas fases, causando um alargado espectro fenotípico, desde RVU a agenesia renal.

Outro aspecto que pode testemunhar a complexidade da etiopatogénese das CAKUT tem a ver com os chamados modificadores genéticos: a mutação de simples gene pode levar a CAKUT ou alterar o fenótipo somente em presença de alteração genética de outro gene (interacções epistáticas de gene).

Identificaram-se genes (mutações e microdeleções de HNF1B) relacionados com alterações, geralmente de novo, causadoras de cerca de 15% das CAKUT associadas sobretudo a formas isoladas de hipo-displasia, refluxo vésico-ureteral, ou a formas sindromáticas. 

Anomalias cromossómicas grosseiras como deleções genómicas e duplicações podem originar fenótipos CAKUT complexos associados a alterações cognitivas e a defeitos extrarrenais.

Pressupondo definido o conceito de epigenética, importa relevar, a propósito da patogénese das KACUT, o papel da epigenética na regulação da expressão dos genes.

Por fim, importa realçar que o ambiente intrauterino tem sido ligado à génese das CAKUT. Por exemplo, um regime alimentar da grávida com défice em proteínas no início da gestação poderá alterar a expressão dos atrás definidos GDR, levando a que se reduza o número de nefrónios e surja hipoplasia renal. Igualmente, o suprimento de sódio durante a gravidez, quer excessivo, quer deficitário, pode interferir nos GDR, reduzindo o número de glomérulos do feto, predispondo a hipertensão arterial mais tarde.

De acordo com dados obtidos através do EUCAKUT, verificou-se que em 75% das KACUT foram identificados os seguintes antecedentes pré-natais e ou pré-concepcionais: depressão materna, diabetes mellitus pré-gestacional e/ou gestacional até às 20 semanas, obesidade materna, exposição fetal a hipóxia, ingestão de álcool, etc..

Manifestações clínicas

Pré-natais

Como foi referido antes, as CAKUT são habitualmente detectadas no âmbito do rastreio pré-natal através de ecografia, pelas 18-20 semanas de gestação. As manifestações das  anomalias em tal fase do desenvolvimento incluem fundamentalmente oligo-hidrâmnio, ou alterações morfológicas do rim, uréter, ou bexiga.

Pós-natais

De modo genérico, sem especificar nosologias a abordar ulteriormente, as  manifestações pós-natais podem incluir: presença de massa palpável ou artéria umbilical única, dificuldade alimentar, oligúria, musculatura da parede abdominal frágil, testículos não descidos, ou defeitos multiorgânicos.

Na sua maioria, as CAKUT são não sindromáticas. A vizinhança anatómica e a íntima relação entre os mecanismos morfogénicos do sistema urinário e os do sistema digestivo distal, e os do sistema genital e os do esqueleto lombossagrado explicam a coincidência frequente de anomalias de cada um deles com as anomalias do sistema urinário.

Classificação, análise genéticas e biomarcadores

O conjunto das CAKUT formam um espectro de alterações estruturais e funcionais muito semelhantes entre si, pois têm etiopatogénese comum, a qual resulta de alterações na embriogénese derivadas da interacção da ampola uretérica com o blastema metanéfrico.

De facto, os avanços da genética molecular têm revelado uma variedade crescente de anomalias renais associadas a síndromas complexas correspondentes às chamadas ciliopatias decorrentes de alterações na composição molecular e nas funções sensitivas e de motilidade dos cilia primordiais existentes nas células tubulares renais e de outros órgãos. Estas disfunções evidenciam uma relação causal entre doenças renais císticas,  manifestações extrarrenais associadas (nomeadamente do SNC) e as anomalias do rim e tracto urinário, até agora consideradas entidades não relacionáveis. As ciliopatias revelaram-se determinantes no entendimento e classificação integrada de CAKUT e doenças renais císticas. 

Independentemente dos exames complementares citados a propósito de anomalias renais e do tracto urinário, descritas com mais pormenor, importa de modo genérico uma referência a determinados biomarcadores e análises genética, com importância na prática clínica.

  • Biomarcadores urinários: TGF-beta 1<> factor de transformação do crescimento-beta 1; UMCP-1<> proteína-1 de quimiotaxia de monócito urinário; NGAL <> lipocalina associada a gelatinase de neutrófilo urinário; e Beta 2-M <> Beta 2-microglobulina.
    O TGF-beta 1 está associado a displasia renal, lesão renal adquirida e a obstrução; contudo, não se correlaciona com situações de grau elevado de hidronefrose.
    O UMCP-1 tem sido avaliado como potencial marcador de obstrução na junção ureteropélvica; contudo, parece constituir um parâmetro com limitação para avaliar lesão renal.
    Quer a NGAL, quer a Beta 2-M, têm sido avaliadas como marcadores de obstrução pré-operatória e de sucesso pós-operatório (valores elevados associados a obstrução – designadamente obstrução na junção ureteropélvica – , e valores que diminuem após correcção cirúrgica daquela). Considerando isoladamente a NGAL, os estudos demonstraram que tal biomarcador é útil, quer na avaliação da obstrução, quer na avaliação do compromisso renal (valores mais elevados em situações de menor grau de lesão renal).

  • Análises genéticas: estudo para pesquisa de PAX2 (gene associado a hipoplasia, RVU e coloboma óptico);  – de HNF1B/TCF2 (genes associados a hiperecogenecidade bilateral, gota e diabetes); – de GDNF/RET (genes associados agenesia uni ou bilateral, e hipoplasia renal); – de PKHD1 (gene associado a doença poliquística renal autossómica recessiva); – de PKD1 e PKD2 genes associados a  doença poliquística renal autossómica dominante); – de WNT4/ DSTYK/ TRAP1/ TNXB (outros genes candidatos).
    Com o desenvolvimento da investigação em genética molecular tem sido possível uma mais rigorosa caracterização da variabilidade fenotípica, com implicações positivas no diagnóstico e prognóstico dos pacientes e familiares.

Considerando o rim, as anomalias verificadas no processo dinâmico de multiplicação e diferenciação celulares podem conduzir fundamentalmente a três situações; 1) não formação do rim (agenésia); 2) diferenciação anormal (disgenésia); 3) formação de quistos.

Na prática considera-se que disgenésia inclui aplasia ou agenésia, displasia, hipoplasia, e doença quística.

A agenésia renal é distinta de aplasia, situação esta em que uma parcela de tecido não funcionante recobre um uréter normal ou anormal. Clinicamente a distinção poderá ser difícil.

Disgenésia define-se como defeito de desenvolvimento do rim que pode estar alterado em forma, tamanho ou estrutura.

O termo displasia corresponde a um diagnóstico histológico; caracteriza-se pela presença de estruturas primitivas ductais agrupadas de vários modos (focal, segmentar, difuso) como resultado de diferenciação metanéfrica anormal. A causa é multifactorial.

No Quadro 1 resumem-se as CAKUT mais frequentes.

QUADRO 1 – Classificação simplificada das CAKUT

(*)Anomalias abordadas em capítulos próprios

RIM →

    • Agenésia renal e hipoplasia renal
    • Disgenésia renal: displasia, hipoplasia e anomalias quísticas
    • Anomalias na forma e posição

TRACTO URINÁRIO(*)

    • Duplicidade renoureteral
      • Com refluxo
      • Com ectopia e incontinência
      • Com ureterocele e obstrução
    • Hidronefrose por estenose pieloureteral
    • Megauréter obstrutivo
Agenésia renal unilateral

Surge com uma frequência aproximada de 1/450-1/1.000 recém-nascidos. Podendo estar associada a anomalias doutros sistemas, é um dos componentes da associação VACTERL (anomalias vertebrais, atrésia anal, defeitos cardíacos, fístula tráqueo-esofágica ou atrésia do esófago, agenésia ou displasia renal, defeitos dos membros/limbs). (Capítulo Anomalias Congénitas)

Numa das formas da síndroma de Rokitansky-Kuster-Hauser- tipo II (1/4.000-1/10.000 nascimentos do sexo feminino) verifica-se conjunto de anomalias (aplasia vaginal, hipodesenvolvimento uterino e agenésia renal unilateral ou rim em ferradura).  

Agenésia renal bilateral

Ocorrendo com uma incidência de cerca de 1/3.000 recém-nascidos, constitui um dos componentes da síndroma de Potter (fácies e nariz achatados, pés botos e hipoplasia pulmonar como consequência de oligoâmnio com compressão do feto pelo útero), incompatível com a vida extrauterina. A morte ocorre após o nascimento por hipoplasia pulmonar, antes de se manifestar falência renal.

O termo adisplasia renal familiar refere-se a famílias em que se verifica agenésia renal, displasia renal, rim multiquístico (displasia), ou combinação, numa só família.

Hipoplasia renal

Definido anteriormente o conceito de disgenésia, importa salientar que existem 3 tipos principais de disgenésia: displásica, hipoplásica e quística. Embora a displasia seja sempre acompanhada por diminuição do número de nefrónios (hipoplasia), o inverso não é verdadeiro. A hipoplasia pode ocorrer isolada; quando as duas situações estão presentes, é preferível o termo de hipodisplasia.

Se o rim for displásico na totalidade, com preponderância de quistos, considera-se que se trata de rim displásico multiquístico (MCDK).

Na hipoplasia renal os rins são de menores dimensões, comprovando-se por exame anátomo-patológico, diminuição do número de nefrónios, de cálices e grau importante de fibrose com repercussão na função tubular renal, traduzida essencialmente pela perda de sódio e água. A forma familiar pode ser autossómica dominante e envolver o gene PAX2. Têm sido descritas formas bilaterais, com quistos e associados a gota e coloboma do nervo óptico. 

Existe HTA poliúria, polidipsia e evolução para IR.

Uma variante desta entidade é a oligomeganefrónia, caracterizada por número de nefrónios reduzido com hipertrofia dos presentes.

A forma segmentar de hipoplasia renal, designada por rim de Ask Upmark, é detectada, em geral, após os 10 anos no contexto de HTA; na maioria dos casos está indicada a nefrectomia.

Rim multiquístico

Trata-se de uma displasia renal multiquística (em geral unilateral) com incidência semelhante à da agenésia renal bilateral. É caracterizada por anomalia de diferenciação estrutural conduzindo a ausência completa de função; por conseguinte, se a alteração for bilateral, há incompatibilidade com a vida.

É possível fazer o diagnóstico pré-natal por ecografia, a qual evidencia padrão imagiológico patognomónico.

A nefrectomia está indicada nos casos de hipertensão arterial grave ou infecções urinárias recorrentes.

Doença renal poliquística

Esta situação abrange um largo espectro de doenças genéticas, tendo como denominador comum  a existência de quistos (doença renal poliquística), afectando ambos os rins e outros órgãos.

Existe controvérsia sobre a indicação do rastreio desta patologia em idade pediátrica.

Estão descritas duas formas de doença poliquística, diferindo em função da herança genética, morfologia dos quistos, manifestações clínicas, imagiológicas e laboratoriais:

1 – Doença renal poliquística autossómica recessiva (AR/tipo infantil) que ocorre com uma frequência estimada entre 1/10.000 e 1/50.000 na primeira ou segunda infância; como características são referidas: quistos localizados no córtex e na medula, dilatação dos tubos colectores, fibrose intersticial e atrofia progressiva tubular conduzindo a  disfunção renal progressiva; nesta forma de doença renal existe fibrose hepática associada levando a hipertensão portal. Como consequência do aumento de volume dos rins exercendo efeito compressivo, poderá surgir in utero hipoplasia pulmonar fetal conduzindo a morte fetal.

As manifestações clínicas (mais precoces e mais graves – incluindo extrarrenais – do que na forma AD, e com  maior tendência para doença renal crónica terminal) são: massas renais palpáveis, proteinúria, hematúria, hepatomegália e pneumotórax.

2 – Doença renal poliquística autossómica dominante (AD/tipo adulto) que ocorre classicamente na idade adulta (3ª ou 4ª décadas de vida, raramente antes dos 7 anos), embora possa também surgir na faixa etária descrita para a forma autossómica recessiva. Refira-se que surge com uma incidência muito mais elevada do que a forma infantil: 1/1000 recém-nascidos, ao ponto de ser considerada a doença hereditária renal mais frequente.

O quadro clínico é semelhante ao do tipo infantil. Como particularidades há a destacar: quistos glomerulares e tubulares, assim como associação a quistos hepáticos (em cerca de 30% dos casos), pancreáticos, esplénicos, ováricos e a aneurismas cerebrais.

Os estudos imagiológicos mais utilizados são a ecografia e o renograma isotópico.

Quanto ao tratamento, podem ser adoptadas medidas conservadoras, diálise ou transplantação renal em função do contexto clínico de cada caso.

Anomalias de forma e posição do rim

Durante o desenvolvimento renal fetal os rins em circunstância de normalidade mudam progressivamente de posição no sentido ascendente pelve → posição das locas renais.

Em circunstâncias anómalas o rim ou rins podem ficar em posição pélvica, ilíaca (“subida” insuficiente), ou torácica (“subida excessiva”); é o rim ectópico, que surge com uma frequência aproximada de 1/900 RN.

Pode existir igualmente fusão dos rins originando o chamado rim em “ferradura” ocorrendo em cerca de 1/500 RN, situação por sua vez associada frequentemente a síndroma de Turner e a tumor de Wilms.

A função renal é geralmente normal.

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UROLITÍASE

Definições e importância do problema

A litíase urinária ou urolitíase (UL) é definida pela presença de cálculos ou concreções localizadas em qualquer zona do tracto urinário a partir de substâncias habitualmente dissolvidas na urina. A nefrocalcinose, consistindo no depósito de sais de cálcio nos túbulos e/ou interstício renal, ocorre menos frequentemente que a litíase urinária. Ambas as situações podem coexistir no mesmo doente.

A UL na idade pediátrica, menos frequente do que na idade adulta, tem-se contudo manifestado com incidência e prevalência crescentes nas últimas décadas, o que pode ser explicado por mudanças de hábitos alimentares, condições socioeconómicas e progressos nos métodos de diagnóstico determinando taxa mais elevada de diagnósticos. O referido incremento tem-se traduzido ao longo do tempo em número crescente de admissões hospitalares com implicações nos custos na área da saúde.

Aspectos epidemiológicos

Embora a verdadeira incidência da UL não seja conhecida, estima-se actualmente que afecte cerca de 12% da população mundial adulta e cerca de 1-5% da população pediátrica. Trata-se duma entidade que é endémica na Turquia, Paquistão, nalguns países do Sueste Asiático, África e América do Sul. Nos Estados Unidos da América do Norte é mais comum entre os caucasianos e hispânicos.

A UL pediátrica pode ocorrer em qualquer grupo etário. Os lactentes e crianças jovens apresentam mais frequentemente cálculos renais, enquanto os cálculos ureterais são predominantes nas crianças mais velhas e nos adolescentes.

Estudos recentes mostraram um aumento da prevalência/incidência nas raparigas e maior susceptibilidade nos rapazes na primeira década de vida.

Nos países de menores recursos económicos a localização vesical é muito frequente, enquanto nos países industrializados predominam os cálculos de localização renal e ureteral, e de composição cálcica (oxalato e fosfato).

Quanto à composição dos cálculos, os dados disponíveis permitem estabelecer as seguintes proporções: oxalato de cálcio – 50-70%; fosfato de cálcio – 10-20%; ácido úrico – 1-5%; cistina – 1-5%; outras composições – 2-4%.

Etiopatogénese

 

  1. Numa grande percentagem de casos (75-85%) é possível identificar um factor etiológico ou um factor de risco subjacente.
    Assim, quanto à etiopatogénese da urolitíase, podem ser sistematizados os seguintes factores em geral interligados: metabólicos hereditários, infecções do tracto urinário, defeitos anatómicos congénitos do tracto urinário e ambientais ou exógenos.
    Relativamente aos factores hereditários metabólicos importa dar relevância a entidades monogénicas manifestando-se com litíase e nefrocalcinose: hipercalciúria, hiperoxalúria, hiperuricosúria, cistinúria, hipocitratúria.

    A hipercalciúria é uma alteração metabólica, integrando três formas: idiopática, secundária (a imobilização aguda ou prolongada, a acidose metabólica crónica, a tubulopatias e a fármacos como furosemida e glucocorticoides) e associada a hipercalcémia (por hiperparatiroidismo, intoxicação com vitamina D e doença neoplásica óssea).

    Na hipercalciúria idiopática ou primária, a mais frequente (50-80% dos casos), existe interacção de diversos genes (receptor sensível ao Ca++, receptor da vitamina D e receptores que modulam a reabsorção óssea, a absorção intestinal de cálcio e oxalato, e a excreção renal de cálcio, oxalato e citrato) com factores ambientais.

    A hiperoxalúria, comparticipando 10-20% dos casos de urolitíase, pode ser primária (rara, hereditária, autossómica recessiva, por produção hepática excessiva de oxalato e aumento da sua excreção urinária) ou secundária (mais frequente, por aumento da absorção intestinal de oxalato). Na hiperoxalúria secundária existe uma exposição dietética excessiva ao oxalato ou aos seus precursores, ou uma doença de base (doença inflamatória intestinal, insuficiência pancreática exócrina e fibrose quística, síndroma do intestino curto) que causa aumento da sua absorção intestinal; geralmente cursa com má-absorção de gorduras e diarreia crónica.

    A hiperuricosúria pode desencadear a formação de cálculos de ácido úrico (2-20% das UL pediátricas de causa metabólica). A presença de hiperuricémia (dieta com excesso de proteínas, doenças mieloproliferativas, síndroma de lise tumoral, erros inatos do metabolismo como a síndroma Lesch-Nyhan), pH urinário inferior a 5,5 e um baixo débito urinário constituem  factores de risco para a formação de cálculos.

    A cistinúria pode ocorrer em 5-20% dos doentes com UL metabólica pediátrica. Tem transmissão autossómica recessiva e resulta de um defeito no transporte de aminoácidos no túbulo proximal, com excreção urinária aumentada de cistina (insolúvel), lisina, arginina e ornitina. A litíase ocorre nas duas primeiras décadas de vida e é bilateral em mais de metade dos doentes. Nas crianças mais pequenas os cálculos podem formar-se na bexiga; nas mais velhas predomina a localização renal, podendo assumir grandes dimensões (cálculos coraliformes). A associação a infecção urinária é frequente.

    A hipocitratúria, responsável por cerca de 10% das UL pediátricas, é quase sempre idiopática. Contudo, pode ocorrer em doentes com acidose tubular renal distal, acidose metabólica, hipocaliémia, síndromas de má-absorção, dieta cetogénica e consumo de alguns fármacos (topiramato e acetazolamida). Uma dieta rica em proteína animal e pobre em vegetais e em potássio pode ser responsável por uma menor excreção urinária de citrato.

    As infecções urinárias e as anomalias congénitas nefrourológicas podem estar presentes como factores etiológicos em cerca de 10 a 25% dos casos.

    Os microrganismos bacterianos produzindo urease (por ex. Proteus e outros) estão frequentemente implicados. Com efeito, a hidrólise da ureia em bicarbonato e amónio criam um meio adequado para a formação de concreções de fosfato amónico-magnésico (estruvite) as quais, tendendo a crescer para a pelve renal, moldando-se ramificando-se, dão origem aos chamados cálculos coraliformes.

    Os factores ambientais ou exógenos, muitos dos quais associados a alterações metabólicas adquiridas, abrangem um vasto leque de situações ou circunstâncias tais como a reduzida ingestão de líquidos, certos fármacos, o sedentarismo, a obesidade e o regime alimentar em geral.

    Os regimes alimentares: – com excesso de sacarose, sódio, minerais, oxalatos, proteína animal, produtos lácteos, suplementação vitamínica (especialmente de vitaminas A, C e D), chocolate e refrescos de cola; ou – com défice de frutas, legumes e cereais integrais (ricos em citrato, fitato e magnésio), são componentes da chamada “dieta litogénica”.

    Alguns fármacos (diuréticos de ansa, cálcio, vitamina D) podem aumentar a excreção urinária de substâncias litogénicas, enquanto outros (topiramato e inibidores da anidrase carbónica) são responsáveis pela redução da excreção de substâncias antilitogénicas.

    O indinavir (antirretrovírico) indicado nos casos de infecção por VIH, e a ceftriaxona (antibiótico) são igualmente fármacos classicamente associados a urolitíase pelas alterações metabólicas que provocam. Salienta-se, a propósito, que cerca de 1-2% dos cálculos urinários nas crianças e jovens são exclusivamente associados a fármacos.

  1. A litogénese é um processo complexo, dependente da interacção de vários factores. Sob o ponto de vista físico-químico, a litíase traduz uma alteração das condições naturais de cristalização da urina.

    Para compreender melhor o referido processo, importa recordar duas noções básicas:
    • Numa solução simples, como a água, determinada substância dissolvida precipita quando alcança o seu ponto de saturação (índice de solubilidade);
    • Numa solução complexa, como a urina, é possível a “sobressaturação” de alguns produtos dissolvidos (cálcio, fosfato, oxalato ou ácido úrico) pela presença de outros compostos que permitem mantê-los na solução em concentrações superiores ao seu índice de solubilidade. Assim, a cristalização duma substância dissolvida depende do equilíbrio entre o excesso desta (sobressaturação) e a existência de factores que facilitam a sua precipitação (promotores) ou que a impedem (inibidores).

O primeiro passo da litogénese é a chamada nucleação, que corresponde à formação de unidades de cristais (isto é, à concentração a que a substância dissolvida cristaliza); este passo requer:
– a hiperexcreção e a sobressaturação de certos iões na urina;
– volume urinário reduzido;
– concentração diminuta de inibidores de cristalização (citrato, magnésio, pirofosfato e glicoproteínas); e
– alterações do pH urinário.

A formação de concreções pressupõe uma diversidade de condições. Assim, os cálculos de cistina e de ácido úrico têm maior probabilidade de formação em urina ácida (pH < 5,5); os cálculos de fosfato de cálcio e de estruvite (fosfato de amónia e magnésio) ocorrem mais frequentemente com urinas alcalinas (pH > 6,5); e a solubilidade dos cristais de oxalato de cálcio não é afectada pelo pH urinário.

Após a nucleação ocorrem fenómenos de agregação e de precipitação que culminam na formação do cálculo. Para que tal ocorra, é necessário que os cristais permaneçam no tracto urinário durante algum tempo, pelo que, como foi referido antes, uma baixa ingesta de água e a consequente redução do fluxo urinário são condições de enorme importância.

Os defeitos congénitos nefrourológicos (nomeadamente os obstrutivos) que se acompanham de hidronefrose/uretero-hidronefrose e que promovem a estase urinária predispõem, pois, à formação dos cálculos.
Por sua vez, a existência de lesão na superfície do urotélio (secundária a infecção) favorece a aderência dos cristais e prolonga o tempo de exposição à urina sobressaturada, o que facilita a agregação e o crescimento do cálculo. (ver atrás Microrganismos Produtores de Urease)

Os cálculos vesicais podem ter origem renal, com posterior migração para a bexiga, ou podem ser aqui primariamente formados.

A urina contém diversos inibidores da cristalização, como o difosfonato, o magnésio e o citrato (o mais importante). O citrato inibe a nucleação espontânea dos cristais de oxalato e de fosfato de cálcio, a nucleação heterogénea de oxalato de cálcio e urato monossódico, e impede o crescimento dos cristais cálcicos. 

Manifestações clínicas

A UL constitui uma patologia com elevada morbilidade, sobretudo quando o diagnóstico e o tratamento etiológico não se concretizam atempadamente. De salientar que se pode verificar lesão estrutural nos rins ou nas vias urinárias, facto agravado pela possibilidade de  recorrência (em 16-44% dos casos, com risco mais elevado abaixo dos dez anos, conquanto menos comummente que no adulto).

A referida patologia poderá ser diagnosticada acidentalmente (em cerca de 15-40% dos casos) durante a avaliação imagiológica de determinada entidade clínica e permanecer assintomática durante longo período de tempo. A UL é muito mais frequentemente sintomática nos adolescentes do que nas crianças com idade inferior a três anos.

As manifestações clínicas da UL sintomática são variáveis, dependendo especialmente da idade e da localização do cálculo.

A apresentação clássica do adulto também ocorre na criança mais velha e no adolescente: dor intensa de início súbito, intermitente, tipo cólica, no flanco com irradiação para a região inguinal, escroto ou grandes lábios. As crianças mais novas apresentam mais frequentemente sintomas inespecíficos como dor abdominal, náusea, vómitos ou irritabilidade. Pode ocorrer hematúria (micro ou macroscópica) em proporção que pode atingir 90% dos casos. A infecção do tracto urinário pode ser a forma de apresentação, especialmente em crianças com menos de cinco anos de idade.

Os cálculos que se complicam de obstrução do fluxo urinário localizam-se tipicamente nas regiões de estreitamento do tracto urinário (junção uréter-pélvica, cruzamento do uréter com os vasos ilíacos e junção uréter-vesical); nestes casos, pode ocorrer dor intensa no flanco (cólica renal) ou dor abdominal. Se o cálculo estiver localizado no uréter distal, a criança pode apresentar sintomas como disúria, urgência miccional e polaquiúria. Os cálculos vesicais são habitualmente assintomáticos e, quando localizados na uretra,  pode surgir disúria, especialmente no sexo masculino.

Diagnóstico

Anamnese e exame objectivo

A anamnese pormenorizada e o exame objectivo completo e sistemático são essenciais para o diagnóstico.

A avaliação inicial deve incluir a pesquisa de factores de risco de litogénese: história familiar (UL, consanguinidade, doença/insuficiência renal, doença metabólica) e antecedentes pessoais (UL, anomalia congénita nefrourológica, doença metabólica, infecção urinária). A ocorrência familiar de nefrolitíase não indica necessariamente uma causa genética, uma vez que os factores ambientais e dietéticos podem contribuir para a predisposição familiar.

A presença de consanguinidade e história familiar de cálculos renais, diagnóstico numa idade precoce e cálculos renais recorrentes ou bilaterais, são pistas para uma possível doença metabólica.

Os aspectos que podem sugerir uma possível etiologia hereditária incluem: história familiar de falência renal, apresentação em idade jovem, consanguinidade parental, nefrolitíase recorrente, sinais e sintomas de disfunção tubular com poliúria, acidose, restrição do crescimento e insuficiência renal associadas, nefrocalcinose e sinais dismórficos.

No âmbito da anamnese importa aprofundar aspectos relacionados com características do regime alimentar em geral, consumo de líquidos, sal, cálcio, oxalatos, proteína animal,  suplementação vitamínica (especialmente de vitaminas A, C e D), mineral e medicamentos. Algumas doenças específicas podem ser predisponentes: obstrução do tracto urinário, refluxo vesicoureteral, doença inflamatória intestinal, síndroma do intestino curto, fibrose quística, epilepsia e situações de imobilização prolongada.

O exame objectivo deve incluir: medição da temperatura corporal, avaliação somatométrica, medição da pressão arterial e exame abdominal para detecção de sinais de obstrução urinária ou de qualquer outra causa de dor abdominal. Importa igualmente identificar deformidades ósseas, sinais de raquitismo, alterações genitais ou outras alterações fazendo parte de doenças sistémicas e genéticas.

Estudo analítico

Na suspeita de episódio agudo de UL é obrigatória a colheita de urina para exame bacteriológico e estudo de densidade, pH, hematúria, piúria e cristalúria; a determinação da creatinina sérica é fundamental para determinação da taxa de filtração glomerular inicial.

Posteriormente, todos os pacientes com cálculos urinários deverão ser submetidas a uma avaliação metabólica completa que inclua os factores promotores e os inibidores da cristalização; o objectivo desta intervenção (realizada em ambulatório e fora do episódio agudo, devendo o doente manter o regime alimentar habitual), é a tentativa de identificação de quaisquer alterações para as quais existam medidas preventivas e terapêuticas específicas e dirigidas, por forma a diminuir o risco de recorrência.

O estudo analítico do sangue deve contemplar os doseamentos dos seguintes parâmetros: equilíbrio ácido-base, creatinina, sódio, potássio, cloro, cálcio, fosfato, magnésio, ácido úrico, fosfatase alcalina, albumina, calcitriol e PTH intacta (se hipercalcémia).

A avaliação pormenorizada da excreção urinária de cálcio, fosfato, oxalato, citrato, ácido úrico e cistina deve ser obtida através da colheita de urina de 24 horas, tendo em conta a  variabilidade da dieta e do consumo de líquidos.

Nos lactentes e nas crianças ainda sem controlo de esfíncteres, a excreção de cada um daqueles solutos pode ser analisada numa amostra ocasional de urina, e comparada com a excreção urinária concomitante de creatinina. Em caso de alteração de algum dos parâmetros analisados, os resultados deverão ser sempre confirmados. Os valores de referência aplicáveis às amostras ocasionais de urina e às recolhas de 24 horas estão expressos respectivamente nos Quadros 1 e 2.  

QUADRO 1 – Valores de referência para amostras ocasionais de urina

Adaptado de Moudi E, Ghaffari R, Moradi A. Pediatric nephrolithiasis: trend, evaluation and management: a systematic review. J Pediatr Rev 2016 (in press). doi: 10.17795/jpr-7785.
Abreviaturas: TFG: taxa de filtração glomerular
a Calculada pela multiplicação da razão ácido úrico/creatinina (mg/mg) pela creatinina sérica (mg/dL)
Constituinte da urinaIdadeValor (mg/mg creatinina)
Cálcio< 7 meses< 0,86
7 – 18 meses< 0,6
19 meses – 6 anos< 0,42
> 6 anos< 0,2
Oxalato< 6 meses< 0,29
6 meses – 2 anos< 0,20
> 2 – 5 anos< 0,11
6 – 12 anos< 0,06
Citrato< 5 anos> 0,42
> 5 anos> 0,25
CistinaTodas as idades< 0,07
Ácido úricoTodas as idades< 0,56 por TFGa

QUADRO 2 – Valores de referência para recolha de urina de 24 horas

Adaptado de Moudi E, Ghaffari R, Moradi A. Pediatric nephrolithiasis: trend, evaluation and management: a systematic review.
J Pediatr Rev 2017; 5(1):e7785. doi: 10.17795/jpr-7785.
 a A adequação da colheita de urina pode ser avaliada pelo valor da creatinina urinária para a idade e género
Constituinte da urinaIdadeValor
CálcioTodas as idades< 4 mg/kg
Oxalato> 2 anos< 0,45 mg/1,73m2
CitratoTodas as idades, sexo masculino> 365 mg/1,73m2
Todas as idades, sexo feminino> 310 mg/1,73m2
CistinaTodas as idades< 60 mg/1,73m2
Ácido úricoTodas as idades< 815 mg/1,73m2
Creatininaa3 – 5 anos12 – 20 mg
6 – 13 anos15 – 25 mg
14 – 18 anos, sexo masculino18 – 27 mg
14 – 18 anos, sexo feminino17 – 24 mg

O doente/família devem ser instruídos para guardar a urina durante o período de tempo necessário para reter o cálculo ou algum dos seus fragmentos. Sempre que for possível recuperar o cálculo, deve ser efectuada a análise da sua composição química, informação que pode ser decisiva para o diagnóstico etiológico e para a prevenção e tratamento de eventuais recorrências.

Imagiologia

O radiograma simples de abdómen: – é útil na identificação de cálculos com conteúdo cálcico (oxalato, fosfato e carbonato) os quais são radiopacos; – é muito pouco sensível nos cálculos de cistina; e – inútil nos de ácido úrico ou xantina. A sensibilidade do radiograma simples do abdómen para o diagnóstico de UL situa-se entre  45% e  60%.

A ecografia renal e vesical, isenta de radiação e com baixo custo, é considerada o exame de primeira linha na avaliação imagiológica de crianças e jovens com suspeita de UL. Com tal exame obtém-se uma elevada taxa de detecção de cálculos renais (90%), e menor sensibilidade para cálculos ureterais e/ou cálculos de pequena dimensão (< 5 mm).

A tomografia computadorizada (uro-TC) permite obter sensibilidade e especificidade próximas dos 100%. No entanto, devido aos potenciais riscos de exposição a radiação ionizante, deve apenas ser considerada se, após uma ecografia renal e vesical não conclusiva,  a suspeita clínica de UL se mantiver elevada.

A ressonância magnética com gadolínio (uro-RM) e o renograma diurético com MAG3 podem ser úteis em casos particulares.

Tratamento

A intervenção terapêutica incide no tratamento do episódio agudo e na prevenção de recorrências.

Episódio agudo

Na fase aguda, em que o doente se apresenta habitualmente com quadro álgico muito intenso, as prioridades são o controlo da dor, a facilitação da progressão e eliminação do cálculo ou cálculos, e a identificação da necessidade urgente de remoção. É também importante a identificação e tratamento de eventual infecção urinária.

Alguns doentes pediátricos com cólica renal aguda podem ser tratados em ambulatório, com analgesia oral e hidratação adequadas. Mas outros, com dor grave, náuseas e vómitos, beneficiam de internamento para vigilância clínica e imagiológica mais acessíveis e para administração endovenosa de fluidos e analgésicos. Nos casos que ocorrem em contexto de rim único, que se acompanham de obstrução progressiva e grave, e de infecção urinária, está também indicada a hospitalização.

A hidratação aumenta o fluxo urinário, facilitando a progressão e ulterior eliminação do cálculo. O controlo da dor associada é frequentemente obtido no ambulatório com o recurso a analgésicos como os anti-inflamatórios não esteróides (ibuprofeno, naproxeno, cetorolac) eficazes e seguros (se a filtração glomerular estiver conservada).

Em regime de internamento  é habitual a utilização endovenosa de cetorolac (0,5 mg/Kg/dose, até de 6-6 horas, com dose unitária máxima de 30 mg) e de morfina (0,05-0,1 mg/kg/dose, até de 2-2 horas). Nos casos sem obstrução grave ou progressiva e sem deterioração da função glomerular, a hidratação endovenosa é agressiva (1,5 a 2 vezes as necessidades diárias habituais). Os antieméticos endovenosos (ondansetron, 5 mg/m2/dose ou 0,1 mg/kg/dose, até de 8-8 horas) são úteis nos casos de vómitos incoercíveis. A antibioticoterapia endovenosa está indicada nos casos de infecção urinária.

Na idade pediátrica, os cálculos de menor dimensão (renais e ureterais, sobretudo se < 5 mm) são expulsos espontaneamente em ~32 – 60% dos doentes, pelo que cerca de metade dos casos pode ser tratada com sucesso apenas com vigilância clínica e as medidas atrás enunciadas.

Nos adultos, alguns fármacos (antiespasmódicos, bloqueadores dos canais de cálcio e antagonistas alfa adrenérgicos) têm sido utilizados para promover a aceleração da passagem dos cálculos de localização ureteral; a utilização nas crianças de antagonistas alfa-adrenérgicos como a tansulosina (4 mg/dia, via oral) é ainda na actualidade off-label; contudo, de acordo com resultados de diversos estudos na população pediátrica, verificou-se maior  probabilidade de expulsão espontânea de cálculos ureterais com menos de 10 mm, e de  redução do tempo de expulsão do cálculo.

Se ao cabo de cerca de quatro semanas não ocorrer expulsão do cálculo, a remoção cirúrgica será habitualmente necessária.

A remoção urológica de cálculos pode estar ainda indicada nos casos de:

  • Dor grave, persistente e refractária à terapêutica analgésica (por cálculo localizado quase sempre na junção uréter-vesical ou na junção pieloureteral);
  • Obstrução completa;
  • Obstrução parcial em rim único com evidência de sofrimento renal;
  • Cálculos de estruvite (com grande potencial de crescimento e evolução para aspecto coraliforme); e
  • Pielonefrite/uro-sépsis, a ponderar.

O tempo aceitável para uma atitude expectante não pode ser previamente determinado; a decisão deve resultar de um sensato equilíbrio entre o risco cirúrgico e o risco de lesão renal decorrente de uma obstrução grave e permanente.

Cerca de um quarto das crianças necessita de intervenção cirúrgica nos primeiros seis meses após o diagnóstico de UL, e em cerca de 25% destas há necessidade de mais do que um procedimento.

Nos Quadros 3 e 4 são discriminadas as indicações para remoção activa dos cálculos de localização respectivamente ureteral e renal.

QUADRO 3 – Indicações para remoção activa de cálculos ureterais

Adaptado de Jung H, Osther PJS. Acute management of stones: when to treat or not to treat? World J Urol 2015; 33: 203-211.

    • Cálculos com pouca probabilidade de expulsão espontânea
    • Dor persistente apesar de analgesia adequada
    • Obstrução persistente
    • Insuficiência renal (falência renal, obstrução bilateral ou rim único)

QUADRO 4 – Indicações para remoção activa de cálculos renais

 Adaptado de Jung H, Osther PJS. Acute management of stones: when to treat or not to treat? World J Urol 2015; 33: 203-211.
    • Crescimento do cálculo
    • Cálculos em doentes com elevado risco de UL
    • Obstrução causada pelos cálculos
    • Infecção
    • Cálculos sintomáticos (dor ou hematúria)
    • Cálculos > 15 mm
    • Cálculos < 15 mm se a vigilância não for uma opção
    • Preferência do doente
    • Comorbilidades
    • Situação social do doente
    • Escolha de tratamento

As opções cirúrgicas incluem litotrícia extracorporal por ondas de choque, ureteroscopia com litotrícia e/ou extracção dos cálculos, nefrolitotomia percutânea e pielolitotomia aberta ou laparoscópica. A escolha do procedimento cirúrgico depende da experiência da equipa cirúrgica, dos meios tecnológicos disponíveis, e ainda de outros factores como a dimensão, localização e composição do cálculo, e a existência de anomalia congénita urológica obstrutiva subjacente. A litotrícia extracorporal e a ureteroscopia, precedidas por vezes de colocação de um stent temporário, são classicamente usadas para cálculos de pequena e média dimensão (< 20 mm), e consideradas relativamente equivalentes em termos de taxa de sucesso; a nefrolitotomia percutânea e a pielolitotomia (por via aberta ou por via laparoscópica) são geralmente reservadas para a remoção dos cálculos de maiores dimensões.

No Quadro 5 estão indicados os diversos tipos de tratamento cirúrgico da UL pediátrica, de acordo com a dimensão e localização do cálculo.

QUADRO 5 – Opções cirúrgicas para o tratamento de UL pediátrica

Adaptado de Gnessin E, Chertin L, Chertin B. Current management of paediatric urolithiasis. Pediatr Surg Int 2012; 28: 659-665.
Abreviaturas: NLPC: nefrolitotomia percutânea; LEOC: litrotícia extracorporal por ondas de choque; CIRR: cirurgia intra-renal retrógrada.
Localização do cálculoTratamento primárioTratamento secundárioNotas
Cálculos coraliformesNLPCCirurgia aberta/ LEOCTratamento combinado com LEOC
Pelve renal (< 10 mm)LEOCCIRR/NLPC

Pelve renal

(10-20 mm)

LEOCNLPC/cirurgia abertaOcasionalmente podem ser necessárias várias sessões de LEOC
Pelve renal (> 20 mm)NLPCLEOC/cirurgia abertaOcasionalmente podem ser necessárias várias sessões de LEOC
Cálice do pólo inferior (< 10 mm)LEOCCIRR/NLPC
Cálice do pólo inferior (> 10 mm)NLPCLEOC
Uréter superiorLEOCCIRR/ Ureteroscopia
Uréter inferior (< 5 mm)Terapêutica médica expulsiva com bloqueadores alfaUreteroscopia
Uréter inferior (> 5 mm)UreteroscopiaLEOCPode ser considerada terapêutica médica expulsiva

Prevenção de recorrências

A ingesta hídrica adequada (1,5 a 2 L/m2/dia), pelo aumento da diurese e diminuição da concentração urinária de solutos, constitui um elemento chave na prevenção do risco de recorrência. Deve-se promover um débito urinário diário de, pelo menos:  750 mL no lactente, e > 1000 mL (1-5 anos), > 1500 mL (5-10 anos) e > 2000 mL (> 10 anos).

Após resolução do episódio agudo é fundamental a tentativa de identificação de algum dos factores de risco litogénico anteriormente indicados. A sua incidência é manifestamente superior nos casos de doença metabólica subjacente, o que acontece em cerca de 50% dos doentes com episódios recorrentes. Nestes doentes, o controlo e/ou a correcção da alteração metabólica diagnosticada são decisivos para a sua prevenção.

Na hipercalciúria está indicada uma dieta:

  • Com restrição salina (inferior a 2-3 mEq/kg/dia de sódio nas crianças, e menor que 2,4 g/dia nos adolescentes; tal restrição favorece a reabsorção tubular renal de sódio e de cálcio e reduz a eliminação urinária de cálcio);
  • Sem ingesta elevada de proteína animal; e
  • Com um suprimento equilibrado de cálcio (para previnir a osteopenia e a hiperoxalúria secundária) e de potássio (sendo que a hipocaliémia aumenta a excreção urinária de cálcio).

Os diuréticos tiazídicos (hidroclorotiazida, 0,5-2 mg/kg/dia nas crianças, 25-100 mg/dia nos adolescentes), com ou sem associação ao amiloride (que também favorece a reabsorção renal de cálcio), podem estar indicados nos casos de recorrência em que as medidas dietéticas não tenham sido eficazes para a normalização dos níveis de calciúria.

Nos casos de hiperoxalúria, a diminuição de oxalato alimentar pode ser útil nos casos de ingesta prévia comprovadamente exagerada (sendo importante destacar que apenas 10-20% da sua excreção é derivada da dieta). É igualmente aconselhável uma dieta com restrição de gorduras, rica em magnésio, equilibrada em cálcio, e sem excesso de vitamina C.

A piridoxina (5-20 mg/kg/dia) é eficaz nalguns doentes com hiperoxalúria primária; em tal situação está obrigatoriamente indicado proceder a hiper-hidratação (> 3 L/m2/dia). Admitindo-se a indicação da transplantação hepática, esta deverá ser efectuada antes da evolução para insuficiência renal terminal.

Na hiperuricosúria a alcalinização da urina através da administração de citrato de potássio (1-4 mEq/kg/dia na criança, 30-90 mEq/dia nos adolescentes), aumentando a solubilidade do ácido úrico, pode promover-se a dissolução de cristais ou cálculos. O alopurinol (4-10 mg/kg/dia, dose máxima diária de 300 mg) diminui a produção de ácido úrico e está indicado em casos raros (síndroma de Lesch-Nyhan). A restrição da ingesta salina e de purinas é também importante.

A alcalinização da urina assume igualmente um papel preponderante nos casos de cistinúria. Nesta patologia pode estar indicada a utilização de fármacos como a tiopronina (20-30 mg/kg/dia) ou a D-penicilamina (20-40 mg/kg/dia) os quais formam complexos altamente solúveis com a cistina (salientando-se que os mesmos têm toxicidade elevada e efeitos secundários significativos).

Na hipocitratúria, o aumento da excreção urinária de citrato, o qual pode ser obtido pela alcalinização do plasma através da administração de citrato de potássio, reduz o cálcio disponível para ligação ao oxalato e ao fosfato.

As anomalias congénitas nefrourológicas, que aumentam o risco de estase e de infecção urinária, podem ter indicação para correcção cirúrgica. Neste contexto também, os fármacos litogénicos devem, sempre que possível, ser evitados ou suspensos.

A monitorização (ecográfica e laboratorial) subsequente ao primeiro episódio de UL implica:

  • A vigilância e a detecção da eventual formação de novos cálculos (ou do crescimento dos já existentes); e
  • A avaliação laboratorial da resposta às medidas dietéticas e farmacológicas entretanto aplicadas.

A frequência e a magnitude de tal monitorização devem ser individualizadas de acordo, quer com o tipo, número, dimensão e velocidade de recorrência dos cálculos, quer com a gravidade da patologia metabólica eventualmente identificada (maior risco nos casos de hiperoxalúria primária e cistinúria).

Em suma, a ocorrência de sintomatologia aguda sugestiva de recorrência deverá conduzir a uma reavaliação imediata.

Prognóstico

O prognóstico da UL em termos de compromisso da função renal é muito variável. O maior risco de evolução para doença renal crónica ocorre nos doentes com doença metabólica grave, como a hiperoxalúria primária e a cistinúria.

Com vista à melhoria do prognóstico, salienta-se a importância do papel duma equipa multidisciplinar (nefrologia, urologia, imagiologia, dietética e enfermagem), tendo como objectivos primordiais promover a regular e rigorosa vigilância  clínica, imagiológica e analítica, o esclarecimento e apoio emocional nas consultas de seguimento, assim como o apoio dietético diferenciado e a intervenção terapêutica (dietética, farmacológica e cirúrgica).

Glossário

Litotrícia > Operação que consiste em triturar os cálculos existentes na bexiga com o auxílio de um litotritor, extraindo os fragmentos pela uretra.

Solução > Mistura líquida homogénea de uma substância sólida, líquida ou gasosa (a substância dissolvida é o soluto) e de um líquido (o solvente), geralmente em quantidade mais elevada. A substância dissolvida pode ser recuperada por evaporação do solvente ou por outro processo físico.

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INFECÇÃO URINÁRIA

Definições

A infecção urinária (IU) é um processo inflamatório do epitélio da bexiga e/ou do rim, acompanhado de sintomatologia, geralmente secundário à invasão e multiplicação de microrganismos uropatogénicos, primariamente bacterianos.

Dado que o isolamento de microrganismos na urina não significa necessariamente IU, é importante definir determinados conceitos (com eventual afinidade pela nomenclatura) tendo em conta as implicações na prática clínica:

Pielonefrite aguda (PNA) – IU localizada ao parênquima renal. 
Cistite – IU localizada à bexiga. 
Bacteriúria assintomática (BA) – Isolamento de bactérias na urina sem sinais ou sintomas.
Abcesso renal – Coleção de pús intrarrenal.
Nefrónia lobar aguda Fleimão corticomedular caracterizado por infiltrado leucocitário com áreas focais de tecido necrótico sem liquefação, confinado a um lobo renal. Constitui uma fase de evolução intermédia entre pielonefrite aguda e abcesso renal.
Contaminação – Presença de bacteriúria, sem leucocitúria (excepto nos casos de imunodepressão), ou isolamento de mais do que um microrganismo.
IU simples – Causada por microrganismo habitual em doente sem anomalias do tracto urinário e com função renal normal.
IU complicada – Presença de bactéria virulenta (por ex. Staphylococcus aureus) ou de alterações funcionais e/ou estruturais do tracto urinário (litíase, refluxo vésico-ureteral, nefropatia de refluxo, obstrução alta ou baixa, bexiga neurogénica, cateterismo vesical permanente).
IU atípica – IU associada a uma ou mais das seguintes situações: criança gravemente doente, fluxo urinário diminuído, massa abdominal ou vesical, valor sérico elevado da creatinina, septicémia, ausência de resposta à antibioticoterapia (AB) em 48 horas, infecção originada por outras bactérias que não Escherichia coli.
IU recorrente – Define-se como:

      • dois ou mais episódios de pielonefrite;
      • um episódio de pielonefrite associado a um ou mais episódios de cistite;
      • três ou mais episódios de cistite.

Na IU recorrente há erradicação da bactéria e, após período de tempo variável, reinfecção por outro agente.
Recaída de IU – Episódio de IU surgindo nas 2 semanas após término da antibioticoterapia, causado pelo mesmo agente. 

Importância do problema

A infecção urinária (IU) é uma das causas mais frequentes de doença aguda na idade pediátrica, com uma prevalência aproximada de 5% na criança febril.

Nas crianças, esta infeção assume particular relevância pela morbilidade associada e pela variabilidade na abordagem diagnóstica e terapêutica. A morbilidade, ultrapassando o episódio agudo de doença, estende-se às complicações renais secundárias, nomeadamente cicatriz renal (CR), hipertensão arterial (HTA), compromisso da função renal, podendo evoluir para doença renal crónica.

Desta forma, impõe-se um diagnóstico correcto para que seja possível instituição precoce de terapêutica adequada.

Aspectos epidemiológicos

A IU corresponde à terceira doença infecciosa mais comum na infância. Sabe-se que 7% das crianças do sexo feminino e 2% do sexo masculino têm a primeira infecção até aos 6 anos de idade. Em 50% dos casos verifica-se recorrência no período de um ano.

Nos primeiros três meses de vida, a IU é mais comum em rapazes. Após o primeiro ano verifica-se um aumento progressivo da prevalência nas raparigas, com alta probabilidade de recorrência (> 30%) por reinfeção por agentes etiológicos diferentes do primeiro. A prevalência é mais elevada nos rapazes não circuncidados (4 a 20 vezes superior).

Em 50-80% dos casos de IU febril verifica-se atingimento renal agudo; em cerca de 20% dos casos de atingimento renal agudo surge cicatriz renal (CR) e, em menor proporção, HTA e proteinúria.

Dezoito a 50% dos doentes com IU sintomáticas têm refluxo vesico-ureteral (RVU), e 10 a 15% alguma anomalia congénita da árvore excretora.

Etiopatogénese

Em condições normais o tracto urinário é estéril. A contaminação por microrganismos do microbioma comensal dos sistemas gastrintestinal ou genital que colonizam a região perineal pode desencadear um processo infeccioso no tracto urinário se o microrganismo envolvido for suficientemente virulento e/ou se o hospedeiro estiver imunodeprimido.

A etiopatogénese da IU é complexa, envolvendo a interacção de factores do hospedeiro e do agente etiológico. A via de infecção pode ser:

  • Ascendente, desde o orifício uretral até à bexiga, bacinete e rim, correspondendo à quase totalidade dos casos;
  • Hematogénica, mais frequente no recém-nascido.

A virulência do microrganismo invasor e a susceptibilidade do hospedeiro são fundamentais para a instalação da IU. O factor determinante da virulência microbiana está dependente da sua capacidade de adesão à mucosa urogenital, da existência de endotoxina e de antigénios da parede celular.

No caso de E. coli, cabe referir o papel das pili ou fimbrae, que permitem fixar-se à parede do sistema urinário, mesmo que não haja alteração do fluxo urinário. Existem fímbrias de 2 tipos:

  • Tipo I – encontradas na maior parte das estirpes de coli, não desempenhando qualquer papel na pielonefrite;
  • Tipo II – ligadas a receptores (glicoesfingolípidos) presentes nas células uro-epiteliais e eritrócitos, desempenham um papel importante na génese da pielonefrite, sendo que cerca de 75-95% das estirpes pielonefritogénicas têm as chamadas fímbrias P.

Assim, torna-se fácil compreender que, tratando-se duma IU causada por uma bactéria com menor capacidade para aderir ao urotélio, tal facto constitui um alerta para a possibilidade de existência de algum defeito congénito do tracto urinário, determinando diminuição do fluxo urinário ou estase, predispondo a IU.

De referir que a bexiga com normal funcionamento tem, entre outras, as seguintes propriedades:

  • Capacidade de depuração das bactérias em 24-72 horas pressupondo o seu total esvaziamento e, portanto, a renovação da urina;
  • Presença de substâncias bacteriostáticas que inibem o crescimento bacteriano e propriedades líticas da própria mucosa vesical.

Assim, qualquer condição que leve à estase urinária – obstipação, cálculos, uropatia obstrutiva, disfunção vesical ou refluxo vesico-ureteral (RVU) – predispõe a IU.

Se os germes microbianos atingirem o rim, poderá ocorrer pielonefrite. Em circunstâncias normais, as papilas renais possuem um mecanismo antirrefluxo, que impede a entrada da urina nos tubos coletores. No entanto, ao nível dos polos superior e inferior do rim, as papilas morfologicamente diferentes não previnem tal entrada.

Se a urina estiver infectada verifica-se estímulo das respostas inflamatória e imunológica, o que poderá culminar em lesão, designadamente CR.

Por outro lado, a glicose na urina constitui um meio de cultura e inibe as funções de agregação, adesão e fagocitose dos leucócitos polimorfonucleares, o que aumenta o risco de infecção; compreende-se pois a particular relevância do facto nos doentes diabéticos.

Em suma, o desenvolvimento de CR está dependente de vários factores para além da infecção e do refluxo, tais como: idade da criança, atraso no diagnóstico, início da terapêutica, características do agente etiológico, existência de infeCções urinárias de repetição ou defeitos anatómicos associados.

No entanto, a relação exacta entre RVU e CR não está ainda perfeitamente esclarecida.

As IU são mais frequentemente causadas por bacilos Gram negativos, sendo Escherichia coli o principal agente encontrado nas IU adquiridas na comunidade (80%).

Existe uma grande variabilidade (de país para país e de região para região) relativamente à epidemiologia e aos padrões de resistência dos microrganismos causadores de IU. Desta forma, é fundamental conhecer os principais agentes etiológicos locais, de modo a obter a máxima efectividade de antibioticoterapia empírica.

QUADRO 1 – Agentes de infecção urinária

Mais comunsE. coli, Staphylococcus saprophyticus, Proteus mirabilis
Menos frequentesProteus vulgaris, Klebsiella, Enterobacter, Citrobacter, Serratia marcencens, Acinectobacter, Pseudomonas, S. aureus
Não clinicamente relevantes em crianças saudáveisLactobacillus spp, Staphylococcus coagulase-negativos, Coryrenebacterium spp

Proteus spp são mais frequentes no sexo masculino, em associação a fimose e contaminação pelo esmegma. Podem ser causa de calculose e alcalinização da urina. Já Pseudomonas aeruginosa e Staphylococcus spp são mais frequentes após a manipulação das vias excretoras e/ou antibioticoterapia prévia.

Klebesiella spp e Streptococcus do grupo B são mais frequentes em adolescentes. Nas adolescentes sexualmente activas, apesar de E. coli continuar a ser o agente etiológico principal, Staphylococcus saprophyticus surge em segundo lugar sendo responsável por cerca de 15-20% das IU neste grupo. A sua predisposição pode ser secundária ao estado hormonal do hospedeiro (alterações hormonais que acompanham a adolescência), acarretando maior susceptibilidade à contaminação por S. saprophyticus na vagina, na área periuretral e no uroepitélio.

A infeção por Candida albicans é raramente encontrada na comunidade, mas frequente em doentes com factores de risco (principalmente doentes algaliados, com cateteres, imunodeprimidos e diabéticos).

Diagnóstico

1. Anamnese e exame físico

Os sintomas clássicos de IU poderão não ser observados na idade pediátrica, variando com a idade do doente (tanto mais inespecíficos quanto menor a idade) e com o tipo de infecção e grau de repercussão sistémica do quadro clínico.

A febre alta (> 39ºC) inexplicável é aceite como provável marcador clínico de envolvimento do parênquima renal, pelo que em toda a criança com idade < 2 anos com este sinal deve ser realizada análise de urina. Sintomas e sinais específicos do aparelho urinário surgem apenas nas crianças mais velhas.

Em todas as crianças com suspeita IU deverá ser dada relevância aos seguintes aspectos da história clínica:

  • Antecedentes pessoais: diagnóstico pré ou pós-natal de nefrouropatia, RVU, IU prévias, padrão miccional anómalo, obstipação, doença da medula espinal, antibioterapia recente e atividade sexual;
  • Antecedentes familiares – RVU, IU e defeito congénito génito-urinário.

No exame físico deverão ser pesquisados hipertensão, baixa estatura e baixo peso, sinal de Murphy renal positivo, massas palpáveis, alterações neurológicas, anomalias genitais e alteração do jacto urinário.

O quadro 2 resume os principais sinais e sintomas considerando os grupos etários.

QUADRO 2 – Sinais e sintomas de infecção urinária

Faixa etáriaSintomas e sinais  
Mais comuns ——————————————————————————————————————> Menos comuns
< 3 mesesFebre
Vómitos
Letargia
Irritabilidade
Recusa alimentar
Má progressão ponderal
Globo vesical e rins palpáveis
Dor abdominal
Icterícia
Hematúria
Urina com cheiro fétido
≥ 3 mesesFase Pré-verbalFebreDor abdominal
Dor lombar
Diarreia
Vómitos
Recusa alimentar
Letargia
Irritabilidade
Hematúria
Urina com cheiro fétido
Má progressão ponderal
Fase VerbalFrequência DisúriaPoliaquiúria
Incontinência urinária
Dor abdominal
Dor lombar
Febre
Mal-estar
Vómitos
Hematúria
Urina turva com cheiro fétido

2. Exames complementares

Após a suspeita clínica de IU é urgente ter um diagnóstico de certeza. Em pediatria, na presença de febre de etiologia desconhecida (≥ 38ºC, com mais de 24 horas de evolução), é necessário obter uma amostra de urina para confirmação diagnóstica de IU. Quando existe um foco alternativo de doença, não há necessidade de realizar análise de urina. Contudo, se após 24 a 48 horas não se verificar melhoria clínica, a mesma deverá ser realizada.

a) Colheita de urina

O método ideal para colheita de urina para o exame sumário depende da ausência ou presença de controlo de esfíncteres urinários. Em crianças com controlo de esfíncteres, o método preferencial de colheita é por jacto médio. No recém-nascido, no lactente e na criança sem controlo de esfíncteres, deve proceder-se a punção suprapúbica ou a cateterismo uretral. Neste último grupo, pode também ser realizada por saco colector, após lavagem correcta da zona perineal.

A punção suprapúbica é o método padrão de ouro para colheita de urina. Deverá ser considerado, sobretudo, nas crianças com menos de 12 meses, com balanopostite/vulvovaginite ou fimose importante, ou ainda com quadro infeccioso grave. Deve ser realizada uma hora após a última micção e, pelo menos, 30 minutos após mamada. Deve utilizar-se uma agulha de calibre 22; após desinfecção da pele com iodopovidona, deve puncionar-se 1 cm acima da sínfise púbica, a uma profundidade de 2 a 3 cm, com inclinação da agulha de 30 a 45º no sentido caudal.

No caso do cateterismo uretral, as primeiras gotas deverão ser desperdiçadas porque poderão estar contaminadas com bactérias da uretra distal; este método evidencia sensibilidade de 95% e especificidade de 99%.

Com a colheita por saco colector obtém-se taxa elevada de resultados falsos positivos com um valor preditivo negativo de 96-100%. Poderá ser usado se a clínica não for muito sugestiva de IU em criança com bom estado geral. No entanto, se a urina obtida revelar alterações, deve ser obtida segunda amostra por punção suprapúbica ou cateterismo uretral.

Após colheita de urina, recomenda-se não ultrapassar 1 hora para o processamento da mesma, em temperatura ambiente. Se não for possível processar a urina neste intervalo de tempo, deve ser refrigerada após colheita, a uma temperatura entre 2-8ºC, até 4 horas. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Métodos de colheita de urina

1Recomenda-se que a punção suprapúbica seja guiada por ecografia
Método de colheitaUrocultura considerada
positiva se:
VantagensDesvantagensIndicação
Jacto médio

≥ 100.000 colónias/mL

– indicadores de validade de diagnóstico aceitáveis
– não invasivo
– fácil

 – risco de contaminação dependente da higiene e medidas de limpezaTodas as crianças continentes
Saco colector

≥ 100.000 colónias/mL

– valor preditivo negativo 96-100%
– não invasivo
– fácil

– taxa de falsos positivos muito elevada (> 50%)
– necessita de outro método para confirmação se positivo

Método inicial para todas as crianças não continentes, em situações não urgentes

Cateterismo uretral

> 10.000 a 50.000 U colónias/mL

– elevada sensibilidade e especificidade

– invasivo
– risco de trauma uretral
– risco de contaminação

Método de confirmação e método inicial em situações urgentes de crianças não continentes
Punção suprapúbica> 0 colónias/mL se Gram negativo
> 1.000 colónias/mL se Gram positivo
– técnica de referência

– invasivo
– êxito variável (30-70%)
– idealmente requer controlo ecográfico

Método de confirmação e método inicial em situações urgentes de crianças não continentes1
b) Análises de urina  

A análise sumária de urina (Us) e a urocultura (UC) são dois exames de particular importância, dado que conduzem ao diagnóstico. A primeira, um instrumento de rastreio, dá uma informação rápida de suspeita com necessidade de confirmação do diagnóstico. A urocultura (UC), se positiva, permite estabelecer o diagnóstico definitivo de IU.

Os parâmetros a valorizar na amostra de urina centrifugada, havendo suspeita de IU, são: densidade baixa, presença de proteínas, presença de nitritos, leucosterase; > 5 leucócitos por campo com ampliação de 400 vezes ou > 25 leucócitos por mcL (leucocitúria significativa), presença de piócitos, presença de eritrócitos, presença de bactérias (microscopia).

Nas crianças a partir dos 3 anos poder-se-á utilizar fita reactiva (Combur®) para avaliação inicial, a qual tem 90% de sensibilidade e 70% de especificidade.

O teste para nitritos é pouco sensível nas crianças, particularmente no recém-nascido e lactente. Isto acontece pela elevada frequência de micções, o que impossibilita que a urina permaneça o tempo necessário na bexiga (cerca de 4 horas) para que as bactérias reduzam os nitratos em nitritos. Desta forma, se negativo, o teste para nitritos não invalida a presença de infecção. Contudo, a probabilidade de IU é elevada quando o resultado é positivo. Bactérias não redutoras de nitratos (Pseudomonas e Streptococcus), presença de ácido ascórbico e urina muito diluída são outras causas de negatividade quanto a nitritos. Por outro lado, se a urina permanecer muito tempo sem processamento, poderá ocorrer um resultado falso positivo.

A leucocitúria significativa (ver atrás) permite distinguir a BA (em que não existe leucocitúria significativa) da IU. No entanto, está frequentemente associada a falsos positivos, como no contexto de febre secundária a outro tipo de infecção, doença de Kawasaki e após exercício físico intenso.

A ausência de piúria na IU da criança é rara. A presença de bactérias numa urina fresca centrifugada, colhida em condições de assepsia é altamente específica de IU.

Quanto maior o número de parâmetros positivos, maior a probabilidade de IU na presença de sinais clínicos sugestivos. Assim, a positividade para nitritos e leucócitos na urina torna o diagnóstico de IU altamente provável. No entanto, em cerca de 10% dos casos pode existir IU com análise sumária normal, pelo que nunca se deve prescindir da realização da urocultura.

O Quadro 4 mostra a sensibilidade e especificidade dos parâmetros atrás referidos (componentes de urina considerados isoladamente ou em combinação) para o diagnóstico de IU.

QUADRO 4 – Sensibilidade e especificidade de parâmetros, isolados e em combinação, para o diagnóstico de IU

TesteSensibilidade %Especificidade %
Leucosterase83 (67-94)78 (64-92)
Nitritos53 (15-82)98 (90-100)
Leucosterase + ouNitritos +93 (90-100)72 (58-91)
Leucócitos (microscopia)73 (32-100)81 (45-98)
Bacteriúria (microscopia)81 (16-99)83 (11-100)
Leucosterase + ,  Nitritos + , ou Microscopia +99,8 (99-100)70 (64-92)
c) Urocultura

Os critérios de diagnóstico de IU em função da positividade microbiana em colónias/mL variam conforme o modo de colheita da urina em condições de assepsia:

  • Jacto médio ou saco colector: > 100.000 colónias/mL;
  • Cateterismo vesical: > 10.000 colónias/mL;
  • Punção suprapúbica: > 0 colónias/mL se Gram negativo e > 1.000 colónias/mL se Gram positivo.

Em pediatria, realização de urocultura (UC) está indicada nas seguintes situações:

  • Quadro clínico compatível com pielonefrite aguda;
  • Risco elevado ou moderado de doença grave;
  • Leucosterase positiva ou nitritos positivos;
  • IU recorrentes;
  • Ausência de resposta à antibioticoterapia em 48 horas;
  • Discordância entre a clínica e o resultado da fita reactiva/exame sumário de urina.

A UC poderá ser negativa na fase inicial do processo inflamatório, no abcesso renal ou nefrónia lobar, na criança com micções muito frequentes ou se tiver sido instituída antibioticoterapia prévia.

A IU é causada por uma única bactéria, pelo que a presença de duas ou mais sugere contaminação.

A bacteriúria assintomática (BA) é mais frequente em raparigas de idade escolar, mas pode também ocorrer em lactentes. Estima-se que 1/4 dos rapazes e 1/6 dos rapazes diagnosticados como IU tenham, na realidade, BA.

Trata-se de uma condição clínica facilmente confundida com uma verdadeira IU. Não obstante, a ausência de piúria é um dado mais a favor do diagnóstico de BA. Convém, contudo, ressalvar o facto de uma criança com BA, que se encontre febril, poder evidenciar leucócitos na urina apenas devido à febre.

Na maioria dos casos, a BA não tem indicação para tratamento, uma vez que é habitualmente causada por uma estirpe de E. coli menos virulenta e não agressiva para o rim. Ao instituir antibioticoterapia, há risco de alterar a virulência da bactéria. Apesar disso, há situações que obrigam a antibioticoterapia: pacientes imunodeprimidos, diabéticos, grávidas, e insuficientes renais.

d) Análises séricas

Em função do contexto clínico, nos casos de suspeita de compromisso do parênquima renal (pielonefrite) é fundamental avaliar determinados parâmetros analíticos através do hemograma, proteína C reactiva (PCR), velocidade de sedimentação (VS) e procalcitonina. Constituem marcadores indirectos de provável compromisso do parênquima renal: leucocitose com neutrofilia e elevação da PCR e da VS.

A procalcitonina é um marcador directo de diagnóstico e de gravidade da lesão renal. Trata-se de um parâmetro sensível e específico para o diagnóstico precoce de pielonefrite aguda, salientando-se o seu valor preditivo mais robusto relativamente à PCR e ao leucograma. Considerando o valor de corte de 0,8 ng/mL, a sensibilidade e especificidade são 83,3% e 93,6%, respectivamente. No entanto, não se encontra ainda disponível na maioria dos hospitais.

O diagnóstico baseia-se, assim, no contexto clínico apropriado, na presença de piúria e UC positiva.

O Quadro 5 sistematiza a actuação com base na clínica, em faixas etárias, e em exames de urina.

QUADRO 5 – Clínica, exames de urina, faixas etárias e antibioticoterapia

Lactentes com menos de 3 meses
Todos os lactentes < 3 meses com suspeita de IU deverão realizar análise sumária de urina e UC e ser orientados de acordo com as recomendações para avaliação de doença febril nesta faixa etária
Crianças ≥ 3 meses e < 3 anos
Sintomas urinários específicosPedir Us e UC urgentes e iniciar antibioticoterapia (AB)
Sintomas não específicos do tracto urinário

Criança com risco elevado de doença grave: pedir Us e UC urgentes. Realizar restante avaliação de doença febril. Iniciar AB de largo espectro imediatamente após colheitas

Criança com risco baixo a moderado de doença grave: pedir Us e UC urgentes. Iniciar AB dirigida a IU se nitritos positivos ou exame do sedimento sugestivo de IU

Crianças ≥ 3 anos (pode utilizar-se tira reactiva)
Esterase leucocitária +
Nitritos +
Considerar IU, proceder a UC e iniciar antibioticoterapia
Esterase leucocitária +
Nitritos –
Proceder a Us e UC. Iniciar antibioticoterapia apenas se sintomas urinários óbvios. A leucosterase isolada poderá indicar infecção de outra localização que não o tracto urinário
Esterase leucocitária –
Nitritos +
Proceder a Us e UC. Considerar IU se a análise tiver sido efectuada em amostra fresca de urina e iniciar antibioticoterapia
Esterase leucocitária –
Nitritos –
Não considerar IU e não iniciar AB nem proceder a UC. Considerar outras causas de doença

Orientação de IU confirmada

Na abordagem clínica da IU devem ser tidos em consideração três aspectos:

  • Avaliação de factores de risco associados a patologia grave;
  • Localização da IU;
  • Critérios de internamento.

Factores de risco associados a patologia grave

A doença grave está associada a morbilidade importante, tanto aquando do episódio agudo, como a longo prazo. São considerados factores de risco associados a doença de base grave, os seguintes:

  • Jacto urinário fraco;
  • IU prévia confirmada (ou história sugestiva);
  • Febre recorrente de origem indeterminada;
  • Diagnóstico pré-natal de anomalia nefrourológica;
  • História familiar de RVU ou doença nefrourológica;
  • Obstipação;
  • Disfunção vesical;
  • Aumento das dimensões vesicais;
  • Massa abdominal;
  • Lesão da espinhal-medula;
  • Má progressão ponderal;

No caso da febre recorrente, dever-se-á considerar a hipótese de um ou vários destes episódios febris poderem ter correspondido a IU não diagnosticadas. Relativamente à obstipação, sobretudo se se tratar de uma forma grave e com má resposta à terapêutica já instituída, deverá suspeitar-se de bexiga e intestino neurogénicos.

Localização da IU

A localização da infecção do tracto urinário na idade pediátrica tem implicações terapêuticas e prognósticas e poderá ser determinada a partir dos dados clínicos. Desta forma, na presença de um quadro caracterizado por bacteriúria e febre ≥ 38ºC ou por bacteriúria, dor lombar e febre < 38ºC, o diagnóstico mais provável é de PNA. Por outro lado, a presença de bacteriúria e sintomas urinários do tracto urinário inferior, sem sintomas sistémicos, aponta para o diagnóstico de cistite.

Se existirem dúvidas quanto ao envolvimento do parênquima renal, poderão ser utilizados marcadores:

  • Indirectos: laboratoriais (leucocitose com neutrofilia, elevação da PCR) e imagiológicos (alterações ecográficas);
  • Directos: cintigrafia renal com DMSA (permitindo a localização da IU e ainda a pesquisa de cicatrizes).

Isoladamente, a PCR não deve ser utilizada para diferenciar PNA de cistite. Os exames de imagem também não estão recomendados para definir a localização da IU. No entanto, se for imprescindível excluir PNA, poderá ser realizada ecografia com Doppler (a PNA corresponde a uma área focal com diminuição da perfusão) ou cintigrafia com DMSA, quando o anterior exame não estiver disponível ou o diagnóstico permanecer por confirmar (por ex. criança com clínica muito sugestiva e 2 episódios de presumível contaminação).

Critérios de internamento

A decisão de internar ou não uma criança com IU não deve ser baseada exclusivamente na presença de febre ou em resultados de parâmetros laboratoriais sugestivos de pielonefrite; estes dados devem, contudo, ser tidos em conta ao avaliar a repercussão sistémico da IU, a alteração da função renal, o início imediato da terapia antibiótica, o tipo de tratamento e o estudo evolutivo.

São considerados critérios de internamento os seguintes:

  • Idade inferior ou igual a 3 meses;
  • Necessidade de administração de fluidos endovenosos (desidratação, vómitos);
  • Indicação para antibioticoterapia/AB endovenosa (doença grave, ausência de resposta ou agravamento em criança já sob AB oral);
  • Incerteza no cumprimento da terapêutica no domicílio;
  • Factores de risco identificados, nomeadamente anomalia génito-urinária major, suspeita de obstrução e síndroma de imunodeficiência.

Tratamento

Os objetivos do tratamento são a erradicação do agente etiológico, o alívio dos sintomas e a prevenção ou redução da lesão renal.

Início do tratamento

Recomenda-se que as crianças com diagnóstico presuntivo de IU sejam tratadas empiricamente com AB o mais precocemente possível, após colheita de urina para UC, de forma a reduzir o risco e a gravidade de CR. Logo que possível, a antibioticoterapia deve ser ajustada de acordo com o resultado do teste de sensibilidade aos antibióticos (TSA).

Na criança apirética, com bom estado geral e resultados de exames laboratoriais inconclusivos, pode adoptar-se a estratégia de observação clínica seriada/”expectativa armada” sem tratamento até que o resultado da urocultura esteja disponível.

Na instituição de terapêutica empírica, há que ter em conta factores que se relacionam com o agente infectante, com o hospedeiro e com a farmacocinética dos antibióticos. É igualmente importante ter conhecimento, em cada área comunitária, das bactérias mais frequentes e do respectivo padrão de sensibilidade. Relativamente ao hospedeiro importa considerar a idade, os agentes etiológicos mais frequentes de acordo com o grupo etário, a gravidade da situação clínica, a existência ou não de patologia nefro-urológica ou outra, bem como as terapêuticas antibióticas previamente instituídas.

No que diz respeito aos fármacos, deve ser utilizado um antibiótico bactericida, com espectro de acção selectivo, com boa concentração urinária, com mínimo de efeitos secundários e com baixa capacidade de induzir resistências. Igualmente importante é a posologia, a tolerância e aceitação dos preparados existentes no mercado, sobretudo quando a terapêutica é instituída em regime ambulatório. Os antibióticos com eliminação renal, mas que não atinjam concentrações terapêuticas na corrente sanguínea, tal como a nitrofurantoína, não devem ser utilizados para o tratamento da IU com febre, pois a sua concentração a nível do parênquima renal poderá ser insuficiente para tratar pielonefrite ou urossépsis.

Via de administração

A terapêutica oral ou parentérica tem a mesma eficácia. Neste sentido, a via preferencial de administração da antibioticoterapia deve ser a oral. A via parentérica deve ser inicialmente escolhida para crianças com compromisso importante no estado geral, que não toleram a vida oral ou para aquelas que cumprem critérios de internamento. Assim que a condição clínica o permita, o tratamento deverá ser completado pela via oral.

Duração do tratamento

A duração do tratamento antibiótico da IU associada a quadro febril deve ser de 10-14 dias. Na cistite é aceitável tratamento com duração de 3-5 dias, excepto se se verificar recidiva ou se a idade for inferior a dois anos; neste último caso, está recomendada duração de 7-10 dias.

Esquemas de tratamento

O esquema de tratamento deve ser seleccionado de acordo com o local da infecção (cistite ou PNA) e a idade da criança (Quadro 6). Como já mencionado, na escolha do antibiótico deve ainda ser considerada a epidemiologia local.

Em caso de IU associada a desidratação, deve ser instituída fluidoterapia para 100% a 150% das necessidades basais. O ajuste do ritmo de perfusão é feito de acordo com grau de desidratação e características da ingesta. Por outro lado, a instituição de fluidoterapia EV contribui também para o tratamento da IU, pois aumenta o débito urinário e, assim, o esvaziamento vesical.

Quadro 6 – Tratamento da IU de acordo com a faixa etária e localização

AAC: amoxicilina + ácido clavulânico; TMP-SMX: trimetoprim/sulfametoxazol; Na adolescente sexualmente activa a fosfomicina poderá não constituir uma boa opção, dado que neste grupo 15% das IU são causadas por Staphylococcus saprophyticus, agente com elevada resistência a este AB
IdadeLocalização e tratamento
Recém-nascido ≤ 1 semanaampicilina (200 mg/kg/dia, 8/8h) + gentamicina (4-5 mg/kg/dia, 24/24h)
Tratamento EV durante 14 dias
Recém-nascido > 1 semana e ≤ 28 diasampicilina (200 mg/kg/dia, 8/8h) + cefotaxima (75-100 mg/kg/dia, 8/8h)
Tratamento EV durante 14 dias
> 28 dias e < 3 meses ou > 3 meses com factor de riscoEV: cefotaxima (75-100 mg/kg/dia, 8/8h)
ou ceftriaxona (50-100 mg/kg/dia, 24/24h)
ou cefuroxima (50-150 mg/kg/dia, 8/8h) + gentamicina (5-6 mg/kg/dia, 24/24h)
Via oral – Ambulatório: na sequência da terapêutica parentérica e de acordo com o TSA
Duração total do tratamento: 10 dias
≥ 3 meses, sem factor de riscoPIELONEFRITE AGUDA
Via oral:
cefuroxima axetil (40 mg/kg/dia, 12/12h) ou
AAC/4:1 (40-50 mg/kg/dia, 8/8h) ou
AAC/7:1 (50-100 mg/kg/dia, 12/12h)

Se impossibilidade de via oral:
cefuroxima (50-150 mg/kg/dia, 8/8h) EV durante 2-4 dias (até 24-48h de apirexia e tolerância oral) ou
AAC (50 mg de amoxicilina/kg/toma, 8/8h) ou cefotaxima (150 mg/kg/dia, 6/6 ou 8/8h) ou ceftriaxona (50-100 mg/kg/dia, 24/24h)
Depois, continuação com AB oral de acordo com o TSA
Duração total do tratamento: 10 dias

CISTITE AGUDA
AAC/4:1 (40-50 mg/kg/dia, 8/8h) ou
AAC/7:1 (50-100 mg/kg/dia, 12/12h) ou
cefuroxima axetil (30-40 mg/kg/dia, 12/12h) ou
cefadroxil (30 mg/kg/dia, 12/12h) ou
ceflacor (40 mg/kg/dia 12/12h) ou
cefradina (100 mg/kg/dia, 8/8h) ou
TMP-SMX, se sensibilidade demonstrada no antibiograma (8-12 mg/kg/dia, 12/12h)
Tratamento oral durante 7 dias

Adolescentes do sexo femininonitrofurantoína (100 mg, 6/6h) ou
fosfomicina (3000 mg, dose única) ou
AAC/875/125 mg <> 1 cápsula – de 12/12h) ou
cefuroxima axetil: 500 mg, 12/12h

Nos casos em que é necessária via parentérica e não for possível tratamento endovenoso, deve ser considerada a via intramuscular.

Se a criança estiver sob terapêutica profiláctica e se surgir IU, o tratamento deverá ser feito com AB diferente, e não com dose mais elevada do mesmo AB.

 

Nota importante: em caso de insuficiência renal certos antibióticos poderão necessitar de ajuste de dose de acordo com a taxa de filtrado glomerular.

Os Quadros 7 e 8 agrupam os antimicrobianos utilizados no tratamento da IU de acordo com a sua posologia.

QUADRO 7 – Antibioticoterapia por via parentérica na IU

AntibióticoDose, frequência e dose máxima diáriaComentários
Ampicilina EV

50-100 mg/kg/dia (dose máxima: 12 g/dia)
Recém-nascido: 100 mg/kg/dose
≤ 7 dias de vida: 12/12h
> 7 e ≤ 21 dias de vida: 8/8h
> 21 dias de vida: 6/6h

Reservado para crianças < 30 dias de idade para cobertura de infecção por Streptococcus do grupo B, Listeria monocytogenes ou Enterococcus, em associação com gentamicina

Cefuroxima EV/IM

75-150 mg/kg/dia, 8/8h
(dose máxima: 250 mg/kg ou 9 g/dia)

 
Ceftriaxona EV/IM

50-100 mg/kg/dia, 24/24 h

Reservado para via IM nas crianças com intolerância alimentar e/ou sem acesso venoso
A usar com precaução no recém-nascido com icterícia

Gentamicina EV/IM

4-5 mg/kg/dia, 24/24 h

Não usar em monoterapia
Se < 1 semana de vida – associar com ampicilina para cobertura de Listeria monocytogenes ou Enterococcus
A ajustar o intervalo de acordo com o doseamento sérico

QUADRO 8 – AB para tratamento das IU em regime ambulatório

Antibiótico

Dose, frequência e dose máxima diária

Comentários

Cefuroxima  axetil

30-40 mg/kg/dia, 12/12h
(Dose máxima: 1000 mg/dia)

Administrar após as refeições Absorção diminuída com fármacos que diminuem a acidez gástrica

Cefixima

D1: 8 mg/kg/dia – 2 tomas
D2-D10: 8 mg/kg/dia – 1 toma
(Dose máxima: 400 mg) (D = dia)

Suspensão oral com melhor absorção que o comprimido

TMP/SMX

6-10 mg de TPM/kg/dia, 12/12h
(Doses máximas: 320 mg TMP/1600 mg SMX)

Não usar no recém-nascido, na insuficiência hepática, no défice da G6PD e na anemia megaloblástica

Cefadroxil

30 mg/kg/dia, 12/12h
(Dose máxima: 2 g)

Absorção rápida e total

AAC

AAC/4:1 (40-50 mg/kg/dia, 8/8h) ou AAC/7:1 (50-100 mg/kg/dia, 12/12h)
(Amoxicilina – dose máxima: 3 g)

Boa biodisponibilidade
Dada a epidemiologia local só utilizar de acordo com TSA

Vigilância

Se após 24-48 horas de tratamento não ocorrer melhoria clínica, impõe-se revisão clínica, analítica e imagiológica. Na ausência de diagnóstico alternativo, deve proceder-se a urocultura (se ainda não tiver sido feita).

Se houver boa resposta clínica, não há necessidade de repetir avaliação analítica, nomeadamente UC.

Critérios de alta

São considerados critérios de alta clínica os seguintes:

  • Apirexia ≥ 48 horas;
  • Ingestão e tolerância de líquidos em função das necessidades;
  • Dor controlada com terapêutica oral;
  • Tolerância oral de AB;
  • Aceitação pelos pais e verificação de condições adequadas para a manutenção da terapêutica em casa;
  • Definição de programa de vigilância e controlo pelo médico assistente.

Prevenção

Sugerindo ao leitor a consulta do glossário geral em que são definidos os conceitos de prevenção e de profilaxia (o primeiro, mais lato que o segundo), cumpre referir que a taxa de recorrência no primeiro ano após o diagnóstico de IU é cerca de 30% nos rapazes e 40% nas raparigas, o que impõe a aplicação de medidas preventivas com o objectivo de diminuir a probabilidade de lesão renal (CR).

As medidas de prevenção consistem fundamentalmente em medidas gerais, na pesquisa de anomalias congénitas do tracto urinário (sendo o RVU o mais frequente) e na instituição de terapêutica antimicrobiana em dose profiláctica.

Medidas gerais

As medidas gerais destinadas a reduzir as recorrências de IU devem ser levadas a cabo em todos os doentes incluindo:

  • Identificação e tratamento de disfunção vesical e intestinal (bowel bladder disfunction): suprimento adequado de líquidos para promover esvaziamento vesical frequente e tratamento da obstipação;
  • Correção de factores locais (má higiene genitoperineal, parasitoses, vulvovaginite, balanite, sinéquias, fimose, coalescência de pequenos labios);
  • Evicção de irritantes locais (roupas apertadas, espuma de banho, cremes); e preferência de roupa de algodão folgada.

Quimioprofilaxia

Nos últimos anos, vários estudos aleatorizados demonstraram que num número significativo de crianças com idade inferior a 2 anos se desenvolve pielonefrite sem RVU, e que a profilaxia antimicrobiana tem escasso impacte na redução do número de recorrências. Outros estudos demonstraram que a quimioprofilaxia pode associar-se a diminuição do número de recorrências de IU, parecendo não ter papel na diminuição da probabilidade de desenvolvimento de CR. Segundo importantes estudos, como o RIVUR trial, verificou-se ainda que nas crianças com RVU após uma primeira IU, a quimioprofilaxia se associou a uma redução substancial do risco de recorrência, mas não de ocorrência de CR.

Assim, as últimas recomendações da Associação Americana de Pediatria acerca da infecção urinária acompanhada de febre em idades < 2 anos não preconizam a quimioprofilaxia em todos casos. Desta forma, a quimioprofilaxia não é recomendada, por rotina, após a primeira IU, não devendo também ser instituída nos casos de BA. O início de profilaxia antimicrobiana deve assim ficar reservada para os seguintes casos:

  • RVU grave (graus IV e V) – ver capítulo próprio;
  • Uropatia obstrutiva – idem;
  • IU recorrente;
  • Até à realização de cistografia, nos casos em que esta tem indicação;
  • Problemas miccionais diurnos.

Os fármacos mais utilizados na quimioprofilaxia encontram-se descritos no Quadro 9.

QUADRO 9 – Profilaxia antimicrobiana no contexto de infecção urinária

Antimicrobiano Dose Idade a partir da qual pode ser prescrito
Trimetoprim, solução oral a 1% (manipulado) (1 mL = 10 mg) 1-2 mg/kg, 24/24h Desde o nascimento
TMP/SMX 5 ml = 200/40 mg SMX/TMP TMP: 2 mg/kg, 24/24h > 2 meses de idade
Nitrofurantoína, solução oral a 0,5% (manipulado) (1 mL = 5 mg) 1-2 mg/kg, 24/24h > 12 semanas de idade (nos lactentes com idade inferior há risco de hemólise)

As baixas doses destes fármacos têm a vantagem de, perante níveis séricos baixos e elevadas concentrações urinárias, impedir o aparecimento de resistências a bactérias entéricas e, ao mesmo tempo, o seu crescimento na urina.

Não existe consenso quanto à duração da profilaxia, mas nas crianças a quem foi instituída justifica-se mantê-la até:

  • Conclusão da investigação imagiológica – ver adiante;
  • Cura da uropatia subjacente;
  • No caso de IU recorrente, existência de período ≥ 6 meses sem nova infeção;
  • Resolução das condições que favorecem a estase urinária e disfunção vesical.

Outras estratégias preventivas alternativas à profilaxia antimicrobiana são a utilização de probióticos, ou de frutos vermelhas. Especificamente, em relação à utilização de frutos vermelhos, de acordo com uma meta-análise da Cochrane de 2012 (avaliando imunodeprimidos, crianças com IU recorrentes, idosos e mulheres adultas) somente se verificou eficácia de tal medida em mulheres.

Avaliação imagiológica

Após diagnóstico de IU há que ponderar a necessidade de uma avaliação imagiológica que permita a detecção precoce de anomalias anatómicas ou disfuncionais do tracto urinário (nomeadamente RVU e nefropatia obstrutiva) de modo a prevenir o risco de reinfecção e lesão renal. A avaliação varia em função da idade da criança e da evolução clínica da mesma.

Ecografia renal e vesical

A ecografia renopélvica fornece informações cruciais sobre os rins (número, tamanho, localização e características do parênquima), o tracto urinário (dilatação, duplicidade) e a bexiga (ureterocele, resíduo miccional, espessamento da parede, sedimento urinário).

Contudo, é pouco sensível no diagnóstico de RVU, CR e PNA. Trata-se dum exame não invasivo, fundamental na orientação sobre o tipo de estudo subsequente a efectuar.

Este exame deverá ser realizado, aquando do episódio agudo de IU, nos seguintes casos:

  • Lactente com idade < 3 meses;
  • IU recorrente em lactente < 6 meses;
  • IU atípica, em qualquer idade. No entanto, em casos de IU por bactérias não coli, com boa resposta ao tratamento e na ausência de outros critérios de IU atípica, poderá ser realizada ecografia, apenas 6 semanas após o episódio agudo.

As seguintes situações têm indicação para a realização de ecografia renal e vesical 6 semanas após o episódio agudo:

  • Todas as pielonefrites, mesmo que tenha sido realizada ecografia em pleno episódio agudo (a inflamação decorrente da infecção poderá levar a aumento das dimensões do rim e mascarar rins atróficos);
  • Crianças com cistite, apenas se tiverem idade < 6 meses (idade em que é especialmente difícil diferenciar cistite de pielonefrite), ou história de IU recorrente.

Se a criança já tiver controlo de esfíncteres, a ecografia deverá ser realizada com determinação da capacidade vesical e do resíduo pós-miccional.

Cistouretrografia miccional e pós-miccional

A cistouretrografia miccional e pós-miccional (CUM) é o exame de escolha para o diagnóstico de RVU e determinação do respectivo grau. O RVU é detectado em mais de um terço das crianças após a primeira IU febril, mas em cerca de 90% dos casos é de baixo grau e tende a desaparecer espontaneamente. Poderá também detectar obstrução do tracto urinário inferior, especialmente se provocado ​​por válvulas de uretra posterior.

A realização de CUM está indicada nas seguintes situações:

  • Resultados anormais em exames de imagem prévios:
    • Ecografia renal e vesical (hidronefrose, perda de parênquima renal, assimetria renal, etc.);
    • DMSA (nos casos em que não foi realizada cistografia previamente) – ver adiante;
  • Nos casos de resultados normais de exames anteriores se:
    • IU recorrente (excepto nos casos de criança ≥ 3 anos nas quais nenhuma das IU correspondeu a PNA);
    • Casos de criança < 3 anos com IU atípica (nas crianças com ≥ 3 anos procede-se inicialmente a DMSA; e, se for detectada CR, posteriormente deve ponderar-se CUM);
    • História familiar de RVU.

Antes da realização de cistografia, deverá proceder-se a UC (cerca de uma semana antes); se a mesma for positiva, o referido exame não deverá ser feito.

Idealmente a cistografia deverá ser realizada sob cobertura antimicrobiana (deve prescrever-se um dos antimicrobianos utilizados para a quimioprofilaxia, na mesma dose/toma, mas em duas tomas diárias: na véspera, no dia, e no dia seguinte ao exame). É ainda de referir que a cistografia só deverá ser realizada cerca de 4 a 6 semanas após a IU.

Cintigrafia renal com DMSA (ácido dimer-capto-succínico marcado com 99m Tecnésio)

A cintigrafia baseia-se na afinidade do isótopo para as células tubulares. Dá informações sobre a extensão da lesão renal e sobre a função diferencial de cada rim.

É o exame de referência para o diagnóstico de PNA (quando realizada na fase aguda, após as primeiras 48 horas) e de cicatriz renal.

Durante a fase aguda de doença, detecta zonas de hipocaptação, traduzindo a existência de áreas de isquémia. Estes dados correspondem a sinais clássicos de pielonefrite aguda e são preditivos de RVU de alto grau (IV-V), por sua vez associado a maior risco de lesão renal e IU recorrente. Se o resultado for normal, permite concluir que não há risco de desenvolvimento de cicatriz a médio e longo prazo.

Está preconizada a realização de cintigrafia após 6 a 9 meses da infecção urinária, para rastreio de CR (se realizada antes, poderá demonstrar alterações decorrentes ainda da infecção e não devidas a verdadeiras cicatrizes). No entanto, se a criança tiver uma nova IU enquanto aguarda pela realização da cintigrafia, deverá ser considerada a antecipação da mesma.

  • A cintigrafia renal com DMSA tem indicação nas seguintes situações: Alterações na ecografia e/ou cistografia com RVU (graus IV ou V).
  • IU recorrente (excepto se idade ≥ 3 anos e nenhuma das infecções correspondeu a PNA).
  • IU atípica (excepto se o único critério de IU atípica for infecção por bactéria não coli, houver boa resposta ao tratamento e não estiverem presentes outros critérios de IU atípica).

No Quadro 10 encontram-se discriminadas as indicações para a realização de cada um dos exames imagiológicos, por faixa etária, com base nas recomendações da NICE (The National Institute for Health and Care Excellence):

QUADRO 10 – Avaliação imagiológica recomendada de acordo com a faixa etária

1Realizar 6-9 meses após a IU.
2Realizar 4 a 6 semanas após a IU.
3Se: – se tratar de IU causada por bactéria que não E. coli; – o lactente responder bem ao tratamento; e – não estiverem presentes outros critérios de IU atípica, poderá ser realizada ecografia, somente 6 semanas após o episódio agudo de IU.
 Resposta ao antimicrobiano em 48 horasIU atípicaIU recorrente
Lactente com < 6 meses de idade
Ecografia no episódio agudoSim, se idade < 3 mesesSim3Sim
Ecografia 6 semanas após a IUSimNãoNão
Cintigrafia com DMSA1Não, excepto se RVUSimSim
Cistografia2Apenas se ecografia anormalSimSim
Lactentes ≥ 6 meses – crianças < 3 anos
Ecografia no episódio agudoNãoSim3Não
Ecografia 6 semanas após a IUSimNãoSim
Cintigrafia com DMSA1NãoSimSim
Cistografia2NãoConsiderar se:
– dilatação evidenciada na ecografia;
– fluxo urinário diminuído;
– Infecção por bactéria não E. coli;
– história familiar de RVU.
Crianças ≥ 3 anos
Ecografia no episódio agudoNãoSim3Não
Ecografia 6 semanas após a IUNãoNãoSim
Cintigrafia com DMSA1NãoNãoSim
Cistografia2NãoNãoNão

Seguimento

O seguimento de crianças diagnosticadas com IU é justificado pela possibilidade de surgirem alterações nefrourológicas secundárias e lesão renal, bem como pela probabilidade de recorrência.

As crianças que não tiveram indicação para avaliação imagiológica também não têm indicação para acompanhamento de rotina. Da mesma forma, crianças diagnosticadas com BA não têm indicação para seguimento.

As crianças assintomáticas após um episódio de IU não deverão fazer análise sumária (Us) de urina ou UC de rotina. A Us e a UC só devem ser realizadas numa criança com sintomatologia sugestiva de IU, ou febre não explicada.

Se os resultados dos exames imagiológicos forem normais, o doente poderá ter alta da consulta. Por outro lado, se a criança tiver IU recorrentes ou alterações nos exames de imagem, o seguimento deve ser mantido.

A avaliação de crianças com alterações do parênquima renal deverá incluir peso, altura, pressão arterial, microalbuminúria e avaliação da capacidade de concentração urinária, sendo necessário exame sumário de urina em amostra de segunda urina da manhã, após jejum nocturno (para apreciação da capacidade de concentração urinária).

A avaliação por especialista, nefrologista/urologista, deve ser considerada quando há dúvidas sobre orientação a seguir em situações documentadas de RVU, cicatriz renal, anomalias estruturais do aparelho urinário, disfunção vesical, litíase renal ou vesical, HTA, alterações da função renal ou proteinúria. Alterações minor e unilaterais do parênquima renal não constituem indicação para seguimento, excepto se houver história de IU recorrentes ou história familiar de hipertensão arterial, ou ainda estilos de vida que predisponham para a mesma.

Ideias-chave

  • Apesar de nem sempre fácil, é fundamental o diagnóstico correcto da IU para um correcto tratamento e seguimento.
  • A forma de colheita de urina é fundamental para o correcto diagnóstico de IC.
  • A interpretação da UC depende dos achados no exame sumário de urina e do método de colheita.
  • O achado de nitritos e leucócitos, na presença de sinais clínicos, torna o diagnóstico de IU altamente provável.
  • O diagnóstico de IU é estabelecido pela presença de contexto clínico apropriado, piúria e UC positiva.
  • O tratamento da IU depende da idade, localização (PNV versus cistite) e epidemiologia local.
  • Uma primeira IU em lactente com > 2 meses de idade, desde causada por coli, sem complicações e/ou sinais de alerta, e sem antecedentes pessoais nefro-urológicos de relevo, não tem indicação para investigação imagiológica (excepto ecografia).
  • A BA não constitui indicação para seguimento.
  • Os critérios mais rigorosos de IU recorrente e a introdução do conceito de IU atípica permitem seleccionar os doentes que têm indicação para ulteriores investigações (cistografia e cintigrafia).
  • É importante o diagnóstico diferencial entre IU e vulvovaginite.
  • É fundamental a identificação e tratamento da disfunção vesical e intestinal.
  • Deverá ser instituída profilaxia com antimicrobiano apenas em casos seleccionados.
  • A profilaxia com AB pode associar-se a diminuição do número de recorrências de ITU, mas parece não ter papel na diminuição da probabilidade de desenvolvimento de cicatrizes.
  • As IU nas adolescentes de sexo feminino estão muito frequentemente associadas ao início da actividade sexual.

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NEFRITE INTERSTICIAL

NEFRITE TUBULOINTERSTICIAL

Definição

A nefrite tubulointersticial (NTI) aguda constitui uma forma de lesão renal aguda ou crónica mediada imunologicamente e caracterizada pela presença de células inflamatórias no interstício renal, o que leva a lesão do interstício e túbulos e a disfunção renal, e pode culminar em doença renal crónica.

Aspectos epidemiológicos

Esta patologia tem uma grande incidência, contituindo 3-7% na criança e 15-27% no adulto das causas de lesão renal aguda detectadas por biópsia renal.

No entanto, esta patologia encontra-se subdiagnosticada, uma vez que nas formas ligeiras, devido à ausência de sintomas específicos, a doença não é suspeitada.

Etiopatogénese

A forma aguda da doença deve-se em cerca de 70% dos casos a reacções alérgicas a fármacos, sobretudo antibióticos e anti-inflamatórios não esteróides (AINE); em 15% dos casos a NTI aguda deve-se a infecções. Cerca de 10% das NTI agudas são causadas por doença sistémica e a síndroma TINU (tubulointerstitial nephritis and uveitis) é responsável por 4% dos casos. (ver adiante)

No Quadro 1 descrevem-se as várias etiologias da NTI.

A forma crónica pode ser causada por doenças genéticas, metabólicas, ou tóxicos.

QUADRO 1 – Agentes etiológicos da NTI

Medicamentos Antibióticos: ampicilina, cefalosporinas, ciprofloxacina, flucloxacilina, rifampicina, macrólidos, etambutol, vancomicina, isoniazida Antivíricos: aciclovir, indinavir, interferão alfa Anti-inflamtórios não esteróides: ibuprofeno Outros: alopurinol, furosemida, tiazidas, azatioprina, omeprazol, lítio, imunoglobulina intravenosa
Infecções Bactérias:Brucella, Campylobacter, E. Coli, Legionella, Salmonella, Streptococcus, Staphylococcus, Yersinia, Leptospira, Treponema, Mycoplasma, Rickettsia, Mycobacterium Vírus: CMV, EBV, HIV, hepatites, Poliovirus, do sarampo, Hantavirus Outros: Histoplasma, Schistosoma, Toxoplasma, Leishmania
Uropatias Uropatia obstrutiva, refluxo vésico-ureteral
Intoxicação Chumbo, mercúrio
Depósitos de cadeias leves Linfoma, mieloma
Doenças sistémicas Sarcoidose, lúpus eritematoso sistémico, síndroma de Sjögren, granulomatose de Wegener
Outras Doença Anti-MBT (Anticorpos antimembrana basal tubular) Síndroma TINU (nefrite tubulointersticial e uveíte) Rejeição de transplante

Em relação às causas farmacológicas, a NTI por AINE parece ser menos grave (proteinúria menos acentuada, ausência de eosinofilia sistémica, menor infiltrado eosinofílico identificado na biópsia renal e evolução mais favorável) quando comparada com a NTI causada por outros fármacos, possivelmente devido ao facto de as propriedades anti-inflamatórias dos AINE limitarem a actividade da doença.

A identificação de determinado fármaco como agente etiológico de NTI contraindica a sua reutilização.

A pielonefrite aguda pode ser considerada como uma forma localizada de NTI cujo mecanismo de lesão é devido à infecção do parênquima.

Nos casos de obstrução do tracto urinário ou de refluxo vésico-uretral de alto grau pode haver evolução, embora raramente, para NTI crónica.

A NTI crónica pode ainda ocorrer no decurso de doenças sistémicas que causam um desequilíbrio imunitário, tais como sarcoidose, lúpus, síndroma de Sjögren, vasculites e doença de Crohn.

As lesões tubulointersticiais que acompanham frequentemente as glomerulonefrites primárias habitualmente não são incluídas na NTI.

Admite-se que o mecanismo que determina a NTI tem uma base imunológica.

O passo inicial que desencadeia o processo é a expressão de antigénios nefritogénicos endogénos ou antigénios exógenos processados pelas células tubulares (proteína de Tamm-Horsfall ou megalina). A expressão destes antigénios pode ser contrabalançada por outros mecanismos, possivelmente envolvendo células T supressoras, o que explica que apenas numa pequena minoria dos indivíduos tratada com determinado fármaco se desenvolva NTI.

Os referidos antigénios são apresentados aos linfóticos T; as células T activadas podem induzir a diferenciação de outras células T efectoras, as quais produzem citocinas que atraem macrófagos.

Os infiltrados celulares inflamatórios então presentes no interstício renal constituem uma importante fonte de citocinas; estimulam o aumento da produção da matriz extracelular e do número de fibroblastos. Induz-se assim um processo de amplificação, recrutando mais células inflamatórias e eosinófilos para o interstício.

Estas células produzem várias citocinas e factores de crescimento (TGF-β, endotelina-1, EGF, FGF-2, etc.), os quais conduzem à rápida transformação (em apenas cerca de 7 dias após a exposição ao agente causal) das lesões inflamatórias em fibrose. Há, consequentemente, perda de túbulos renais e acumulação de fibroblastos e proteínas na matriz extracelular.

Em relação à NTI induzida por fármacos, admite-se que estejam também envolvidos mecanismos imunológicos pelo facto de existirem manifestações extrarrenais de hipersensibilidade, pelo seu carácter dose-dependente, e por se verificar recorrência da NTI se houver nova exposição ao fármaco.

Quatro mecanismos poderão estar envolvidos na NTI induzida por fármacos: 1) anticorpos derivados do fármaco assemelham-se a antigénios da membrana basal, gerando uma resposta imune; 2) reacção imune secundária à deposição do fármaco no interstício; 3) formação de imunocomplexos fármaco-anticorpo, os quais se depositam no rim; 4) as células tubulares hidrolisam proteínas exógenas dos fármacos que se unem a elementos das membranas, actuando como haptenos.

O intervalo entre a administração do fármaco e o surgimento das manifestações renais varia entre 5 dias a 5 semanas. No caso da NTI aguda relacionada com a ingestão de AINE, esta é habitualmente menos grave, provavelmente devido ao efeito anti-inflamatório intrínseco destes fármacos.

Relativamente à NTI aguda causada por infecções, poderão estar envolvidos 2 mecanismos: 1) mecanismo infeccioso, no qual a inflamação resulta da acção directa dos microrganismos vivos no tecido renal; o contacto directo ou a penetração do microrganismo na célula renal leva à libertação de enzimas degradativas e moléculas tóxicas. 2) mecanismo reactivo, no qual o microrganismo não está presente no tecido renal, sendo que a inflamação tubulointersticial é decorrente da inflamação sistémica: ocorre libertação de linfocinas as quais são filtradas e reabsorvidas no rim, levando à quimioatracção e activação de células mononucleadas no tecido renal.

Manifestações clínicas

Os sintomas e sinais da NTI aguda poderão ser inespecíficos, e muitas vezes estão ausentes, excepto se se desenvolverem sintomas de insuficência renal.

Poderão ocorrer sintomas gerais inespecíficos, como sensação de mal-estar, náuseas e vómitos e, eventualmente, sintomas da doença de base.

Na maioria dos casos o débito urinário está conservado, podendo existir poliúria e nictúria.

A tríade clássica da NTI induzida por fármacos, caracterizada por febre, eosinofilia e exantema está presente em apenas 20% dos doentes, embora haja séries que relatam uma proporção ainda menor, inferior a 10-15%.

Alguns doentes podem apresentar artralgia (45%), febre (30%), exantema (20%) e dor lombar (20%); contudo, a sua ausência não exclui NTI aguda.

A pressão arterial está normal e não há edema, ao contrário do que acontece na necrose tubular aguda.

Na síndroma TINU, abordada adiante, a uveíte pode preceder, ser simultânea, ou seguir-se à alteração da função renal.

Exames complementares

A principal alteração laboratorial encontrada é a elevação sérica da ureia e da creatinina.

Na NTI aguda de causa medicamentosa pode detectar-se eosinofilia (80% dos casos) e elevação da Imunoglobulina E (50%). Pode existir proteinúria de origem tubular, mas muito raramente na faixa nefrótica.

No sedimento urinário podem ser identificados leucócitos, cilindros leucocitários e por vezes eosinófilos (em 25% dos casos, sendo mais frequente na NTI induzida por fármacos). Contudo, um sedimento urinário normal não exclui NTI.

Em cerca de dois terços dos casos existe micro-hematúria, sendo que a macro-hematúria é rara.

Podem ainda existir algumas alterações sugestivas de disfunção tubular, tais como glicosúria isolada ou síndroma de Fanconi.

No Quadro 2 encontram-se descritas as principais características clínicas e laboratoriais da NTI.

QUADRO 2 – Principais manifestações clínicas e laboratoriais da NTI aguda

Manifestações clínicasExtrarrenais: febre, dor lombar, artralgia, vómitos
Renais: poliúria, nictúria, disfunção tubular
Manifestações laboratoriaisLesão renal aguda
Síndroma de Fanconi
Proteinúria tubular
Leucocitúria
Glicosúria isolada
Hematúria microscópica
Eosinofília/eosionofilia

A ecografia renal poderá demonstrar rins de tamanho normal ou de dimensões aumentadas e com aumento da ecogenicidade.

Diagnóstico

A suspeita baseia-se na história clínica e nos achados laboratoriais, sendo que os achados clínicos típicos ocorrem apenas em 20% dos doentes.

A confirmação é feita por biópsia renal.

Na NTI induzida por fármacos, ainda que o quadro clínico seja altamente sugestivo, o diagnóstico final baseia-se no resultado da biópsia renal. Contudo, em muitos doentes não se procede a biópsia se não existir alteração grave da função renal, aguardando-se a evolução após a suspensão do fármaco suspeito; se a função renal melhorar em poucos dias não é necessária ulterior investigação. Habitualmente a creatinina melhora em 48-72h e normaliza em 1-2 semanas.

As indicações para biópsia renal são:

  • Dúvidas no diagnóstico;
  • Insuficiência grave ou persistente, sem recuperação espontânea após a suspensão do fármaco responsável.

A biópsia renal demonstra infiltrado celular (linfócitos, eosinófilos, monócitos, macrófagos) no interstício renal, com vasos e glomérulos normais. Ocasionalmente podem ser observados granulomas (na NTI induzida por fármacos, na sarcoidose, tuberculose, e doença de Wegener). É ainda visível edema e hemorragias intersticiais, bem como tubulite e dilação de capilares peritubulares.

Se a doença tiver uma evolução superior a 7-10 dias, pode encontrar-se atrofia tubular, fibrose intersticial, destruição da membrana basal e glomerulosclerose.

Os resultados do estudo imunológico são normais; os depósitos granulares de IgG, IgM ou complemento na membrana basal tubular são raros. No entanto, podem ser encontrados depósitos lineares de IgG na nefrite anti-MBT.

Tratamento

Tentando identificar e eliminar possíveis factores nefrotóxicos, como determinados fármacos, o tratamento é fundamentalmente de suporte, assegurando a manutenção do equilíbrio hidroelectrolítico, e dirigido às complicações de eventual disfunção renal aguda, tais como hipercaliémia e hipervolémia.

Se a função renal não recuperar após a remoção do agente causal, deverá ser considerada a realização de biópsia renal e o início de corticoterapia. Apesar de não existirem estudos aleatorizados que demonstrem uma evolução mais favorável após o início da corticoterapia, esta deverá ser considerada nos casos em que:

  • não se verifique melhoria cerca de uma semana após a remoção do agente causal; ou
  • logo inicialmente, nas situações de lesão renal aguda identificada como grave, sem esperar a resolução espontânea.

O tratamento com corticóide concretiza-se com pulsos de metilprednisolona EV, 1000 mg/1,73 m2 em 3 dias consecutivos, seguido de prednisolona 2 mg/kg/dia, com redução gradual em 3 a 6 semanas.

Prognóstico

A maioria das crianças com NTI aguda tem um excelente prognóstico, com recuperação da função renal em poucas semanas.

Não existem marcadores clínicos que permitam prever a evolução para lesão renal permanente. No entanto, um curso clínico subagudo (lesão renal > 3 semanas), terapêutica prolongada com o fármaco causal e o uso crónico de AINE parecem estar associados a pior prognóstico, com forte probabilidade de doença renal crónica.

Os sinais histológicos que parecem indiciar pior prognóstico são: inflamação difusa, infiltrado neutrofílico significativo (1-6%) e presença de fibrose intersticial.

Nas formas de NTI crónica o prognóstico depende em grande parte da doença subjacente.

Em todos os doentes é necessário o seguimento a longo prazo.

Nefrite tubulointersticial e uveíte (tinu)

A chamada TINU caracteriza-se por NTI com evolução favorável e uveíte recidivante crónica.

Trata-se de uma patologia rara, com uma prevalência de 3,5 casos por milhão de habitantes. A doença surge habitualmente antes dos 20 anos de vida e parece não haver predominância de género. Existe associação com HLA II (DQA1*01; DQB1*01; DQB1*05).

A etiopatogénese não está ainda totalmente elucidada, mas parece tratar-se de um mecanismo imune mediado por linfócitos T.

As manifestações clínicas são inespecíficas. Podem ocorrer febre, perda de peso, astenia, anorexia, dor lombar, dor abdominal, artralgia, mialgias, cefaleias e exantema.

Tal como já referido, a uveíte pode ser prévia, concomitante ou posterior ao aparecimento da NTI, mas mais frequentemente ocorre após a lesão renal.

As manifestações oculares podem preceder os sintomas sistémicos e renais em 20% dos casos, surgindo, habitualmente, 1-2 meses antes; em 15% os sintomas renais/sistémicos e oculares são concomitantes; e em 65% as manifestações oculares são posteriores, podendo distar até 14 meses.

A uveíte manifesta-se como olho vermelho e doloroso, fotofobia e diminuição da acuidade visual; habitualmente é bilateral e em 80% casos, de localização anterior. Podem existir complicações como cataratas, sinéquias posteriores e hipertensão intraocular.

A NTI manifesta-se com os sintomas e alterações renais já anteriormente descritos. A resolução é habitualmente espontânea.

Os resultados dos exames laboratoriais podem evidenciar eosinofilia, anemia, ligeiro aumento da velocidade de sedimentação, hipocomplementémia e ANCA, ANA e anticorpos anticélula tubular positivos.

Se for realizada biópsia renal, os achados são semelhantes aos já descritos para outras formas de NTI.

Relativamente ao tratamento, para além dos princípios enunciados a propósito da NTI, importa realçar que a uveíte requer tratamento com corticóide tópico ou sistémico. 

O prognóstico da TINU, habitualmente favorável, depende do grau de fibrose; a recorrência é rara. A uveíte tem recaídas frequentes, podendo tornar-se crónica, mesmo sem lesão renal estabelecida.

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TUBULOPATIAS

Definição e importância do problema

As células dos túbulos renais realizam múltiplas e complexas funções interrelacionadas, transformando o filtrado glomerular (de composição semelhante à do plasma) em urina.

A homeostase do organismo é mantida através da reabsorção (passagem no sentido do lume tubular → célula tubular → sangue) e da secreção (passagem no sentido do sangue → célula tubular → lume) tubulares de água e sais. A disfunção tubular (tubulopatia), congénita ou adquirida, pode originar profundas alterações hidroelectrolíticas.

As tubulopatias constituem, pois, um conjunto heterogéneo de doenças com um largo espectro de manifestações clínicas resultantes de disfunção tubular renal, em cuja base estão alterações do equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico.

Dada a complexidade deste tipo de patologia, assume particular importância o seu correcto e atempado diagnóstico.

Fisiopatologia

Para melhor compreensão da fisiopatologia, importa sintetizar as funções primordiais do túbulo renal:

  • Reabsorção selectiva de 99% do filtrado glomerular de composição semelhante à do plasma (água, electrólitos, glucose, cálcio, magnésio, fósforo, aminoácidos, proteínas de baixo peso molecular, etc.);
  • Secreção de aniões orgânicos e medicamentos;
  • Comparticipação no equilíbrio ácido-base e hidroelectrolítico;
  • Amoniogénese.

Tais funções dependem da acção conjunta de diversos factores tais como enzimas, proteínas transportadoras e canais localizados na membrana apical e basolateral das células tubulares.

A alteração específica de um ou vários transportadores manifesta-se por uma diversidade de fenótipos.

Ainda que o tratamento de muitas destas entidades não tenha mudado nos últimos anos, os avanços verificados em genética e biologia molecular proporcionaram instrumentos para esclarecimento da fisiopatologia e para investigação dos defeitos moleculares relacionados com a estrutura e função das proteínas transportadoras, assim como dos respectivos genes e mutações implicados.

No Quadro 1 encontram-se mais pormenorizadas as diversas funções dos túbulos e, no Quadro 2, os processos de reabsorção e secreção hidroelectrolítica ao longo dos túbulos.

QUADRO 1 – Funções de cada segmento tubular

HAD: hormona antidiurética
Porção do túbuloFunções
Túbulo proximal
    • Reabsorção de 60-80% da água e sódio
    • Reabsorção da quase totalidade da glucose, aminoácidos, proteínas de baixo peso molecular, potássio, citrato e ácidos orgânicos
    • Reabsorção indirecta de cerca de 90% do bicarbonato, através do intercâmbio de sódio e hidrogenião
    • Reabsorção de 85-95% do fósforo
Ansa de Henle
    • Reabsorção de cerca de 25% do NaCl
    • Reabsorção de bicarbonato
    • Reabsorção de percentagens significativas de cálcio e magnésio

Ramo descendente: concentração urinária por reabsorção de 15% da água filtrada
Ramo ascendente: impermeável à água

Túbulo contornado distal e túbulo colector
    • Reabsorção de 7% da água filtrada – dependendo do estado de hidratação do indivíduo e mediada pela HAD
    • Reabsorção de sódio e cloro
    • Secreção de potássio e hidrogeniões

QUADRO 2 – Efeito exercido pelo túbulo sobre cada substância

SubstânciaAcção sofrida ao longo do túbulo
Reabsorção de Água80% – túbulo proximal
15% – ramo descendente da ansa de Henle
7% – túbulo distal e colector (através da acção da HAD)
Reabsorção de SódioTúbulo proximal e ramo ascendente (reabsorção isotónica)
Túbulo distal e túbulo colector (por troca com H+ ou K+, por acção da aldosterona)
PotássioReabsorção: 66% – túbulo proximal
Secreção: túbulo distal
Reabsorção de CloroMaioria no túbulo proximal
25% – ansa de Henle
Pequena percentagem – túbulo distal e colector
Reabsorção de Magnésio20-30% – túbulo proximal
70-80% – ramo ascendente
Reabsorção de HCO380-90% – túbulo proximal
Reabsorção de Cálcio66% – túbulo proximal
25% – ansa de Henle
Reabsorção de Fosfato60% – túbulo proximal
40% – túbulo distal
Secreção de HidrogeniãoMaioritariamente no túbulo distal

Em suma:

  • O túbulo proximal é responsável pela maioria da reabsorção de água e solutos incluindo sódio, potássio, bicarbonato, fosfato, aminoácidos e proteínas de baixo peso molecular (designadamente alfa-1 microglobulina e beta-2 microglobulina) – consultar Anexos.
  • O túbulo distal é responsável pela composição final da urina, regulando a reabsorção de sódio e potássio e excreção de hidrogenião.

Os principais mecanismos hormonais com influência no balanço do sódio incluem o “eixo” renina-angiotensina-aldosterona, o factor natriurético auricular, e a nor-epinefrina. A angiotensina II e a aldosterona aumentam a reabsorção de sódio nos túbulos proximal e distal, respectivamente.

A norepinefrina, libertada como resposta à depleção de volume, não actua directamente sobre os mecanismos e transporte tubular, embora influencie o balanço de sódio através da diminuição do débito sanguíneo renal com consequente diminuição da carga de sódio filtrada e estimulação da libertação de renina.

Havendo depleção de volume muito acentuada, verifica-se igualmente libertação da HAD. Recorda-se que a excreção de sódio é promovida pelo factor natriurético auricular e pela supressão da renina.

Manifestações gerais e suspeita clínica

A suspeita duma tubulopatia pode surgir precocemente, pela presença de uma história perinatal sugestiva: polidrâmnio (pela incapacidade fetal de concentração urinária), prematuridade e baixo peso ao nascer.

Na sua maioria, os defeitos da função tubular apresentam-se nos primeiros anos de vida, frequentemente através de sinais e sintomas inespecíficos como anorexia, vómitos e hipocrescimento.

A poliúria e polidpsia são importantes indicadores de disfunção tubular, mas, na prática, não são habitualmente valorizadas pelos pais; a evidência de tal disfunção decorre, pois, da observação cuidadosa do balanço hídrico. Apesar disso, frequentemente as crianças que “bebem muito” não têm qualquer disfunção tubular, mas simplesmente criaram o hábito de elevada ingestão de líquidos (por ex. sumos, coca-cola, etc.).

Deve, pois, suspeitar-se de defeito tubular renal perante:

  • Má progressão ponderal – associada ou não a anorexia, irritabilidade, mau humor, dor abdominal, hipotonia ou outras alterações neurológicas;
  • Poliúria/polidipsia – é importante avaliar a idade de início do problema, não esquecendo detalhes da gestação como polidrâmnio;
  • Episódios frequentes ou de difícil controlo de vómitos, desidratação, febre ou convulsões;
  • Raquitismo resistente às doses habituais de vitamina D;
  • Acidose ou alcalose metabólicas na ausência de insuficiência renal;
  • Nefrocalcinose (detectada por ecografia renal).

Perante suspeita de tubulopatia, após anamnese cuidadosa, essencialmente é necessário proceder: a exame objectivo com especial atenção para a somatometria, pressão arterial e presença de sinais de raquitismo; e à realização de exames laboratoriais adiante discriminados.

Como resultado da avaliação laboratorial prévia, podem ser encontradas alterações electrolíticas (hipo ou hipernatrémia, hipo ou hipercaliémia, hipoclorémia, hipofosfatémia, hipomagnesémia) e do equilíbrio ácido base (acidose metabólica hiperclorémica ou alcalose metabólica), microalbuminúria definida como taxa de excreção urinária de albumina da ordem de 20-200 mcg/minuto ou 30-300 mg/24 horas.

Orientação diagnóstica e fundamentação

O fluxograma que integra a Figura 1 resume os passos fundamentais a seguir perante suspeita de disfunção tubular.

Anamnese

Devem ser apurados:

  • Antecedentes familiares, nomeadamente alterações semelhantes em elementos da mesma família, raquitismo, litíase, alterações do crescimento, consanguinidade;
  • Antecedentes obstétricos e neonatais;
  • Sintomas sugestivos de tubulopatia, particularmente avidez pela água e pelo sal;
  • Desenvolvimento estaturo-ponderal;
  • Diurese.

Exame físico

Deve ser o mais completo possível, dando particular relevância à determinação do peso e altura, pressão arterial, estado de hidratação, estigmas de raquitismo e alterações nos órgãos dos sentidos (hipoacúsia e diminuição da acuidade visual).

Exames complementares

A ponderar e a seleccionar caso a caso face aos dados da história clínica, citam-se, no conjunto, os seguintes:

FIGURA 1 – Fluxograma exemplificando os passos essenciais da marcha diagnóstica em caso de suspeita clínica de disfunção tubular.

Sangue
  • Gasometria, ionograma com cálcio, fósforo e magnésio, ureia, creatinina, ácido úrico;
  • Fosfatase alcalina, PTH e 25-OH-vitamina D e 1,25-(OH)2-vitamina D (se alterações do metabolismo fosfo-cálcico e/ou estigmas de raquitismo);
  • Renina e aldosterona, HAD e osmolaridade plasmática, para o estudo do equilíbrio hídrico, perante alterações da pressão arterial, poliúria ou alterações electrolíticas.
Urina
  • Aspecto macroscópico, análise sumária de urina (para avaliação da densidade, pH, proteinúria, microalbuminúria, glicosúria); creatinina, sódio, potássio, cloro, fósforo, cálcio e magnésio.
Ecografia renal
  • Atendendo a que algumas tubulopatias cursam com nefrocalcinose e/ou litíase.
Radiografia do punho
  • Para determinação da idade óssea e avaliação de sinais imagiológicos de raquitismo.
Audiometria e/ou exame oftalmológico
  • Perante sinais clínicos sugestivos e/ou perante forte suspeita ou confirmação de tubulopatia, pela já citada probabilidade de associação a alterações nos órgãos dos sentidos.
Provas da função tubular

Continuando a “marcha” diagnóstica para identificação da entidade clínica, procede-se:

  • À avaliação da função do túbulo proximal, englobando um conjunto de provas para determinação da capacidade de excreção/reabsorção de várias moléculas: sódio, glucose, fosfato, cálcio, bicarbonato e aminoácidos;
  • À avaliação da função do túbulo distal, determinada pela capacidade de acidificação e concentração urinária.

Discriminam-se a seguir as provas mais utilizadas correntemente em centro especializado, algumas das quais, acompanhadas de fundamentação.

  1. Osmolaridade e densidade urinárias: traduzem a capacidade de concentração urinária.
    A osmolaridade urinária varia entre 600-1200 mOsm/kg. Para a avaliação da osmolaridade urinária, é aconselhável a sua determinação na segunda urina na manhã, uma vez que a primeira urina da manhã corresponde a uma mistura de urina inicialmente menos concentrada, pelo que se bebeu durante o final do dia, com uma urina progressivamente mais concentrada ao longo da noite.
    Habitualmente existe uma boa correlação entre densidade e osmolaridade, principalmente a partir de densidade acima de 1020. As excepções são a proteinúria e a glicosúria, as quais contribuem para aumentar a densidade urinária, mas não a osmolaridade. A osmolaridade urinária pode ser inferida a partir da densidade urinária através da seguinte fórmula:

    Osm U = (dens U – 1000) X 30

    Exemplo: dens U = 1020 à Osm U = 600
    NOTA: alguns autores usam a fórmula: Osm U = (dens U – 1000) X 40Uma densidade urinária >1020 ou uma osmolaridade urinária >800 mOsm na primeira urina da manhã indica uma capacidade de concentração renal adequada; já uma densidade urinária <1020 poderá sugerir um defeito de concentração renal. Os recém-nascidos e os pequenos lactentes poderão ter uma baixa densidade urinária fisiológica devido à sua alimentação líquida e à imaturidade dos mecanismos de concentração renal.
    Praticamente em todas as tubulopatias existe defeito de concentração, excepto no raquitismo resistente à vitamina D, na uricosúria e em perdas específicas de aminoácidos.
    A osmolaridade plasmática varia habitualmente entre 275 e 295 mOsm/kg. Para calcular de forma aproximada a osmolaridade plamática existe também uma fórmula:

    Osm P: (2 x Na) + (glucose/18) + (Ureia/5.6)

  2. Excreção Fraccionada (EF) ou Fracção de Excreção: volume de sangue (em mL) depurado de determinada substância por 100 mL de filtrado glomerular; expressa-se em percentagem. No entanto, mais importante do que avaliar se o valor obtido se encontra dentro do intervalo de referência, é verificar se para determinada alteração no ionograma sérico, a resposta renal é adequada. Por exemplo, na presença de hipoclorémia, se o valor da EFCl = 2%, apesar de se tratar de um valor muito próximo do valor de referência, isto significa que a resposta renal não é a adequada, porque o rim deveria estar a reter mais cloro para compensar a alteração sérica.
    A EF é determinada em amostra isolada de urina e calcula-se através da seguinte fórmula:

    EFNa+
    =  Us x PCr x 100
                    UCr x Ps

    Us – concentração urinária da substância a analisar (mEq/L)
    Ps – concentração plasmática da substância a analisar (mEq/L)
    PCr – creatinina plasmática (mg/dL)
    UCr – creatinina urinária (mg/dL)Os valores de referência para as EF de sódio e cloro são 1%; para o potássio, o valor normal de EF varia entre 10-30% e para o ácido úrico é de cerca de 15%.

  3. Taxa de reabsorção de fósforo (TRP): a taxa de reabsorção do fósforo reflecte a proporção de fósforo filtrado que é reabsorvida. Calcula-se através da seguinte fórmula:  
    100 x[UPO4x PCr]x 100
    __________
    UCr x PPO4

    U – teor na urina
    P – teor no plasma
    PO4 – fosfato

    O valor de referência da TRF é > 85%. À semelhança do que foi referido relativamente à EF, mais importante do que ter em atenção o valor de referência, é verificar se a resposta renal é a adequada. O valor da TRF encontra-se diminuído nos raquitismos hipofosfatémicos.
     

  4. Gradiente transtubular de potássio (GTTK): estuda a bioactividade da aldosterona na porção distal do nefrónio. Calcula-se através da seguinte fórmula:

    GTTK = (UK+ / U osm)
                   (PK+ / P osm)

    UK+ – concentração urinária K+ (mEq/L)
    PK+ – concentração plasmática de K+ (mEq/L)
    U osm – osmolaridade urinária
    P osm – osmolaridade plasmáticaOs valores de referência são:
      • Lactente: 4,9-15,5
      • Criança > 1 ano: 4,1-10,5

Contudo, em geral, o valor é considerado baixo se < 4 ou, alto se > 12.
A aldosterona promove a reabsorção de sódio, com reabsorção passiva de água (esta acompanha o sódio) e a secreção de potássio e hidrogenião. Nas situações de hipoaldosteronismo ocorre hiponatrémia e hipercaliémia. Assim, um valor de GTTK diminuído reflecte deficiência ou insensibilidade à aldosterona e um valor de GTTK elevado traduz excesso de potássio na dieta ou actividade elevada da aldosterona.

Numa situação de hipocaliémia é esperado um valor de GTTK < 2,5 , ou seja, uma baixa actividade da aldosterona, a qual se traduz numa baixa excreção renal de potássio para poupar este ião; valores elevados (> 7) sugerem que o processo de secreção de potássio está inapropriadamente estimulado, ou seja, existe uma situação de hiperaldosteronismo que leva a uma perda renal de potássio, sendo essa a causa da hipocaliémia.

Numa situação de hipercaliémia, um valor de GTTK < 7 (e especialmente se < 5) sugere hipoaldosteronismo ou alterações na secreção tubular de potássio como causa da hipercaliémia.

  1. Quociente urinário (QU) ou índice urinário (IU): este parâmetro relaciona a concentração de duas ou mais substâncias determinadas em amostra isolada de urina. Normalmente tal relação estabelece-se entre a concentração urinária de uma substância com a da creatinina urinária; ou seja, este índice expressa os mg ou mEq da substância a estudar na urina por mg de creatinina filtrada (NOTA: a unidade de volume terá de ser a mesma). São habitualmente utilizados para fazer um rastreio de alterações metabólicas na presença de litíase e/ou nefrocalcinose.
    Os quocientes urinários deverão ser determinados na segunda urina da manhã e em jejum. Sempre que haja um valor de quociente urinário alterado, o mesmo deverá ser confirmado através da EF ou de colheita em urina de 24 horas.
    Uma vez que as concentrações de creatinina urinária são mais baixas nos lactentes e na criança pequena, estes quocientes poderão ser tanto mais elevados quanto menor a idade.
    No quadro 3 encontram-se os valores de referência de determinados QU, de acordo com a idade.

QUADRO 3 – Valores de referência de alguns quocientes urinários

Quociente urinárioValores de referência (2h após ingestão de alimentos)
AdultoCriança
Na/creatinina (mg/mg)2,03 – 3,97> 2 anos: 0,13 – 0,27
Cálcio/creatinina (mg/mg)<0,21< 6 meses: < 0,7
6 – 12 meses: < 0,55
1 – 2 anos: < 0,4
2 – 3 anos: < 0,3
> 3 anos: < 0,2
Magnésio/creatinina (mg/mg)0,05 – 0,091 – 2 anos: 0,09 – 0,37
2 – 3 anos: 0,07 – 0,34
3 – 5 anos: 0,07 – 0,29
5 – 7 anos: 0,06 – 0,21
7 – 10 anos: 0,05 – 0,18
10 – 14 anos: 0,05 – 0,15
Fósforo/creatinina (mg/mg)0,15 – 0,760 – 2 anos: 0,80 – 2,00
3 – 5 anos: 0,33 – 2,17
5 – 7 anos: 0,33 – 1,49
7 – 10 anos: 0,32 – 0,97
10 – 14 anos: 0,22 – 0,86
Ác. Úrico/creatinina (mg/mg)0,24 – 0,44RN pré-termo 29 – 33 semanas IG: < 8,8
RN pré-termo 34 – 37 semanas IG: < 4,6
RN termo: < 3,3
1 – 2 anos: < 2,00
3 – 4 anos: 0,66 – 1,10
5 – 6 anos: 0,57 – 0,92
7 – 8 anos: 0,44 – 0,80
9 – 10 anos: 0,40 – 0,72
11 – 12 anos: 0,35 – 0,61
13 – 14 anos: 0,28 – 0,50
Oxalato/creatinina (mg/mg) < 6 meses: < 29
6 – 12 meses: < 0,20
1 – 2 anos: < 0,11
2 – 3 anos: < 0,063
Oxalato/creatinina (mmol/mol)3 – 390 – 6 meses: 77 – 325
7 – 24 meses: 38 – 132
2 – < 5 anos: 18 – 98
5 anos: 22 – 70
9 anos: 12 – 70
12 anos: 16 – 53
14 anos: 10 – 64
Citrato/creatinina (mg/mg) 0 – 5 anos: > 0,42
> 5 anos: > 0,25
Citrato/creatinina (mg/g)> 250> 400
Cistina/creatinina (mg/g)< 75 
Cistina/creatinina (mg/mg) < 0,3
  1. Eliminação urinária diária: realizada em urina de 24 horas, na qual se determina a excreção total de determinada(s) substância(s). O valor obtido deve ser ajustado ao peso ou à superfície corporal. No Quadro 4 encontram-se os respectivos valores de referência.

QUADRO 4 – Valores de referência relativamente à eliminação urinária de solutos em urina de 24 horas

Sódio2,57 – 5,17 mEq/kg
Potássio1,03 – 2,43 mEq/kg
Cloro2,58 – 5,38 mEq/kg
Cálcio< 4 mg/kg
Fósforo7,8 – 17 mg/kg ou < 1000 mg/1,73m2
Magnésio> 1,2 mg/kg
Ácido úrico< 815 mg/1,73m2
Oxalato< 50 mg/1,73m2 ou < 0,46mmol/1,73m2
Citrato≥ 4,5 mg/kg ou > 365 mg/1,73m2
  1. Gasometria e hiato aniónico plasmático: de grande valor no estudo das tubulopatias. Existem algumas tubulopatias que cursam com acidose ou alcalose metabólica.
    O cálculo do hiato aniónico – anion gap (AG) – plasmático ajuda a determinar a origem da acidose metabólica. Determina-se através da seguinte fórmula:

    AG = PNa+ – (PCl + PHCO3)

    PNa+ – concentração plasmática de Na+ (mEq/L)
    PCl – concentração plasmática de Cl (mEq/L)
    PHCO3 – concentração plasmática de PHCO3 (mEq/L)Os valores normais do AG variam entre 8-14 mEq/L.
    Na presença de uma acidose metabólica hiperclorémica com AG normal, há que admitir acidose de origem renal ou perdas gastrintestinais de bicarbonato. Se o AG estiver aumentado, poderá tratar-se de uma patologia que curse com aumento da produção de ácidos (cetoacidose diabética, acidose láctica, etc.).

  2. pH urinário: em situações de acidose metabólica, a apreciação do pH urinário pode fornecer informações muito importantes. Se o bicarbonato plasmático for < 20 mEq/L na criança e < 18 nos lactantes, é de esperar que o pH urinário seja inferior a 5,8; em caso contrário, dever-se-á suspeitar de defeito de acidificação urinária ou perda urinária de bicarbonato.
     
  3. Hiato aniónico urinário (AG U): em situações de acidose também se pode calcular o hiato aniónico urinário (AG U) em amostra isolada de urina, o qual reflecte a concentração de amónio na urina e pode orientar quanto à origem da mesma.
    O AG U pode ser calculado através da seguinte fórmula:

    AG U = (UNa+ + UK+) – UCl

    Se o pH urinário for > 6,5, o cálculo do AG U deverá ser feito pela fórmula:

    (UNa+ + UK+) – (UCl + UHCO3)

    UNa+ – concentração urinária de Na+ (mEq/L)
    UK+ – concentração urinária de K+ (mEq/L)
    UCl – concentração urinária de Cl (mEq/L)
    UHCO3 – concentração urinária de PHCO3 (mEq/L)

    Um AG U positivo (ou seja, a soma do sódio e potássio urinários é superior ao cloro urinário) reflecte uma diminuição dos catiões (amónio -> NH4+) na urina e, portanto, acidose tubular renal (ATR) distal. Um AG negativo (isto é, quando a concentração de cloro urinário é superior à soma do sódio e potássio urinários) ocorre na ATR proximal ou nos casos de perda gastrintestinal de bicarbonato ou de história de suprimento de HCl.

  4. Excreção fraccionada ou fracção de excreção de bicarbonato: calcula-se de modo semelhante à EF de outras substâncias. Parâmetro pouco utilizado na prática clínica, pode ter interesse conhecer os valores seguintes em duas situações:
      • ATR distal: < 5%
      • ATR proximal: habitualmente > 10-15%

Formas clínicas

As tubulopatias podem classificar-se em simples ou complexas, conforme exista, respectivamente, alteração no transporte tubular de uma ou várias substâncias.

Podem ainda classificar-se em primárias (hereditárias) ou secundárias (a tóxicos, fármacos ou a outras doenças). As primeiras habitualmente manifestam-se logo na infância, enquanto as segundas podem surgir em qualquer idade.

Uma outra forma de classificar as tubulopatias baseia-se na localização do defeito de transporte tubular. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Classificação das tubulopatias de acordo com a porção do túbulo envolvida

Porção do túbulo envolvidaTubulopatias
Túbulo proximalSíndroma de Fanconi
Acidose tubular proximal
Glicosúria renal
Hipouricémia de origem renal
Raquitismo hereditário ligado ao cromossoma X
Raquitismo vitamina D dependente tipo I
Doença de Dent
Aminoacidúrias
Doença de Hartnup
Ansa de HenleSíndroma de Bartter
Síndroma de Gitelman
Hipomagnesiémia familiar com hipercalciúria e nefrocalcinose
Túbulo distalSíndroma de Liddle ou pseudo-hiperaldosteronismo
Pseudo-hipoaldosteronismo tipo I
Pseudo-hipoaldosteronismo tipo II
Diabetes insipidus nefrogénica
Acidose tubular distal
Raquitismo com hipercalciúria

Tratando-se dum tópico complexo e sendo esta obra devotada essencialmente à Clínica Pediátrica Geral, a opção foi seleccionar as entidades clínicas mais representativas com base na etiopatogénese e nos achados laboratoriais com os quais o clínico prático se pode defrontar.

Na sistematização sucinta que se segue foram considerados os seguintes quadros laboratoriais: acidose metabólica e hipocaliémia, alcalose metabólica e hipocaliémia, acidose e hipercaliémia, hipercalciúria, hipofosfatémia associada a raquitismo, diabetes insípida nefrogénica, aminoacidúrias e outras tubulopatias.

Acidose metabólica e hipocaliémia

Deste grupo de tubulopatias fazem parte a síndroma de Fanconi e as acidoses tubulares renais.

Síndroma de Fanconi ou síndroma de Toni-Debré-Fanconi

A síndroma de Fanconi define-se como a disfunção generalizada do túbulo proximal, conduzindo a perda renal em graus variáveis de fosfato, glucose, aminoácidos, bicarbonato, proteínas de baixo peso molecular e ácido úrico.

O termo engloba as formas primárias de origem genética primária, de transmissão autossómica recessiva, autossómica dominante ou recessiva ligada ao cromossoma X, e formas secundárias.

Como complemento do que foi descrito anteriormente, importa pormenorizar algumas das particularidades da disfunção ao nível do túbulo proximal.

Na primeira porção do túbulo proximal (S1) ocorre reabsorção activa de fósforo, sulfato, aminoácidos, citrato e lactato através da formação de vesículas de solutos na membrana luminal, as quais se geram na presença de elevadas concentrações de sódio. Esta porção tem ainda a capacidade de acidificar o fluído intratubular através da secreção de H+ por troca com Na+, através dos cotransportadores NH3.

No lume tubular, iões H+ reagem com o HCO3 filtrado, formando H2CO3, que, na presença da anidrase carbónica, gera rapidamente CO2 e H2O, levando à diminuição da concentração de HCO3 no fluido intratubular. Nas células S1, a expulsão de H+ promove a dissociação de H2O em H+ e OH; os OH reagem com o CO2 gerando HCO3 (reacção catalizada pela anidrase carbónica). O HCO3 intracelular sai das células pela membrana basolateral através do cotransportador Na+– dependente, NBC1. O resultado final destes processos é a reabsorção da maioria do bicarbonato de sódio filtrado ao longo do segmento S1 do túbulo contornado proximal.

A maioria (85-95%) do fósforo é reabsorvido no TCP, particularmente em S1, ocorrendo por transporte activo secundário acoplado ao fluxo passivo de Na+ através de cotransportadores Na+Pi luminais.

As mutações de genes codificadores de proteínas celulares deste segmento (receptores multi-específicos como a megalina e a cubilina, a ATPase vesicular e o CCl5, necessários para a acidificação intravesicular e o tráfego vesicular entre membrana e endossomas até lisossomas) produzem várias síndromas hereditárias associadas com proteinúria e com vários defeitos de reabsorção, tais como as doenças de Dent e de Imerslund-Grasbeck e a síndroma de Lowe. Adicionalmente as alterações dos sistemas de transferência de energia, sobretudo os que interrompem a cadeia respiratória mitocondrial, produzem disfunção generalizada de todos os processos de transporte celulares e manifestam-se como síndroma de Fanconi.

A mutação do gene que codifica o cotransportador de glucose e sódio, SGT2, causa glicosúria renal isolada.

No Quadro 6 encontram-se enumeradas as diferentes etiologias da síndroma de Fanconi, seleccionando para o texto as mais representativas.

QUADRO 6 – Etiologias da síndroma de Fanconi

Genéticas

Mutação do cotransportador NaPi-II

Doenças sistémicas hereditárias

Cistinose
Tirosinémia
Intolerância hereditária à frutose
Galactosémia
Doença de armazenamento do glicogénio (tipo I)
Doenças mitocondriais
Doença de Wilson
Doença de Lowe
Doença de Dent
Síndroma de Fanconi-Bickel
Doença de Imerslund-Gräsbeck
Síndroma ARC (artrogripose, alterações plaquetárias, colestase)

Fármacos

Inibidores dos nucleotídeos da transcriptase reversa: tenofovir, adefovir
Inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa: didanosina, lamivudina, estavudina
Antineoplásicos: ifosfamida, oxaplatina, cisplatina
Anticonvulsantes: ácido valpróico
Antibióticos: aminoglicosídeos, tetraciclinas fora do prazo de validade
Antivíricos: cidofovir

Intoxicação por metais pesados

Chumbo
Cádmio
Mercúrio
Cobre

Outras

Défice de vitamina D
Mieloma múltiplo
Amiloidose
Transplante renal
Nefropatia por ervas chinesas
Nefrite túbulo-intersticial
Nefropatia membranosa com anticorpos antitubulares
Hemoglobinúria paroxística nocturna
Ácido fumárico
Paraquat
Suramina
L-lisina e L-arginina

A causa mais comum na criança é a cistinose (ver Parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo). No adulto habitualmente está em causa a iatrogénese, relacionada sobretudo com os fármacos usados no tratamento da infecção por VIH.

As manifestações clínicas, heterogéneas, por constituírem a expressão de diversas alterações da função do túbulo proximal, incluem: má progressão estaturo-ponderal, poliúria, desidratação, debilidade muscular, raquitismo; se se tratar de forma secundária a outra doença, estarão presentes outros sinais e sintomas, característicos da doença de base.

Através dos exames laboratoriais verifica-se: acidose hiperclorémia, hipocaliémia, hipofosfatémia, hipouricémia, proteinúria e glicosúria.

O tratamento, abordado de modo genérico, inclui o controlo da doença de base, acesso livre à água, suplementos de vitamina D, potássio, fósforo, bicarbonato (ou citrato) e tiazidas.

Acidose tubular renal 

A acidose tubular renal (ATR) é uma síndroma clínica com acidose metabólica hiperclorémica, ou com hiato aniónico normal. Pode dever-se a perda tubular de bicarbonato (por diminuição da sua reabsorção) ou a defeito na excreção de hidrogenião (H+), na ausência de alteração da função glomerular.

Distiguem-se quatro tipos de acidose tubular:

  • Tipo I ou distal (clássica-doença de Butler-Albright ou nephrocalcinosis infantum);
  • Tipo II ou proximal;
  • Tipo III proximal e distal (ou mista);
  • Tipo IV – uma vez que este tipo de ATR cursa com hipercaliémia, será abordado adiante noutra alínea deste capítulo.
A ATR distal ou do tipo I

É a forma mais frequente de ATR; pode ser esporádica, adquirida, ou primária. Neste tipo de ATR existe defeito na secreção de hidrogenião, sendo que a excreção urinária de bicarbonato é normal, não ultrapassando 5% da quantidade filtrada. Ao contrário dos doentes com ATR proximal, em que se mantém um balanço de ácido equilibrado, na ATR distal existe balanço positivo, com retenção contínua de radicais ácidos; assim, há incapacidade de acidificação da urina (de se atingir pH urinário < 5,5) apesar da acidose metabólica sistémica, o que provoca, secundariamente, um défice na excreção de amónio. O hiato aniónico urinário é positivo. Por outro lado, o défice de secreção de H+ é compensado por secreção aumentada de K+ (troca H+/K+) conduzindo a hipercaliúria e hipocaliémia.

A acidose sistémica leva também a aumento da excreção de cálcio e redução da excreção de citrato, conduzindo a hipercalciúria e hipocitratúria, o que predispõe ao desenvolvimento de nefrocalcinose e litíase urinária.

A etiopatogénese da situação deve-se a disfunção (hereditária ou adquirida) de um ou mais transportadores ou proteínas envolvidos no processo de acidificação. (Quadro 7)

QUADRO 7 – Factores etiopatogénicos de ATR distal ou tipo I

AD: autossómica dominante; AR: autossómica recessiva

Primária
    1. Esporádica (transitória em lactentes)
    2. De transmissão hereditária (persistente)
      • Forma clássica (AD e AR)
      • Forma clássica AR
      • Associada a surdez neurossensorial (AR)
      • Associada a perda de bicarbonato (lactente e criança pequena)
      • Formas incompletas

Secundária

 

Alterações do metabolismo mineralHiperparatiroidismo primário
Hiperparatiroidismo secundário
Intoxicação por vitamina D
Raquitismo hereditário ligado ao X
Hipomagnesémia familiar com hipercalciúria e nefrocalcinose
Doenças autoimunesLúpus eritematoso sistémico
Hipergamaglobulinémia
Síndroma de Sjögren
Artrite reumatóide
Tiroidite autoimune
Hepatite autoimune
HipernatriúriaCirrose
Síndroma nefrótica
Patologia renal e urológicaTransplante renal
Rim esponjoso medular
Uropatia obstrutiva
Refluxo vésico-ureteral
TóxicosAnfotericina B
Lítio
Tolueno
Doenças genéticasOsteopetrose
Síndroma de Ehlers-Danlos
Síndroma de Marfan
Ovalocitose hereditária
Drepanocitose
Doença de Wilson
Intolerância hereditária à frutose com nefrocalcinose
Hiperoxalária primária tipo I
Defice de carnitina-palmitoil-transferase tipo I
Doenças endócrinasHipotiroidismo
Hiperplasia suprarrenal congénita com perda salina
OutrasMá nutrição
Pielonefrite aguda

Na forma autossómica dominante há mutações no gene SLC4A1, o qual codifica um permutador de aniões (troca Cl/HCO3). Na forma autossómica recessiva há mutações no gene ATP6V0A4, o qual codifica a subunidade α4 da ATPase vacuolar transportadora de hidrogeniões. A forma associada a surdez neurossensorial de início precoce tem transmissão autossómica recessiva e deve-se a mutações no gene ATP6V1B1, responsável pela codificação da subunidade B1da H+-ATPase.

O tratamento essencialmente compreende suplementação com bicarbonato de sódio e/ou potássico (5-10 mEq/kg/dia no lactente e de 2-3 mEq/kg/dia na criança mais velha) ou citrato de potássio. A dose correcta deverá normalizar o crescimento, manter a função glomerular normal, normalizar a bicarbonatémia (21 mmol/L no lactente, 23 mmol/L na criança maior) e corrigir a hipercalciúria (< 4-5 mg/kg/dia). Deverá ser evitada a sobrecorrecção da acidose, já que doses excessivas de alcalis originam expansão do volume extravascular e manutenção paradoxal da hipercalciúria. Nas formas secundárias, deverá ser feito o tratamento da doença de base.

Poderão ocorrer situações agudas de desequilíbrio hidroelectrolítico com hipocaliémia e acidose metabólica intensas. Nestas situações, a administração de bicarbonato pode agravar a hipocaliémia deverá preceder a da acidose.

O raquitismo responde à administração de doses fisiológicas de vitamina D, se a acidose estiver controlada. A nefrocalcinose, que persiste apesar do tratamento adequado da ATR, pode evoluir para doença renal crónica.

A ATR proximal ou do tipo II

Caracteriza-se essencialmente por um limiar renal diminuído para a excreção de bicarbonato, com diminuição da sua reabsorção; assim, o bicarbonato excretado é > 15% do filtrado.

O Quadro 8 esclarece sobre os respectivos factores etiopatogénicos.

QUADRO 8 – Factores etiopatogénicos de ATR proximal ou do tipo II

Primária
    1. Esporádica (transitória em lactentes)
    2. De transmissão genética (persistente)
      • Autossómica dominante
      • Autossómica recessiva
SecundáriaTóxicos/FármacosAcetazolamida
Tetraciclina fora do prazo de validade
Ifosfamida
Valproato
Topiramato
6-Mercaptopurina
Metais pesados
OutrasDéfice de vitamina D
Nefronoptise
Hiperparatiroidismo
Hipocápnia crónica
Síndroma de Leigh
Cardiopatias congénitas cianóticas

 

O tratamento consiste essencialmente na administração oral de bicarbonato em doses elevadas (≥ 5-20 mEq/kg/dia, repartidos em 6 tomas), uma vez que existe grande quantidade de HCO3 na urina e há resistência à terapêutica alcalina. Pode ser necessário associar hidroclorotiazida ou indometacina.

No Quadro 9 apresentam-se as características que permitem a destrinça entre ATR proximal e a ATR distal.

QUADRO 9 – Diagnóstico diferencial entre ATR do tipo I e ATR do tipo II

CaracterísticasATR tipo I (distal)ATR tipo II (proximal)
Idade início< 4 meses> 4 meses
Anorexia/vómitos+++++
Má progressão EP++++
Episódios febris++
Episódios de desidratação++
Poliúria/polidipsia++
Fraqueza muscular+++/- (síndroma de Fanconi)
Raquitismo++Raro (síndroma de Fanconi)
Nefrocalcinose++
Litíase+
AG urináriopositivo (Cl < Na + K)Negativo (Cl > Na + K)
Na+ séricoNN
Na+ urinárioN
K+ séricoN/↓ ↑ se defeito de voltagemN
K+ urinário
Ca++ séricoNN
Ca++ urinário↑ (ainda não acidose e já há hipercalciúria)N
P+ urinárioN
Citrato urinário
pH urinário> 6≤ 6
HCO3 sérico< 14↓↓
FE HCO3< 3%> 15-20%
FE Na+3-5%> 15%
PCO2 (U-S)< 20 mmHg> 20 mmHg
A ATR distal ou do tipo III (proximal e distal ou mista)

Combina o defeito de reabsorção de bicarbonato com a incapacidade para excretar hidrogeniões.

A patologia mais importante que cursa com este tipo de ATR é a deficiência da anidrase carbónica intracelular, nos glóbulos vermelhos. Esta doença tem transmissão autossómica recessiva e associa osteopetrose, ATR, calcificações cerebrais e atraso mental. O défice enzimático pode detectar-se nos glóbulos vermelhos e o transplante de medula óssea pode tornar possível a sobrevivência destes doentes.

Alcalose metabólica e hipocaliémia 

Neste grupo de tubulopatias incluem-se as síndromas de Bartter, Gitelman e Liddle. Enquanto nas duas primeiras há perda salina, com pressão arterial tendencialmente baixa, na síndroma de Liddle ocorre retenção de sódio e, consequentemente, retenção hídrica, o que conduz a hipertensão arterial volume-dependente.

Relativamente à síndroma de Bartter, duma forma genérica, habitualmente consideram-se duas formas clínicas distintas: Bartter neonatal (subtipos I e II), habitualmente mais grave, e Bartter clássica (subtipos III a VI). As respectivas características distintivas são descritas no Quadro 10.

O tratamento, dirigido no sentido de corrigir a hipocaliémia, engloba a administração de cloreto de potássio (≥ 1-3 mEq/kg/dia), associada a um inibidor da síntese das prostaglandinas, como a indometacina (2-4 mg/kg/dia). Por vezes é necessário associar um diurético poupador de potássio, como a espironolactona (10-15 mg/kg/dia).

QUADRO 10 – Síndroma de Bartter: forma neonatal e forma clássica

CaracterísticasBartter neonatalBartter clássico
InícioRecém-nascidoLactente
PolidrâmnioPresente (desde as 22-24 semanas de idade gestacional)Frequente
PoliúriaMuito grave (12-50 mL/kg/hora) 
PrematuridadePresenteFrequente
HipoacúsiaPresente (tipo 4)Ausente
Avidez pelo salPresentePresente
Baixa estaturaPresentePresente
NefrocalcinosePresente (pode existir logo ao nascer)Variável
Perda salinaMuito elevadaElevada
CalciúriaMuito elevadaElevada
Alterações faciaisEstrabismo, fácies peculiar (fácies triangular, fronte proeminente, olhos grandes, orelhas descaídas, queixo pequeno e boca caída)Por vezes fácies triangular e fronte proeminente
OutrasInicialmente pode apresentar-se com acidose metabólica grave
Nefrocalcinose ao nascer
Astenia, mal-estar, irritabilidade
Vómitos, diarreia secretora
Pouco desenvolvimento muscular
Febre, predisposição para infecções
Convulsões
Vómitos, obstipação
Crises de paralisia secundárias a hipocaliémia
Tetania
No adulto manifesta-se por astenia ou hipocaliémia assintomática ou com ligeiras alterações musculares

No Quadro 11 encontram-se referidas as principais características clínicas e laboratoriais das síndromas de Bartter e Gitelman.

QUADRO 11 – Principais características clínicas e laboratoriais das síndromas de Bartter e Gitelman

AD: autossómica dominante; AR: autossómica recessiva; S: síndroma
DoençaTransmissãoGeneProteína Clínica
Bartter neonatal
(tipo I)
ARSLC12A1NKCC2 (perda função)Polidrâmnio, poliúria, hipercalciúria, nefrocalcinose
Bartter neonatal
(tipo II)
ARKCNJ1ROMKPolidrâmnio, poliúria, hipercalciúria, nefrocalcinose, hipercaliémia transitória
Bartter clássico
(tipo III)
ARCLCNKBCIC-KbHipoclorémia, hipomagnesiémia ligeira, má progressão ponderal
Bartter neonatal com hipoacúsia
(tipo IV)
ARBSNDBarttinaPolidrâmnio, poliúria, hipoclorémia, hipomagnesiémia, doença renal crónica, surdez neurossensorial
Hipocalcémia AD com síndroma de Bartter
(tipo V)
ADCaSRCaSR
(ganho de função)
Hipocalcémia, hipomagnesiémia
Bartter pré-natal com hipoacúsia neurossensorial
(tipo VI)
ARCLCNKA CLCNKBCIC-Ka/CIC-KbPolidrâmnio, poliúria, hipoclorémia, hipomagnesiémia, doença renal crónica, surdez neurossensorial
Síndroma de Gitelman ARSLC12.A3NCCTHipomagnesiémia, hipercalciúria, má progressão ponderal
Síndroma de EAST ARKCHJ10Kir 4.1Epilepsia, Ataxia, surdez neurosSensorial, atraso do desenvolvimento psicomotor e Tubulopatia (hipomagnesiémia)

A Figura 2 integra o algoritmo diagnóstico nas situações de hipocaliémia e o diagnóstico diferencial aplicável às três entidades clínicas anteriormente abordadas (síndromas de Bartter, Gitelman e Liddle).

FIGURA 2 – Algoritmo diagnóstico nas situações de hipocaliémia
(U: urinário; P: plasmático; S: síndroma)

Acidose metabólica e hipercaliémia    

As tubulopatias com o perfil bioquímico de acidose metabólica e hipercaliémia englobam o pseudo-hipoaldosteronismo (PHA) do tipo I e o PHA do tipo II. Existe ainda um tipo de ATR, denominada de tipo IV, que cursa com hipercaliémia.

O eixo renina-angiotensina-aldosterona responde às variações do estado hídrico do organismo. A aldosterona promove a reabsorção de sódio, com reabsorção passiva de água, e a secreção de potássio e hidrogenião. Assim, numa situação de hipoaldosteronismo ocorre hiponatrémia, hipercaliémia e acidose metabólica.

No PHA existe um estado de aparente ausência de resposta tubular à acção da aldosterona, o que provoca hipercaliémia (por diminuição da EF de potássio) e acidose metabólica hiperclorémica, com taxa de filtração glomerular normal; poderá existir perda ou retenção renal de sódio e, consequentemente, depleção de volume com hipotensão ou hipervolémia com hipertensão.

Pseudo-hipoaldosteronismo tipo I

O PHA tipo I é a forma clássica de PHA, sendo a forma mais comum de PHA hereditário. Existe um subtipo com transmissão AD e outro com transmissão AR.

Tem início em idade precoce (recém-nascido ou lactente) havendo antecedentes de poli-hidrâmnio; como manifestações clínicas há a realçar: poliúria, vómitos, episódios de desidratação e, na criança mais velha, avidez pelo sal.

No PHA tipo I existe normo ou hipovolémia e, respectivamente, renina e aldosterona normais ou aumentadas e pressão arterial normal ou diminuída. A natrémia encontra-se diminuída pela perda renal de sal, mas a hiponatrémia pode estar mascarada pela hemoconcentração. Ocorre diminuição da excreção fraccionada de potássio, o que provoca hipercaliémia e acidose.

As manifestações clínicas na forma AD são mais ligeiras, surgem mais tardiamente e habitualmente têm resolução espontânea por volta dos 2 anos de vida.

Na forma AR ocorre também perda de sódio pelo cólon, pulmão e glândulas salivares e sudoríparas, podendo confundir-se com a fibrose quística.

Pseudo-hipoaldosteronismo tipo II ou síndroma de Gordon

O PHA tipo II, situação rara, de transmissão autossómica dominante, deve-se a mutações que levam a perda de função nos genes que codificam as quinases WKN1 e WKN4 (as quais regulam o transporte de sódio e cloro no túbulo e outros epitélios). Não ocorre perda salina de sal, pelo que a natrémia é normal. Deste modo, há retenção hidrossalina que leva a hipervolémia e, consequentemente, a hipertensão arterial e a diminuição da renina e da aldosterona. Na criança a baixa estatura é típica. A hipertensão arterial pode surgir na adolescência e adultícia jovem.

De referir ainda hipercaliémia, acidose metabólica e litíase devido à hipercalciúria (esta última não associada a nefrocalcinose).

ATR tipo IV ou ATR hipercaliémica

Este tipo de ATR habitualmente ocorre em doentes adultos. Tem sido descrita em doentes com hipercaliémia de diferentes origens, incluindo doentes com hipoaldosteronismo primário ou associado a hiporreninémia na doença renal crónica, ou nos pseudo-hipoaldosteronismos tipos I e II. (Quadro 12)

O quadro clínico depende da doença de base e habitualmente não existe nefrocalcinose ou litíase.

O tratamento depende também da etiologia, sendo que em alguns casos poderá ser necessário administrar bicarbonato de sódio para corrigir a acidose e resina permutadora de iões ou furosemida para corrigir a hipercaliémia.

QUADRO 12 – Factores etiopatogénicos de ATR de tipo IV

PrimáriaIdiopática, no lactente e criança pequena (transitória)
SecundáriaDéfice de aldosterona, sem patologia renal Hiperplasia suprarrenal congénita com perda salina
Hipoaldosteronismo isolado
Hipoaldosteronismo hiporreninémico em doentes com patologia renal crónicaDrepanocitose
Nefropatia diabética
Nefrite lúpica
Nefropatia da nefroesclerose
Nefrites intersticiais crónicas
Transplante renal
Nefropatia do VIH
Doença quística medular
Hipoaldosteronismo hiporreninémicoGlomerulonefrite aguda
Tubulopatias distaisPseudo-hipoaldosteronismo tipo I
Pseudo-hipoaldosteronismo tipo II
Pseudo-hipoaldosteronismo secundário a uropatia obstrutiva
Tóxicos/FármacosSais de potássio
Diuréticos poupadores de potássio
IECA
Heparina
Trimetoprim
Captopril
Ciclosporina A

Hipercalciúria

A hipercalciúria pode surgir associada a diversas patologias, de origem renal ou pré-renal. O diagnóstico diferencial está esquematizado no algoritmo correspondente à Figura 3

Raquitismos hipofosfatémicos

Este tópico foi abordado em capítulos sobre Nutrição, Endocrinologia e Neonatologia/Perinatologia. (Figura 4)

FIGURA 3 – Diagnóstico diferencial da hipercalciúria

FIGURA 4 – Genu valgum e recurvatrum acentuados no contexto de criança com raquitismo hipofosfatémico. (NIHDE)

Diabetes insípida nefrogénica

A diabetes insípida nefrogénica (DIN) define-se pela incapacidade de o tubo colector absorver água em resposta à hormona antidiurética (HAD, também chamada arginina vasopressina/AVP), o que tem como consequência a incapacidade de concentração da urina. Produz-se, assim, elevada quantidade de urina diluída, poliúria grave, polidipsia e episódios de desidratação.

A DIN hereditária é uma doença rara (proporção de cerca de 8 recém-nascidos do sexo masculino por milhão de habitantes). A forma secundária, reversível ou não, é mais frequente (ver adiante).

Diabetes insípida nefrogénica primária

A DIN primária atinge predominantemente o sexo masculino, na forma mais frequente, com transmissão autossómica recessiva ligada ao X; em 10% dos casos existe transmissão autossómica dominante ou recessiva, em que ambos os sexos são afectados.

Em condições basais o túbulo colector é impermeável à água. Contudo, em resposta a aumento da osmolaridade sérica (detectada por osmorreceptores no hipotálamo) e/ou depleção grave do volume plasmático, a HAD é libertada para a circulação sistémica. Liga-se depois ao seu receptor, vasopressina V2 (AVPR2), na membrana basolateral das células do tubo colector. Tal ligação ao receptor activa uma cascata dependente da adenosina monofosfato cíclica, do que resulta a inserção de canais de água, designados aquaporina-2 (AQP2) na membrana luminal do tubo colector, aumentando a permeabilidade deste à água.

As mutações inactivantes no gene AVPR2, localizado no cromossoma X, que codifica o receptor V2 da HAD, origina um defeito que impede a inserção das aquaporinas na membrana luminal. As mulheres portadoras são parcialmente sintomáticas.

A doença apresenta-se com polidrâmnio e, nas primeiras semanas de vida, cursa com poliúria grave, por vezes com ureterohidronefrose e distensão vesical, polidipsia, desidratação hipenatrémica, atraso de crescimento, irritabilidade, avidez pela água, hipertermia, vómitos, obstipação e desnutrição.

A nível laboratorial é possível encontrar hipostenúria, hipernatrémia, hiperuricémia e níveis de HAD muito aumentados. A taxa de filtração glomerular é normal.

O diagnóstico diferencial é feito com polidipsia crónica, diabetes insípida de causa central e diabetes mellitus.

O tratamento inclui acesso livre à água, restrição de sódio na dieta (< 0,7 mEq/kg/dia), administração de hidroclorotiazida (2-3 mg/kg/dia), sendo que esta última faz reduzir a diurese ao estimular a reabsorção proximal de água e sódio. Nos casos graves pode ser necessária a administração de indometacina (2 mg/kg/dia). Concomitantemente pode ainda ser necessária a suplementação com potássio e a administração de amloride para controlar a hipocaliémia.

Diabetes insípida nefrogénica secundária

A DIN secundária é muito mais frequente que as formas congénitas, especialmente na idade adulta. Deve-se a perda do gradiente osmótico e lesão tubular. As principais causas de DIN secundária são: nefropatias túbulo-intersticiais (doença renal poliquística, uropatia obstrutiva, pielonefrite aguda, displasia renal, nefronoptisis, lesão renal aguda, doença de células falciformes, amiloidose), alterações hidroelectrolíticas (hipercalcémia e hipocaliémia) e fármacos (lítio, analgésicos, anfotericina B, forscanet, cidofovir, vincristina, colchicina, etc.).

Aminoacidúrias

A etiopatogénese destas entidades decorre de défice específico dos transportadores tubulares proximais. A mais importante das aminoacidúrias é a cistinúria. De realçar ainda que pode ocorrer hiperaminoacidúria de causa pré-renal. (ver capítulo sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo)

Outras tubulopatias

Glicosúria renal

Na glicosúria renal existe excreção aumentada de glicose sem hiperglicémia. Deve-se a um defeito no transporte tubular activo da glicose por mutações no gene SLC5A2 codificando o transportador Na+-glucose dependente, SGLT2. Tem uma incidência estimada de 1/500.

Trata-se duma situação benigna, não se associando a qualquer outra alteração no transporte tubular; não provoca hipoglicémia nem está associada a maior risco de desenvolvimento de diabetes mellitus. Não requer, por isso, qualquer tratamento.

Na presença de glicosúria há que prioritariamente excluir diabetes mellitus e, ulteriormente, verificar se existe mais algum defeito na reabsorção tubular. De referir ainda que a glicosúria pode também ser encontrada no recém-nascido prematuro e na pielonefrite aguda.

Hipouricémia isolada de origem renal

A hipouricémia de origem renal (familiar, congénita ou isolada) é causada por uma alteração nos transportadores tubulares de urato. Trata-se duma patologia rara, de transmissão autossómica, mais frequente nos japoneses e nos israelitas. Existem duas formas, de gravidade variável:

  • Uma, relacionada com mutação no gene SLC22A12 que codifica o permutador de urato-aniões URAT1, o qual se expressa na membrana luminal do túbulo proximal e é responsável pela maior parte da reabsorção de urato. Os doentes homozigóticos para esta mutação têm tipicamente uricémia < 1,0 mg/dL. A urolitíase é 3-4 vezes mais comum que na população geral;
  • Outra, relacionada com mutação no gene SLC2A9, o qual codifica o transportador de urato GLUT9. Esta mutação causa hipouricémia mais grave, habitualmente próxima de zero mg/dL. Os doentes heterozigóticos evidenciam uricémia moderadamente reduzida e existe elevada incidência de urolitíase.

A associação a lesão renal aguda induzida pelo exercício é habitual nas formas homo e heterozigóticas.

Salienta-se que existem outras situações que podem acompanhar-se de hipouricémia, como a síndroma de Fanconi, a secreção inapropriada de hormona antidiurética e a terapêutica com cotrimoxazol.

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HIPERTENSÃO ARTERIAL E DOENÇA RENAL

Definição

A pressão arterial (PA) na idade pediátrica é um parâmetro que varia em função do crescimento, verificando-se que os valores diferem conforme o género. Assim, os valores de referência consideram de modo conjunto a idade, o género e o tamanho corporal. Os valores de normalidade publicados pela Task Force for Blood Pressure in Children de 2009 consideram, juntamente com a idade cronológica e o género, o percentil da estatura. (Os Quadros 4, 5, 6 e 7 do capítulo 48 (HIPERTENSÃO ARTERIAL EM SAÚDE INFANTIL E JUVENIL), adoptados pela Direcção Geral da Saúde exprimem os valores de pressão arterial (sistólica e diastólica) por percentis de altura para ambos os géneros, de 1 a 17 anos). 

A pressão arterial normal é definida pela verificação de valores de pressão sistólica e diastólica inferiores ao percentil 90 para a idade, género e estatura.

Valores de pressão sistólica e/ou diastólica iguais ou superiores aos do P90, mas inferiores aos do P95, consideram-se normais-elevados.

A hipertensão arterial/HTA (pré-HTA ou HTA limite) é definida pela verificação de pressão sistólica e/ou diastólica igual ou superior ao percentil 95 (P95) para idade, género e estatura, em pelo menos três ocasiões diferentes (Quadro 1). A HTA pode ser de grau 1 ou 2.

A HTA é considerada de grau 1 se o percentil do valor de pressão sistólica e/ou diastólica for igual ou superior ao do P95, mas inferior ao do P99, mais 5 mmHg; e de grau 2 se > P99 mais 5 mmHg.

Tal como para a idade adulta, para os adolescentes de ambos os sexos com idade superior a 16 anos, são considerados os seguintes critérios relativamente aos valores de pressão sistólica/diastólica: normal-alta se 130-139/85-89 mmHg; e HTA se ≥ 140/90 mmHg.

A hipertensão sistólica isolada (HSI) é definida pela verificação de valor da pressão sistólica igual ou superior ao do valor do P95 e de valor da pressão diastólica inferior ao do P90. Esta forma está associada a maior risco cardiovascular no jovem

QUADRO 1 – Variabilidade de valores da pressão arterial em crianças e adolescentes

HSI- Hipertensão sistólica isolada; PAS- pressão arterial sistólica; PAD- pressão arterial diastólica
Categoria0 – 15 anos
Percentil de PAS e/ou PAD
≥ 16 anos
Valores de PAS e/ou PAD (mmHg)
Normal< P90< 130/85
Normal-elevada≥ P90 a < P95130-139/85-89
HTA de grau 1≥ P95 a < P99 + 5 mmHg140-159/90-99
HTA de grau 2> P99 + 5 mmHg160-179/100-109
HSIPAS ≥ P95 e PAD < P90≥ 140/< 90

Importância do problema

A prevalência crescente de hipertensão arterial (HTA) em idade pediátrica, relacionada sobretudo com as modificações no estilo de vida e a obesidade, levanta questões de saúde pública e a necessidade de rever atitudes tendo em perspectiva a sua detecção e o seu tratamento atempadamente. Com efeito, tratando-se dum indiscutível factor de risco cardiovascular e renal em qualquer idade, importa salientar que a HTA na idade pediátrica, preditiva de HTA no adulto, se associa a mortalidade e morbilidade relacionadas com o conceito de lesão de órgão-alvo (LOA); por outro lado, o seu controlo desde a idade pediátrica poderá reduzir a morbilidade futura.

Aspectos epidemiológicos

Por definição de PA superior à do P95, a prevalência de HTA em crianças saudáveis deveria ser cerca de 5%. Contudo, a actual epidemia de excesso de peso/obesidade na criança tem impacte nos números crescentes de HTA. O risco de progressão da PA elevada para HTA é maior nos rapazes adolescentes e em grupos com risco cardiovascular (obesidade, diabetes, coarctação aorta corrigida, HTA mascarada). Em Portugal, de acordo com os recentes estudos publicados, a estimativa de prevalência de HTA varia entre 9,8% e 34%.

Etiopatogénese

A HTA é o resultado da interacção entre factores genéticos e fetais, somando-se ao longo da vida os factores ambientais.

Numa escassa proporção de casos de HTA foi possível estabelecer uma associação familiar de HTA com hereditariedade mendeliana em que a mutação de um gene conduz à elevação da PA em diversos membros de uma família.

No estado actual dos conhecimentos foram identificadas cinco síndromas acompanhadas de HTA com hereditariedade mendeliana, de prevalência baixa: hiperaldosteronismo, síndroma de excesso aparente de mineralocorticóides, pseudoaldosteronismo (síndroma de Liddle), pseudo-hipoaldosteronismo de tipo II (síndroma de Gordon) e hipersensibilidade do receptor de mineralocorticóides.

A este propósito realça-se que, através de estudos genéticos, tem sido possível compreender o modo de acção de fármacos anti-hipertensores e a importância dos rins e das glândulas suprarrenais na regulação da PA.

Entre os factores ambientais destaca-se pelo seu impacte a obesidade, registando-se uma relação contínua entre o peso corporal e a pressão arterial. Outros factores ambientais, correspondendo a outros tantos factores de risco, incluem a dislipoproteinémia, o sedentarismo e estilo de vida, o consumo de sal e o baixo peso de nascimento.

Relativamente aos factores fetais verificou-se que o baixo peso de nascimento, sobretudo se existir concomitantemente restrição do crescimento intrauterino, constitui um determinante da pressão arterial elevada na idade adulta (sobretudo da sistólica), inversamente proporcional ao peso.

O crescimento do feto em ambiente que favorece a desnutrição de diversa etiologia (designadamente em contexto de desnutrição materna ou de disfunção placentar), conduz a uma adaptação do mesmo feto com consequências fisiopatológicas ao longo da vida pós-natal, adaptação a que foi dado o nome (por David Barker na década de 90) de programação/programming. As referidas consequências traduzem-se em alterações permanentes na estrutura e função dos órgãos levando à ocorrência de patologia diversa, nomeadamente de HTA, resistência à insulina e aterosclerose.

A HTA na idade pediátrica é em grande número de casos consequência de doenças subjacentes cuja primeira manifestação pode ser a elevação da PA. Em geral, quanto menor a idade, mais elevados os valores desta, maior probabilidade de se tratar de HTA secundária, e de origem renal, parenquimatosa ou renal vascular (nos lactentes HTA secundária em 99% dos casos e, entre os 1 e 6 anos, 70-85%). A idade de início do problema orientará, pois, para a identificação dos factores etiológicos mais frequentes. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Factores etiológicos mais comuns de HTA por grupo etário

LACTENTES16 ANOS712 AN0SADOLESCENTES
    • Renovascular
    • (Trombose/estenose dos vasos renais)
    • Defeitos congénitos renais
    • Coarctação da aorta
    • Doença pulmonar crónica
    • Neuroblastoma
    • Hipertensão intracraniana
    • Estenose artéria renal
    • Doença do parênquima renal
    • Neuroblastoma
    • Coarctação da aorta
    • Causas endócrinas
    • Tumor de Wilms
    • Fármacos
    • Neurofibromatose
    • Doença do parênquima renal
    • Estenose da artéria renal
    • Causas endócrinas
    • Tumor de Wilms
    • Fármacos
    • HTA essencial
    • Distúrbios do sono
    • Neurofibromatose
    • HTA essencial
    • HTA da “bata branca”
    • Doença do parênquima renal
    • Fármacos
    • Consumos tóxicos
    • Eclâmpsia
    • Causas endócrinas
    • Distúrbios do sono
99% HTA secundária

70-85% HTA
Secundária

5-15% HTA Secundária

A abordagem do tópico “HTA e doença renal” implica explanar sucintamente aspectos do ritmo circadiano aplicados à PA, e salientar que o sistema renina-angiotensina-aldosterona tem um papel crucial na regulação da PA.

O ritmo circadiano é um ciclo intrínseco de 24 horas que diz respeito a numerosas funções biológicas. O tono vascular, as resistências vasculares periféricas, a frequência cardíaca e a PA aumentam nas primeiras horas da manhã nos indivíduos normotensos e nos hipertensos. Este aumento corresponde a um aumento da actividade da renina plasmática, com diminuição da secreção das catecolaminas. A PA atinge um “pico” cerca das 9 horas da manhã e cai para um valor mínimo cerca das 3 horas da manhã. Na altura do despertar ocorre um aumento significativo da “resposta PA” devido à activação do sistema neuroendócrino e dos seus receptores.

Embora os factores ambientais, principalmente os ciclos dia-noite, tenham uma influência na variação circadiana da PA, alguns aspectos parecem ser determinados geneticamente.

A estenose da artéria renal origina HTA através da estimulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona.

A renina é uma enzima proteolítica segregada pelas células justaglomerulares, a qual converte o angiotensinogénio em angiotensina I.

A secreção de renina é influenciada pela pressão de perfusão arteriolar aferente, natrémia, natriúria tubular, activação do sistema nervoso simpático e outros factores tais como prostaglandinas, suprimento de potássio, e péptidos natriuréticos auriculares.

A angiotensina I, com escassa actividade fisiológica, é rapidamente convertida em angiotensina II pela ECA (enzima conversora da angiotensina). Esta enzima é também responsável pela degradação das cininas vasodilatadoras.

Por sua vez, a angiotensina II é um potente vasoconstritor que leva à retenção de água e sal.

No caso das endocrinopatias (da tiroideia, paratiroideia e suprarrenal) a HTA relaciona-se essencialmente com secreção aumentada de mineralocorticóides.

Nas situações de HTA sensível ao sal (relação entre HTA deste tipo e polimorfismo do gene da ECA), os valores séricos da renina estão diminuídos.

A HTA provoca alterações estruturais e funcionais no endotélio dos vasos, com repercussão sobretudo ao nível do coração, cérebro e rim (lesões de órgão-alvo/LOA). Tais lesões iniciadas na idade pediátrica poderão não ser clinicamente relevantes antes da idade adulta; por isso, torna-se fundamental uma vigilância clínica rigorosa e continuada dos pacientes em tais circunstâncias.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da HTA mais frequentes (independentemente de se tratar de forma primária ou secundária), são: cefaleia, náuseas, vómitos, irritabilidade e epistaxe, podendo estas duas últimas ser de surgimento precoce. Elevação rápida ou marcada da PA poderá originar diminuição da acuidade visual, insuficiência cardíaca, sinais neurológicos (encefalopatia) e conduzir à chamada crise hipertensiva (ver adiante). Em crianças pequenas e lactentes, a primeira manifestação pode ser uma complicação da hipertensão.

Exame clínico do paciente com HTA

Generalidades

A medição da PA deve ser realizada sempre a partir dos 3 anos. Se se tratar de criança normotensa, a mesma deve ser reavaliada de 2 em 2 anos; se a situação corresponder a valores normais-altos sem LOA, a avaliação clínica deve ser anual. Os valores obtidos devem sempre ser classificados de acordo com as tabelas de referência para género, idade e estatura.

Confirmando-se HTA, deve proceder-se a investigação complementar, ponderando-se a eventual orientação atempada do paciente para uma unidade de referência.

Perante valores elevados de PA, sem LOA, fala-se de HTA da bata-branca; na HTA mascarada pode verificar-se já LOA devido a “picos” tensionais não detectados em consulta. De referir que em ambas as situações poderá verificar-se evolução para HTA permanente.

De facto, tendo em conta a variabilidade da PA (ritmo circadiano, emoções, grau de actividade, variações fisiológicas com a idade, etc.), é difícil admitir o diagnóstico de HTA baseado, apenas, em valores absolutos. É importante conhecer as condições em que foi realizado o diagnóstico, eliminar o mais possível eventuais factores de erro (ansiedade, realizar pelo menos três determinações independentes, braçadeira adequada) e registar o método utilizado (esfigmomanómetro de mercúrio, oscilometria, “Dinamap®”).

PA na consulta

Para a medição correcta da PA (implicando a consulta de tabelas de referência) existem normas ou recomendações. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Recomendações para a medição da PA em regime de consulta

    • Doente em repouso 3-5 minutos antes da medição (sem estar a chorar, mamar/comer ou falar)
    • Usar braçadeira com o tamanho de cuff adequado (largura <> 40% do perímetro braquial; comprimento <> 80-100% do perímetro braquial) (4 x 8 cm; 6 x12 cm; 9 x 18 cm; 10 x 24 cm)
    • Medir 3 vezes a PA, com intervalo de 3 minutos entre medições; utilizar a média das 2 últimas
    • Medir a PA nos 4 membros na primeira medição; desde então, medir sempre no braço em que se verificou o valor mais elevado. Membro superior apoiado e artéria braquial ao nível do coração
    • Recomenda-se o método auscultatório (fase I e V dos sons de Korotkoff são usadas para identificar a PAS e PAD respectivamente)
      No método oscilométrico, o aparelho utilizado deve estar validado; a detecção de HTA implica confirmação pelo método auscultatório
    • Indicações para a avaliação antes dos 3 anos de idade (condições predispondo a HTA):
      • intercorrências neonatais e necessidade de cuidados intensivos (prematuridade, baixo peso);
      • cardiopatia congénita;
      • doença renal; antecedentes familiares de doença renal; defeito congénito geniturinário; hematúria e/ou proteinúria; infecções urinárias;
      • uso de fármacos geradores de HTA;
      • HT intracraniana suspeita ou comprovada;
      • doença sistémica associada a HTA.
PA no domicílio

Os valores de PA obtidos fora da consulta podem apoiar a avaliação de doentes com e sem tratamento instituído. Recomenda-se a medição de manhã e à tarde durante 6-7 dias. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Recomendações para monitorizar a PA no domicílio

Como medir
Medição diária, matinal e vespertina, 3-4 dias consecutivos (de preferência 7 dias)
Local calmo, repouso há 5 minutos, sentado, dorso e membros superiores apoiados
Medir sempre 2 vezes, com intervalo de 1-2 minutos
Indicações
Todos os doentes sob medicação anti-HTA
Suspeita de hipertensão de bata branca
Condição requerendo vigilância estrita da PA
Estudos clínicos
PA ambulatória (MAPA)

A monitorização ambulatória da pressão arterial (MAPA) regista de modo contínuo as variações da PA durante o período de 24 horas e a sua relação com a actividade física, ansiedade e o sono. As principais indicações constam do Quadro 5.

A queda fisiológica normal da PA nocturna (superior a 10% da média diurna) poderá estar comprometida nos distúrbios do sono, obesidade, disfunção autonómica, hipotensão ortostática, diabetes e doença renal crónica.

QUADRO 5 – Principais indicações da MAPA

Contexto clínico

Confirmação do diagnóstico de HTA antes de iniciar fármacos anti-HTA
Exclusão de hipertensão de bata branca
Identificação de presumível HTA mascarada
Discrepância entre PA na consulta e PA no domicílio
Diabetes mellitus de tipos 1 e 2
Doença renal crónica
Status pós-transplante renal, hepático ou cardíaco
Obesidade mórbida com ou sem distúrbio do sono
Resposta hipertensiva durante a prova de esforço (possível HTA mascarada)
Disfunção autonómica
Suspeita de tumores secretores de catecolaminas, etc.

Durante o tratamento anti-HTA

Avaliar HTA resistente à terapêutica
Monitorizar a PA em crianças com LOA
Sintomas de hipotensão

Estudos clínicos

Diagnóstico

A abordagem deve ser individualizada:

  • atendendo à anamnese e confirmando os valores de PA;
  • classificando a HTA, revendo antecedentes pessoais/familiares e factores de risco (Quadro 6);
  • avaliando os sinais de HTA secundária e de lesão de órgão.
I. Antecedentes, anamnese e exame objectivo

QUADRO 6 – Antecedentes e factores de risco de HTA na criança

Antecedentes familiares
ABREVIATURAS: IG: idade gestacional; AB: antibióticos; VC: vasoconstritores; CO: contraceptivos orais; CT: corticóides; AINE: anti-inflamatórios não esteróides; HT: hipertensores; LES: lúpus eritematoso sistémico; NEM: neoplasias endócrinas múltiplas; NF: neurofibromatose; ET: esclerose tuberosa
HTA e doença cardiovascular
Diabetes mellitus
Dislipidémia e obesidade
Nefropatia hereditária (síndroma de Alport, poliquistose)
Endocrinopatia hereditária (NEM tipo 2; tumores suprarrenal)
Síndromas associadas a HTA (NF, ET)
Antecedentes pessoais
Período neonatal (IG, peso, eventos)
Crescimento estaturo-ponderal
Infecções urinárias, glomerulonefrite
Vasculite sistémica
Trauma abdominal, renal, SNC
Medicação com fármacos nefrotóxicos/HT (AB, VC, CO, AINE, CT, imunosupressores)
Comorbilidades (DM, obesidade, dislipidémia, LES, hipertiroidismo, síndroma de Cushing)
Síndromas associadas a HTA (poliquistose, ET, síndroma de Turner)
Antecedentes sociais e hábitos
Dieta (cafeína, suplementos)
Actividade física/Sedentarismo
Padrão do sono
Tabaco, álcool e substâncias ilícitas
Actividade sexual/gravidez
Estresse/ansiedade/depressão

O Quadro 7 descreve a tipologia dos principais sinais que poderão ser obtidos através do exame objectivo.

QUADRO 7 – HTA: possíveis alterações evidenciadas no exame objectivo

Exame Achados clínicos Sequela de HTA (LOA)
Aspecto geralPalidez
Hipocrescimento
Obesidade
Edema
Fácies cushingóide
Dismorfismos sindromáticos
 
PeleExantema
Neurofibromas
Acantose nigricans
 
OlhoCatarata
Proptose
Hemangioblastoma
Retinopatia
AbdómenMassa palpável
Hepatosplenomegália
Sopro abdominal
 
CardiovascularSopro cardíaco
Taquicardia
Pulsos femorais fracos
Hipertrofia do ventrículo esquerdo
Falência do ventrículo esquerdo
GenitaisVirilização 
NeurológicoHipertensão intracranianaParalisia facial
Hemiparésia pós-AVC

A precocidade do diagnóstico e da intervenção é fundamental para reduzir a morbilidade e mortalidade cardiovascular associadas à HTA.

Exames complementares

Confirmando-se HTA, devem ser equacionados de modo racional os exames complementares em função da anamnese e exame objectivo, caso a caso. (Quadro 8) Os objectivos fundamentais são identificar a causa assim como a presença e gravidade de eventual lesão de órgão-alvo (LOA). Os testes genéticos estão indicados se os níveis plasmáticos de renina forem baixos e/ou se existirem antecedentes familiares sugestivos de doença monogénica.

QUADRO 8 – Exames complementares nos casos de HTA

Creatinina, ureia, ionograma e ácido úrico plasmáticos
Hemograma
Glicémia, colesterol (total, HDL e LDL) e triglicéridos
Urina – exame sumário e urocultura
Albuminúria e ratio albuminúria/creatininúria, proteinúria e ratio proteinúria/creatininúria
Radiografia tórax, ecocardiografia, ecografia renal (com doppler), fundoscopia
Outros exames a ponderar em situações específicas (gasometria, renina, aldosterona, cortisol, ACTH, adrenalina, dopamina, hormonas tiroideias, complemento, autoanticorpos, cintigrafia renal, TAC/RM, etc.)

Lesão de orgão-alvo (LOA)

Embora os efeitos da PA elevada, eventualmente grave, mantida, permanente (num processo contínuo de doença vascular) sobre determinados órgãos – designadamente coração, rim, globo ocular, sistema nervoso central (órgãos-alvo) possam ser subclínicos, torna-se fundamental a sua monitorização sistemática desde a data em que é feito o diagnóstico de HTA, mesmo que já tenha sido iniciada medicação.

A LOA define-se pela verificação das seguintes alterações: – aumento de massa cardíaca/cardiomegália (hipertrofia ventricular esquerda); – perda proteica pelo rim; – alterações nos vasos de pequeno calibre (detectáveis na retina e nas carótidas); – manifestações neurológicas/encefalopatia; – retinopatia estão associadas ao efeito da HTA severa ou mantida sobre o cérebro.

Tratamento

No adulto, os estudos demonstram que o tratamento da HTA reduz o risco de evento cardiovascular e melhora a sobrevida. Na criança, as atitudes visam limitar/reverter as LOA e a progressão da doença renal crónica, tendo sido estabelecidos percentis-alvo da PA. (Quadro 9)

QUADRO 9 – Objectivos quanto a percentis da PA a atingir na criança com HTA

1Em adolescente maior de 16 anos, o valor de referência é o do adulto 140/90 mmHg
2Em adolescente maior de 16 anos, o valor de referência é o do adulto 130/80 mmHg
População geral1
PA alvo< P95 recomendado
< P90 considerado (ou o menor valor tolerado)
Diabetes mellitus (DM) 1 ou 22
PA alvo< P90 recomendado
< P75 se DRC sem proteinúria
< P50 se DRC com proteinúria
Doença renal crónica (DRC) 2
PA alvo< P75 se DRC sem proteinúria
< P50 se DRC com proteinúria
Medidas não farmacológicas

Nas situações de HTA ou PA normal-alta é recomendada intervenção incidindo sobre o estilo de vida (Quadro 10). Tal intervenção (que deve contar com a colaboração familiar) deve realizar-se de modo sistemático, logo que feito o diagnóstico, desde o início, e designadamente nos casos já submetidos a tratamento farmacológico; com efeito, a mesma poderá contribuir para a normalização da PA ou para diminuir a necessidade ou a dose de fármaco.

QUADRO 10 – Recomendações sobre o estilo de vida para redução da PA

Modificações da dieta: refeições regulares em fracções equilibradas; diminuição do consumo de açúcar e gordura saturada; consumo de fruta e vegetais; limitação da ingestão de sódio a 1,2 g/dia (4-8 anos) e a 1,5 g/dia (> 8 anos)
Controlo do peso: IMC < p85
Actividade física aeróbica regular: 30-60 minutos por dia
Sedentarismo: menos de 2 horas por dia
Higiene do sono: descanso de pelo menos 8 horas por noite; rotina do adormecer; excluir síndroma da apneia obstrutiva do sono
Evicção de substâncias nocivas (tabaco, cafeína, álcool e substâncias ilícitas)
Tratamento farmacológico
Generalidades

O tratamento farmacológico está indicado nas seguintes circunstâncias: – HTA secundária; – HTA sintomática; – LOA hipertensiva; – DM tipos 1 ou 2; – DRC; – HTA persistente sem resposta a 1 ano de intervenção não farmacológica; e – PA normal-alta com LOA hipertensiva.

Esta opção é limitada em idade pediátrica pela ausência de estudos controlados de eficácia-segurança dos fármacos, sua farmacocinética e os efeitos do seu uso prolongado. A maioria dos regimes terapêuticos usados é extrapolada do adulto.

O Quadro 11 discrimina os fármacos de diferentes classes farmacológicas, utilizados no tratamento da HTA: inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA), antagonistas dos receptores da angiotensina II (ARA II), bloqueantes dos canais de cálcio (BCC), antagonistas β-adrenérgicos e diuréticos.

O fármaco escolhido (Quadro 11) deve: – ter posologia cómoda (máximo 2 tomas/dia);

  • ser iniciado na menor dose recomendada e; – titulado até se atingir a PA-alvo, a dose máxima ou até se verificar a presença de efeitos adversos. A verificação destes efeitos motiva a associação ou substituição por outro fármaco.

Na prática, utiliza-se o algoritmo ABCD:

  • 1ª linha: “A” (IECA/ARA II) e “B” (ß-bloqueante) pois a criança responde bem ao bloqueio do sistema renina-angiotensina;
  • 2ª linha: A ou B com C (bloqueante dos canais do cálcio) ou D (diurético);
  • 3ª linha: A+C+D ou B+C+D.

QUADRO 11 – Fármacos anti-HTA mais usados em crianças e adolescentes

Classe farmacológicaFármacoDose inicial
(por dia)
Dose máxima
(por dia)
Tomas
IECACaptopril
Enalapril
Lisinopril
Ramipril
0,3-0,5 mg/Kg/dose
0,08-0,6 mg/Kg/dia
0,08-0,6 mg/Kg
1,5-6 mg/Kg
6 mg/kg (até 450 mg)
40 mg
40 mg
2 a 3
1
1
1
ARA IILosartan
Irbesartan
Valsartan
Candesartan
0,7 mg/Kg até 50 mg
75-150 mg
0,4 mg/Kg
0,16-0,5 mg/Kg
1,4 mg/Kg (até 100 mg)
300 mg
40-80 mg
1 a 2
1
1
1
BCCAmlodipina
Nifedipina
Felodipina
0,06-0,3 mg/Kg
0,25-0,5 mg/Kg
2,5 mg
5-10 mg
3 mg/Kg (até 120 mg)
10 mg
1
1 a 2
1
ß-BloqueanteAtenolol
Propranolol
Metoprolol
0,5-1 mg/Kg
1 mg/Kg
0,5-1 mg/Kg
2 mg/Kg (até 100 mg)
4 mg/Kg (até 640 mg)
2 mg/Kg
1 a 2
2 a 3
1 a 2
Αβ-BloqueanteLabetolol1-3 mg/Kg10-12 mg/Kg (até 1200 mg)2
DiuréticosAmilorida
Clortalidona
Furosemida
Hidroclorotiazida
Espironolactona
Triantereno
0,4-0,6 mg/Kg
0,3 mg/Kg
0,5-2 mg/Kg
0,5-1 mg/Kg
1 mg/Kg
1-2 mg/Kg
20 mg
2 mg/Kg (até 50 mg)
6 mg/Kg
3 mg/Kg (até 200 mg)
3,3 mg/Kg (até 100 mg)
3-4 mg/Kg (até 300 mg)
1
1
1 a 2
1
1 a 2
2
Agonista α centralClonidina0,2 mg/Kg2,4 mg2
Bloqueante α periféricoDoxazosina
Prazosina
1 mg
0,05-0,1 mg/Kg
4 mg
0,5 mg/Kg
1
3
VasodilatadorHidralazina
Minoxidil
0,75 mg/Kg
0,2 mg/Kg
7,5 mg/Kg (até 200 mg)
50–100 mg
4
1 a 3

A escolha deve ter em conta: – a causa da HTA e comorbilidades; – acção do fármaco na hemodinâmica, na função cardíaca e renal; – os efeitos secundários; – as contraindicações; e – o valor económico.

Assim, na DM ou DRC com proteinúria, o agente de primeira linha será um IECA ou um ARA II pela capacidade de limitarem a proteinúria. Na enxaqueca ou coarctação da aorta, a escolha recai nos β-bloqueante ou BCC. O diurético é primeira escolha em doentes com HTA induzida por corticóides.

Estão contraindicados os β-bloqueantes na criança com asma ou diabetes. Não são recomendados IECA e ARA II a adolescentes grávidas ou que pretendam engravidar. Os diuréticos e os β-bloqueantes devem ser evitados em atletas de alta competição por alterarem o desempenho e por se considerarem substâncias dopantes. Pelos efeitos no metabolismo da glicose e na resistência à insulina, os β-bloqueantes e os diuréticos tiazídicos devem ser evitados em obesos e em pacientes com DM.

Inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA)

Estes fármacos: – inibem a conversão da angiotensina I em angiotensina II (AII), reduzindo os efeitos vasoconstritores da AII e a libertação de aldosterona; – inibem a cininase II com aumento das bradicininas e prostaglandinas plasmáticas (vasodilatadoras) e reduzem o tono simpático; – têm propriedades protectoras renais e cardiovasculares pois reduzem a resistência arteriolar eferente renal, melhoram a função endotelial e a remodelação estrutural dos vasos sanguíneos.
 O captopril e o enalapril são utilizados com segurança e eficácia nas idades pediátricas. O captopril tem uma semivida curta e os comprimidos podem ser reduzidos a pó/manipulados a suspensão, o que facilita a sua utilização nos recém-nascidos e lactentes. Nas crianças mais velhas deve preferir-se o enalapril.

São primeira linha terapêutica na DRC e DM (são antiproteinúricos) e na obesidade (demonstrou-se diminuição da incidência de diabetes e aumento da sensibilidade à insulina). Estão contraindicados na gravidez (risco de oligo-hidrâmnio, hipotensão fetal grave, insuficiência renal neonatal e morte neonatal), na estenose da artéria renal, bilateral ou em rim único, e na insuficiência renal aguda. Na DRC, o uso de IECA é limitado pela dificuldade em monitorizar o potássio.

Antagonistas dos receptores da angiotensina II (ARA II)

A utilização pediátrica dos ARAII é recente. Inibem a ligação da AII ao subtipo AT-1 dos receptores da All nos vasos sanguíneos e noutros tecidos; tal acção reduz a PA por inibir efeito vasoconstritor da AII e a libertação de aldosterona.

O Losartan foi o primeiro ARAII aprovado para uso no adulto e é utilizado com regularidade na pediatria.

Bloqueantes dos canais de cálcio (BCC)

São vasodilatadores directos que inibem a contracção do músculo liso das paredes vasculares por interferência no influxo de cálcio celular. A eficácia terapêutica e o perfil de segurança dos diversos BCC são determinados pela afinidade relativa para certos tecidos musculares (parede vascular, miocárdio). Das suas três classes, as mais utilizadas em pediatria são as di-hidropiridinas (amlodipina, nifedipina e nicardipina) pela sua selectividade para o músculo liso arteriolar. Têm provavelmente propriedades protectoras renais melhorando o fluxo sanguíneo renal e a taxa de filtração.

São fármacos de primeira linha até exclusão de HTA de causa renovascular. Têm posologia prolongada, com máximo de duas tomas ao dia. Os comprimidos de amlodipina podem ser reduzidos a pó. A nicardipina está disponível para uso endovenoso, constituindo uma alternativa ao nitroprussiato e ao labetalol no tratamento da emergência hipertensiva. Os BCC de acção rápida (nifedipina) devem ser evitados, sendo que no adulto foram descritas sequelas cardiovasculares e neurológicas.

Antagonistas β-adrenérgicos

Os β-bloqueantes são actualmente mais utilizados em associação, sobretudo se está presente LOA cardíaca (hipertrofia miocárdica), limitando a função contráctil do coração.

Diuréticos

Os diuréticos são úteis como terapêutica coadjuvante dos BCC e IECA, sobretudo em estados hipervolémicos. Embora se trate de fármacos eficazes, bem tolerados e de baixo custo, há que atender a certos condicionalismos: – há necessidade de monitorizar o potássio, magnésio e ácido úrico (com tiazidas e diuréticos de ansa); – comportam risco de nefrocalcinose (diuréticos de ansa), de dislipidémia e de hiperglicémia (com tiazidas).

Crise hipertensiva

Em complemento do que foi referido antes, cabe salientar que elevações rápidas e/ou muito marcadas da PA podem originar sintomas graves que desencadeiem insuficiência cardíaca ou produzam sintomas neurológicos traduzidos por obnubilação, cefaleias intensas, náuseas, vómitos, diminuição da acuidade visual, paralisia facial e, igualmente, convulsões por encefalopatia hipertensiva. Em crianças das primeiras idades e designadamente em lactentes, a primeira manifestação de crise hipertensiva pode ser complicação secundária cardíaca, renal, ou do SNC.

Não existe um valor absoluto de PA que defina HTA grave; alguns autores sugerem o uso do valor 20% superior à HTA de grau 2, sendo que a elevação súbita a valores mais baixos também poderá corresponder a situação grave e desencadear crise hipertensiva.

Na maioria dos casos a crise hipertensiva surge no contexto de HTA secundária.

O surgimento da crise hipertensiva, para além da terapêutica emergente e adequada em regime de internamento hospitalar em unidade de cuidados intensivos, obriga logicamente a exame neurológico com fundoscopia e a exames de imagem (TAC e/ou RM).

Ao ritmo de redução da PA (que não deve ser superior a 25% nas primeiras 6-8 horas) deve seguir-se uma diminuição gradual da mesma durante as 24-48 horas seguintes. São opção terapêutica os fármacos a administrar por via IV, em perfusão contínua, que constam do Quadro 12. O labetalol e o nitroprussiato de sódio são os mais utilizados. Após controlo da PA, procede-se à transição para fármaco por via oral.

QUADRO 12 – Fármacos mais utilizados na crise hipertensiva

FármacoClasseViaDose
Nitroprussiato sódioVasodilatador direto

Perfusão IV

0,5-8 μg/kg/min
Labetalolα e β-bloqueante0,25-3 mg/kg/h
NicardipinaBCC1-3 μg/kg/min
Clonidinaα-agonista central

Bolus IV

2-6 μg/kg/dose
FurosemidaDiurético de ansa0,5-5 mg/kg/dose
EnalaprilatIECA0,005-0,001 mg/kg/dose
CaptoprilIECA

Oral

0,1-0,2 mg/kg/dose
NifedipinaBCC0,25 mg/kg/dose
MinoxidilVasodilatador directo0,1-0,2 mg/kg/dose
IsradipinaBCC0,05-0,1 mg/kg/dose

Seguimento e prognóstico

De acordo com a causa da HTA, é aconselhado o seguimento periódico em consulta, provavelmente durante toda a vida.

Medição de PA no domicílio e MAPA complementam a vigilância e os acertos na abordagem terapêutica. A avaliação da PA em consulta com pesquisa de LOA deve ter a seguinte periodicidade:

  • Em cada 6 meses nos casos associados a hipertrofia ventricular esquerda ou de PA de difícil controlo;
  • Em cada 6-12 meses nos casos de diabetes e/ou de doença renal crónica;
  • Anual se em presença de retinopatia;
  • Em cada 1-2 anos se a HTA responder ao tratamento, na ausência de LOA.

Se se verificar controlo da PA, a medicação deve ser reduzida gradualmente.

Como nota final, importa salientar que em qualquer circunstância tem cabimento a continuação do reforço das medidas de estilo de vida saudável, o que diminuirá a probabilidade de recurso a fármacos.

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