TERAPÊUTICA TRANSFUSIONAL

Importância do problema

A terapêutica transfusional é determinante em clínica pediátrica, nomeadamente no tratamento de situações clínicas do foro hemato-oncológico e em vários procedimentos cirúrgicos.

Embora se trate de uma terapêutica indispensável na medicina moderna, a mesma não é isenta de riscos, relacionados designadamente com erros de identificação, colheita da amostra para testes pré-transfusionais, erros de administração do componente ou reacções transfusionais imprevisíveis.

Para minorar estes problemas, há que chamar a atenção para alguns pontos críticos do processo transfusional:

A. Prescrição

    • Implementar, sempre que possível, uma estratégia restritiva, ponderando criteriosamente a necessidade de prescrição de cada componente sanguíneo e do registo no processo clínico.
    • Considerar os riscos e benefícios desta terapêutica utilizando preferencialmente as terapêuticas alternativas mais seguras, se existirem.
    • Prescrever segundo as Normas de Orientação Clínica Nacionais sobre a temática a abordar, pressupondo que as mesmas são actualizadas e auditadas periodicamente.
    • Obter o consentimento esclarecido do doente e/ou da família.

B. Colheita da amostra para testes pré-transfusionais

    • Promover uma política restritiva em relação ao número e volume de amostras colhidas.
    • Só efectuar a colheita de amostra para testes pré-transfusionais após a decisão da prescrição.
    • Antes da colheita da amostra, proceder sempre à identificação do doente e da amostra (à cabeceira deste) e verificar a concordância da identificação com o pedido/requisição.

C. Testes pré-transfusionais e selecção do componente a transfundir

    • Executar os testes pré-transfusionais preconizados de acordo com a idade do doente.
    • Implementar uma estratégia restritiva do número de dadores por doente submetido a transfusão, subdividindo as unidades, utilizando a mesma unidade durante todo o seu período de validade, sempre que possível.

D. Administração do componente

    • Proceder à identificação do doente verificando a concordância com a identificação do componente, evitando erros de administração que podem ser fatais.
    • Monitorizar os parâmetros vitais durante a transfusão e efectuar os respectivos registos no processo clínico.

Nos últimos anos tem havido uma evolução muito significativa na prática transfusional graças a implementação de programas de Patient Blood Management, que contemplam a sempre actual redução do volume e número de amostras colhidas, a prática transfusional restritiva e a correcção atempada das alterações da hematopoiese e coagulação, a doentes que irão ser submetidos a procedimentos cirúrgicos potencialmente muito hemorrágicos.

Neste capítulo, para melhor compreensão da problemática da terapêutica transfusional, alguns aspectos dos procedimentos e das atitudes a tomar são acompanhados pela abordagem dos respectivos fundamentos na fisiopatologia e nas particularidades do grupo etário pediátrico. (ver adiante Glossário).

Particularidades fisiológicas influenciando a terapêutica transfusional

Anemia fisiológica da infância

Um recém-nascido (RN) de termo saudável apresenta valores médios de hemoglobina de 16,8 ± 1,6 g/dL. Se se tratar de RN pré-termo, os valores diminuem para 15,8 ± 2,4 g/dL.

Durante as primeiras semanas de vida verifica-se um declínio do teor da hemoglobina (Hb). Tal declínio fisiológico da hemoglobina (que pode atingir 9 g/dL e o nadir por volta das 10-12 semanas), é bem tolerado no RN de termo. Esta situação corresponde à chamada anemia fisiológica do lactente.

Na criança nascida prematuramente (antes das 37 semanas de gestação), este declínio ocorre mais cedo (4-6 semanas), é mais pronunciado e habitualmente é exacerbado pelas múltiplas flebotomias necessárias para a realização de estudos analíticos. Pode, assim verificar-se, anemia sintomática (por exemplo, episódios de apneia, taquicárdia, taquipneia, défice ou ausência de progressão ponderal), podendo implicar terapêutica transfusional.

Os factores que influenciam a anemia fisiológica da infância são:

  • Diminuição da síntese de eritropoietina, pois no RN saudável a PO2 do sangue arterial é elevada, permitindo uma melhor oxigenação dos tecidos;
  • Menor sobrevida dos eritrócitos fetais (60 a 90 dias no RN de termo e 35 a 50 dias no pré-termo vs 100 a 120 dias em crianças mais velhas e adultos);
  • Aumento rápido da volémia, acompanhando o crescimento do bebé.

Resposta fisiológica à hipovolémia

A volémia depende do peso corporal e da idade gestacional. Num RN de termo é cerca de 85 ml/kg e, no RN pré-termo, cerca de 100 ml/kg.

A hipovolémia é menos bem tolerada pelo RN comparativamente ao adulto, uma vez que após perdas > 10% da volémia, o débito cardíaco diminui sem que haja aumento compensatório da frequência cardíaca. Assim, a pressão arterial do RN é mantida a custo do aumento da resistência vascular periférica, com consequente diminuição da perfusão tecidual e acidose metabólica.

Imaturidade do sistema imunitário

Somente por volta dos 3 meses de idade as crianças começam a adquirir capacidade de sintetizar imunoglobulinas. Até aí, a imunidade humoral depende dos anticorpos que foram adquiridos a partir da mãe, por transferência placentária.

Por outro lado, se a mãe for portadora de anticorpos antieritrocitários ou antiplaquetários, estes estarão presentes em circulação durante este período, o que pode ter repercussão clinicamente significativa.

Assim, os testes pré-transfusionais realizados até aos 4 meses de idade são distintos dos praticados nos restantes grupos etários.

A imunidade celular também não se encontra devidamente desenvolvida, pelo que há maior susceptibilidade associada à transfusão, sobretudo após transfusões intra-uterinas ou em RN com quadros de imunodeficiência congénita.

Transfusão nos primeiros 4 meses de idade

Procedimentos pré-transfusionais

Os testes pré-transfusionais nos primeiros 4 meses de vida diferem dos realizados nos restantes grupos etários devido a:

  • Fraca expressão dos antigénios eritrocitários do sistema AB0, não se podendo garantir uma correcta determinação do grupo sanguíneo da criança;
  • Ausência de produção de anticorpos, nomeadamente as aglutininas anti-A ou anti-B, cuja determinação é necessária para uma correcta determinação do grupo AB0;
  • Presença de anticorpos de origem materna, com eventual significado clínico.

Assim, antes da primeira transfusão deve adoptar-se o seguinte procedimento:

  • Tipagem AB0 – apenas a prova globular (determinação dos antigénios do sistema AB0, expressos na superfície do eritrócito), não se efectuando a prova sérica (determinação das aglutininas);
  • Tipagem Rh e Kell. Nos recém-nascidos de mãe Rh (D) negativa, a determinação do antigénio D deve incluir a pesquisa de D variante e, se necessário, deve administrar-se imunoglobulina anti-D à mãe;
  • Teste de anti-globulina humana directo com soro poliespecífico – para identificar eventuais anticorpos de origem materna ligados aos eritrócitos do RN. Se positivo, deve efectuar-se eluição e testar o eluído contra um painel de células dos grupos 0, A e B. Se for identificado o anticorpo no soro materno, estes estudos não são necessários;
  • Pesquisa de anticorpos irregulares – utilizando preferencialmente o soro/plasma materno. Se a amostra da mãe não estiver disponível, deve efectuar-se com soro/plasma do RN;
  • Prova de compatibilidade – utilizando preferencialmente o soro/plasma materno e os eritrócitos do dador. Se a amostra da mãe não estiver disponível, deve efectuar-se com soro/plasma do RN.

Concentrado eritrocitário

O concentrado eritrocitário (CE) é o componente mais transfundido no período neonatal, sendo a indicação mais frequente a anemia sintomática.

A dose preconizada é de 10-15 mL/kg, sendo expectável um incremento de 2 a 3 g/dL no valor de Hb.

Os níveis de Hb abaixo dos quais se recomenda a transfusão de CE dependem não só da idade cronológica, como da idade gestacional e da situação cardiorrespiratória da criança.

Em geral, as transfusões são realizadas para manter um nível de hemoglobina e de hematócrito (Ht) que se pensa ser o mais benéfico para a situação clínica de cada doente, permitindo uma adequada oxigenação dos tecidos. É largamente reconhecido que a decisão de transfusão baseada nestes princípios é imprecisa; contudo, não existe ainda a possibilidade de fundamentar a decisão transfusional em critérios mais fisiológicos, como a determinação da massa eritrocitária circulante ou a capacidade de extracção de oxigénio pelos tecidos.

No Quadro 1 apresentam-se recomendações quanto à transfusão de CE em crianças com idade ≤ 4 meses.

QUADRO 1 – Critérios para transfusão de concentrado eritrocitário em crianças com idade ≤ 4 meses

1. Hb ≤ 7 g/dL ou Ht ≤ 20%, com reticulócitos < 4%, se assintomático.
2. Hb ≤ 9 g/dL ou Ht ≤ 30%, na presença de um dos seguintes:
    • Sob oxigenoterapia
    • Apneia/bradicárdia (> 10 episódios/24h ou 1 episódio necessitando de reanimação com máscara)
    • Taquicárdia (> 180 pulsações/por minuto ou taquipneia (> 80 ciclos respiratórios/minuto) mantidas durante 24 h
    • Cansaço excessivo ao mamar e diminuição marcada da actividade
    • Ausência de progressão ponderal durante 4 dias (≤ 10 g/dia, com suprimento energético adequado)
3. Hb ≤ 12 g/dL ou Ht ≤ 35%
    • Com assistência ventilatória de FiO2 ≥ 35% e/ou MAP ≥ 6-8 cm H2O
    • Sempre que haja sintomatologia atribuível à anemia
4. Hb ≤ 13 g/dL ou Ht ≤ 40%
    • Nas primeiras 24h de vida, especialmente na anemia por perdas perinatais
    • Na anemia por perda aguda ou iatrogénica (> 10% de volémia em < 72h)
    • Nas cardiopatias congénitas cianóticas
    • Com assistência ventilatória de FiO2 ≥ 50% e/ou MAP ≥ 8 cm H2O

Após ter sido tomada a decisão de transfundir, é importante dispor de um produto de boa qualidade e de baixo risco, pelo que os CE administrados devem ser desleucocitados (conteúdo de leucócitos < 1 milhão de elementos por unidade), e provenientes de dadores regulares.

No período neonatal devem ser desenvolvidas estratégias que minorem as perdas sanguíneas em flebotomias, com meticuloso controlo e ponderação de todas as colheitas efectuadas. As flebotomias contribuem para agravar a anemia e estão associadas a maiores necessidades transfusionais.

Para minorar os riscos tranfusionais, nas transfusões de pequeno volume, deverão ser utilizadas estratégias que reduzam a exposição a dadores por transfusão, subdividindo as unidades em múltiplas fracções, e utilizando o componente durante todo o seu período de viabilidade. Deste modo, quando se selecciona um CE para este grupo etário dever-se-á escolher um colhido recentemente de forma a poder ser utilizado durante os 42 dias de viabilidade.

Quando há necessidade de transfusão de grandes volumes, há risco de hipercaliémia e hipocalcémia; em tal cicunstância recomenda-se a transfusão de concentrados eritrocitários colhidos há menos de 5 dias, com monitorização do potássio e cálcio séricos. (Duração da transfusão: 60-120 minutos, com vigilância cardiovascular, nunca > 6 horas).

As particularidades da transfusão intra-uterina e exsanguinotransfusão neonatal são abordadas na alínea sobre “situações especiais”.

Concentrado plaquetário

O valor da contagem plaquetária do RN é semelhante ao do adulto, com valores de referência que oscilam entre 150 a 450 x 109/L.

A trombocitopénia é uma das alterações hematológicas mais comuns no período neonatal, afectando cerca de 20% dos RN internados em cuidados intensivos. Múltiplos mecanismos podem estar envolvidos na sua etiopatogénese, sendo alguns dos principais: acelerada destruição de plaquetas, a deficiente produção de trombopoietina, o efeito de diluição secundário à transfusão maciça, ou exsanguinotransfusão (ET). (ver Capítulo sobre Trombocitopénia e Trombocitose)

O Quadro 2 resume as principais situações em que a transfusão de plaquetas está indicada.

QUADRO 2 – Critérios para transfusão de plaquetas

1. Contagem plaquetária ≤ 30 x 109/L em RN assintomático
2. Contagem plaquetária ≤ 10 x 109/L após o período neonatal, se assintomático

3. Contagem plaquetária ≤ 50 x 109/L na presença de um dos seguintes factores:

    • Hemorragia activa
    • Antes de procedimentos invasivos
4. Contagem plaquetária ≤ 100 x 109/L, antes do início de ECMO

5. Independentemente do nº plaquetário, na presença de um dos seguintes factores:

    • Hemorragia activa e alterações qualitativas das plaquetas
    • Hemorragia activa inexplicável num doente sob bypass cardiopulmonar ou submetido a ECMO

O concentrado plaquetário deve ser administrado na dose de 5-10 mL/Kg (~1 U/5 kg de peso). Na ausência de destruição periférica aumentada ou perdas hemáticas mantidas, admite-se um aumento na contagem plaquetária até 50 x 109/L.

É também aconselhável que as plaquetas a transfundir sejam do mesmo grupo do do doente no sistema AB0, para evitar eventual hemólise provocada pela exposição a aglutininas anti-A e anti-B presentes no componente. Actualmente, contudo, na maioria dos casos os componentes produzidos não são suspensos em plasma do dador, mas sim numa solução aditiva própria, pelo que a quantidade de anticorpos presentes é reduzida.

Como referido anteriormente, é importantíssimo minorar a exposição a múltiplos dadores pelo que, preferencialmente, as crianças deverão ser transfundidas com concentrados unitários de plaquetas (CUP). Sempre que necessário os CUP, poderão igualmente ser subdivididos em pequenas porções e utilizados durante todo o seu período de conservação. (Duração da transfusão: 20-30 minutos, sem alteração cardiovascular, nunca > 4 horas).

Plasma fresco congelado

A proporção de factores da coagulação que atravessa a placenta durante a gravidez não é suficiente para manter a hemostase após o parto; tais factores serão progressivamente sintetizados pelo RN no período pós-natal.

Habitualmente, durante a primeira semana de vida, os níveis fisiológicos dos factores de coagulação vitamina-K dependentes (II, VII, IX e X) e da via de contacto (XI, XII, pré-calicreína e cininogénio de baixo peso molecular) são baixos, o que explica que o tempo de protrombina (TP) e tempo parcial de tromboplastina activada (TTPa) estejam prolongados comparativamente aos de crianças mais velhas e adultos.

Por outro lado, os inibidores naturais da coagulação (antitrombina III, proteínas C e S) também apresentam níveis baixos. Estes dois sistemas equilibram-se e, por isso, hemorragias espontâneas e tromboses são raras no recém-nascido saudável.

Nesta fase, qualquer perturbação neste sistema, pode levar à ocorrência de hemorragias significativas.

O Quadro 3 mostra as idades em que determinados testes de coagulação mais comuns evidenciam valores semelhantes aos do adulto.

QUADRO 3 – Idades em que os testes de coagulação evidenciam valores semelhantes aos do adulto

Teste laboratorialIdade em que se atingem valores semelhantes aos do adulto
TTPa16 anos
TP16 anos
INR16 anos
TT5 anos
PFA-1001 mês

Nos países desenvolvidos, a introdução da administração profiláctica de vitamina K intramuscular a todos os RN após o parto levou a que a incidência de doença hemorrágica do recém-nascido diminuísse drasticamente, passando a ser uma raridade.

O plasma fresco congelado (PFC) pode ser utilizado para substituir os factores da coagulação, particularmente quando estão envolvidas deficiências múltiplas.

O Quadro 4 refere as indicações para transfusão de PFC no período neonatal, que são semelhantes às preconizadas em crianças mais velhas e adultos.

QUADRO 4 – Indicações para transfusão de PFC

1. Reposição de deficiência congénita de um factor procoagulante ou anticoagulante, quando não existam disponíveis concentrados específicos
2. Reposição de deficiência isolada de factor V
3. Hemorragia activa devida a deficiência múltipla de factores, incluindo coagulação intravascular disseminada (CIVD), trauma, transfusão maciça ou cirurgia de bypass cardiovascular

Salienta-se, pois, que a transfusão de PFC não deve ser utilizada para correcção de alterações laboratoriais sem expressão clínica, reposição ou expansão de volume, reposição de proteínas ou suporte nutricional. Após administração da dose recomendada (10-20 mL/kg), obtém-se um aumento da actividade de cada factor na ordem de 15 a 20%, excepto se na presença de CIVD.

O plasma deve ser AB0 compatível e livre de anticorpos clinicamente significativos. Pela ausência de aglutininas anti-A ou anti-B, o plasma do grupo AB é muitas vezes o utilizado, neste grupo etário. (Duração da transfusão: 20-30 minutos, nunca > 2 horas).

Transfusão na idade superior a 4 meses, incluindo o adolescente

Os testes pré-transfusionais recomendados em crianças com mais de 4 meses de idade são idênticos aos recomendados para o doente adulto: grupagem AB0, Rh e Kell (prova globular e prova sérica), pesquisa de anticorpos irregulares e provas de compatibilidade. Com validade de 72 horas, os mesmos devem ser efectuados antes de qualquer transfusão.

Concentrado eritrocitário

As indicações transfusionais de CE na criança com mais de 4 meses são muito semelhantes às do adulto, devendo no entanto ter-se em consideração determinadas especificidades: idade, volémia, capacidade de tolerância e de recuperação da anemia e etiologia da mesma.

Tal como no recém-nascido e lactente, o CE é o componente mais transfundido. É utilizado para aumentar a capacidade de transporte de oxigénio e manter uma adequada oxigenação dos tecidos, prevenindo a hipóxia.

Como referido anteriormente, a partir dos 3 meses começam a ser sintetizadas imunoglobulinas, pelo que as crianças deste grupo etário já apresentam anticorpos naturais do sistema AB0 e têm capacidade imunológica para formar alo-anticorpos anticorpos anti-eritrocitários, ou outros, dependendo do componente transfundido. Os glóbulos vermelhos transfundidos devem ser AB0 e Rh idênticos ou compatíveis, evitando o risco de reacções transfusionais hemolíticas agudas.

Na maioria dos casos, não é necessário utilizar CE com menos de 7 dias.

Contudo, existem situações clínicas especiais em que tal medida é essencial: na cirurgia cardíaca e nos doentes em regime de transfusões crónicas, de forma a que as células transfundidas, com maior durabilidade, viabilizem maior intervalo transfusional.

Políticas transfusionais restritivas têm permitido diminuir a utilização de CE, sem aumento da mortalidade ou morbilidade. Em crianças que não estejam em hemorragia activa ou sob regime de transfusões crónicas, a administração de uma unidade de CE, em doentes com mais de 25-30 kg, ou 10 mL/Kg nos de peso inferior, é suficiente para aumentar a Hb em cerca de +2 g/dL e aliviar a sintomatologia.

Neste grupo etário, verifica-se uma maior capacidade fisiológica de compensação da anemia do que nos adultos, pelo que, de uma forma geral, existe tolerância do organismo para níveis de Hb mais baixos.

As indicações para transfusão de concentrado eritrocitário em crianças com idade > 4 meses encontram-se discriminadas no Quadro 5. Dever-se-á ter em conta, não apenas o valor da Hb, mas também a presença de:

  • Sinais e sintomas de anemia e a capacidade funcional do doente;
  • Presença ou ausência de doença cardiorrespiratória e do sistema nervoso central;
  • Etiologia da doença de base e ineficácia da terapêutica médica anterior;
  • Terapêuticas alternativas, por exemplo ferro e eritropoietina.

Tal como no lactente com idade < 4 meses, devem ser desenvolvidas estratégias que minorem as perdas sanguíneas em flebotomias.

QUADRO 5 – Critérios para transfusão de concentrado eritrocitário em crianças com idade > 4 meses e adolescente

1. Hb ≤ 7 g/Dl ou Ht ≤ 20%, se assintomático
2. Hb ≤ 9 g/dL ou Ht ≤ 30%, na presença de um dos factores seguintes:
    • Sempre que haja sintomatologia atribuível à anemia
    • Antes de procedimentos invasivos
    • Sob quimio ou radioterapia
3. Hb ≤ 13 g/dL ou Ht ≤ 40%, na presença de um dos factores seguintes:
    • Cardiopatias congénitas cianóticas
    • Doença pulmonar grave
    • Sob ECMO
4. Hemorragia aguda > 15% da volémia sanguínea total
5. Anemia de células falciformes, na presença de um dos factores seguintes:
    • Acidente vascular cerebral
    • Síndroma torácica aguda
    • Sequestro esplénico
    • Priapismo recorrente
    • Crise aplástica

Na anemia aguda, contrariamente ao definido nos anos 90, em que a utilização agressiva de cristalóides e CE era o tratamento de base, actualmente recomenda-se a utilização precoce de CE, plasma e plaquetas, diminuindo o recurso aos cristalóides e dando ênfase à correcção da tríade letal de acidose, hipotermia e coagulopatia.

Em cirurgia pediátrica, as necessidades de CE são determinadas com base no “consumo standard” e “consumo máximo de CE” por procedimento cirúrgico. Estes últimos critérios são indicadores muito informativos sobre a necessidade de utilização de CE num determinado procedimento cirúrgico, evitando gastos desnecessários em reservas de componentes sanguíneos, bem como em reagentes e recursos humanos.

As maiores perdas ocorrem na cirurgia craniofacial, escoliose e cirurgia cardíaca. Os sinais e sintomas relacionados com anemia podem ser mais difíceis de avaliar em cirurgia, realçando-se que perdas superiores a 15% da volémia são indicadoras da necessidade transfusional.

A previsão das necessidades transfusionais pode ainda fazer-se numa base individual, calculando a perda máxima de sangue (PMS) tolerada, através da seguinte fórmula:

PMS = V (Ht i – Ht min)
                     Ht m

V = volémia
Ht i = hematócrito inicial
Ht min = hematócrito mínimo que o doente pode tolerar
Ht m = hematócrito médio

Sendo a anemia pré-operatória associada a maior necessidade transfusional, a realização de transfusão constitui um factor preditivo do aumento do tempo de internamento hospitalar, da maior susceptibilidade a infeccões, e de mortalidade mais elevada.

Assim, os doentes candidatos a cirurgia programada devem ser englobados em programas de gestão da administração de sangue e derivados (Patient Blood Management), conceito que consiste em reduzir o recurso à terapêutica transfusional, através da rendibilização da hematopoiese e da hemostase, tentando, a par, minorar as perdas. Tal estratégia concretiza-se com: – o uso de suplementos de ferro, oral ou endovenoso (EV), com ou sem estimulantes da eritropoiese; – o recurso a técnicas cirúrgicas e anestésicas que comportem menos perdas; e – a utilização de fármacos antifibrinolíticos, como o ácido tranexâmico.

Na anemia crónica, os efeitos metabólicos repercutem-se na afinidade da hemoglobina para o oxigénio, com implicações na sua libertação aos tecidos periféricos. Em tais circunstâncias, as crianças podem tolerar níveis muito baixos de Hb. Em tais circunstâncias, a correcção da anemia deve ser lenta, reavaliando o doente após cada unidade administrada.

Antes de iniciar um regime de transfusões regulares, os pacientes devem ser vacinados contra a hepatite B, determinando igualmente fenótipo eritrocitário detalhado, no sentido de evitar eventual alo-imunização eritrocitária na sequência de transfusões subsequentes.

A abordagem do problema da transfusão crónica nos doentes com doença de células falciformes e β-talassémia major será feita adiante.

No doente cardíaco, o compromisso na libertação de oxigénio aos órgãos críticos pode ocorrer antes de haver compensação fisiológica. Assim, nestes doentes, com limitada reserva fisiológica, poderá ser necessário manter o nível de Hb mais elevado.

Em oncologia, a anemia é frequente e de etiologia multifactorial: eritropoiese ineficaz, infiltração medular, défice de eritropoietina e vitaminas, assim como libertação de citocinas, entre outros factores. Apesar de não estar provado cientificamente qual o nível óptimo de Hb para estes doentes, com a transfusão restritiva, mantendo valores de 7-8 g/dL, têm sido obtidos resultados equivalentes aos que se obtêm com a prática liberal. As terapêuticas alternativas, como o ferro endovenoso e estimulantes da eritropoiese, devem ser consideradas.

A anemia hemolítica autoimune, definida pela destruição precoce dos glóbulos vermelhos, associada à presença de autoanticorpos, é rara na criança e difere da do adulto. As diferenças quanto à especificidade dos autoanticorpos envolvidos constituem os factores responsáveis pela grande variabilidade clínica. De salientar, a propósito, que os doentes com anemia hemolítica por autoanticorpos “quentes” poderão não ter hemólise grave.

O risco transfusional neste contexto é elevado pelas dificuldades nos testes pré-transfusionais. Os autoanticorpos reagem com todas as células-reagentes, tornando as provas de compatibilidade sempre positivas e, por vezes, os padrões de aglutinação são semelhantes aos verificados nos casos caracterizados pela presença de aloanticorpos.

Assim, perante a eventualidade de se proceder a transfusão com CE, a destrinça das duas situações é fundamental antes de seleccionar um CE para transfundir. Como se depreende, havendo destruição aumentada de eritrócitos a transfundir, a sobrevida dos mesmos é muito inferior.

Em suma, a transfusão nestes doentes deve ser restritiva e cingir-se a situações extremas e absolutamente indispensáveis, após estudos imuno-hematológicos adequados, os quais são difíceis e morosos.

Concentrado plaquetário

A decisão de transfundir plaquetas, controversa, depende da causa da hemorragia, da situação clínica do doente, assim como do número e da função das plaquetas circulantes.

Havendo hemorragia, a verificação de alterações qualitativas das plaquetas (hereditárias ou adquiridas) justificam a transfusão independentemente do número.

Na sua maioria, as transfusões de plaquetas são administradas a doentes do foro hemato-oncológico, e submetidos a cirurgia cardíaca.

A administração profiláctica de concentrados plaquetários deve ser bem ponderada devido ao risco de aloimunização e eventual ausência de resposta a transfusões ulteriores.

As indicações para a transfusão de plaquetas, bem como a dose recomendada para a criança e adolescente, são idênticas às do adulto (Quadro 2).

Tal como referido anteriormente, as plaquetas devem ser AB0 compatíveis com o receptor, e preferencialmente provenientes de um único dador, por colheita de aférese.

Na presença de aloimunização, devem ser utilizadas plaquetas de dador único, compatíveis no sistema HLA.

A trombocitopénia de etiologia imune não deve ser tratada com transfusões, excepto em caso de hemorragia intracraniana ou outras situações de risco de vida.

Na púrpura trombocitopénica trombótica e na trombocitopénia induzida pela heparina, poderá ocorrer a formação de trombos plaquetários ou outras complicações trombóticas após as transfusões de plaquetas, pelo que estas não estão indicadas.

Plasma fresco congelado

O plasma fresco pode ser obtido através de uma dádiva de sangue total ou por aférese.

Em Portugal, estão disponíveis três tipos de plasma, cujas propriedades são equivalentes:

  • Plasma de quarentena – proveniente de um único dador com, pelo menos, duas dádivas, submetidas a controlos víricos. A primeira dádiva só é libertada após resultados negativos em ambas as colheitas;
  • Plasma fresco com redução patogénica – resultante da junção de 2-3 dádivas, submetidas a redução patogénica com amotosaleno e a luz ultra-violeta; tal redução promove a destruição de todas as cadeias de ADN existentes, independentemente de se tratar de leucócitos, vírus ou fungos;
  • Plasma solvente-detergente – produzido industrialmente, por junção de múltiplas dádivas (600 a 2000), filtradas e tratadas com tri(n-butyl) fosfato e octoxinol, de forma a eliminar bactérias, vírus e priões.

Uma vez que o plasma contém níveis fisiológicos dos factores lábeis e estáveis da coagulação, recomenda-se a sua utilização nas deficiências isoladas ou múltiplas da coagulação para as quais não exista ainda factor específico (Quadro 4).

As principais indicações para a transfusão de plasma são: plasmaféreses em doentes com PTT/SHU e na reversão de coagulopatias. Na transfusão maciça (transfusão superior a uma volémia em menos de 24 horas) é necessário administrar plasma fresco congelado, não só devido ao consumo de factores motivado pelas perdas hemorrágicas, mas também, pelo próprio efeito de diluição provocado pela transfusão.

As transfusões profilácticas de plasma, antes da realização de procedimentos invasivos, em doentes sem hemorragia activa, não está documentada.

Salienta-se, a propósito, que as provas científicas legitimando a realização de transfusões de plasma são muito limitadas.

Situações particulares

Transfusão intrauterina

As transfusões intrauterinas (TIU) são procedimentos invasivos cujo risco associado de morte fetal, em geral, cerca de 1 a 3%, pode atingir 20% em situações de hidropisia fetal.

Pelas dificuldades técnicas e riscos envolvidos, só devem ser realizadas entre as 16 e as 35 semanas de gestação, em centros especializados e com experiência na sua execução.

Após a colheita de sangue fetal, este deve ser imediatamente avaliado, com determinação do valor de hemoglobina e hematócrito fetal ou da contagem plaquetária, de acordo com a situação específica. Somente depois da obtenção destes resultados, a decisão de transfundir deverá ser tomada.

Aos pacientes que tenham sido submetidos a TIU devem ser administrados componentes sanguíneos irradiados até aos 6 meses de vida.

A TIU de concentrado eritrocitário é indicada em situações de anemia fetal, cuja causa mais frequente é a doença hemolítica perinatal. Os anticorpos mais frequentemente envolvidos são o anti-D, -c ou –Kell.

Com a TIU, o objectivo é atingir valores de hematócrito de 45%. Em situações graves, poderá ser necessário proceder a TIU recorrentes, a cada 2-3 semanas.

O volume a transfundir é calculado de acordo com a seguinte fórmula:

Ht desejado – Ht fetal x volémia da unidade feto-placentária (150 mL/kg)
Ht da Unidade de CE

A transfusão deverá ser administrada a um ritmo lento (cerca de 5 mL/minuto), ainda mais reduzido na presença de hidropisia fetal (2-3 mL/minuto).

Para garantir a disponibilidade de componentes adequados, o serviço de imuno-hemoterapia deve ser contactado, pelo menos 24 horas antes da realização da TIU. As unidades de CE para TIU devem cumprir os seguintes requisitos:

  • Colheita recente, menos de 5 dias;
  • Grupo 0 ou AB0 -idêntico ao do feto;
  • Fenótipo RhD e Kell negativo, e negativo para outros antigénios em causa;
  • Compatível com o soro materno;
  • Hemoglobina S negativo;
  • Desleucocitado;
  • Irradiado nas 24 horas anteriores à administração.

Antes do parto, é igualmente importante garantir a existência de concentrados eritrocitários antigénio-negativos, caso a transfusão neonatal seja necessária.

A anemia pode persistir nas primeiras semanas de vida, devido à permanência de anticorpos maternos em circulação conduzindo a hemólise.

Por outro lado, a própria TIU pode inibir transitoriamente a hematopoiese neonatal, sobretudo nos casos em que foram administradas várias transfusões. Nesta situação, a anemia hipoproliferativa poderá prolongar-se até às 8-12 semanas de vida.

A TIU de plaquetas está indicada em algumas situações de trombocitopénia aloimune fetal/neonatal em que o risco de hemorragia é elevado.

Tal como na aloimunização eritrocitária, na mãe desenvolvem-se anticorpos contra antigénios presentes nas plaquetas do feto. O antigénio mais frequentemente envolvido é o HPA-1A, responsável por cerca de 90% dos casos.

A decisão terapêutica depende da evolução das gravidezes anteriores e, nomeadamente, do valor da contagem plaquetária do feto ou RN, e da ocorrência de hemorragia fetal/neonatal.

Nalgumas situações, a terapêutica materna com corticoesteróides e/ou imunoglobulina endovenosa pode ser suficiente para evitar a necessidade de TIU.

As plaquetas para TIU devem ser:

  • HPA-compatíveis com o soro materno, logo, negativas para o antigénio em causa;
  • Irradiadas nas 24 horas anteriores à administração.

Mais uma vez, o serviço de imuno-hemoterapia deve ser contactado pelo menos 24 horas antes da realização da TIU para obtenção dos componentes necessários.

Perante um recém-nascido com diagnóstico suspeito ou comprovado de trombocitopénia aloimune fetal/neonatal/FNAIT, deve proceder-se a exames necessários para estabelecer o diagnóstico e iniciar a terapêutica logo que possível: imunoglobulina endovenosa e transfusão de concentrado plaquetário nas seguintes situações:

  • Hemorragia activa;
  • Contagem plaquetária < 30 x 109/L em RN de termo sem sinais de hemorragia ou outros factores de risco;
  • Contagem plaquetária < 50 x 109/L, em RN pré-termo ou com outros factores de risco.

O objectivo das transfusões é manter um número plaquetário estável nas primeiras 72-96 horas de vida, uma vez que é neste período que há maior risco de hemorragia intracraniana.

As plaquetas devem ser HPA-compatíveis com o RN; contudo, se não estiverem disponíveis em tempo útil, poderão ser utilizados os concentrados plaquetários existentes no banco de sangue.

Na maioria dos casos, o número plaquetário retorna a valores normais entre a primeira e a sexta semanas de vida.

Exsanguinotransfusão

A exsanguinotransfusão (ET) é um procedimento através do qual o volume sanguíneo circulante é removido e substituído por igual volume de sangue de um dador.

A sua principal indicação em neonatalogia é o tratamento de situações de hiperbilirrubinémia grave, não respondentes à fototerapia.

Tal procedimento permite diminuir os níveis excessivos de bilirrubina não conjugada susceptível de atravessar a barreira hemato-encefálica e provocar lesões no SNC. Remove também eventuais anticorpos maternos ainda em circulação e os eritrócitos aos quais esses anticorpos se podem ligar, travando assim o processo hemolítico.

Habitualmente, são processadas duas volémias sanguíneas (160 a 200 mL/kg, de acordo com a idade gestacional), o que permite remover até 90% dos eritrócitos neonatais e 50% da bilirrubina circulante.

Este procedimento deve ser realizado em unidades de cuidados intensivos dotadas de meios técnicos adequados e duma equipa multidisciplinar com experiência na sua execução.

O serviço de imuno-hemoterapia deve ser contactado o mais precocemente possível antes da realização da ET para garantir a disponibilidade de componentes adequados.

Os CE para ET devem obedecer aos seguintes critérios:

  • Colheita com menos de 5 dias;
  • Grupo 0 ou AB0-idêntico ao do RN;
  • Fenótipo negativo para os antigénios em causa;
  • Compatível com o soro materno;
  • Hemoglobina S negativo;
  • Desleucocitado;
  • Irradiado nas 24 horas anteriores à administração.

O CE deve ser espoliado da solução aditiva e reconstituído com plasma fresco congelado (de quarentena ou inactivado), do grupo AB, de forma a que o produto final atinja um hematócrito entre 45-60%. Deve ser administrado nas 24 horas após a reconstituição.

Terapêutica transfusional na doença de células falciformes (DCF)

A terapêutica transfusional poderá ser necessária numa situação de urgência/emergência, ou para prevenção de complicações a curto e a longo prazo, de forma intermitente ou crónica.

Podem ser utilizadas duas modalidades transfusionais:

  • Transfusão simples de CE;
  • Eritrocitaferese (ET)/transfusão-permuta manual (TPM).

A ET, efectuada por métodos automáticos, requer que grandes volumes de CE (1 ou 1,5 volémia do doente) sejam administrados; o objectivo do procedimento é remover os eritrócitos do doente, permitindo uma redução rápida da Hb S.

Em serviços que não disponham de separadores celulares, poderá ser efectuada a TPM. Este método envolve a flebotomia de 5-10 mL/Kg (dependendo da Hb de base do doente e da sua tolerância à anemia) imediatamente antes da transfusão de CE.

Antes de iniciar a terapêutica transfusional, deverá proceder-se aos seguintes estudos:

  • Fenotipagem eritrocitária detalhada;
  • Marcadores víricos: VHB, VHC, VIH 1 e 2;
  • Calendário de vacinação segundo o PNV;
  • Confirmar administração de vacina anti-hepatite B.

O CE a administrar deve cumprir os seguintes critérios:

  • Colheita há menos de 7 dias;
  • Compatíveis nos sistemas AB0, Rh (C c CW D E e), Kell e Fyª;
  • Na presença de aloanticorpos, administrar CE sem os respectivos antigénios;
  • Hemoglobina S negativo;

A terapêutica com CE, um dos pilares do tratamento desta patologia, tem contribuído largamente para aumentar a longevidade dos doentes. Contudo, as suas indicações devem ser criteriosas dado o risco considerável de iatrogenia (Quadro 6). A anemia basal não é geralmente indicação para transfusão, a não ser que se verifique Hb de 5 g/dL ou < 5 g/dL.

QUADRO 6 – Indicações para transfusão de CE em doentes com DCF

A. Indicações para transfusãoMétodo transfusional
Acidente vascular isquémico agudo
Prevenção primária de trombose
Prevenção secundária de trombose
Síndroma torácica aguda
Sequestração esplénica
Sequestração esplénica, recorrência
Pré-operatório (se necessário anestesia geral)
Crise aplásica transitória
Falência orgânica aguda multissistémica
Sequestração hepática aguda
Colestase intra-hepática aguda
Complicações drepanocíticas ou obstétricas na gravidez
ET, se possível
Transfusão crónica simples ou ETa
Transfusão crónica simples ou ETa
Transfusão simples ou ETa
Transfusão simples
Transfusão simples crónica (antes da esplenectomia)b
Transfusão simples
Transfusão simples
Transfusão simples ou ETc
Transfusão simples ou ETc
Transfusão simples ou ETc
Transfusão simples ou ETc
B. Indicações controversas para transfusão 
Síndroma torácica aguda, recorrente
Episódios vasoclusivos recorrentes
Hipertensão pulmonar
Transfusão crónica simples ou ETc
Transfusão crónica simples ou ETc
Transfusão crónica simples ou ETc
C. Transfusão habitualmente não indicada 
Episódio vasoclusivo não complicado
Priapismo
Gravidez não complicada
Úlceras dos membros inferiores
Necrose avascular sem necessidade de intervenção cirúrgica
Não aplicável (NA)
NA
NA
NA
NA
    1. A ET é preferível em doentes cujo estado clínico está em rápido declínio, implicando necessidade emergente de diminuição do teor da Hb S, ou quando há perigo de hiperviscosidade pós-transfusional devido a uma hemoglobina pré-transfusional elevada (ex. Hb >9 g/dL).
    2. A transfusão crónica pode ser usada até se poder realizar com mais segurança a esplenectomia. Crianças com < 2 anos têm maior risco de doença invasiva por pneumococo.
    3. A exsanguinotransfusão é preferível nos pacientes com hemossiderose.

Na síndroma vasoclusiva/SVO não complicada as transfusões não estão indicadas, excepto se se verificar anemia sintomática, baixo número de reticulócitos (<100 x 109/L) ou descida de Hb ultrapassando -2 g/dL em relação ao valor habitual.

Na síndroma torácica aguda/STA, a segunda causa mais frequente de hospitalização destes doentes, a terapêutica transfusional é sempre necessária. As transfusões simples devem ser consideradas em doentes com STA, hipoxemia e exacerbação da anemia. A ET poderá ficar reservada para doentes que não estejam gravemente anémicos, mas que apresentem declínio progressivo da função respiratória.

Na crise aplástica, cuja etiologia mais comum é a infecção por parvovírus B19, ocorre supressão temporária da actividade medular. A necessidade de transfusões depende da gravidade da anemia, reticulocitopénia e do estado clínico do doente. Deverão ser administradas transfusões simples de CE, em pequenos volumes, para prevenir a insuficiência cardíaca congestiva.

Na sequestração esplénica aguda, a transfusão de CE constitui uma emergência para corrigir a anemia grave. Deverão ser administrados pequenos volumes, com monitorização do tamanho do baço e do sistema cardiovascular, para prevenir a hiperviscosidade depois de a sequestração esplénica regredir.

A sequestração hepática aguda manifesta-se como um incremento das dimensões do fígado, anemia, hiperbilirrubinémia e elevação das transaminases. Trata-se dum quadro clínico muito grave em que as transfuões simples ou a ET são contributos indispensáveis na sua resolução.

A terapêutica transfusional no período perioperatório reduz a ocorrência de complicações. Estudos recentes têm demonstrado que a transfusão simples de CE, para obter uma Hb pré-operatória de 10 g/dL, é equivalente à realização de ET para obter uma HbS ≤ 30%.

As complicações neurológicas, nomeadamente AVC, continuam a ser a principal causa de morbilidade a longo prazo, sendo a terapêutica transfusional procedimento considerado obrigatório. A ET na apresentação aguda é o método transfusional de eleição.

Em 60-90% dos casos há eventos recorrentes, pelo que se deverá iniciar regime de transfusões crónicas, para manter a percentagem de HbS ≤ 30%. Esta terapêutica muitas vezes deve ser mantida indefinidamente porque a sua interrupção tem levado a recorrências do AVC. Assim, este regime parece ser a melhor opção terapêutica na prevenção do AVC recorrente. Os doentes politransfundidos devem ser submetidos a terapêutica quelante para reduzir a sobrecarga secundária de ferro.

O priapismo pode afectar jovens e adultos. O benefício da terapêutica transfusional, quer no priapismo agudo, quer na prevenção da recorrência, é controverso, não estando provada a sua eficácia.

As doentes com DCF apresentam maior risco de complicações obstétricas, nomeadamente morte fetal e materna. Após as 28 semanas de gestação, podem efectuar-se transfusões profilácticas, para obter níveis de Hb de 10-11 g/dL e Hb S ≤ 35%. A terapêutica transfusional está também indicada na grávida com complicações médicas agudas.

Terapêutica transfusional na β-talassémia major

As talassémias são um grupo heterogéneo de doenças caracterizadas pela ausência ou redução de síntese de uma ou mais cadeias de globina.

As talassémias que necessitam de suporte transfusional regular são as β-talassémias major, em que há ausência total ou síntese reduzida de cadeias β.

 Antes do início da terapêutica transfusional dever-se-á proceder, como foi descrito anteriormente a propósito da doença de células falciformes, sem que no entanto, a avaliação da compatibilidade no sistema Duffy (Fy) não seja exigida. O CE a administrar deve também obedecer aos critérios aí referidos.

Na situação em epígrafe preconiza-se que os doentes sejam transfundidos regularmente, mantendo uma Hb pré-transfusional média de 9-10 g/dL, não devendo a Hb pós-transfusional ser superior a 15 g/dL pelo risco de hiperviscosidade e acidentes vasculares cerebrais; quanto à Hb média, o valor recomendado situa-se em torno de 12 g/dL.

Este suporte transfusional permite um crescimento e desenvolvimento dentro da normalidade, mantendo uma adequada supressão da actividade medular e minorando a acumulação de ferro. Semestralmente, deve ser avaliada a eficácia transfusional.

Nos doentes sem patologia cardíaca, o volume a administrar deve ser de 10-15 mL/kg, em cerca de 2 horas (4-5 mL/kg/hora).

Em doentes cardíacos, dever-se-á transfundir 5 mL/Kg, não excedendo 2 ml/kg/hora; pode, se necessário, reduzir-se o intervalo transfusional.

Se houver necessidade de maiores volumes, até 20 mL/kg, a administração deve ser mais lenta, não utrapassando as 4 horas.

A hemossiderose é a complicação mais temível nesta patologia, sendo que o seu controlo é tão importante quanto o da anemia. Para cada doente, deve ser registado o número e volume das unidades transfundidas, bem como o Ht das mesmas, de forma a que seja possível calcular o volume total de CE e a quantidade de ferro administrado. Estes são parâmetros muito importantes no controlo da terapêutica quelante do ferro, a que todos estes doentes têm de ser submetidos de forma regular.

Irradiação de componentes sanguíneos

A irradiação dos componentes sanguíneos é a metodologia mais adequada para inactivar os linfócitos residuais, e para a prevenção da doença de enxerto contra hospedeiro associada à transfusão. Embora os primeiros casos tenham sido descritos em doentes imunossuprimidos, sabe-se actualmente que doentes imunocompetentes podem também desenvolver tal doença, particularmente se receberem sangue de dadores HLA haploidênticos não relacionados ou de familiares.

A irradiação gama é a metodologia mais comummente utilizada, embora a irradiação X também possa ser aceite. Actualmente, estão disponíveis novos métodos de inactivação patogénica que reduzem a viabilidade dos linfócitos T e têm sido usados na substituição da irradiação, particularmente, em concentrados plaquetários.

As indicações sucintas para a irradiação de componentes sanguíneos são:

  • Doentes submetidos a transplantes de células progenitoras hematopoiéticas, autólogos ou homólogos;
  • Anemia aplástica;
  • Doença de Hodgkin;
  • Doentes tratados com análogos das purinas (fludarabina, cladribina e deoxucoforuycina), globulina anti-timocítica ou alentuzumab (anti-CD 52);
  • Síndromas de imunodeficiência congénita nomeadamente nas síndromas de Di George, Wiskott-Aldrich e Ataxia- telangiectasia, e em todas as crianças com o diagnóstico ou suspeita de imunodeficiência celular ou combinada;
  • RN com menos de 30 semanas de gestação ou menos de 1200 g;
  • Transfusões intra-uterinas e RN submetidos a transfusões intrauterinas;
  • Transfusões provenientes de familiares de 1º e 2º grau, mesmo que o doente seja imunocompetente;
  • Transfusões HLA-idênticas;
  • Utilização de ECMO (técnica de oxigenação extracorporal por membrana).

Efeitos adversos da transfusão e procedimentos

  1. A transfusão de componentes e derivados sanguíneos não é um acto inócuo. Antes da prescrição deste tipo de terapêutica é sempre necessário ponderar os benefícios e os possíveis riscos imediatos e tardios.
    As reacções transfusionais podem ser classificadas em quatro categorias:
      • Imunológicas Agudas;
      • Não Imunológicas Agudas;
      • Imunológicas Tardias;
      • Não Imunológicas Tardias.

As reacções agudas são as que ocorrem desde os primeiros minutos após o iníco da administração até 24 horas após o final da transfusão. As tardias são as que ocorrem após este período.

As reacções imunológicas são devidas à resposta imune do organismo contra os antigénios das células sanguíneas.

Os Quadros 7, 8, 9 e 10 descrevem de modo sucinto exemplos concretos de cada tipo de reacção, incluindo manifestações clínicas mais frequentes e medidas terapêuticas indicadas.

QUADRO 7 – Reacções transfusionais agudas – (imunológicas)

Tipo

Etiologia

Manifestações

Medidas terapêuticas

Hemolítica Aguda

Incompatibilidade entre antigénios eritrocitários do dador e receptor

Dor no local de infusão, agitação, dispneia, dor lombar, febre, calafrios, hemoglobinúria, insuficiência renal, CID, etc.

Manter acessos venosos com soro fisiológico, manter débito urinário ~1-2 ml/Kg/h, analgésicos, vasopressores

Febril

não hemolítica

Anticorpos antileucocitários, citocinas

Febre, calafrios, cefaleias, vómitos

Antipiréticos, desleucocitação de componentes sanguíneos

Urticariforme

Anticorpos contra as proteínas plasmáticas do dador

Urticária, prurido

Anti-histamínicos

Anafiláctica

Anticorpos antiproteína de dador: anti-IGA, C4, haptoglobina

Hipotensão, taquicárdia broncospasmo, ansiedade, edema da glote

Posição de Trendlenburgo, anti-histamínicos, corticosteróides, epinefrina

Edema pulmonar agudo não cardiogénico

Anticorpos antileucocitários no dador

Hipoxémia, insuficiência respiratória, edema pulmonar agudo sem compromisso da função cardíaca

Oxigenoterapia, assistência respiratória de acordo com a gravidade do quadro clínico

QUADRO 8 – Reacções transfusionais agudas – (não imunológicas)

Tipo

Etiologia

Manifestações

Medidas terapêuticas

(*) Um método simples e prático que pode ser utilizado quando se trata de transfundir pequenos volumes de sangue é colocar a bolsa de sangue, antes da transfusão, durante alguns minutos numa incubadora com sistema de aquecimento servocontrolado (isto é, equipada com sensor que monitorize a temperatura, colocando o referido sensor sobre o referido saco) evitando temperaturas superiores a 37ºC.

Quadro de sépsis

Contaminação bacteriana

Febre, calafrios, hipotensão

Antibioticoterapia

Sobrecarga circulatória

Sobrecarga de volume

Dispneia, ortopneia, tosse, hipertensão, cefaleias

Oxigenoterapia, diuréticos

Hipocalcémia

Rápida infusão de citrato

Parestesias, tetania, arritmia

Infusão lenta de cálcio

Hipotermia

Transfusão rápida de componentes sanguíneos frios

Arritmia

Utilizar sistemas de aquecimento de componentes sanguíneos, particularmente quando são transfundidos grandes volumes (*)

QUADRO 9 – Reacções transfusionais tardias – (imunológicas)

(#) As principais indicações absolutas para irradiação de componentes celulares sanguíneos são:
– Transfusões de granulócitos
– Doença de Hodgkin
– Síndromas de imunodeficiência celular congénita

TipoEtiologiaManifestaçõesMedidas terapêuticas
Alo-imunização

Resposta imune aos antigénios estranhos do eritrócito, leucócito ou plaquetas

Aparente ineficácia transfusional; não resposta à transfusão de plaquetas, febre, icterícia

Identificar anticorpos e transfundir sangue  compatível; desleucocitar os componentes

Reacção de tipo enxerto contra hospedeiro

Os linfócitos do dador opõem-se aos do receptor imunodeprimido

Exantema máculo-papular, anorexia, náuseas, vómitos, diarreia, hepatite, pancitopénia (rara)

Corticosteróides, citotóxicos
Prevenção: irradiação dos componentes celulares (concentrados de eritrócitos e plaquetas) (#)

Púrpura Pós-transfusional

Anticorpos antiplaquetários no receptor

Púrpura trombocitopénica, 8-10 dias após a transfusão

Imunoglobulina intravenosa, plaquetas negativas para HPA1

QUADRO 10 – Reacções transfusionais tardias – (não imunológicas)

TipoEtiologiaManifestaçõesMedidas terapêuticas
HemossideroseExcesso de ferro devido a múltiplas transfusões de concentrado eritrocitário
(> 100 unidades)
Diabetes, cirrose, cardiomiopatiaQuelantes de ferro

Todos os profissionais envolvidos na terapêutica transfusional devem estar habilitados a reconhecer um incidente transfusional e a tomar prontamente as medidas adequadas e consideradas prioritárias no âmbito do seu tratamento inicial.

Os serviços clínicos devem dispor de fichas de registo de incidentes transfusionais (FIT), e perante a sua ocorrência, devem preenchê-las, enviá-las ao serviço de imuno-hemoterapia (SIH) acompanhadas de uma amostra pós-transfusional. Uma vez identificada a causa, esta deverá ser devidamente analisada, remetendo-se em seguida o registo e participação do incidente ao sistema de hemovigilância nacional, o qual, que por sua vez, o deverá comunicar ao sistema de hemovigilância internacional.

Os incidentes relacionados com a transmissão de doenças infecciosas, nomeadamente a transmissão de VIH e hepatite, têm vindo a reduzir-se significativamente nos últimos anos. Contudo, subsistem os não infecciosos, muitas vezes letais e difíceis de prevenir e de tratar.

  1. Perante uma reacção transfusional, as medidas imediatas a tomar são:
    1. Suspender imediatamente a transfusão; manter os acessos venosos, com soro fisiológico;
    2. Verificar a identificação do doente e da unidade transfundida;
    3. Contactar o médico de serviço do doente e o do SIH, para que a causa do incidente seja devidamente estudada e analisada;
    4. Devolver os componentes envolvidos na reacção ao SIH, a FIT devidamente preenchida, juntamente com uma amostra pós-transfusional do doente colhida em tubo de EDTA.

GLOSSÁRIO

Aférese > Separação dos elementos constituintes do sangue.
Concentrado eritrocitário > É o componente obtido por remoção parcial do plasma de uma unidade de sangue total. Consoante o tipo de processamento efectuado é possível obter concentrados eritrocitários com maior ou menor contaminação de glóbulos brancos, plaquetas e plasma.
Concentrado eritrocitário sem “buffy coat”, em solução aditiva, e desleucocitado > Este tipo de concentrado eritrocitário apresenta menor contaminação de glóbulos brancos, plaquetas e plasma do que o anteriormente referido, porque no método de produção, além de ser removido o plasma, é também retirada a camada leucoplaquetária, sendo subsequentemente adicionada às células uma solução nutritiva apropriada. Em seguida é desleucocitado, antes do armazenamento. Em média este componente tem um volume de 250 mL ± 10%. Tem um hematócrito que oscila entre 50-70% e um mínimo de 45 g de hemoglobina por unidade.
Concentrado plaquetário > É um componente obtido a partir de uma unidade de sangue total, devendo conter a maioria das plaquetas da unidade original. Dependendo do método de preparação, o número médio de plaquetas numa unidade deve ser 70 x 109 suspensa num volume de 40-70 mL de plasma. Só podem ser conservadas durante cinco dias.
Concentrado unitário de plaquetas > É obtido de um único dador utilizando um separador automático de células. Dependendo do tipo de processamento e do equipamento utilizado, pode obter-se um número de plaquetas que oscila entre 200-800 x 109/L.
Crioprecipitado > É um preparado que contém a fracção crioglobulínica do plasma, obtido através da descongelação do PFC a 4ºC e removendo o sobrenadante. É rico em fibrinogénio, factor VIII, vários multímeros de factor de Von Willebrand, fibronectina e factor XIII. Segundo recomendações internacionais deve ter um volume entre 30-40 mL.
Plasma fresco congelado > É a porção aquosa e acelular do sangue total, contendo proteínas, colóides, nutrientes, cristalóides, hormonas e vitaminas. A albumina é a proteína mais abundante, mas também contém outras como: fracções do complemento, enzimas, imunoglobulinas e factores da coagulação, nomeadamente, fibrinogénio, factor II, VII, IX, X, XIII, VIII. O plasma pode ser obtido a partir do sangue total ou por aférese. Deve ser congelado num período de tempo e a uma temperatura que permita manter adequadamente, em estado funcional, os factores da coagulação. Contém um volume aproximado de 180-300 mL.
Transfusão > Injecção endovascular de sangue compatível, fresco ou conservado; este conceito engloba também um constituinte do sangue separadamente (leucócitos ou eritrócitos ou plaquetas) ou de um seu sucedâneo.
Unidade de sangue total > É a quantidade de sangue colhida a um dador previamente seleccionado, utilizando material estéril e de uso único, contendo uma solução anticoagulante/preservador. O volume da unidade deve ser 450 mL ± 10%, excluindo o anticoagulante. Tem um período de conservação limitado. Com o armazenamento observa-se uma rápida deterioração do factor VIII, leucócitos e plaquetas, o que o torna um produto inviável para tratar alterações da coagulação após 24 horas de conservação. A sua maior aplicação diz respeito à preparação de outros componentes sanguíneos.

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COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DISSEMINADA

Definição e importância do problema

A coagulação intravascular disseminada (CIVD) é uma síndroma caracterizada pela activação difusa da coagulação com formação e depósito de fibrina nos pequenos vasos, levando a diátese hemorrágica, uma das principais manifestações clínicas. Este estado de hipercoagulabilidade pode levar à oclusão dos vasos com compromisso da irrigação sanguínea de diversos órgãos e consequente isquémia. A fibrinólise, que também está comprometida, exacerba este desequilíbrio entre coagulação e capacidade de lise dos trombos o que, somado ao estado crítico do doente, instabilidade hemodinâmica e défice de perfusão, contribui para a falência de vários órgãos e para a gravidade do quadro. Sintetizando, o consumo e a deplecção de factores de coagulação e plaquetas, neste processo contínuo de coagulação, acaba por levar a hemorragia.

Estima-se uma incidência de cerca de 1% dos doentes hospitalizados, com uma taxa de mortalidade entre os 50-75%, dependendo em muito da doença subjacente.

QUADRO 1 – Principais factores etiológicos de CIVD

Abreviaturas: LPA – leucemia pró-mielocítica aguda; LLA – leucemia linfocítica aguda; HELLP – síndroma de hemólise, aumento das enzimas hepáticas e baixo número de plaquetas
CIVD aguda

Sépsis grave
– Gram negativos (endotoxinas)
– Gram positivos (mucopolissacáridos)
– VírusTraumatismo grave
– Lesão tecidual grave (por ex: queimados)
– Traumatismo craniano
– Embolia gorda

Patologia obstétrica
– HELLP
– HELLP com placenta prévia
– Embolia por líquido amniótico

Reacções imunitárias
– Reacção hemolítica transfusional
– Incompatibilidade ABO
– Reacções alérgicas graves

Neoplasias
– Leucémias (LLA, LPA)
– Neoplasias sólidas (pulmão, pâncreas, outras)

Toxinas/Fármacos

CIVD subaguda/crónica
– Doenças cardiovasculares
– Doenças vasculares renais
– Doenças hematológicas
– Doenças inflamatórias
– Doenças autoimunes (rejeição de transplante)
– Doenças neoplásicas

Etiopatogénese

A CIVD não é uma doença, mas uma síndroma resultando de diversos problemas clínicos subjacentes os quais constituem, assim, factores etiológicos.

O Quadro 1 enumera as situações clínicas que mais frequentemente desencadeiam CIVD.

A sépsis é a causa mais comum de CIVD, podendo ocorrer em 30-50% dos casos. Os componentes da membrana celular das bactérias (lipopolissacárido ou endotoxina) ou as exotoxinas bacterianas (por ex. toxina α dos estafilococos), induzindo a libertação de factores plaquetários e lesão endotelial, activam factores de coagulação.

Os vírus da varicela e hepatite, e o citomegalovírus são os mais habitualmente associados a CIVD. Os mecanismos desencadeantes estão menos esclarecidos do que nas infecções bacterianas, mas podem envolver a activação de factor XII por complexo antigénio-anticorpo, reacções de libertação de plaquetas, ou lesão endotelial com exposição do colagénio subendotelial.

A hepatite vírica fulminante e a insuficiência hepática aguda de qualquer causa podem levar a CIVD, salientando-se a dificuldade que por vezes existe em distinguir esta doutras alterações da coagulação resultantes de disfunção hepática grave.

A incidência de CIVD em doentes com traumatismo grave é da ordem de 50 a 70%.

A libertação de fragmentos de tecidos lesados (designadamente fosfolípidos a partir do tecido adiposo) na circulação sistémica, hemólise e lesão endotelial causam activação da coagulação mediada por factor tecidual. O aumento das citocinas circulantes (TNF-α e IL-1) levam a deposição generalizada de fibrina nos microvasos, do que resulta resposta inflamatória sistémica mantida e síndroma de disfunção multiorgânica (SDMO).

Verifica-se CIVD em 10 a 15% dos doentes com leucemia aguda e em cerca de 15% dos doentes com neoplasias sólidas. Com efeito, em tais circunstâncias verifica-se libertação de moléculas procoagulantes (factor tecidual e cisteína protéase que activam o factor X). A CIVD associada a neoplasia é habitualmente crónica e compensada.

A transfusão de eritrócitos AB0 incompatíveis pode causar CIVD aguda. Os anticorpos IgM naturais ligam-se a antigénio A ou B na superfície das células transfundidas e formam imunocomplexos que activam a cascata do complemento. Estes imunocomplexos, por sua vez, causam lesão endotelial desencadeando a activação da coagulação.

A CIVD aguda é uma complicação grave de várias entidades obstétricas, como embolia por líquido amniótico, placenta prévia e eclampsia. Tal é explicável pelo facto de o líquido amniótico conter uma substância com afinidades para a tromboplastina, altamente potente, e igualmente com propriedades antifibrinolíticas. Esta actividade procoagulante aumenta com o tempo de gestação. A entrada de líquido amniótico na circulação materna activa o sistema de procoagulação, levando de modo agudo a CIVD.

Assim, globalmente, a síndroma de CIVD é desencadeada pela activação sistémica da coagulação sanguínea, a qual é mediada por vários mecanismos em simultâneo. A deposição sistémica de fibrina resulta da produção de trombina mediada pelo factor tecidual, com supressão simultânea dos mecanismos fisiológicos de anticoagulação e alteração da fibrinólise (causada pelo inibidor do activador do plasminogénio, tipo I).

As alterações da coagulação e fibrinólise resultam de diversas citocinas pró-inflamatórias. A interleucina-6 (IL-6) é o principal mediador da activação da coagulação, sendo que o factor de necrose tumoral (TNF-alfa) inibe as vias fisiológicas de anticoagulação e da fibrinólise (Figura 1). São descritos a seguir os principais eventos fisiopatológigos.

Abreviaturas: IL – interleucina; AT III – antitrombina III; FNT – factor de necrose tumoral; VIIa – factor VII activado; IAP-1 – inibidor do activador do plasminogénio, tipo I libertado pelas células endoteliais e plaquetas activadas; IVFT – inibidor da via do factor tecidual

FIGURA 1 – Fisiopatologia da coagulação intravascular disseminada

Produção de trombina

A produção de trombina mediada por factor tecidual (FT) desempenha um papel central na fisiopatologia da CIVD. A produção de trombina na CIVD é exclusivamente iniciada pela activação do FT/complexo VII activado. Nem sempre é clara a fonte exacta do FT. Monócitos, células polimorfonucleares, e células endoteliais expressam FT em resposta a citocinas pró-inflamatórias. O FT e factor VII activado catalizam a conversão dos factores IX e X. Os factores IXa e Xa aumentam a activação de factor X e pró-trombina, levando à formação de trombina. A trombina converte fibrinogénio em fibrina e é um activador potente das plaquetas. As plaquetas formam “uma superfície de fosfolípidos” sobre a qual se depositam complexos de factores de coagulação activados, ampliando a activação da coagulação.

Disfunção das vias fisiológicas da anticoagulação

A produção de trombina é normalmente limitada pela antitrombina III (AT III), proteína C e inibidor da via do factor tecidual (IVFT). Na CIVD estes sistemas de regulação são defeituosos como resultado da disfunção endotelial. Ocorre produção generalizada de trombina, levando à deposição de fibrina. A AT-III é o inibidor mais importante da trombina e factor Xa. Na CIVD os níveis de ATIII são muito baixos como resultado do consumo, activados, diminuição da síntese hepática e extravasamento através de capilares permeáveis. Os baixos níveis de AT-III na CIVD estão associados a um aumento da mortalidade em doentes com sépsis.

Disfunção da fibrinólise

Na CIVD as células endoteliais e as plaquetas activadas libertam inibidor tipo I do activador do plasminogénio (IAP-1). Em estudos clínicos, os elevados níveis de IAP-1 e os níveis baixos do complexo alfa 2 antiplasmina-plasmina constituem marcadores de mau prognóstico.

Interacção entre coagulação e inflamação

A activação da coagulação produz proteases, as quais induzem mediadores pró-inflamatórios com efeitos pró-coagulantes e amplificam a cascata que leva a CIVD.

Manifestações clínicas

Dum modo geral, as manifestações clínicas traduzindo situação de aparência geral grave relacionável com as da entidade subjacente (por exemplo, infecção, neoplasia, traumatismo grave, diversas entidades obstétricas, transfusão de sangue incompatível, golpe de calor, afogamento em água doce, etc.), somam-se às devidas a trombose e hemorragia. De salientar que a CIVD duplica aproximadamente o risco de morte em doentes com sépsis ou lesão traumática grave.

A hemorragia é a manifestação clínica mais dramática da CIVD aguda, associada a uma formação excessiva de plasmina: equimoses em locais de venopunção e feridas, hematomas, hematúria, assim como petéquias no palato mole e pele (Figura 2).

Nas formas graves podem surgir hemorragias maciças com localizações diversas: génito-urinária, pulmonar, gastrintestinal, sistema nervoso central, etc..

Ocorre febre e hipotensão e choque em 50% dos casos, e anemia hemolítica microangiopática em cerca de 15%.

A CIVD subaguda ou crónica associada a neoplasias, doenças do tecido conjuntivo ou doença renal crónica, manifesta-se habitualmente como entidade pró-trombótica e não como doença hemorrágica. Menos óbvia clinicamente é a microtrombose vascular causada pela deposição de fibrina em diversos territórios, levando à falência de órgãos.

As manifestações trombóticas habitualmente observadas são: insuficiência renal aguda (necrose cortical bilateral, necrose tubular aguda), acidente vascular cerebral, isquémia do miocárdio (enfarte, arritmia), insuficiência suprarrenal aguda (necrose suprarrenal), púrpura fulminante e trombose venosa hepática.

FIGURA 2 – Quadro de CIVD aguda/diátese hemorrágica grave. (doente da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital Dona Estefânia, Lisboa)

Os achados na autópsia em doentes com CIVD crónica ou subaguda mostram sinais de hemorragia difusa em diversos locais, de necrose hemorrágica dos tecidos, e de trombose em pequenos e grandes vasos.

Exames complementares

A anamnese e o exame objectivo, conduzindo à suspeita de CIVD, obrigam à realização de exames complementares, sendo de referir que nenhum exame laboratorial isoladamente permite diagnosticar ou excluir CIVD.

Aspectos gerais

As anomalias observadas nos resultados de diversos exames biológicos podem variar em função da fase em que se encontra o doente, gravidade e tipo de doença subjacente, e eventual suporte hemoterapêutico já levado a cabo anteriormente.

Na prática, em caso de CIVD observa-se:

  • Diminuição rápida do número de plaquetas ou número < 100.000 por mmc;
  • Aumento dos tempos de coagulação, tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa);
  • Verificação e aumento de produtos de degradação da fibrina no plasma (PDF) e de dímeros D, estes últimos o indicador biológico mais sensível;
  • Baixos níveis de inibidores da coagulação (como antitrombina III).

De acordo com o que anteriormente foi referido, a síndroma de CIVD não pode ser excluída se os resultados dos exames referidos estiverem dentro do intervalo de normalidade; com efeito, a resposta de fase aguda leva à diminuição do tempo de tromboplastina parcial activada e ao aumento da concentração de fibrinogénio. Segundo as normas da Sociedade de Trombose e Hemostase, o Quadro 2 sintetiza os achados principais como critérios auxiliares de diagnóstico.

QUADRO 2 – Exames laboratoriais para confirmação de CIVD

 CIVD agudaCIVD crónica ou compensada
Tempo de protrombina (TP)N ou ⇓
Tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa)N ou ⇓
Número de plaquetasN ou ⇓
Concentração de fibrinogénioN, ⇓ ou ⇑
D-dímerosN ou ⇑
Produtos de degradação da fibrina (PDF)N ou ⇑
Monómeros de fibrinaN ou ⇑
Esfregaço de sangueEsquizócitos 
Complexo trombina antitrombina 
Fragmentos de activação da protrombina tipo 1 e 2 
Complexo plasmina antiplasmina (PAP) 
Abreviaturas: N – normal; ⇑ – aumentado; ⇓ – diminuído

 

Aspectos específicos

Tendo como base os conceitos da fisiopatologia antes descritos, são referidos mais em pormenor os seguintes exames:

  • Provas para detectar a formação intravascular de fibrina e produtos de degradação da fibrina/fibrinogénio.
    Uma vez que o principal factor desencadeante da fisiopatologia da CIVD é um aumento da formação de fibrina, a comprovação da existência de fibrina no plasma seria essencial no diagnóstico de CIVD. O aumento do nível de fibrina solúvel tem uma elevada sensibilidade (90-100%), como prova diagnóstica. Contudo, este exame não está disponível nos laboratórios de rotina. Os produtos de degradação da fibrina (PDF) formam-se quando há degradação de fibrina e/ou de fibrinogénio. Os níveis de PDF estão aumentados em 80-100% dos doentes com CIVD e podem ser detectados através de métodos ELISA ou de aglutinação de látex. Contudo, trata-se dum exame relativamente inespecífico, uma vez que várias outras entidades (por ex. lesão traumática, inflamação ou tromboembolismo venoso) podem aumentar os níveis de PDF. Provas mais específicas que detectam os produtos resultantes da degradação de fibrina pela plasmina (os dímeros-D) são mais úteis, uma vez que indicam que ocorreu coagulação e fibrinólise. Os dímeros-D estão aumentados em 95% dos doentes.
  • Marcadores de formação de trombina.
    Níveis plasmáticos elevados de trombina podem reflectir-se em aumento dos níveis de: fragmento F1 (F1+2) de activação da protrombina, complexo trombina-antitrombina (TAT) e fibrinopéptido A. A conversão de protrombina em trombina leva a libertação de fragmento inactivo F1+2 e de um elemento intermédio, pré-trombina 2, que mais tarde forma trombina. A trombina pode degradar o fibrinogénio por proteólise e libertar fibrinopéptido A. Em alternativa, pode formar-se um complexo estável, inactivo com antitrombina, o complexo TAT. Níveis aumentados de F 1+2, TAT e fibrinopéptido A são indicadores sensíveis de CIVD quando as manifestações são subclínicas. Contudo, a sua utilidade é limitada pela necessidade de manuseamento cuidadoso da amostra e pela falta de especificidade. Estes exames não estão disponíveis na maioria dos laboratórios comuns.
  • Contagem de plaquetas.
    A agregação de plaquetas induzida por trombina contribui significativamente para o consumo de plaquetas na CIVD. Contudo, podem ocorrer alterações na produção de plaquetas em doentes gravemente doentes. A repetição da contagem de plaquetas com intervalos de 1 a 4 horas reflecte a extensão da formação de trombina em curso.
  • Factores de coagulação e inibidores.
    O consumo de factores de coagulação resulta no aumento de parâmetros globais de coagulação como o tempo de protrombina (TP) e tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa) em apenas 50 a 70% dos doentes. Assim, valores normais destes parâmetros não excluem o diagnóstico de CIVD. As concentrações plasmáticas de factores de coagulação específicos, como os factores V e VII, são habitualmente baixas. Contudo, os níveis de factor VIII e de fibrinogénio podem manter-se normais, apesar do consumo, pois são reagentes de fase aguda. Nos casos graves observam-se baixos níveis de fibrinogénio; no entanto, esta prova evidencia uma baixa sensibilidade (28%). Os níveis plasmáticos de inibidores fisiológicos da coagulação, como antitrombina III e proteína C, são indicadores indirectos da activação da coagulação. Uma baixa concentração plasmática correlaciona-se com mau prognóstico.
  • Marcadores de fibrinólise aumentada.
    Várias provas comprovam o aumento de fibrinólise que se observa na CIVD. A medição directa dos níveis plasmáticos de plasmina é difícil porque esta forma rapidamente um complexo com a alfa-2 antiplasmina. O aumento dos níveis de complexos alfa-2 antiplasmina-plasmina (PAP) pode ser detectado pelo método ELISA, imunoelectroforese e radioimunoensaio. Os níveis plasmáticos de plasminogénio e alfa-2 antiplasmina são baixos em doentes com CIVD indicando o consumo destas proteínas. Identificam-se concentrações elevadas de inibidor tipo I do activador do plasminogénio (IAP-1), o que comporta mau prognóstico.

Escala de avaliação

A Sociedade Internacional de Trombose e Hemostase propôs recentemente um algoritmo de diagnóstico em 5 passos para o diagnóstico de CIVD orientando igualmente na actuação a seguir (Quadro 3). Com esta estratégia são utilizadas provas laboratoriais simples disponíveis na maior parte dos laboratórios hospitalares.

QUADRO 3 – Escala de avaliação diagnóstica de CIVD e actuação

1. Avaliação de risco
O doente tem alguma doença subjacente associada a manifestações de CIVD? Continuar o algoritmo unicamente se sim, caso contrário não usar este algoritmo
2. Proceder à realização de exames complementares
Contagem de plaquetas Esfregaço de sangue
TP, aPTT Outros exames dirigidos à doença subjacente
Fibrinogénio Outros exames dirigidos a função de órgão (rim, fígado, coração)
PDF, D-Dímeros
3. Atribuir um valor (pontuação) aos resultados das provas de coagulação
Plaquetas (/mm3) PDF, D-dímeros Prolongamento TP (limite superior) Fibrinogénio
> 100 000 = 0 pontos Normal = 0 pontos < 3´= 0 pontos > 1 g/dl = 0 pontos
< 100 000 = 1 ponto Aumentado = 1 ponto 3-6´= 1 ponto < 1 g/dl = 1 ponto
<50 000 = 2 pontos Muito aumentado = 3 pontos >6´= 2 pontos
4. Calcular pontuação
5. Avaliação de resultados
Resultado > ou = 5 Resultado < 5
CIVD com manifestações (fase III) CIVD sem manifestações, reavaliar posteriormente

Novas perspectivas

Actualmente está a ser desenvolvido um processo que consiste na análise de ondas de transmissão em provas de coagulação de rotina. A onda de “transmissão” é o perfil óptico gerado em testes de coagulação padrão como TP e TTPa, documentando alterações na transmissão da luz durante o processo de formação e manutenção do coágulo. A onda normal do TTPa é uma curva sigmóide. Em doentes com CIVD, observa-se uma onda bifásica. A sensibilidade e a especificidade da onda bifásica do TTPa é, respectivamente, 97,6 e 98%. A análise das ondas de transmissão pode também ser utilizada para detectar CIVD subclínica. A forma crónica ou compensada de CIVD precede frequentemente a forma de descompensação aguda. Do ponto de vista terapêutico, seria melhor interromper o processo antes de ocorrer a descompensação. Infelizmente, a CIVD compensada não é clinicamente evidente e as provas de diagnóstico habituais podem ser normais. Embora se trate duma nova técnica de grandes potencialidades diagnósticas, a mesma exige equipamento especializado que ainda não está disponível na generalidade dos centros.

Tratamento

O princípio fundamental do tratamento da CIVD diz respeito ao tratamento rápido e agressivo da doença subjacente. Contudo, nas situações de resposta inflamatória sistémica (como na sépsis, traumatismo grave, ou queimaduras extensas), a CIVD poderá não ter resolução espontânea apesar do tratamento adequado e dirigido à doença de base. Nestes casos poderá ser necessário tomar medidas de suporte e estratégias específicas incidindo sobre os vários processos envolvidos na fisiopatologia da CIVD.

Tratamento transfusional

Pretende corrigir os diferentes défices de coagulação com factores contidos no plasma e outros hemoderivados. De salientar que não se deve proceder a administração de transfusões “profilácticas” em doentes com CIVD; as indicações surgem apenas quando existem manifestações clínicas da doença e/ou necessidade de realizar procedimentos invasivos.

*Plasma fresco congelado

Dose: 10 a 20 ml/Kg/dia

Indicações:

  • doentes com hemorragia activa;
  • procedimento ou cirurgia invasivos.

Não está indicado nas alterações laboratoriais sem evidência de hemorragia.

*Concentrado de plaquetas

Dose: 1U para cada 10 Kg de peso

Indicações:

  • hemorragia e número de plaquetas inferior a 50 x 109/L;
  • hemorragia e suspeita de disfunção plaquetária (qualquer valor de plaquetas).
*Crioprecipitado

Dose: uma Unidade contém 250 mg de fibrinogénio e uma pequena quantidade de plasma. O número de unidades é calculado tendo em conta o peso do doente, o nível de fibrinogénio e o volume plasmático. A regra geral é: 1U para cada 10 Kg de peso.

Objectivo:

  • manter níveis de fibrinogénio superiores a 100-150 mg/dL.

Anticoagulantes

A utilização da heparina no tratamento da CIVD continua a ser controversa. Admite-se que a diminuição dos níveis plasmáticos de antitrombina associada a CIVD pode diminuir a eficácia da heparina uma vez que, para se garantir a acção anticoagulante da heparina, é necessária uma concentração plasmática adequada de antitrombina III. Contudo, a heparina em doses terapêuticas está indicada em doentes com tromboembolismo e manifestações clínicas ou evidência de deposição extensa de fibrina, como isquémia das extremidades.

Inibidores da coagulação

A antitrombina constitui, não só um importante inibidor fisiológico da coagulação, como possui propriedades anti-inflamatórias (através da libertação de prostaglandina I2 das células endoteliais). Embora se tenham demonstrado efeitos benéficos (sobre os parâmetros laboratoriais, o encurtamento da evolução da CIVD e a função dos órgãos) em doentes com sépsis ou choque séptico tratados com concentrados de antitrombina III, não se tem verificado redução significativa na mortalidade.

A proteína C, uma serina-protease dependente da vitamina K, inibe os factores activados V e VII prevenindo, assim, a produção de trombina. A proteína C humana recombinante activada (PCAhc) na dose de 24 mg/kg/h em infusão contínua ao longo de 96 horas reduz a mortalidade, melhora o perfil de coagulação, evidenciando também propriedades anti-inflamatórias mediadas pela modulação do factor kappa-B.

Contudo, devem ser tomadas precauções quando se administra PCArh em doentes com trombocitopénia (número plaquetário < 50 x 109/L) dada a maior probabilidade de hemorragia intracraniana, o que implica, em tal circunstância, proceder a transfusão de plaquetas previamente.

ABREVIATURAS
ADP > Adenosina difosfato.
TTPa > Tempo de tromboplastina parcial activada.
AT III > Antitrombina III.
CID > Coagulação intravascular disseminada.
ELISA > Imunoensaio enzimático.
F 1+2 > Fragmentos 1 e 2 de activação de protrombina.
HELLP > Síndroma de hemólise, aumento das enzimas hepáticas e diminuição das plaquetas.
IL > Interleucina.
IAP-1 > Inibidor do activador do plasminogénio tipo 1.
PAP > Complexo plasmina antiplasmina.
RAP > Receptor activado da protease.
TAT > Complexo trombina antitrombina.
IFVT > Inibidor do factor da via tecidual.
FNT/TNF > Factor de necrose tumoral.

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HIPERCOAGULABILIDADE E DOENÇA TROMBÓTICA

Importância do problema

As anomalias da coagulação caracterizadas por hipercoagulabilidade predispõem a trombose ou a fenómenos tromboembólicos/TE (trombofilia), venosos ou arteriais. Tais anomalias, que podem ser congénitas /hereditárias ou adquiridas, comportam risco elevado de morbilidade e mortalidade.

As trombofilias hereditárias decorrem de factores de risco não adquiridos.

Neste capítulo é focado essencialmente o tromboembolismo venoso (TEV), que é raro em crianças saudáveis (0,07-1,4/100.000 crianças); ocorre sobretudo no período neonatal e adolescência, e na presença de factores de risco adquiridos.

 Etiopatogénese e manifestações clínicas

  1. Os três principais factores relacionados com a formação de coágulos e trombose vascular estão resumidos na tríade de Virchow – estase, lesão endotelial e hipercoagulabilidade. (Figura 1)
    A baixa incidência de TEV em idade pediátrica deve-se a vários fatores considerados “protectores”: a) reduzida concentração plasmática de alguns factores da coagulação; b) maior capacidade de inibição da trombina; c) menor frequência de patologias de risco (diabetes, dislipidémia, hipertensão arterial); d) menor exposição a factores de risco adquiridos (ex. anticonceptivos orais, gravidez, puerpério, tabagismo), excepto na adolescência.

FIGURA 1 – Tríade de Virchow: Quanto maior a sobreposição dos factores – lesão endotelial, hipercoagulabilidade e estase, maior é o risco de tromboembolismo

O factor de risco mais frequentemente relacionado com a ocorrência de TEV neste grupo etário (~2/3 dos casos) é a presença de cateter venoso central (CVC). Este actua como factor trombogénico ao desencadear reacção de corpo estranho (lesão da parede do vaso, reacção inflamatória e diminuição do fluxo sanguíneo). Os vasos mais afectados são a veia subclávia e a jugular; e, mais raramente, os femorais.

Outros factores de risco incluem: infecção; cardiopatia congénita; traumatismo; cirurgia recente; imobilização prolongada; síndroma nefrótica; doença inflamatória do intestino (DII); neoplasia (a própria neoplasia ou a respectiva terapêutica); fármacos (ex. anticonceptivos orais); e anomalias venosas estruturais.

Estes factores condicionam risco de TEV por diferentes mecanismos: libertação de proteínas de fase aguda associada a inflamação; perda urinária ou digestiva de proteínas anticoagulantes (défice adquirido de proteínas C e S); hipercoagulabilidade ou lesão endotelial.

QUADRO 1 – Estados protrombóticos

Congénitos
Lesão do endotélio
Homocistinémia
Lipoproteína (a)

Níveis elevados de procoagulantes
Gene mutante da protrombina G2010A
Níveis elevados de factor VIII

Resistência ao cofactor da proteólise
Gene mutante do factor V (factor V Leiden)

Défice de anticoagulantes
Antitrombina, proteína C, proteína S, plaminogénio

Adquiridos
Obstrução vascular ou diminuição do débito sanguíneo
Policitémia/hiperviscosidade
Cateterismo
Gravidez

Imobilização

Lesão vascular
Traumatismo
Intervenção cirúrgica

Inflamação
Doença inflamatória intestinal, vasculite, síndroma de Behçet

Estados diversos de hipercoagulabilidade
Tumores malignos
Síndroma nefrótica
Síndroma antifosfolípidos
L-asparaginase
Níveis elevados de factor VIII
Contraceptivos orais

Causas raras
Disfibrinogenémia, hemoglobinúria paroxística nocturna, trombocitémia, enxertos vasculares

QUADRO 2 – Doenças trombóticas hereditárias

Défice ou anomalias qualitativas dos inibidores dos factores de coagulação activados
Défices de: antitrombina, trombomodulina; proteína C; proteína S; resistência à proteína C activada

Anomalia na lise do coágulo
Disfibrinogenémia; défices de plasminogénio, TPA (activador do plasminogénio tecidual); excesso de actividade do PAI (inibidor -1 do activador do plasminogénio)

Defeito metabólico
Hiper-homocistinémia

Anomalias de factores ou cofactores de coagulação
Mutação do gene da protrombina, níveis elevados de factores VIII, IX, X, XI

O Quadro 2 discrimina as principais entidades clínicas classificadas como doenças protrombóticas hereditárias, na sua maioria, de transmissão autossómica dominante ou desconhecida.

  • Factor V de Leiden (principal determinante genético na resistência à proteína C activada) – o factor de risco genético mais comum para trombose venosa. Ocorre em 5% da população caucasiana, menos frequentemente noutras etnias. Em heterozigotia, a mutação condiciona um risco relativo 5-7 vezes maior de trombose; em homozigotia, 80-100 vezes maior. O risco é cumulativo com outros factores predisponentes.
  • Mutação do gene da protrombina (G20210A) – resulta em níveis mais elevados de protrombina. Está presente em cerca de 2% da população caucasiana e associada a um risco relativo 2-3 vezes maior de desenvolvimento de trombose venosa.
  • Deficiência das proteínas C, S e antitrombina (proteínas anticoagulantes) – o seu défice é mais raro, mas associa-se a um risco acrescido de fenómenos trombóticos. Os defeitos homozigóticos podem apresentar-se no período neonatal – quadro de púrpura neonatal fulminante.
  • Homocistinúria – constituiu um raro defeito hereditário do metabolismo provocado pela deficiência de cistationa β-sintetase. Associa-se a trombose venosa e arterial de múltiplos territórios vasculares e a níveis sanguíneos muito elevados de homocisteína.
  • Factor VIII em níveis elevados pode associar-se a um maior risco de trombose. Tais níveis, regulados por factores genéticos e ambientais, podem estar elevados em situações de inflamação.
  • Lipoproteína (a) em níveis elevados – constituindo factor de risco independente para a ocorrência de TEV em idade pediátrica, possivelmente associado a inibição da fibrinólise.

2. Abordando de modo global as manifestações clínicas de doença tromboembólica, cabe salientar determinados sinais gerais:

    1. As tromboses arteriais geralmente manifestam-se por disfunção de órgão devida a isquémia (por ex. pele e extremidade fria, ausência de pulso);
    2. As tromboses venosas dos membros superiores ou inferiores manifestam-se por edema, extremidade não fria ou quente, e/ou rubor; as veias torácicas proximais constituem outra possível localização;
    3. As tromboses venosas profundas são, na maioria das vezes, assintomáticas até que se desenvolva embolia pulmonar;
    4. A embolia pulmonar resulta em geral de lesão endotelial provocada por cateter venoso central, derivação ventrículo-auricular no contexto de hidrocefalia, ou de endocardite associada a cardiopatia congénita; pode manifestar-se por dor de tipo pleurítico, tosse, hemoptise, febre, e padrão radiográfico do tórax anómalo;
    5. Os eventos vasculares oclusivos na idade pediátrica têm, como regra, aparecimento súbito.

Algumas características específicas associam-se ao local atingido. Destaca-se:

  1. CVC – pode manifestar-se apenas por perda da permeabilidade e presença de circulação colateral superficial ou por sépsis, edema do membro homolateral e face, tromboembolismo pulmonar, síndroma da veia cava superior ou alargamento do mediastino;
  2. tromboembolismo pulmonar (TEP) – raro em crianças – pode manifestar-se por dor pleurítica súbita, taquipneia, tosse, taquicárdia, dispneia súbita ou colapso.
  3. trombose da veia renal (TVR) – mais frequente no período neonatal (fora deste período, surge na síndroma nefrótica, LES ou decorrendo de transplante renal); pode manifestar-se por hematúria, anúria, vómitos, hipovolémia, proteinúria e trombocitopénia, ou, exclusivamente, por uma complicação como TEP;
  4. trombose da veia porta (TP) – no período neonatal relaciona-se com cateterismo umbilical e sépsis; em crianças mais velhas surge associado a transplante hepático, infecções, esplenectomia, doença falciforme, quimioterapia, ou a anticorpos antifosfolípidos; por vezes assintomática, pode apresentar-se com trombocitopénia e/ou elevação das enzimas hepáticas ou sob a forma de abdómen agudo, mais frequentemente em adolescentes; quando assintomática, pode atrasar o diagnóstico só realizado quando surgem sinais de hipertensão portal crónica (esplenomegália ou hemorragia gastrintestinal secundária a varizes esofágicas).

A síndroma pós-trombótica (SPT), complicação crónica do TEV, caracteriza-se por insuficiência venosa crónica, com consequente edema, dor crónica e ulceração do membro afectado. Estão implicados diversos mecanismos fisiopatológicos que incluem um processo inflamatório no interior do vaso afectado, obstrução do fluxo venoso, obstrução das válvulas venosas e refluxo venoso.

Como sintomatologia, destacam-se: edema localizado, dor, alterações da temperatura cutânea, assimetria do diâmetro dos membros, presença de veias varicosas e alterações cutâneas tróficas (dermatite de estase) e ulceração. Estima-se que, em idade pediátrica, o risco de surgimento de SPT após TEV seja ~10-70%.

Diagnóstico

Para o diagnóstico e caracterização da extensão da doença trombótica (ou tromboembólica) podem ser utilizados diversos exames, a destacar:

  • Ecografia com estudo de doppler;
  • Angiografia com contraste ou a angiorressonância (Angio-RM). Para avaliação ao nível dos membros inferiores, a ecografia com doppler será o exame mais adequado. A angio-RM permite caracterizar melhor as veias torácicas e as abdominais profundas podendo estar indicada, em casos especiais, a angiografia com contraste.

O estudo analítico da coagulação (“de rotina”) não tem utilidade para o diagnóstico de evento tromboembólico agudo. Para investigação de um episódio de TEV, para além de uma história clínica completa com identificação de factores de risco adquiridos, poderá estar indicado o estudo analítico das proteínas C, S, antitrombina (AT-III), factor V de Leiden e protrombina (G20210A). Em fase aguda o doseamento das proteínas anticoagulantes e antitrombina pode estar alterado devendo ser confirmado posteriormente, em consulta.

Um dos argumentos contra a indicação da pesquisa de trombofilia hereditária após um episódio de TEV secundário é o de que a sua identificação quase nunca influencia, de forma relevante, a intervenção terapêutica de anticoagulação na situação aguda.

Como excepção a esta atitude, cita-se o caso de criança com défice grave de proteína C ou S ou antitrombina (em homozigotia ou heterozigotia composta) que se apresente com purpura fulminans, trombose extensa de grandes vasos ou coagulação intravascular disseminada em que, de facto, o diagnóstico influencia a terapêutica; no entanto, estas situações são extremamente raras (1/250.000-1/500.000 nados-vivos).

O diagnóstico diferencial da doença tromboembólica depende do órgão afectado e do tipo de vaso. No caso de sinais de trombose arterial fundamentalmente há a considerar a hipótese de arterite no contexto de doença de Kawasaki e de LES. Verificando-se quadro de trombose venosa das extremidades, há que salientar que as lesões traumáticas e infecciosas originam idêntica sintomatologia.

Tratamento

Os objectivos da terapêutica antitrombótica em crianças com TEV são: (1) reduzir o risco de morte provocada pela extensão ou embolização do trombo; (2) reduzir a incidência de trombose recorrente; (3) limitar a lesão vascular de forma a reduzir o risco de síndroma pós-trombótica; (4) manter a permeabilidade do vaso, especialmente em doentes que necessitam de acesso vascular.

Anticoagulação

Aspectos gerais

Na idade pediátrica estão aconselhados essencialmente:

  • Heparina de baixo peso molecular (HBPM) e não fraccionada (HNF) e;
  • Antagonistas da vitamina K, orais.

Numa fase inicial deve ser usada heparina, nomeadamente a HBPM por apresentar maior facilidade na administração, e maior estabilidade e biodisponibilidade.

A HNF poderá estar indicada nas situações de instabilidade clínica (pós-operatório, cuidados intensivos).

Na terapêutica de manutenção pode estar indicado um antagonista da vitamina K (ex. varfarina). Em situações complexas, na presença de outras comorbilidades, ou em crianças pequenas, em que o controlo da terapêutica com varfarina pode ser difícil, está indicado manter a HBPM.

Aspectos específicos
  • Início de HBPM em dose terapêutica – enoxaparina, na dose de 1-1,5 mg/kg de 12/12h (dependendo da idade), por via subcutânea (SC). A terapêutica poderá ser monitorizada através do doseamento da actividade anti-Xa – (alvo: 0,5-1 UI/mL).
  • Se a decisão for proceder a anticoagulação com varfarina (antagonista de vitamina K), a mesma deverá ser iniciada (0,1 mg/kg/dose) mantendo-se, em simultâneo, a HBPM durante 5-6 dias, até INR superior a 2-2,5. A varfarina nunca deverá ser iniciada em monoterapia por poder condicionar um estado protrombótico nos primeiros dias de terapêutica (antagonismo das proteínas anticoagulantes C e S). A actividade da varfarina será monitorizada através do valor do INR, o que dependerá da patologia e do território vascular afetado.
  • A terapêutica trombolítica – com a urocinase (UK) e o activador do plasminogénio tecidual (PAI), os agentes mais usados – apresenta ainda limitações em termos de eficácia, dose ou segurança em idade pediátrica. Actua através da conversão do plasminogénio em plasmina com consequente dissolução do trombo e aumento da permeabilidade vascular, aliviando a oclusão do vaso. Por apresentar um elevado risco hemorrágico, está reservada apenas para situações emergentes com compromisso de órgão ou membro, por exemplo, trombose extensa das veias da cavidade pélvica, veia cava superior ou inferior, locais intracardíacos ou tromboembolismo pulmonar (TEP).
  • Nos casos de insucesso de trombólise pode estar indicada, em casos seleccionados, a ressecção cirúrgica do coágulo.

O tratamento da trombose associada a CVC pode implicar a sua remoção. Nestes casos, antes da remoção, deve realizar-se um mínimo de 3-5 dias de anticoagulação sistémica.

Duração do tratamento

  • A duração da anticoagulação depende da etiologia da trombose; nos casos de trombose secundária cuja causa foi eliminada, deve ser realizado durante o tempo mínimo de 3 meses. Se a causa se mantiver (ex. CVC), a anticoagulação deverá ser mantida até à remoção do factor de risco conhecido.
  • No caso do TEV idiopático, a anticoagulação deve ser mantida, no mínimo, durante 6 meses.
  • Em casos de trombose recorrente idiopática ou associada a síndroma de anticorpos antifosfolípidos, pode haver necessidade de manter anticoagulação profiláctica durante toda a vida, dado o elevado risco de recorrência.

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DOENÇA DE VON WILLEBRAND

Definição e importância do problema

A doença de von Willebrand (dvW) consiste num defeito da hemostase primária caracterizado por alteração quantitativa ou qualitativa do factor de von Willebrand (fvW).

O fvW é uma glicoproteína sintetizada pelos megacariócitos e células endoteliais; a glicoproteína sintetizada pelos megacariócitos armazena-se nos grânulos alfa plaquetários, e a das células endoteliais liberta-se de forma directa para o plasma, ou armazena-se nos corpos de Weibel-Palade.

O referido factor desempenha um papel fundamental na hemostase: 1) mediação da adesão plaquetária ao endotélio vascular lesado; 2) transporte e estabilização do factor VIII (FVIII) em circulação, impedindo a sua inactivação pela proteína C activada.

O referido factor circula sob a forma de multímeros agregados. Quando activado, são libertados para a circulação os multímeros de maior peso molecular, que correspondem às suas formas mais activas. Sendo protrombóticas, estas formas são fisiologicamente clivadas por uma protease (ADAMTS13), tornando-se menores e hemostaticamente menos activas.

A dvW é a coagulopatia hereditária mais frequente, afectando cerca de 1-2% da população (sem predomínio de sexo). Contudo, apenas 1% dos indivíduos afectados é sintomático. Embora raras, existem também formas adquiridas de dvW, geralmente secundárias a patologia autoimune ou oncológica.

Etiopatogénese e classificação

Em 2006 a International Society on Thrombosis and Haemostasis classificou a doença de acordo com o fenótipo nos seguintes grupos:

  • O relacionado com alterações quantitativas, integrando os tipos 1 e 3; e
  • O relacionado com alterações qualitativas, integrando o tipo 2.

O gene do fvW localiza-se no cromossoma 12, salientando-se a existência de um pseudogene parcial no cromossoma 22. No que respeita à hereditariedade, é importante pormenorizar os seguintes aspectos:

  • Tipo 1 (autossómico dominante) corresponde a cerca de 80% dos casos e traduz-se por um défice ligeiro a moderado de fvW;
  • Tipo 3 (autossómico recessivo) em que existe um défice grave de fvW;
  • Tipo 2 (autossómico recessivo ou dominante) pode ser subdividido nos seguintes subtipos:
    • 2A, em que existe perda de multímeros de maior peso molecular, com consequente diminuição da capacidade de ligação plaquetária;
    • 2B, caracterizado por aumento da ligação às plaquetas, aumentando a sua destruição;
    • 2M, que cursa com multímeros de dimensão normal, mas disfuncionais e com menor capacidade de interacção plaquetária; e
    • 2N, em que se verifica diminuição da capacidade de ligação ao FVIII, provocando a sua rápida eliminação.

Foram identificadas mais de 250 mutações, na sua maioria nos tipos 2 e 3. No tipo 1 o risco de transmissão da doença é ~50%, embora só em cerca de 1/3 dos casos se verifiquem manifestações hemorrágicas; tal é explicável pela variabilidade da penetrância e da expressividade do gene.

Manifestações clínicas

Tratando-se duma alteração da hemostase primária, as manifestações clássicas relacionam-se com discrasia mucocutânea (predominantemente equimoses fáceis, epistaxe, gengivorragias e menorragias). Na dvW dos tipos 2N e 3, pela diminuição mais significativa de FVIII associada, as manifestações podem ser sobreponíveis às da hemofilia.

A sintomatologia pode surgir em qualquer idade e com um espectro de gravidade variável. Quanto mais ligeira a variante fenotípica, mais difícil o diagnóstico. Além disso, as manifestações hemorrágicas podem por vezes ser subtis, ao ponto de poderem ser confundidas com as manifestações hemorrágicas da população sem doença.

Nesta perspectiva, importa relevar o papel da história clínica elaborada com rigor tentando investigar a eventualidade de antecedentes hemorrágicos em familiares e, portanto, de dvW subdiagnosticada. A este respeito, salienta-se que existe a possibilidade de recorrer a questionários estruturados tentando avaliar o risco hemorrágico e a probabilidade de coagulopatia (por exemplo, através dos Bleeding Assessment Tools – BAT e do Pediatric Bleeding Questionnaire).

Diagnóstico

Na suspeita de dvW, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Antigénio fvW (fvW:Ag), que avalia a quantidade de fvW no plasma;
  • fvW:RCo ou funcional que avalia a actividade do fvW;
  • O doseamento de FVIII;
  • O hemograma permite excluir a presença de trombocitopénia associada ao tipo 2B.

A combinação destes exames laboratoriais possibilita, na maioria dos casos, a classificação dos principais tipos de dvW.

A determinação da razão fvW: Rco/fvW:Ag fornece uma ajuda importante na orientação do diagnóstico: uma razão inferior a 0,6 favorece o diagnóstico de alteração qualitativa (tipo 2A, 2B ou 2M).

A análise de multímeros do fvW e a realização de testes de agregação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA), apenas indicadas após estabelecido o diagnóstico de dvW, contribuem para a distinção das subclasses 2A, 2B e 2M.

Dado que na dvW do tipo 2N o doseamento do fvW é normal (ou quase normal) e o FVIII está diminuído, o diagnóstico diferencial com a hemofilia A ligeira implica a determinação da capacidade de ligação do fvW ao FVIII/estudo genético. (Quadro 1)

Existem várias circunstâncias susceptíveis de influência nos níveis de fvW:

  • Nos casos de grupo sanguíneo 0 os respectivos níveis séricos são cerca de 25% mais baixos em comparação com outros grupos sanguíneos; daqui se infere que se deverá proceder sempre à avaliação do grupo sanguíneo no contexto da possibilidade desta coagulopatia;
  • O estresse, infecções, exercício físico, gravidez ou terapêutica com anticonceptivos orais associam-se a variações dos valores basais; assim, a influência de tais factores poderá ser minorada se se proceder a duas determinações.

NB: De facto, sendo o f vW (e, também, o F VII) proteínas da fase aguda, há que atender à possibilidade de variações ao longo do dia dependentes de diversas influências.

Estudos de genética molecular estão reservados para casos específicos.

QUADRO 1 – Padrão laboratorial dos diferentes tipos de dvW

 PlaquetasfvW:AgfvW:RCoFVIII:CAnálise de multímeros
Alteração quantitativa do fvW
Tipo 1NormalNormal a ↓Normal
Tipo 3Normal↓↓↓↓↓↓↓↓↓Ausentes
Alteração qualitativa do fvW
Tipo 2ANormal↓↓Normal a ↓Perda de MAPM
Tipo 2B↓↓Normal a ↓Perda de MAPM
Tipo 2MNormal↓↓Normal a ↓Normal
Tipo 2NNormalNormal a ↓Normal a ↓↓↓

Normal

MAPM = multímeros de alto peso molecular

Tratamento

O tratamento da dvW está indicado em casos de hemorragia activa ou preparação para procedimentos invasivos.

  1. O acetato de desmopressina (DDAVP) é um análogo sintético da vasopressina que promove a libertação de fvW do endotélio vascular, aumentando também a semi-vida do FVIII. A resposta é variável de doente para doente, sendo favorável na maioria dos doentes com dvW tipo 1 e em alguns do tipo 2. No tipo 2B pode haver agravamento da trombocitopénia e no tipo 3 não há resposta, pelo que a administração não está indicada. Antes da utilização em situação aguda, deve ser realizada uma prova prévia que confirme a eficácia do DDAVP. Nas hemorragias ligeiras, utiliza-se preferencialmente a via intranasal (150 μg/dose em doentes com menos de 50 kg, e 300 μg/dose em doentes com peso superior), estando a via endovenosa (0,3 μg/kg/dose até máximo de 20 μg/dose) reservada para os casos mais graves/preparação para procedimentos invasivos minor.
    Como normas importantes, refere-se:
      – Restrição hídrica;
      – Não administração de doses com intervalos inferiores a 24 horas ou mais de três doses, dada a redução do efeito (taquifilaxia) e o aumento dos efeitos adversos (destacando-se a hiponatrémia).
  2. O tratamento com concentrado de FVIII + fvW permite a reposição do factor em falta, estando indicado nos seguintes casos:
    1. resposta ao DDAVP insuficiente;
    2. DDAVP não indicado (dvW tipo 3 e 2B);
    3. DDAVP contraindicado (idade inferior a 2 anos ou doença cardíaca);
    4. todos os casos de lesão traumática/hemorragia grave ou cirurgia major.
  3. A terapêutica adjuvante com agentes antifibrinolíticos (ácido aminocapróico ou tranexâmico) que actuam na estabilização do coágulo, tem também um papel importante na hemorragia das mucosas; poderão até ser utilizados isoladamente nas hemorragias minor em associação a medidas locais de compressão).
  4. Devem ser evitados os anti-inflamatórios não esteróides, pela sua acção anti-agregante plaquetária.

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HEMOFILIA

Introdução

As coagulopatias congénitas são afecções causadas por alteração dos genes que codificam um ou vários factores implicados na cascata da coagulação. A hemofilia A e a hemofilia B, juntamente com a doença de von Willebrand, integram na sua grande maioria (cerca de 95%) as deficiências congénitas dos factores de coagulação.

As restantes coagulopatias (deficiências de fibrinogénio, factores II, V, VII, X, XI, XIII, assim como as deficiências combinadas de factores V e VIII, pertencem ao grupo das chamadas doenças raras, com uma incidência de 1/500.000 a 2.000.000 nas formas homozigóticas.

O Quadro 1 sintetiza as anomalias básicas da hemostase (tempo de protrombina/TP e tempo de tromboplastina parcial activado/TTPa ou aPTT) relacionadas com os défices dos factores discriminados antes, exceptuando o factor XIII.

QUADRO 1 – Anomalias básicas da hemostase relacionadas com o factor deficiente

Factor deficiente TP TTPa
VIIAnormalNormal
VIII, IX e XINormalAnormal
Fibrinogénio, II, V, V+VIII e XAnormalAnormal

Definição e importância do problema

A hemofilia é uma coagulopatia congénita causada pelo défice quantitativo de factor VIII (F VIII) da coagulação – hemofilia A, ou de factor IX (F IX) – hemofilia B. Trata-se de doenças monogénicas, resultantes de uma mutação do gene F8 na hemofilia A, e F9 na hemofilia B, ambos localizados no braço longo do cromossoma X (Xq28); portanto, com um padrão de hereditariedade ligada ao sexo.

 

Nas restantes coagulopatias atrás citadas, a maioria dos genes responsáveis localiza-se nos cromossomas autossómicos, o que lhes confere a característica de hereditariedade mendeliana clássica.

A hemofilia classifica-se em ligeira, moderada ou grave com base no nível de factor, expresso em percentagem do normal ou unidades internacionais (UI). Habitualmente, os níveis de factor correlacionam-se com a gravidade dos sintomas (Quadro 2). O prognóstico depende fundamentalmente das complicações hemorrágicas e das sequelas resultantes de hemorragias recorrentes.

QUADRO 2 – Classificação das hemofilias A e B

GrauActividade do factorTipo de hemorragiaIdade do diagnóstico
Ligeiro≥ 5 e < 40% (6-39 U/dL)Frequentemente espontânea< 1 ano
Moderado≥ 1 e < 5% (1-5 U/dL)Relação com trauma mínimo1-5 anos
Grave< 1% (< 1U/dL)Prolongada após trauma grave ou cirurgiaMais tardia

Aspectos epidemiológicos

A seguir à doença de von Willebrand, a hemofilia é a coagulopatia hereditária mais frequente, com uma incidência estimada de cerca de 1/10.000 nascimentos. Tratando-se de uma doença recessiva ligada ao cromossoma X, a hemofilia grave afecta quase exclusivamente o género masculino, existindo geralmente antecedentes familiares na linhagem materna. Em cerca de 30% dos casos não existe história familiar (elevada frequência de mutações de novo).

As mulheres portadoras apresentam níveis de factor e manifestações clínicas variáveis. Em casos raros (heterozigotia composta, fenómenos de Lyon, ou perda do cromossoma X) as mesmas podem ter um fenótipo mais grave.

A hemofilia A, mais frequente que a hemofilia B (respectivamente 1/5.000 versus 1/30.000), representa 80-85% do total dos doentes. Está também associada, habitualmente, a maior gravidade

Manifestações clínicas

Embora a hemorragia das mucosas e as equimoses espontâneas/fáceis possam ser os sinais mais precoces da doença, a hemorragia muscular e a hemartrose constituem a manifestação clínica clássica.

Hemofilia grave

Apesar de ser possível o diagnóstico pré-natal (por amniocentese ou punção das vilosidades coriais), na maioria dos casos a hemofilia grave é diagnosticada ao nascer (manifestações hemorrágicas no pós-parto imediato) ou nas primeiras semanas de vida.

Embora a maioria dos doentes não tenha hemorragia significativa no período perinatal, alguns poderão apresentar hematomas extensos ou hemorragia prolongada ao nível da zona cruenta da pele abdominal ao destacar-se o cordão umbilical. A hemorragia intracraniana é rara (3-4% dos casos).

Durante os primeiros meses de vida as manifestações são raras; no entanto, poderá ocorrer hemorragia/hematoma excessivos em situações como erupção dentária, incisão do freio lingual, circuncisão ou aplicação de vacinas por injecção.

Após a aquisição da marcha, à medida que a actividade física aumenta, os hematomas e hemartroses (espontâneos ou após lesões traumáticas minor) tornam-se frequentes, constituindo a principal causa de morbilidade. Com efeito, na criança não tratada, a evolução natural da doença provoca artropatia crónica e incapacitante, resultante de hemartroses recorrentes.

Os hematomas musculares constituem a segunda forma de manifestação mais frequente, podendo estar associados a complicações graves como a síndroma compartimental; por outro lado, as hemorragias localizadas nos grandes músculos (músculos da coxa ou o psoas-ilíaco) podem implicar perdas sanguíneas significativas. Salienta-se que a hemorragia do músculo psoas pode simular sintomatologia compatível com “abdómen agudo”.

As hemorragias do sistema nervoso central, embora raras, constituem a principal causa de morte. Podem ser espontâneas ou pós-traumáticas e, em geral, manifestam-se por cefaleias, vómitos ou alterações do estado de consciência.

Também as hemorragias da via aérea, nomeadamente os hematomas da base da língua e retrofaríngeos, constituem uma emergência pelo risco de obstrução da via aérea. (Figuras 1 a 4)

Embora geralmente de menor gravidade, não é incomum o aparecimento de hematúria, epistaxe ou hemorragia gastrintestinal.

FIGURA 1 – A – Hematoma do couro cabeludo. (NIHDE)

FIGURA 2 – A – Hemartrose do joelho. (NIHDE)

FIGURA 3 – A – Hematoma inguinocrural. (NIHDE)

FIGURA 4 – A – Hematoma da base da língua. (NIHDE)

Hemofilia moderada

Nesta forma, as hemorragias espontâneas são raras. Contudo, podem existir hemorragias prolongadas e em desproporção com lesões traumáticas ligeiras.

Hemofilia ligeira

Os indivíduos com hemofilia ligeira apresentam-se, por norma, mais tardiamente (muitas vezes na idade adulta) após, por exemplo, intervenções cirúrgicas, fracturas, feridas contusas de origem traumática, extracções dentárias, ou aplicação de injecções).

Exames complementares

Reportando-nos ao Quadro 1, importa referir que a hemofilia se caracteriza por um prolongamento do tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa). O número de plaquetas e o tempo de protrombina (TP) são normais.

Na suspeita de hemofilia, deve proceder-se ao doseamento sérico dos factores de coagulação VIII e IX. Com efeito, o doseamento dos F VIII e F IX permite confirmar o diagnóstico e classificar a hemofilia de acordo com o tipo e gravidade.

Perante um nível baixo de F VIII, é fundamental a documentação de níveis normais do factor de von Willebrand (F vW) para excluir a possibilidade de doença de von Willebrand do tipo 3 (que corresponde a deficiência completa de F vW), sobretudo se existir história de consanguinidade ou ausência de antecedentes familiares de hemofilia.

A distinção entre a doença de von Willebrand do tipo 2N e hemofilia A ligeira implica o estudo da capacidade de ligação do F vW ao F VIII/estudo genético. (ver capítulo seguinte)

O estudo genético está indicado em todos os casos suspeitos de hemofilia. Permite confirmação diagnóstica, estudo familiar e aconselhamento genético, para além de ter valor preditivo quanto ao fenótipo e ao risco de desenvolvimento de inibidores. Após detecção de uma mutação no caso índex, está indicado o estudo genético da família.

Actuação prática

Aspectos gerais

O seguimento destes doentes, por ser complexo, deve ser feito em centros especializados por uma equipa multidisciplinar. A abordagem destes doentes implica cuidados preventivos, terapêutica de substituição com concentrado de factor e tratamento das complicações relacionadas com a doença e com o tratamento.

Administração de concentrados de factor

Nas últimas décadas, após a introdução da terapêutica de substituição com concentrados de factor VIII e IX, a esperança média de vida destes doentes aumentou substancialmente, com diminuição significativa da morbilidade.

Os concentrados de factor constituem a base do tratamento da hemofilia. São fundamentais na profilaxia dos doentes com hemofilia grave e no tratamento da hemorragia aguda. Actualmente estão disponíveis dois tipos de concentrados de factor: os derivados do plasma e os recombinantes (preferencialmente utilizados), estando o uso de plasma fresco ou crioprecipitado contraindicado.

Actuação na hemorragia aguda

Perante uma hemorragia aguda, o principal objectivo é a reposição do factor deficitário para se atingir um nível sérico hemostático. A abordagem terapêutica e dose de factor a administrar dependem do tipo e gravidade da hemorragia.

Na prática, o número de unidades de factor a administrar depende do peso do doente, volume de distribuição do factor e da dose alvo pretendida. O Quadro 3 resume algumas noções importantes a ter em conta na abordagem da hemorragia aguda.

QUADRO 3 – Cálculo para administração de factor em situações de hemorragia aguda

FACTOR VIII
Semi-vida: 8-12 horas
Concentrado de factor derivado do plasma ou recombinante: 1 U/kg eleva o nível de factor em 2%
Cálculo da dose de F VIII (UI) a administrar = peso do doente (kg) x % de incremento desejado x 0,5
FACTOR IX
Semi-vida: 18-24 horas
Concentrado de factor derivado do plasma: 1 U/kg eleva o nível de factor em 1%
Cálculo da dose de F IX (UI) a administrar = peso do doente (kg) x % de incremento desejado
Concentrado de factor recombinante: 1 U/kg eleva o nível de factor em 0,8% (>15 anos) e 0,7% (<15 anos)
Cálculo da dose de rF IX (UI) a administrar = peso do doente (kg) x % de incremento desejado x 1,2 (> 15 anos) ou x 1,5 (< 15 anos)

Na presença de hemorragia confirmada ou suspeita, é fundamental a rápida avaliação e administração de factor como primeira medida (Factor first), não devendo a realização de exames complementares de diagnóstico atrasar a sua administração.

O Quadro 4 descreve mais detalhadamente os níveis de factor desejados e a duração da terapêutica em função da hemorragia específica.

QUADRO 4 – Nível de factor alvo e duração da terapêutica de acordo com o tipo de hemorragia

 

HEMOFILIA A

HEMOFILIA B

 
Tipo de hemorragiaNível desejado (U/dL)Nível desejado (U/dL)Duração (dias)
Articular40-6040-601-2
Muscular40-6040-602-3
Ilio-psoas, muscular com compromisso neurovascular ou hemorragia significativa
· Inicial
· Manutenção
80-100
30-60
60-80
30-60
1-2
3-5
Laceração profunda50405-7
SNC/Traumatismo Cranioencefálico
· Inicial
· Manutenção
80-100
50
60-80
30
1-7
8-21
Orofaringe/pescoço
· Inicial
· Manutenção
80-100
50
60-80
30
1-7
8-14
Gastrintestinal   
· Inicial
· Manutenção
80-100
50
60-80
30
7-14

Renal50403-5
Cirurgia major
· Pré-operatório
· Pós-operatório
80-100
60-80
40-60
30-50
60-80
40-60
30-50
20-40

1-3
4-6
6-14
Cirurgia minor
· Pré-operatório
· Pós-operatório
50-80
30-80
50-80
30-80

1-5, consoante
procedimento

Outras medidas terapêuticas

Para além da reposição de factor, existem outras medidas terapêuticas que poderão estar indicadas:

 1. Acetato de desmopressina (DDAVP)

Este análogo da vasopressina promove a libertação das reservas endoteliais de FVIII, aumentando o nível deste factor em circulação. Os doentes com hemofilia A ligeira e manifestações ligeiras a moderadas podem, muitas vezes, ser tratados apenas com DDAVP, desde que se tenha previamente provado boa resposta.

O DDAVP pode ser administrado por via endovenosa (0,3 mcg/kg/dose, máximo 20 mcg) ou nasal (150 mcg/dose em doente com menos de 50 kg, 300 mcg/dose a partir dos 50 kg). A formulação intranasal indicada tem uma concentração de 1,5 mg/ml, não se encontrando disponível nas farmácias da comunidade (as formulações destinadas à terapêutica da enurese e diabetes insípida têm uma baixa concentração e não devem ser usadas na hemofilia).

Deve ser assegurada a restrição hídrica e não devem ser administradas doses com intervalos inferiores a 24 horas, ou mais de três doses, dada a redução do efeito (taquifilaxia) e o aumento dos efeitos adversos associados (hiponatrémia).

2. Antifibrinolíticos (ácido aminocapróico e ácido tranexâmico)

Estes fármacos inibem a activação do plasminogénio, permitindo a estabilização do coágulo. São úteis nas hemorragias ligeiras das mucosas (oral, gastrintestinal, nasal e ginecológica), podendo dispensar a administração de factor.

Estão contraindicados em hemorragias do tracto urinário pelo risco de formação de coágulos e obstrução vesicouretral. Ambos os fármacos podem ser administrados por via oral, endovenosa ou local (dose de ácido aminocapróico: 75-100 mg/kg/dose; ácido tranexâmico 25 mg/kg/dose, administrados de 6 em 6 horas).

3. Analgesia

Para além das medidas farmacológicas específicas, deve ser instituída precocemente analgesia associada a outras medidas conhecidas pelo acrónimo, do inglês – RICE- (Rest; Ice; Compression; Elevation).

Actuação nas hemorragias com localizações específicas

Hemartrose

Os primeiros sintomas podem ser apenas parestesias ou desconforto local – aura; a reposição precoce de factor previne a lesão tecidual e perpetuação do ciclo hemorragia” lesão” hemorragia.

Hematoma intramuscular profundo

Esta situação exige um elevado nível de suspeição. A hemorragia do psoas-ilíaco pode manifestar-se por dor abdominal, lombar ou referida à articulação coxo-femoral com limitação da extensão do membro (movimentos de rotação mantidos), parestesias da coxa ou outros sinais de compressão do nervo femoral. Os exames de imagem não estão indicados por rotina nas hemartroses e hematomas musculares, nem nas formas aparentemente menos graves; portanto, há que ponderar caso a caso.

Nas hemorragias graves do músculo psoas devem ser realizados exames de imagem após a primeira administração de factor (Factor first). (ver atrás – Actuação na hemorragia aguda)

Hemorragia do sistema nervoso central (SNC)

Constitui uma emergência médica. Os traumatismos cranianos e cefaleias intensas devem ser tratados como hemorragia do SNC.

Nas hemorragias graves do SNC devem ser realizados exames de imagem após a primeira administração de factor (Factor first).

Hematúria

Nesta situação os agentes antifibrinolíticos estão contraindicados. A hematúria microscópica e indolor deve ser tratada com repouso e hidratação vigorosa durante 48 horas. Uma hematúria macroscópica persistente ou hematúria associada a dor ou trauma implicam terapêutica de substituição com concentrados de factor.

Terapêutica em investigação

No início da década de 1990 surgiu a terapêutica génica como uma opção de cura para esta doença monogénica. Contudo, os resultados da investigação não tiveram o êxito esperado até à actualidade.

Por outro lado, os centros de investigação neste campo procuram novas moléculas que permitam prolongar a vida média dos factores que actualmente já são utilizados.

Profilaxia

A profilaxia, indicada na hemofilia grave consiste na administração programada e regular do factor em deficiência. O objectivo é manter um nível mínimo de factor VIII ou IX (entre 1 e 5% ou, genericamente, > 1%) no sentido de diminuir o risco de hemorragia espontânea e de consequente lesão osteoarticular. De facto, os indivíduos com hemofilia moderada raramente contraem artropatia crónica.

São considerados dois tipos de profilaxia em função do momento em que se inicia a respectiva administração:

Profilaxia primária

É iniciada entre o 1 ano e os 2 anos de idade (antes de a criança começar a sofrer de hemartrose ou após a primeira hemorragia articular). Tal medida possibilita uma redução drástica do número de episódios hemorrágicos, preservando as articulações; os inconvenientes são a necessidade de via central de acesso venoso permanente e o elevado custo do factor.

Profilaxia secundária

Considera-se esta modalidade se o tratamento regular contínuo tiver sido iniciado após os 2 anos de idade, ou após duas ou mais hemorragias numa articulação-alvo. De salientar, no entanto, que o esquema profiláctico deve ser individualizado tendo em conta a frequência dos episódios hemorrágicos, a adesão da família e a disponibilidade de acessos venosos.

Complicações

A artropatia hemofílica constituiu uma lesão articular crónica e incapacitante, resultante de hemartroses recorrentes, mais frequentemente numa articulação alvo. Actualmente, a profilaxia primária e o adequado tratamento da hemorragia aguda tornaram esta entidade menos frequente.

A formação de inibidores é uma das complicações mais preocupantes e frequentes no doente com hemofilia. Os inibidores são anticorpos (IgG) contra o factor da coagulação exógeno, tornando a sua reposição ineficaz. Ocorrem aproximadamente em 25% dos doentes com hemofilia A grave, e apenas em 3-5% dos que sofrem de hemofilia B grave, sendo muito menos frequentes na doença moderada ou ligeira. Na hemofilia B poderão também surgir reacções anafilactóides ao factor IX exógeno.

No tratamento dos doentes com baixos títulos de inibidores, as hemorragias podem ser tratadas aumentando as doses de factor VIII ou IX. No entanto, em doentes com elevados títulos, o tratamento das hemorragias implica a utilização dos chamados agentes de bypass (capazes de gerar trombina na ausência de F VIII ou F IX), como o factor VII recombinante activado ou o concentrado de complexo protrombínico activado. Estes doentes são geralmente submetidos a indução de imunotolerância.

As complicações infecciosas relacionadas com derivados do plasma têm fundamentalmente um significado histórico. É importante, no entanto, manter uma vigilância rigorosa dada a possibilidade de transmissão de agentes ainda desconhecidos.

Aconselhamento genético e educação para a saúde

O aconselhamento genético e psicossocial, assim como informação acerca da doença, são fundamentais. A prática de exercício físico deve ser incentivada, procurando evitar desportos de contacto (por exemplo, artes marciais). O doente deve ser alertado para a importância de uma higiene dentária cuidadosa com avaliação periódica pelo estomatologista.

Não existe contraindicação para realização de vacinas, devendo ser cumprido o Programa Nacional de Vacinação (PNV), e estando adicionalmente recomendada a vacina anti-hepatite A. Devem ser cumpridas as recomendações do PNV para indivíduos com alterações da coagulação.

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SÍNDROMAS DE INSUFICIÊNCIA MEDULAR

Definição e importância do problema

A falência ou insuficiência medular caracteriza-se por disfunção dos precursores hematopoiéticos envolvendo uma ou mais linhagens celulares (eritróide, mielóide e/ou megacariocítica, poupando habitualmente a série linfocitária).

As síndromas de falência medular (SFM), na maioria adquiridas, podem também ser hereditárias; estas últimas, de expressão em idade variável e não necessariamente congénitas ou de manifestação no recém-nascido, correspondem a cerca de 20% dos casos.

A incidência desta patologia é estimada em cerca de 2-6 casos por milhão de habitantes, 2-3 vezes superior na Ásia, sem predomínio de género. Verifica-se uma distribuição bimodal com um pico entre os 10 e os 25 anos, e outro depois dos 60 anos.

Embora se trate de situações clínicas potencialmente fatais, com os avanços das técnicas e acessibilidade de transplante de células progenitoras hematopoiéticas (TCPH), o tratamento das comorbilidades e a disponibilidade de novos fármacos, actualmente o prognóstico é cada vez mais favorável.

Etiopatogénese

A aplasia medular adquirida (AA) deve ser distinguida das formas de falência medular hereditárias (síndromas de falência medular hereditárias – SFMH) e das formas hipoplásicas associadas a síndromas mielodisplásicas (SMD).

As SFMH compreendem cerca de 25-30% dos casos na infância. Distinguir entre AA e as formas hereditárias poderá ser difícil na ausência das manifestações clássicas destas síndromas e/ou história familiar sugestiva. Por outro lado, a distinção entre SMD hipoplásicas e AA pode também constituir um desafio diagnóstico.

Nas formas adquiridas, para explicar a falência (ausência ou défice de produção) da medula óssea não se encontram causas na maioria dos casos (70-80%); este grupo constitui, por isso, as chamadas formas idiopáticas. Nos restantes 20-30% os factores etiológicos encontrados são: exposição a certos fármacos, químicos e vírus infectando os precursores medulares (sobretudo, vírus da imunodeficiência humana/VIH, vírus de Epstein-Barr/VEB, citomegalovírus/CMV, parvovírus B19 e das hepatites).

Os fármacos mais frequentemente associados a insuficiência medular são: cloranfenicol (sistémico), citosina-arabinósido, vincristina, ciclofosfamida, carbamazepina, difenil-hidantoína, indometacina, fenilbutazona, cloroquina, quinidina, acetazolamida, penicilamina, alopurinol, sulfametoxazol-trimetoprim, lítio, metildopa, etc..

Relativamente aos agentes químicos citam-se alguns insecticidas, certos metais de ouro e bismuto, perclorato de potássio, etc..

Na base da anomalia verificada parece estar uma perturbação da imunomodulação por intermédio dos referidos agentes exógenos os quais, activando o sistema imune, conduzem a destruição das células progenitoras/estaminais da medula óssea, sendo esta última substituída por tecido adiposo. Durante anos postulou-se que a patogénese da AA seria imunomediada, dada a resposta à terapêutica imunossupressora, bem como à evidência in vitro de que os linfócitos da medula óssea dos doentes com AA suprimem os linfócitos de medulas saudáveis.

Foram demonstradas as seguintes alterações: aumento de citocinas, e diminuição dos linfócitos T CD4 reguladores e CD8 citotóxicos. Os doentes com AA adquirida têm um número reduzido de linfócitos T reguladores (CD4+/ CD25+). O número destes linfócitos correlaciona-se negativamente com a gravidade da doença, e positivamente com falência do tratamento.

As formas hereditárias (SFMH) fazem geralmente parte de quadros sindromáticos caracterizados pela presença de citopénias e alterações fenotípicas variáveis. As principais, descritas com mais pormenor adiante, são: anemia de Fanconi (AF), anemia de Diamond-Blackfan, síndroma de Schwachman-Diamond (SSD), disqueratose congénita e trombocitopénia amegacariocítica.

Em determinadas situações existe associação a anomalias congénitas (baixa estatura, defeitos no rádio e polegar); contudo, a presença de dismorfismos não é obrigatória.

Está descrito um risco aumentado de doenças malignas (especialmente SMD, leucemia mielóide aguda, tumores sólidos, carcinomas de células escamosas atingindo o pescoço, cabeça e tracto genital).

Manifestações clínicas e exames complementares

A maioria das crianças apresenta-se com sinais e sintomas relacionados com as citopénias (palidez/anemia, infecção/neutropénia, diátese/trombocitopénia), enquanto uma pequena parte é identificada no âmbito de avaliação analítica ocasional (salientando-se a presença de macrocitose como sinal importante de disfunção medular).

As manifestações são explicáveis pelas diferenças de vida média entre plaquetas e leucócitos (mais curta), em relação à dos eritrócitos (mais longa). Assim, surgem primeiramente manifestações de diátese por trombocitopénia (petéquias, equimoses, epistaxes e gengivorragias).

Os sinais de infecção não surgem, em geral, como manifestação inicial excepto nos casos de número de granulócitos < 200/μL; podem estar presentes febre, infecções bacterianas e gengivoestomatite.

A anemia, de instalação lenta (macrocítica normocrómica), traduz-se por palidez da pele e mucosas, astenia, dispneia, entre outros sinais e sintomas. As manifestações clínicas variam em função do grau de pancitopénia. Tipicamente não existem adenopatias nem hepatosplenomegália.

O grau de disfunção (e a gravidade), definido (a) pela celularidade medular e pelo resultado das contagens periféricas de reticulócitos, plaquetas e neutrófilos, pode classificar-se como: moderado/não grave, grave e muito grave. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Classificação da falência medular de acordo com a gravidade

Moderada

Celularidade medular < 50%, 2 ou 3 linhagens celulares reduzidas > 6 semanas:
• Neutrófilos (número absoluto) < 1500/μL
• Plaquetas < 100.000/μL
• Reticulócitos < 60.000/μL

Grave

Celularidade medular < 25% associada a pelo menos 2 dos seguintes critérios:
· Neutrófilos (número absoluto) < 500/μL
· Plaquetas < 20.000/μL
· Reticulócitos < 20.000 /μL

Muito grave

Critérios da AA grave + Neutrófilos < 200/μL

 

Os resultados laboratoriais evidenciam sinais sugestivos de insuficiência medular: diminuição do número de reticulócitos (anemia arregenerativa), formas anormais de leucócitos ou elementos mielóides muito imaturos (mais imaturos que bastonetes), plaquetas pequenas, e volume globular médio elevado em desproporção com o valor baixo de reticulócitos. A hemoglobina fetal (HbF) está muitas vezes aumentada.

Classicamente o mielograma evidencia medula óssea hipocelular, rica em gordura, células plasmáticas e reticulares. A biópsia óssea, fundamental para estabelecer o diagnóstico definitivo, permite avaliar o grau de celularidade.

Seguidamente são abordadas de modo sucinto algumas SFMH, bem como outras entidades clínicas a considerar no diagnóstico diferencial.

Anemia de Fanconi (AF)

Trata-se da SFMH mais frequente. De transmissão autossómica recessiva (raramente ligado ao X), decorre de um defeito do mecanismo de reparação do ADN com consequente predisposição a doença maligna (designadamente mielodisplasia, leucemia mieloide e tumores dos tecidos epiteliais). O diagnóstico é feito em geral, entre os 8-10 anos, variando do nascimento aos 30 anos.

Em cerca de 60% dos casos existem anomalias congénitas associadas. Os achados mais típicos e frequentes são: baixa estatura, defeitos dos polegares (por ex. agenésia, dedo supranumerário ou trifalângico – Figura 1), máculas hipopigmentadas ou tipo “café com leite”, anomalias urogenitais (por ex. rim em ferradura), dismorfismo facial (hipoplasia facial, micrognatismo e base nasal alargada).

A disfunção hematológica inicia-se frequentemente com macrocitose, trombocitopénia e evolução para pancitopénia. Estas células têm uma sensibilidade característica predispondo a quebras cromossómicas induzidas por agentes que fazem cross links no ADN, bem como a uma estagnação do ciclo celular na fase G2/M.

O diagnóstico baseia-se:

  • Na demonstração, por estudo citogenético, de quebras cromossómicas espontâneas e induzidas por agentes que provocam lesão do ADN (por ex. mitomicina ou dietil-epoxi-butano – DEB); e
  • No estudo genético (sequenciação do gene FANC – fundamental em termos de orientação e prognóstico).

Têm indicação para pesquisa de anemia de Fanconi todas as crianças com diagnóstico de aplasia medular idiopática, citopénias de causa desconhecida (sobretudo na presença de macrocitose), mielodisplasia, e em presença de alterações fenotípicas (associação VACTERL, alterações dos membros superiores e/ou genitourinárias e irmãos de crianças com este diagnóstico).

Perante quadro de insuficiência medular grave, as opções terapêuticas são o TCPH ou a utilização de androgénios. De salientar que estas terapêuticas apenas tratam a disfunção medular, razão pela qual a vigilância doutras neoplasias deve ser mantida indefinidamente.

FIGURA 1 – Anemia de Fanconi. Defeito do polegar (com 3 falanges). (NIHDE)

Disqueratose congénita (DC)

A DC é uma síndroma de insuficiência medular congénita, mais frequentemente com um padrão de hereditariedade ligado ao cromossoma X. Na forma clássica, apresenta-se com:

  • A tríade clássica de displasia ectodérmica (coloração anormal da pele do pescoço e tronco surgindo habitualmente entre os 6 e os 8 anos), displasia ungueal e leucoplasia da mucosa oral;
  • Medula óssea hipocelular afectando as três séries hematopoiéticas.

Trata-se, pois, de uma forma de displasia ectodérmica geneticamente heterogénea, relacionada com defeitos na manutenção dos telómeros (encurtamento progressivo).

As alterações hematológicas (na generalidade, aplasia medular e pancitopénia) surgem em cerca de 50% dos casos por volta dos 10 anos de idade.

Nas formas atípicas as manifestações mucocutâneas surgem após a insuficiência medular.

Por vezes, as manifestações hematológicas, precedendo a pancitopénia, consistem em trombocitopénia ou anemia macrocítica e níveis elevados de hemogobina F.

As alterações genéticas da DC podem ser mutações no gene DKC1, o qual codifica a disquerina, uma proteína implicada na via das telomerases. Outros genes implicados são o TERC e o TERT.

Existem duas variantes do fenótipo mais grave:

  • Síndroma de Hoyeraal-Hreidarsson (hipoplasia cerebelosa e atraso do desenvolvimento psicomotor); e
  • Síndroma Revesz (semelhante à Hoyeraal-Hreidarsson), mas associada a retinopatia exsudativa.

O diagnóstico de DC implica a presença de 2 dos sinais da tríade clássica associada a uma mutação conhecida ou telómeros curtos. A existência de telómeros curtos no sangue periférico é o achado mais característico, ao ponto de a verificação de telómeros de comprimento normal poder excluir DC.

O diagnóstico de DC pode ser difícil, dado que 50% dos doentes não têm mutação identificada; assim, a medição dos telómeros linfocitários constitui um elemento fundamental para o diagnóstico.

Existe susceptibilidade aumentada para o desenvolvimento de neoplasias como SMD/leucemia mielóide, e tumores sólidos (epiteliais da cabeça e pescoço e região anogenital).

O tratamento é essencialmente de suporte. Poderão ser ponderados o TCPH e, eventualmente, a utilização de androgénios.

Anemia de Diamond-Blackfan

Trata-se duma aplasia eritróide “pura”. A transmissão hereditária é variável; na maioria, trata-se de casos esporádicos.

Segundo os resultados laboratoriais, verifica-se anemia macrocítica tipicamente isolada (podendo, no entanto, coexistir neutropénia e/ou trombocitopénia ligeiras), acompanhada de elevação da hemoglobina fetal (Hb F) e aumento da adenosina deaminase eritrocitária (ADAe).

O aumento da ADAe, de causa não totalmente esclarecida, foi proposto como marcador diagnóstico, com uma sensibilidade de 84% e especificidade de 95%.

A mutação mais frequentemente encontrada é a da proteína ribossomal RPS19 (25%). Em 50% dos casos não existe nenhuma mutação conhecida.

As manifestações surgem no recém-nascido ou durante o primeiro ano de vida em 90% dos casos. Do fenótipo podem fazer parte: baixa estatura/comprimento, polegar trifalângico, pterigium colli, lábio leporino, etc..

A terapêutica passa essencialmente pelo suporte transfusional (sobretudo no primeiro ano de vida) e corticoterapia (60% dos doentes têm resposta, devendo utilizar-se a dose mínima eficaz). Nos casos em que exista elevada dependência transfusional, deverá ser discutida a possibilidade de TCPH.

Existe risco elevado de neoplasias, nomeadamente de mielodisplasia/leucemia mielóide aguda, neoplasia do cólon e de osteossarcoma.

Síndroma de Shwachman-Diamond (SSD)

A etiopatogénese prende-se com uma mutação no gene SBDS, que codifica uma proteína necessária ao metabolismo do ARN.

A SSD é caracterizada por neutropénia (pode estar também presente anemia e trombocitopénia de menor gravidade), insuficiência pancreática exócrina e disostose metafisária.

Em tais situações pode também verificar-se baixa estatura, má progressão ponderal, exantema, alterações dos dentes, bem como sindactilia. Além da história clínica, o doseamento da elastase fecal, do tripsinogénio e da isoamilase pode ser útil para o diagnóstico.

Trombocitopénia amegacariocítica

(ver capítulo sobre Trombocitopénia)

Esta afecção deve ser suspeitada em doentes com trombocitopénia isolada sem os estigmas clássicos da anemia de Fanconi ou da síndroma de trombocitopénia com ausência de rádio (síndroma TAR). Por vezes, são verificadas comorbilidades como microcefalia, baixo peso de nascimento, alterações do neurodesenvolvimento, cardiopatia, anomalias estruturais do sistema nervoso central e anomalias ósseas.

A apresentação clínica na maioria dos casos integra a presença de trombocitopénia isolada, ausência de megacariócitos na medula e evolução para pancitopénia. A hereditariedade pode ser autossómica recessiva ou ligada ao cromossoma X. Em geral, relaciona-se com mutações no gene do receptor da trombopoietina (MPL); contudo, outros genes foram implicados como RUNX1, ANKRD26, MYH9 e PTPN1.

Existe risco de evolução para SMD/LMA. A realização de TCPH, que é curativa, idealmente deve ser realizada previamente à falência medular.

Linfo-histiocitose hemofagocitária

Esta síndroma (hemofagocitária) consiste num quadro de hiperinflamação com desregulação da resposta imune e, consequentemente, inefectiva. Pode ser de causa genética ou secundária a infecções (designadamente por VEB, CMV), a doenças malignas, situações autoinflamatórias ou a doenças metabólicas.

Verifica-se hipercrescimento de histiócitos com consequente fagocitose histiocitária das células sanguíneas nos gânglios linfáticos, medula óssea, fígado e baço.

As manifestações mais típicas são: pancitopénia, hepatosplenomegália, hipertrigliceridémia e pleiocitose no líquido cefalorraquidiano.

Hemoglobinúria paroxística nocturna

(ver Capítulo próprio)

Esta doença, rara na infância, manifesta-se em geral depois dos 5 anos de idade. Caracterizando-se por hemólise intravascular moderada a grave, é mediada pelo complemento e pode estar associada a anemia aplástica, trombose e ferropénia.

Em cerca de 30% dos casos comprova-se hipoplasia medular. A AA pode apresentar-se por expansão de um clone que já perdeu o grupo glicosil fosfatidilinositol (GPI), característico da hemoglobinúria paroxística nocturna (HPN). A citometria de fluxo para pesquisa dos grupos GPI deve ser feita de forma a excluir clones HPN.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial em geral faz-se com situações que cursam com citopénias associadas a:

  1. Infiltração ou fibrose medular (leucemia, tumores sólidos como neuroblastoma, doenças de armazenamento, osteopetrose e mielofibrose) acompanhada de pancitopénia.
  2. Carência de vitamina B12 e ácido fólico em que se verifica destruição intramedular de elementos hematopoiéticos.
  3. Destruição periférica aumentada (ao nível do baço, fígado ou outros territórios do sistema reticuloendotelial) de células sanguíneas maduras – hiperesplenismo – associada a quadros clínicos diversos tais como hipertensão portal, talassémia, histiocitose, malária e doenças de armazenamento.
    São a favor de destruição periférica a presença de reticulocitose, elementos eritróides ou mielóides imaturos no esfregaço de sangue periférico, plaquetas de dimensões aumentadas, elevação do nível de bilirrubina não conjugada e da desidrogenase láctica, e diminuição da haptoglobina.
  1. Crises aplásticas no contexto de anemia hemolítica crónica (sobretudo relacionada com infecção por Parvovirus B19).
  2. Citopénia isolada da linhagem eritrocitária – eritroblastopénia transitória da infância na qual ocorre supressão imunológica transitória da eritropoiese, em geral entre os 6 meses e os 3 anos de idade, e de modo insidioso, na criança previamente saudável. A anemia pode ser grave, mas a remissão é espontânea em 1-2 meses. Ao contrário da anemia de Diamond-Blackfan, a percentagem de HbF é normal e a anemia é sempre normocítica.

Tratamento da AA grave e muito grave

As medidas gerais de suporte em situações de insuficiência medular, a ponderar em função do quadro clínico e hematológico, incluem:

  • Transfusões de plaquetas (se valor < 10.000/μL em doentes assintomáticos, < 20.000/μL se febre ou se hemorragia activa) e de concentrado eritrocitário (se Hb < 6-7 g/dL ou em doentes sintomáticos).
    Os produtos deverão ser irradiados e deverá ser minorado o número de transfusões (com o objectivo de se diminuir o risco de doença do enxerto contra hospedeiro associada à transfusão, e de hemossiderose secundária). Nas adolescentes há que ponderar a supressão da menstruação.
  • Antibioticoterapia de largo espectro (por exemplo piperacilina tazobactam em associação, ou não, a aminoglicosídeo, mediante gravidade do caso e de acordo com orientações institucionais) por via parentérica em situações acompanhadas de febre e após colheitas de sangue ou outros produtos para exames culturais.

Na AA o tratamento de primeira linha é o alotransplante medular precoce (com sobrevivência de 85-97%). Na ausência de dador familiar, ou não relacionado histocompatível, deve ser iniciada imunossupressão com globulina antitimócito de cavalo (melhor resposta que a de coelho), associada a ciclosporina A de acordo com as recomendações internacionais. A terapêutica imunossupressora está associada a taxas de resposta entre 60-75%, com uma sobrevivência de 80-90% e recidiva de 10-30%.

Como segunda linha poderão ser utilizados outros imunossupressores, ser considerada a utilização de agonistas rTPO ou outras modalidades de transplante (haploidêntico).

O tratamento da AA moderada é controverso dado que a evolução é variável; certa parcela de casos evolui para AA severa e outra parcela regride espontaneamente.

Nas SFMH, para além da terapêutica específica para a insuficiência medular deve providenciar-se:

  • Vigilância clínica rigorosa na perspectiva sobretudo de neoplasias; e
  • Aconselhamento genético.

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ANOMALIAS FUNCIONAIS DAS PLAQUETAS

Importância do problema e sistematização

As manifestações clássicas de disfunção plaquetar, de gravidade variável, são as características da hemostase primária: diátese mucocutânea (nomeadamente petéquias, equimoses, epistaxe e menorragia). Com efeito, a verificação de petéquias e equimoses no mesmo doente aponta no sentido de alteração da função das plaquetas.

Previamente consideradas raras em idade pediátrica, as anomalias funcionais das plaquetas são cada vez mais reconhecidas. Estudos recentes sugerem que estes distúrbios poderão ser tão frequentes como a doença de von Willebrand nalguns grupos de doentes (tais como adolescentes com menorragia). Contudo, uma vez que as alterações nestes dois grupos de doenças ocorrem ao mesmo nível (hemostase primária) não é possível distinguir os referidos grupos apenas com base nas manifestações clínicas.

As anomalias funcionais das plaquetas podem ser congénitas ou adquiridas. A base etiopatogénica de tais anomalias assenta fundamentalmente em defeitos de proteínas de membrana, de receptores ou de grânulos plaquetários.

Anomalias funcionais congénitas

Dum modo geral, as anomalias funcionais plaquetárias congénitas relacionam-se com defeitos do receptor do FvW (complexo de glicoproteína GPIb) ou do receptor do fibrinogénio (GP-IIb-IIIa).

Formas graves como as que se descrevem adiante (trombastenia de Glanzmann e síndroma de Bernard Soulier) são raras, mas de diagnóstico mais fácil. As formas que cursam com disfunção ligeira, de diagnóstico mais difícil, poderão não ser identificadas com as provas de rastreio habituais.

É dada ênfase às seguintes formas clínicas que se seguem.

Trombastenia de Glanzmann

É uma doença autossómica recessiva provocada pela ausência ou disfunção do complexo GP IIb-IIa na superfície da plaqueta. Este receptor é responsável pela ligação da plaqueta a proteínas de adesão (fibrinogénio, factor de von Willebrand e fibronectina). Estão descritas duas formas clínicas: tipo I (em que há ausência total da GP), e tipo II (em que há défice parcial variável – 5% a 25%).

Como consequência do defeito, e em resposta aos agonistas habituais (trombina, ácido araquidónico, colagénio, ADP), não se verifica agregação plaquetária, ou esta é anómala.

Como nota característica aponta-se que o valor da contagem de plaquetas é adequado e o volume (VPM) é normal.

As manifestações são variáveis, desde equimoses fáceis até hemorragias fatais (mais graves na trombastenia tipo I).

Síndroma de Bernard-Soulier

Trata-se duma macrotrombocitopénia (outras doenças deste grupo incluem a anomalia de May-Hegglin e a síndroma da plaqueta cinzenta). A transmissão é autossómica recessiva e a disfunção é causada pela ausência ou diminuição do complexo GPIb/IX/V na superfície plaquetar. Este complexo actua como receptor do factor de von Willebrand.

As manifestações clínicas traduzem-se fundamentalmente por hemorragias gengivais espontâneas; concomitantemente, existe risco aumentado de hemorragia relacionada com traumatismos e pós-operatória.

Como achados laboratoriais salientam-se: trombocitopénia discreta e VPM aumentado.

Anomalias dos grânulos plaquetários

Estas incluem um grupo heterogéneo de defeitos associados à diminuição do número, conteúdo ou libertação dos grânulos. Muitas destas anomalias associam-se a defeitos dos grânulos densos (delta) ou alfa. Na maioria dos casos os defeitos de libertação ocorrem em contexto sindromático.

São exemplos as síndromas de Hermansky-Pudlak e de Chediak-Higashi, e a deficiência de grânulos densos (delta) idiopática. As manifestações hemorrágicas são geralmente benignas.

Anomalias funcionais adquiridas

Na prática clínica poderão surgir situações diversas originando secundariamente anomalias funcionais das plaquetas tais como: insuficiência renal, hepatopatias diversas, coagulação intravascular disseminada (CIVD), etc..

A administração de fármacos como antibióticos em doses elevadas (penicilina, cefalosporinas, carbenicilina), certos anestésicos, anti-histamínicos, psicotrópicos, ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não esteroides, poderá conduzir igualmente às referidas anomalias. Salienta-se a importância de questionar o doente previamente à realização de provas de função plaquetar para uma adequada interpretação dos resultados.

Exames complementares

  1. O diagnóstico de disfunção plaquetar constitui um desafio. Na presença de diátese mucocutânea e/ou história familiar, a avaliação inicial deve incluir hemograma (com VPM), morfologia do sangue periférico, TP e aPTT. Adicionalmente deve excluir-se doença de von Willebrand (pela frequência e relativa facilidade de acesso aos exames laboratoriais para diagnóstico).
  2. Historicamente utilizava-se o tempo de hemorragia para avaliar a função plaquetária. Contudo, tal análise é difícil de realizar na criança pequena, é pouco reprodutível, e pouco sensível para distúrbios ligeiros-moderados.
  3. Por isso, foi substituída por outro exame analítico como o PFS (Platelet Function Screen), o qual se encontra facilmente disponível, é reprodutível, e pode ser realizado na criança pequena. É igualmente pouco sensível nos distúrbios ligeiros.
    Uma vez que é influenciado: – pelo factor de von Willebrand, – pelo valor da contagem de plaquetas (nº de plaquetas < 100.000/mcL não permitindo uma correta interpretação dos resultados), – pelo hematócrito (especialmente se inferior a 30%), e – por fármacos, etc., se o resultado evidenciar alteração, deve ser confirmado.
  4. O exame de eleição para esta patologia é a Avaliação formal da agregação plaquetar com diversos agonistas, evidenciando maior sensibilidade que o PFS; contudo, não está tão amplamente disponível, é difícil de interpretar e reproduzir, e tem custos mais elevados.
  5. Outros exames que podem ser utilizados de acordo com a suspeita clínica incluem avaliação de glipoproteínas de membrana por citometria de fluxo, microscopia electrónica (anomalias dos grânulos) e estudos moleculares.

Tratamento

Medidas de suporte

Para além da terapêutica para as situações de maior gravidade é fundamental que o doente e família saibam como proceder perante algumas hemorragias (nomeadamente epistaxe). É necessário validar estas práticas na consulta (tempo e local de compressão, utilização de agentes lubrificantes e humidificadores).

Salientando que a patologia em análise comporta risco elevado de anemia ferropénica, importa proceder a vigilância e a eventual suplementação com ferro de acordo com a clínica e avaliação laboratorial. Nas adolescentes com menorragias, há que ponderar a administração de anticonceptivos orais.

É igualmente importante reforçar os cuidados de higiene dentária para evitar inflamação da mucosa (agravamento de gengivorragia) perante a necessidade de procedimentos invasivos e de extrações dentárias.

Os anti-inflamatórios não esteroides (AINE) devem ser evitados.

Tratamento não farmacológico

As transfusões de plaquetas devem ser reservadas para situações de hemorragia grave. Para além das reações alérgicas, e outras, associadas às transfusões, existe o risco de aloimunização que poderá determinar a condição de “paciente refractário a transfusões de sangue”. A utilização de agentes hemostáticos em geral deve ser ponderada sempre que possível.

Tratamento farmacológico

A utilização de antifibrinolíticos (ácido aminocapróico e tranexâmico) está estabelecida na hemorragia de mucosas e nos casos de extracções dentárias. Devem ser mantidos até cicatrização, geralmente durante 5 a 10 dias. Podem ser utilizados em conjunto com outros fármacos facilitando a hemostase e estabilizando o coágulo. Podem também ser utilizados na epistaxe recorrente e em casos de menorragias.

A desmopressina, actuando por um mecanismo não esclarecido, melhora a função plaquetar em cerca de 2/3 dos doentes com disfunção ligeira; por isso, pode ser uma alternativa neste grupo de doentes, devendo entretanto ser formalmente avaliada de forma electiva. Não deve ser utilizada antes dos 2-3 anos de idade.

Hemorragias mais importantes, não controladas com as medidas anteriores, devem ser tratadas com factor VII recombinante activado (rFVIIa) e transfusões de plaquetas.

O rFVIIa tem sido utilizado em doentes com disfunção plaquetar grave, nomeadamente trombastenia de Glanzmann como meio de evitar transfusões de concentrados de plaquetas; igualmente em doentes refractários. A sua eficácia é variável.

Nas formas de disfunção plaquetar adquirida o tratamento, logicamente, consiste em eliminar a causa.

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TROMBOCITOPÉNIA E TROMBOCITOSE

1. TROMBOCITOPÉNIA

Definição, patogénese e importância do problema

A trombocitopénia, independentemente da idade, define-se como uma redução da concentração plaquetária – mais de dois desvios-padrão (2DP) abaixo da média populacional, ou seja, < 150.000/μL (ou < 150 x 109/L).

Podendo ser congénita ou adquirida, ocorre por um ou mais dos seguintes mecanismos:

  1. Diminuição da produção (ex. infiltração neoplásica, infecção, fármacos, causas genéticas);
  2. Aumento da destruição periférica (ex. fenómenos imunológicos ou mecânicos angiopáticos);
  3. Retenção esplénica (ex. esplenomegália congestiva ou infiltrativa). Na sua grande maioria (mais de 95% dos casos) a trombocitopénia faz parte da entidade clínica designada por púrpura trombocitopénica idiopática (PTI) com uma incidência mundial de aproximadamente 4 a 6 em cada 100.000 crianças. (ver adiante)

As plaquetas, fragmentos celulares libertados pelos megacariócitos na medula óssea, são essenciais para a hemostase primária. A sua produção é regulada pela trombopoietina (TPO), e após circularem durante 8 a 10 dias, são fagocitadas pelos macrófagos do sistema reticuloendotelial (SRE).

O seu papel na hemostase primária baseia-se na adesão aos locais de lesão vascular; na secreção de mediadores de hemostase (ex: histamina e serotonina) com vasoconstrição local e na agregação entre si, através do fibrinogénio. Assim, a deficiência qualitativa e/ou quantitativa de plaquetas condiciona um potencial risco hemorrágico.

Habitualmente, o baço contém cerca de um terço do volume total de plaquetas, atuando como um reservatório. Na presença de um factor de estresse (ex. hemorragia aguda), ocorre libertação de adrenalina com consequente contracção esplénica e aumento temporário do número de plaquetas circulantes.

Factores etiológicos

No Quadro 1 encontram-se enumerados os principais factores etiológicos em idade pediátrica, após o período neonatal (neste último caso, a trombocitopénia é abordada em capítulo próprio, na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia).

QUADRO 1 – Factores etiológicos da trombocitopénia

Diminuição de produção
Anemia aplásica
Infiltração medular
Lesão induzida por fármacos/radiação
Carências nutricionais (ferro, folato, vitamina B12)
Causas genéticas
Sequestro
Hiperesplenismo
Hipotermia
Diluição pós-transfusional
Diminuição da sobrevida
Trombocitopénia imune
Doença utoimune/linfoproliferativa
Pós-transfusional/pós-transplante
Alergia/anafilaxia
Infecção
Fármacos
Mecânica
Patologia cardiopulmonar
Cateteres/próteses vasculares
Vasculites
Coagulação intravascular disseminada
Síndroma hemolítica urémica
Púrpura trombocitopénica trombótica
Infecção
Síndroma de Kasabach-Merritt

Semiologia clínica e laboratorial

A trombocitopénia pode manifestar-se por diátese, mais frequentemente mucocutânea – petéquias, equimoses, epistaxe e gengivorragias (mais evidentes quando o valor da contagem é inferior a 20.000/μL). Os défices mais graves podem apresentar-se com bolhas hemorrágicas na mucosa oral, hemorragia gastrintestinal, hematúria, menorragias, o que comporta risco acrescido de hemorragia intracraniana. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Relação entre o valor numérico de plaquetas e tipo hemorrágico

Plaquetas (x103/µL)Tipo de hemorragia
> 100Assintomática
50-100Mínima (após intervenção cirúrgica ou traumatismo major)
20-50Leve (cutânea)
2-20Moderada (mucocutânea)
< 5Grave (sistema nervoso central)

Ao contrário do que ocorre nas patologias da hemostase secundária (por ex. hemofilia), as hemorragias dos tecidos moles, músculos ou intrarticulares são muito mais raras.

Nas situações em que a trombocitopénia é um achado laboratorial (sem manifestações clínicas associadas), os valores devem ser confirmados numa segunda amostra.

Na presença de aglutininas frias ou de anticorpos (Ac.) em circulação, dependentes do anticoagulante (ácido etilenodiaminotetracético – EDTA), as plaquetas agregam-se e não são contabilizadas pelos sistemas automáticos; este fenómeno determina, pois, um quadro de pseudotrombocitopénia. Assim, em tal circunstância, a segunda amostra deverá ser colhida em tubo de citrato.

Existem alguns dados que nos poderão indicar a possível etiologia da trombocitopénia. Nas situações de disfunção medular (síndromas de falência medular – ver capítulo próprio) existe, frequentemente, um atingimento concomitante das outras linhagens sanguíneas bem como macrocitose.

Nas situações em que a trombocitopénia é isolada (sem outras citopénias) importa considerar as causas imunes (trombocitopénia imune) e as congénitas (trombocitopénias hereditárias – TH).

Os exames complementares devem ser ponderados após anamnese e exame objectivo tendo em conta, para além da idade de apresentação e do estado geral, a presença de defeitos congénitos, assim como o padrão do crescimento e do neurodesenvolvimento.

Formas clínicas

Discriminam-se a seguir as principais entidades clínicas em que se verifica trombocitopénia.

1. Trombocitopénia imune aguda

Esta forma clínica é causada pela produção de autoanticorpos inespecíficos, habitualmente IgG que se ligam à superfície das plaquetas, amplificando a sua fagocitose pelos macrófagos (SRE) através de um receptor Fc e interferindo na trombopoiese.

Apresenta dois picos de incidência, entre os 2-5 anos de idade, mais frequente no sexo masculino (1,7:1) e outro na adolescência, predominantemente no sexo feminino. A taxa de incidência anual situa-se entre 1 e 6 casos/100.000 crianças.

Em cerca de 50% dos casos surge entre 1-4 semanas após uma infecção vírica inespecífica ou após infecção por vírus Epstein Barr (VEB), varicela-zóster (VZV) ou VIH. Na varicela, para além da trombocitopénia imune, pode verificar-se formação de anticorpos contra as proteínas S e/ou C, levando a alterações mais complexas da hemostase. Estima-se também que as imunizações (por ex. com vacina anti-sarampo-parotidite-rubéola – VASPR) possam estar relacionadas com a produção de imunoglobulinas antiplaquetárias em cerca de 2,6/100.000 crianças, nas 6 semanas seguintes à inoculação. Nestas situações deve proceder-se ao estudo serológico e, no caso de ausência de imunidade, recomenda-se uma segunda dose da vacina.

As manifestações clínicas clássicas traduzem-se pelo aparecimento súbito de exantema petequial generalizado sem outras alterações. O baço é palpável em cerca de 10% dos casos. Ocasionalmente, podem ser observadas linfadenopatia e/ou hepatomegália ligeiras, habitualmente secundárias à infecção vírica desencadeante. No entanto, a sua presença deverá alertar para outras situações mais graves. Na trombocitopénia imune, apesar dos baixos níveis de plaquetas, o risco hemorrágico é inferior ao descrito na trombocitopénia decorrente doutra etiopatogénese.

Através de exames laboratoriais verifica-se trombocitopénia isolada, mais frequentemente com valores entre < 30.000/μL e < 20.000/μL (80% dos casos), e < 10.000/μL (em 10%). O aumento da actividade medular traduz-se num aumento do volume plaquetar médio (VPM). Habitualmente, os valores da hemoglobina (Hb) e do volume globular médio (VGM) são normais, excepto em situações de hemorragia moderada a grave, em que podem estar diminuídos.

Mesmo na ausência de anemia deve realizar-se a prova da antiglobulina directa (Coombs directa) para excluir existência de anticorpos antieritrócito e, designadamente, síndroma de Evans (anemia hemolítica e trombocitopénia imunes).

Os valores das contagens total e diferencial de leucócitos, o estudo da coagulação e as provas de função plaquetária também se encontram dentro de parâmetros normais. Através da observação do esfregaço sanguíneo comprova-se apenas escassez de trombócitos e ausência de agregados plaquetares.

A presença do anticorpo antinuclear (ANA) é mais frequente no adolescente, podendo indicar uma maior predisposição para a evolução para a cronicidade.

Em situações que cumprem os critérios supracitados, em crianças estáveis, não está indicada a realização de mielograma desde que a morfologia de sangue periférico tenha sido avaliada por patologista clínico experiente (salientando-se a necessidade de excluir a presença de blastos). Pelo contrário, é obrigatória a sua realização na presença de situações atípicas, antes da instituição de corticoterapia e na ausência de resposta à terapêutica.

A PTI é um diagnóstico de exclusão, devendo ser afastadas todas as situações de trombocitopénia em que é preservado o estado geral, concretamente as decorrentes de exposição farmacológica, patologia autoimune, hiperesplenismo e anemia de Fanconi.

Em cerca de 75% das situações ocorre um aumento plaquetário progressivo nas 2 a 3 semanas seguintes, com paralela diminuição da tendência hemorrágica e resolução espontânea completa dentro de 6 meses.

De referir que não está completamente esclarecido o mecanismo que regula a produção de anticorpos anti-plaquetas quando se verifica remissão espontânea da PTI.

No que respeita ao tratamento, importa atender aos seguintes procedimentos:

  • Os cuidados gerais (em geral aplicáveis a todas as formas clínicas de trombocitopénia) podem ser realizados em ambulatório, com repouso relativo adequado à criança. Devem ser dadas orientações aos pais/familiares e prestadores de cuidados (esclarecimento quanto à benignidade da situação e alerta para os sinais de alarme – ver Quadro 2), evitadas actividades de risco (ex. desportos de contacto), estimulado o uso adequado de protecções, evitadas injecções intramusculares e fármacos que interfiram na função das plaquetas – por ex. ácido acetilsalicílico, determinados anti-histamínicos e anti-inflamatórios não esteróides (ibuprofeno) – durante o período agudo da doença;
  • A frequência escolar pode ser mantida, com os cuidados referidos anteriormente. Nas adolescentes que já tiveram menarca pode ser considerada supressão hormonal;
  • Vigilância clínica e laboratorial frequentes;
  • Dado que a terapêutica farmacológica não parece influenciar o curso da doença, a mesma deverá ser ponderada caso a caso, e baseada fundamentalmente: nos sinais de alarme e na gravidade das manifestações de diátese (por ex. presença de hemorragia de mucosas ou doutra hemorragia activa); e no valor da contagem de plaquetas (mais frequentemente indicada se inferior a 10.0000 /μL.

Relativamente aos fármacos mais frequentemente utilizados, citam-se:

  • Imunoglobulina endovenosa (IGIV) – actuando por bloqueio dos receptores Fc, reduz a destruição das plaquetas no SRE. Indicada quando se pretende um aumento rápido dos níveis de plaquetas, na dose única de 0,8-1 g/Kg. Com uma eficácia que ronda 80%, permite um incremento plaquetário muito mais acelerado (> 20.000/μL ao 3ºdia; > 50.000/μL entre o 5º e o 7º dias). Por vezes a sua administração associa-se a cefaleia intensa, náuseas, vómitos e, mais raramente, a reações alérgicas e meningite asséptica;
  • Prednisolona oral – existem diversos esquemas possíveis: a) 1-2 mg/kg/dia durante 2 semanas, seguindo-se diminuição lenta; b) 4 mg/kg/dia durante 4 dias (esquema curto de alta dose). À medida que é feito o desmame da corticoterapia poderá ocorrer recaída;
  • Imunoglobulina anti-D – podendo ser utilizada em indivíduos Rh+ (50-75 mg/kg), não esplenectomizados, produz um incremento do número plaquetário sobreponível ao conseguido com IGIV. A principal desvantagem consiste na possibilidade de se desencadear anemia hemolítica transitória. Apresenta em relação à IGIV, a vantagem de poder ser administrada em minutos e com menos efeitos adversos relacionados com a perfusão;
  • Transfusão plaquetária – só deve ser utilizada em contexto de hemorragia muito grave (com risco de vida ou na necessidade iminente de procedimento invasivo). Concomitantemente deve ser realizada corticoterapia (bolus de metilprednisolona) e IGIV.

2. Trombocitopénia imune crónica

Por definição, considera-se trombocitopenia imune (TI) crónica a condição clínica com diminuição do valor do valor das plaquetas persistindo mais de 6-12 meses, na ausência de outras causas de trombocitopénia. Cerca de 20-25% dos casos de início agudo evoluem para cronicidade. Não é possível prever esta evolução embora existam alguns factores aparentemente relacionados – sexo feminino, idade mais avançada na data do diagnóstico, início de sintomas mais insidioso e ausência de infecção ou de antecedentes de vacinação.

No caso de não terem sido pesquisadas na fase inicial, devem ser excluídas outras citopenias imunes (designadamente LES, e síndroma de Evans), imunodeficiência primária, infecção por VIH ou VHC. A infecção por Helicobacter pilory poderá ter um papel na patogênese da TI crónica, pelo que aquela deve ser pesquisada e, se presente, erradicada.

Na maioria dos casos não existe necessidade de tratamento específico, excepto episodicamente (traumatismo grave, cirurgia ou extracção dentária). Nestas situações a prednisolona ou a IGIV, poderão ser utilizadas.

A maioria dos doentes melhora progressivamente, verificando-se um aumento gradual do valor da contagem plaquetária. Desta forma, a esplenectomia está cada vez menos indicada reservando-se para as emergências hemorrágicas e nos doentes com doença imune grave, persistente (> 12 a 24 meses), com diminuição muito significativa da qualidade de vida. Pelo risco de infecção por microrganismos capsulados associado à esplenectomia, esta deve ser evitada antes dos 6 anos de idade, precedida de imunização antipneumocócica e antimeningocócica, e seguida de quimioprofilaxia com amoxicilina durante, pelo menos, 2 anos após a referida intervenção cirúrgica. De destacar que em cerca de 25% das situações a esplenectomia é ineficaz, não sendo conhecidos factores preditivos desta ausência de resposta.

Actualmente existem disponíveis factores estimulantes da trombopoiese (agonistas rTPO – eltrombopag e romiplostin) com resultados encorajadores nos doentes refractários. Como terapêutica de recurso poderão ser utilizados imunossupressores (ciclofosfamida, azatioprina, ciclosporina e/ou o anticorpo monoclonal rituximab).

3. Trombocitopénias hereditárias

Deve suspeitar-se de trombocitopénia hereditária (TH) quando a trombocitopénia não é claramente adquirida ou não responde à terapêutica instituída (as anomalias funcionais das plaquetas são abordadas noutro capítulo).

Muitos casos são diagnosticados apenas em idade adulta, de forma acidental, em análises de rotina (as formas ligeiras a moderadas na maioria dos casos não comportam tendência hemorrágica acrescida).

O diagnóstico requer um elevado grau de suspeição sendo que, na maioria dos doentes na ausência de sinais dismórficos major o primeiro diagnóstico é, erradamente, trombocitopénia imune.

A história clínica é essencial devendo pesquisar-se, para além de alterações esqueléticas (nomeadamente nos membros) e outros defeitos congénitos, a presença de surdez neurossensorial, nefropatia, cataratas, imunodeficiência e alterações do neurodesenvolvimento.

Existem várias classificações de trombocitopénias hereditárias.
Sob o ponto de vista da prática clínica e da orientação diagnóstica afigura-se de maior utilidade a seguinte:

  • Formas sindrómicas: salientando-se a trombocitopénia relacionada com o MYH9 (MYH9-RD), a trombocitopénia ligada ao X (XLT), a síndroma de Wiskott-Aldrich (WAS), a sinostose radiocubital, a síndroma associada a aplasia do rádio (TAR)/de Paris-Trousseau e Jacobsen, e a trombocitopénia associada a sitosterolémia e ao GATA1;
  • Formas não sindrómicas: a síndroma de Bernard Soulier, a trombocitopénia amegacariocítica congénita, a trombocitopénia relacionada com o ANKRD26 e ACTN1, e a trombocitopénia familiar com predisposição para leucemia mielóide aguda, entre outras.

A presença de determinados achados laboratoriais de primeira linha poderá contribuir para o diagnóstico: plaquetas gigantes e corpos de Dohle na MYH9-RD, plaquetas pequenas na XLT/WAS, hemólise/diseritropoiese na trombocitopénia associada ao GATA1, e estomatocitose na sitosterolémia.

4. Outras situações

  1. A presença de febre, palidez, equimoses, adenopatia e/ou hepatosplenomegália sugerem compromisso medular primário, orientando o clínico para a necessidade de realização de aspirado/biópsia medular. A diminuição dos megacariócitos deve-se essencialmente à falência da medula óssea ou leucemia aguda.
  2. Na criança gravemente doente com petéquias, febre, letargia e/ou instabilidade hemodinâmica, a coagulação intravascular disseminada associada a sépsis é o diagnóstico mais provável. Os respectivos achados laboratoriais incluem a leucocitose ou leucopénia, sinais de hemólise, prolongamento dos tempos de protrombina (TP) e de tromboplastina parcial (aPTT) e diminuição dos níveis de fibrinogénio.
  3. Duas entidades relacionadas resultam da lesão vascular endotelial, com consequente anemia microangiopática e consumo plaquetário.

Trata-se da síndroma hemolítica urémica (SHU) e da púrpura trombocitopénica trombótica (PTT). (ver capítulos próprios)

Na SHU, na sua forma típica, muito mais frequente na infância, a lesão é provocada por toxinas produzidas por determinadas estirpes de bactérias, nomeadamente Escherichia coli O157:H7. Esta situação envolve primariamente o rim (oligúria, edema e hipertensão arterial) e a mucosa do cólon (diarreia hemática). Inicialmente a trombocitopénia é ligeira, podendo diminuir rapidamente para valores < 20-30.000/µL, com alguma activação da cascata da coagulação. Todavia, a hemorragia é pouco frequente.

A PTT engloba cinco componentes: anemia hemolítica microangiopática, febre, disfunção renal, trombocitopénia, e anomalias neurológicas (cefaleias, convulsões, hemiparésia e/ou coma). Surge quando multímeros de grandes dimensões do factor de von Willebrand são libertados a partir das células endoteliais vasculares para a circulação, estando ausente a protease ADAMTS13 cuja função é cindir as referidas moléculas em moléculas de menor peso molecular. As grandes moléculas provocam microangiopatia em diversos órgãos, especialmente rim e cérebro.

A PTT pode ser congénita e recorrente (explicada por mutações no gene da ADAMTS13), ou adquirida (em geral no contexto de lúpus eritematoso disseminado, em que surge um autoanticorpo inibidor, neutralizando a protease ADAMTS13. A forma adquirida poderá implicar tratamento com plasmaférese (para remoção do inibidor) e corticoterapia, para além da terapêutica com imunomoduladores.

Na SHU a transfusão plaquetária raramente é necessária. Na maioria dos casos associados a verotoxina, a resolução é espontânea, constando o respectivo tratamento, essencialmente, do suporte das complicações. Nos casos de SHU atípica o tratamento inicial é a plasmaferese; poderá estar indicada a administração de anticorpo monoclonal anti C5 (eculizumab).

Na PTT, o tratamento de eleição é a plasmaférese; a transfusão plaquetária pode exacerbar a situação, devendo ser realizada apenas na presença de hemorragia grave. (ver capítulos das Partes sobre Oncologia, Nefro-Urologia e Hematologia)

2. TROMBOCITOSE

A trombocitose define-se como um valor absoluto de plaquetas superior a 2DP da média populacional, considerando-se um limiar de 500 x103/µL.

A classificação considera duas formas clínicas: primária e secundária (ou reactiva). Na idade pediátrica, a maioria dos casos integra a forma reactiva, transitória, a qual pode ocorrer em até 15% das crianças hospitalizadas. É mais comum no recém-nascido (particularmente no pré-termo) e na criança até aos 2 anos.

Os factores etiológicos são variados, salientando-se a infecção e a ferropénia.

Em geral, trata-se de situações com elevação moderada do número de plaquetas, por vezes assintomáticas, e respondendo ao tratamento da doença de base.

A trombocitose primária é uma entidade muito rara em idade pediátrica (~1/10 milhões). Resulta de uma desregulação dos mecanismos de controlo da produção plaquetária. Pode ocorrer em situação de trombocitémia essencial (TE), policitémia vera (PV) ou outras doenças mieloproliferativas. (Quadro 3)

A TE é uma causa de trombocitose primária, devendo ser considerada quando esta é persistente e não explicada por causas secundárias. O diagnóstico é feito pela pesquisa de mutações patogénicas nos genes JAK2 ou MPL e exclusão de outras doenças mieloproliferativas. As manifestações clínicas quando presentes são habitualmente neurológicas (tonturas, cefaleia, síncope e acidente isquémico transitório), microcirculatórias (eritromelalgia, acroparestesias, isquemia digital e alterações visuais) e gastrintestinais (dor abdominal, náuseas/vómitos). Salienta-se, contudo, a grande maioria de casos assintomáticos.

As complicações podem ser trombóticas ou hemorrágicas.

As opções terapêuticas, reservadas para os casos sintomáticos ou com valores muito elevados de plaquetas, incluem a utilização de ácido acetilsalicílico, anagrelide e, mais raramente neste grupo etário, citorredutores (hidroxicarbamida).

QUADRO 3 – Factores etiológicos de trombocitose

Nota: A presença de microesferócitos, assim como de fragmentos eritrocitários, leucocitários ou de bactérias, podem originar uma situação designada por pseudotrombocitose ou trombocitose espúria.

Primária

Trombocitémia essencial e outras síndromas mieloproliferativas

Secundária ou reactiva

Infecção (aguda ou crónica); Doença inflamatória (intestinal, reumatológica); Doença de Kawasaki; Doença hematológica (ferropénia; anemia hemolítica crónica); hemorragia aguda; neoplasia (linfoma, neuroblastoma, outros tumores sólidos); após exercício e trauma/cirurgia; induzida por drogas (corticoesteróides, alcalóides vinca)

Diminuição da capacidade de reserva esplénica

Asplenia (pós-esplenectomia, congénita, funcional); Induzida por drogas (epinefrina)

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NEUTROPÉNIA

Definições

Na idade pediátrica, neutropénia define-se como o número absoluto de neutrófilos no sangue periférico inferior a dois desvios padrão da média para a idade (ver capítulo sobre síndromas hematológicas e Quadro 1).

Na ausência da utilização de tabelas de percentis, podem ser estabelecidas as seguintes noções práticas:

Leucopénia: número absoluto de leucócitos circulantes < 4000/μL ou /mmc., tendo como referência os limites de normalidade: 4500-13.500/μL (7-12 anos).

Neutropénia: designação que corresponde ao número absoluto de neutrófilos no sangue periférico < 1500/μL (entre 1 mês e 10 anos, considerando limites de normalidade os valores 1500 e 8000 células/μL); < 1800/uL em adultos de ambos os sexos; e < 1200/μL em adultos de raça negra.

Em função do número de neutrófilos, a neutropénia pode ser ligeira, com valores entre 1000 e 1500/μL; moderada, com valores entre 500 e 1000/μL; grave, com valores entre 200 e 500/μL; e muito grave, com valores < 200/μL.

Etiopatogénese

Os neutrófilos, fazendo parte do sistema fagocítico, são produzidos a partir de células precursoras da medula óssea. Este processo, denominado mielopoiese, é dinâmico e requer um ambiente medular próprio auxiliado por factores de crescimento hematopioéticos específicos, tais como o factor de crescimento de granulócitos (G-CSF), factor de crescimento de granulócitos-monócitos (GM-CSF), factor de células precursoras (SCF), interleucina 3 (IL-3) e interleucina 6 (IL-6).

Os estádios de maturação dos neutrófilos são: mieloblasto, promielócito, mielócito, metamielócito, bastonete e neutrófilo segmentado. O tempo médio de maturação medular de um neutrófilo é de 10 dias; este é depois libertado para a circulação, onde permanece em média 6 a 10 horas, podendo então migrar para diversos tecidos, onde o seu tempo de semi-vida é curto.

Os neutrófilos circulantes correspondem apenas a 3 a 5% de todos os neutrófilos do corpo humano. Assim se compreende que na etiopatogénese da neutropénia possam estar envolvidos vários mecanismos, tais como: 1) diminuição da produção, 2) mielopoiese ineficaz, 3) aumento da marginalização ou 4) aumento da destruição periférica.

O número total de neutrófilos no sangue periférico depende também da idade e da etnia. O número de leucócitos na data de nascimento é elevado, seguindo-se um declínio rápido a partir das 12 horas, até ao final da primeira semana. Após este declínio, os valores estabilizam até ao ano de idade. Assim, durante a infância, os neutrófilos constituem 20 a 30% da população leucocitária circulante; por volta dos 5 anos de idade, o número de neutrófilos e linfócitos é semelhante e, na adolescência, a percentagem de neutrófilos em relação aos leucócitos totais aumenta, constituindo 70%. (Quadro 1)

De referir que os valores de neutropénia definidos para a raça caucasiana não podem ser utilizados na raça negra; com efeito, estima-se que, em pelo menos 3 a 5% das crianças apresentem valores normais de neutrófilos entre 1000 a 1500/μL.

QUADRO 1 – Valor normal da contagem de leucócitos

IdadeLeucócitosNeutrófilosLinfócitosMonócitosEosinófilos
Média(-2DP+2DP)Média(-2DP+2DP)%Média(-2DP+2DP)%Média%Média%
Nascimento
12 horas
24 horas
1 semana
2 semanas
1 mês
6 meses
1 ano
2 anos
4 anos
6 anos
8 anos
10 anos
16 anos
21 anos
18,1
22,8
18,9
12,2
11,4
10,8
11,9
11,4
10,6
9,1
8,5
8,3
8,1
7,8
7,4
9,0 – 30,0
13,0 – 38,0
9,4 – 34,0
5,0 – 21,0
5,0 – 20,0
5,0 – 19,5
6,0 – 17,5
6,0 – 17,5
6,0 – 17,0
5,5 – 15,5
5,0 – 14,5
4,5 – 13,5
4,5 – 13,5
4,5 – 13,0
4,5 – 11,0
11,0
15,5
11,5
5,5
4,5
3,8
3,8
3,5
3,5
3,8
4,3
4,4
4,4
4,4
4,4
6,0 – 26,0
6,0 – 28,0
5,0 – 21,0
1,5 – 10,0
1,0 – 9,5
1,0 – 8,5
1,0 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,0
1,5 – 8,0
1,5 – 8,5
1,8 – 8,0
1,8 – 7,7
61
68
61
45
40
35
32
31
33
42
51
53
54
57
59
5,5
5,5
5,8
5,0
5,5
6,0
7,3
7,0
6,3
4,5
3,5
3,3
3,1
2,8
2,5
2,0 – 11,0
2,0 – 11,0
2,0 – 11,5
2,0 – 17,0
2,0 – 17,0
2,5 – 16,5
4,0 – 13,5
4,0 – 10,5
3,0 – 9,5
2,0 – 8,0
1,5 – 7,0
1,5 – 6,8
1,5 – 6,5
1,2 – 5,2
1,0 – 4,8
31
24
31
41
48
56
61
61
59
50
42
39
38
35
34
1,1
1,2
1,1
1,1
1,0
0,7
0,6
0,6
0,5
0,5
0,4
0,4
0,4
0,4
0,3
6
5
6
9
9
7
5
5
5
5
5
4
4
5
4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,4
0,3
0,3
0,3
0,3
0,3
0,2
0,2
0,2
0,2
0,2
2
2
2
4
3
3
3
3
3
3
3
2
2
3
3
Valores apresentados em 103/μL, intervalos de confiança de 95% ou percentagem.
Adaptado de Segel GB, et al. Neutropenia in Pediatric Pratice. Pediatr Rev 2008; 29 (1)

Classificação

Relativamente ao tempo de evolução, a neutropénia classifica-se como aguda (inferior a 3 meses) ou crónica (≥ 4 meses).

A neutropénia pode ainda ser classificada como: – central quando existe depleção celular da medula óssea (deficiência na fase inicial de maturação); ou – periférica se a maturação dos neutrófilos na medula óssea é normal.

Para uma abordagem clínica mais prática, neste capítulo optou-se por usar uma classificação baseada no carácter congénito ou adquirido da neutropénia.

Neutropénias adquiridas

As neutropénias adquiridas constituem a forma mais frequente de neutropénia na idade pediátrica. Na sua origem, podem estar várias causas, sendo a infecciosa a mais frequente e benigna. No Quadro 2 estão descritas as causas mais comuns.

QUADRO 2 – Neutropénias adquiridas

CausasFactores Etiológicos/AgentesComentários
Neutropénia pós-infecciosaVírus, bactérias, protozoários e fungosRedistribuição dos neutrófilos, sequestro das células por lesão tecidual e diminuição da produção de neutrófilos.
Neutropénia induzida por fármacosAnalgésicos e anti-inflamatórios não esteróides; anticonvulsantes, anti-infecciosos; antipsicóticos e antidepressivos, antitiroideusReacção de hipersensibilidade (febre, adenopatias, exantema, hepatite, nefrite, pneumonite, anemia aplásica).
Neutropénia imune
AloimuneSensibilização pré-natal a antigénios específicos dos neutrófilos herdados do pai. Presença de anticorpos antineutrófilo circulantes ou fagocitose esplénica.
Autoimune agudaRelacionada com fármacos ou infecções.
Autoimune crónicaPrimária: presença de anticorpos antineutrófilo. Medula óssea normo ou hipercelular. Secundária: doenças autoimunes, neoplasias hematológicas, tumores sólidos ou imunodeficiências primárias.
Sequestro reticulo-endotelialHiperesplenismoAnemia e trombocitopénia podem coexistir.
Alterações da medula ósseaNeoplasias (linfomas, tumores sólidos metastáticos)Presença de formas mielóides imaturas e percursores eritróides no sangue periférico.
Quimioterapia ou radioterapia com atingimento da medula ósseaSupressão da produção de células mielóidesHipoplasia da medula óssea, anemia, trombocitopénia.
Leucemia aguda, leucemia mielóide crónicaSubstituição da medula óssea por céluas malignasPancitopénia, leucocitose.
MielodisplasiaMaturação displásica das “Stem cells”Hipoplasia da medula óssea. Trombocitopénia.
Neutropénia idiopática crónicaAlteração na maturação/ proliferação mielóideTambém conhecida por neutropénia crónica benigna. Ocorre em idades mais tardias (adolescência). Sem morbilidade significativa. Diagnóstico de exclusão.
Neutropénia por deficiência nutricionalDéfice de vitamina B12 ou ácido fólicoCoexistem anemia megaloblástica e neutrófilos hipersegmentados devido a hematopoiese ineficaz.
Adaptado de Walkovich K et al. How to Approach Neutropenia in Childhood. Abril 2013. Vol 34 (4) 

Neutropénias congénitas

A classificação das neutropénias congénitas não é consensual, sendo que o estudo genético assume um papel fundamental na sua distinção. No quadro 3 estão descritas neutropénias congénitas de acordo com a presença ou ausência de manifestações extra-hematopoiéticas e defeitos associados.

QUADRO 3 – Neutropénias congénitas – defeitos no número e/ou função dos neutrófilos*

NomeOMIMAlteraçõesDefeitos associadosHereditariedadeGene
Neutropénia congénita sem manifestações extra-hematopoiéticas
Neutropénia congénita grave202700Diferenciação mielocítica ADELANE (19q13.3)
Neutropénia congénita grave com mutação somática de CSF3R202700Diferenciação mielocítica, sem resposta a G-CSF  CSFR3 (1p35p34)
Neutropénia congénita sem manifestações extra-hematopoiéticas Com defeito da imunidade inata/adaptativa
Neutropénia congénita grave202700Diferenciação mielocíticaLinfopéniaADGFI1 (1p22)
Neutropénia/Mielodisplasia associada ao X301000Diferenciação mielocíticaMonocitopéniaXWAS (Xp11.4-p11.21)
Síndroma WHIM193670Diferenciação mielocíticaLinfopénia, trombocitopéniaADCXCR4 (2q21)
Neutropénia congénita com manifestações extra-hematopoiéticas
Síndroma de Kostmann202700Diferenciação mielocíticaDéfices cognitivos e neurológicosARHAX1 (1q21.3)
Neutropénia cíclica162800Diferenciação mielocíticaTrombocitopénia e monocitopénia que ocorrem durante os períodos de neutrofiliaADELANE (19p13.3)
Síndroma de Shwachman-Diamond260400QuimiotaxiaPancitopénia, condrodisplasia, insuficiência pancreática exócrina, cardiomiopatia, défice cognitivoARSDBS (7q11.22)
Neutropénia com malformação cardíaca e urogenital202700Diferenciação mielocíticaDefeitos estruturais cardíacos, urogenitais, telangiectasias venosas do tronco e dos membrosARG6PC3 (17q21)
Síndroma de Barth302060Diferenciação mielocíticaCardiomiopatia hipertróficaXTAZ (G4.5) (Xq28)
Síndroma de Hermansky-Pudlak tipo 2608233Diferenciação mielocíticaAlbinismoARAP3B1 (5q14.1)
Neutropénia com mutação de AP14610789Diferenciação mielocíticaAlbinismoARAP14 (1q21)
Poiquilodermia tipo clericuzio604173Diferenciação mielocíticaPoiquilodermia, alterações cutâneasAR16ORF57 (16q13)
Doença por acumulação de glicogénio tipo 1b232220Quimiotaxia, Produção de O2, MicrobiocidaHipoglicémia, acidose, hiperlipidémia, neutropénia, hepatomegáliaARG6PT1 (11q23.3)
Síndroma de Cohen216550Diferenciação mielocíticaAtraso do desenvolvimento psicomotor, microcefalia, distrofia retinocoroidal progressiva, miopatia, hiperlaxidão articularARVPS138 (8q22-q23)
*OMIM – Online Mendelian Inheritance in Man; AD – autossómica dominante; AR – autossómica recessiva; X – ligada ao X
Adaptado de Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian Journal of Allergy and Immunology. 2013;1(1):23-38.

Formas clínicas

Descrevem-se a seguir algumas formas clínicas mais frequentes de neutropénia.

Neutropénia pós-infecciosa

A causa mais frequente de neutropénia na infância (transitória) é a infecção vírica (vírus respiratório sincicial, influenza A e B, varicela, rubéola e sarampo). A neutropénia surge nos primeiros 2 dias da doença e pode persistir 3 a 8 dias, o que corresponde a um período de virémia aguda.

Outras infecções:

  • Víricas – por herpes vírus 6, vírus influenza, vírus de Epstein-Barr (VEB), citomegalovírus (CMV), vírus da imunodeficiência humana (VIH), etc.;
  • Bacterianas, incluindo riquétsias (septicémia, tosse convulsa, febre tifóide e paratifóide, tuberculose disseminada, brucelose, febre das Montanhas Rochosas, erliquiose, etc.);
  • Protozoários (malária, leishmaniose);
  • Fúngicas (histoplasmose disseminada).

Neutropénia induzida por fármacos

Os fármacos, tais como analgésicos/anti-inflamatórios (acetaminofeno, ibuprofeno), antibióticos (cloranfenicol, penicilinas), sulfonamidas, anticonvulsantes (carbamazepina) e citostáticos são a segunda causa mais comum de neutropénia ligeira/moderada adquirida. (Quadro 4)

Nestas circunstâncias, a neutropénia inicia-se de forma súbita 7 a 14 dias após a primeira exposição, ou imediatamente a seguir à reexposição. A neutropénia induzida por fármacos, resultante de mecanismos tóxicos, imunológicos ou de hipersensibilidade, é grave, comportando taxas de mortalidade elevadas. A intervenção terapêutica mais eficaz consiste em retirar os fármacos não essenciais.

QUADRO 4 – Fármacos associados a agranulocitose

Analgésicos e anti-inflamatórios não esteróides: ácido acetilsalicílico, aminofenazona, benoxaprofeno, diclofenac, diflonisal, dipirona, fenoprofeno, indometacina, ibuprofeno, fenilbutazona, piroxicam, sulindac, tenoxicam, tolmetina

Antipsicóticos, hipnossedativos e antidepressivos:
amoxapina, clorodiazepóxido, clozapina, diazepam, haloperidol, imipramina, indalpina, meprobamato, mianserina, fenotiazidas, respiridona, tiaprida

Anti-epilépticos: carbamazepina, etossuximida, fenitoína, trimetadiona, valproato, propiltiouracilo

Antitiroideus: carbimazol, metimazol, perclorato de potássio, tiocianato de potássio, propiltiouracilo

Anti-infecciosos: aciclovir, cefalosporinas, cloranfenicol, cloroquina, ciprofloxacina, clindamicina, cotrimoxazol, dapsona, etambutol, flucitosina, gentamicina, hidroxicloroquina, isoniazida, levamizol, lincomicina, mebendazol, mepacrina, metronidazol, nitrofurantoína, novobiocina, penicilinas, pirimetamina, quinina, rifampicina, sulfametoxazol, estreptomicina, terbinafina, tetraciclina, tiacetazona, tinidazol, vancomicina, zidovudina

Cardiovasculares: ácido acetilsalicílico, aprindina, captopril, furosemida, hidralazina, lisinopril, metildopa, nifedipina, fenindiona, procainamida, propafenona, propranolol, quinidina, espironolactona, diuréticos tiazídicos, ticlopidina

Outros: acetazolamida, alopurinol, aminoglutetimida, compostos de arsénico, bezafibrato, bronfeniramina, clorofeniramina, cimetidina, colchicina, diferiprona, famotidina, flutamida, sais de ouro, metapirileno, metazolamida, metoclopramida, levodopa, glibenclamida, diuréticos mercuriais, penicilamina, ranitidina, sulfonamidas (maioria), tamoxifeno, tenalidina, ácido retinóico, tripelenamina

 

Neutropénia imune

A neutropénia imune é uma entidade rara causada por anticorpos contra antigénios específicos dos neutrófilos. Dividem-se em aloimune (ou isoimune), e autoimune (primária ou secundária).

A neutropénia neonatal aloimune ocorre em 0,2% das gravidezes e está associada à presença de anticorpos antineutrófilo circulantes que provocam a destruição de neutrófilos, mediada pelo complemento, ou a fagocitose esplénica dos neutrófilos opsonizados. Ocorre por sensibilização pré-natal a antigénios específicos dos neutrófilos herdados do pai (não presentes nos neutrófilos maternos) com posterior passagem transplacentar de anticorpos IgG maternos contra antigénios dos neutrófilos do feto (processo semelhante ao que se passa na anemia e trombocitopénia isoimunes). A neutropénia verifica-se durante o tempo em que circulam os anticorpos maternos transferidos via placenta, o que geralmente acontece entre as 7 semanas e os 6 meses após o parto.

A neutropénia autoimune primária surge habitualmente entre os 5 e os 15 meses de idade e tem remissão espontânea em praticamente todos os doentes no período de tempo de 7 a 30 meses. Distingue-se das outras formas de neutropénia apenas pela demonstração de anticorpos antineutrófilo (embora, por vezes, existam resultados negativos-falsos), sendo a medula óssea normo ou hipercelular. As infecções graves são pouco frequentes apesar da neutropénia grave.

A neutropénia autoimune secundária surge mais frequentemente em adolescentes ou adultos com: 1) doenças autoimunes (artrite reumatóide, síndroma de Felty, lúpus eritematoso sistémico, síndroma de Sjögren); 2) neoplasias hematológicas (leucemias, linfoma de Hodking, macroglobulinémia de Waldenstrom); 3) tumores sólidos (timoma) ou imunodeficiências primárias (síndroma linfoproliferativa autoimune ligada ao X, imunodeficiência comum variável).

Neutropénia congénita grave

A neutropénia congénita grave caracteriza-se por uma paragem na maturação mielóide na medula óssea na fase de promielócito. Tem uma prevalência de 3-4/1×106 indivíduos. Faz parte de um grupo genético heterogéneo. A forma autossómica dominante resulta de mutações nos seguintes genes: ELANE (19q13.3) (Neutropénia cíclica), CSF3R (1p35p34), GFI1 (1p22); e, quanto à forma recessiva, nos genes: HAX1 (1q21.3) (síndroma de Kostman), G6PC3 (17q21). Outra forma de hereditariedade é a causada por mutação no gene WAS localizado no cromossoma Xp11. A neutropénia congénita grave por mutação de GF1 e WAS associa-se também a defeitos da imunidade inata e adaptativa.

Os doentes com neutropénia congénita grave têm frequentemente valores de neutrófilos inferiores a 500 neutrófilos/μL, febre, infecções recorrentes da pele, do tracto respiratório e digestivo no primeiro ano de vida. Em valor percentual que pode atingir 20% dos doentes, surge leucemia ou síndroma mielodisplásica durante a adolescência.

A síndroma de Kostman é uma forma de neutropénia congénita grave autossómica recessiva com mutação no gene HAX1, localizada no cromossoma 1q21.3. O referido gene tem um papel significativo na apoptose dos neutrófilos, impedindo a sua diferenciação nos estádios de promielócito e mielócito. Deste facto resulta um número absoluto de neutrófilos frequentemente inferior a 200 células/μL, o que se pode verificar logo desde o nascimento ou na primeira infância. Como manifestações clínicas mais frequentes há a citar as infecções bacterianas graves nos seios perinasais, pulmão, fígado, pele e mucosa oral. Em cerca de 40% dos casos verifica-se diminuição da densidade óssea e osteoporose e, numa pequena percentagem, défice associado, cognitivo e neurológico.

Com efeito, antes da era do tratamento com G-CSF, a maioria dos doentes morria de infecções fatais antes da adolescência. De salientar que a mutação no receptor do G-CSF (CSF3R), condiciona má resposta à terapêutica e surge mais frequentemente em doentes que evoluem para mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda (cerca de 10% dos casos).

Apenas os doentes que não respondem ao G-CSF são candidatos a transplante de células hematopoiéticas.

A neutropénia cíclica é uma doença rara autossómica dominante, causada por uma mutação do gene ELANE, localizado no cromossoma 19p13.3. Tem uma prevalência de 3-1/1×106 indivíduos. Caractereriza-se por períodos regulares de neutropénia (valores <1000/μL) durante 3 a 10 dias, que se repetem em intervalos de 21 dias (± 4 dias). A neutropénia é acompanhada por monocitose, linfocitose, trombocitopénia e, por vezes, eosinofilia.

As manifestações clínicas coincidem com os períodos de neutropénia; os sintomas e sinais mais comuns são: mal-estar geral, febre, úlceras da mucosa oral, estomatite, gengivite, periodontite, faringite e infecções cutâneas com adenomegálias. Nos períodos de normalização dos valores dos neutrófilos, os doentes são assintomáticos.

A gravidade das infecções relaciona-se com a gravidade da neutropénia, embora nem todos os doentes sejam afectados por infecções. Apesar de ser considerada benigna, uma proporção de cerca de 10% dos doentes morre com infecções complicadas (pneumonia e peritonite com sépsis por Clostridium perfringens). Não existe risco aumentado de desenvolvimento de leucemia mielóide.

O diagnóstico obriga à realização de hemograma, duas vezes por semana e durante 6 semanas. O diagnóstico é confirmado com estudos genéticos moleculares, que demonstram mutação no gene ELANE.

Manifestações clínicas

As infecções bacterianas e/ou fúngicas recorrentes e graves constituem a principal manifestação de neutropénia e associam-se a grande morbilidade. Porém, a frequência e a gravidade das infecções depende, não só da contagem e velocidade com que se instala a neutropénia, mas também de anormalidades da função fagocitária, de defeitos da imunidade adquirida, e de condições do hospedeiro e especificidades dos microrganismos envolvidos. A neutropénia, acompanhada de monocitopénia, linfopénia ou hipogamaglobulinémia, aumenta o risco de infecção. Este risco também aumenta quando a causa da neutropénia é central, versus neutropénia periférica com medula óssea normal.

As manifestações clínicas mais frequentes relacionadas com a neutropénia crónica são: “queda” tardia do cordão umbilical, infecções bacterianas e fúngicas recorrentes e graves, abcessos cutâneos, furunculose, pneumonias de repetição, septicémia, otite média recorrente, infecções perianais e da cavidade oral (estomatite aftosa hemorrágica e gengivites recorrentes). Os locais mais afectados são a pele e mucosas do tracto gastrintestinal, respiratório e genito-urinário.

Entre os agentes infecciosos isolados mais frequentemente nos doentes neutropénicos contam-se: Staphylococcus aureus, S. epidermitis, Streptococcus spp., Enterococcus spp., Burkholderia cepacia, Nocardia asteroides, Pneumococcus spp., Pseudomonas aeruginosa, Candida albicans, Aspergillus spp e bacilos gram-negativos.

Avaliação do doente com neutropénia

A abordagem da criança com neutropénia implica:

  1. Anamnese pormenorizada. É importante investigar a frequência, tipo, gravidade e recorrência de infecções bacterianas, exposição a fármacos, antecedentes familiares de neutropénia ou infecções, internamentos prévios, doenças hematológicas, doenças auto-imunes e consanguinidade. A presença de ulceração da mucosa oral e gengivite são indicadores de mobilização inadequada dos neutrófilos;
  2. Exame físico rigoroso. Devem ser pesquisadas dismorfias congénitas que sugiram síndromas hereditárias. Outros achados que podem orientar no diagnóstico diferencial são: baixa estatura, má nutrição, alterações musculoesqueléticas, pigmentação anómala da pele, distrofia ungueal, leucoplasia, albinismo, eczema, infecções cutâneas, adenomegálias ou organomegálias.
  3. Exames complementares. Será a duração e a gravidade da neutropénia, assim como a existência de sinais de alarme (má progressão ponderal, anemia, trombocitopénia, esplenomegália, adenopatias, dor óssea ou tumefacção articular, dismorfias, sintomas sugestivos de neutropénia crónica, padrão infeccioso cíclico) que determinam a extensão da avaliação laboratorial.

No Quadro 5 está descrita de forma sistemática a abordagem diagnóstica no contexto de neutropénia.

QUADRO 5 – Abordagem diagnóstica da neutropénia

Abordagem diagnóstica da neutropénia
ANA: anticorpo anti-nuclear; ANCA: anticorpo anti-citoplasma do neutrófilo; anti-CCP (anticorpos antipeptídeo citrulinado) FR: factor reumatóide; CMV: citomegalovírus; EBV: vírus Epstein-Barr; VHB: vírus da hepatite B; VHC: vírus da hepatite C; HIV: vírus da imunodeficiência humana.
Adaptado de Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian Journal of Allergy and Immunology. 2013;1(1):23-38.
Informação clínica
    • História clínica (fármacos, histórico de infecções, doenças autoimunes, hematológicas, neoplásicas)
Avaliação laboratorial
    • Hemograma com reticulócitos; se neutropénia isolada ou neutropénia pós-infecciosa (na ausência de sinais de alarme): reavaliação analítica 3 a 4 semanas depois
    • Morfologia leucocitária com contagem do número de neutrófilos hiposegmentados
    • De acordo com a clínica:
    • Testes imunológicos: ANA (anti-SSa, anti-SSB, anti-DNA), ANCA, FR, anti-CCP
    • Hemograma 2 vezes/semana durante 2 meses
    • Serologias víricas: VEB, CMV, VHB, Parvovírus B19, VHB, VHB, VIH (e outros de acordo com a clínica)
    • Doseamento de imunoglobulinas (Ig A, IgG e IgM)
    • Doseamento vitamina B12 e ácido fólico
    • Função pancreática exócrina
Exame da medula óssea
    • Neutropénia grave ou neutropénia e presença de sinais de alarme: medulograma + biópsia osteomedular. Avaliação para morfologia, citometria de fluxo, citogenética
Testes genéticos
    • Supeita de neutropénia congénita (estão disponíveis painéis de genes associados a neutropénias)

Medidas preventivas

Os doentes neutropénicos devem ter uma alimentação adequada, boa higiene corporal (oral e perineal), assim como beneficiar do programa de imunizações actualizado [incluindo a vacina contra influenza e pneumococos; o uso de BCG (bacilo de Calmette e Guérin) está contraindicado]. Os doentes com neutropénia congénita grave beneficiam da utilização de antibióticos profilácticos de amplo espectro (exemplo: sulfametoxazol/trimetroprim).

Tratamento

Os critérios de eficácia do tratamento da neutropénia congénita incluem: redução das complicações infecciosas, número de infecções e melhoria da qualidade de vida.

O tratamento depende da causa e da gravidade da neutropénia.

Antimicrobianos

Os doentes com neutropénia ligeira ou moderada associada a infecção ligeira devem ser tratados com antibióticos por via oral, enquanto os doentes com neutropénia grave devem ser internados e tratados rápida e agressivamente com antibióticos de largo espectro após realização de hemoculturas e outras culturas consideradas necessárias. Se a febre persistir mais de 48 horas, deve considerar-se a instituição de um antifúngico (por exemplo: anfotericina B lipossómica). Em casos graves está indicado o uso de G-CSF na dose inicial de 5 microgramas/kg/dia.

Factor de crescimento hematopoiético recombinante humano

O tratamento com G-CSF subcutâneo diminui o número de infecções e lesões da mucosa oral. O esquema de tratamento é variável e depende da etiologia da neutropénia. Nos doentes com neutropénia crónica ou auto-imune grave, pode ser administrado diariamente ou três vezes por semana. Na neutropénia secundária à quimioterapia, deve ser utilizada a menor dose efectiva. Os efeitos adversos são pouco comuns, sendo os mais frequentes as dores ósseas e as cefaleias.

Existe risco elevado nas situações de leucemia e mielodisplasia em doentes submetidos a tratamento do G-CSF (doses > 15 microgramas/kg/dia) com mutação dos genes ELANE, HAX1, WASP, SBDS, G6PC3 ou SLC37A4. Contudo, tal não acontece nos doentes com neutropénia clíclica.

Transplante de células hematopoiéticas

O transplante de células hematopoiéticas está indicado:

  • Nos casos refractários ao tratamento com G-CSF;
  • Que apresentem infecções recorrentes graves;
  • Resistência ao tratamento (dose > 50 mcg/kg/dia); ou nos
  • Doentes com pancitopénia ou mielodisplasia/leucemia.

Conclusão

Em suma, a neutropénia na idade pediátrica é uma situação relativamente frequente cuja morbilidade é muito variável e depende da etiologia da doença. O espectro clínico é muito vasto, desde uma situação benigna e autolimitada, até uma situação grave e potencialmente fatal. O diagnóstico atempado de neutropénia congénita grave é essencial para, através de um tratamento profiláctico adequado, se poder diminuir a morbilidade e mortalidade inerentes a este diagnóstico.

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ERITROCITOSE

Definição

A eritrocitose (também designada policitemia ou poliglobulia), definindo-se como aumento da massa total de glóbulos vermelhos no sangue periférico, é quantificada pela verificação de valores de hemoglobina superiores aos do percentil 99 segundo as distribuições de referência em função da idade e género em, pelo menos, duas determinações temporalmente distintas (Figura 1). A eritrocitose neonatal é discutida separadamente, na Parte referente à Neonatologia.

A eritrocitose (absoluta ou verdadeira) deve ser distinguida da eritrocitose relativa (esta última, mais correctamente designada por hemoconcentração), em que a elevação do valor de hemoglobina e do hematócrito se deve a uma redução do volume plasmático, e não a um aumento da massa total de glóbulos vermelhos.

ETIOPATOGÉNESE E CLASSIFICAÇÃO

A eritrocitose é habitualmente classificada em primária ou secundária, podendo em ambos os casos, ser congénita ou adquirida.

A eritrocitose primária deve-se a mutações que condicionam proliferação independente ou excessiva dos progenitores eritróides. Devido a mecanismo retroactivo fisiológico negativo, a expansão da massa eritrocitária cursa com diminuição dos níveis de eritropoietina (eritropoietina normal ou baixa).

A única eritrocitose primária congénita caracterizada molecularmente até à data, a eritrocitose familiar tipo 1, resulta de mutações na linhagem germinativa com transmissão autossómica dominante que condicionam aumento da sensibilidade do receptor da eritropoietina (EPOR).

FIGURA 1 – Curvas de percentis para os valores de hemoglobina e volume globular médio (VGM), de acordo com o género e a idade. (Em Dallman PR, Silmes MA. Percentile curves for hemoglobin and red cell volume in infancy and childhood. J Pediatr 1979; 94:28)

Conhecem-se, pelo menos, 14 mutações que resultam em ganho de função do EPOR. A única eritrocitose primária adquirida conhecida é a policitemia vera, um distúrbio clonal das células estaminais pluripotenciais hematopoiéticas, o qual resulta de mutações somáticas da JAK2 (sendo a V617F e as mutações da exão 12 as mais frequentes).

A eritrocitose secundária é causada pelo excesso de citocinas circulantes que estimulam a expansão de precursores eritróides cuja sensibilidade à eritropoietina é normal. Embora se deva habitualmente à elevação dos níveis de eritropoietina, outros factores que estimulam a eritropoiese podem estar implicados na patogénese (angiotensina II, androgénios e IGF-1). O aumento da eritropoietina pode representar uma resposta adequada à hipoxemia tecidual, um aumento de secreção, autónomo e anómalo, ou uma desregulação da modulação dependente do oxigénio (grupos III.A, III.B e III.C do Quadro 1, respectivamente).

QUADRO 1 – Classificação das policitemias

I. Policitemia relativa

Hemoconcentração (diarreia grave, uso crónico de diuréticos, queimaduras)

II. Policitemia primária (eritropoietina normal/baixa)

A. Congénita: eritrocitose familiar tipo 1 ou policitemia congénita familiar primária (mutações na linhagem germinativa com ganho de função do receptor da eritropoietina, EPOR) – transmissão autossómica dominante

B. Adquirida: policitemia vera (mutação somática)

III. Policitemia secundária (eritropoietina ou outros estimuladores da eritropoiese elevados)

A. Hipoxemia tecidual (também designada policitemia apropriada, uma vez que resulta de uma resposta fisiológica da eritropoieitina à hipóxia)

1. Fisiológica

1.1 Vida fetal
1.2 Ambiente rarefeito em oxigénio (altitude elevada)

2. Patológica

2.1 Defeitos da ventilação: doença cardiopulmonar, obesidade
2.2 Fístula arteriovenosa pulmonar
2.3 Cardiopatia congénita com shunt esquerdo-direito (exemplo: tetralogia de Fallot, síndroma de Eisenmenger)
2.4 Variantes anómalas da hemoglobina

2.4.1 Meta-hemoglobina
2.4.2 Carboxi-hemoglobina
2.4.3 Sulfa-hemoglobina
2.4.4 Hemoglobinopatias com elevada afinidade para o oxigénio (hemoglobina de Chesapeake, Ranier, Yakima, Osler, Tsurumai, Kempsey e Ypsilanti)
2.4.5 Défice de 2,3-bifosfoglicerato (enzima 2,3-bifosfoglicerato mutase)

B. Aumento da eritropoietina ou de outros estimuladores da eritropoiese (também designada policitemia inapropriada, uma vez que resulta da produção aberrante de eritropoietina ou outros factores de crescimento)

1. Endógena

1.1 Renal: tumor de Wilms, isquémia renal, doenças vasculares renais, doença renal poliquística, lesões renais benignas (hidronefrose), carcinoma de células renais e eritrocitose pós-transplante renal (ocorre em 10-12% dos casos)
1.2 Endocrinológica: feocromocitoma, síndroma de Cushing, hiperplasia congénita da suprarrenal, adenoma da suprarrenal com hiperaldosteronismo primário
1.3 Hepática: hepatoblastoma, carcinoma hepatocelular, hemangioma hepático, síndroma de Budd-Chiari (alguns destes doentes podem ter doença mieloproliferativa)
1.4 Cerebelosa: hemangioblastoma, hemangioma, meningioma
1.5 Uterina: leiomioma, leiomiossarcoma
1.6 Ovárica: quistos dermóides

2. Exógena

2.1 Administração de testosterona e esteróides relacionados
2.2 Administração de hormona de crescimento

C. Policitemias que reunem características das primárias e secundárias (resultam de alterações na sensibilidade ao oxigénio)

1. Policitemia de Chuvash ou eritrocitose familiar tipo 2 (mutação do gene von Hippel-Lindau, VHL) – transmissão autossómica recessiva
2. Policitemias não Chuvash: eritrocitose familiar tipo 3 (mutação do gene EGLN1 que codifica a prolil-hidroxilase 2 dos factores induzidos pela hipóxia, PHD2); eritrocitose familiar tipo 4 (mutação do gene EPAS1 que codifica o factor induzido pela hipóxia 2α, HIF2α) – transmissão autossómica dominante

IV. Policitemia neonatal (na Parte dedicada à Neonatologia)

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da eritrocitose estão directamente relacionadas com a hiperviscosidade resultante da expansão da massa de eritrócitos, podendo incluir: cefaleias, tonturas, acufenos, vertigens, alterações visuais, prurido (sobretudo após exposição a água quente), dispneia, desconforto epigástrico, saciedade precoce e obstipação. Embora mais raros, podem estar presentes sintomas contitucionais como perda ponderal, astenia e diaforese. O exame objectivo pode evidenciar hipertensão arterial sitólica e eritromelalgia (extremidades quentes, ruborizadas e dolorosas). Na policitemia vera é também frequente a presença de esplenomegália e hepatomegália.

Na eritrocitose secundária, para além das manifestações clínicas acima descritas, podem coexistir achados sugestivos de patologia cardíaca, respiratória (incluindo apneia obstrutiva do sono), endocrinológica, hepática ou renal subjacente.

Diagnóstico etiológico

Os algoritmos referentes ao diagnóstico etiológico da eritrocitose em adultos não são directamente aplicáveis na idade pediátrica, sobretudo no que concerne à sequência dos exames complementares de diagnóstico. Tal prende-se com diferenças significativas na epidemiologia da eritrocitose, de acordo com a faixa etária e com a possibilidade de se inverter a sequência da investigação (sobretudo a antecipação dos testes genéticos), quando existe diagnóstico etiológico firmado num familiar próximo com eritrocitose. Actualmente, o diagnóstico etiológico só é possível em cerca de 30% dos casos. Na Figura 2, apresenta-se uma proposta de abordagem da eritrocitose em crianças e adolescentes.

Segundo as recomendações actuais, a abordagem inicial deve incluir: anamnese e exame físico completos, hemograma dos familiares, oximetria de pulso, ecografia abdominal e renal com doppler, provas de função respiratória e/ou polissonografia; doseamento da eritropoietina sérica, gasometria, provas de função renal, provas hepáticas, ferritina e saturação da transferrina (a ordem dos exames a pedir deverá ter em conta a história clínica).

A hipoxemia é a causa mais comum de elevação persistente da hemoglobina. Saturações arteriais da Hb em oxigénio (SpO2) inferiores a 92%, objectivadas na oximetria de pulso, devem motivar a investigação de patologia cardiorrespiratória. Salienta-se que reduções intermitentes da SpO2, como na apneia obstrutiva do sono, podem conduzir a um aumento fisiológico da eritropoietina com consequente eritrocitose.

Na criança e adolescente com eritrocitose primária (eritropoietina < 5 UI/L) em que se excluiu a hipoxemia como factor causal (SpO2 > 92%), as etiologias congénitas devem ser consideradas em primeira linha (mutações do EPOR). Tal prende-se com a raridade da policitemia vera (PV) em idade pediátrica (na população com idade inferior a vinte anos, a incidência de PV é de 0,00-0,02 por 105 pessoas-ano).

No entanto, na presença de esplenomegália, leucocitose ou trombocitose, sugere-se investigar esta hipótese em primeiro lugar (actualmente preconiza-se o rastreio inicial de mutações da JAK2 – V617F e mutações na exão 12).

A distinção das causas de eritrocitose secundária (eritropoietina > 5 UI/L ou normal mas desproporcionalmente elevada para o valor de hemoglobina) baseia-se na determinação da P50 da hemoglobina (pressão parcial de oxigénio no sangue para a qual 50% da hemoglobina se encontra saturada com oxigénio). Não dispondo de um analisador automático, a P50 pode ser calculada a partir dos dados da gasometria venosa aplicando a fórmula: log PO2 (7.4) = log PO2observado – [0.5(7.4 – pHobservado)].

Se a P50 for baixa (< 20 mmHg), deve suspeitar-se da presença de variantes da hemoglobina com afinidade aumentada para o oxigénio ou de défice de 2,3-bifosfoglicerato (que também resulta num aumento da afinidade da hemoglobina, embora seja mais raro). Note-se que nas meta-hemoglobinémias, o doente pode apresentar-se cianótico com SpO2 baixa, mas com PaO2 normal objectivada por gasometria; assim, o doseamento da meta-hemoglobina, frequentemente disponível quando se procede a gasometria, pode ser muito útil.

Na presença de P50 normal, há que considerar: – causas endógenas e exógenas de aumento da eritropoietina; e – policitemias que se devem a alteração da sensibilidade à hipóxia.

Neste último subgrupo inclui-se a policitemia de Chuvash (mutação do gene von Hippel-Lindau, VHL) e policitemias não Chuvah. A perda de função do VHL atrasa a degradação dos factores de transcrição induzidos pela hipóxia 1 e 2 (HIF1 e 2), resultando num aumento da transcrição do gene da eritropoietina. Mutações no HIF2α, ou no domínio prolil-hidroxilase 2 (PHD2) de enzimas que hidroxilam o HIF2α, têm tradução clínica semelhante. Salienta-se que este subgrupo de patologias cursa simultaneamente: – com elevação da eritropoietina, uma característica da eritrocitose secundária; e – com hipersensibilidade do receptor da eritropoietina, o que é característico da eritrocitose primária.

FIGURA 2 – Proposta de algoritmo para o diagnóstico de eritrocitose absoluta em crianças e adolescentes (adoptado dos consensos do “Congenital erythrocitosis working group”).

SpO2 = saturação periférica em oxigénio medida por oximetria de pulso; Epo = eritropoietina; P50 = pressão parcial de oxigénio no sangue para a qual 50% da hemoglobina se encontra saturada com oxigénio; Hb = hemoglobina; 2,3-BPG = 2,3-bisfosfoglicerato; VHL = von Hippel-Lindau; HIF2α = hypoxia-induced factor 2α; PHD2 = prolyl hydroxylase domain 2; JAK2 = Janus kinase 2

Tratamento

Os principais objectivos do tratamento são o aumento da sobrevivência e a redução das complicações associadas à hiperviscosidade. O tratamento das policitemias primárias exige apoio diferenciado, podendo incluir flebotomias e quimioterapia. Na eritrocitose secundária, sempre que possível, o tratamento deve ser dirigido ao factor etiológico subjacente, estando as flebotomias reservadas para o controlo da hiperviscosidade sintomática.

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HEMOGLOBINÚRIA PAROXÍSTICA NOCTURNA

Definições

De acordo com a definição histórica, a chamada hemoglobinúria paroxística nocturna (HPN), ou síndroma de Marchiafava-Micheli, é um tipo pouco comum de anemia hemolítica crónica na idade pediátrica (~5% dos casos de HPN), com início insidioso, caracterizada por episódios de eliminação de “urina escura” ou hemoglobinúria ocorrendo principalmente durante o sono, período em que diminui o pH sérico, independentemente de ser dia ou noite.

As primeiras descrições desta entidade clínica referiam, a par duma população de eritrócitos ditos “simile normais”, outra população de eritrócitos, “doentes”, com vida média muito encurtada, sofrendo hemólise precoce, logo na fase de saída da medula óssea, ou do órgão hematopoiético.

Admitiu-se então que se tratava de doença adquirida e que os eritrócitos pertencendo à população doente, com teor diminuído em acetilcolinesterase, eram portadores de anomalia da membrana eritrocitária tornando-os mais frágeis em meio ácido, e mais susceptíveis a factores hemolíticos presentes, quer no soro e plasma de indivíduos normais, quer de pacientes com a referida doença.

Tais factores incluem o complemento, a trombina e a properdina. Admitiu-se também que o mecanismo de acção dos factores descritos é complexo e que o sistema de coagulação parece estar envolvido na precipitação das crises hemolíticas.

Tendo também sido descrito nos primórdios que se verificava nos pacientes um quadro de falência da medula óssea, e que em cerca de 25% dos pacientes fora diagnosticada inicialmente anemia aplástica, concluiu-se que havia relação entre HPN e hipoplasia da medula óssea, e que a entidade HPN, mais do que uma anemia hemolítica peculiar, é uma doença global da medula óssea.

Relatados estes factos históricos, estamos em melhores condições para compreender a definição de HPN no século XXI, baseada nos francos progressos da Hematologia: distúrbio clonal adquirido das células estaminais hematopoiéticas, traduzido pela tríade anemia hemolítica intravascular, fenómenos trombóticos e falência medular.

Etiopatogénese       

Existem classicamente duas classes de proteínas de membrana: proteínas transmembranares e proteínas ancoradas por cadeias de glicosilfosfatidilinositol (GPI).

Na HPN ocorre uma mutação somática no gene PIGA ao nível das células estaminais hematopoiéticas, do que resulta diminuição da síntese de GPI, com consequente deficiência parcial ou completa das proteínas de membrana ancoradas por GPI.

Os factores CD55 e CD59, encontrando-se ancorados à membrana dos glóbulos vermelhos por cadeias de GPI, regulam a activação do complemento na sua superfície. A deficiência dos referidos factores conduz a hemólise intravascular, mediada pelo complemento; é uma característica da HPN.

Há uma grande variabilidade inter e intra-indidividual na HPN quanto:

  • À proporção de eritrócitos em circulação com as alterações descritas;
  • À gravidade da deficiência dos factores CD55 e CD59 ao longo do tempo. Destas circunstâncias resulta grande variabilidade no grau de hemólise intravascular.

Está bem documentada a íntima relação entre a HPN e a aplasia medular e a síndroma mielodisplásica. De acordo com a hipótese predominante, pequenos clones de HPN estão presentes em indivíduos normais e, perante certas situações de destruição imunológica da medula óssea (como ocorre na aplasia medular idiopática), esses clones beneficiam de uma vantagem selectiva de crescimento, proliferam e tornam-se a fonte predominante de células estaminais hematopoiéticas. Esta vantagem de crescimento resulta provavelmente da deficiência de certas proteínas imunomoduladoras de membrana ancoradas por GPI.

O mecanismo responsável pelo estado de hipercoagulabilidade continua desconhecido. Vários mecanismos foram propostos, nomeadamente a activação plaquetária por componentes do complemento, a deficiência de proteínas membranares com actividade anticoagulante ou fibrinolítica, a actividade pró-coagulante de micropartículas libertadas dos glóbulos vermelhos HPN, e a vasoconstrição induzida por produtos de hemólise.

Manifestações clínicas

De acordo com a apresentação clínica, a HPN é classicamente dividida em 3 subgrupos:

  1. HPN clássica, associada a fenómenos hemolíticos e trombóticos;
  2. HPN secundária a síndroma de falência medular;
  3. HPN subclínica, caracterizada pela presença de pequenos clones de células HPN, sem evidência clínica ou laboratorial de hemólise ou trombose.

A classificação é difícil nalguns doentes porque todos os subgrupos podem apresentar algum grau de insuficiência medular.

A falência medular é a apresentação mais comum em crianças e adolescentes, podendo estar presente em mais de 80% dos doentes ao diagnóstico. Cerca de 20% dos casos de aplasia medular ou mielodisplasia são diagnosticados com HPN, pelo que se recomenda que todos os doentes com insuficiência medular sejam rastreados.

Os fenómenos trombóticos, menos frequentes do que nos adultos, atingem territórios pouco comuns como o abdominal e o cerebral.

Contrariamente ao que o nome indica, a hemoglobinúria isolada é excepcionalmente rara.

A dor, em particular a dor abdominal, é também um sintoma comum em idades pediátricas.

A hemólise crónica leva a uma diminuição do óxido nítrico, o qual se liga à hemoglobina livre em circulação; de tal resulta a ocorrência de fadiga, hipertensão pulmonar, doença renal crónica e disfagia ou espasmo esofágico. Estas complicações debilitantes podem reduzir de forma marcada a qualidade de vida dos doentes.

Diagnóstico

Dado que o atraso no diagnóstico é comum, torna-se essencial uma atitude de elevado nível de suspeição. Contudo, dada a raridade da doença, a pesquisa de clones de células surgindo no contexto de HPN em todos os doentes com anemia ou trombose não está indicada. No entanto, algumas situações clínicas associando-se a um risco elevado de HPN, merecem um estudo dirigido.

A inexistência de história de hemólise precipitada pelo frio, exclui o quadro de hemoglobinúria paroxística a frigore.

Assim, deve suspeitar-se de HPN nas seguintes circunstâncias: (Quadro 1)

QUADRO 1 – Indicações clínicas para o estudo de HPN

Hemólise associada a deficiência de ferro ou dor abdominal/espasmo esofágico
Anemia hemolítica com prova de Coombs negativa sem alterações celulares características (esferócitos, esquizócitos, drepanócitos)
Trombose em locais atípicos (veias hepáticas, veia porta, veias mesentéricas, veia esplénica, seios venosos cerebrais, veias dérmicas)
Anemia aplásica, anemia hipocelular ou síndroma mielodisplásica (suspeita ou confirmação)
Combinação de ≥ 2 das seguintes situações: anemia hemolítica; trombocitopénia e/ou leucopénia; trombose

A detecção de populações celulares deficientes em proteínas ancoradas por GPI através de técnicas de citometria de fluxo constitui o método diagnóstico de eleição.

As recomendações internacionais preconizam o estudo de granulócitos e glóbulos vermelhos no sangue periférico e, no mínimo, de duas proteínas de membrana (CD55 e CD59 são as habitualmente pesquisadas, embora possam ser utilizadas outras proteínas).

Recentemente, surgiram técnicas de citometria de fluxo mais sensíveis (limite de sensibilidade < 0,01%), as quais podem ser úteis na detecção de pequenos clones em doentes com insuficiência medular; contudo, sendo tecnicamente mais complexas, ainda não se encontram padronizadas. Além do limite de sensibilidade utilizado, é importante documentar a proporção da população clonal em cada linhagem celular para ulterior avaliação. O estudo da população de leucócitos fornece a melhor estimativa do tamanho do clone por ser menos sensível à hemólise e/ou a transfusões prévias.

Tratamento

Os doentes assintomáticos ou com sintomas ligeiros não necessitam de qualquer tratamento, sendo a vigilância regular apropriada. A suplementação com ácido fólico (à semelhança de outras anemias hemolíticas crónicas) e com ferro, em caso de carência em ferro, está indicada.

O tratamento de suporte está indicado na HPN clássica, podendo a corticoterapia contribuir para controlar o grau de hemólise.

O eculizumab é um anticorpo monoclonal anti-C5 que bloqueia a porção terminal do complemento. Reduzindo significativamente o grau de hemólise, está indicado no tratamento de crianças com manifestações graves, secundárias a hemólise, tais como fadiga incapacitante, dependência transfusional e crises dolorosas frequentes. Tem também sido utilizado em doentes com fenómenos trombóticos recorrentes e falência medular, com bons resultados em termos de eficácia e segurança. A principal complicação do bloqueio do sistema do complemento é a susceptibilidade a infecções por Neisseria, pelo que todos os candidatos a eculizumab devem ser previamente vacinados.

Os doentes com fenómenos trombóticos devem ser submetidos permanentemente a anticoagulantes, salvo contraindicação; de referir, no entanto, que a anticoagulação profiláctica é questionável em idade pediátrica.

A contracepção oral deve ser evitada pelo risco particularmente aumentado de trombose. A imunossupressão é útil nos doentes com aplasia medular/síndroma mielodisplásica, embora não elimine o clone HPN.

O transplante alogénico de células estaminais, o único tratamento disponível, deve ser ponderado em doentes jovens com:

  • Anemia hemolítica dependente de transfusão e refractária a eculizumab;
  • Complicações trombóticas graves e recorrentes; e
  • Anemia aplásica/síndroma mielodisplásica.

Prognóstico

A sobrevivência dos doentes aos 10 anos é de cerca de 80%. Neutropénia (neutrófilos < 500/mm3) e infecções de repetição são factores de mau prognóstico. Complicações infecciosas e fenómenos trombóticos são as principais causas de morte.

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ANEMIAS HEMOLÍTICAS DE CAUSA EXTRÍNSECA

Introdução

As anemias hemolíticas devidas a factores extracelulares (termo sinónimo de “de causa extrínseca”, de “causa imunitária”, ou “imunes”) devem-se à união de anticorpos IgG e/ou IgM à membrana do eritrócito, do que resulta hemólise, ocasionalmente através da activação do complemento e com a participação do sistema reticuloendotelial (SRE).

Genericamente classificam-se em iso ou aloimunes, autoimunes e provocadas por fármacos. De referir, contudo, que os fármacos também poderão actuar por mecanismo não imunitário.

1. ANEMIA HEMOLÍTICA ISOIMUNE

Etiopatogénese

A hemólise de causa isoimune (admitindo como paradigma a incompatibilidade sanguínea materno-fetal) é provocada por imunização materna activa contra antigénios fetais não existentes nos eritrócitos maternos. São exemplos os anticorpos contra os antigénios A, B, D e outros dos sistemas Rh Kell, Duffy, etc..

A hemólise anti-A e anti-B é provocada pela passagem transplacentar mãe ” feto de aglutininas (anticorpos naturais) da mãe do grupo 0 (com aglutininas alfa e beta) as quais poderão provocar hemólise em RN dos grupos A ou B respectivamente.

Tendo escolhido a anemia hemolítica isoimune do recém-nascido como paradigma, cabe referir que nas reacções hemolíticas transfusionais decorrentes de transfusão de sangue incompatível a etiopatogénese é sobreponível à de incompatibilidade de grupo sanguíneo, não mãe-filho, mas dador-receptor.

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações resultantes da hemólise (que no sistema Rh pode ocorrer já no feto) são anemia no feto/recém-nascido, possível hydrops fetalis, hiperbilirrubinémia, hepatosplenomegália, etc..

As provas de Coombs positivas (directa – realizada no recém-nascido, permitindo detectar anticorpos fixados sobre os eritrócitos, e indirecta, realizada na mãe, permitindo evidenciar anticorpos no respectivo soro), e a presença de precursores eritróides imaturos (eritroblastos) e de esferócitos no sangue periférico, permitem confirmar o diagnóstico.

Este tópico (anemia hemolítica isoimune/doença hemolítica perinatal) é retomado, com mais pormenor, na Parte XXXI.

2. ANEMIA HEMOLÍTICA AUTOIMUNE

Etiopatogénese e importância do problema

Na anemia hemolítica autoimune os anticorpos do doente são dirigidos de modo aberrante contra os antigénios eritrocitários normais do mesmo hóspede. Os anticorpos são, na maioria, quer do tipo IgG (anticorpos “quentes” ou “incompletos”, com máxima actividade em torno de 37ºC), quer do tipo IgM (anticorpos “frios”, com máxima actividade em torno de 0-4ºC). Nesta última situação (anticorpos de tipo IgM), e ao contrário do que ocorre com os de tipo IgG, verifica-se activação da via do complemento e citólise. Por este motivo, a hemólise relacionada com este tipo de anticorpos é de tipo intravascular e não através do SRE.

Trata-se duma patologia pouco frequente, com uma incidência estimada em 1/80.000 na população geral.

Na base do processo está provavelmente uma modificação de antigenicidade dos eritrócitos associada a lesão da membrana eritrocitária por infecção ou por agente químico (fármaco, por ex.); poderá também estar em causa o aparecimento de um novo antigénio (neoantigénio) formado pela combinação de agente infeccioso com o eritrócito.

As anemias hemolíticas autoimunes por IgG correspondem a cerca de 50-70% dos casos de anemias hemolíticas autoimunes.

Na prática, as situações frequentemente associadas a tal anomalia são:

  • Infecções por Mycoplasma, vírus de Epstein-Barr, outros vírus (nestas situações o paradigma é o aparecimento de aglutininas chamadas “anticorpos frios ou crioaglutininas”, isto é, actuando a temperaturas inferiores a 37ºC);
  • Doenças crónicas autoimunes (lúpus eritematoso sistémico, doenças linfoproliferativas, doença de Hodgkin, tiroidite de Hashimoto, leucemia linfóide crónica, síndromas de imunodeficiência, etc.); em geral, estas afecções estão associadas ao aparecimento de anticorpos IgG (“anticorpos quentes”) por terem a máxima actividade, sem necessidade do complemento, entre 37-40°C;
  • Hemoglobinúria paroxística desencadeada pela exposição ao frio (ou a frigore) resultante de episódios de hemólise intravascular mediada pela hemolisina de Donath-Landsteiner ou autoanticorpo IgM reactivo ao frio, fixando complemento a temperatura abaixo de 37ºC, provocando aglutinação e hemólise quando a temperatura se eleva); em geral, o processo está associado a infecções víricas e a sífilis congénita ou adquirida. Esta situação explica cerca de 30% das anemias hemolíticas imunes na idade pediátrica;
  • Fármacos formando um hapteno ao nível da membrana (por ex. penicilina) ou complexos imunes (por ex. quinidina); consequentemente a activação do complemento induz hemólise. Outros fármacos administrados durante longo tempo como a alfa-metildopa provocam alteração da membrana do eritrócito, do que resulta a formação de neoantigénios a que atrás se aludiu, com consequente formação de anticorpos.

Manifestações clínicas

O quadro clínico mais frequente (cerca de 80% dos casos) surge em crianças entre os 2 e 12 anos na sequência de infecção, na maioria respiratória. Os sinais e sintomas, de início agudo, duram cerca de 3 a 6 meses: prostração, palidez progressiva, icterícia, febre, hemoglobinúria e esplenomegália.

Outra forma clínica, mais insidiosa e de maior duração (meses a anos), manifesta-se sobretudo em adolescentes e jovens adultos.

No caso de a anemia autoimune constituir um epifenómeno de doença subjacente, manifestar-se–ão também os respectivos sintomas e sinais.

O quadro de hemoglobinúria paroxística desencadeada pela exposição ao frio (temperaturas inferiores a 37ºC) é autolimitado, explicando cerca de 30% dos episódios de hemólise de causa imune. (ver capítulo seguinte)

Exames complementares

O hemograma e o estudo do sangue periférico evidenciam: anemia normocítica e normocrómica, moderada a grave (por vezes são atingidos níveis de hemoglobina da ordem de 4 a 6 g/dL), esferocitose, células nucleadas e reticulócitos, assim como leucocitose.

O número de plaquetas em geral é normal; no entanto, poderá verificar-se púrpura trombocitopénica concomitante, associação que corresponde à chamada síndroma de Evans.

O exame da medula óssea revela hiperplasia eritróide marcada.

As provas de Coombs directa e indirecta são positivas. A bilirrubinémia não conjugada está elevada assim como o urobilinogénio nas fezes e urina.

No caso da hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo frio, a prova de Coombs é positiva no decurso do episódio, e negativa na fase assintomática.

Tratamento

Na fase aguda pode estar indicada transfusão sanguínea, eventualmente como medida urgente; salientam-se as dificuldades que por vezes surgem para a determinação do grupo sanguíneo, tendo em conta a existência de autoaglutininas. Nos casos de hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo frio, a transfusão comporta riscos (adição de complemento e probabilidade de hemólise).

Outras medidas incluem a administração de ácido fólico, corticosteróide (prednisolona em doses entre 2 a 6 mg/kg/dia em função da intensidade da hemólise, e com duração dependente da mesma, – podendo atingir 1 a 3 meses) e de imunoglobulina intravenosa (nos casos em que a corticoterapia não é eficaz), como meio de bloquear os receptores Fc dos macrófagos e de depurar os eritrócitos sensibilizados.

Nos casos refractários está indicado o anticorpo monoclonal (rituximab) actuando ao nível dos linfócitos B como frenador da produção de anticorpos.

Se as medidas anteriores não tiverem sido eficazes, deverá ser ponderada a esplenectomia, obtendo-se melhores resultados nos casos devidos a IgG. A mesma, que comporta risco elevado de infecções por germes capsulados, sobretudo nas crianças de idade inferior a 2 anos, obrigará a medidas profilácticas, designadamente imunização anti-pneumocócica, meningocócica e Haemophilus influenzae.

Por fim, perante situações, designadamente as associadas ao frio e aos fármacos, há que evitar o frio e suprimir os fármacos ou outros factores eventualmente desencadeantes, assim como proceder ao tratamento de infecções que forem documentadas.

Prognóstico

A forma aguda anteriormente descrita, independentemente da gravidade do quadro, é autolimitada.

Na globalidade, em cerca de 20% dos casos há tendência para hemólise crónica.

Nos casos de síndroma de Evans o prognóstico é reservado com tendência para a cronicidade. A mortalidade nas formas crónicas depende da doença de base.

3. ANEMIA HEMOLÍTICA ADQUIRIDA NÃO AUTOIMUNE

A hemólise pode também ser provocada por mecanismos extra-eritrocitários vários, não mediados por anticorpos. Seguidamente são referidos alguns dos mecanismos de lesão da membrana eritrocitária, relacionando-os com determinadas entidades clínicas.

Etiopatogénese

1. Microangiopatia trombótica

A membrana dos eritrócitos pode ser lesada mecanicamente sempre que se verifique um processo obstrutivo de microangiopatia trombótica. Tal pode surgir na coagulação intravascular disseminada (CIVD), púrpura trombocitopénica trombótica (PTT), síndroma hemolítica urémica (SHU), reacção de hospedeiro contra-enxerto, hipertensão maligna, etc..

2. Dislipoproteinémias

As dislipoproteinémias, sobretudo a hipercolesterolémia, provocam alterações da membrana eritrocitária (aumento do conteúdo em colesterol e alteração da relação colesterol/fosfolípidos) diminuindo a sua deformabilidade, o que predispõe à hemólise.

No sangue periférico são identificados eritrócitos “com esporões”, também observados na abetalipoproteinémia e em certas hepatopatias acompanhadas de dislipoproteinémia.

3. Toxinas e fármacos

Determinadas toxinas (como as produzidas por répteis venenosos) e certos metais pesados (cobre e arsénico), provocam hemólise através da respectiva ligação ao grupo sulfidrilo da membrana.

No sangue periférico podem ser observados eritrócitos com “espículas” irregulares, tal como acontece em doentes com insuficiência renal crónica.

4. Carência de vitamina E

Nestas situações de carência verifica-se sensibilidade anormal dos lípidos da membrana ao estresse oxidante; como exemplos desta carência citam-se: a que surge em recém-nascidos com antecedentes de prematuridade não suplementados com a referida vitamina, sendo que tal carência pode ser agravada pela administração de ferro (agente oxidante); má-nutrição; síndromas de má-absorção (incluindo a fibrose quística); regime transfusional intensivo traduzindo-se por suprimento elevado em ferro.

5. Infecções sistémicas e parasitoses

Numerosas infecções bacterianas sistémicas (por ex. por Clostridium perfrigens e Haemophilus influenzae do tipo b) originam hemólise por libertação de hemolisinas eritrocitárias, do que resulta hemoglobinémia e hemoglobinúria.

Nos casos de anemias por protozoários (por ex. malária) verifica-se destruição directa dos eritrócitos pelos plasmódios que os parasitam.

6. Agentes físicos

Sendo discutível a acção das radiações ionizantes, é aceite a acção da hipertermia ou das queimaduras; com efeito, temperaturas da ordem dos 50ºC originam eritrócitos esferocíticos e fragmentados, com diminuição da resistência osmótica.

7. Outros exemplos

Importa uma referência a: hiperseplenismo de diversas causas provocando sequestração de eritrócitos; próteses valvulares pós-cirurgia cardíaca em que os eritrócitos contactam com superfície não endotelial; e a fluxo sanguíneo elevado no contexto de hemangiomas gigantes (síndroma de Kasabach-Merritt).

O estudo morfológico do sangue periférico evidencia eritrócitos fragmentados, microsferócitos, policromasia e eritrócitos em forma de lágrima.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Cada um dos quadros clínicos sucintamente descritos poderá apresentar variações quanto a manifestações clínicas. Contudo, em todos existe de comum sintomatologia de anemia hemolítica: anemia, icterícia e reticulocitose.

Tratamento

O tratamento deve ser o da causa desencadeante (por ex. CIVD ou SHU), associado a transfusões de concentrado eritrocitário, combatendo a anemia.

Tratando-se de tóxicos como factores desencadeantes, importa removê-los.

Nas situações associadas a microangiopatia, está indicada a utilização de anticorpo monoclonal anti-C5, como o eculizumab.

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ANEMIAS HEMOLÍTICAS POR DEFEITOS DA HEMOGLOBINA

Introdução

A hemoglobina (Hb) é a proteína transportadora de oxigénio para todos os tecidos do organismo. É formada por quatro cadeias peptídicas (globinas), cada uma delas ligada a um grupo heme. Diferentes estruturas de Hb evoluem ao longo do desenvolvimento fetal, embrionário, e dos primeiros meses de vida até se atingir a estrutura Hb A (2 cadeias α e 2 cadeias β – α2β2), que predomina na idade adulta. (Quadro 1)

No embrião predominam as Hb Gower-1 (ζ2ε2), Gower-2 (α2ε2) e Portland (ζ2γ2). A partir da décima semana de gestação e até ao sexto mês de vida, predomina a Hb fetal (α2γ2). Com a aproximação do nascimento, passa a ser produzida a Hb A e uma pequena quantidade de Hb A2 (α2δ2). Em estados patológicos associados a eritropoiese ineficaz como a talassémia e a drepanocitose, verifica-se uma diminuição na produção de Hb A com aumento da síntese da Hb F (recapitulação da ontogenia). Cada variante de Hb tem propriedades distintas que conferem vantagens específicas durante a respectiva fase de desenvolvimento.

Com efeito, o equilíbrio entre os pares de globinas é fundamental para os processos metabólico e fisiológico do glóbulo vermelho. A falta de produção de uma cadeia de globina determina que não se forme quantidade normal de Hb; por consequência, os eritrócitos são microcíticos e hipocrómicos. Por outro lado, a cadeia de globina não afectada continua a produzir-se em quantidade normal, do que resulta: – um excedente desta, que precipita e causa lise prematura, inclusivamente na medula óssea (eritropoiese ineficaz); ou – formação de tetrâmeros de uma só cadeia (Hb H, com quatro cadeias β, ou Hb de Bart, com quatro cadeias γ) que não podem libertar oxigénio como acontece com a Hb normal e precipitam nas células em qualquer momento do seu desenvolvimento. Os eritrócitos resultantes têm consequentemente vida média encurtada, destruindo-se de forma prematura, sobretudo no baço.

As diferentes cadeias de globina são codificadas por dois grupos génicos: o grupo β localiza-se no cromossoma 11 e contém um gene β, um δ, um ε e um γ; o grupo α localiza-se no cromossoma 16 e contém 2 genes α e 1 ζ. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Hemoglobina humana

Fase da ontogéneseHemoglobinaEstrutura%
EmbrionáriaGower-1
Gower-2
Portland
ζ2ε2
α2ε2
ζ2γ2
20-40
10-20
5-20
FetalFetalα2γ290-100
Pós-nascimentoA
A2
Fetal
α2β2
α2δ2
α2γ2
96-98
2-4
0-1

As hemoglobinopatias encontram-se entre as doenças autossómicas recessivas mais comuns. Estima-se que mais de 250 milhões de pessoas (cerca de 4,5% da população mundial) sejam portadoras de uma alteração da hemoglobina.

As hemoglobinopatias são classicamente divididas em quantitativas e qualitativas.

As hemoglobinopatias quantitativas ou de síntese, vulgarmente conhecidas como talassémias, resultam da síntese diminuída ou ausente de uma globina estruturalmente normal.

As hemoglobinopatias qualitativas ou de estrutura incluem hemoglobinas com alteração da função ou das suas propriedades físicas ou químicas que resultam da mutação genética, determinando substituição de um aminoácido numa das cadeias polipeptídicas. As hemoglobinas anormais comuns – S, C, D, E provêm de substituições de um aminoácido nas cadeias β; são exemplos as diferentes formas de doença falciforme (Hb S) e outras adiante descritas.

Nalguns países procede-se ao rastreio neonatal das hemoglobinopatias.

ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS DA HEMOGLOBINA – TALASSÉMIAS

Definição

As talassémias são anemias hemolíticas congénitas que resultam de anomalia da síntese de uma ou mais subunidades das cadeias de globina que formam a hemoglobina. A cadeia da globina afectada estará presente em quantidades inferiores às normais ou, inclusivamente, ausente.

Patogénese e classificação

Assim, as talassémias classificam-se conforme a cadeia de globina cuja síntese está afectada:

  • Alfa talassémia <> síntese de globina α reduzida ou ausente;
  • Beta talassémia <> síntese de globina β reduzida ou ausente;
  • E assim, sucessivamente, para as restantes globinas (por ex. γ ou outras) que, mesmo se presentes, mas deficitárias, evidenciam estrutura normal.

Assim, designando-se as talassémias pelo nome cadeia de globina ausente ou deficitária, na representação gráfica utilizam-se os seguintes símbolos: por ex. αº ou βº se a síntese estiver ausente; e α+ ou β+ se a síntese estiver reduzida.

A síntese diminuída ou ausência de uma das globinas (α, β ou γ) determina excesso relativo da outra; por outro lado, as referidas globinas não emparelhadas são instáveis, precipitam no interior do glóbulo vermelho e provocam lesões oxidativas da membrana plasmática, resultando em hemólise. A gravidade da hemólise depende da quantidade e da variante de globina mutada.

As cadeias α não emparelhadas são insolúveis, ao contrário das cadeias β e γ, que mantêm alguma capacidade de formar tetrâmeros da mesma globina.

Numa das formas de beta talassémia, chamada major, a ausência de cadeias β cria um grande desequilíbrio entre as globinas, sendo os eritroblastos destruídos ainda na medula óssea, antes de entrarem em circulação, levando a uma anemia grave. Nestes doentes, há um aumento compensatório na actividade eritropoiética medular que, no entanto, nunca é completo – é a chamada eritropoiese ineficaz.

Diagnóstico pré-natal

Na actualidade é possível detectar a mutação responsável por cada tipo de talassémia a partir de amostra de líquido amniótico ou de biópsia coriónica obtida entre as semanas 8 e 18 de gestação. O diagnóstico realiza-se através do estudo do ADN, em geral com técnicas de PCR (reacção em cadeia da polimerase).

Beta talassémia – generalidades

Compreende um grupo de anemias hemolíticas hereditárias causadas por anomalia na síntese da globulina β da Hb, com produção de excesso relativo de cadeias α de globina.

Nesta forma de talassémia, e na sua maioria, verificam-se mutações pontuais que afectam poucas bases, alterando-se a expressão do gene da cadeia β da globina. Foram descritas mais de 100 mutações, mas somente cerca de 5 ou 6 delas afectam mais de 90% dos pacientes; as mutações predominantes variam conforme as etnias.

A beta talassémia é prevalente em populações do Mediterrâneo, Médio Oriente, Centro, Sul e Sueste da Ásia e Sueste da China. Resulta habitualmente de mutações pontuais em várias regiões do gene β, sendo muito raras as deleções.

As manifestações clínicas, muito variáveis, dependem do desequilíbrio entre a síntese das globinas α e β, ou seja, da quantidade de cadeias α não emparelhadas. Mutações na região codificadora do gene β levam à ausência de síntese da globina desse alelo (β0), enquanto mutações noutras regiões do gene levam a redução ligeira ou moderada da respetiva síntese (β+). Sob o ponto de vista clínico, as beta-talassémias classificam-se em major, minor e intermédia.

 Beta talassemia major (anemia de Cooley)

Etiopatogénese e clínica – A beta talassémia major resulta de homozigotia ou heterozigotia composta (β00) com défice grave ou ausência de síntese de globina β nos glóbulos vermelhos. Uma vez que as variantes de Hb embrionárias e a Hb F não possuem cadeias β, os sintomas surgem a partir dos 6 meses de idade.

A ausência de síntese das cadeias β da globina determina anemia hemolítica intensa e crónica. Como mecanismo compensador do organismo verifica-se hiperplasia do tecido hematopoiético (expansão das cavidades medulares, hepatosplenomegália) e aumento da absorção digestiva do ferro.

Os sinais iniciais são palidez, icterícia e hepatosplenomegália ligeiras (por eritropoiese extramedular) que são mais notórias pelos 2 anos de idade. Concomitantemente verifica-se compromisso progressivo do crescimento com agravamento da síndroma anémica (palidez “terrosa”) ao longo dos anos e litíase biliar.

Poderão surgir progressivamente alterações cardíacas como resultado do estado hiperdinâmico secundário à anemia de gravidade progressiva, e hemossiderose miocárdica, a principal causa de mortalidade por insuficiência cardíaca. Igualmente, alterações endócrinas (diabetes mellitus, hipotiroidismo, diminuição da actividade da somatomedina) possivelmente em relação com o depósito do ferro e hipóxia crónica.

De salientar que o ferro acumulado provém, tanto da degradação da Hb, como da sua absorção intestinal aumentada; como consequência poderá instalar-se um quadro de deposição visceral generalizada de Fe. (Figura 1)

FIGURA 1 – Etiopatogénese da ß-talassémia. Adaptado de Weatherall DJ, 1998

Por volta dos 4 a 6 anos passa a ser progressivamente notório um conjunto de características dismórficas craniofaciais ou fenótipo sui generis: prognatismo do maxilar superior, retrognatismo do inferior, procidência das bossas frontais, turricefalia.

As alterações esqueléticas são o resultado da hiperplasia da medula óssea que determinam alargamento do espaço medular, com adelgaçamento da cortical e marcada osteoporose. Com efeito, estas alterações são mais evidentes nos ossos do crânio (padrão radiográfico “crânio em escova”, citado a propósito da drepanocitose) (Figura 3) e face dando origem à típica fácies asiática ou “de esquilo” (crescimento excessivo do maxilar, malares e gengivas salientes, depressão da ponte do nariz e protrusão dos dentes anteriores). Estas alterações e a eritropoiese extramedular são o epifenómeno de eritropoiese ineficaz. (Figuras 2 e 3)

FIGURA 2 – Radiografia do crânio: A – Crânio em escova; B – Sinais de hiperplasia medular. (NIHDE)

FIGURA 3 – Fácies talassémica. Hepatosplenomegália exuberante*. (NIHDE)

*Este quadro exuberante, observado há três décadas, é hoje raro dados os progressos verificados no diagnóstico e na terapêutica. (Cortesia da Profa MG Gomes da Costa ao NIHDE).

A expansão eritróide nos ossos longos, crânio e ossos faciais leva a adelgaçamento cortical com risco de fracturas ósseas e a alterações craniofaciais características (há um agravamento da hemólise após exposição a situações de estresse oxidativo e susceptibilidade a crises aplásicas por parvovírus B19).

Achados analíticos – Verifica-se anemia grave com microcitose e hipocromia (índice de Mentzer < 11,5) e reticulocitose. O esfregaço de sangue periférico apresenta anisopoiquilocitose, hipocromia, microcitose, células em alvo, eritroblastos e ponteado basófilo. O estudo das hemoglobinas por HPLC (high performance liquid chromatography) revela a ausência de Hb A e predomínio de Hb F.

No recém-nascido os valores iniciais de Hb são normais, diminuindo progressivamente para atingirem progressivamente valores inferiores a 5 g/dL nos primeiros meses de vida. O número de reticulócitos varia entre 2 e 8%.

O exame da medula óssea mostra sinais de hipercelularidade com intensa hiperplasia eritróide e diseritropoiese. Os depósitos de ferro estão muito aumentados. A resistência osmótica está também aumentada. A siderémia está elevada assim como a saturação da transferrina e a ferritina.

A avaliação da cinética do ferro mostra um padrão de eritropoiese ineficaz.

Tratamento – O suporte transfusional regular, em regra mensal, é o principal tratamento dos doentes com beta talassémia major. Permite suprimir a eritropoiese endógena ineficaz e prevenir a restrição do crescimento e as alterações esqueléticas. A fenotipagem eritrocitária alargada antes da primeira transfusão é fundamental para minorar o risco de aloimunização. A esplenectomia está indicada em situações de esplenomegália sintomática ou de necessidades crescentes de suporte transfusional.

Existe risco elevado de tromboembolismo após a esplenectomia, pelo que a profilaxia com antiagregante plaquetar deve ser considerada nalguns casos, sobretudo na presença de trombocitose.

A forma mais simples de quantificar a sobrecarga de ferro baseia-se na contagem do número total de transfusões. Os níveis séricos de ferritina correlacionam-se com os depósitos corporais de ferro e constituem outro método simples, embora aqueles sejam influenciados por estados de infecção/inflamação. A ressonância magnética (RM) é um método não invasivo de quantificar os depósitos corporais de ferro, em particular o ferro cardíaco, que pode ser monitorizado por RM cardíaca T2*: -níveis de T2* inferiores a 20 ms associam-se a um risco aumentado de insuficiência cardíaca.

A quelação do ferro deve ser iniciada após 20-25 transfusões, ferritina > 1000 ng/mL ou evidência imagiológica de sobrecarga de ferro. Existem actualmente três fármacos aprovados em doentes pediátricos: desferroxamina (via subcutânea ou endovenosa), deferiprona (via oral) e deferasirox (via oral). Cada um apresenta um perfil particular de características farmacocinéticas e farmacodinâmicas e de efeitos adversos.

Os indivíduos com sobrecarga de ferro e sob quelação (sobretudo sob desferroxamina) têm um risco elevado de bacteriémia, nomedamente por Yersinia enterocolitica; por isso, a suspensão da quelação é obrigatória durante qualquer intercorrência infecciosa.

O transplante alogénico, actualmente o único tratamento curativo, tem excelentes resultados em indivíduos jovens sem doença avançada.

Beta talassémia intermédia

Etiopatogénese e clínica – Esta forma, correspondendo geralmente a 2 genes da β-globina afectados, integra fundamentalmente os genótipos β+/β+ ou β+/βº. A cromatografia da Hb revela valores aproximados de HbA: 20-40%, Hb A2: 5% e HbF: 60-80%.

Caracteriza-se por um fenótipo clínico heterogéneo em que há anemia hemolítica moderada a grave (com icterícia e esplenomegália moderadas), parcialmente compensada sem necessidade de suporte transfusional regular.

Alguns doentes mantêm-se assintomáticos sem transfusões, e outros necessitam de transfusões periódicas. Verifica-se frequentemente hepatosplenomegália, litíase biliar e estigmas de expansão medular. Importa sublinhar que a eritropoiese ineficaz com aumento da absorção de ferro leva a sobrecarga importante de ferro mesmo na ausência de suporte transfusional, pelo que a quelação deve ser considerada.

Achados analíticos – Observa-se um grau variável de anemia com glóbulos vermelhos hipocrómicos e microcíticos, e células em alvo no esfregaço de sangue periférico. O valor de Hb por vezes atinge 8 g/dL.

Tratamento – Não existem orientações quanto ao início de suporte transfusional nestes doentes; a decisão de transfundir, bem como a sua periodicidade, devem ser individualizadas. Níveis basais de Hb de 7 a 9 g/dL são eficazes na maioria dos doentes; contudo, outros podem necessitar de valores mais elevados, sobretudo durante o crescimento, gravidez ou intercorrências infecciosas.

A utilização de hidroxicarbamida, evidenciando resultados satisfatórios num subgrupo de doentes com aumento dos níveis basais de Hb, tem permitido diminuir a necessidade transfusional.

A esplenectomia melhora a anemia, mas existe, para além do risco infeccioso inerente, risco muito elevado de tromboembolismo; por isso, deverá ser evitada, se possível.

Beta talassémia minor (ou traço talassémico)

Etiopatogénese e clínica – Ocorre em indivíduos heterozigóticos assintomáticos. Verifica-se apenas um alelo mutado. Esta forma a que corresponde ausência de expressão de 1 gene da β-globina afectado (β°) (genótipo ββ0), caracteriza-se por escassez de sinais e sintomas.

Encontra-se distribuída em grupos étnicos da zona mediterrânica (Itália e Grécia), Sueste asiático e em populações de origem africana.

Achados analíticos e diagnóstico diferencial – São comprovados parâmetros de hipocromia e microcitose, sem anemia (ou, existindo, muito ligeira), ou de hemólise. A fracção A2 da Hb está aumentada (habitualmente 4-7%) e em 50% dos casos verifica-se também aumento da HbF.

É importante o diagnóstico diferencial com ferropénia e com talassémia εγδβ. A Hb A2 pode estar falsamente normal na presença de ferropénia grave: nestes casos, a cromatografia deve ser repetida após a reposição das reservas de ferro.

Os raros indivíduos heterozigóticos para a deleção εγδβ apresentam uma anemia hemolítica moderadamente grave durante o período neonatal, a qual melhora durante os primeiros anos de vida. Durante a adolescência são identificadas alterações hematológicas semelhantes às da beta talassemia minor, à excepção da electroforese de hemoglobinas, que evidencia Hb A2 normal.

Actuação prática – Os portadores de β-talassémia minor não necessitam de qualquer tratamento ou vigilância específicos. No entanto, é fundamental alertar e sensibilizar os pais e crianças para a necessidade de rastreio de hemoglobinopatias nos futuros companheiros de forma a reduzir a incidência das formas mais graves da doença.

Não deverá ser administrado ferro sob pena de agravamento da tendência para hemossiderose.

Alfa talassémia

A alfa talassémia, que integra quadros de diagnóstico mais difícil porque não são acompanhados de alterações significativas da HbA2 e Hb F, tem uma elevada prevalência em África, Sueste Asiático e Índia.

Recorda-se que os indivíduos normais possuem quatro genes α activos responsáveis pela síntese de cadeias α (2 em cada cromossoma 16).

Nas α – talassémias, a que corresponde largo espectro de síndromas, há diminuição da síntese de cadeias α levando a anemia, salientando-se que o grau de anemia é directamente proporcional ao número de deleções.

Em função do número de genes activos afectados da globulina α (mutações relacionadas com deleções) são descritas quatro síndromas. (Quadro 2)

Como cada indivíduo possui quatro cópias do gene α, as alterações são mais heterogéneas do que na β talassémia.

O gene α é expresso desde as primeiras semanas de vida, razão pela qual a alfa talassémia se manifesta na vida fetal e pós-natal. As manifestações clínicas dependem do número de alelos funcionantes. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Síndromas de alfa talassémia

Síndroma

Número de genes afectados com mutações

Alterações laboratorais

Padrão da hemoglobina

Portador silencioso

1 (-α/αα)

Sem anemia

Hb Bart 1-2%

Traço talassémico

2 (–/αα; cis)
 (-α/-α; trans)

Anemia ligeira
Microcitose e hipocromia

Hb Bart 5-10%

Doença Hb H

3 (–/-α)

Anemia moderada
Microcitose e hipocromia
Corpos de inclusão citoplasmáticos

Hb H 10-30%

Hidropisia fetal

4 (–/–)

Anemia grave
Morte intrauterina ou pós-natal

Hb Bart 97%
Hb H 3%

Cerca de 1 em cada 3 afro-americanos é portador silencioso de alfa talassémia. Tais indivíduos não têm anemia nem hemólise e apresentam parâmetros hematológicos (volume globular médio e hemoglobina globular média) no limite inferior da normalidade.

O traço talassémico pode ocorrer de duas formas (–/αα ou cis, comum na Ásia, ou -α/-α ou trans, comum em África) e associa-se a ligeira anemia hipocrómica e microcítica. O esfregaço de sangue periférico mostra glóbulos vermelhos hipocrómicos e microcíticos e células em alvo. A cromatografia da Hb é normal, pelo que o diagnóstico definitivo só é possível mediante estudo molecular.

À semelhança dos portadores silenciosos, estes indivíduos não necessitam de vigilância ou tratamento específicos. Nos indivíduos asiáticos (–/αα) devem ser feitos estudos familiares e aconselhamento genético de forma a evitar a Hb Barts – hidropisia fetal que é incompatível com a vida e pode acarretar graves complicações para a grávida.

Na doença da Hb H apenas um dos quatro genes está activo (–/-α). Existe, portanto, deleção de três genes.

Na vida adulta predomina a HbA com 5-30% de Hb H; no período neonatal predomina a HbF com 10-20% de Hb Bart, sendo vestigial o teor de Hb H.

O quadro clínico é semelhante ao da talassémia major ou da intermédia.

No esfregaço de sangue periférico, é característica a presença de inclusões citoplasmáticas após coloração com azul cresil. Alguns indivíduos são dependentes de transfusão enquanto outros têm uma anemia mais ligeira. Há o risco de exacerbação após exposição a estresse oxidativo com maior susceptibilidade a aplasia/hipoplasia no decurso de intercorrências infecciosas. Como a eritropoiese ineficaz é pouco significativa, a sobrecarga de ferro ocorre mais lentamente do que a observada na beta-talassémia.

A hidropisia fetal por Hb Bart caracteriza-se pela ausência de cadeias α (por deleção dos quatro genes respectivos, com genótipo –/–) e formação de tetrâmeros de cadeias γ (γ4), com uma hemoglobina com elevada afinidade pelo oxigénio levando a hipóxia celular fetal, hidropisia fetal (hepatosplenomegália e anasarca) com elevado risco de morte fetal e neonatal. Estão descritos alguns casos de sucesso de transfusão intra-uterina seguida de regime transfusional regular e transplante alogénico de células progenitoras hematopoiéticas.

Existem ainda outras síndromas de alfa-talassémia causadas por mutações de novo, ou adquiridas, alterando a expressão dos genes da α-globina:

  • A síndroma de alfa-talassémia com atraso mental, integrando duas formas:
    • uma, associada a deleções extensas no cromossoma 16 envolvendo os genes da α-globina (ATR16, por mutação de novo);
    • outra, com genes da α-globina estruturalmente normais mas com alteração de um factor de transcrição localizado no cromossoma X, fundamental para a regulação da expressão dos respectivos genes (ATRX). Estão presentes dismorfias faciais e/ou genitais a que se associa uma forma moderada de Hb H, geralmente menos grave que a verificada na doença da HbH.
  • A doença da Hb H adquirida associada a síndromas mielodisplásicas. Também nesta situação os genes da α-globina são estruturalmente normais. As alterações decorrem de mutações somáticas adquiridas no gene ATRX, com fenótipo mais grave.

ALTERAÇÕES QUALITATIVAS DA HEMOGLOBINA – VARIANTES ESTRUTURAIS DA HEMOGLOBINA

Foi referido anteriormente que as hemoglobinopatias qualitativas ou de estrutura incluem hemoglobinas que resultam da mutação genética, determinando substituição de um aminoácido numa das cadeias polipeptídicas, sendo que nas mais comuns tal substituição ocorre nas cadeias β. Acrescenta-se que o conjunto de genes necessários para a produção de hemoglobina localizam-se no braço curto dos cromossomas 16 e 11.

No Quadro 3 descrevem-se as bases moleculares de algumas variantes de hemoglobina relacionadas com diferentes cadeias polipeptídicas afectadas, para além da cadeia β, em que se verificou substituição de aminoácido. As variantes que não evidenciam repercussão clínica relevante são designadas por alguns autores como hemoglobinoses.

QUADRO 3 – Algumas variantes de hemoglobina

Substituição de um único aminoácido

    • Cadeia β: Hb S, Hb C, Hb D, Hb E
    • Cadeia α: G-Philadelphia, I, Q
    • Cadeia γ
    • Cadeia δ
Deleções de aminoácidos: Freiburg
Fusão de hemoglobinas: δβ (Lepore), βδ, γβ

No Quadro 4 são sistematizadas as variantes de hemoglobina com relevância clínica, a seguir abordadas.

QUADRO 4 – Variantes de hemoglobina com relevância clínica

Doença de células falciformes/Hb S, e outros defeitos- Hb S, Hb C, Hb E, Hb SC
Hemoglobinas instáveis
Hemoglobinas com alta ou baixa afinidade para o oxigénio
Hemoglobinas M
Variantes estruturais com fenótipo simile talassémico α e β

DOENÇA DE CÉLULAS FALCIFORMES

Definição

Doença de células falciformes é o nome dado a um conjunto de defeitos da Hb em que se verifica a presença da chamada HbS. Trata-se duma hemoglobinopatia qualitativa ou de estrutura resultante de mutação genética, determinando substituição de um aminoácido numa das cadeias polipeptídicas, neste caso por mutação de gene da globina β no cromossoma 11.

Aspectos epidemiológicos e classificação

Sendo a hemoglobinopatia mais frequente (nos EUA ~1/600 recém-nascidos), tal entidade, com diversidade de apresentação clínica, evidencia morbilidade e mortalidade muito significativas, partilhando com as síndromas talassémicas muitas características.

Com efeito, em relação à respectiva distribuição, ambas apresentam uma elevada frequência nos países do Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia e África Oriental e Equatorial, nos quais constituem um problema de saúde pública. Afectando fundamentalmente a raça negra, a sua distribuição na Europa e Américas, incluindo Caraíbas, explica-se pelo fluxo migratório desde há mais de cinco séculos, o que tem implicações de ordem genética.

Ambas coincidem com as regiões onde a malária pelo Plasmodium falciparum foi endémica, o que confere uma selecção natural responsável pela manutenção e perpetuação dos genes.

Como apresentado no Quadro 5, a doença de células falciformes inclui diversos genótipos a que corresponde sintomatologia variada (fenótipo), desde a forma homozigótica – Hb SS ao chamado traço falciforme – HbAS, este último assintomático ou com manifestações benignas. Como se depreende pela observação do mesmo quadro, a proporção de Hb F, Hb A1, Hb A2 nas hemoglobinopatias S é variável.

A anemia de células falciformes (ACF), também denominada drepanocitose, de transmissão autossómica recessiva, é a forma mais grave do espectro da doença de células falciformes.

A prevalência da homozigotia (Hb SS), que resulta da mutação dos genes da globina β no cromossoma 11 de ambos os progenitores, varia entre 0,2% nos afro-americanos e 6% em certas regiões de África. A heterozigotia, que resulta da mutação de apenas um gene da globina β de um dos progenitores, afecta cerca de 12% dos afro-americanos e cerca de 40% da população em certas regiões de África. Dados relativos a Portugal são limitados. Estimativas recentes apontam para cerca de 600 indivíduos homozigóticos no nosso país e para um gradiente crescente Norte-Sul na sua prevalência, explicado pelos fenómenos migratórios das populações (imigração de escravos africanos no século XV e imigração de países de elevada prevalência nos últimos anos).

QUADRO 5 – Características das diferentes formas de doença de células falciformes

Tipo de Hb Gravidade clínicaHb S (%)Hb F (%)Hb A2 (%)Hb A (%)Valor Hb (g/dL)VGM (fL)
Anemia de células falciformes
SSNormalmente grave> 90< 10< 3,506-9> 80
Heterozigótias duplas

0

+

SC

S PHHF

Moderada a grave

Ligeira a moderada

Ligeira a moderada

Assintomática

> 80

> 60

50

< 70

< 20

< 20

< 5

> 30

> 3,5

> 3,5

0

< 2,5

0

10-30

0

0

6-9

9-12

10-15

12-14

< 70

< 75

75-85

< 80

Traço falciforme
ASHabitualmente assintomática30-401,5< 2,560-7011-1285
β° = gene talassémico com ausência de síntese da cadeia β; β+ = gene talassémico com diminuição de síntese da cadeia β; VGM = volume globular médio; S- PHHF: = Persistência hereditária de Hb fetal (PHHF) Nesta entidade (de que existem descritas > 20 variantes), resultante de deleção ou mutação originando défice de produção de cadeias β ou δ ou de ambas, verifica-se incapacidade para a síntese da cadeia γ na fase de transição da vida intrauterina para a extrauterina; de tal resulta a manutenção durante toda a vida de níveis elevados de Hb F. As manifestações são silenciosas (anemia e microcitose ligeiras).

Etiopatogénese

A base molecular da anemia de células falciformes (ACF), a forma mais grave da doença de células falciformes, é a substituição de um único aminoácido na cadeia da β-globina (valina por ácido glutâmico na sexta posição originando a HbS ou α2 βs2); tal acarreta modificação da forma do eritrócito, perdendo a forma bicôncava e adquirindo a forma em foice (falciforme) donde deriva o nome da doença.

A HbS (α2 βs2) tem a propriedade única e própria da variante β6 Glu-Val de se polimerizar quando desoxigenada, processo central da vasoclusão e causa primária de certas manifestações clínicas. Na polimerização poderão interferir factores agravantes (como a hipóxia e acidose, desidratação, elevação da temperatura, factores genéticos, etc.), ou atenuantes como por exemplo a percentagem de hemoglobina fetal (Hb F), a qual constitui o inibidor mais potente da despolimerização da desoxi-hemoglobina.

Os referidos eritrócitos falciformes têm fragilidade excessiva, menor deformabilidade (eritrócitos mais rígidos), vida média muito encurtada (cerca de 20 dias), circulando com dificuldade na microcirculação por hiperviscosidade, aderindo à parede do endotélio e lesando-a (vasculopatia secundária).

Na vasculopatia, a hipóxia, componente fundamental da fisiopatologia da ACF, leva à diminuição da produção de óxido nítrico (NO), o qual é importante regulador do tono vascular, de adesão celular e da formação de trombose.

As consequências são estase, vasoclusão, hipóxia tecidual, trombose, enfarte e fibrose, entre outras alterações crónicas ao nível de vários órgãos. No baço, tal processo de fibrose conduz a redução de dimensões e a uma depressão funcional do órgão, o que corresponde a verdadeira “autosplenectomia”. Os enfartes teciduais traduzem-se na clínica por dor, por vezes intensa, com localização variável.

O processo de falciformação é muitas vezes iniciado e/ou agravado pela diminuição da pressão parcial de oxigénio e pela acidémia.

FIGURA 4 – Vasoclusão na anemia de células falciformes. Adaptado de Embury et al, 1994

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas das diferentes formas de doença falciforme são variáveis, constituindo o epifenómeno de anemia hemolítica crónica com episódios de agudização. Em geral, não surgem antes dos 3 meses; as primeiras manifestações podem surgir de forma insidiosa com palidez, icterícia, colúria e esplenomegália, ou aguda (infecção fulminante por exemplo). Nos extremos deste espectro clínico (fenótipo) estão o traço falciforme e a anemia de células falciformes, que descrevemos a seguir.

Traço falciforme

Esta forma clínica, por vezes assintomática, caracteriza-se por manifestações ligeiras e benignas, destacando-se risco aumentado de hematúria, disfunção renal (hipostenúria, compromisso da capacidade de acidificação urinária-pH urinário alcalino) (predomínio de Hb A sobre Hb S). Ambientes de grande altitude (> 3000 metros) ou a prática de exercícios extenuantes (futebol americano, hóquei no gelo, pólo aquático) podem levar a enfartes pulmonares e esplénicos potencialmente fatais.

Anemia de células falciformes ou drepanocitose

As manifestações têm, em geral, início após os 3 meses de idade, coincidindo com a diminuição da Hb F e aumento da HbS, sendo que quanto maior o teor de Hb F menor o risco de falciformação eritrocitária.

Estão classicamente presentes várias alterações além das que surgem nas formas mais benignas (traço falciforme).

Em termos de magnitude e gravidade das manifestações clínicas, a forma heterozigótica Hb Sβ0 é sobreponível à ACF (Hb SS); nos restantes genótipos as manifestações são ligeiras a moderadas.

É importante salientar que todos os órgãos e sistemas podem ser afectados, com maior relevância o respiratório, o cerebrovascular e o renal.

As chamadas crises vasoclusivas agudas (CVO) manifestam-se por sinais e sintomas que dependem da localização específica: sistema respiratório (por ex.: pneumopatia, enfartes pulmonares), osteoarticular (tumefacção simétrica e dolorosa denominada síndroma “mão-pé” ou dactilite drepanocítica, dores nos ossos longos), digestivo (dor abdominal intensa relacionável com enfartes em órgãos abdominais, síndroma da “cintura”), sistema nervoso central (acidente vascular cerebral isquémico/AVC, sobretudo nos territórios das artérias carótida interna, cerebral média e cerebral anterior).

A doença cerebrovascular representa actualmente uma das principais morbilidades da ACF. A incidência de AVC é cerca de 61/10.000 crianças-ano (600 vezes superior à incidência na ausência de ACF) entre os 6 e 18 anos; tal patologia é muito rara durante os primeiros 12 meses de idade. Em regra, cerca de 10% dos doentes irão sofrer um AVC até aos 20 anos de idade. Os chamados enfartes silenciosos (sintomatologia discreta ou ausente, mas com alterações nos exames de imagem) também comprometem o desenvolvimento cognitivo.

A repercussão no sistema respiratório traduz-se mais frequentemente pela síndroma torácica aguda (STA), mais frequente em crianças do que em adultos e a segunda causa mais comum de internamento. O diagnóstico baseia-se no aparecimento de um infiltrado observável na radiografia torácica associado a febre e/ou sintomas respiratórios. Em idades pediátricas, os principais factores desencadeantes são as infecções por S. pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e Chlamydia.

FIGURA 5 – Síndroma mão-pé (dactilite) na ACF. (NIHDE)

FIGURA 6 – Angiografia (A) e TAC CE (B) – no contexto de ACF: imagens sugestivas de lesões isquémicas por oclusão nos territórios das artérias cerebral anterior e média

FIGURA 7 – ACF: padrão radiográfico compatível com síndroma torácica aguda. A – Radiografia convencional (infiltrado no hemitórax direito); B – TAC evidenciando alterações fibróticas residuais num adolescente

As denominadas crises de sequestração esplénica, frequentes entre os 6 meses e 3 anos, constituem outro tipo de episódio agudo em que, por causa desconhecida e de forma aguda, se acumulam grandes quantidades de sangue no baço com consequente choque hipovolémico e aumento do volume do baço. Podem também ocorrer no fígado (com a mesma gravidade, mas mais raramente).

As crises hipoplásticas e as crises de híper-hemólise são outro tipo de manifestações típicas. No primeiro caso está, em geral, afectada a série eritróide sendo frequentemente desencadeadas por infecções (designadamente por Parvovirus B19). As crises de híper-hemólise são traduzidas por aparecimento agudo de icterícia (ou por agravamento de icterícia crónica ligeira) e palidez. Estas crises poderão ser agravadas na presença de défice da desidrogenase da glucose-6-fosfato, que deve ser pesquisado de modo sistemático nestes doentes.

Nos adolescentes e adultos jovens poderão surgir úlceras na região maleolar e priapismo; este pode surgir em episódios de duração e periodicidade variáveis.

Existe um risco aumentado de necrose asséptica da cabeça femoral, osteomielite por Salmonella e infecções por Streptococcus pneumoniae e outros agentes capsulados. (Figura 8)

FIGURA 8 – Quadro radiológico de osteomielite do úmero no contexto da ACF. (NIHDE)

A colelitíase, rara na infância, é frequente após os 10 anos. Verifica-se impacte significativo da doença de células falciformes sobre o rim, traduzido por glomerulopatia que, em cerca de 20% dos casos, culmina em insuficiência renal.

Exames complementares

A ACF caracteriza-se por uma anemia normocrómica e normocítica, em geral com valor de Hb entre 7 e 9 g/dL e reticulocitose acentuada (entre 5 e 15%). As formas heterozigóticas em associação com talassémia podem apresentar diminuição do volume globular médio (VGM) e da concentração de hemoglobina globular média (CHGM). No esfregaço do sangue periférico nem sempre são detectadas células falciformes, as quais podem ser evidenciadas pela prova de falciformação; no entanto, tal prova não permite distinguir o estado homozigótico SS do estado de portador heterozigótico ou de outras hemoglobinopatias; o esfregaço permite ainda identificar glóbulos vermelhos nucleados e corpos de Howell-Jolly. A cromatografia permite separar a Hb S das restantes. A proporção de Hb F nas hemoglobinopatias S varia entre 1 e 20%. 

O diagnóstico molecular pode ser estabelecido no primeiro trimestre de gravidez por biópsia das vilosidades coriónicas, no segundo trimestre através de amniocentese ou após o nascimento no sangue periférico. Nalguns países é efectuado rastreio neonatal às populações de risco.

O exame da medula óssea mostra sinais de hiperplasia eritróide.

As radiografias do crânio e da coluna vertebral evidenciam córtex estreitado, alargamento do espaço medular; ao nível do crânio é típico o padrão de “crânio em escova”, igualmente observável nas síndromas talassémicas.

O estudo imagiológico por Doppler transcraniano (TCD, sigla em inglês) permite identificar precocemente lesões estenóticas nas artérias carótida interna distal, cerebral média proximal e cerebral anterior e estratificar o risco de AVC isquémico em crianças assintomáticas com drepanocitose entre os 2 e os 16 anos. Nas crianças com achados anormais no TCD, ou naquelas com TCD difícil de avaliar ou condicional, deve ser realizado estudo por ressonância magnética (RM) cerebral para avaliar lesões arteriais ou cerebrais.

Tendo em conta a probabilidade de compromisso renal atrás referido, justifica-se em todos os casos de síndroma falciforme a avaliação anual da microalbuminúria como forma de rastreio, nomeadamente o doseamento de alfa-1 e beta-2 microglobulina.

Tratamento

O tratamento da ACF inclui:

  • Medidas gerais: nutrição adequada, prevenção da desidratação, prevenção do arrefecimento corporal, imunizações (designadamente antimeningococócica, anti-Hemophilus influenzae tipo B, anti- pneumoniae conjugada e polissacarídea), evitamento de desportos de moderada a alta intensidade, suporte psicológico e aconselhamento genético;
  • Suplementação com ácido fólico;
  • Tratamento de crises vasoclusivas (dor intensa em qualquer local do organismo, sendo os ossos os territórios mais frequentemente atingidos) requerendo a administração de analgésicos e promovendo concomitantemente a correcta hidratação endovenosa. Os analgésicos mais frequentemente utilizados são: nas formas mais ligeiras, o paracetamol e/ou anti-inflamatórios não esteróides como o ibuprofeno por via oral ou o cetorolac por via endovenosa; nas formas de dor moderada a grave, a utilização de opiáceos (nomeadamente morfina e fentanil) não deve ser protelada. Salienta-se a importância da analgesia mantida em detrimento da administração SOS; é mais eficaz e reduz o tempo de internamento. A aplicação local de calor constitui factor adjuvante no controlo da crise;
  • Prevenção e tratamento de infecções – a profilaxia antibiótica deve ser mantida até aos 5-6 anos, ou indefinidamente em doentes esplenectomizados ou com infecções recorrentes graves. Pode-se utilizar a penicilina (penicilina benzatínica mensal por via intramuscular) nas seguintes doses: crianças com < 10 kg: 300.000 U; 10-25 kg: 600.000 U; > 25 kg: 1.200.000 U. Em alternativa, pode utilizar-se a amoxicilina diária na dose de 20 mg/kg/dia (duas tomas diárias);
  • Tratamento da anemia hemolítica crónica – a anemia é bem tolerada na maior parte dos doentes, uma vez que a Hb S tem menor afinidade para o oxigénio, o que facilita a sua libertação ao nível dos tecidos. As transfusões de concentrado eritrocitário têm o objectivo de melhorar a capacidade de transporte de oxigénio e diluir as células falciformes em circulação para melhorar a perfusão microvascular; consegue-se, assim, baixar os níveis da Hb S para valores ≤ 30% da Hb total, ou aumentar a Hb para cerca de 10 g/dL;
  • As transfusões têm indicações precisas: Hb < 5 g/dL; nas crises aplástica ou hipoplástica; nos sequestros esplénicos e hepáticos; nos AVC e na sua prevenção, quer primária, quer secundária; nas STA isoladas ou de repetição; nas situações de lesão multiorgânica; e no pré-operatório de intervenções cirúrgicas com anestesia geral. Não deve transfundir-se para valores de Hb superiores a 10 g/dL por risco de hiperviscosidade (nestas situações deve considerar-se a transfusão permuta);
  • A esplenectomia está indicada apenas quando as necessidades transfusionais anuais ultrapassam os 200 ou 250 ml/kg, ou no sequestro esplénico grave recorrente; deverá ser protelada, se possível, até cerca dos cinco anos, e seguida de profilaxia antibiótica;
  • A hidroxicarbamida (anteriormente designada por hidroxiureia) reduz a frequência de crises vasoclusivas (CVO), síndroma torácica aguda (STA) e de suporte transfusional. Tal fármaco está indicado em doentes Hb SS ou Hb Sβ0 que apresentam:
  • 1) ≥ 3 episódios de CVO num período de 12 meses; 2) antecedentes de STA ou anemia sintomática; 3) antecedentes de AVC e contraindicação de suporte transfusional regular. Alguns autores defendem mesmo a utilização em crianças ≥ 9 meses de idade, assintomáticas ou com episódios pouco frequentes de CVO. A dose inicial é de 15-20 mg/kg/dia com incrementos de 2,5-5 mg/kg cada 8 semanas de acordo com toxicidade hematológica até máximo do 35 mg/kg/dia.
  • O transplante de células estaminais é o único tratamento curativo, o qual deve ser considerado na presença de, pelo menos, uma das seguintes situações:
  • 1) STA com necessidade de internamentos recorrentes; 2) CVO recorrentes; 3) alteração neuropsicológica com RM cerebral anormal; 4) osteonecrose de múltiplas articulações; 5) doença pulmonar estádio I ou II; 6) proteinúria moderada-grave ou taxa de filtração glomerular entre 30-50%; 7) retinopatia proliferativa bilateral com diminuição major da acuidade visual num olho; 8) aloimunização durante suporte transfusional regular.
  • Prevenção e tratamento de doença renal crónica – nos casos de microalbuminúria significativa utilizam-se os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA);
  • A terapêutica génica constitui uma medida promissora de “cura”. O óxido nítrico (NO) tem sido alvo igualmente de investigação para a terapêutica.

As principais indicações para internamento hospitalar são: dor não controlada com analgesia oral, hipertermia (> 40ºC), mau estado geral (choque e desidratação), sinais imagiológicos de infiltrado pulmonar, hiperleucocitose ou leucopénia, respectivamente > 30.000/mmc e < 5.000/mmc, plaquetas < 100.000/mmc, Hb < 5g/dL, e antecedentes de infecção grave.

Prognóstico e prevenção

A sobrevivência dos indivíduos com ACF melhorou drasticamente devido à melhoria das condições socioeconómicas, ao melhor conhecimento da fisiopatologia, à possibilidade de diagnóstico precoce e de prevenção, e ao tratamento das complicações.

Dado que o diagnóstico precoce proporciona a possibilidade de medidas de profilaxia secundária, o aconselhamento genético e a orientação familiar para os portadores do gene da Hb S, o diagnóstico pré-natal e o rastreio no recém-nascido nas áreas do globo com maior prevalência são estratégias de extrema importância para a melhoria do prognóstico.

A prevenção primária do AVC tem sido levada a cabo nalguns centros pela técnica do Doppler transcraniano medindo a velocidade sanguínea na porção terminal da carótida interna, e na porção proximal da artéria cerebral média. Em 30% dos casos evidenciando dados anómalos (lesões estenóticas), existe probabilidade de AVC isquémico dentro do período de 4 anos.

OUTROS DEFEITOS DA HEMOGLOBINA

A Hb E e a Hb C são, respectivamente, a segunda e terceira alteração mais comum em todo o mundo a seguir à Hb S. São ambas raras no mundo ocidental.

A Hb E é comum no Sueste Asiático e no Sul da China e resulta da substituição do aminoácido na posição 26 da cadeia β da hemoglobina (ácido glutâmico por lisina).

A Hb C é encontrada em indivíduos de descendência africana e resulta da substituição do aminoácido na posição 6 da cadeia β da hemoglobina (ácido glutâmico por lisina).

Ambas determinam quadros clínicos benignos e oligossintomáticos (anemia ligeira, células em alvo, reticulocitose discreta). As crianças com Hb SC têm anemia mais ligeira e menor número de crises dolorosas em comparação com as crianças com ACF (Hb SS).

ANEMIA HEMOLÍTICA CONGÉNITA POR HEMOGLOBINAS INSTÁVEIS

Esta entidade (também designada “anemia com corpos de Einz ou Heinz-Ehrlich”) integra quadros diversos de anemia hemolítica intermitente transmitidos de modo autossómico dominante, destacando-se uma característica biológica clássica: o aparecimento de corpos de Heinz nos eritrócitos e reticulócitos após incubação a 37ºC durante 48 horas.

Foram identificadas mais de 200 hemoglobinas instáveis, quase todas decorrentes de mutações de novo, sendo a Hb Koln a mais frequente. A hemólise intensifica-se com episódios febris e com alguns fármacos oxidantes.

O tratamento é de suporte, com suplementos de ácido fólico. Nalguns casos está indicada a esplenectomia. De salientar a necessidade de evitar medicamentos com efeito oxidante e transfusões de sangue.

HEMOGLOBINOPATIAS COM AFINIDADE ANORMAL PARA O OXIGÉNIO

Trata-se de situações em geral transmitidas de modo autossómico dominante.

  • Se a afinidade estiver aumentada (contexto de mais de 100 variantes de Hb), a tradução clínica é o défice de oxigenação tecidual, podendo conduzir a eritrocitose compensadora não associada a outra sintomatologia.

Em cerca de 20% dos casos o diagnóstico pode fazer-se mediante a medição da P50 (ver Parte de Perinatologia/Neonatologia), que é baixa (valor normal ~23-29 mm Hg). Os valores de eritropoietina e 2,3- difosfoglicerato são normais. Não é necessário tratamento.

  • Se a afinidade estiver diminuída, o resultado poderá ser anemia (com Hb Seattle) ou cianose (com Hb Kansas). As correspondentes variantes da Hb podem resultar de mutações nas cadeias α ou β. A exposição à inalação de oxigénio corrige a cianose, o que não acontece nos casos de metemoglobinémia e de hemoglobinopatia M.

METEMOGLOBINÉMIAS

Patogénese

Em condições normais forma-se continuamente metemoglobina nos eritrócitos a partir da hemoglobina (cerca de 1-2% de Hb está sob esta forma de metemoglobina).

A hemoglobina converte-se em metemoglobina quando o ferro do heme (ferroso na hemoglobina ou Fe2+), uma vez oxidado, passa a férrico ou Fe3+ gerando metemoglobina; esta última é a chamada Hb desnaturada.

A metemoglobina não é um pigmento transportador de oxigénio; assim, a curva de dissociação O2-Hb está também desviada para a esquerda, do que resulta um aumento da afinidade do O2 para a Hb, com défice de libertação de O2 para os tecidos e consequente hipóxia.

Várias enzimas redutoras (metemoglobina-redutases ou diaforases) assegurando a sua retransformação permanente em Hb funcional ou transformação de Fe férrico em Fe ferroso, impedem que aquela percentagem de metemoglobina aumente. A forma principal de diaforases tem por coenzima a NADH (nicotinamida-adenina dinucleótido fosfato) reduzida.

Pode deduzir-se que situações congénitas em que existe défice do referido sistema enzimático, ou anomalias na globina que determinam que os grupos heme existam sempre no estado férrico (formação de Hb anómala designada Hb M), ou adquiridas, em que exista acção directa de compostos oxidantes como nitritos, cloratos, quinonas, originam formação em excesso de metemoglobina.

De salientar que na metemoglobinémia por défice enzimático não existe hemólise.

A clássica cor de chocolate do sangue é notória sempre que a proporção de metemoglobina for superior a 15-20%. Proporções superiores a 70% são potencialmente letais.

Nesta perspectiva, podem ser sistematizadas essencialmente três formas clínicas:

  • Congénitas (familiares) decorrentes de deficiência enzimática, de transmissão hereditária recessiva, mais frequente;
  • Congénitas associadas a defeito da hemoglobina – Hb M, de transmissão dominante;
  • Adquiridas, induzidas pela acção de agentes químicos oxidantes já referidos. Esta última forma clínica é relatada a propósito do diagnóstico diferencial e da actuação terapêutica.

Metemoglobinémia congénita (familiar)

Na maioria dos doentes atingidos por esta doença (transmitida de modo autossómico recessivo e frequente nos índios Navajo) verifica-se défice NADH citocromo b5 redutase ou de diaforase 1. A percentagem de metemoglobina é da ordem dos 40%, não originando, em geral, sintomas; poderá verificar-se cianose ligeira, depressão respiratória ou policitémia compensadora.

Tratando-se de formas assintomáticas, não está indicado qualquer tratamento.

Nas formas sintomáticas a abordagem é semelhante à descrita para as formas tóxicas (adquiridas), adiante referidas a propósito do diagnóstico diferencial.

A electroforese das Hb e o estudo espectrofotométrico contribuem para o esclarecimento diagnóstico.

Metemoglobinémia congénita associada a Hemoglobina M

Existem diversas variantes de Hb M, as quais resultam, como referido antes, de anomalias estruturais da globina (cadeias α ou β).

 As formas homozigóticas são letais; nas formas heterozigóticas a percentagem de metemoglobina oscila entre 20% e 30%, a que corresponde clinicamente cianose com PaO2 normal.

Ao contrário do que acontece com a metemoglobinémia por défice enzimático, existe diminuição da afinidade da Hb para o O2 verificando-se, portanto, desvio da curva da Hb-O2 para a direita, permitindo maior distribuição de O2 aos tecidos e explicando, designadamente, que não se verifiquem sintomas respiratórios.

A característica clínica mais chamativa é a cianose verificável a partir dos 4-6 meses de idade; nas variantes de Hb M Saskatoon e Hyde Park (hemoglobinas instáveis) pode verificar-se anemia hemolítica crónica.

A electroforese das Hb e o estudo espectrofotométrico contribuem para o esclarecimento diagnóstico.

Nas formas sintomáticas a abordagem é semelhante à descrita para as formas adquiridas, relatadas a seguir.

Diagnóstico diferencial e tratamento

O diagnóstico diferencial das metemoglobinémias congénitas hereditárias faz-se essencialmente com a metemoglobinémia adquirida (tóxica).

Esta situação resulta da acção de certas drogas e agentes químicos oxidantes que provocam desnaturação da hemoglobina tais como toxinas produzidas por certas enterobacteriáceas em casos de diarreia, nitritos, nitratos (certos aditivos alimentares, fertilizantes), primaquina, derivados da anilina (corantes, certos lápis), sulfonamidas, análogos da vitamina K, benzocaína, etc.. Os recém-nascidos são mais susceptíveis à formação de metemoglobina dado que possuem maior percentagem de hemoglobina F e mais baixo nível de metemoglobina-redutase.

As manifestações clínicas traduzem-se essencialmente por cianose que não responde à administração de oxigénio. Aliás, trata-se duma pseudocianose com coloração da pele descrita classicamente como “mais castanha do que azul”. Tais manifestações somente se verificam se a taxa de Hb reduzida for > 5 g/dL. Se os valores de metemoglobinémia forem > 1,5 g/dL, o sangue evidencia cor castanha (tipo “chocolate”).

O sintomas e sinais (tanto mais exuberantes quanto maior o teor de metemoglobina formada), em presença de pressão arterial de O2 (Pa O2) normal ou elevada, são: ansiedade, cefaleia, tontura e síncope surgem com níveis entre 20-30%, enquanto confusão, prostração, taquicardia e taquipneia surgem com níveis entre 30-50%. Níveis > 70%, que podem ser letais, associam-se a acidose metabólica, arritmia cardíaca, convulsão e coma.

Deve admitir-se a hipótese de metemoglobinémia na presença de uma disparidade entre a saturação arterial em oxigénio medida por oximetria de pulso e por gasometria arterial – saturation gap/hiato na saturação. A co-oximetria permite determinar a percentagem das diferentes formas de hemoglobina e estabelecer o diagnóstico de metemoglobinémia.

O tratamento (de urgência) da metemoglobinémia tóxica (adquirida) consiste na administração por via endovenosa de azul de metileno (solução a 1%) na dose de 1-2 mg/kg de peso durante 5 minutos; a dose pode ser repetida em intervalos de 4 horas até máximo de 7 mg/kg. [O azul de metileno está contraindicado nos casos de défice dedesidrogenase da glucose-6-fosfato/ G– 6PD]. Em alternativa: ácido ascórbico na dose de 200-500 mg/dia (efeito mais lento). Nos casos em que não se verifica resposta está indicada exsanguinotransfusão ou oxigenação hiperbárica.

Nota: O azul de metileno e o ácido ascórbico são ineficazes em casos de metemoglobinémia associada a Hb M.

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ANEMIAS HEMOLÍTICAS POR DEFEITOS ENZIMÁTICOS

Introdução

O eritrócito, para manter a sua integridade como transportador de oxigénio e dióxido de carbono durante cerca de 120 dias, possui um sistema metabólico. Durante o processo de maturação, perde a maioria das vias metabólicas características de qualquer outra célula, mantendo apenas as imprescindíveis para se defender dos agentes oxidantes e obter energia: – a via de Embden-Meyerhoff; – a via das pentoses-fosfato e; – a via dos nucleóticos.

  1. Via de Embden-Meyerhoff (glicólise anaeróbia): permite a obtenção de ATP e NADH a partir de degradação sucessiva da glicose, fonte de energia única e essencial para manter a integridade da membrana citoplasmática e o gradiente osmótico de sódio/potássio entre os espaços intra e extracelular. Esta dependência da glicólise anaeróbia resulta da inexistência de mitocôndrias onde decorre o ciclo do ácido tricarboxílico (ciclo de Krebs) e a fosforilação oxidativa. A obtenção de NADH garante que a meta-hemoglobina redutase mantenha o ferro hemoglobínico na forma ferrosa (Fe2+) e não na sua forma oxidada, férrica (Fe3+);
  2. Via das pentoses-fosfato: protege a hemoglobina da desnaturação oxidativa através da obtenção de NADPH. Este composto intermédio deriva da metabolização alternativa da glicose em 6-fosfogluconato pela glucose-6-fosfato desidrogenase (G6PD). O NADPH mantém o glutatião, responsável pela reversão do dano oxidativo sobre a hemoglobina e outras proteínas eritrocitárias, na sua forma reduzida;
  3. Via dos nucleóticos: contribui para o balanço energético do eritrócito já que promove a produção de adenosina monofosfato (via das purinas) e a degradação de ribonucleótidos (via das pirimidinas).

A disfunção das várias enzimas envolvidas nestas vias metabólicas pode provocar anemia hemolítica congénita não esferocítica. Neste capítulo são descritos os défices enzimáticos (enzimopatias eritrocitárias) mais frequentes na população e com maior impacte na clínica, tendo em conta a sua relativa raridade.

As enzimopatias eritrocitárias com maior impacte clínico são o défice da glucose-6-fosfato desidrogenase, enzima representativa do metabolismo antioxidante, e o défice da piruvato-cinase, representativa da glicólise anaeróbia.

1. DÉFICE DE GLUCOSE-6-FOSFATO DESIDROGENASE

Importância do problema e genética

O défice de G6PD (também conhecido por favismo) é o defeito do metabolismo eritrocitário encontrado com maior frequência no mundo, afectando > 400 milhões de pessoas. Apesar disso, a maioria das isoenzimas com actividade reduzida associa-se apenas a um risco moderado para a saúde, não tendo impacte significativo na longevidade.

O défice de G6PD é o defeito enzimático mais frequente do eritrócito, do que resulta maior susceptibilidade aos oxidantes, relacionável com perda total ou parcial da capacidade redutora da referida enzima. Estima-se que mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo estejam afectadas, sendo na sua maioria assintomáticas.

Esta doença, também conhecida por “favismo” tem uma distribuição universal com maior prevalência nas regiões tropicais e subtropicais do Oriente, entre negros africanos Bantús, países da bacia oriental do Mediterrâneo e Médio Oriente (valores médios entre 8 e 30%).

Esta distribuição sobrepõe-se, em parte, às zonas endémicas de malária, o que é explicado pela vantagem de sobrevivência dos indivíduos com défice de G6PD infectados com Plasmodium falciparum com consequente selecção das variantes patogénicas.

Portugal é um país de baixa prevalência (cerca de 0,5%) sendo mais elevada nos distritos de Castelo Branco, Setúbal, Faro e Lisboa.

A hereditariedade é de tipo recessivo, ligada ao cromossoma X; assim, os indivíduos afectados são geralmente do sexo masculino.

O défice de G6PD, que se intensifica com o envelhecimento dos eritrócitos, resulta de mutações (em número > 100) dum gene altamente polimórfico localizado no braço longo do cromossoma X (locus Xq28); tal explica a maior prevalência no sexo masculino (hemizigotia).

Contudo, de acordo com o fenómeno aleatório de lionização (inactivação do cromossoma X), nas mulheres portadoras foram demonstradas duas populações de eritrócitos, uma normal, e outra com défice de G6PD. A expressão clínica é, portanto, dependente da percentagem de cromossomas X afectados que sofrem inactivação.

Estão descritas mais de 400 variantes genéticas da G6PD, sistematizadas de acordo com o grau de inactivação enzimática que provocam. Estas variantes resultam habitualmente de mutações pontuais ao longo das 18Kb que constituem o gene, provocando substituições de aminoácidos com impacte funcional variável sobre a enzima. A inexistência de grandes deleções ou mutações frameshift sugere que a ausência total de G6PD é incompatível com a vida.

Etiopatogénese

No eritrócito, célula anucleada sem mitocôndrias nem outros organelos, a G-6PD (aliás presente em todas as células) assume um papel particularmente importante: cataliza a oxidação da glicose-6-fosfato em 6-fosfoglicerato, reduzindo concomitantemente a nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADP) em NADPH.

A NADPH, cofactor utilizado em muitas reacções biossintéticas, mantém o glutatião na sua forma reduzida (GSH).

Assim, o glutatião reduzido nos eritrócitos, actuando na neutralização de agentes que potencialmente oxidam a hemoglobina (Hb) ou os componentes da membrana eritrocitária, tem acção preventiva contra lesões resultante de oxidação, sendo que os eritrócitos estão frequentemente sujeitos a estresse oxidante.

Se não se formar o glutatião reduzido, a Hb precipita formando-se os chamados corpúsculos de Heinz; a membrana eritrocitária é lesada, com consequente diminuição da vida média do eritrócito predispondo a destruição prematura ou hemólise. A hemólise é principalmente intravascular nas formas agudas, e extravascular nas formas crónicas.

Uma noção importante a reter é a seguinte: a tendência para a hemólise e a gravidade da doença dependem do grau do defeito enzimático; por outro lado, há que atender ao facto de existirem muitas variantes genéticas (mais de 400) de G6PD a que correspondem actividades enzimáticas variáveis e espectro de manifestações clínicas também variáveis (desde exuberantes até mínimas ou irrelevantes). As variantes da G6PD são distinguidas com base na sua mobilidade electroforética.

A forma normal da enzima corresponde à variante B (Wild Type).

Entre mais de 400 variantes anormais identificadas, as mais comuns são as chamadas variantes A(-), A(+), e B(-) ou mediterrânicas.

A forma mediterrânica B(-), com genótipo designado por Gd Med/(B-), é mais comum em indivíduos originários de Portugal, da bacia do Mediterrâneo (sobretudo Grécia e Itália, Médio Oriente), do Irão, Índia e Paquistão. Nesta forma a actividade enzimática de indivíduos do sexo feminino homozigóticos e do sexo masculino hemizigóticos é inferior a 5%; os indivíduos do sexo feminino heterozigóticos evidenciam uma taxa de actividade enzimática entre 30-50%.

A forma A(-), com genótipo designado por Gd (A-), é mais frequente nos indivíduos originários de África, os quais evidenciam actividade enzimática entre 8-20%.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a relação entre o grau de actividade enzimática e o grau de hemólise é classificada do seguinte modo:

  • Tipo I – Défice enzimático acentuado e anemia hemolítica crónica; situação rara;
  • Tipo II – Défice enzimático acentuado e hemólise intermitente;
  • Tipo III – Défice enzimático ligeiro a moderado e hemólise intermitente desencadeada por infecções, cetoacidose diabética, ingestão de favas, e por exposição a fármacos ou determinados agentes químicos;
  • Tipo IV – Défice enzimático inexistente.

Factores etiológicos de lesão oxidativa e hemólise

Nas crianças a infecção e a ingestão de favas (favismo) constituem os principais eventos precipitantes, sobretudo em pacientes com a variante A(-). Os agentes infecciosos mais frequentemente implicados são E. coli, Salmonella, Streptococcus β-hemolítico, vírus Influenza, CMV e vírus das hepatites A, B, C, D, entre outros. No contexto de infecção, o efeito oxidativo da hipertermia e dos produtos da activação imune parecem estar na base da hemólise aguda. Admite-se que os eritrócitos deficientes em G6PD sejam menos resistentes à hipertermia mantida, não tolerando o aumento do teor de oxidantes produzidos pelos granulócitos durante o processo de fagocitose.

Os efeitos da ingestão de favas/Vicia faba (favismo) verificam-se na variante mediterrânica ou B(-). O grau de hemólise é variável de exposição para exposição, sendo mais susceptíveis a esta situação os indivíduos mais jovens, sobretudo se existir infecção concomitante. São comuns em locais onde o défice de G6PD é acentuado e onde as favas são um alimento popular (Sul da Europa, Médio Oriente e Sudeste Asiático).

A hemólise induzida por fármacos foi inicialmente descrita associada à primaquina.

Entretanto, outros fármacos ou agentes químicos foram implicados: analgésicos e antipiréticos, antimaláricos, drogas cardiovasculares, citotóxicos e antibacterianos, sulfonamidas e sulfonas, naftalina, azul de toluidina, trinitrotolueno, etc.. O risco e a gravidade relacionam-se com o tipo de substância em causa, dose e duração da actuação. Na sua forma clássica, a hemólise inicia-se com a exposição ao agente desencadeante.

De acordo com o Quadro 1, os efeitos dos fármacos e substâncias dependem do tipo de fármaco ou substância, e do tipo de défice de G6PD.

QUADRO 1 – Perfil de segurança de vários fármacos e substâncias usados em doentes com défice de G6FD

Fármacos/substâncias provavelmente lesivas no contexto de G6FD moderado a grave (Tipo I-III)
Anti-infecciososDapsona, Nitrofurantoína, Primaquina
DiversosAzul de metileno, Azul de toluidina, Rasburicase
Exposições químicas e alimentosCorantes de anilina, Naftaleno, Favas, Compostos de Henna (e corantes relacionados)
Fármacos previamente considerados lesivos, mas provavelmente não lesivos nas doses terapêuticas usadas no contexto de G6FD (Tipo II-III)*
AnalgésicosParacetamol, Ácido acetilsalicílico, Aminofenazonas (Metamizol)
Anti-infecciososAntimaláricos (Cloroquina, Quinino), Fluoroquinolonas (Ciprofloxacina, Levofloxacina, Norfloxacina, Ofloxacina), Sulfonamidas (Trimetoprim-Sulfametoxazol), Cloranfenicol, Isoniazida
DiversosÁcido ascórbico, Glibenclamida, Hidroxicloroquina, Dinitrato de isosorbida, Mesalazina, Sulfasalazina
Fármacos geralmente considerados não lesivos nas doses terapêuticas usadas no contexto de G6FD (Tipo II-III)*
DiversosColchicina, Doxorubicina, Levodopa, Carbidopa, Ácido para-aminobenzóico, Fenacetina, Procainamida, Pirimetamina, Estreptomicina, Vitamina K
Nota: não lesivo <> acção moderada quanto a provocar crises hemolíticas; lesivo <> acção intensa idem

Manifestações clínicas

Na grande maioria, os portadores da deficiência enzimática de G-6PD são “aparentemente saudáveis”; nalguns casos surgem crises agudas de anemia hemolítica relacionáveis com a exposição a determinados agentes atrás referidos, a administração de fármacos, ingestão de favas ou outras leguminosas, ou a verificação de certos estados mórbidos, designadamente infecções.

A gravidade da hemólise depende da variante em causa, do nível de actividade enzimática nos eritrócitos e do tipo e intensidade da agressão oxidativa (ou oxidante). As formas clínicas de apresentação podem ser as seguintes:

1. Anemia hemolítica aguda

Nesta situação, típica da forma mediterrânica A(-), verifica-se crise de hemólise intravascular desencadeada por estresse oxidante (por exemplo, exposição a agentes oxidantes como primaquina, sulfamidas, entre outros, ou por ingestão de favas).

Salienta-se, em plena saúde aparente, o aparecimento de irritabilidade, letargia, febre, sintomas gastrintestinais e colúria (urina de cor de vinho do Porto).

O exame objectivo evidencia palidez, icterícia, taquicárdia e, nos casos mais graves, evolução aguda para choque hipovolémico ou, menos frequentemente, insuficiência cardíaca. Destaca-se ainda a presença de hepatosplenomegália moderada.

Através dos exames laboratoriais comprova-se anemia normocrómica e normocítica, moderada a extremamente grave (Hb atingindo, por vezes, valores de 2,5 a 4 g/dL) com anisocitose e poiquilocitose marcadas. A reticulocitose acentuada (por vezes ultrapassando 30%) torna-se evidente como resposta eritropoiética por volta do 5º-7º dia após início do quadro de hemólise aguda.

A presença de corpúsculos de Heinz nos eritrócitos (complexos de Hb desnaturada) é patognomónica. No entanto, a sua observação é, em geral, transitória, já que os respectivos eritrócitos são rapidamente removidos da circulação. A análise sumária da urina revela colúria e hemoglobinúria.

A principal complicação é a insuficiência renal aguda por necrose tubular.

O grau de hemólise traduz a gravidade da doença, variando, como foi dito, com o tipo e intensidade da exposição ao agente desencadeante e com a gravidade de deficiência enzimática.

Habitualmente trata-se de situação autolimitada com tendência para a regressão espontânea, com normalização do valor de Hb entre três a seis semanas; com efeito, com a regeneração eritrocitária pós-crise reticulocitária atrás mencionada, verifica-se, como atrás foi referido, que a actividade da G6PD é mais elevada nos eritrócitos mais jovens.

2. Icterícia neonatal

Trata-se duma forma de apresentação possível no recém-nascido (RN), ocorrendo, na sua maioria, na ausência de exposição a agentes oxidantes.

No entanto, a ingestão de drogas oxidantes pela grávida (situação por vezes não inquirida na anamnese) poderá originar manifestações no feto/RN deficiente em G6PD.

Assim, o défice de G6PD neste período etário, associado a outros factores que se somam e também predispõem à hemólise (baixos níveis de vitamina E e da redutase da metemoglobina) pode traduzir-se de duas formas:

  • Forma predominantemente ictérica: trata-se de quadro de icterícia de grau variável, em geral surgindo entre o 2º e 3º dia de vida (raramente nas primeiras 24 horas), mais importante do que a anemia; no entanto, a hiperbilirrubinémia não conjugada, se for muito acentuada e não correctamente tratada (exsanguinotransfusão), poderá originar encefalopatia (kernicterus). Esta forma ocorre em diversas variantes;
  • Forma predominantemente anémica: o quadro clínico é o de anemia aguda por hemólise relacionável com exposição a agente (incluindo naftalina na roupa), medicamento, ou infecção; uma variante descrita resulta da exposição a favas ou fármacos oxidantes ingeridos pela grávida.

Numa e noutra forma a hepatosplenomegália poderá não estar presente.

3. Anemia hemolítica congénita crónica

Esta forma de apresentação (surgindo inicialmente como icterícia inexplicada), em pacientes com a variante mediterrânica (B-), ocorre invariavelmente no sexo masculino. No período neonatal poderá estabelecer a indicação de exsanguinotransfusão. Como particularidade em relação à forma anterior, importa salientar que, após a exsanguinotransfusão, a anemia reaparece e a icterícia não regride (hiperbilirrubinémia crónica).

Em muitos casos, o diagnóstico faz-se mais tarde, face à verificação de litíase biliar.

A anemia normocrómica, associada a reticulocitose acentuada é variável, não se observando alterações da morfologia dos eritrócitos.

Exames complementares

Uma vez realizados a anamnese (com ênfase para os antecedentes familiares) e o exame objectivo, importa salientar como noções genéricas, as seguintes: o diagnóstico da maioria das enzimopatias eritrocitárias em geral é, em parte, de exclusão, baseando-se: na prova de Coombs directa negativa, na prova de avaliação da fragilidade osmótica normal, na ausência de anomalias morfológicas eritrocitárias, designadamente esferócitos (excepto identificação de degmócitos – ver adiante), e na ausência de hemoglobinas anormais.

Para o diagnóstico de portadores da deficiência de G6PD podem utilizar-se técnicas qualitativas ou quantitativas com as quais é possível demonstrar diminuição ou ausência da actividade enzimática.

O doseamento da actividade enzimática é efectuado por medição da cinética enzimática. Pela avaliação directa, tal actividade em indivíduos afectados é igual ou inferior a 10%. Para tal avaliação importa conhecer os valores absolutos de referência:

  • 4,5 a 8,5 UI/g de Hb até um ano de idade.
  • 3,5 a 5,5 UI/g de Hb após um ano de idade.

Diferentes estudos de biologia molecular permitem conhecer a sequência de ADN do gene que codifica a G6PD para identificação das variantes. A identificação de uma mutação patogénica estabelece o diagnóstico definitivo, permite aconselhamento genético e, em casos graves, o diagnóstico pré-natal.

No estudo da morfologia do sangue periférico podem ser identificados os chamados eritrócitos “mordidos” ou degmócitos. Poderá existir ou não anemia e reticulocitose.

A colheita de sangue não deve ser efectuada durante as crises hemolíticas ou processos infecciosos, uma vez que, em tais circunstâncias, a destruição dos eritrócitos mais deficientes em G6PD, a elevação do número de reticulócitos e de leucócitos (células ricas na enzima em causa) podem alterar os resultados; igualmente acontece após transfusão de sangue (dador contendo G6PD com actividade normal).

Tratamento e prevenção

Não existe tratamento específico. A transfusão de concentrado eritrocitário apenas está indicada no favismo agudo e nas situações em que se verifique repercussão hemodinâmica da anemia.

No período neonatal importa seguir as normas de actuação em caso de hiperbilirrubunémia. (Parte XXXI)

A esplenectomia apenas está indicada em presença de hiperesplenismo, contudo, não está provado o seu benefício.

No que respeita à prevenção, importa evitar as fontes potenciais de agentes oxidantes (nomeadamente ingestão de favas), incluindo as relacionadas com o tratamento das infecções; de salientar que a evicção daqueles contribui para a prevenção e/ou para reverter a situação.

No contexto da variante A(-), em que surge infecção, o uso de doses usuais de ácido acetilsalicílico (AAS) e TMP-SMX não provocam hemólise importante. No entanto, doses de AAS para tratamento da febre reumática (60-100 mg/kg/dia) podem originar episódio hemolítico grave. (ver Quadro 1)

O rastreio no recém-nascido apenas se justifica nos países com elevada prevalência do defeito enzimático.

Na forma clínica de anemia hemolítica crónica, em geral não é requerido o suporte transfusional. No entanto, há que atender à necessidade de vigilância clínica rigorosa, implicando nomeadamente o alerta para a eventualidade de intercorrência oxidativa (infecção ou ingestão de certos fármacos) susceptível de agravar a anemia. Nos casos com esplenomegália não está provado benefício da esplenectomia.

2. DÉFICE DE PIRUVATO CINASE (PK)

Importância do problema e hereditariedade

O défice de piruvatocinase (PK) é a enzimopatia mais frequente, a seguir ao défice de G6PD. No cômputo geral das anemias hemolíticas hereditárias, é a mais frequente, a seguir à esferocitose.

A sua frequência média é estimada em cerca de 5 casos por milhão de habitantes de raça caucasiana, com predomínio nos países do norte da Europa e em comunidades com elevada consanguinidade.

O mecanismo de transmissão é autossómico recessivo, sem predomínio de sexos; a expressão da doença observa-se sobretudo em indivíduos homozigóticos ou de dupla heterozigotia, isto é, portadores de dois genes com diferente tipo de mutação; a possibilidade de combinações muito variadas de genes alterados explica a variabilidade de manifestações (conhecidas mais de 220 mutações do gene PKLR associado a défice de PK).

Não parece existir relação entre a localização da mutação no gene, a actividade residual da PK, o grau de hemólise e a gravidade do quadro clínico. (ver adiante)

Do défice de PK resulta aumento do 2,3-DPG (2,3-difosfoglicerato) eritrocitário com consequente incremento na distribuição de oxigénio aos tecidos, desligando-se da Hb. Este fenómeno (diminuição da afinidade O2-Hb) tem implicações clínicas: menor fadiga e maior tolerância ao esforço, apesar da anemia.

Manifestações clínicas

O quadro clínico associado a esta patologia é altamente variável: desde hemólise crónica compensada, a anemia hemolítica grave com icterícia e esplenomegália, dependente de suporte transfusional. No RN a apresentação pode ser uma forma grave, com hiperbilirrubinemia e hidropisia. Em cerca de 80% dos casos a apresentação verifica-se em idade pediátrica, sendo que nalgumas crianças a anemia melhora com o crescimento.

As complicações são as próprias da hemólise crónica: maior incidência de litíase biliar, sobrecarga férrica, designadamente em doentes não transfundidos, anemia normocrómica e macrocítica, crises aplásticas transitórias, eritroblastopenia, défice de folatos, etc..

No sexo feminino, o quadro clínico inicial manifesta-se, por vezes, no decurso da gravidez ou de infecção intercorrente, realçando-se que nesta doença a hemólise não é desencadeada por estresse oxidante.

Exames complementares

O exame hematológico clássico revela parâmetros compatíveis com anemia hemolítica não esferocítica e reticulocitose acentuada.

O estudo morfológico do sangue periférico evidencia ocasionalmente macrócitos, eritrócitos espiculados e raros acantócitos, ovalócitos, eliptócitos e policromasia.

Dada a possibilidade de crises aplásticas, poderá ser identificado quadro compatível com pancitopénia.

O diagnóstico definitivo baseia-se na demonstração da actividade enzimática (PK) diminuída (5‑40% na maioria dos doentes, tipicamente < 25%). No entanto nos casos de heterozigotia e de algumas variantes, a actividade é normal ou pouco reduzida in vitro. O diagnóstico nestes casos depende da caracterização genética de uma mesma mutação patológica em homozigotia ou de 2 mutações patológicas diferentes.

Como os leucócitos têm actividade normal da PK, devem ser eliminados do hemolisado quando se pretende determinar a actividade da referida enzima eritrocitária.

Tratamento

A exsanguinotransfusão está indicada nas situações de hiperbilirrubinémia neonatal grave.

Nos casos de anemia crónica e grave com necessidade de regime transfusional frequente (cada 4 a 8 semanas), está indicada a esplenectomia, a realizar após os 5-6 anos. Salienta-se o efeito benéfico da esplenectomia: redução franca, ou até eliminação, da necessidade transfusional e subida da hemoglobina basal em 1-3 g/dL; é ainda notado um aumento da reticulocitose (que pode atingir 40-60%), possivelmente por redução da apoptose eritróide no baço. (ver atrás)

Nos casos de crises aplásticas estão indicados os procedimentos descritos a propósito deste tópico.

A mortalidade relacionada com a sépsis pneumocócica, meningocócica ou por Hemophilus influenzae pós-esplenectomia, torna obrigatória a aplicação das respectivas imunizações (hoje correntes) e a profilaxia com penicilina após a esplenectomia.

3. DÉFICE DE PIRIMIDINA-5’-NUCLEOTIDASE

A deficiência hereditária de pirimidina-5’-nucleotidase (P5N) é a terceira enzimopatia hemolítica mais frequente. Esta enzima integra a via metabólica dos nucleótidos (especificamente das pirimidinas) participando na degradação de ARN no reticulócito. No défice de P5N verifica-se acumulação de nucleótidos pirimidínicos que formam agregados insolúveis visíveis sob a forma de ponteado basofílico no esfregaço de sangue periférico.

Este achado não é específico, uma vez que a intoxicação por chumbo, um potente inibidor da P5N, também se associa à presença de ponteado basofílico nos eritrócitos. É fundamental distinguir estas entidades devido ao carácter reversível da segunda.

O défice de P5N é transmitido de forma autossómica recessiva e provoca anemia hemolítica crónica ligeira a grave, esplenomegália e icterícia. Vários métodos estão descritos para determinar a actividade eritrocitária de P5N. No entanto estes não são reprodutíveis, não sendo usados na prática clínica.

Uma prova de rastreio baseia-se no doseamento de nucleótidos purínicos e pirimidínicos. Um ratio purinas/pirimidinas reduzido pode ser sugestivo de défice de P5N. De salientar, contudo, que apenas a caracterização genética confirma o diagnóstico. Na ausência de tratamento específico, a actuação é sobreponível à das restantes anemias hemolíticas crónicas.

4. OUTRAS ENZIMOPATIAS RARAS

As restantes enzimopatias associadas à via glicolítica, raras, incluem-se no grupo das anemias hemolíticas congénitas não esferocíticas.

O esfregaço de sangue periférico é habitualmente incaracterístico. Estas enzimopatias eritrocitárias, sobretudo as mais raras, resultam em fenótipos muito diversos que se associam não apenas a anemia hemolítica, mas também a metemoglobinemia, policitemia e a alterações neurológicas e do neurodesenvolvimento.

Tal pode ser explicado pelo facto de estas enzimas glicolíticas terem várias funções não enzimáticas, como regulação da transcrição, estimulação da motilidade celular e controlo da apoptose. Outra explicação possível é o facto de os mesmos genes codificarem também isoenzimas com expressão e função noutros tecidos.

O Quadro 2 sintetiza as características clínicas mais típicas associadas a estas enzimopatias.

QUADRO 2 – Enzimopatias raras da via de Embden-Meyerhoff

Defeito enzimático

Prevalência

Hereditariedade

Anemia hemolítica

Outras manifestações

Hexocínase (HK)
(níveis enzimáticos falsamente normais na reticulocitose)

Rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico

Redução 2,3 DPG com fraca tolerância à anemia; Malformações congénitas e atraso psicomotor nalguns doentes, sem relação provada com o défice de HK

Glicose fosfato isomerase

O segundo defeito da via glicolítica mais comum

Autossómica recessiva

Sim

Leucopenia e trombocitopenia
Alterações neurológicas
Hemólise agravada no contexto de infecção, estresse oxidativo

Fosfofrutocinase (Doença de Tauri ou Glicogenose tipo VII

Rara

Autossómica recessiva

Variável

Miopatia agravada com o exercício
Hiperuricémia, artropatia
Heterogeneidade do quadro clínico (disfunção do SNC, cardiomiopatia)

Aldolase

Muito rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico

Miopatia
Rabdomiólise
Atraso psicomotor

Triosefosfato isomerase

Rara

Autossómica recessiva

Sim
Esfregaço incaracterístico, ocasionalmente esferoequinócitos

Doença grave com envolvimento frequente de outros órgãos e alterações neuromusculares, cardíacas e infecciosas frequentes

Fosfoglicerato cinase

Rara

Ligada ao X

Sim, habitualmente
Esfregaço incaracterístico

Atraso de desenvolvimento com disfunção neurológica e perturbações comportamento
Miopatia

Enolase

Muito rara

Autossómica dominante

Sim
Presença de esferócitos no esfregaço

Agravamento da anemia com estresse oxidativo

Desidrogenase láctica

Muito rara

Autossómica recessiva

Não

Miopatia

 Adaptado de Dario Tavazzi, et al, 2008

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ESFEROCITOSE HEREDITÁRIA

Definição e importância do problema

A esferocitose hereditária (EH) – segundo as primeiras descrições, anemia de Minkowski – Chauffard – a anemia hemolítica congénita mais frequente, é uma doença muito heterogénea (quer sob o ponto de vista genético, quer sob o ponto de vista de expressão clínica) dado que compreende diferentes tipos de alterações funcionais e estruturais da membrana do eritrócito; é uma membranopatia eritrocitária (ME).

Caracteriza-se pela existência de eritrócitos de forma esférica (microesferócitos), de fragilidade osmótica aumentada, com deformabilidade e elasticidade alteradas, o que confere maior probabilidade de sequestração no baço.

Aspectos epidemiológicos

Apesar de descrita na maioria dos grupos étnicos, é mais frequente no Norte da Europa, com uma incidência de 200-300/1.000.000 nascimentos. Está provavelmente subestimada por existirem casos mais ligeiros não diagnosticados. As formas clínicas de gravidade moderada são as mais frequentes. Existem essencialmente duas formas de transmissão genética na EH: autossómica dominante (AD – 75% dos casos) e autossómica recessiva (AR) ou por mutações de novo, nos restantes casos. A forma autossómica recessiva homozigótica é clinicamente mais grave do que a heterozigótica.

Etiopatogénese

A membrana eritrocitária (cuja estrutura é mais bem conhecida do que a função) é formada por 50% de proteínas, 40% de lípidos e 10% de hidratos de carbono. As metades hidrofóbicas das duas camadas de lípidos estão orientadas para o exterior e a sua região hidrofílica para o interior.

A estrutura lipídica da membrana é formada por fosfolípidos e colesterol, sendo composta por duas cadeias de ácidos gordos unidos ao glicerol. A própria estrutura da membrana é o elemento crítico que regula a troca bidireccional através da dupla camada lipídica e influi na organização estrutural e morfológica da membrana.

FIGURA 1 – Estrutura molecular da membrana dos eritrócitos focando aspectos fundamentais

Nos seres humanos, a membrana eritrocitária apresenta duas camadas: uma externa, dupla, lipídica (colesterol e fosfolípidos); e uma interna constituída por um citoesqueleto à base de espectrina citoplasmática (espectrina α e β). A camada interna é atravessada por proteínas que contactam as superfícies externa e interna da bicamada lipídica – banda 3 (canal de transporte ou permuta de aniões) e as glicoproteínas (glicoforina). Entre as de banda 3, a glicoforina e a espectrina existem outras proteínas designadas por 4.2, 4.1 e anquirina.

Toda esta estrutura condiciona a forma e flexibilidade dos eritrócitos. Dado que as duas camadas não contactam directamente entre si considera-se que serão os seus movimentos sincronizados que regulam a deformabilidade e elasticidade do eritrócito em circulação. (Figura 1 em que se pode observar a distribuição horizontal das proteínas de membrana, espectrina α e β, e sua interacção com as proteínas verticais (proteínas 3, 4.1 , 4.2 , anquirina e actina).

Na esferocitose hereditária as anomalias da membrana eritrocitária podem envolver os componentes lipídicos ou as proteínas (défices quantitativos ou qualitativos por ex. por mutações dos genes da anquirina, da α e β-espectrina, e da banda 3).

As anomalias estruturais alteram a flexibilidade dos eritrócitos tornando-os mais pequenos, esféricos e rígidos, com a usência da parte central menos pigmentada, em vez de bicôncavos e deformáveis, com menor capacidade de atravessar a microvasculatura. A nível do baço, o pH mais ácido e o baixo teor em oxigénio desencadeiam uma maior instabilidade e fragilidade da membrana do eritrócito causando a sua ruptura, destruição e remoção pelos macrófagos.

Os esferócitos afectados são muito permeáveis ao sódio (Na) e outros catiões. Daí uma hiperactividade da bomba Na-K para “lutar” contra a entrada acrescida de Na.

Acontece também que no baço o baixo teor de glicose necessária para o funcionamento da referida bomba contribui para a claudicação desta por défice de energia/ATP, o que também favorece a hemólise.

A gravidade clínica da EH, muito variável, é relativamente uniforme na mesma família. O défice grave de uma das proteínas de membrana ou o défice combinado de várias (ex. banda 3 e anquirina) condicionam uma anemia hemolítica mais grave que os défices parciais. A excepção é o défice parcial em espectrina que também se relaciona com um fenótipo clínico moderado a grave. Outros factores podem condicionar a clínica, como é o caso das mutações que afectam a função do transportador aniónico da banda 3 e que condicionam uma maior gravidade da hemólise.

Os genes que codificam as proteínas membranares do citoesqueleto eritrocitário são conhecidos (Quadro 1). A forma autossómica dominante (AD) da EH apresenta frequentemente mutações primárias nos genes da anquirina (ANK1), da banda 3 (SLC4A1), ou da β-espectrina (SPTB) associadas a défice proteico. A maioria das mutações genéticas proteicas conhecidas é específica de uma família ou está presente em algumas famílias e países diferentes. A identificação da mutação genética não influencia o seguimento clínico ou a terapêutica. Mutações de novo são maioritariamente encontradas na EH recessiva, associadas a mutações ANK1 e SPTB. As mutações do gene da anquirina (no cromossoma 8p) são transmitidas de forma dominante.

A diversidade de mutações possíveis traduz-se em variabilidade de manifestações clínicas embora se verifique heterogeneidade das mesmas entre indivíduos com idêntica mutação.

Manifestações clínicas

A EH apresenta grande variabilidade de expressão clínica, desde ausência de manifestações (portador assintomático) até hemólise grave. A tríade sintomática clássica consiste em anemia hemolítica, icterícia e esplenomegália.

A anemia tanto pode estar ausente, como ser ligeira, moderada ou grave, podendo classificar-se a EH da seguinte forma (Quadro 1):

  • EH ligeira (20-30% dos casos): muitas vezes não existe anemia, apenas reticulocitose ligeira e esplenomegália ou icterícia. A presença de microesferócitos e reticulocitose conduz ao diagnóstico, muitas vezes só realizado na adolescência ou em idade adulta.
  • EH moderada (60-75%): anemia moderada (níveis de hemoglobina -Hb: 8-12 g/dL), reticulocitose evidente e aumento das concentrações séricas de bilirrubina. Podem ser necessárias transfusões ocasionais. O diagnóstico é geralmente feito na infância ou em idade escolar.
  • EH grave (5%): hemólise marcada, anemia, hiperbilirrubinémia, esplenomegália e necessidade regular de transfusões eritrocitárias. O padrão de hereditariedade é quase sempre recessivo.

A esplenomegália, cujo grau é independente da gravidade da doença, é frequente na criança e no adulto (> 75% doentes), mas tem pouco significado clínico. As dimensões do baço per se, não são indicação para esplenectomia, não havendo um maior risco de ruptura esplénica na população com EH.

Os doentes com EH, tal como os portadores de outras anemias hemolíticas crónicas, apresentam frequentemente episódios de dor abdominal difusa, náuseas, vómitos que caracterizam as crises de hemólise (agravamento da anemia, icterícia, esplenomegália e reticulocitose).

No período neonatal, o diagnóstico pode ser difícil, pois a morfologia eritrocitária é muitas vezes atípica e a prova da fragilidade osmótica duvidosa. A concentração média de Hb (CHGM) > 35 g/dL é um indicador útil no diagnóstico. Neste período a hiperbilirrubinémia e anemia podem ser graves pela intensa hemólise, obrigando a medidas correctivas como fototerapia e exsanguinotransfusão (ver Parte XXXI). Contudo, esta forma de apresentação não se encontra directamente relacionada com a subsequente gravidade da doença. Alguns lactentes com EH podem tornar-se dependentes de transfusões por hipofunção medular com resposta eritropoiética inadequada no 1º ano de vida. A eritropoietina (EPO) pode ser benéfica na redução da necessidade de transfusões, sendo normalmente descontinuada a partir dos 9 meses.

Exames complementares

A EH é diagnosticada com base no hemograma, morfologia do sangue periférico (MSP) e contagem de reticulócitos. A MSP revela a existência, em número variável, de esferócitos. A sua morfologia depende, em parte, do defeito genético associado, existindo algumas variantes: esferócitos com entalhes ou pinçados (deficiência de banda 3), esferócitos acantócitos (deficiência de espectrina), disfunção densa e irregularidade da forma (deficiência combinada de espectrina/anquirina), e esferócitos eliptócitos (eliptocitose esferocítica).

De acordo com os exames laboratoriais, há a referir os seguintes achados: anemia normocítica ou microcítica – volume globular médio (VGM) normal/ligeiramente diminuído – com CHGM aumentada (> 35 g/dL). O estudo da MSP evidencia esferócitos, com menor diâmetro, parecendo ser hipercrómicos pelo valor da CHGM. O número de reticulócitos está sempre aumentado, mesmo fora dos períodos de crise hemolítica.

Os restantes parâmetros de hemólise que estão aumentados são a lactato desidrogenase (LDH), a bilirrubina indirecta e a haptoglobina. A prova de Coombs é importante para o diagnóstico diferencial com anemia hemolítica autoimune.

Doentes com história familiar de EH, manifestações clínicas e alterações laboratoriais típicas, não necessitam de avaliação complementar adicional. Se existirem dúvidas, devem ser realizados outros exames: prova de crio-hemólise e citometria de fluxo (EMA binding test) que permitem estudar as proteínas. Em casos atípicos, a análise por electroforese da membrana eritrocitária (SDS PAGE) pode ser utilizada.

A prova da fragilidade osmótica (FO), não estando recomendada por rotina, constitui uma prova diagnóstica importante por demonstrar o aumento da fragilidade osmótica na presença de soluções salinas hipotónicas. Em 10-20% dos doentes, contudo, a resistência globular é normal. Quando se incubam os eritrócitos a 37ºC, a sensibilidade da prova aumenta para cerca de 100%. Na presença de esferócitos no sangue periférico, a prova não permite o diagnóstico diferencial com outras situações que cursam com esferócitos no sangue periférico (certas anemias autoimunes, isoimunização AB0 no RN, anemia diseritropoiética congénita tipo II).

A prova da FO tem limitações quando realizada no período neonatal pelo facto de os eritrócitos do recém-nascido serem mais resistentes à citólise osmótica e terem um elevado teor em hemoglobina fetal (Hb F). Neste período etário prefere-se a citometria de fluxo. A prova da lise pelo glicerol é simples e permite confirmar o diagnóstico nas formas ligeiras ou nas heterozigotias, não sendo influenciada pela esplenectomia.

Quanto a exames radiológicos podem ser verificados sinais ósseos de hiperplasia eritropoiética (alargamento da medular dos ossos longos e adelgaçamento da cortical, crânio em “escova”, etc.), em relação com a gravidade do quadro hematológico.

Os exames complementares obtidos em conjunto permitem determinar a gravidade da EH (Quadro 2).

Complicações

Nas formas graves existe maior probabilidade de complicações:

  1. Crise hemolítica – relacionada com infecções sobretudo víricas; manifesta-se por agravamento da icterícia, reticulocitose e esplenomegália com hiperesplenismo;
  2. Crise aplástica – com consequente supressão medular transitória por infecção por parvovírus B19 ou a outros agentes;
  3. Crise de anemia megaloblástica – por défice de ácido fólico secundário à estimulação da hematopoiese, sobretudo em crianças desnutridas;
  4. Litíase biliar (rara com < 10 anos de idade, atinge 50% dos doentes adultos, sobretudo se EH grave): o risco é superior quando se associa à síndroma de Gilbert – por co-herança do defeito genético associado à menor actividade da conjugação da bilirrubina pela enzima uridina difosfato;
  5. Atraso do desenvolvimento sexual e do crescimento e alterações esqueléticas em relação com o elevado grau de hematopoiese;
  6. Úlceras de perna e hematopoiese extramedular (na adolescência e idade adulta).

Diagnóstico diferencial

O Quadro 3 resume as situações em que se estabelece o diagnóstico diferencial com a EH. A co-hereditariedade de outras anemias hemolíticas como a β-talassémia e a hemoglobinopatia SC, dificultam o diagnóstico pelas alterações clínicas. A carência em ferro, vitamina B12 e ácido fólico podem modificar também os resultados dos achados laboratoriais. A hiperbilirrubinémia conjugada, por alterar a composição dos lípidos da membrana, contribui também para alterar a morfologia dos eritrócitos.

 Tratamento

Na EH moderada a grave está indicada suplementação com ácido fólico. A esplenectomia só está indicada em casos graves ou na presença de complicações. A esplenectomia, embora melhore a anemia e a hemólise, não resolve o defeito intrínseco dos eritrócitos. Sempre que possível, não deverá ser realizada antes dos 6 anos, de forma a diminuir o risco de infecção, sobretudo por bactérias capsuladas como S. pneumoniae e H. influenzae. Todas as crianças deverão ser imunizadas pré-esplenectomia segundo as recomendações e receber antibioticoterapia profiláctica após esplenectomia.

A esplenectomia parcial está, teoricamente, associada à diminuição do risco de sépsis pós-intervencão; no entanto não é habitual ser realizada pela probabilidade de recorrência de manifestações graves da EH e/ou de colelitíase com necessidade de reintervenção. Apesar do aparente maior risco trombótico associado à esplenectomia na EH, a profilaxia antitrombótica por rotina não está indicada.

Nas formas graves de doença, sobretudo nos primeiros 9 meses de vida, cerca de 70-80% dos lactentes mantém-se dependente de transfusões pela incapacidade medular de aumentar a produção de eritrócitos. Após esse período apenas 30% irá necessitar de suporte transfusional.

De acordo com um estudo demonstrou-se que a utilização de eritropoietina humana recombinante (EPOr) e suplemento de ferro diminuem a necessidade transfusional, nesta faixa etária, com sucesso.

QUADRO 1 – Tipos de mutações génicas, cromossomas e defeitos das proteínas de membrana associados à esferocitose hereditária

ProteínaGeneMutações detectadas
(número e identificação)
Exemplos seleccionados de défices proteicos parciais
(SDS PAGE)
Cromossoma
α-espectrinaSPTA1Splicing/skipping (1) –
SpaLEPRAallele
(i) Défice de α-espectrina
(ii) Défice marcado de espectrina (α e β) com pais sem doença
1q22-q23
β-espectrinaSPTBNull mutations (10)
Nonsense ou non-coding sequence (10) Missense (5)
Polimorfismo (1)
Défice de β espectrina14q23-q24.1
AnquirinaANK1Frameshift (17)
Nonsense (8)
Anormal splicing (4)
Missense (4)
Região promotora (2)
(i) Défice combinado de espectrina e proteína 4Æ2
(ii) Défice de Anquirina e espectrina
(iii) Défice de Anquirina
(recessive HS)
8p11.2
Banda 3SLC4A1Missense(23)
Nonsense/frameshift(18)
Larger mutant protein (3)
Polimorfismo (5)
Défice de Banda 3 (redução parcial de banda 6 também nalguns casos de EH)17q21-q22
Proteína 4.2EPB42Missense (4)
Nonsense ou deleção (3)
Splicing (2)
(i) Défice total proteína 4.2 (fenótipo nulo)
(ii) Défice parcial de proteína 4.2
15q15-q21
Adaptado de Bolton-Maggs PH, et al (2011)

QUADRO 2 – Classificação da esferocitose e indicação para esplenectomia

Adaptado de Bolton-Maggs PH, et al (2011)
Classificação Traço Ligeira Moderada Grave
Hemoglobina (g/dL) Normal 11-15 8-12 6-8
Reticulócitos (%) Normal (< 3%) 3-6 > 6 > 10
Bilirrubina (mg/dL) 0-1 1-2 ≥ 2 ≥ 3
Moléculas de Espectrina /eritrócito (% do normal) 100 80-100 50-80 40-60
Morfologia sangue periférico Normal Esferocitose moderada Esferocitose Esferocitose e Poiquilocitose
Fragilidade osmótica    
· Sangue fresco Normal ou ligeiramente↑ Normal ou ligeiramente↑ Muito aumentada Muito aumentada
· Sangue incubado Aumentada Muito aumentada Muito aumentada Muito aumentada
Esplenectomia Não requer Maioria sem necessidade Necessária em idade escolar Necessário Atrasar até aos 6 anos

QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial com esferocitose hereditária

Isoimunização ABO em recém-nascidos Picnocitose infantil
Anemia hemolítica autoimune Ovalocitose
Anemia diseritropoiética tipo II Estomatocitose hereditária

BIBLIOGRAFIA

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Anemias Hemolíticas – Generalidades

Definições e etiopatogénese

Anemia hemolítica é definida como a anemia resultante de destruição excessiva de eritrócitos. Este grupo de doenças hematológicas partilha uma característica comum: o encurtamento da vida média do eritrócito a qual, em condições de normalidade, é cerca de 120 dias. Quando se verifica diminuição do tempo de vida média, o sistema hematopoiético incrementa a actividade, não surgindo anemia até que tal capacidade compensadora seja ultrapassada. Quando, em circunstâncias de hemólise, os valores de hemoglobina (Hb) e de eritrócitos (E) se mantêm dentro dos limites da normalidade, utiliza-se o termo de hemólise compensada; por outro lado, quando tais valores diminuem, utiliza-se o termo de anemia hemolítica.

Existem dois tipos de hemólise: extravascular e intravascular; o primeiro consiste num aumento (patológico) do processo natural ou fisiológico e crónico de destruição eritrocitária nos macrófagos do fígado e baço (SRE) e acompanha-se de esplenomegália; o segundo corresponde a um fenómeno patológico, em geral agudo, cursando com hemoglobinúria.

Recordam-se os principais mecanismos responsáveis pela hemólise: causa intrínseca ou anomalia intraglobular (alterações da membrana eritrocitária, da hemoglobina, das enzimas eritrocitárias), e causa extrínseca ou por mecanismo extraglobular.

Destes mecanismos decorre a classificação, abordada na alínea seguinte.

Classificação

O Quadro 1 discrimina as principais entidades clínicas que fazem parte do grupo “causa intrínseca” realçando-se que, na sua grande maioria, se

trata de situações hereditárias. As anemias hemolíticas de causa extrínseca (acção de agentes externos actuando sobre eritrócitos estruturalmente normais) são doenças adquiridas, independentemente de se manifestarem no recém-nascido (congénitas, embora adquiridas in utero). É difícil elaborar uma classificação totalmente satisfatória dos pontos de vista etiopatogénico e semiológico, porquanto, na génese dos processos mórbidos em geral e dos processos anémicos em especial, só raramente intervém um mecanismo isolado; por outro lado a expressão sintomática dos vários quadros intrinca-se e, com frequência, é próxima da de processos de génese totalmente distinta.

Com esta ressalva, apresenta-se o Quadro 2 que discrimina as principais entidades clínicas que fazem parte deste grupo. A CID e SHU são abordadas noutros capítulos. Nos capítulos seguintes são abordadas de modo sequencial, com base nos Quadros 1 e 2, as patologias com as quais o clínico mais frequentemente se defronta

QUADRO 1 – Anemias hemolíticas de causa intrínseca (intraglobular)

Hereditárias
– Defeitos da membrana
Anomalias morfológicas específicas da membrana
• Esferocitose hereditária
• Eliptocitose hereditária
• Estomatocitose hereditária
• Anemia hemolítica congénita com eritrócitos desidratadosAlteração da composição dos fosfolípidos (aumento da lecitina)

Defeitos secundários da membrana
• Abetalipoproteinémia

– Defeitos enzimáticos
Défice da desidrogenase da glucose-6-fosfato
Défice de piruvatoquinase
Défice de hexoquinase
Défice de fosfofrutoquinase
Défice de triosefosfatoisomerase
Défice de fosfogliceratoquinase
– Defeitos da hemoglobina

Heme
• Porfíria congénita eritropoiética

Globina
• Qualitativos: hemoglobinopatias de estrutura/

Síndromas falciformes
• Quantitativos: hemoglobinopatias de síntese/

Síndromas talassémicas

Não hereditárias
– Hemoglobinúria paroxística nocturna

QUADRO 2 – Anemias hemolíticas de causa extrínseca (extraglobular)

Anemia hemolítica isoimune
Anemia hemolítica autoimune
Anemia hemolítica adquirida não autoimune
· Microangiopatia trombótica (CID, PTT, SHU, etc.)
· Prótese valvular em cirurgia cardíaca
· Síndroma de Kasabach-Merritt
· Dislipoproteinémias
· Carência em vitamina E
· Toxinas
· Infecções e parasitoses
Abreviaturas: CID = coagulação intravascular disseminada; SHU = síndroma hemolítica urémica; PTT = púrpura trombocitopénica trombótica.

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ANEMIA MEGALOBLÁSTICA​

Definição e importância do problema

A anemia megaloblástica engloba um conjunto de situações em que existe uma alteração na síntese de ácido desoxirribonucleico (ADN). De tal anomalia resultam alterações nos precursores das três séries hematopoiéticas (eritróides, granulocíticos e megacariocíticos), com a seguinte tradução no esfregaço do sangue periférico: anemia macrocítica, macro-ovalócitos, anisocitose, poiquilocitose, anéis de Cabot, corpos de Howell-Joly, ponteado basófilo nos eritrócitos, atraso na maturação do núcleo em relação ao citoplasma nos eritroblastos da medula óssea (dissociação nucleocitoplásmica), leucopénia, polissegmentação dos neutrófilos e trombocitopénia.

A dissociação nucleocitoplásmica origina apoptose celular intramedular por eritropoiese ineficaz, hiperplasia eritróide, aumento da bilirrubina indirecta, da desidrogenase láctica, do ferro e das transaminases séricas.

Os referidos precursores eritróides evidenciam dimensões aumentadas (megaloblastose) com núcleo grande e imaturo. A megaloblastose é explicável por três grupos de factores: falência medular, diminuição da produção de eritropoietina e anomalia do processo de maturação medular.

 A polissegmentação dos neutrófilos é definida como a verificação de um ou mais neutrófilos com cinco lóbulos bem definidos por cada 100 neutrófilos segmentados.

Os défices de vitamina B12 (ou cobalamina) e/ou de ácido fólico, dois nutrientes interagindo e com vias metabólicas comuns e essenciais para a síntese de ADN, são os factores etiológicos mais frequentes (~95%) de anemia megaloblástica.

A prevalência de tais situações carenciais tem diminuído ao longo do tempo devido à suplementação dos alimentos quase universal; contudo, ainda ocorre nas populações mais pobres, mais idosas e com excessivo consumo de álcool.

Outros factores podem estar envolvidos: micronutrientes além dos já citados, síndromas mielodisplásicas e defeitos adquiridos da síntese de ADN como, por exemplo, os induzidos pela quimioterapia.

Salienta-se a importância do diagnóstico e tratamento precoces, designadamente das formas mais frequentes) tendo em consideração a possibilidade de lesões neurológicas irreversíveis caso tal não se verifique.

Neste capítulo são consideradas como sinónimas as designações de cobalamina e de vitamina B12.

Etiopatogénese

 Metabolismo da vitamina B12 (cobalamina)

As necessidades diárias recomendadas de cobalamina segundo a OMS são 1 mcg para adultos saudáveis, 1,3-1,4 mcg para grávidas ou lactantes, e 0,1 mcg para lactentes.

A vitamina B12 actua como cofactor de duas enzimas (metionina sintetase e l-metil-malonil-coenzima A mutase), interferindo em duas vias metabólicas:

  1. Transferência de um grupo metil do metil-tetra-hidrofolato (MTHF) para a homocisteína, formando metionina e reduzindo os níveis de homocisteína, tóxica para as células; e a desmetilação do tetra-hidrofolato (THF);
  2. A conversão de propionil-coenzima A em metilmalonil-coenzima A e, finalmente, em succinil-coenzima A, cujo significado biológico não se encontra ainda estabelecido. O THF, por sua vez, é fundamental para a formação de diversos cofactores que intervêm na síntese da timidina-trifosfato, essencial para síntese de ADN.

A absorção da vitamina B12 ao nível do íleo terminal (implicando a sua ligação prévia ao factor intrínseco – FI segregado pelas células parietais do estômago, do que resulta a formação de um complexo FI-vitamina B12), pressupõe à partida cinco requisitos fundamentais:

  1. Suprimento adequado (a vitamina B12 encontra-se presente exclusivamente em produtos de origem animal, como carne ou leite);
  2. Mucosa gástrica com adequada acidez e presença de pepsinas (que libertam a cobalamina das proteínas de transporte e permitem a sua ligação à haptocorrina- produzida na saliva e glândulas esofágicas);
  3. Presença de proteases pancreáticas (responsáveis pela quebra da ligação da cobalamina à haptocorrina, permitindo a ligação da cobalamina ao factor intrínseco – FI);
  4. Adequada secreção gástrica de FI funcionante;
  5. Presença de receptores do complexo cobalamina – FI (cubulina) funcionantes no íleo.

O complexo cobalamina-FI ligando-se aos receptores específicos no bordo apical dos enterócitos no íleo distal, entra a seguir nas células por endocitose. Dentro do enterócito, depois da libertação do FI, a cobalamina une-se à transcobalamina, passando a circular no sangue sob esta forma (cobalamina-transcobalamina). Somente a cobalamina-transcobalamina está disponível para ser incorporada nas células, excepto nos hepatócitos.

A cobalamina excreta-se na bílis, une-se ao FI no intestino delgado, e reabsorve-se (circulação entero-hepática).

Carência de vitamina B12

A carência de vitamina B12 pode explicar-se por diversos factores.

Anomalias da absorção

As anomalias da absorção, congénitas ou adquiridas, são os factores etiológicos mais frequentes. Como exemplos citam-se:

  • Ausência ou défice de FI (respectivamente anemia perniciosa congénita e anemia perniciosa juvenil de causa autoimune, raras em idade pediátrica), a principal causa de carência de vitamina B12 em adultos; verifica-se destruição autoimune, mediada por linfócitos, das células parietais do estômago, produtoras de FI. Os doentes apresentam autoanticorpos dirigidos contra células parietais do estômago e contra o FI e, por vezes, contra a gastrina e pepsinogénio. Pode haver associação a outras doenças autoimunes.
  • Síndroma de Imerslund-Gräsbeck, entidade clínica de hereditariedade AR em que, por mutação do gene AMN ou CUBN do receptor ileal de cobalamina-FI existe um defeito congénito selectivo de absorção da cobalamina ao nível do íleo terminal;
  • defeito de entrada de vitamina B12 nas células (endocitose), congénito (autossómico recessivo), explicável pela deficiência do principal transportador fisiológico da vitamina B12, a transcobalamina II (TC-II) – raro;
  • Infecção por Helicobacter pylori, Giardia lamblia, Dyphyllobotrium latum, status pós-ressecção do íleo terminal, disfunção ileal (síndroma de ansa cega, intestino curto, doença de Crohn, pancreatite, doença de Whipple, etc.) – também situações raras.
Ingestão insuficiente ou inadequada

A ingestão insuficiente, designadamente em dietas vegetarianas estritas e em crianças amamentadas por mães com défice vitamínico, também contribui para a carência. As carências nutricionais de vit. B12 são mais raras que as de ácido fólico, pois aquela é a única vitamina hidrossolúvel armazenada no corpo humano. Assim, são necessários entre 3 e 5 anos para que se desenvolva a respectiva carência após suspensão do suprimento.

Anomalias metabólicas

Existem ainda doenças hereditárias do metabolismo da cobalamina que podem ser a causa do seu défice, tais como a acidúria metilmalónica – doença autossómica recessiva causada por um défice completo ou parcial da enzima metilmalonil-coenzima A mutase e a homocistinúria, em que existe um defeito na enzima N5-metiltetra-hidrofolato-homocisteína metiltransferase (MTR, metionina sintetase) que se traduz numa diminuição da produção de metilcobalamina. Citam-se ainda a carência em transcobalamina comprometendo o transporte da cobalamina, e factor adquirido, relacionado com intoxicação por óxido nitroso.

Metabolismo do ácido fólico

Os folatos encontram-se na natureza na forma de poliglutamatos. Absorvendo-se na primeira porção do duodeno, são transportados ao fígado, onde se convertem em 5-metiltetra-hidrofolato, a forma principal do folato circulante. A conversão de ácido fólico em di-hidrofolato e de di-hidrofolato em tetra-hidrofolato é catalisada pela enzima tetra-hidrofolato-redutase.

O tetra-hidrofolato é uma forma reduzida do ácido fólico, que intervém como coenzima em diferentes reacções do metabolismo dos aminoácidos e ácidos nucleicos.

O folato abunda em vegetais, frutas e carne (fígado e rim). Os folatos reduzidos da dieta são lábeis à luz e à oxidação, sendo que o calor na preparação de cozinhados origina a sua destruição nos alimentos.

As necessidades diárias recomendadas pela OMS são 3,6 mcg/kg/dia (< 1 ano); 3,3 mcg/kg/dia (1-6 anos); e 3,1 mcg/kg/dia (> 6 anos). As doses indicadas para grávidas ou lactantes são 300-1.000 mcg/dia.

Carência de ácido fólico

Salientando-se que, ao contrário do que acontece com a cobalamina, não existem no organismo reservas significativas de ácido fólico, a carência deste micronutriente pode explicar-se por diversos factores.

Ingestão insuficiente

Trata-se do factor mais frequentemente associado a carência de ácido fólico, a qual é geralmente acompanhada de quadro clínico de má-nutrição energético-proteica e de outros micronutrientes. Pode associar-se igualmente a carência materna em folatos, alimentação exclusiva com leite de cabra, amamentação por mães com estados carenciais, repercutindo-se especialmente no RN pré-termo.

Anomalias da absorção

Citam-se como exemplos – anomalia ao nível do terço superior do intestino delgado, doença celíaca, doença de Crohn, anomalias infiltrativas do intestino delgado (doença de Whipple ou linfoma), antibioticoterapia de largo espectro, etc..

Aumento das necessidades

Por exemplo, gravidez, lactação, anemia hemolítica, síndroma de Lesch-Nyhan, prematuridade, tratamento anticonvulsante, designadamente com fenobarbital, excreção aumentada (carência de vit. B12, diálise crónica), destruição aumentada (excesso de suplementos oxidantes), etc..

Inibidores do folato

Antifólicos (metotrexato, pirimetamina, trimetoprim), sulfonas.

Outras causas incluindo doenças hereditárias do metabolismo

Défice de di-hidrofolato redutase, défice de metionina sintetase (MTR) e défice de metileno-tetra-hidrofolato redutase, anomalia da síntese de purinas e pirimidinas (acidúria orótica), défice de 3-fosfoglicerato-desidrogenase, anemia que responde a tiamina ou anemia que responde a piridoxina, infecções de repetição, hepatopatias crónicas, dermatoses exfoliativas, tumores malignos, etc..

Miscelânea

Esta alínea pode ser tipificada pela anemia megaloblástica induzida por fármacos actuando por diversos mecanismos, alguns dos quais já citados.

  • Interferência na absorção intestinal de cobalamina (antiácidos, inibidores da bomba de protões) ou de ácido fólico (cloranfenicol, ácido aminossalicílico);
  • Alteração no metabolismo dos folatos (metformina, fenitoína);
  • Efeito directo a nível medular (hidroxicarbamida, azatioprina);
  • Síntese de ADN reduzida pelo bloqueio da conversão de di-hidrofolato em tetra-hidrofolato (aminopterina ou metotrexato /MTX);
  • Inibição da conversão dos ribonucleótidos em desoxirribonucleótidos (hidroxicarbamida, utilizada em determinadas síndromas mieloproliferativas e na anemia de células falciformes.

Manifestações clínicas

A anemia megaloblástica, rara em idade pediátrica, tem manifestações multissistémicas; com efeito, células não hematopoiéticas como as da mucosa gastrintestinal e uterina também podem evidenciar também características megaloblásticas.

As manifestações clínicas associadas a anemia megaloblástica por carência de cobalamina e/ou ácido fólico progridem insidiosamente dependendo a sua exuberância da duração da carência. Os sintomas podem ter início nos primeiros meses de vida dependendo das reservas maternas durante a gestação, período de lactação e tipo de alimentação do lactente.

A sintomatologia, manifestando-se habitualmente quando a anemia se torna grave, inclui astenia, palpitações, fadiga, cefaleias, dispneia de esforço. Pode ocorrer icterícia por hemólise intramedular e extravascular; a leucopenia e a trombocitopenia estão geralmente presentes, embora sem expressão clínica relevante.

Na carência de cobalamina (vitamina B12), além dos sinais e sintomas já descritos, surgem manifestações neurológicas: irritabilidade, perda de sensibilidade proprioceptiva, ataxia espástica, parestesias simétricas, diminuição da força muscular e hipo ou híper-reflexia. A designação de degenerescência combinada subaguda medular traduz a desmielinização e degenerescência dos cordões laterais e posterior da medula espinhal conjuntamente com neuropatia periférica; esta última é mais grave nos membros inferiores do que nos superiores.

Estão descritas igualmente alterações neuropsiquiátricas (demência, amnésia, depressão, etc.), bem como casos mais raros de depressão, atrofia óptica, anosmia, disgeusia, por vezes não acompanhadas de alterações hematológicas. A disfunção autonómica pode estar presente (hipotensão postural, incontinência e impotência). Em crianças mais pequenas as manifestações neurológicas podem ser mais subtis: atraso do neurodesenvolvimento, ou regressão do mesmo, dificuldades alimentares, hipotonia, letargia, irritabilidade, convulsões, tremores, mioclonias ou movimentos coreoatetósicos.

Salienta-se que em situações de carência de cobalamina a administração de ácido fólico pode mascarar as manifestações hematológicas ao mesmo tempo que ocorre progressão das manifestações neurológicas.

Na alínea sobre Etiopatogénese foi feita referência a duas entidades clínicas clássicas associadas a carência de cobalamina: síndroma de Imerslund-Grasbeck e anemia perniciosa.

Na carência de ácido fólico verifica-se a presença de sinais e sintomas semelhantes aos da anemia megaloblástica por carência de cobalamina; contudo ao contrário do que acontece na carência de cobalamina: – não se verifica quadro neurológico; e, – pela não existência de reservas significativas de ácido fólico no organismo, as manifestações poderão surgir mais precocemente, logo após um mês de interrupção do suprimento de referido micronutriente.

O quadro clínico integra tipicamente anemia, desnutrição, glossite, úlceras e atrofia das mucosas com repercussão no tubo digestivo (má-absorção, anorexia, vómitos, diarreia); a icterícia sugere hemólise por eritropoiese ineficaz.

A carência materna de ácido fólico no período periconcepcional explica mais de 50% dos casos de defeitos do tubo neural, incluindo spina bifida, mielomenigocele e anencefalia.

Exames complementares

A suspeita de anemia megaloblástica, perante a verificação de alguns dos sintomas e sinais descritos, poderá fundar-se no seguinte quadro hematológico: anemia macrocítica (VGM/volume globular médio > 100 fL e CHGM normal), reticulocitopénia, trombocitopénia, neutropénia, anisocitose e poiquilocitose, hipersegmentação do núcleo dos neutrófilos e mielograma evidenciando processo de maturação megaloblástica.

Para o diagnóstico definitivo de anemia megaloblástica por carência de cobalamina e/ou ácido fólico torna-se fundamental proceder a determinadas provas diagnósticas.

Provas diagnósticas de carência de cobalamina

Relativamente aos valores de normalidade, importa considerar os seguintes parâmetros: cobalamina sérica (valor normal: 140-800 uug ou pg/mL), excreção urinária de ácido metilmalónico (valor normal: 0-3,5 mg/24 horas).

O diagnóstico definitivo de carência de cobalamina baseia-se nos seguintes critérios laboratoriais: anemia megaloblástica, cobalamina sérica diminuída < 100 uug ou pg/mL {considerando-se valores-limite entre 200 e 400 uug ou ng/mL}, homocisteína plasmática total elevada, ácido metilmalónico plasmático e urinário elevados, holotranscobalamina II diminuída e resposta ao tratamento com cobalamina (observando-se desaparecimento das manifestações hematológicas, bioquímicas e neurológicas após injecção de 10 mcg de cianocobalamina).

A homocisteína plasmática total elevada (tal como na carência em ácido fólico) pode também verificar-se na homocistinúria clássica, no hipotiroidismo e na insuficiência renal.

O diagnóstico de má-absorção de cobalamina estabelece-se com a prova de Schilling (administração de cobalamina oral, radioactiva; previamente injecta-se 1 mg de cobalamina por via IM para saturar a transcobalamina, valorizando-se a absorção pela determinação da percentagem de cobalamina radioactiva e previamente ingerida, na urina; considera-se absorção normal o valor de 5-35% em 24 horas.

Para o diagnóstico etiológico da má-absorção importa realizar os seguintes exames:

  • Pesquisa de anticorpos anti-FI;
  • Determinação dos níveis de gastrina ou pentagastrina I;
  • Determinação dos níveis de transcobalamina I por imunoanálise.

Provas diagnósticas de carência de ácido fólico

Relativamente aos valores de normalidade do ácido fólico, importa considerar: folato sérico (valor normal: 5-20 ng/mL), e folato eritrocitário (valor normal: 150-600 ng/mL).

O diagnóstico definitivo de carência de ácido fólico baseia-se nos seguintes critérios laboratoriais: anemia megaloblástica, níveis de folato sérico < 3 ng/mL, folato eritrocitário < 150 ng/mL {considerando-se valores-limite do folato sérico entre 4 e 8 ng/mL}, ácido forimiminoglutâmico (FIGLU) na urina aumentado, homocisteína total plasmática aumentada e ácido metilmalónico normal.

A homocisteína plasmática total elevada (tal como na carência em cobalamina) pode também verificar-se na homocistinúria clássica, no hipotiroidismo e na insuficiência renal.

Os achados explicáveis pela eritropoiese ineficaz são: elevação da bilirrubinémia não conjugada, desidrogenase láctica (LDH), ferritina e saturação da transferrina.

Formas clínicas raras

Reportando-nos à alínea sobre Etiopatogénese, em que foi referido que cerca de 95% das situações caracterizadas por anemia megaloblástica se relacionam com carência de cobalamina e ou ácido fólico, citam-se a seguir de modo sucinto outras formas raras, explicando cerca de 5% dos casos de anemia megaloblástica.

Estas formas raras de anemia megaloblástica devem ser consideradas no diagnóstico diferencial de anemia megaloblástica refractária ao tratamento com ácido fólico e cobalamina (ver adiante), uma vez excluídas todas as outras causas.

Acidúria orótica

Esta entidade clínica foi abordada na Parte sobre Doenças Hereditárias do Metabolismo, enquadrada nas doenças do metabolismo das pirimidinas. Trata-se duma doença autossómica recessiva afectando a síntese do ácido nucleico e surgindo geralmente no primeiro ano de vida e manifestada com hipocrescimento, atraso do neurodesenvolvimento, anemia megaloblástica e excreção urinária aumentada de ácido orótico. Na sua forma usual verifica-se deficiência em todos os tecidos do corpo da fosfororribosil transferase e da orotidina-5-fosfato descarboxilase.

O diagnóstico é sugerido pela verificação de anemia megaloblástica associada a níveis séricos normais de cobalamina, folato, excreção urinária aumentada de ácido orótico, sem evidência de défice de transcobalamina e associada. Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental contudo, demonstrar os défices enzimáticos a que nos referimos.

A anemia é refractária ao tratamento com cobalamina e ácido fólico, mas responde prontamente à administração de uridina.

Anemia megaloblástica respondente à tiamina (síndroma de Rogers)

A anemia megaloblástica com resposta à tiamina é uma doença autossómica recessiva rara tipicamente associada principalmente a diabetes, surdez neurossensorial, hipocrescimento, alterações visuais, arritmia e defeitos cardíacos.

A medula óssea, para além das alterações megaloblásticas, evidencia sideroblastos em forma de anel. Admite-se que esta entidade, relacionada com mutação no gene SCL9A2 no cromossoma 1, codificando a proteína de transporte da tiamina, se traduza num defeito no mecanismo de transporte transmembrana da mesma, o que determina uma diminuição da síntese de ácidos nucleicos, com consequente bloqueio celular e apoptose medular.

As alterações respondem à terapêutica com tiamina com melhoria da diabetes e da anemia sendo, no entanto, a surdez neurossensorial avançada, irreversível.

Diagnóstico diferencial

Importa uma referência breve a três situações clínicas que, por certas particularidades do quadro clínico-laboratorial, poderão dificultar o diagnóstico de alteração megaloblástica.

Anemia megaloblástica e anemia microcítica coexistente

Na presença de anemia microcítica por ferropénia, traço talassémico ou doença crónica, as características de megaloblastose na medula óssea e no sangue periférico poderão tornar-se menos evidentes. No sangue periférico poderá verificar-se anisocitose marcada, VGM normal, com RDW muito aumentado.

Ao nível da medula óssea, observam-se megaloblastos intermédios na medula, de menores dimensões do que as células megaloblásticas habituais, a par de metamielócitos gigantes. E, através do exame do esfregaço do sangue periférico, são notórios os neutrófilos hipersegmentados característicos no ESP e os na medula.

Anemia megaloblástica grave versus leucemia aguda e mielodisplasia

Em determinadas circunstâncias associadas a anemia megaloblástica grave, a verificação de medula hipercelular, com sinais de displasia e morfologia “bizarra”, poderá levar a diagnóstico erróneo, confundindo-se eventualmente o quadro morfológico descrito com o de leucemia aguda ou mielodisplasia. Como se pode concluir, são fundamentais a realização de história clínica rigorosa, um elevado nível de suspeita de carência de micronutrientes vitamínicos.

Anemia megaloblástica atenuada

No contexto de quadro clínico de anemia de etiologia a esclarecer, e mais uma vez relevando o valor da história elaborada com rigor, o clínico deverá estar alertado para a hipótese de ser realizado mielograma após início de suplementação com cobalamina ou ácido fólico, o que contribuirá para alterações megaloblásticas atenuadas.

Ou seja, dado que as alterações megaloblásticas podem melhorar cerca de 36-48 horas após o início do tratamento, a anemia manter-se-á até que haja uma adequada resposta medular, o que pode dificultar o diagnóstico.

Tratamento

Carência de cobalamina

Uma vez que na maioria dos casos há diminuição da absorção, é frequentemente necessária administração substitutiva de vitamina B12 por via parentérica, ou oral em doses elevadas.

As formulações parentéricas (cianocobalamina ou hidroxicobalamina) são recomendadas em diferentes esquemas terapêuticos.

Nas formas acompanhadas de anemia grave, a fim de evitar complicações metabólicas como hipopotassémia, são administradas doses baixas (0,2 mcg/kg/dia) da formulação parentérica de vitamina B12 (por ex. cianocobalamina) por via subcutânea durante dois dias, juntamente com suplementos de potássio, oxigénio, diuréticos e transfusão lenta de concentrado eritrocitário.

O tratamento convencional consiste na administração de 1.000 mcg/dia de cianocobalamina ou hidroxicobalamina durante 1 semana, seguindo-se 100 mcg semanais e, posteriormente, mensais. (1 mg <> 1.000 mcg ou µg).

Nos casos de má-absorção de vitamina B12 (anomalias do FI ou da incorporação ileal) o esquema consiste em administrar 100 mcg de vitamina B12 por via subcutânea mensal.

Perante quadro comprovado de défice de transcobalamina, torna-se necessário proceder à administração de doses mais elevadas de vitamina B12: 1.100 mcg – 2 a 3 vezes por semana por via intramuscular.

A anemia perniciosa e as situações decorrentes de má-absorção obrigam a tratamento durante toda a vida.

Carência de ácido fólico

A anemia responde a pequenas doses de ácido fólico (200-500 mcg/dia). Antes de administrar ácido fólico deve excluir-se carência em vitamina B12.

Nos casos de carência de ácido fólico, a suplementação com 1-5 mg/dia (ou 1.000-5.000 µg/dia) por via oral, geralmente é adequada para corrigir a anemia. A formulação parentérica (5 mg ou 5.000 µg/mL) deve ser utilizada apenas em doentes com défice de absorção.

Durante a gravidez, a dose necessária de folato é cerca de 400 µg/dia. Mães com carência nutricional grave ou má-absorção podem ser medicadas com 1.000 mcg de vit. B12 (via parentérica) de 3-3 meses para evitar a carência em vitamina B12 neste período.

Salienta-se que o doseamento sérico de ácido fólico sérico e de cobalamina é obrigatório no tratamento da anemia megaloblástica, pois a monoterapia com folato podendo corrigir parcialmente as alterações hematológicas associadas à carência de cobalamina, não corrige, no entanto, as alterações neurológicas.

Nos doentes sob quimioterapia e com doses elevadas de metotrexato (MTX), tendo em conta o mecanismo de acção deste fármaco (ver atrás – Etiopatogénese-Miscelânea) – deve ser administrado ácido folínico, 3-6 mg/dia. É uma opção frequente em doentes sob quimioterapia com doses elevadas de MTX.

Seguimento

Nos casos de carência de vitamina B12 após suplementação adequada verifica-se uma melhoria da anemia e dos sintomas neurológicos.

Com efeito, a resposta hematológica é rápida, com um aumento do valor dos reticulócitos numa semana, e uma melhoria rápida da megaloblastose medular com normalização em 36-48 horas após o início do tratamento.

As formas granulocíticas “gigantes” persistem durante 1-2 semanas e a neutropenia e trombocitopenia (quando presentes) melhoram em regra em 1 semana. A anemia regride por completo em 6-8 semanas.

O efeito do tratamento nas manifestações neurológicas depende da gravidade e do tempo de evolução.

Nos casos em que se verifique suspensão inadvertida do tratamento, o quadro neurológico recidiva geralmente ao cabo de 6 meses, e a anemia megaloblástica após cerca de 1 ano.

A suplementação com vitamina B12 é sempre recomendada após gastrectomia total, mas não após gastrectomia parcial. Contudo, reitera-se a noção de que as alterações megaloblásticas poderão não ser detectadas no contexto de ferropénia concomitante.

Prevenção

Como medidas gerais apontam-se, essencialmente:

  • Detecção dos grupos de risco (indivíduos em que são identificados factores etiopatogénicos atrás discriminados);
  • Regime alimentar, incluindo designadamente frutas e vegetais crus;
  • Determinação dos níveis séricos de vitamina B12 e ácido fólico em vegetarianos estritos;
  • Evitamento do leite de cabra (não habitual no nosso país, mas mencionado apenas por razões didácticas e históricas).

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ANEMIA FERROPÉNICA

Definições e aspectos epidemiológicos

O ferro (Fe) é um importante constituinte do organismo humano, essencial quanto a funções e desenvolvimento. O défice ou carência de Fe, representa a carência nutricional mais frequente no mundo e a principal causa de anemia.

As crianças pequenas e os jovens constituem o principal grupo de risco, o que é explicável pelo rápido crescimento e consequente consumo do referido micronutriente em tal contexto.

Na actualidade consideram-se as seguintes definições:

Anemia: concentração de hemoglobina ([Hb]) dois desvios-padrão (2DP) abaixo do valor de referência para a idade e género;

Défice (ou carência) de ferro, sideropenia ou ferropenia (Fp): teor de Fe corporal insuficiente para manter as funções fisiológicas; tal pode resultar, quer do insuficiente suprimento e/ou absorção de Fe, quer do excessivo consumo metabólico;

Anemia ferropénica (AF): anemia secundária ao défice mantido de Fe.

Em 2010 a prevalência mundial estimada de anemia era de 32,9% (mais de 2,2 mil milhões de pessoas afectadas), sendo a anemia ferropénica (AF) a causa mais comum. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que entre 1993 e 2005 a prevalência de anemia era 24,8% na população global, com as seguintes correspondências: – 47,4% dos casos em crianças até aos 5 anos; – 30,2% em mulheres e 47,4% na gravidez. Entre 2005 e 2011 estes valores diminuíram 4-5% nas crianças até aos 5 anos. Nos EUA a AF atinge 4,5-18% da população; na Ásia Central ~ 64,7% e, no sul da Ásia ~ 54,8%.

A elevada frequência da ferropenia como causa da anemia tem levado a que alguns autores usem o termo “anemia” como sinónimo de ferropenia; outros consideram que a nível mundial se poderá considerar que 50% dos casos de anemia são causados por ferropenia.

Importância do problema

Durante os primeiros 15 anos de vida é necessária a aquisição diária de 1 mg de ferro elementar (o equivalente ao existente em 1 mL de eritrócitos) para suprir as necessidades inerentes ao crescimento e compensar as perdas decorrentes da esfoliação mucocutânea. No intuito de manter um balanço positivo, e uma vez que a taxa de absorção é de apenas 10%, o regime alimentar diário deverá conter aproximadamente 10 mg deste elemento.

Múltiplos estudos demonstraram uma diversidade de consequências funcionais decorrentes da carência de Fe no organismo, citando-se como principais as seguintes: hipodesenvolvimento cognitivo, dificuldades na aprendizagem e na aquisição de competências psicomotoras e sensoriais, diminuição da força muscular, compromisso do processo de regulação térmica, diversos tipos e graus de imunodeficiência com repercussão nos macrófagos, na fagocitose, nas células T, nas interleucinas, e na virulência de agentes patogénicos intracelulares.

Metabolismo do Ferro

Património de ferro

O Fe está presente em todas as células humanas, ligado a proteínas; salienta-se que no estado livre é tóxico.

O organismo de um feto de 1 kg de peso contém cerca de 64 mg de Fe; um recém-nascido com peso de 3 kg contém aproximadamente cerca de 75 mg/kg deste mineral (o património mais elevado da vida), e o de um adulto contém cerca de 3.000-5.000 mg.

Esquematicamente, a distribuição de Fe total no organismo processa-se do seguinte modo: maioria, existente na hemoglobina (70 a 90%), cerca de 5% na mioglobina, e cerca de 15% sob a forma de ferritina (proteína que contém Fe) como depósitos ou reservas, designadamente no baço, fígado e medula óssea.

Salienta-se o papel doutra proteína (beta-2 globulina) chamada transferrina (ou siderofilina) que, existindo em fraca quantidade no plasma sanguíneo, tem a capacidade de fixar reversivelmente o Fe e o transportar até à medula óssea. A sua capacidade normal de fixação é ~350 mg de Fe/100 mL de soro; tal capacidade varia em função de determinados estados patológicos.

Uma pequena proporção (cerca de 0,1%) faz parte de cofactores de múltiplas enzimas, heme e não heme, nomeadamente, oxidases citocrómicas, catalases, redutases de ribonucleotídeos e peroxidases.

Esta distribuição, assim como as necessidades em Fe varia ao longo da idade pediátrica, isto é, durante o período de crescimento e desenvolvimento.

Em crianças com < 1 ano, estimam-se em 6-10 mg/dia; entre 1 e 11 anos, em 10 mg/dia e, em adolescentes, 12-15 mg/dia.

Dado que o património em Fe depende do peso corporal, nos RN de baixo peso, com reservas mais escassas em função do peso e, maiores necessidades pelas particularidades do crescimento, importa assegurar um suprimento de 2-4 mg/kg/dia no primeiro mês.

Recorde-se que o composto heme é sintetizado nas mitocôndrias dos eritroblastos a partir de uma sequência de precursores; o último destes precursores é a protoporfirina III à qual se pode ligar o Fe, constituindo-se, assim, o referido heme.

Graças à capacidade de coexistir em duas formas estáveis de oxidação (Fe2+ ou ferroso; Fe3+ ou férrico), desempenha inúmeras funções vitais como catalizador redox, dando e recebendo electrões de forma reversível.

Quando diluído em soluções aquosas, o ião ferroso é rapidamente oxidado em sais férricos insolúveis a pH fisiológico e, por conseguinte, sem utilidade biológica. Para que a solubilidade possa ser mantida, é necessária a sua ligação a agentes proteicos, quelantes cruciais para o ciclo metabólico.

Absorção

O ferro é absorvido principalmente no duodeno e jejuno proximal, e tanto mais quanto maior a carência no organismo. Contrariamente, quando as reservas estão repletas, o ferro existente nas células da mucosa é devolvido ao lume através da descamação. Nenhum órgão tem como função a excreção deste elemento, sendo a absorção a única forma fisiológica de ajustar a homeostase.

Admite-se que a absorção seja comparticipada, pelo menos, por cinco reguladores fisiológicos:

  1. O conteúdo em Fe no regime alimentar; após uma refeição rica em ferro, a acumulação intracelular diminui a taxa de absorção subsequente, independentemente da existência de deficiência sistémica;
  2. A depleção dos depósitos; quando tal se verifica, existe capacidade de aumentar 2 a 3 vezes a taxa de absorção; admite-se, efectivamente, que a saturação da transferrina interfira com os locais de ligação do ferro nos enterócitos duodenais em desenvolvimento;
  3. A eritropoiese; nas situações em que esta é ineficaz (por exemplo, na talassémia ou na anemia sideroblástica), e através de mecanismo ainda não esclarecido, a absorção é altamente incrementada, mesmo na presença de excesso de ferro no organismo; no entanto, tal não acontece nos casos de destruição periférica, como é o caso das anemias autoimune ou falciforme.
  4. e 5. A hipóxia e a inflamação; a travessia do Fe pela barreira celular do tubo digestivo depende ainda da integridade da mucosa do intestino delgado superior relacionável com hipóxia e inflamação.

O processo de regulação antes referido [de 2 a 5] parece fazer-se através duma molécula efectora (péptido/hormona segregada pelo fígado) chamada hepcidina ou regulador negativo da absorção de Fe e da libertação de Fe dos macrófagos, sendo a expressão desta dependente do estado de repleção ou esgotamento dos depósitos de Fe: repleção ou sobrecarga das reservas em Fe resultam em aumento da expressão da hepcidina; em situações de carência ocorre o contrário.

Por sua vez, o aumento da expressão da hepcidina resulta em sequestração celular do Fe, e em diminuição do Fe sérico. Na prática, a elevação do nível sérico da hepcidina traduz-se em diminuição do Fe sérico. Os níveis de hepcidina:

  1. Aumentam também em resposta à inflamação e à actividade física;
  2. Diminuem em situações de eritropoiese intensa, hipóxia e de alterações hormonais (testosterona, estrogénios e factores de crescimento).

No que respeita ao mecanismo de absorção, existem dois tipos de ferro, heme e não-heme, os quais utilizam receptores e vias de passagem distintos (Ferro ligado ou não ao composto heme).

O Fe heme, presente na carne e no peixe, constitui 5 a 10% do ferro ingerido diariamente nos países desenvolvidos. De elevada biodisponibilidade (2 a 3 vezes superior à do não-heme), é absorvido independentemente do pH local e do ciclo da transferrina (ver adiante), sendo pouco influenciado pelas reservas reticuloendoteliais. O cálcio constitui o único factor com interferência negativa. Depois de retirado do complexo pela heme-oxigenase, o ferro elementar é libertado no plasma.

O Fe não-heme está presente nos alimentos de origem vegetal, nos ovos e nos suplementos medicinais, sendo que, na passagem pelo estômago, a diminuição do pH reduz a forma férrica a ferrosa, mais eficazmente absorvida. Assim, compostos como o ácido ascórbico, o ácido cítrico e os aminoácidos da alimentação facilitam a absorção.

Inversamente, os fitatos (cereais integrais e leguminosas), os fosfatos (leite de vaca em natureza), os oxalatos (espinafres e beterraba), os taninos (chá, café e chocolate) e os polifenóis (certos legumes) dificultam a absorção; igualmente, o cálcio, o cobalto, o chumbo, o manganês, o estrôncio e o zinco, catiões bivalentes próximos do ferro, ao competirem com este pelos mesmos receptores celulares, limitam a sua absorção.

Distribuição

Aproximadamente 0,1% do ferro corporal total circula no plasma ligado à transferrina. Reitera-se que esta proteína tem uma capacidade normal de fixação de 350 mg de Fe por 100 mL de soro, variando tal capacidade em função de determinados estados patológicos (capacidade aumentada nas anemias ferropénicas, capacidade normal ou reduzida nas anemias associadas a processos inflamatórios). (ver adiante)

A transferrina aumenta a solubilidade do Fe, previne a formação de radicais livres nefastos e amplifica o suprimento celular do mesmo Fe. Todavia, a sua grande afinidade para o Fe diminui a eficácia dos quelantes (desferroxamina) utilizados em situações de toxicidade.

Transporte e armazenamento

Os complexos Fe-transferrina são captados por receptores de transferrina localizados nas membranas celulares de todas as células nucleadas. Na fase seguinte, os referidos complexos Fe-transferrina ligam-se a organelos celulares (ligandos, com porção intracelular e porção extracelular, mais abundantes na medula óssea, fígado e baço, e tanto mais quanto maior a carência daquele).

Ocorrida a ligação, inicia-se um processo de invaginação com formação de vesículas de endocitose para incorporação do Fe na célula. Quando o pH é inferior a 6, a transferrina desliga-se do Fe, fixando-se avidamente ao respectivo receptor antes de retornar à circulação.

Refira-se que também a porção extracelular destes ligandos é libertada no plasma pelos reticulócitos em maturação, pelo que o seu doseamento sérico pode ser correlacionado com a taxa de eritropoiese.

Cerca de 70 a 90% do metal contido nos endossomas corresponde a uma forma activa (Fe2+), maioritariamente para ser incorporado na hemoglobina. O restante é armazenado de modo inactivo (Fe3+) no sistema reticuloendotelial [células de Kupfer do fígado e macrófagos da medula óssea], incorporado em proteínas – a ferritina (lábil e rapidamente acessível) ou a hemossiderina (estável e insolúvel).

Também de acordo com o que foi referido antes, a ferritina reflecte as reservas de Fe no fígado, baço e medula óssea; apenas é identificável por microscópio electrónico. [1 ng/mL de ferritina <> 8 mg de Fe das reservas ou depósitos]. A hemossiderina pode ser identificada por microscopia óptica pela coloração dos eritrócitos (siderócitos) do esfregaço obtido por aspiração da medula com “azul da Prússia” (reacção de Perls, detectando grânulos na periferia dos referidos siderócitos).

Reciclagem

Por último, os eritrócitos senescentes sofrem um processo de destruição (lise) plasmática ou de retenção nos macrófagos esplénicos (hemocaterese).

A hemoglobina e grupos heme livres ligam-se, respectivamente, à haptoglobina e hemopexina, sendo posteriormente transportados até ao fígado.

Após processamento, o complexo [Fe2+ – transferrina] é reposto em circulação, para ulterior reutilização.

Apesar de muitos dos mecanismos ainda não estarem suficientemente esclarecidos, a captação de ferro, a produção de globina e a biossíntese do heme ocorrem, em circunstâncias fisiológicas, de maneira coordenada. Vias reguladoras subjacentes permitem aos precursores eritróides rendibilizar a formação de hemoglobina, sem que para isso sobrevenha um excesso de proteína, iões férricos livres ou compostos intermediários derivados da protoporfirina, que são tóxicos.

Fisiopatologia

Aspectos gerais

A carência em ferro no organismo processa-se em 3 fases sucessivas, de gravidade crescente:

  1. Numa fase inicial verifica-se a depleção das reservas, a qual é traduzida pela diminuição progressiva do valor da ferritina sérica e da hemossiderina nos macrófagos da medula óssea;
  2. Numa segunda fase, mais tardia e de carência mais acentuada, quando a ferritina atinge valor < 12 μg/L (ou < 12 ng/mL), ocorre a situação de défice de ferro sérico; esta fase traduz-se por diminuição do Fe sérico (quanto maior a carência em Fe, mais este é veiculado para a eritropoiese e reservas), diminuição da saturação da transferrina com aumento consequente da capacidade total de fixação do ferro aos receptores da mesma transferrina, e aumento da protoporfirina eritrocitária livre.

Refira-se, a propósito, que normalmente a taxa de transferrina alcança cerca de 0,27 g/dL, e aproximadamente 1/3 encontra-se saturada com o chamado ferro sérico (22-184 μg/dL). Costuma denominar-se transferrina não saturada, ou simplesmente transferrina, a fracção correspondente aos restantes 2/3 da proteína sérica. A máxima capacidade de transporte ou capacidade total de fixação do ferro (CTFF) corresponde, de facto, à transferrina total (soma das duas fracções).

O aumento da protoporfirina eritrocitária livre traduz acumulação no sangue de precursores do heme, o seu não aproveitamento, e diminuição ou impossibilidade de síntese de Hb.

  1. Numa terceira fase, de carência extrema de Fe, a que corresponde suprimento deste à medula óssea, mínimo ou nulo, verifica-se diminuição do VGM e do conteúdo eritrocitário em Hb (CHGM), atingindo-se o estádio caracterizado por produção de eritrócitos hipocrómicos e microcíticos, ou seja, de anemia ferropénica.

Concomitantemente, diminui também a síntese de outras metaloenzimas essenciais.

Ferro no organismo fetal

Um feto pesando cerca de 1 kg contém cerca de 64 mg de Fe, calculando-se que são incorporados nos tecidos fetais cumulativamente ao longo da gravidez, cerca de 65-75 mg/kg. Este elemento provém exclusivamente da placenta, que o remove da circulação materna independentemente da existência de défice. Necessidades crescentes promovem, não só o aumento do número de receptores de transferrina neste órgão, mas também uma maior absorção intestinal na grávida. Parece existir, assim, um sistema regulador subjacente à unidade feto-placenta-enterócitos, que favorece o ser em desenvolvimento.

Desta forma, a anemia neonatal decorrente de ferropénia materna é pouco frequente, sendo observada apenas nos raros casos de carência extrema. Contudo, estes revestem-se de marcada gravidade face à imaturidade do tracto gastrintestinal, com passagem ineficaz de nutrientes.

O recém-nascido de termo (com > 37 semanas completas) possui reservas de ferro suficientes para os primeiros 4 a 6 meses. Durante este período, em virtude do acelerado crescimento e da expansão do volume sanguíneo, a sua taxa de utilização é consideravelmente elevada, diminuindo o armazenamento para 50%.

A prematuridade, a restrição do crescimento fetal e a gemelaridade constituem situações de menor acumulação de Fe, com precária formação de depósitos ou reservas. Por outro lado, sendo a velocidade de crescimento pós-natal mais acentuada, tais reservas esgotam-se, mais rapidamente, em cerca 2 a 3 meses.

A anemia observada nos primeiros 60 a 90 dias de uma criança de termo (ou nos primeiros 30 a 60 dias de uma pré-termo) decorre da destruição eritrocitária fisiológica e não da deficiência de ferro. Pelo contrário, este é armazenado e gradualmente reutilizado.

Etiopatogénese

Nos países menos desenvolvidos a insuficiência deste mineral é atribuída maioritariamente a carências nutricionais, agravadas por perdas sanguíneas crónicas motivadas por infecções parasitárias gastrintestinais e pela malária. Nas nações industrializadas um regime alimentar pobre em ferro constitui o factor etiológico principal.

No Quadro 1 encontram-se enumerados os principais factores etiopatogénicos de anemia ferropénica em idade pediátrica; dos mesmos se podem deduzir os factores de risco de carência em Fe.

QUADRO 1 – Causa de anemia ferropénica em idade pediátrica

1. Ingestão inadequada Fe (mais frequente)

      • AM exclusivo após os 6 meses de idade
      • Fórmula para lactentes não suplementado com Fe (< 7-12 mg Fe/L)
      • Leite de vaca antes dos 12 meses de idade
      • Consumo de produtos lácteos superior a 0,5 L por dia após o 1º ano de vida
      • Hábitos alimentares com défice de suprimento e Fe
      • Elevado consumo de chás com ↓ proteínas animais
      • Dieta vegetariana estrita

2. Necessidades fisiológicas

      • Prematuridade/Baixo peso
      • Hipoxémia crónica

3. Alteração do transporte plasmático do Fe (raramente)

      • Atransferrinémia congénita
      • Defeitos da transferrina
      • Ac. anti-receptores transferrina

4. Perdas hemáticas/Má-absorção

Perinatais
– Transfusão feto-fetal e feto-materna
– Flebotomias múltiplas
Gastrintestinais
– Parasitose intestinal (Giardia)
– Doença celíaca/DII
– Alergia às proteínas do leite de vaca
– Infecção por Helicobacter pylori/Úlcera péptica
– Divertículo de Meckel
– Esofagite de refluxo
Ginecológicas (adolescentes)
Urinárias
– Hemossiderinúria (hemólise intravascular)
Pulmonares
– Hemossiderose pulmonar idiopática
Outras
– Trauma grave/cirurgias múltiplas
– Infecção/inflamação crónica
– Fármacos (↓ absorção Fe): IBP

Ac. – anticorpos; IBP – inibidores da bomba de protões

Regime alimentar

Em geral, a anemia ferropénica é mais frequente entre os 6 meses e os 2 a 3 anos de idade, essencialmente por motivos relacionados com o padrão alimentar. Apesar de o leite humano e o leite de vaca terem a mesma concentração deste elemento (0,5 mg/L), a sua biodisponibilidade é de 50% e 10%, respectivamente. Os motivos desta diferença são mal compreendidos, podendo ser parcialmente explicados pelo facto de o primeiro conter menos cálcio e mais ácido ascórbico e lactoferrina.

As fórmulas enriquecidas possuem em média 10 a 13 mg/L, mas a sua taxa de absorção é inferior a 5%. Nos primeiros 4 meses a alimentação com leite materno e fórmulas de fabrico industrial preenchem os requisitos de ferro necessários.

Contudo, crianças que permaneçam em aleitamento exclusivo após os 6 meses de vida apresentam risco crescente de depleção. Situação semelhante ocorre quando o leite de vaca é introduzido antes de a criança completar o ano de idade; este, para além de fornecer uma quantidade insuficiente de ferro, pode provocar perdas hemáticas gastrentéricas, agravando ainda mais o estado deficitário.

Na idade pré-escolar ocorre uma desaceleração do crescimento, e com ela uma diminuição das necessidades de ferro para cerca de metade. A adolescência constitui outra das fases de aumento da susceptibilidade, não só pelo incremento da massa corporal, mas também pelas características restritivas de comportamento alimentar inerentes a tal período. As suas consequências são ainda exacerbadas por possíveis perdas urinárias e gastrintestinais decorrentes do exercício de competição e, após a menarca, pelas perdas periódicas relacionadas com a menstruação (depleção mensal ~ 20 mg).

 Hemorragia e má-absorção

O aparelho digestivo é o local hemorrágico mais frequente, sendo a presença parasitária um dos principais motivos de consideráveis perdas sanguíneas microscópicas assintomáticas. As infecções por Necator americanus e Ancylostoma duodenale são endémicas em várias regiões tropicais e subtropicais. Trichuris trichiura é também um agente a ter em consideração nestas áreas geográficas, especialmente dos 2 aos 10 anos de idade.

Entre nós, é frequente a infestação por Giardia lamblia. A enteropatia induzida pelo leite de vaca e as lesões estruturais locais (nomeadamente as anomalias artério-venosas, o divertículo de Meckel e a úlcera péptica) são outras causas importantes de perdas de sangue.

Entre as causas de FP e AF por má-absorção, destacam-se a doença celíaca (causa mais frequente) e a colonização gástrica por Helicobacter pylori como as mais frequentes; mais raramente, a ressecção intestinal extensa, a gastrite atrófica e o hipercrescimento bacteriano. A pica, comportamento compulsivo de ingestão de substâncias sem valor nutricional (papel, argila, terra, vidro ou areia) e a pagofagia ou necessidade compulsiva de comer gelo, podem levar a má-absorção.

Alguns fármacos podem originar AF por reduzirem a absorção do metal (ex.: inibidores da bomba de protões/IBP, antagonistas dos receptores H2).

A AF é frequentemente reportada em doenças crónicas, incluindo doença inflamatória do intestino (DII), insuficiência cardíaca, doença renal crónica, neoplasias, síndromas autoinflamatórias e obesidade. A presença de parâmetros inflamatórios persistentemente elevados altera a homeostasia do Fe.

A anemia ferropénica provocada por hematúria renal é infrequente, sendo a doença de Berger e a síndroma de Goodpasture as mais bem caracterizadas. A última, juntamente com a hemossiderose pulmonar, provoca ainda perdas respiratórias.

Doenças hereditárias do metabolismo

A atransferrinémia é uma deficiência de transferrina transmitida de modo autossómico recessivo, na qual o ferro absorvido pelos enterócitos circula no plasma de forma livre ou precariamente ligado a outras proteínas séricas; tal leva à deposição do referido elemento noutros tecidos, nomeadamente nos hepatócitos.

A síntese de moléculas de transferrina de estrutura anómala e, por isso, disfuncionais, tem consequências metabólicas sobreponíveis.

Níveis muito elevados de hepcidina (híper-hepcidinémia) podem relacionar-se com fenómeno paraneoplásico ou doença hereditária do metabolismo.

A European Network of Rare Congenital Anaemias – ENERCA (Rede Europeia de Anemias Congénitas Raras) é composta por mais de 60 subtipos de anemias raras, muitas causadas por mutações genéticas – envolvimento de genes que controlam a absorção duodenal de Fe (ex. SLC11A2), a sua homeostasia (ex. TMPRSS6) ou a sua absorção e utilização pelas células eritróides. Um exemplo é a anemia ferropénica refractária ao Fe (iron refractory iron deficiency anemia – IRIDA), com uma prevalência inferior a 1 por milhão de doentes, que é causada por um defeito no gene TMPRSS6 codificador da matriptase-2, uma proteína essencial para a supressão da síntese de hepcidina. Ao estar mutada, condiciona uma concentração de hepcidina sérica persistentemente elevada com consequente ferropenia. A administração de Fe oral é ineficaz e a resposta ao Fe parentérico (EV) é parcial e mais lenta que nos doentes com AF adquirida. 

Manifestações clínicas

Os sinais e sintomas de sideropénia variam com a gravidade do défice, sendo habitualmente inespecíficos e inexistentes nos casos ligeiros. Em situações de carência moderada a palidez mucocutânea é o primeiro sinal, podendo ainda existir irritabilidade, astenia, anorexia e náuseas. Nos casos graves surge progressivamente dispneia, diaforese, taquicárdia, palpitações, sopro sistólico de ejecção e cardiomegália.

A anemia pode ainda provocar manifestações clínicas gerais associadas à carência de ferro, entre elas as cefaleias, as parestesias, a estomatite angular, a gastrite atrófica e a cor azulada das escleróticas (fruto do espessamento provocado por alterações na síntese do colagénio). A síndroma de Plummer-Vinson (glossite, membrana esofágica pós-cricoideia e disfagia), a atrofia cutânea e a coiloníquia são exemplos de complicações raras.

Existem numerosas situações comprovadamente associadas à sideropénia, especialmente se esta ocorrer nos dois primeiros anos de vida.

Primeiramente, o atraso de desenvolvimento é devido, não só a um défice encefálico de ferro, mas também à redução de neurotransmissores e a efeitos sistémicos da hipóxia. Em segundo lugar e paralelamente, ocorre uma redução da velocidade de crescimento.

Noutros casos surge perturbação do foro alimentar, sob a forma de geofagia ou pica. Esta, aliada à estimulação da absorção, pode aumentar a plumbémia, pela eventual ingestão de substâncias com chumbo, exacerbando ainda mais a clínica neurológica.

Por último, o défice de ferro afecta de modo adverso a função imunitária ao provocar uma diminuição da mieloperoxidase e do número de linfócitos T circulantes, prejudicando a resposta mitogénica e a actividade das células NK.

Na idade pré-escolar e escolar, a carência em ferro pode ter repercussão negativa no desenvolvimento cognitivo e, na adolescência, igualmente no desempenho físico e desportivo.

Estudos recentes demonstraram associação entre índice de massa corporal elevado e carência em Fe entre 1 e 3 anos de idade.

Diagnóstico laboratorial

Considerada a definição de anemia atrás explanada, cabe referir que o exame-padrão para a identificação da etiologia de carência em ferro é a biópsia medular permitindo identificar ausência de coloração dos eritrócitos pelo azul da Prússia.

O exame da medula óssea evidencia hipercelularidade, com hiperplasia eritróide. Porém, pelo seu carácter invasivo não pode ser empregue por rotina, havendo a necessidade de recorrer a exames indirectos. Desta forma, são utilizados vários parâmetros hematológicos e bioquímicos. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Marcadores hematológicos e bioquímicos de sideropénia

 NormalDepleção das reservasDeficiência de ferro plasmáticoAnemia ferropénica
Hb (g/dL)≥ 11≥ 11 ≥ 11 < 11*
VGM (fL)70-10070-100 70-100 < 75*
RDW (%)< 15< 15 < 15 ≥ 15
CHr (pg)≥ 29≥ 29 < 29< 29
Rt (%)1-51-5 1-5 < 1
Ferritina (μg/L)100±60< 20≤10< 10
Ferro sérico (μg/dL)115±50< 115 < 30< 30
CTFF (μg/dL)330±30360-390 390-410N/↑> 410
Tsat (%)35±15< 30 < 20< 10i
sTR (nmol/L)< 35≥ 35≥35≥35
PEL(μg/dL)< 40< 40 40-70> 70
* Valores para idades compreendidas entre os 6 e os 24 meses
Adaptado: Wu AC, 2002

O hemograma evidenciará diminuição do número de eritrócitos assim como do valor de Hb abaixo do valor esperado para cada faixa etária, de acordo com os valores especificados anteriormente.

O volume globular médio eritrocitário (VGM) e a concentração de hemoglobina globular média (CHGM) encontram-se diminuídos (microcitose ou VGM < 75 fl) e hipocromia ou CHGM < 25%), enquanto o índice de dispersão globular) (RDW) está aumentado (anisocitose ou RDW > 14%).

O número relativo de reticulócitos é normal ou discretamente elevado, mas a sua contagem absoluta apresenta-se reduzida, indicando resposta insuficiente à anemia. A diminuição da concentração de hemoglobina reticulocitária (CHr) (< 29 pg) constitui um indicador precoce de deficiência de ferro, superando a Hb, VGM, RDW, o ferro sérico e a saturação de transferrina.

O número de leucócitos habitualmente é normal, sendo, por outro lado, frequente a trombocitose (valor de plaquetas entre 500.000-700.000/μL) secundária à estimulação megacariocítica pela eritropoietina.

Todavia, nos casos muito graves pode existir trombocitopénia.

A ferritina é o indicador mais precoce de carência de ferro, reflectindo os depósitos do mesmo no fígado, baço e medula óssea. Em geral valores < 10 μg/L (ou < 10 ng/mL) acima dos 5 anos estão associados à referida carência, devendo ter-se em consideração a ampla variabilidade fisiológica interindivíduos e a circunstância de o respectivo valor sérico estar aumentado em determinadas situações tais como processos inflamatórios, doença hepática, infecção, neoplasia, pois se trata de um reagente da fase aguda.

Valores baixos de ferritina também poderão verificar-se em casos de défice de vitamina C e de hipotiroidismo.

O nível do ferro sérico não é suficientemente fidedigno para o diagnóstico, pois somente se verificam valores baixos em estádios avançados de carência, após esgotamento dos depósitos; por outro lado, sofre uma variação diurna cíclica (valores 30% mais elevados de manhã em relação à tarde) e a influência de inúmeros factores (regime alimentar, inflamação, infecção); assim o seu valor poderá não traduzir com fidelidade o estádio de armazenamento.

Na prática, e tendo em conta tais limitações que deverão ser ponderados caso a caso, considera-se carência se o ferro sérico for < 30 μg/dL.

A capacidade total de fixação do ferro (CTFF) mede a disponibilidade dos locais de captação deste elemento existentes nas moléculas circulantes de transferrina sendo, por conseguinte, um valor indirecto dos níveis séricos da proteína de transporte (transferrina).

O Quadro 2 elucida sobre os respectivos valores de referência, concluindo-se que os mesmos vão aumentando à medida que a carência se vai acentuando e se considera anemia ferropénica se os respectivos valores forem > 410 μg/dL. (Nas situações inflamatórias, no entanto, a CTFF diminui atingindo valores < 200 μg/dL).

Por outro lado, (e de acordo com o referido na Fisiopatologia) a saturação da transferrina (TSAT ou razão – em % – entre a concentração de ferro sérico e a CTFF), indica a proporção de locais de ligação do ferro à transferrina. Consultando os valores de referência do Quadro 2, (valor normal de 35±15%), salienta-se que em situação já de depleção de depósitos ou reservas, a saturação ainda é muito próxima do normal, o que constitui uma limitação. Quando se atingem valores mais baixos (< 10%) atingiu-se já a fase de anemia.

Com a deficiência tecidual de ferro ocorre um aumento paralelo na quantidade de receptores de transferrina. Assim, a medição da porção sérica destes ligandos (sTR) em nmol/L é útil, não só como marcador precoce de deficiência em ferro, mas também na distinção entre esta situação e a anemia das doenças com hipoproliferação eritrocitária medular.

Sendo o valor normal de sTR < 35 nmol/L, o critério para o diagnóstico, quer de estado de depleção de reservas, quer de carência de ferro sérico, quer de anemia ferropénica, é a verificação de sTR = > 35 nmol/L. Salienta-se que nos estados de hipoproliferação eritrocitária medular o valor de sTR é inferior a 35 nmol/L.

Nas situações de sideropénia há quantidade insuficiente de ferro para se combinar com a protoporfirina e formar o grupo heme da hemoglobina; consequentemente, verifica-se acumulação de protoporfirina nos eritrócitos (protoporfirina eritrocitária livre ou PEL). Valores superiores a 70 μg/dL são considerados indicativos de carência em ferro. De acordo com o Quadro 2 pode verificar-se que o valor normal é < 40 μg/dL, e que este valor se mantém ainda na fase de depleção de reservas.

A protoporfirina eritrocitária está também elevada nas situações de carência de vitamina C, infecção/inflamação e intoxicação crónica pelo chumbo.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial de anemia ferropénica inclui situações hematológicas caracterizadas por microcitose e hipocromia. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial de anemia ferropénica

    • Síndromas talassémicas
    • Doenças Crónicas
      • Infecciosas
      • Neoplásicas
      • Inflamatórias
      • Renais
    • Intoxicação por chumbo
    • Deficiência de vitamina B6
    • Deficiência de cobre
    • Anemia sideroblástica (alguns casos)

Talassémia

Esta situação deve ser considerada especialmente em crianças provenientes de regiões endémicas, nomeadamente Mediterrâneo, África e Sudeste Asiático.

Os exames laboratoriais evidenciam incremento no número de eritrócitos, valores normais ou aumentados do ferro e ferritina séricos, e CTFF dentro dos parâmetros fisiológicos. A proporção de células hipocrómicas é inferior à de microcíticas e o RDW habitualmente está diminuído. Trata-se de microcitose resistente ao tratamento com ferro.

No caso do traço β-talassémico os estudos electroforéticos evidenciam um pico de HbA2.

Doença crónica

A anemia no contexto de doença crónica (também chamada de inflamação crónica) é classicamente normocítica/normocrómica. No entanto, cerca de 20 a 30% evolui para microcítica/hipocrómica devido ao encurtamento da sobrevida eritrocitária, à dificuldade na mobilização do ferro existente nos macrófagos (com consequente prejuízo na sua reutilização) e à diminuição da absorção deste nutriente.

Em tais circunstâncias RDW e sTR são normais, a CTFF diminui, e a ferritina sérica aumenta. As doenças crónicas sem componente inflamatório não produzem geralmente este tipo de anemia.

Prevenção e tratamento    

Generalidades

A prevenção e o tratamento da anemia ferropénica envolve dois conceitos com áreas de sobreposição:

  • A prevenção da ferropenia (Fp) em crianças e adultos saudáveis (dirigida às populações de maior risco); e
  • A suplementação terapêutica nos doentes com AF comprovada.

Trata-se, pois, de duas abordagens distintas, com o mesmo objectivo a longo prazo – evitar a Fp e a AF.

No âmbito da prevenção, grupos de investigação internacional recomendam o consumo de alimentos ricos em Fe tais como produtos animais – carne, vísceras (de bovinos, aves, peixes) – e não animais – legumes e vegetais de folha verde.

Recomenda também:

  • A ingestão de produtos ricos em ácido ascórbico por aumentarem a biodisponibilidade do Fe; e
  • A evicção de determinados alimentos que inibem a sua absorção, por ex. cálcio, fitatos (cereais), taninos (chá e café) – às principais refeições;
  • A administração de probióticos com o objectivo de aumentar a absorção intestinal de Fe.

Apesar da baixa sensibilidade e baixa especificidade, o inquérito nutricional pode ter utilidade para identificar situações de carência, ou de alto risco de FP e ou AF: < 5 refeições semanais de carne, cereais, legumes e fruta; > 500 mL/dia de leite de vaca; ingestão diária de snacks, doces e refrigerantes, etc..

A Academia Americana de Pediatria recomenda o rastreio universal (Hb e hematócrito):

  • Entre os 9 e os 12 meses de vida, e novamente 6 meses mais tarde, em comunidades com elevada prevalência de anemia ferropénica;
  • Na restante população, tal rastreio deverá ser realizado nas mesmas idades, mas dirigido aos grupos de risco (recém-nascidos com antecedentes de prematuridade, restrição de crescimento fetal e/ou baixo peso de nascimento, alimentados com fórmulas não enriquecidas, crianças com mais de 6 meses alimentadas com leite materno e regime alimentar pobre em ferro, crianças alimentadas com leite de vaca completo antes dos 12 meses ou consumindo-o em quantidades diárias superiores a 700 mL);
  • Depois dos 2 anos, a realização de exames complementares justifica-se apenas nos casos de anemia ferropénica prévia, regime alimentar pobre em ferro e em situações especiais (infecção ou problema inflamatório crónico, hemorragias e administração de fármacos que diminuem a absorção do ferro, por ex.: fitatos, oxalatos, fosfatos, carbonatos, fibras, taninos, etc.).

Outras medidas úteis têm sido a introdução de fontes adicionais de Fe nos lactentes exclusivamente amamentados após os primeiros 6 meses de vida e a desparasitação de indivíduos de determinadas populações de risco;

  • Todos os adolescentes devem ser avaliados, aconselhando-se rastreio anual nas jovens menstruadas;
  • Nos lactentes com antecedentes de prematuridade, e nos de termo alimentados com leite materno exclusivamente, deve iniciar-se suplemento de ferro oral, respectivamente aos 1-2 e 4 meses até que a alimentação diversificada proporcione suprimento em Fe, designadamente através de cereais enriquecidos. Nos primeiros, a dose de Fe elementar depende do peso de nascimento, variando entre 2-4 mg/kg/dia (máximo de 15 mg/dia); nos últimos a dose é 1 mg/kg/dia;
  • Nas crianças alimentadas com fórmulas até aos 12 meses, as mesmas devem ser suplementadas em ferro (10-12 mg de Fe elementar/L).

Tratamento com ferro oral

No que se refere à suplementação com Fe, as formulações orais constituem uma forma prática de tratar a maioria dos casos de Fp e AF. A dose terapêutica de Fe elementar aconselhada é de 5-6 mg/kg/dia (idade pediátrica) até um máximo de 150-200 mg/dia (idade adulta), dividida em 1-3 administrações diárias.

Deve ter-se em conta que a absorção duodenal de Fe elementar tem limites. Em situações normais é de cerca de 1 mg/dia (10% do Fe não-heme ingerido) aumentando até um máximo de 25 mg/dia na presença de Fp.

Existem diferentes formulações de Fe oral: hidróxido férrico-polimaltose, sais ferrosos (sulfato ferroso, gluconato ferroso), proteinossuccinilato de Fe ou pirofosfato férrico sendo os primeiros dois os mais frequentemente utilizados. (Quadro 4)

O hidróxido férrico-polimaltose é um complexo macromolecular hidrossolúvel de ferro e polimaltose, não ionizado e estável em meio ácido. Possui boa absorção intestinal (duodeno e jejuno) e não sofre interferência com a dieta, podendo ser administrado numa toma diária, em jejum ou às refeições. Tem menos efeitos secundários gastrintestinais que os sais ferrosos, e menos interacções medicamentosas.

Dos sais ferrosos (de mais baixo custo e maior biodisponibilidade), o sulfato é o mais frequentemente utilizado. Dado que os alimentos interferem com a sua absorção, aqueles compostos devem ser administrados nos intervalos das refeições. Embora o ácido ascórbico aumente a biodisponibilidade do Fe, o aumento do [Fe] ferroso no sistema gastrintestinal poderá originar ou agravar os efeitos adversos – desconforto gástrico, náuseas, diarreia e obstipação.

De salientar que o escurecimento das fezes, ocorrendo com frequência, não contraindica manter a terapêutica. Quando os efeitos adversos do Fe são difíceis de tolerar, o mesmo pode passar a ser administrado às refeições, embora tal estratégia conduza a redução da sua absorção em 40%. É possível também reduzir a dose e aumentar a sua frequência ou substituir o sulfato ferroso por outras formulações (por ex. hidróxido férrico-polimaltose).

A resposta à suplementação com Fe oral é habitualmente rápida. Aos quatro dias de terapêutica verifica-se um aumento do valor dos reticulócitos, atingindo o seu valor máximo entre o 7º e 10º dia.

A partir da segunda semana de terapêutica ocorre uma subida da [Hb], considerando-se resposta adequada a subida > 1-2 g/dL de Hb após 4 semanas de terapêutica.

Se houver boa resposta, o Fe oral deve ser mantido durante 3 meses após a correcção da anemia e da Fp de forma a garantir o preenchimento das reservas de Fe (ferritina sérica utilizada como marcador).

Tratamento com ferro por via parentérica (EV)

Se não se verificar resposta ao Fe oral, importa admitir essencialmente três hipóteses:

  • Questionar a adesão à terapêutica;
  • Reforçar a correcção dos hábitos alimentares; e, eventualmente,
  • Repensar o diagnóstico.

Se tais circunstâncias forem excluídas, importa admitir a possibilidade de síndromas de má-absorção (por ex.: doença celíaca, ressecção intestinal ou infecção por Helicobacter pylori).

A administração de Fe endovenoso (Fe EV) está indicada em situações muito específicas:

  • Síndromas de má-absorção congénitas ou adquiridas;
  • Perdas hemáticas excessivas não compensadas;
  • Patologia sistémica (inflamatória) crónica;
  • Ausência de resposta à terapêutica oral ou;
  • Incapacidade de tolerância dos efeitos adversos.

Entre as formulações de Fe EV destaca-se:

  • O óxido férrico com sacarose (sacarosado); e
  • A carboximaltose férrica (composto aprovado somente para pacientes com > 14 anos).

A dose pode ser calculada através da seguinte fórmula:
Ferro (mg) a administrar = Défice de Hb (g/dL) x Peso corporal (Kg) x 0,22
Nota: não ultrapassar 7 mg/Kg em cada administração.

Ciclo do ferro administrado

O composto de ferro que se administra, processado pelo sSRE , é depois libertado e armazenado sob a forma de ferritina, ou exportado de volta para o plasma, através da ferroportina. A cinética da libertação do Fe depende da formulação.

Em determinadas situações, tais como, pós-parto imediato, doença inflamatória do intestino e doença renal crónica, o Fe administrado por via endovenosa preenche as reservas de forma mais eficaz do que o Fe administrado por via oral.

Seguimento

Na sequência do tratamento da AF, e atingidos os valores de Hb dentro dos limites desejados, está indicado o seguimento dos doentes, com realce para a realização de exames complementares, tais como hemograma e restantes parâmetros anteriormente mencionados. A British Society of Gastroenterology recomenda avaliações mensais durante os primeiros 3 meses e, depois, trimestrais durante um ano. Se os sintomas persistirem, deverá ser repetido o hemograma de 3-3 meses durante mais um ano, continuando-se, a par, a administração de suplementos de Fe. Se os resultados analíticos não se mantiverem estáveis, a situação clínica implicará ulteriores estudos.

Apesar de ainda não estar disponível o doseamento da hepcidina, a mesma poderá vir a ser útil na distinção entre anemia ferropénica e anemia da doença crónica. Para além de dado laboratorial suceptível de avaliação, poderá vir a ser também um alvo terapêutico: com efeito, a sua inactivação por via medicamentosa, poderá prevenir a retenção de ferro no SRE.

QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial de anemia ferropénica

Substância activaMarca©FormulaçõesSal de ferro (mg/unidade)Ferro elementar
Hidróxido férrico polimaltose

Maltofer

Ferrum Hausmann

Ferrum Hausmann

Ampolas 5 mL

Comprimidos

Solução oral

357 mg/ampola

357 mg/comp.

178,6 mg/mL
(1 mL = 18 gotas)

100 mg/ampola 5 mL

100 mg/comp.

50 mg/mL
(1 mL = 18 gotas)

Proteinossuccinilato de ferro

Legofer

Fervit

Fetrival

Ampolas 15 mL

Ampolas 15 mL

Ampolas 15 mL

800 mg/ampola

800 mg/ampola

800 mg/ampola

40 mg/ampola

40 mg/ampola

40 mg/ampola

Sulfato ferroso

Ferro Gradumet

Ferro Tardyferon

Comprimidos de libertação prolongada

Comprimidos de libertação prolongada

329,7 mg/comp.

256,3 mg/comp.

105 mg/comp.

80 mg/comp.

Gluconato ferrosoHemototalAmpolas 10 mL300 mg/ampola 10 mL35 mg/ampola 10 mL
Pirofosfato férrico

Fisiogen Ferro Forte

Fisiogen Ferro

Cápsulas

Cápsulas

30 mg/cápsula

14 mg/cápsula

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ANEMIAS – GENERALIDADES

Definição

A anemia (não uma doença em si, mas manifestação de vários processos mórbidos) define-se (sob o ponto de vista quantitativo) como o valor de Hb inferior ao percentil 5 ou a 2 desvios-padrão (DP) em relação ao valor médio normal da população da mesma idade e do mesmo sexo.

Reportando-nos ao capítulo anterior e respectivo Quadro 2, cabe referir que o valor normal de Hb na data de nascimento é cerca de 17 g/dL, diminuindo depois até atingir o valor mínimo de 11 g/dL, aumentando depois até cerca da idade de 1 ano, atingindo ~12 g/dL; depois, o valor vai aumentando até à puberdade, sendo que na adolescência os valores de Hb são mais elevados no sexo masculino do que no feminino devido à acção dos androgénios.

Sob o ponto de vista funcional é importante referir que pode haver situações de anemia com valores de Hb dentro dos limites da normalidade: é o caso das cardiopatias cianóticas ou de doenças pulmonares crónicas em que a Hb tem elevada afinidade para o oxigénio, isto é, menor capacidade de libertação de oxigénio ao nível dos tecidos; de facto, a causa do défice de oxigenação tecidual (critério funcional) nos últimos exemplos citados, é diversa da que resulta das situações associadas a Hb deficitária (critério de definição quantitativa).

Na prática, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, e excluído o recém-nascido (ver Parte XXXI) são estabelecidos os seguintes critérios de definição de anemia:

  • Entre 7 meses e 5 anos: Hb < 11 g/dL;
  • Entre 6 e 9 anos: Hb < 11,5 g/dL;
  • Adolescentes: Hb < 12 g/dL (sexo feminino) e Hb < 12,5 g/dL (sexo masculino).

Adaptação fisiológica à anemia

Embora a redução do teor de Hb circulante diminua a capacidade de transporte do oxigénio, dum modo geral somente surge palidez da pele e mucosas quando a Hb atinge valor < 7-8 g/dL. Verifica-se, pois, um fenómeno de adaptação compensatória do organismo, traduzido nomeadamente por incremento do débito cardíaco, e da libertação do oxigénio ligado à Hb no sentido de maior oferta daquele (O2) aos tecidos de órgãos vitais, explicada pelo aumento da concentração de difosfoglicerato eritrocitário (2,3-DPG) com consequente desvio para a direita da curva de dissociação do oxigénio.

Outro fenómeno de adaptação é a elevação do nível de eritropoietina (EPO), que contribui para aumentar a produção de eritrócitos (eritropoiese), evidenciada no sangue periférico pelo aumento de reticulócitos circulantes (IPR↑ ou índice de produção reticulocitária). Salienta-se, no entanto, que nalguns tipos de anemia não se verifica tal estimulação de EPO.

Nos casos em que se verifica resposta reticulocitária, esta associa-se, em geral, a policromatofilia (eritrócitos corados com 2 ou mais corantes).

Os receptores de transferrina também aumentam no sangue nalgumas situações, tais como anemia por carência de ferro, eritropoiese ineficaz (talassémia, anemia megaloblástica); tal não acontece nos casos de medula hipoproliferativa.

Diagnóstico diferencial

Dada a grande variedade de anemias com mecanismos etiopatogénicos diversos, antes da abordagem de entidades específicas nos capítulos seguintes, será importante apresentar a respectiva classificação (Quadro 1), valorizando para o diagnóstico diferencial os parâmetros hematimétricos que fazem parte do hemograma, já referidos no capítulo anterior, e excluindo também o período de recém-nascido.

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica da anemia

IPR <2

a) Microcítica, hipocrómica
Anemia ferropénica, Talassémia, Doença inflamatória crónica, Carência em cobre, Intoxicação pelo chumbo, Intoxicação pelo alumínio, Anemia sideroblástica, Hemoglobina CC, Piropoiquilocitose hereditária, etc..

b) Normocítica, normocrómica
Doença infiltrativa maligna da medula óssea, Aplasia/hipoplasia da medula, Infecção por vírus da imunodeficiência humana (VIH), Síndroma hemofagocitária, Hemorragia recente, Doença renal crónica, Doença inflamatória crónica (conectivites, doença inflamatória intestinal), Eritroblastopénia transitória, etc..

c) Macrocítica
Carência em ácido fólico (hemólise crónica, má-nutrição, má absorção, antimetabolitos, fenitoína, trimetoprim-sulfametoxazol), Carência em vitamina B12 (regimes vegetarianos, anemia perniciosa, ressecção do íleo, transporte intestinal anómalo, défice congénito de factor intrínseco, etc.), Hipotiroidismo, Acidúria orótica, Doença crónica hepática, Síndroma de Lesch-Nyhan, Síndroma de Down, Insuficiência medular (mielodisplasia, anemia de Fanconi, anemia aplástica, etc.), Fármacos (álcool, zidovudina, etc.).

IPR >3

a) Hemorragia

b) Doença hemolítica
Hemoglobinopatia (Hb SS,S-C, S-β talassémia), Enzimopatia (défice da desidrogenase da glucose 6-fosfato/G6PD, défice da cinase do piruvato/PK), Membranopatia (esferocitose hereditária, eliptocitose, ovalocitose), Anemia hemolítica de causa imune (autoimune, isoimune, provocada por fármacos), Outras causas (síndroma hemolítica urémica, púrpura trombocitopénica trombótica, coagulação intravascular disseminada), Abetalipoproteinémia, Doença de Wilson, Carência em vitamina E, Queimaduras.

Eis, então, a interpretação dos parâmetros:

  • Microcitose: VGM < 75 fL;
  • Macrocitose: VGM > 100 fL;
  • Hipocromia: CHGM < 25% (ou g/dL);
  • IPR > 3: sugestivo de produção eritrocitária aumentada por hemólise ou por perda de sangue;
  • IPR < 2: sugestivo de produção eritrocitária diminuída ou ineficaz relativamente ao grau de anemia; poderá também explicar-se por destruição de reticulócitos na medula por anticorpos, por doença da medula óssea ou por atraso na resposta da medula óssea face a situações de anemia aguda. Valores entre 2 e 3 podem ser considerados inconclusivos;
  • Índice de Mentzer > 13,5 sugere anemia ferropénica;
  • Índice de Mentzer < 11,5 sugere traço talassémico;

Valor entre 11,5-13,5: inconclusivo;

  • RDW normal (11,5-14,5%) pode surgir no traço talassémico, hemorragia aguda e anemia aplástica;
  • RDW elevado pode surgir em anemia ferropénica, anemia hemolítica, megaloblástica, CID, SHU.

A situação de anemia hipocrómica microcítica traduz deficiente produção de Hb; como causas mais importantes citam-se a anemia por carência de ferro (ferropénica ou ferripriva) e talassémia (forma de hemoglobinopatia).

A situação de anemia macrocítica é, em geral, causada por carência de vitamina B12 e ácido fólico. A situação de anemia normocítica associa-se, em geral, a doença sistémica com consequente défice de produção eritrocitária na medula óssea. Como se pode depreender, os parâmetros laboratoriais devem ser interpretados em função da clínica e não isoladamente. Nos capítulos seguintes são abordadas as situações clínicas do foro hematológico com que o pediatra e o clínico geral mais frequentemente se confrontam. Realça-se a elevada prevalência da anemia ferropénica, cuja prevenção e tratamento são da competência do pediatra (não subespecialista em hematologia), em colaboração com o clínico geral; outras, no entanto, obrigarão a internamento hospitalar, sendo importante que o clínico exercendo actividade em ambulatório esteja sensibilizado para a respectiva identificação e encaminhamento em tempo oportuno para centros especializados. O tópico Leucemias foi abordado na Parte XVII.

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SÍNDROMAS HEMATOLÓGICAS EM IDADE PEDIÁTRICA

Sistematização

Em clínica pediátrica os problemas hematológicos mais frequentes dizem respeito, essencialmente, a alterações dos elementos figurados (anemia, policitémia, neutropénia, trombocitopénia) e a alterações da coagulação (coagulopatia e fenómenos trombóticos).

Cabe igualmente uma referência às anomalias da função das plaquetas, abordadas em capítulo especial.

O Quadro 1, cujo conteúdo releva a importância da anamnese e do exame objectivo, sintetiza as manifestações clínicas que determinarão os exames complementares a realizar para se obter o diagnóstico definitivo. Nesta perspectiva, torna-se fundamental ter em consideração os principais valores de referência hematológicos do recém-nascido, criança e adolescente.

QUADRO 1 – Síndromas hematológicas

SíndromaManifestações ClínicasEntidades
AnemiaPalidez, Icterícia, astenia, insuficiência cardíacaCarência em ferro, ácido fólico, vitamina B12, anemia hemolítica
PolicitémiaCianose, irritabilidade, convulsões, cefaleia, icterícia, acidente vascular cerebralCardiopatia cianótica, mucoviscidose, RNMD
NeutropéniaFebre, estomatite, faringite, linfadenopatia, bacteriémiaNeutropénia congénita ou adquirida (por fármacos), leucémia
TrombocitopéniaEquimoses, petéquias, epistaxe, HGIPTI, leucémia
PancitopéniaInfecção, hemorragias, anemiaAplasia medular, LHH
Coagulopatia e
Trombose
Trombose venosa, embolia pulmonar, hematoma, hemorragias das mucosas, hemartroseLúpus, défice de factores de coagulação (antitrombina III, proteínas C,S), factores anómalos (V Leiden, protrombina 20210),
hemofilia, doença de Von Willebrand, CID, doença hemorrágica do RN
Abreviaturas: RNMD: recém-nascido de mãe diabética; HGI: hemorragia gastrintestinal; PTI: púrpura trombocitopénica idiopática; CID: coagulação intravascular disseminada; LHH: linfohistiocitose hemofagocitária (primária/genética ou secundária/adquirida).

Valores de referência e parâmetros hematimétricos

Os Quadros 2 e 3 sintetizam alguns valores de referência dizendo respeito à série vermelha, parâmetros hematimétricos relacionados, e à série branca. Os aspectos referentes a plaquetas e factores de coagulação são abordados no âmbito dos respectivos capítulos.

QUADRO 2 – Valores de referência da série vermelha e hematimetria

Hb (g/dL) Ht (%) VGM (fL) CHGM (% ou g/dL) Rt (%)
Criança Média Limites Média Limites Mínimo Média
Cordão umbilical 16,8 13,7-20,1 55 45-65 110 31-37 5,0
2 semanas 16,5 13,0-20,0 50 42-66 1,0
3 meses 12,0 9,5-14,5 36 31-41 25-35 1,0
6 meses – 6 anos 12,0 10,5-14,0 37 33-42 70-74 25-30 1,0
7 – 12 anos 13,0 11,0-16,0 38 34-40 76-80 25-33 1,0
Adulto
Sexo feminino 14,0 12,0-16,0 42 37-47 80 26-34 1,6
Sexo masculino 16,0 14,0-18,0 47 42-52 80 26-34 1,6
Valores de referência de hemoglobina (Hb), hematócrito (Ht), volume globular médio (VGM) em fentolitros (fL), concentração média de hemoglobina globular (CHGM) em % ou g/dL, e reticulócitos (Rt) em diferentes idades. (Adaptado de Rudolph CD et al, 2011)

QUADRO 3 – Valores de referência de leucócitos em diferentes idades

  Leucócitos/mm3 Neutrófilos (%)Linfócitos (%)Eosinófilos (%)Monócitos (%)
CriançaMédiaLimitesMédia Limites Média Média Média
Cordão umbilical180009000-300006140-803126
2 semanas120005000-2100040 4839
3 meses120006000-1800030 6325
6 meses – 6 anos100006000-1500045 4825
7 – 12 anos80004500-1350055 3825
Adulto       
Sexo feminino75005000-100005535-703537
Sexo masculino16,05000-100005535-703537
A presença de linfócitos indiferenciados (grandes, espiculados, polimorfos, hiperbasófilos) no sangue periférico na proporção de > 4% dos leucócitos totais sugere estimulação por processo infeccioso por vírus (LUC ou Lymphocyte Undifferentiated Cells).
Adaptado de IM Hann et al, e de A Galdó et al (bibliografia).

Seguidamente é estabelecida a definição de determinados parâmetros hematimétricos que permitem classificar as anemias, (abordadas no próximo capítulo):

  • O volume globular médio (VGM) medido em fentolitros (1 fL= 1ì3) obtém-se pelo quociente:
    Ht (volume ocupado pelos eritrócitos ou hematócrito) x 10 / nº de eritrócitos em milhões por mm3.
  • A concentração de hemoglobina globular média (CHGM), em % ou g/dL, obtém-se pelo quociente: Hb (em g/dL) x 100 / Ht (em %).
  • A hemoglobina globular média (HGM), expressa em picogramas (pg), corresponde ao peso médio de Hb contido em cada eritrócito; obtém-se pelo quociente: Hb (em g/dL) / nº de eritrócitos em milhões por mm3. Ao contrário da CHGM, varia não somente em função do conteúdo de Hb por unidade de volume, mas também em função do volume globular: quanto maior o eritrócito, maior o conteúdo de Hb em concentração igual.
  • O valor da contagem de reticulócitos indica a presença de células da série vermelha formadas nas 48 horas anteriores à colheita de sangue; corresponde a cerca de 0,5-1,5% do total de eritrócitos (50.000-75.000/mm3) em situações de normalidade. O chamado índice de produção de reticulócitos (IPR) calcula-se através da fórmula: Nº de reticulócitos por mil eritrócitos x Hb (em g/dL) observada / Hb normal x 0,5. O valor de IPR > 3 sugere hemorragia ou hemólise. (Capítulo 137).
  • Considerando a relação células nucleadas / 100 leucócitos, o valor é zero a partir dos 3 meses, variando entre 3 e 10 pelos 15 dias de vida, sendo ~7 no sangue do cordão.
  • O índice RDW (range deviation width), o índice de dispersão das dimensões eritrocitárias, utilizado para detectar anisocitose (normal entre 11,5 e 14,5%). Deverá estabelecer-se a relação entre VGM e RDW. Este parâmetro, elevado tipicamente em contexto de anemia, constitui também um marcador de inflamação: valor elevado, por ex. nos casos de doenças autoimunes/febre mediterrânica, sépsis, cardite reumática, apendicite, insuficiência cardíaca, etc..
  • O índice de Mentzer obtém-se através do quociente: VGM/eritrócitos (em milhões/mm3). O valor > 13,5 sugere anemia por carência de ferro; < 11,5 sugere traço talassémico; valor entre 11,5-13,5: inconclusivo.
  • O estudo do esfregaço do sangue periférico permite avaliar a morfologia eritrocitária.

Hemostase

A hemostase* no sentido lato é um mecanismo fisiológico complexo destinado a garantir a fluidez do sangue e a impedir a sua saída do leito vascular em caso de lesão vascular.

Este processo dinâmico implica a interacção das plaquetas, da parede vascular, de determinadas proteínas plasmáticas (factores de coagulação e inibidores, de produção hepática ou endotelial) e um sistema fibrinolítico.

As células endoteliais intactas inibem a adesão das plaquetas através da produção de NO e prostaglandina I, que também tem efeito vasodilatador.

As referidas células produzem igualmente factores teciduais (FT), inibidor de FT(TFPI), activador do plasminogénio tecidual(t-PA), antitrombina (AT), trombomodulina, prostaciclina, assim como a proteína de superfície para a activação da proteína C(PC).

Em condições de normalidade é mantida a fluidez sanguínea mediante equilíbrio acção-inibição do sistema hemostático.

No caso de formação de coágulo na sequência de alteração da superfície vascular, existem acções destinadas a evitar a propagação do trombo e a possibilitar o seu desaparecimento uma vez restabelecida a continuidade do endotélio vascular.

Ainda que os distintos mecanismos estejam perfeitamente ligados, sob o ponto de vista de compreensão didáctica é possível a subdivisão em hemostase primária, hemostase secundária/coagulação, e fibrinólise.

A chamada hemostase primária tem como função fundamental a formação do rolhão de plaquetas ou “tampão” hemostático que se gera rapidamente (em 3-5 minutos), especialmente eficaz em vasos de pequeno calibre. Especificando, são então verificados os eventos a seguir referidos.

Nota: *Homeostase (diferente de hemostase) significa tendência do organismo para manter constantes as condições fisiológicas.

Após ruptura da superfície interna do vaso surge vasoconstrição para deter a saída de sangue do vaso; neste processo de vasoconstrição participam as plaquetas mediante a libertação de potentes vasoconstritores (designadamente serotonina e tromboxano A2). Por outro lado, as células endoteliais produzem factor de von Willebrand (FvW), necessário para a adesão das plaquetas à superfície vascular lesada. Após a adesão, as plaquetas são activadas continuando a libertar grânulos contendo ADP, tromboxano A2 e outras proteínas, o que leva à agregação das mesmas. Uma das proteínas da matriz subendotelial contendo colagénio, libertadas pela lesão vascular – o factor tecidual ou FT – liga-se às plaquetas e ao factor VII.

A partir desta fase é activada a chamada cascata da coagulação, a que corresponde a fase da hemostase secundária em que os factores de coagulação, designados em números romanos, são activados. As Figuras 1 e 2 descrevem de modo conciso o processo da hemostase (primária e secundária), o qual pode ser compreendido pela leitura deste texto. O Quadro 4 discrimina a designação dos factores de coagulação.

FIGURA 1 – Hemostase primária: participação fundamental das plaquetas em número e função, e dos microvasos

FIGURA 2 – Hemostase secundária (consultar texto e Quadro 2): participação fundamental dos factores de coagulação

QUADRO 4 – Factores de coagulação

I
II
III
3 PL
IV
V
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII

Fibrinogénio
Protrombina
Tromboplastina, protrombinase, tromboplastina tecidual
Factor 3 plaquetário
Cálcio
Pró-acelerina, factor lábil
Pró-convertina, factor estável
Globulina anti-hemofílica ou factor anti-hemofílico
Componente tromboplastínico do plasma (PTC) – factor de Christmas
Factor de Stuart-Power
Antecedente tromboplastínico do plasma (PTA)
Factor de Hageman
Factor estabilizador da fibrina

Nota: os factores (F) activados são designados pela adição da letra (a), por ex. IIa.

A coagulação é, pois, a transformação duma proteína solúvel (fibrinogénio) numa proteína insolúvel (fibrina), o que implica que a trombina – resultante da transformação da protrombina, activada pelo factor 3 plaquetário e pelo cálcio – actue sobre o fibrinogénio. Neste processo actuam os chamados factores intrínsecos (via intrínseca ou endógena), os factores extrínsecos (via extrínseca ou exógena) e factores comuns às duas vias. Virtualmente todas as proteínas procoagulantes estão em equilíbrio com uma proteína anticoagulante que regula ou inibe a função procoagulante. Há 4 anticoagulantes naturais principais que regulam a extensão do processo de coagulação: antitrombina III (AT-III), proteína C, proteína S, e o TFPI/tissue factor pathway inhibitor ou inibidor da via dos factores teciduais. A AT-III é um inibidor das proteases leucocitárias que regula predominantemente o factor Xa (X activado); em menor grau são igualmente inibidores os factores IXa, XIa e XIIa.

Quando a trombina no sangue circulante contacta com o endotélio intacto, liga-se à trombomodulina, o seu receptor endotelial. O complexo trombina-trombomodulina actua sobre a proteína C que passará à forma activada. Em presença do cofactor proteína S, a proteína C activada promove a proteólise e inactivação do factor Va e factor VIIIa. O factor Va, uma vez inactivado é, de facto, um anticoagulante funcional que inibe a coagulação. O inibidor final é o TFPI, que impede a activação do factor X pelo factor VII e factor tecidual (TF), e desvia o local de activação do TF e do factor VII para o factor IX.

Uma vez formado o coágulo fibrina/plaquetas, o sistema fibrinolítico limita a sua extensão e provoca a lise do mesmo (fibrinólise) restabelecendo a integridade vascular. A plasmina, gerada a partir do plasminogénio, degrada o coágulo de fibrina, do que resulta a formação de produtos de degradação da referida fibrina. A via fibrinolítica é regulada pelos inibidores do activador do plasminogénio e pela alfa-2 antiplasmina. No fígado os complexos de factores de coagulação activados são desmembrados e novas proteínas pró- e anticoagulantes são sintetizadas para manter o equilíbrio do processo descrito.

Alterações da hemostase e semiologia clínica

A alteração de qualquer dos componentes deste complexo sistema pode ocasionar uma doença hemorrágica ou trombótica.

A doença hemorrágica pode resultar de afecção dos vasos, das plaquetas ou dos factores de coagulação. As doenças dos vasos e das plaquetas podem surgir associadas e, sob o ponto de vista semiológico, ambas se manifestam predominantemente ao nível dos pequenos vasos; sob o ponto de vista clínico-etiopatogénico integram, respectivamente, as chamadas púrpuras vasculares (vasculopatias) e púrpuras plaquetares. Ambas traduzem anomalias da hemostase primária. A designação de “púrpura” deriva da cor verificada ao nível da pele.

As púrpuras vásculo-plaquetárias manifestam-se por alterações na coloração da pele ou mucosas, secundárias ao extravasamento de eritrócitos nesses locais. Consideram-se petéquias as lesões hemorrágicas minúsculas, menores que 2 mm, ao nível da derme; e equimoses as maiores que 2 mm, ao nível da hipoderme.

Poderão surgir igualmente epistaxes, gengivorragias, hematúria, hematemeses, melenas, etc..

As púrpuras de causa vascular (não hematológica) traduzem-se por petéquias predominantemente nos membros inferiores, (muitas vezes agravadas pela posição ortostática) e/ou exantema eritemato-papuloso com sede preferente na superfície de extensão dos membros inferiores (mas sem poupar outras regiões), de distribuição simétrica nalgumas formas clínicas.

Como exemplos de púrpuras de causa vascular não hematológica citam-se a vasculite de causa imunoalérgica (por ex. púrpura de Schonlein-Henoch), a associada a lesões traumáticas (por exemplo síndroma da criança maltratada), a associada a síndroma de Ehlers-Danlos, e a telangiectasia, angiodisplasia, varizes, etc.. A abordagem destas situações é feita nas Partes sobre Reumatologia e Osteocondrodisplasias.

Como exemplos de púrpuras de causa hematológica citam-se as situações de trombocitopénia, primárias ou secundárias, abordadas em capítulo especial.

O défice congénito ou adquirido de determinada proteína procoagulante, originando também doença hemorrágica, integra as chamadas coagulopatias ou anomalias da coagulação, traduzindo alteração da hemostase secundária; manifestam-se predominantemente ao nível de grandes vasos. Como tradução clínica, surgem os chamados hematomas (derrames sanguíneos no tecido celular subcutâneo e massas musculares), sufusões (derrames sanguíneos em larga superfície do tecido celular subcutâneo), hemartroses (hemorragias na cavidade articular) e/ou hemorragias viscerais e intracavitárias.

Como exemplos citam-se as coagulopatias primárias (hemofilia, défice de função plaquetária e doença de von Willebrand) e as secundárias (coagulação intravascular disseminada, ingestão de fármacos anticoagulantes, anticonvulsantes maternos, insuficiência hepática, insuficiência renal, doença hemorrágica do recém-nascido por défice de vitamina K, etc.).

De salientar que nas doenças adquiridas da hemostase há frequentemente problemas múltiplos associados. No caso de infecção sistémica com choque e acidose concomitantes verifica-se activação da coagulação e da fibrinólise com impossibilidade de garantir a função hemostática normal. No caso de septicémia grave verifica-se consumo de factores procoagulantes e de anticoagulantes com consequente desequilíbrio da hemostase pendendo, ou para hemorragia excessiva, ou para coagulação excessiva.

O défice congénito ou adquirido de anticoagulante predispõe a trombose ou doença trombótica.

O Quadro 5 resume os exames complementares fundamentais para a avaliação do processo de hemostase com menção, respectivamente, das funções avaliadas e dos valores de referência. (consultar Figura 2)

QUADRO 5 – Avaliação laboratorial nas alterações da hemostase

    • Contagem de plaquetas → Número e morfologia das plaquetas → 150.000-400.000/mmc
    • Fibrinogénio → Fase 3 da coagulação → 200-400 mg/dL
    • Tempo de hemorragia (TH) → Qualidade/função das plaquetas → até 8 minutos
    • Tempo de coagulação (TC) → Vias intrínseca e comum → 3-10 minutos
    • Tempo de tromboplastina parcial activada (PTTa) → idem (factores VIII, IX, X, XI, XII) → 40-50 segundos
    • Tempo de protrombina (PT) → idem (factores V, VII, X, protrombina, fibrinogénio) → 12-15 segundos (#)
    • Tempo de trombina → Fase 3 da coagulação → 10-12 segundos
    • Tempo de lise da euglobina → Acção da plasmina → 90-300 minutos
    • Produtos de degradação do fibrinogénio → Actividade fibrinolítica → até 6,5 μg/mL
      • Na púrpura trombocitopénica: TH → >; Plaquetas → <; PTT → N; TP → N
      • Na púrpura não trombocitopénica: TH → N ou >; Plaquetas → N; PTT → N; TP → N
      • Na coagulopatia primária: TH → N; Plaquetas → N; PTT → >; TP → N ou >

(#) O PT é a prova de coagulação utilizada para avaliar a anticoagulação com varfarina. De acordo com recomendações actuais, deve utilizar-se o chamado INR (International Normalized Ratio) que permite a comparação do PT utilizando larga variedade de reagentes ou instrumentos, e de determinações laboratoriais. No âmbito do tratamento padronizado da doença trombótica o valor a obter para o INR é 2,0-3,0; nos casos de forma homozigótica do défice de proteína C, ou de doentes com próteses valvulares, o valor a atingir para o INR é 3,0-4,0. (ver Capítulo Hipercoagulabilidade e doença trombótica).
> = aumentado; < = diminuído; N = normal
Nota: 1) PT e PTT são siglas em inglês, correspondentes às abreviaturas em português, respectivamente TP e TTP. 2) Para a compreensão dos parâmetros a avaliar sugere-se a revisão da Figura 2 (relação entre parâmetros a medir e factores implicados).

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