NUTRIÇÃO PARENTÉRICA NO RECÉM-NASCIDO

Definição e importância do problema

Mesmo que as estratégias ventilatória e antimicrobiana praticadas numa unidade de cuidados intensivos neonatais sejam de excelência, a qualidade assistencial praticada nestas pode considerar-se deficitária se não for dada a devida atenção ao suporte nutricional.

Os recém-nascidos total ou parcialmente impossibilitados de utilizar a via entérica, requerem nutrição parentérica (NP), método em que os nutrientes são administrados por via intravenosa.

Apesar de haver, desde há muito, programas informatizados que auxiliam a prescrição de NP neonatal, as premissas em que assentam os critérios não são muitas vezes consensuais e estão em contínua mudança.

Este capítulo baseia-se nas actuais Recomendações da Sociedade Portuguesa de Neonatologia de 2019, publicadas em Port J Pediatr 2019;50:209-219 (parte I) e Port J Pediatr 2019;50:220-231 (parte II), por sua vez orientadas por recomendações conjuntas de quatro sociedades científicas, publicadas em 2018: European Society of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN), European Society for Parenteral and Enteral Nutrition (ESPEN), European Society of Pediatric Research (ESPR) e Chinese Society of Parenteral and Enteral Nutrition (CSPEN). No final do mesmo é incluído um Anexo para consulta rápida de doses de nutrientes recomendadas por nutrição parentérica em recém-nascidos pré-termo.

GENERALIDADES

Normas de orientação e recomendações

As recomendações nacionais sobre NP neonatal revistas em 2008 (Acta Pediatr Port. 2008; 39: 125-34), reflectiram-se em assinalável adesão dos neonatologistas e melhoria da prática clínica. Um inquérito sobre as práticas de prescrição, respondido por 72% dos coordenadores de unidades neonatais portuguesas, revelou que 83% das unidades seguiam tais recomendações, 87% iniciavam aminoácidos no primeiro dia pós-natal e 95% iniciavam lípidos nos primeiros três dias pós-natais. Talvez por não haver recomendação nacional similar sobre a preparação de NP neonatal, foram detectados pontos débeis (por ex. controlo de qualidade) noutro inquérito nacional contemporâneo feito aos responsáveis pela sua preparação.

Particularmente para recém-nascidos muito e extremo pré-termo, são revistos aspectos fundamentais relacionados com os critérios de prescrição dos macro e micronutrientes, quer usando a prescrição individualizada com preparação em farmácia hospitalar, quer bolsas comerciais de composição fixa prontas a usar.

Indicações

A NP está indicada sempre que não é possível estabelecer uma nutrição entérica suficiente por período prolongado, nomeadamente nas seguintes situações:

  • Prematuridade, sobretudo < 33 semanas de gestação;
  • Anomalias congénitas principais do aparelho gastrintestinal ou que se reflictam no seu funcionamento, por ex., atrésia do esófago, atrésia intestinal, gastrosquise e hérnia diafragmática;
  • Doenças que atinjam gravemente o tubo digestivo, por ex., enterocolite necrosante e síndroma do intestino curto;
  • Restrição de crescimento intrauterino especialmente associado a prematuridade e a alterações nos achados Doppler;
  • Asfixia perinatal grave;
  • Cardiopatia congénita com compromisso da perfusão visceral e no pós-operatório precoce de cirurgia cardíaca.

Contraindicações e limitações

A NP não deve ser utilizada se houver: desidratação aguda, acidose metabólica mantida, desequilíbrios hidroeletrolíticos e metabólicos persistentes (acidose metabólica e alterações da natrémia, caliémia, glicémia e calcémia), insuficiências renal ou hepática agudas.

Em grande parte das situações associadas a estresse (por ex., cirurgia, sépsis), não está preconizado interromper a NP, mas sim proceder a ajustes individuais.

Formulação das misturas

Geralmente, são usadas misturas binárias de NP, isto é, duas misturas separadas, respectivamente:

  • Uma solução hidroeletrolítica contendo glicose, aminoácidos, eletrólitos e oligoelementos e, outra;
  • Uma emulsão de lípidos e vitaminas.

Por motivos económicos e de conveniência, há autores que propõem que as misturas preparadas em farmácia hospitalar sejam incluídas numa só bolsa (designada por mistura ternária ou “três-em-um”); contudo, tal estratégia está condicionada por alterações na estabilidade e compatibilidade físico-química de vários componentes.

Notas importantes:

    • As noções básicas, que integram este capítulo relacionam-se na sua generalidade com os tópicos anteriormente abordados noutros capítulos sobre balanço hidro-eletrolítico.
    • Todas as doses descritas neste capítulo, de preparados, compostos ou elementos diversos, referem-se a RN de termo ou pré-termo no contexto de nutrição parentérica.

Preparação individualizada e bolsas de composição fixa

Actualmente, na maioria das unidades neonatais portuguesas é usada a prescrição de NP individualizada e preparação em farmácia hospitalar (compounding). A prescrição é geralmente feita com auxílio de suporte informático, procedimento que comprovadamente melhora a eficiência da prescrição, reduz erros de prescrição e poupa muitos cálculos aos prescritores e preparadores. Tal preparação individualizada deve ser centralizada em farmácia hospitalar e preferida em recém-nascidos muito pré-termo com risco acrescido de desequilíbrios metabólicos, como hipo- e hiperglicémia, hipo- e hipernatrémia e hipo- e hipercaliémia.

Recentemente, passaram a ser comercializadas bolsas de NP neonatal de composição fixa, com as vantagens de estarem prontas a usar, serem de fácil armazenamento e terem garantida a estabilidade dos nutrientes.

Estimativa da osmolalidade

A osmolalidade é expressa em mOsm/Kg de água (solvente) e a osmolaridade em mOsm/L de solução (soluto + solvente).

Sendo a osmolalidade obtida por medição e a osmolaridade por cálculo, foi validada por osmometria uma equação simples para estimativa da osmolalidade de soluções de NP neonatal, baseada nas concentrações dos quatro componentes mais influentes: glicose, aminoácidos, fósforo e sódio; as concentrações de glicose e aminoácidos são expressas em g/L, a de fósforo em mg/L e a de sódio em mEq/L: Osmolaridade (mOsm/L) = (aminoácidos x 8) + (glicose x 7) + (sódio x 2) + (fósforo x 0,2) – 50; equação equivalente foi disponibilizada com as concentrações molares de azoto, glicose, sódio e fósforo. A referida equação, que pode ser incorporada em folha de cálculo e em programas informáticos, tem sido sugerida por vários autores, verificando-se boa correlação com as equações propostas pela American Society for Parenteral and Enteral Nutrition (ASPEN).

Vias de administração

Na NP binária, a solução aquosa com glicose e aminoácidos é geralmente perfundida utilizando linha individual, à qual se liga a perfusão lipídica por conexão em Y, o mais próximo do local de venopunção ou da inserção de cateter. A opção de administrar NP por via periférica ou por via central depende de vários factores, como a duração prevista da NP, a osmolalidade da solução e a facilidade de acesso de uma via central.

Via periférica

Está indicada quando é prevista NP por período inferior a 2 semanas, existem bons acessos periféricos e bom estado nutricional. São limitações as venopunções frequentes e o suprimento insuficiente de energia e nutrientes, dado que soluções com teor adequado de nutrientes facilmente excedem 900 mOsm/Kg.

Via central

Está indicada quando é prevista NP por período prolongado, utilizando osmolalidade dos componentes em mOsm/Kg: > 900, ou concentração de glicose > 12,5 g/dL na solução final. Mesmo por via central, a osmolalidade não deve ser > 1.700 mOsm/Kg, ou a concentração de glicose não ser > 15 g/dL.

Tipos de cateter mais usados:

  • venoso central, de inserção percutânea periférica (epicutâneo-cava); ou venoso de inserção percutânea central (por ex., na veia subclávia, tipo Arrow®) – se previsão de NP inferior a 2-3 semanas;
  • venoso central, com túnel (eg, tipo Broviac®) – se previsão de NP superior a 2-3 semanas.

Utilizando os vasos umbilicais:

  • veia umbilical, se via periférica não disponível, especialmente em recém-nascidos < 1.000 g e utilização por menos de 5 dias;
  • artéria umbilical, apenas se não houver outra alternativa e se a utilização for inferior a 48 horas.

Heparinização de cateteres

Existe controvérsia sobre a vantagem do uso de heparina para evitar a oclusão de cateteres centrais destinados à administração de NP neonatal. Actualmente, os peritos no âmbito da ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN não recomendam o seu uso profiláctico por rotina. No entanto, de acordo com uma revisão sistemática concluiu-se que havia vantagem da adição de heparina à solução hidroelectrolítica, na dose de 10-15 UI/kg/d.

Um procedimento preventivo alternativo ao uso de heparina por rotina, para promover a permeabilidade de cateteres aplicados intermitentemente, é a sua lavagem (flushing) semanal, com pequenos volumes de soro fisiológico heparinizado (5-10 UI/ml).

De salientar que a heparina não deve ser adicionada às emulsões lipídicas por poder alterar a sua estabilidade.

Armazenamento e filtros

Os dois principais factores que determinam a estabilidade de soluções de NP durante o armazenamento são a temperatura e a exposição à luz.

Segundo um estudo sobre a estabilidade físico-química de soluções binárias de NP neonatal comprovou-se que estas se mantêm estáveis por 4 meses à temperatura de 4-8 ºC.

Todas as soluções de NP devem ser protegidas da luz natural e artificial (incluindo fototerapia), durante o armazenamento e a administração, para reduzir a probabilidade de degradação de algumas vitaminas e a formação de peróxidos de hidrogénio e lipídicos.

Durante a administração é recomendado o uso de filtros de 1,2 micras na administração de misturas ternárias e de 0,22 micras para misturas binárias, a fim de reter micropartículas ou precipitados.

Complicações

As complicações mais frequentemente associadas à NP neonatal incluem: sépsis relacionada com cateter central, oclusão trombótica do cateter central, assim como extravasamento, fractura do cateter central e migração deste.

A doença metabólica óssea e a colestase associada à NP são consequência de pausa alimentar prolongada com dependência de NP exclusiva.

Vigilância clínica e laboratorial

Antropometria: peso (diariamente), comprimento e perímetro cefálico (semanalmente).

Avaliação laboratorial:

  • Na primeira semana pós-natal, diariamente – glicemia, densidade urinária, glicosúria, gasometria no sangue, ionograma sérico e calcémia; e duas a três vezes por semana – hemograma, urémia (BUN) e creatininémia.
  • Após a primeira semana, para além das análises referidas, devem ser avaliadas semanalmente as transaminases, fosfatase alcalina, bilirrubinas total e conjugada, γ-glutamil transpeptidase, albuminémia e trigliceridémia.

Para evitar a espoliação excessiva em recém-nascidos muito pré-termo estáveis, a periodicidade do controlo analítico pode ser menos frequente.

PRESCRIÇÃO INDIVIDUALIZADA

Líquidos

QUADRO 1 – Suprimento diário de líquidos (mL/kg), desde a primeira semana pós-natal.

Dia pós-natalD1D2D3D4D5≥ D6
Termo40-6050-7060-8060-100100-140140-170
Pré-termo ≥ 1.500 g60-8080-100100-120120-140140-160140-160
Pré-termo < 1.500 g80-100100-120120 -140140-160160-180140-160


Considerações:

  • Nos primeiros dias pós-natais, os principais determinantes do balanço hídrico no recém-nascido muito pré-termo são a oligúria relativa e a perda transepidérmica de água. Para não exceder o suprimento hídrico recomendado, é necessário contrariar a perda transepidérmica providenciando humidade ambiente de 80-90% e ambiente de termoneutralidade, preferencialmente em incubadora de dupla parede.
  • A humidade deve ser diminuída rapidamente a partir dos 5 dias pós-natais, para evitar o risco de infecção. Uma estratégia complementar é utilizar cobertor de plástico. A seguir à fase de oligúria relativa, segue-se outra de diurese e natriurese, sendo desejável que o recém-nascido muito e extremo pré-termo perca 7-10% do peso de nascimento.
  • Embora seja controverso, poderá ser necessário aumentar o suprimento de líquidos (não mais do que 10% das necessidades basais) se for usada incubadora aberta ou fototerapia.
  • Parâmetros orientadores da prescrição:
    • Densidade urinária – é desejável que se situe entre 1005-1010;
    • Natrémia – na primeira semana pós-natal reflecte essencialmente o estado de hidratação (a hiponatrémia indica hiperidratação, e a hipernatrémia desidratação);
    • Diurese – é desejável que se situe entre 1-3 mL/kg/h, considerando oligúria o valor < 0,5-1 mL/kg/h e poliúria > 6-7 mL/kg/h;
    • Evolução ponderal – nos primeiros dias pós-natais, reflete o estado de hidratação.

Energia

QUADRO 2 – Suprimento diário (kcal/kg) de energia recomendado.

D <> Dia vida

Dias pós-nataisD 1D 2-6≥ D 7
Termo4060-8090-100
Pré-termo45-5560-8090-120

Considerações:

  • O suprimento energético excessivo aumenta o risco de acumulação exagerada de massa gorda; o suprimento insuficiente predispõe à restrição de crescimento, compromisso do neurodesenvolvimento e alteração da imunidade.
  • Idealmente, a glicose deve contribuir com 45-55% da energia total, os lípidos com 30-40% e os aminoácidos com 10-15%; os lípidos não devem exceder 40-60% da energia não-proteica.
  • Um grama (1 g) de glicose fornece 4 kcal; um grama (1 g) de aminoácidos fornece igualmente 4 kcal; e um grama (1 g) de lípidos fornece 9 kcal.

Glicose

QUADRO 3 – Suprimento diário (mg/kg/min) de glicose recomendado

    • Início: termo 2,5-5 mg/kg/min; pré-termo 4-8 mg/kg/min
    • Posteriormente, deve-se aumentar gradualmente 1-2 mg/kg/min, ajustando a dose para manter glicemia entre 45-120 mg/dL
    • Dose mínima: termo 2,5 mg/kg/min (3,6 g/kg/d) e pré-termo 4 mg/kg/min (5,8 g/kg/d)
    • Dose máxima 12 mg/kg/min (17,3 g/kg/d) no termo e pré-termo


Considerações:

  • A dose máxima recomendada de glicose é de 12 mg/kg/min (17,3 g/Kg/d). Um suprimento exagerado de glicose pode promover a lipogénese e excessivo armazenamento de gordura, aumento da susceptibilidade a infecções e retinopatia da prematuridade.
  • Situações como estresse, infecção e medicação com metilxantinas podem predispor a hiperglicemia. Na fase aguda de doença (por ex, sépsis), o suprimento de glicose não deve exceder 5-7 mg/kg/min no primeiro dia de doença.
  • Em caso de hiperglicemia (>145 mg/ dL), a dose de glicose deve ser diminuída; poderá também ser necessário diminuir a de lípidos pelo seu efeito hiperglicemiante mediado pela neoglicogénese.
  • O uso de insulina deve ser apenas considerado se a hiperglicemia persistir apesar de de o suprimento de glicose ser reduzido para 4 mg/kg/min, e/ou se a glicemia se mantiver >180 mg/dL.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Glicemia venosa ou capilar: hiperglicemia se >145 mg/dL e hipoglicemia se <40 mg/dL.
  • Pesquisa de glicosúria (fitas reagentes).

Aminoácidos

QUADRO 4 – Suprimento diário (g/kg) de aminoácidos recomendado.

Dias pós-nataisD 1≥ D 2Máximo
Termo> 1,52,5-3,03,0
Pré-termo> 1,52,5-3,53,5


Considerações:

  • A administração parentérica de aminoácidos é considerada menos fisiológica que a entérica, por ser feita directamente para a circulação sistémica, sem passar pelo metabolismo hepático e esplâncnico.
  • O suprimento de energia não-proteica > 65 kcal/kg/d promove a retenção azotada; contudo, se tal suprimento for inferior não se deve limitar a dose de aminoácidos, uma vez que a quantidade que não é utilizada para a retenção azotada é oxidada para produção de energia.
  • Em recém-nascidos pré-termo, o início precoce de aminoácidos, estimulando a secreção endógena de insulina, poderá contribuir para prevenir a hiperglicé

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Urémia e azoto ureico (BUN): valores de referência 5,5-22 mg/dL. O valor da urémia equivale a 2,14 do valor de BUN (por ex., 20 mg/dL de urémia equivalem a 9,3 mg/dL de BUN). O azoto ureico constitui um bom indicador do suprimento proteico, exceptuando nos primeiros dias pós-natais, muito influenciados pelo estado de hidratação e função renal. Um valor baixo de BUN indica suprimento insuficiente; todavia, um valor no limiar superior poderá apenas reflectir uma eficiente oxidação dos aminoácidos e não sua intolerância.

Lípidos

QUADRO 5 – Suprimento diário (g/kg) de lípidos recomendado.

    • Início com 1-2 g/kg desde o primeiro dia pós-natal
    • Aumento diário de 0,5-1 g/kg até ao máximo de 4 g/kg
    • Administrar por perfusão contínua durante as 24 h

 

Considerações:

  • As emulsões lipídicas são uma boa fonte de energia, de ácidos gordos essenciais e de substracto para acréscimo de gordura em recém-nascidos muito pré-termo com escassa reserva adiposa fetal.
  • É necessária a dose mínima de 1 g/kg/d para evitar o défice de ácidos gordos essenciais que ocorre ao fim de 72 h sem suprimento exógeno, usando as actuais emulsões lipídicas. Idealmente, a emulsão lipídica deve conter ácidos gordos n-6 e n-3 (óleo de peixe), substâncias com boa capacidade antioxidante (por ex., α–tocoferol e ácidos gordos monoinsaturados) e, porventura, ácidos gordos de cadeia média (menos dependentes da carnitina).
  • Embora os recém-nascidos pré-termo sejam deficitários em carnitina (que facilita o transporte dos ácidos gordos para o interior da mitocôndria onde são oxidados), com a sua suplementação não foram verificadas vantagens.
  • Uma vez que as emulsões lipídicas são iso-osmolares, podem ser administradas por via periférica.
  • Especialmente em recém-nascidos pré-termo, todo o sistema de perfusão (seringa, tubos) da emulsão lipídica deve estar protegido da luz, em especial da fototerapia, para evitar a formação de peróxidos de lípidos e de hidrogénio e consequente lesão celular.
  • Receios não comprovados do uso parentérico de lípidos, não se aconselhando a limitação da sua administração: 1) Não está comprovado que predisponha à doença pulmonar crónica ou à retinopatia da prematuridade; 2) Na trombocitopénia, admite-se que outros cofactores são responsáveis pelos efeitos adversos atribuídos aos lípidos, como o défice de vitamina E (responsável pela redução do número de plaquetas) e a administração de heparina (interferindo com a função plaquetar); 3) Estudos in vitro e in vivo não demonstraram claramente que os lípidos endovenosos interferem negativamente no sistema imune, nomeadamente na actividade dos monócitos; e 4) A utilização de lípidos endovenosos pode predispor à sépsis por Staphylococcus coagulase negativo e Candida; contudo, as vantagens nutricionais da sua utilização são francamente superiores aos riscos.
  • Na hiperbilirrubinémia não conjugada, na fase aguda de sépsis, na hipertensão pulmonar e na trombocitopénia grave e não explicada, poderá ser necessário reduzir a dose dos lípidos, porventura para 1 g/Kg/d para evitar o défice de ácidos gordos essenciais.

Parâmetro orientador da prescrição:

  • Trigliceridémia: não deve exceder 265 mg/dL.

Sódio

QUADRO 6 – Suprimento diário de sódio (mEq/kg) recomendado.

Pode vir a necessitar: a 3 mEq/kg/d; b 7 mEq/kg/d
Dias pós-nataisD 1-3D 4 e 5D ≥6
Termo0-21-32-3
Pré-termo ≥ 1.500 g0-2 a2-53-5
Pré-termo < 1.500 g0-2 a,b2-5 b3-5 b

Considerações:

  • Sódio (Na): 1 mmol = 1 mEq = 23 mg.
  • Em recém-nascidos pré-termo, nos primeiros dias pós-natais deve permitir-se o balanço negativo fisiológico de sódio, sob pena de predispor à morbilidade, nomeadamente persistência do canal arterial e displasia broncopulmonar. Embora alguns autores tenham descrito que a administração de sódio por NP desde o primeiro dia pós-natal não se associa a hipernatrémia, a maioria das sociedades científicas recomenda que se protele a sua administração ou não se exceda 2 mEq/Kg/d até que ocorra perda de > 6% do peso ao nascer, que indica o estabelecimento de natriurese suficiente. Tal interpretação pode ser enviesada se a diminuição de peso resultar da perda transepidérmica de água (e não da natriurese), por não ter sido providenciada a adequada de humidade ambiente.
  • Durante a primeira semana pós-natal, a natrémia reflecte o estado de hidratação; posteriormente, indica também a reserva de sódio. A hipernatrémia nos primeiros dias pós-natais pode resultar de desidratação por exagerada perda transepidérmica de água ou de inadequado suprimento de sódio. A hiponatrémia pode resultar de hemodiluição por oligúria, perda renal no caso de recém-nascidos muito pré-termo, ou do uso de diuréticos e cafeína.
  • Se as necessidades de sódio forem superiores às recomendadas, o suprimento basal deve ser fornecido por NP e o suplementar por perfusão independente em Y de solução com sódio, usando por exemplo NaCl 20% (1 ml = 3,4 mEq); este método permite ajustar de forma conveniente a dose em função da natrémia.

Parâmetro orientador da prescrição:

  • Natrémia: valores de referência 135-145 mEq/L.
  • Sódio urinário: uma amostra de urina com Na < 20 mEq/L associada a hiponatrémia ou uma excreção fraccionada de sódio (FENa) < 3% em recém-nascidos de termo ou < 4% em recém-nascidos pré-termo, indica depleção da volémia.

Cloro

QUADRO 7 – Suprimento diário de cloro (mEq/Kg) recomendado.

Dias pós-nataisD 1-3D 4-5D ≥ 6
Termo e Pré-termo0-32-52-5


Considerações:

  • Cloro (Cl): 1 mmol = 1 mEq = 35,5 mg.
  • O suprimento de cloro geralmente acompanha o de sódio e a dose não deve exceder a de sódio e de potássio para evitar a acidose metabólica hiperclorémica.
  • Em recém-nascidos muito e extremos pré-termo, o suprimento excessivo de cloro associa-se à acidose metabólica hiperclorémica (> 114 mEq/L). Isto pode ser prevenido ou resolvido substituindo parcialmente o cloro por acetato.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Cloremia: valores de referência 96-106 mEq/L.
  • Gases no sangue: para vigilância de acidose.

Potássio

QUADRO 8 – Suprimento diário de potássio (mEq/Kg) recomendado.

Iniciar ≥ D2 se diurese ≥ 1 ml/kg/h
Necessidades de acordo com a maturidade e peso  

    • Termo: 1-3 mEq/kg
    • Pré-termo ≥ 1.500 g: 1-3 mEq/kg
    • Pré-termo < 1.500 g: 1-2 mEq/kg


Considerações:

  • Potássio (K): 1 mmol = 1 mEq = 39 mg.
  • Embora alguns autores refiram que a administração de potássio por rotina desde o primeiro dia pós-natal não se associa hipercaliémia, as sociedades científicas recomendam que seja iniciada a sua administração apenas quando se verificar diurese ≥ 1 ml/kg/h, na ausência de hipercaliémia.
  • Em recém-nascidos ventilados, as alterações súbitas da caliémia podem resultar de variações do equilíbrio ácido-base: a acidose metabólica com acidémia associa-se à hipercaliémia e a alcalose metabólica à hipocaliémia.
  • A hipercaliémia em particular pode ocorrer associada ou não a oligúria. A hipercaliémia não-oligúrica pode ocorrer na presença de hematoma, hemólise e falta de administração de corticóides pré-natais em recém-nascidos muito pré-termo. Nestes, a hipocaliémia pode resultar de suprimento insuficiente face à elevada demanda, perda renal ou uso de diuréticos e cafeína.
  • Se as necessidades de potássio forem superiores às recomendadas, o suprimento basal deve ser fornecido por NP e o suplementar por perfusão independente em Y de solução com potássio, usando por exemplo KCl 7,5% (1ml = 1 mEq); este método permite ajustar de forma conveniente a dose em função da caliémia.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Caliémia: valores de referência 3,5-4,5 mEq/L.
  • Diurese.

Cálcio e Fósforo

Quadro 9 – Suprimento diário (mg/Kg) de cálcio e fósforo recomendado.

 TermoPré-termo
1ª semana pós-natal
Pré-termo
> 1ª semana pós-natal
Cálcio   
mg/kg30 – 6032 – 80100 – 140
mmol/kg0,8 – 1,50,8 – 2,02,5 – 3,5
Fósforo   
mg/kg20 – 4031 – 6277 – 108
mmol/kg0,7 – 1,31,0 – 2,02,5 – 3,5
Ratio Ca:P   
mg:mg1,3 – 1,71,31,3 – 1,7
molar1,0 – 1,31,01,0 – 1,3

 

Considerações:

  • Cálcio (Ca): 1 mmol = 2 mEq = 40 mg; Fósforo (P): 1 mmol = 31 mg; a valência do fósforo varia conforme esteja na forma de fosfato monobásico ou dibásico.
  • Utilizando a ratio Ca:P de mg:mg 1,7:1 (molar 1,3:1) antes recomendada em recém-nascidos muito pré-termo, era frequente ocorrer hipercalcémia, hipofosforémia e hipocaliémia em presença de doses recomendadas de aminoácidos (> 2,5 g/kg/d). Isto era devido ao crescimento celular induzido pelo adequado suprimento de aminoácidos, o que originava a mobilização intracelular de potássio e fósforo, consequente hipocaliémia e hipofosforémia, com mobilização óssea de cálcio em resposta à hipofosforé Mulla et al (2017) demonstraram que, em recém-nascidos muito pré-termo, a utilização da ratio Ca:P mg:mg de 1,3:1 (ou equimolar de 1:1), à custa do aumento da dose de fósforo, obvia o problema.
  • Na actual recomendação da ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEM são propostas doses muito elevadas de cálcio e fósforo em recém-nascidos pré-termo (Quadro 9), o que levanta preocupações quanto à sua compatibilidade, estabilidade e risco de precipitação. Para que a segurança esteja garantida, será necessário testar tais doses associadas a diferentes tipos e concentrações de soluções de aminoácidos, diferentes sais de fosfato e diferentes pH das soluções finais, o que parece não ter sido ainda totalmente analisado. São factores determinantes da boa compatibilidade de cálcio e fósforo nas soluções de NP a utilização de sais orgânicos de cálcio e fósforo e pH < 7,1 na solução final, que promove a formação de fosfato de cálcio dibásico (60 vezes mais compatível que o monobásico). Não estando provada cientificamente a garantia de compatibilidade e estabilidade mineral usando as tais doses elevadas (Quadro 9), será preferível adoptar, pelo menos de início, os valores descritos por Mulla et al (2017): cálcio 88-90 mg/kg/d, fósforo 68-70 mg/kg/d e ratio Ca:P molar de 1 (ou de 1,3:1 em mg).
  • Ao optar-se por administrar fósforo nos primeiros dias pós-natais, importa contabilizar a quantidade apreciável de sódio contida na maioria dos sais de fósforo, por ex. 2 mEq de sódio por 1 ml de glicerofosfato de sódio.
  • Soluções com elevada concentração de cálcio devem ser administradas por cateter central, pelo risco de necrose tecidual quando há extravasamento ao ser usada a via periférica.

Parâmetros orientadores da prescrição:

  • Fosforémia e fosfatase alcalina: não há marcadores bioquímicos precoces confiáveis de doença metabólica óssea da prematuridade. No entanto, de entre os marcadores bioquímicos mais usados, a hipofosforémia (< 5,5 mg/dL ou < 1,8 mmol/L) e a elevação da fosfatase alcalina (> 900 UI/L), particularmente a combinação de ambos, são os marcadores com maior sensibilidade e especificidade, sendo a calcémia um mau marcador.

Magnésio

QUADRO 10 – Suprimento diário de magnésio recomendado.

 TermoPré-termo
1ª semana pós-natal
Pré-termo
> 1ª semana pós-natal
Magnésio   
mg/kg2,4 – 5,02,0 – 5,05,0 – 7,5
mmol/kg0,1 – 0,20,1 – 0,20,2 – 0,3
mEq/kg0,2 – 0,40,2 – 0,40,4 – 0,6


Considerações:

  • Magnésio (Mg): 1 mmol = 2 mEq = 24 mg.
  • A suplementação parentérica de magnésio só deve ser iniciada se a magnesiémia estiver dentro dos limites normais, especialmente em recém-nascidos pré-termo nos primeiros dias pós-natais, quer pela baixa taxa de filtração glomerular e limitada capacidade da sua excreção renal, quer por possível exposição pré-natal a sulfato de magnésio usado como tocolítico.

Parâmetro orientador da prescrição:

  • Magnesiémia – valores de referência para recém-nascidos de termo e pré-termo 0,7-1,5 mEq/L.

Vitaminas hidrossolúveis

QUADRO 11 – Suprimento diário de vitaminas hidrossolúveis recomendado para recém-nascidos de termo e pré-termo.

VitaminaDose/kg
Vitamina C (ácido ascórbico), mg15 – 25
Tiamina (vitamina B1), mg0,35 – 0,5
Riboflavina (vitamina B2), mg0,15 – 0,2
Piridoxina (vitamina B6), mg0,15 – 0,2
Niacina (nicotinamida ou vitamina B3), mg4,0 – 6,8
Vitamina B12 (cobalamina), μg0,3
Ácido pantoténico (vitamina B5), mg2,5
Biotina (vitamina B7), μg5,0 – 8,0
Ácido fólico, μg56


Considerações:

  • Embora a dose parentérica ideal da maioria das vitaminas hidrossolúveis não tenha sido determinada em recém-nascidos, o Quadro 11 indica as doses recomendadas.
  • As vitaminas hidrossolúveis devem ser administradas diariamente e adicionadas à emulsão lipídica para aumentar a sua estabilidade.
  • Sugerido o produto Soluvit N® (Fresenius Kabi) na dose diária de 1 ml/kg, contendo cada 1 ml: vitamina C 10,0 mg, tiamina 0,25 mg, riboflavina 0,36 mg, niacina 4,0 mg, piridoxina 0,40 mg, vitamina B12 0,5 μg, ácido pantoténico 1,50 mg, biotina 6,0 μg e ácido fólico 40 μ

Vitaminas lipossolúveis

QUADRO 12 – Suprimento diário de vitaminas lipossolúveis recomendado em recém-nascidos de termo e pré-termo.

a máximo 11 mg/dia; b as soluções multivitamínicas actuais fornecem dose superior
VitaminaTermoPré-termo
Vitamina A (retinol)
UI150-300/kg ou 697/dia227-455 ou 700-1.500/kg/dia
μg2.300/dia227-455/kg
Vitamina D (calciferol)
UI40-150/kg ou 400/dia80-400/kg ou 200-1.000/dia
Vitamina E (a-tocoferol)
UI2,8-3,5/kg/dia2,8-3,5/kg/dia
mg2,8-3,5/kg/dia a2,8-3,5/kg/dia a
Vitamina K, (fitomenadiona)
μg10/kg/dia b10/kg/dia b

Considerações:

  • Vitamina A 1 μg = 3,33 UI; Vitamina D 1 μg = 40 UI; Vitamina E 1 mg = 1 UI.
  • As vitaminas lipossolúveis devem ser administradas diariamente e adicionadas à emulsão lipídica para aumentar a sua estabilidade.
  • A dose de vitamina K1 fornecida pela solução de vitaminas lipossolúveis pressupõe que esta tenha sido administrada no primeiro dia pós-natal para prevenção da doença hemorrágica do recém-nascido.
  • Sugerido o produto: Vitalipid N Infantil® (Fresenius Kabi): se peso < 2,5 kg, a dose diária é de 4 ml/kg; se peso ≥ 2,5 kg, a dose diária máxima é de 10 ml. Cada 1 ml de Vitalipid N Infantil® (Fresenius Kabi), contém: vitamina A 69 μg (230 UI), vitamina D2 1 μg (40 UI), vitamina E 0,64 mg (0,70 UI) e vitamina K1 20 μ

Oligoelementos

QUADRO 13 – Suprimento diário (μg/kg) de oligoelementos recomendado.

Oligoelemento Termo Pré-termo
Zinco 250 400 – 450
Cobre 20 40
Selénio 2 – 3 7
Crómio 0 0
Manganês 1 1
Molibdénio 0,25 1
Iodo 1 – 10 1
Ferro 50 – 100 200


Considerações:

  • A transferência mãe-feto quantitativamente mais elevada dos oligoelementos ocorre no terceiro trimestre. Embora a dose parentérica da maioria dos oligoelementos não tenha sido determinada em recém-nascidos pré-termo, o Quadro 13 indica as doses recomendadas.
  • O zinco deve ser administrado desde o início da NP exclusiva. As soluções correntes de oligoelementos incluem manganês e molibdénio, cuja suplementação parentérica só está recomendada se a NP for superior a duas semanas. As soluções de NP estão geralmente contaminadas com alumínio e crómio, o que perfaz as necessidades, não sendo necessária a sua suplementação parentérica.
  • Para evitar a toxicidade, na colestase e na insuficiência hepática, as doses de cobre e manganês devem ser reduzidas. Na insuficiência renal aguda, deve ser reduzida a dose de selénio.
  • Sugerido suplementar com gluconato de zinco 0,1% (1 ml = 1000 µg de zinco) desde o início da NP. A partir das 2 semanas de NP, pode usar-se a solução completa de oligoelementos, por ex., Peditrace® (Fresenius Kabi) 1 ml/kg, contendo cada 1 ml (μg): Zn 250, cobre 20, manganês 1, selénio 2, iodo 1 e flúor 57. Em recém-nascidos pré-termo, torna-se necessário adicionar gluconato de zinco 0,1% para perfazer a dose recomendada de zinco.

 BOLSAS COMERCIAIS PRONTAS A USAR 

Como alternativa à prescrição individualizada de NP com preparação em farmácia hospitalar (em condições de assepsia, aquando da mistura dos componentes, sob câmara de fluxo laminar), passaram a estar disponíveis bolsas comerciais de NP neonatal de composição fixa e prontas a usar. Entre as suas potenciais vantagens, incluem-se: – melhoria da estabilidade físico-química das soluções, – maior garantia quanto à mistura e suprimento de macro e micronutrientes, – melhor custo-efectividade, – redução dos erros de prescrição e da contaminação bacteriana, – e disponibilidade dum produto durante 24 horas, em qualquer dia da semana, sem a dependência dos serviços farmacêuticos.

Por estes motivos, as ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEM recomendam a utilização destas bolsas, preferindo-as relativamente à prescrição e preparação individualizada em farmácia hospitalar, inclusive para recém-nascidos pré-termo, desde que estes estejam em condições de estabilidade, e as referidas bolsas sejam usadas por períodos inferiores a 2-3 semanas, com a devida monitorização laboratorial.

Contudo, tal modalidade não deve ser usada em recém-nascidos muito e extremo pré-termo com risco de desequilíbrio metabólico, como hipo- e hiperglicémia, hipo- e hipernatrémia e hipo- e hipercaliémia, tendo em consideração, em tal contexto, a necessidade de serem ajustados, para correcção, os suprimentos de macro e micronutrientes até à estabilização metabólica.

Em Portugal, encontram-se comercializadas as bolsas de NP neonatal prontas a usar Numeta® (Baxter), tendo as Pediaven NN® (Fresenius Kabi) a autorização de introdução no mercado, cedida pelo INFARMED.

Bolsas Numeta® (Baxter)
Segundo o fabricante, a Numeta G13%E® (Baxter), está indicada em recém-nascidos pré-termo e a Numeta G16%E® (Baxter) nos de termo.

Trata-se de bolsas tricompartimentadas, contendo respectivamente solução de glicose, solução de aminoácidos com eletrólitos e emulsão de lípidos. No momento da administração, activa-se a remoção do selo entre os compartimentos de glicose e de aminoácidos/eletrólitos e, ao pretender administrar-se também lípidos, activa-se a remoção do selo do respectivo compartimento.

As soluções Numeta® (Baxter) não contêm vitaminas nem oligoelementos, os quais devem ser adicionados quando se decide a sua administração.

SITUAÇÕES PARTICULARES

Sépsis

Na fase aguda da sépsis pode ocorrer hiperglicémia por aumento da resistência à insulina e hipertrigliceridémia por elevação das catecolaminas e cortisol e diminuição da actividade da lipoproteína lípase.

Ao complicar-se com trombocitopénia, não há comprovação de que os lípidos endovenosos diminuam o número ou função das plaquetas; admite-se que tais factos sejam devidos respectivamente a défice de vitamina E e à perfusão de heparina.

Na fase aguda da sépsis, não está demonstrado que haja maior necessidade de aminoácidos, anotando-se que o excesso de nutrientes na fase catabólica pode ser contraproducente.

Actuação prática

  1. A glicose deve ser a fonte energética preferencial; se ocorrer hiperglicémia (> 145 mg/dL), o suprimento de glicose deve ser reduzido, se necessário até 2,5 mg/kg/min no recém-nascido de termo e 4 mg/kg/min no pré-termo.
  2. Se ocorrer hipertrigliceridémia (> 265 mg/dL), o suprimento de lípidos deve ser reduzido, se necessário para 1 g/kg/d para evitar o défice de ácidos gordos essenciais.
  3. Na fase aguda da sépsis deve ser garantido o suprimento de, pelo menos, 60 kcal/kg/d e 2,5 g/kg/d de aminoácidos.

Colestase

No recém-nascido, a colestase associada à NP é multifactorial, sendo factores independentes a duração da NP e a dose elevada de glicose, e não a dose de lípidos ou de aminoácidos.

Quanto aos componentes das emulsões lipídicas, admite-se que o elevado teor em fitoesteróis e ácidos gordos n-6 e o baixo teor em a-tocoferol predispõem à colestase associada à NP, enquanto o elevado teor em óleo de peixe tem efeito de protecção.

Por outro lado, deve ter-se em conta a potencial toxicidade do cobre e manganês na colestase, pela dificuldade da sua excreção pela bílis.

Como forma de prevenir ou mitigar a colestase associada à NP (bilirrubina conjugada > 2 mg/dl), descreve-se a seguir a:

Actuação prática

  1. Reduzir a dose de glicose, porventura para níveis que não excedam a sua capacidade oxidativa (8,3 mg/kg/min).
  2. Aumentar a nutrição entérica e reduzir/suspender a NP logo que possível.
  3. Preferir emulsões lipídicas que contenham óleo de peixe e a-tocoferol.
  4. Conforme a gravidade da colestase, suspender ou reduzir a solução de oligoelementos por conterem cobre e manganês.

Hiperbilirrubinémia não conjugada

Em recém-nascidos pré-termo, há controvérsia sobre a possibilidade de os ácidos gordos livres resultantes da hidrólise dos triglicéridos deslocarem a bilirrubina ligada à albumina, elevando a fracção livre de bilirrubina para níveis neurotóxicos. Tal parece não ocorrer se a ratio molar ácidos gordos livres:albuminénia for < 6; ou seja, será menos provável se os níveis de albuminénia estiverem dentro dos limites de referência.

A actuação prática consiste em recém-nascidos pré-termo, reduzir a dose de lípidos se bilirrubinémia não-conjugada for > 10 mg/dL

Hipertensão pulmonar

Em recém-nascidos de termo e pré-termo, a perfusão endovenosa de lípidos pode agravar a hipertensão pulmonar, com efeito dependente da dose e do tempo.

A actuação prática consiste, dependendo da gravidade da hipertensão pulmonar, em suspender temporariamente os lípidos, ou diminuir o respectivo suprimento até 1 g/kg/d.

Grande cirurgia

Nos recém-nascidos submetidos a grande cirurgia, devidamente anestesiados e analgesiados, há necessidade de ligeiro acréscimo do suprimento energético (cerca de 15%) no pós-operatório imediato (cerca de 4 h após a cirurgia). Durante este período, também está comprovado que o turnover proteico não aumenta significativamente.

Como actuação prática refere-se que no pós-operatório, inclusive imediato, não há necessidade de aumentar o suprimento energético-proteico se a analgesia for adequada.

ANEXO: Consulta rápida – Doses diárias em recém-nascidos pré-termo.

 1º dia pós-natalIncremento diárioMáximo
* Enquanto não houver estudos suficientes que garantam a compatibilidade e estabilidade mineral usando doses superiores.
Líquidos (ml/kg/d)60 – 100
humidade 80-90%
10 – 15160 – 180
Energia (kcal/kg/d)45 – 5590 – 120
Glicose (mg/kg/min)4 – 8q.b. para glicémia
45-120 mg/dL
12
 Aminoácidos (g/kg/d)> 1,50,5 – 13,5
 Lípidos (g/kg/d)1 – 20,5 – 14
 Na (mEq/ kg/d)0 – 2
após perda > 6% peso nascimento
3 – 5
(até 7)
 Cl (mEq/kg/d)Idêntica ao NaIdêntica ao Na
 K (mEq/kg/d)1 – 3
após diurese > 1 mL/Kg/h
1 – 3
 Ca (mg/kg/d)32 – 80100 – 140
(*ou 88 – 90 mg/kg/d, máximo 68 mg/dL)
 P (mg/kg/d)Dividir dose Ca por 1,3Dividir dose Ca por 1,3Dividir dose Ca por 1,3
 Mg (mEq/kg/d)0,2 – 0,40,4 – 0,6
Vitaminas hidrossolúveis (ml/kg/d)
(Soluvit N Infantil ®)
11
Vitaminas lipossolúveis (ml/kg/d)
(Vitalipid N Infantil®)
1 – 214
 Oligoelementos
< 2 semanas NP
≥ 2 semanas NP


Zn 400 – 450 µg/kg/d




Zn 400 – 450 µg/kg/d
Peditrace® 1 ml/kg/d + Zn (para perfazer 400-450 µg/kg/d)

BIBLIOGRAFIA

Bolisetty S, Osborn D, Sinn J, Lui K, and the Australasian Neonatal Parenteral Nutrition Consensus Group. Standardised neonatal parenteral nutrition formulations – an Australasian group consensus 2012. BMC Pediatr 2014; 14: 48

Bonsante F, Iacobelli S, Latorre G, et al. Initial amino acid intake influences phosphorus and calcium homeostasis in preterm infants – It is time to change the composition of the early parenteral nutrition. PLoS One 2013; 8:1-9

Bronsky J, Campoy C, Braegger C; the ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR guidelines on pediatric parenteral nutrition: Vitamins. Clin Nutr 2018; 37: 2366-2378

Darmaun D, Lapillonne A, Simeoni U, et al.; Committee on Nutrition of the French Society of Pediatrics (CNSFP), and French Society of Neonatology (SFN). Parenteral nutrition for preterm infants: Issues and strategy. Arch Pediatr 2018; 25: 286-294

Domellöf M, Szitanyi P, Simchowitz V, et al.; the ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Iron and trace minerals. Clin Nutr 2018; 37: 2354-2359

Duesing LA, Fawley JA, Wagner AJ. Central venous access in the pediatric population with emphasis on complications and prevention strategies. Nutr Clin Pract 2016; 31: 490-501

ElHassan NO, Kaiser JR. Parenteral nutrition in the neonatal intensive care unit. NeoRev 2011; 12; e130-e140

Fu R-H. Selection of lipid emulsions for protection against parenteral nutrition-associated liver disease. Pediatrics & Neonatol 2019; 60: 355-356

Hartman C, Shamir R, Simchowitz V, et al. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Complications. Clin Nutr 2018; 37: 2418-2429

Jochum F, Moltu SJ, Senterre T, et al.; the ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Fluid and electrolytes. Clin Nutr 2018; 37: 2344-2353

Johnson PJ. Review of macronutrients in parenteral nutrition for neonatal intensive care population. Neonatal Netw 2014; 33: 29-34

Johnson PJ. Review of micronutrients in parenteral nutrition for the NICU population. Neonatal Netw 2014; 33: 155-161

Jolin-Dahel K, Ferretti E, Montiveros C, et al. Parenteral nutrition-induced cholestasis in neonates: where does the problem lie? Gastroenterol Res Pract 2013; 2013:163632

Joosten K, Embleton N, Yan W, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Energy. Clin Nutr 2018; 37: 2309-2314

Kim SM, Lee EY, Chen J, et al. Improved care and growth outcomes by using hybrid humidified incubators in very preterm infants. Pediatrics 2010; 125: e137-45

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kolaček S, Puntis JWL, Hojsak I, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Venous access. Clin Nutr 2018; 37: 2379-2391

Lapillonne A, Fidler Mis N, Goulet O, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Lipids. Clin Nutr 2018; 37: 2324-2336

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

MacKay M, Jackson D, Eggert L, et al. Practice-based validation of calcium and phosphorus solubility limits for pediatric parenteral nutrition solutions. Nutr Clin Pract 2011; 26: 708-713

Maruyama H, Saito J, Nagai M, et al. Maximization of calcium and phosphate in neonatal total parenteral nutrition. Pediatr Int 2018; 60: 634-638

Mesotten D, Joosten K, van Kempen AVS. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR guidelines on pediatric parenteral nutrition: Carbohydrates. Clin Nutr 2018; 37: 2337-2343

Mihatsch W, Fewtrell M, Goulet O, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Calcium, phosphorus and magnesium. Clin Nutr 2018; 37: 2360-2365

Mihatsch W, Shamir R, van Goudoever JB, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Guideline development process for the updated guidelines. Clin Nutr 2018; 37: 2306-2308

Mulla S, Stirling S, Cowey S, et al. Severe hypercalcaemia and hypophosphataemia with an optimised preterm parenteral nutrition formulation in two epochs of differing phosphate supplementation. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2017;102: F451-F455

Neves A, Pereira-da-Silva L, Fernandez-llimos F. Prácticas de prescripción de nutrición parenteral neonatal en Portugal. An Pediatr 2014; 80: 98-105

Neves A, Pereira-da-Silva L, Fernandez-Llimos F. Prácticas de preparación de nutrición parenteral neonatal en Portugal; comparación con las recomendaciones españolas. Nutr Hosp 2014; 29: 1372-1379

Patel P, Bhatia J. Total parenteral nutrition for the very low birth weight infant. Semin Fetal Neonatal Med 2017; 22: 2-7

Pedrón Giner C, Cuervas-Mons Vendrell M, Galera Martínez R, et al. Grupo de Estandarización de la SENPE. Guía de práctica clínica SENPE/SEGHNP/SEFH sobre nutrición parenteral pediátrica. Nutr Hosp 2017; 34: 745-758

Pereira-da-Silva L, Castela J, Malheiro L, et al.; em representação da Secção de Neonatologia da SPP. Nutrição parentérica no recém-nascido: 1ª revisão do consenso nacional, 2008. Acta Pediatr Port 2008; 39: 125-134

Pereira-da-Silva L, Costa A, Pereira L, et al. Early high calcium and phosphorus intake by parenteral nutrition prevents short-term bone strength decline in preterm infants. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2011; 52: 203-209

Pereira-da-Silva L, Henriques G, Amaral JMV, et al. Osmolality of solutions, emulsions and drugs that may have a high osmolality. Aspects of their use in neonatal care. J Matern Fetal Neonatal Med 2002; 11: 333-338

Pereira-da-Silva L, Macedo I, Rosa ML, et al.. Calcium and phosphorus intake by parenteral nutrition in preterm infants. In: Rajendran R, Preedy VR, Patel VB (eds). Diet and Nutrition in Critical Care. New York: Springer Science+Business Media, 2015; 1817-1829

Pereira-da-Silva L, Nóbrega S, Rosa ML, et al. Parenteral nutrition-associated cholestasis and triglyceridemia in surgical term and near-term neonates: A pilot randomized controlled trial of two mixed intravenous lipid emulsions. Clin Nutr ESPEN 2017; 22: 7-12

Pereira-da-Silva L, Nurmamodo A, Amaral JMV, et al. Compatibility of calcium and phosphate in four parenteral nutrition solutions for preterm neonates. Am J Health Syst Pharm 2003; 60: 1041-1044

Pereira-da-Silva L, Pissarra S, Alexandrino AM, et al. On behalf of the Portuguese Neonatal Society. Guidelines for neonatal parenteral nutrition: 2019 Update by the Portuguese Neonatal Society. Part I. General aspects, energy, and macronutrients. Port J Pediatr 2019; 50: 209-219

Pereira-da-Silva L, Pissarra S, Alexandrino AM, et al.; on behalf of the Portuguese Neonatal Society. Guidelines for neonatal parenteral nutrition: 2019 Update by the Portuguese Neonatal Society. Part II. Micronutrients, ready-to-use solutions, and particular conditions. Port J Pediatr 2019; 50: 220-231

Pereira-da-Silva L, Virella D, Henriques G, et al. A simple equation to estimate the osmolarity of neonatal parenteral nutrition solutions. J Parenter Enteral Nutr 2004; 28: 34-37

Puntis J, Hojsak I, Ksiazyk J, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Organisational aspects. Clin Nutr 2018; 37: 2392-2400

Ramel SE, Brown LD, Georgieff MK. The impact of neonatal illness on nutritional requirements – one size does not fit all. Curr Pediatr Rep 2014; 2: 248-254

Riskin A, Picaud J-C, Shamir R. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Standard versus individualized parenteral nutrition. Clin Nutr 2018; 37: 2409-2417

Salama GS, Kaabneh MA, Almasaeed MN, et al. Intravenous lipids for preterm infants: a review. Clin Med Insights Pediatr 2015; 9: 25-36

Van Aerde JE. In preterm infants, does the supplementation of carnitine to parenteral nutrition improve the following clinical outcomes: Growth, lipid metabolism and apneic spells? Part B: Clinical commentary. Paediatr Child Health 2004; 9: 573

van Goudoever JB, Carnielli V, Darmaun D, et al. The ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN working group on pediatric parenteral nutrition. ESPGHAN/ESPEN/ESPR/CSPEN guidelines on pediatric parenteral nutrition: Amino acids. Clin Nutr 2018; 37: 2315-2323

Wong JC, McDougal AR, Tofan M, et al. Doubling calcium and phosphate concentrations in neonatal parenteral nutrition solutions using monobasic potassium phosphate. J Am Coll Nutr 2006; 25: 70-77

Working Group of Pediatrics Chinese Society of Parenteral and Enteral Nutrition, Working Group of Neonatology Chinese Society of Pediatrics, Working Group of Neonatal Surgery Chinese Society of Pediatric Surgery. CSPEN guidelines for nutrition support in neonates. Asia Pac J Clin Nutr 2013; 22: 655-663

Yailian AL, Serre C, Fayard J, et al. Production and stability study of a hospital parenteral nutrition solution for neonates. J Pharm Anal 2019; 9: 83-90

Yildizdas HY, Poyraz B, Atli G, et al. Effects of two different lipid emulsions on antioxidant status, lipid peroxidation and parenteral nutrition- related cholestasis in premature babies, a randomized-controlled study. Pediatrics & Neonatol 2019; 60: 359-36

Zanuy MAV, Bravo SP, Cebas AL, et al. Agreement between different equations to estimate osmolarity of parenteral nutrition solutions. Nutr Hosp 2015; 32: 2757-2762

ALIMENTAÇÃO ENTÉRICA NO RECÉM-NASCIDO PRÉ-TERMO

Importância do problema

A alimentação do RN pré-termo (RN PT) pode considerar-se uma urgência nutricional tendo em consideração a escassez de reservas de nutrientes acumuladas durante a gestação. Pode deduzir-se que quanto menor a idade gestacional e o peso de nascimento, menor a quantidade de reservas; este aspecto tem, pois, maior acuidade nos RN de muito baixo peso (RN MBP) – inferior a 1.500 gramas, pois o período de maior acumulação de reservas de nutrientes e de energia corresponde ao terceiro trimestre da gestação.

Com efeito, é no período compreendido entre a 26ª e 36ª semanas pós-concepcionais que se verificam maior velocidade de ganho de peso e de crescimento longitudinal por hiperplasia e hipertrofia celulares (maior que em qualquer outro momento da vida humana incluindo o período da puberdade). Contudo, a esta fase corresponde também grande vulnerabilidade (trata-se do conceito de período crítico) pela maior possibilidade de efeitos adversos caso surjam carência ou inadequação de suprimento em energia e nutrientes, com repercussões futuras; este aspecto tem maior relevância ao nível do sistema nervoso pela possibilidade de alterações irreversíveis no campo da cognição e comportamento.

No RN com antecedentes de gravidez encurtada (isto é, nascido prematuramente) esta fase a que corresponde grande velocidade de crescimento in utero ocorre em ambiente extrauterino. Por isso, o suprimento nutricional adequado ao RNPT constitui um verdadeiro desafio para os pediatras-neonatologistas tendo em conta diversos factores tais como as particularidades ou limitações anatomofisiológicas inerentes, designadamente no que respeita à imaturidade do tubo digestivo.

Neste capítulo são abordados aspectos fundamentais e algumas especificidades da alimentação no RN pré-termo, em complemento do que foi referido nos primeiros três capítulos da Parte XI, sobre Nutrição.

Salienta-se que este tópico corresponde a uma área do conhecimento científico em que existem controvérsias e dúvidas pela falta de estudos aleatórios e controlados.

 Objectivo da nutrição do RNPT

A Academia Americana de Pediatria (AAP) recomenda que o regime nutricional considerado “ideal” para os RNPT proporcione taxas de crescimento e desenvolvimento semelhantes às observadas no período pré-natal sem, no entanto, conduzir a sobrecarga das funções metabólica e excretora ainda imaturas, com vista ao desenvolvimento neurológico normal.

Diversos estudos recentes têm chamado a atenção para os riscos inerentes a uma estratégia nutricional dita “mais generosa mas agressiva” que, embora produzindo melhores taxas de crescimento a curto prazo, podem conduzir a problemas metabólicos e cardiovasculares tardios; é o chamado dilema nutricional que é colocado ao neonatologista.

Na prática, o crescimento considerado adequado para um lactente com antecedentes de prematuridade deverá ser semelhante ao crescimento que teria in utero, o que corresponde ao incremento de cerca de 10-15 gramas/kg/dia. Todavia, tal nem sempre é possível tendo em conta a multiplicidade de problemas clínicos associados à prematuridade, que comprometem as possibilidades de suprimento de nutrientes; de tal situação poderão resultar défices nutricionais impondo eventualmente necessidades suplementares, o que deverá ser tido em conta na fase de recuperação.

Métodos de alimentação

O suprimento de nutrientes e energia pode realizar-se de dois modos: por via entérica e por via parentérica.

No sentido lato, a chamada alimentação entérica (AE) é um método em que é utilizada a via fisiológica – a digestiva – para suprimento alimentar incluindo a alimentação natural “ao peito” (leite materno), por biberão contendo fórmula ou alimentos especiais, ou por sonda gástrica; no sentido restrito ela diz respeito à administração de leite materno, de fórmula, ou de alimentos especiais substitutivos, por sonda gástrica (consultar Glossário).

Para nutrição inicial ou temporária (até máximo de 2-3 meses) são utilizados tubos nasogástricos (NG), ou nasojejunais (NJ) por fluoroscopia.

A chamada nutrição parentérica (NP) é um método em que os nutrientes e energia são administrados por via IV nos casos em que a situação clínica do RN não permite a utilização da via digestiva; pode ser total (administração exclusiva) ou parcial (associada à alimentação por via digestiva). Embora seja dada ênfase neste capítulo à nutrição do RNPT, cabe referir que, em função do estado clínico do RN, a alimentação entérica por sonda gástrica e a nutrição parentérica também são utilizadas em RN de termo. A NP no RN, quer seja ou não PT, é abordada no capítulo seguinte.

Necessidades nutricionais

Fluidos

As necessidades em fluidos do RN variam em função da idade gestacional, peso de nascimento, idade pós-natal e respectiva situação clínica e ambiental. Como complemento do que foi explanado no Quadro 1 do capítulo sobre Nutrientes (Parte XI).  

Salienta-se que os RN em incubadora em berço aquecido com aquecimento radiante superior requerem maior suprimento em líquidos do que os RN em incubadora em ambiente de humidade controlada. Os RN com peso < 1.000 gramas nas primeiras 24 horas de vida poderão necessitar de > 100-150 mL/kg/dia, obrigando a vigilância rigorosa da diurese, peso e doseamento de electrólitos no sangue.

Como valores médios no RN pré-termo em geral, oscilando em função das perdas, idade gestacional e idade pós-natal, são estabelecidas as necessidades em fluidos da ordem de 140-160 mL/kg/dia (em situações específicas, podendo ultrapassar 160 mL/kg/dia).

Energia

De acordo com a ESPGHAN e AAP tem sido recomendado para RNPT em alimentação entérica, a partir da primeira semana de vida, o suprimento energético, respectivamente, de 110-150 kcal/kg/dia, e de 120 kcal/kg/dia. Suprimentos superiores a 150 kcal/kg/dia estão indicados se o crescimento não for satisfatório.

Quer se trate de AE, quer de NP, os macronutrientes são distribuídos do seguinte modo em termos de percentagem (%) relativa do valor calórico total (VCT):

    • Proteínas: ~ 15% VCT <> 3,5 g/kg/dia;
    • Hidratos de carbono: ~ 55-65% VCT<> 16 g/kg/dia;
    • Gorduras: ~ 35-50% VCT<> 7 g/kg/dia.

O Quadro 1 discrimina a energia consumida que justifica tais necessidades no RNMBP.

QUADRO 1 – Necessidades energéticas (kcal/kg/dia) em função do consumo.

Energia para a manutenção 40-70
Dispêndio metabólico em repouso40-60
Dispêndio com a actividade0-5
Dispêndio com a termorregulação0-5
Energia para o crescimento 35-55
Dispêndio com a síntese15-20
Energia proveniente das reservas20-35
Energia para digestão/ absorção e perdida nas fezes 15
 

Salienta-se que no RN submetido a nutrição parentérica, as necessidades energéticas são menores uma vez que não é consumida energia com a digestão e absorção intestinais, nem se verifica perda energética pelas fezes. Com efeito, verificam-se incremento ponderal e taxas de retenção de azoto com suprimento energético da ordem de 80-100 kcal/kg/dia.

Pelo contrário, as necessidades em energia podem ser superiores em RN com actividade aumentada, hipotermia, SDR, infecção, situações submetidas a intervenção cirúrgica, RCIU, etc..

Proteínas e aminoácidos

No RN PT as necessidades de proteínas e aminoácidos devem ser individualizadas em função da idade gestacional, idade pós-natal e condição clínica, tendo em vista garantir a sua utilização. Por outro lado, deve haver uma relação adequada entre suprimento de proteínas e aminoácidos e suprimento energético. Suprimento excessivo pode levar a alterações metabólicas com efeito deletério ao nível do SNC, enquanto suprimento deficitário poderá conduzir a défice de mielinização e de crescimento dos órgãos.

Recorda-se que para além dos aminoácidos essenciais “clássicos” para o adulto da espécie humana e também para a criança, acrescentam-se para o RNPT: arginina, cistina, taurina, glicina e tirosina.

Uma limitação no RN PT é a imaturidade enzimática (por ex. das vias de degradação, das vias do ciclo da ureia, da fenilalanina-hidroxilase, etc.), sendo que o suprimento excessivo de aminoácidos poderá dar origem a alterações metabólicas tais como hiperamoniémia, urémia, hipertirosinémia, com riscos vários incluindo o de toxicidade neurológica.

Para evitar o catabolismo torna-se necessário o suprimento mínimo de 1,2 a 2 gramas/kg/dia (para a alimentação entérica) e 1 a 1,5 gramas/kg/dia (para a nutrição parentérica, no pressuposto de suprimento energético de 30 kcal/kg/dia).

Um aspecto importante a reter é o seguinte: o suprimento de aminoácidos, mesmo com baixo suprimento energético, poupa as proteínas endógenas por aumentar a síntese proteica.

Hidratos de carbono

Os hidratos de carbono constituem uma fonte energética de rápida utilização, o que contribui para evitar o catabolismo tecidual. Em condições de estabilidade clínica, e em obediência à %VCT, foi estabelecida a necessidade de suprimento médio ~ 16 gramas/kg/dia. O principal hidrato de carbono como fonte energética é a glicose armazenada sob a forma de glicogénio cujo acréscimo (tal como as gorduras) se verifica sobretudo no terceiro trimestre.

Gorduras

As gorduras são nutrientes importantes para o crescimento e desenvolvimento do SNC, salientando-se o seu papel fundamental na sinaptogénese, mielinização, assim como no desenvolvimento da retina e da membrana celular; da composição estrutural desta última cabe salientar os ácidos gordos poli-insaturados de longa cadeia (LCPUFA): o ácido docosa-hexanóico (DHA) e o ácido araquidónico (ARA). Uma vez que somente a partir do terceiro trimestre da gestação se verifica o maior acréscimo dos referidos nutrientes, torna-se fácil compreender a especial vulnerabilidade do RNPT ao défice de suprimento daqueles, sendo que a incorporação de LCPUFA nas membranas neurais depende da transferência transplacentar dos referidos ácidos gordos e do suprimento pós-natal.

Tratando-se de AE, o suprimento de gorduras, deve corresponder a 7 gramas/kg/dia; para evitar a deficiência em ácidos gordos essenciais (designadamente ácido linoleico e linolénico) torna-se necessário o suprimento mínimo de 0,5-1 grama/kg/dia (~ 2-4% do VCT); as gorduras na totalidade não deverão ultrapassar 50% do VCT.

Minerais, oligoelementos e vitaminas

As necessidades em minerais, oligoelementos e vitaminas, abordadas de modo genérico no capítulo sobre nutrientes (volume 1- parte XI), são especificadas para o RN no capítulo seguinte.

Estimando-se uma prevalência de 1/530 de carência em vitamina B12 na mãe grávida e RN, certas escolas preconizam o rastreio de tal carência na grávida e/ou no RN.

Esquemas de alimentação entérica (AE)

Vias de administração

Nos RN com idade gestacional igual ou superior a 34 semanas e/ou sucção-deglutição estabelecida, a administração de leite deve ser iniciada por via oral e ao peito da mãe (por conseguinte, em condições ideais, com leite materno); caso tal não seja possível, poderá administrar-se leite de fórmula adequado à condição clínica do RN PT através de biberão/tetina.

Nos RN com idade gestacional inferior a 34 semanas, ou naqueles em que a situação clínica não permite a sucção, a alimentação entérica é propiciada através de técnicas utilizando, dum modo geral, sondas:

  • Nasogástrica (de mais fácil fixação do que a orogástrica, mas aumentando a resistência da via aérea);
  • Orogástrica (preferida nos casos de SDR e/ou com risco de apneia);
  • Transpilórica (com uma oliva de tungsténio na extremidade, “mais pesada”, para facilitar a passagem desta para o duodeno enquanto se verifica peristaltismo); está indicada nos casos de refluxo gastresofágico importante ou intolerância gástrica; com tal sonda não é possível beneficiar das enzimas gástricas que promovem a digestão das gorduras).

Em situações específicas o leite ou alimento líquido pode ser administrado através de acessos cirúrgicos (gastrostomia ou jejunostomia).

As sondas convencionais, fabricadas com polietileno ou cloreto de polivinil, devem ser substituídas cada 3-4 dias. Actualmente são utilizadas sondas de poliuretano ou silicone, mais flexíveis, de maior diâmetro interno, e menos susceptíveis de originarem lesão traumática da mucosa.

Técnicas

O objectivo principal da alimentação no RN PT (após período fisiológico inicial de perda e de recuperação do peso de nascimento) é propiciar um crescimento aproximado ao verificado in utero para idêntica idade gestacional (~ 10-25 gramas/kg/dia). Menor acréscimo de peso indicará, em princípio, suprimento energético deficitário, enquanto acréscimo superior poderá estar relacionado com sobrecarga de fluidos. Na prática, tal objectivo é em geral conseguido com suprimento de volume de leite entre 150-160 mL/kg/dia.

Tratando-se de alimentação com fórmula, poderá haver, de facto, variação do volume dentro de pequenos limites tendo em conta a concentração calórica utilizada (por ex. 80 kcal/100 mL ou 70 kcal/100 mL).

  1. Nos RN alimentados por via oral (excluindo RN com aleitamento materno exclusivo) pode ser utilizada a seguinte estratégia:
    • RN com peso de nascimento entre 1.500-2.000 gramas: 3-4 mL cada 3 horas com incrementos diários por refeição de 3-4 mL;
    • RN com peso de nascimento superior a 2.000 gramas: 5 mL cada 3 horas com incrementos diários por refeição de 5 mL.
  1. Nos RN alimentados por sonda nasogástrica duas técnicas podem ser utilizadas: intermitente (com seringa, injectando o leite em bolus, ou com seringa vertical sem êmbolo- método gravitacional), contínua empregando bomba de perfusão, ou combinação das duas:
    1. 2.1 Intermitente A administração do leite materno ou fórmula pela via gástrica intermitente (cada 2 ou 3 horas) é considerada mais fisiológica relativamente à contínua pelo facto de favorecer o processo cíclico de secreção das hormonas intestinais e do sistema biliar, propiciando melhor tolerância; por outro lado, não exige o emprego de bombas de perfusão e comporta menor risco de precipitação dos nutrientes no sistema de administração. Utiliza-se em geral o seguinte esquema (versátil em função da tolerância), considerando volumes por refeição de 2-2 ou de 3-3 horas):
      • RN de peso < 1.000 gramas: volume inicial: 10-20 mL/kg/dia; incremento de + 10 mL/kg/dia nos RN com peso < 750 gramas, e de + 20 mL/kg/dia nos RN com peso entre 750-999 gramas;
      • RN de peso 1.000-1.499 gramas: volume inicial: 20-30 mL/kg/dia; incremento de + 20 mL/kg/dia;
      • RN de peso 1.500-2.499 gramas: volume inicial: 30-40 mL/kg/dia; incremento de + 30-40 mL/kg/dia;
      • RN de peso igual ou superior a 2.500 gramas: volume inicial: 50 mL/kg/dia; incremento de + 50 mL/kg/dia.
      O objectivo desta progressão em volume (que deve ser individualizado em função do estado clínico) é atingir 140-160 mL/kg/dia, salientando-se que este esquema não se aplica aos RN alimentados PO.
    2. 2.2 Contínua Aplicam-se neste caso as regras respeitantes aos volumes a administrar atrás mencionadas. A alimentação gástrica contínua está especialmente indicada nos casos de prematuridade extrema (RN de peso inferior a 1.000 gramas), SDR e intolerância à técnica intermitente.
  1. Intermitente/contínua Trata-se duma variante que combina as técnicas de administração intermitente e contínua: por ex. alimentação contínua durante uma hora seguida de pausa de 2-3 horas.

Alimentação entérica mínima ou trófica

Está provado que o jejum prolongado, originando atrofia da mucosa intestinal, compromete a integridade anatomofisiológica da mesma e facilita, entre outros efeitos adversos, a passagem de bactérias para a corrente sanguínea. Por outro lado, demonstrou-se que a utilização de pequeno volume de leite (idealmente materno) sem objectivos de cumprimento das necessidades nutricionais, constitui importante estímulo para garantir a referida integridade anatomofisiológica e imunológica do tracto intestinal, uma vez que o mesmo conduz à libertação de factores de crescimento, de secreções exócrinas várias (pancreáticas, biliares, etc.), à secreção de hormonas intestinais com efeitos trófico, maturativo, e de estímulo da motilidade intestinal, ao desenvolvimento do microbioma, etc.. Os resultados a curto e médio prazo são, fundamentalmente, menor incidência de intolerância alimentar e de colestase, menor tempo de NP, mais fácil transição para a AE “plena”, etc..

Na prática, a partir da fase de estabilização hemodinâmica, e desde o 1º dia, administra-se leite (0,5-10 mL/kg/dia, sendo o volume total dividido em várias parcelas nas 24 horas, cada 3, 4, 6 ou 8 horas, por ex. em função do contexto clínico e tolerância); é a chamada alimentação entérica não nutricional ou trófica. O volume de leite deve ser incrementado em função da situação clínica do RNPT, podendo eventualmente haver necessidade de o reduzir se se verificar intolerância.

Por outro lado, a chamada “sucção não nutricional” ou não acompanhada de suprimento de leite, deve ser estimulada nos RN PT o mais precocemente possível (inicialmente com chupeta, dedo com luva esterilizada, e, se houver condições clínicas, com o mamilo-aréola da mãe mesmo antes da chamada “subida do leite”), não só como “habituação” para a fase de autonomia de sucção/deglutição de leite, mas igualmente pela razão de a referida sucção constituir um estímulo para a secreção láctea e da lipase salivar.

Preparados de reforço nutricional do leite materno

Está provado que o leite da própria mãe do RN pré-termo (leite materno pré-termo) é o preferido para o mesmo, especialmente se se tratar de RNMBP. Tal se explica pela maior biodisponibilidade de nutrientes, propriedades imunológicas, presença de enzimas, hormonas e factores de crescimento.

Relativamente ao leite humano de termo (maturo), o de pré-termo possui maior carga calórica e maior concentração de proteínas, sódio e cloro; por outro lado, possui mais baixa concentração de lactose do que o leite humano maturo. Estas diferenças em composição, que persistem durante o 1º mês de lactação, são consideradas benéficas para o RN pré-termo.

Apesar destas diferenças, diversos estudos sugerem que o leite humano pré-termo não satisfaz as necessidades para o crescimento de RN pré-termo quanto a proteínas, cálcio, fósforo, sódio, ferro, cobre, zinco e algumas vitaminas. Nesta perspectiva, tem sido recomendada a suplementação ou enriquecimento do leite materno a administrar a RN pré-termo com preparados em pó (comercializados em pacotes), reforçando o conteúdo do mesmo em energia, proteínas, hidratos de carbono, cálcio e fosfato. No Quadro 2 mostra-se o incremento obtido com a referida suplementação.

QUADRO 2 – Incremento nutricional do leite materno após suplementação (por 100 mL de leite materno).
[incremento <> diferença do valor antes e depois da seta →]

Energia (kcal): 10 →14
Proteínas (g): 0,6 →1g
Hidratos de carbono (g): 2 →2,4
Gordura (g): vestigial 
Sódio (mmol): 0,3 →0,9
Cálcio (mmol): 1 →2,2
Fósforo (mmol): 0,7 →1,2


A adjunção do reforço ao leite humano nas circunstâncias referidas é iniciada a partir do suprimento ≥ 100 mL/dia.

Noutros tipos de suplementação podem ser utilizados polímeros de glucose (3,8 kcal/grama de pó), ou triglicéridos de média cadeia, [requerendo mínima digestão por serem absorvidos directamente para o sistema porta (7,7 kcal/mL)].

Fórmulas para pré-termo

Na ausência de leite humano, as fórmulas para pré-termo constituem o substituto mais apropriado. Como alternativa, em função do contexto clínico, hidrolisados de proteínas ou fórmulas elementares. Em comparação com as fórmulas para bebés de termo, as primeiras possuem mais elevada concentração de proteínas (2,5 g/100 mL contra 1,8 g/100 mL), maior carga calórica (75 kcal/100 mL contra 90 kcal/100 mL), e mais elevada concentração de minerais, vitaminas e oligoelementos.

Regras práticas da AE

  • O resíduo gástrico – a verificar antes de cada refeição – não deverá exceder o volume de 2-4 mL/kg; caso tal se verifique, o referido volume residual deve ser reintroduzido (com o objectivo de manter o balanço electrolítico); ou seja, o volume da refeição próxima deve ser subtraído do volume correspondente ao referido resíduo.
  • A alimentação entérica deve ser suspensa – por período variável em função do contexto clínico – nos casos de distensão abdominal, vómitos ou dificuldade respiratória.
  • A presença de resíduo gástrico > 10 mL/kg poderá dever-se a alteração funcional da motilidade em relação com a prematuridade, ou a patologia oclusiva diversa: ECN, esquema alimentar inadequado, alterações metabólicas, infecção sistémica, hipotermia, hipoxémia, etc..
  • Após a refeição o RN (monitorizado) deve ser colocado em decúbito ventral com a cabeça e tronco elevados.
  • As crianças necessitando de AE prolongada durante vários meses poderão ser candidatas à gastrostomia.

Transição da via entérica para a via oral

Dum modo geral esta transição deve ser gradual e ter início quando a situação clínica o permitir: coordenação da sucção – deglutição, estabilidade clínica, idade corrigida superior a 34 semanas e peso superior a 1500 gramas. No caso de crianças com antecedentes de gastrostomia, tal transição poderá ser mais difícil implicando eventualmente a necessidade de colaboração da equipa de fisiatria tendo em vista a estimulação motora.

BIBLIOGRAFIA

Birch EE, Garfield S, Castañeda Y, et al. Visual acuity, and cognitive outcomes at 4 years of age in a double-blind, randomized trial of long-chain polyunsaturated fatty acid –supplemented infant formula. Early Hum Develop 2007; 83: 279-284

Cloherty JP, Stark AR (eds). Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Wolters & Kluwer, 2017

Delange FM, West KP (eds). Micronutrient Deficiencies in the First Months of life. Basel: Karger/Nestlé Nutrition Institute, 2003

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gramer G, Fang-Hoffmann J, Feyh P, et al. Newborn screening for vitamin B12 deficiency in Germany—strategies, results, and public health implications. J Pediatr 2020; 216:165-72

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadephia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Modi N. Management of fluid balance in the very immature neonate. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2004; 89: F108-111

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Ng YY, Su PH, Chen JY, et al. Efficacy of intermediate – dose oral erythromycin in very low birth weight infants with feeding intolerance. Pediatr Neonatol 2012; 53: 34-40

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Polin RA, Yoder MC. Workbook in Practical Neonatology. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

ALTERAÇÕES DO METABOLISMO DA GLUCOSE

Etiopatogénese e importância do problema

A glicose constitui a principal fonte energética para o metabolismo fetal e, designadamente, para a função do encéfalo. Toda a glucose utilizada no feto é transportada através de gradiente de difusão facilitada, sendo que a concentração de glucose no sangue fetal é cerca de 70% da concentração no sangue materno.

Para a compreensão das alterações do metabolismo da glicose no período neonatal imediato é fundamental reter as seguintes noções:

  1. As reservas de glicogénio, fonte de glucose, em vários órgãos, principalmente fígado e músculo estriado, no feto/RN de termo e de peso adequado para a idade gestacional, são escassas; e tal escassez das mesmas é mais acentuada no RN pré-termo de baixo peso e/ou no RN com restrição de crescimento fetal;
  2. Não existe produção significativa de glucose pelo próprio feto apesar de as enzimas da neoglucogénese e da glicogenólise estarem relativamente funcionantes no termo da gestação (excluindo as situações de doenças hereditárias do metabolismo);
  3. Na vida fetal o teor em glucose proveniente da mãe cifra-se em cerca de 4-6 mg/kg/minuto.

Após o nascimento, verificando-se uma interrupção brusca da glicose fornecida por via umbilical, coincidindo com a laqueação do cordão, a concentração de glicose sanguínea (glicémia) no RN desce rapidamente para níveis inferiores aos da vida fetal, estimando-se então as necessidades em glicose da ordem de 5-8 mg/kg/minuto, superiores às do feto, e cerca de 3 a 4 vezes superiores às do adulto.

Para que a glicémia se mantenha em níveis normais, é necessária uma interacção complexa de vários mecanismos hormonais, a saber:

  • A elevação do glucagom e das catecolaminas estimulando a glicogenólise hepática;
  • A elevação do cortisol e da hormona de crescimento estimulando a neoglucogénese e;
  • A diminuição da secreção de insulina cuja acção é a utilização da glucose pelos tecidos, reduzindo a glicémia (antagonista da do glucagom).

A glicogenólise contribui para a espoliação das reservas de glicogénio, o que, por sua vez, activa a neoglucogénese.

Como alternativa ao “substrato energético glucose” existem outros substratos (lactato, aminoácidos – sobretudo alanina -, ácidos gordos livres, corpos cetónicos), salientando-se que o RN – sobretudo o pré-termo e o de baixo peso – evidencia resposta limitada à utilização de tais compostos.

Em suma:

  1. Este processo de adaptação fetal endócrino-metabólica à vida extrauterina é mais limitado no RN pré-termo e no RN de baixo peso com restrição de crescimento fetal tendo em conta, nomeadamente, a imaturidade das enzimas da glicogenólise e da neoglicogénese, assim como a escassez mais acentuada das reservas de glicogénio e de músculo (fonte de aminoácidos);
  2. A concentração da glicose no sangue do RN depende da integridade e maturidade dos mecanismos reguladores referidos.

A importância deste problema decorre sobretudo da possibilidade de lesão neuronal e de sequelas neurológicas, atribuíveis à diminuição da glicémia abaixo de determinados valores (hipoglicémia), associada por vezes a alterações da microcirculação e a factores como hipóxia ou infecção. De realçar que a hipoglicémia grave no RN se associa a necrose neuronal selectiva em múltiplas regiões do encéfalo, incluindo designadamente o córtex superficial, o hipocampo e o putamen caudato. As principais consequências histopatológicas dizem respeito, sobretudo, a necrose neuronal com ruptura das sinapses e membrana celular comprometendo seriamente a transmissão sináptica.

Por outro lado, valores elevados (hiperglicémia) podem ter igualmente efeitos deletérios no SNC e de diurese osmótica, entre outros.

A alimentação precoce com colostro e leite materno contribui para evitar a tendência do RN para a diminuição da glicémia, e até elevando-a, pelas seguintes razões: estimulação dos precursores neoglucogénicos como o aminoácido alanina, estimulação de enzimas necessárias à cetogénese como a lactase, e diminuição da secreção de insulina.

Pelo contrário a prática habitual de administração de soro glucosado a 5% ou 10%, de “sabor doce”, que deve ser desencorajada – para além de desmotivar o RN para a sucção de colostro de “sabor salgado” – diminui a secreção de glucagom e a neoglicogénese, sem garantir valor da glicémia dentro da normalidade e estável.

Neste capítulo são abordados dois problemas clínicos relacionados com alteração do metabolismo da glicose (hipoglicémia e hiperglicémia) no RN.

HIPOGLICÉMIA

Definição

A definição de hipoglicémia (não totalmente consensual entre os vários grupos de investigação) é biológica: depende dos valores laboratoriais obtidos de amostras de sangue ou plasma, uma vez que nem sempre é sintomática; conceptualmente, considera-se baixo o valor plasmático de glicose a que corresponde elevada probabilidade de lesão funcional.

No recém-nascido saudável, o valor limite de normalidade mais consensual em amostra de plasma é 40 mg/dL (2,2 mmol/L) após as 12 horas de vida, com valores fisiologicamente mais baixos nas primeiras 3 horas de vida, sendo que se atinge o mínimo cerca das 1-2 horas (1,5 mmol/L, 27 mg/dL) com recuperação espontânea pelas 3 horas de vida.

Este limite tem sido definido em função de determinados parâmetros: epidemiológico (dois desvios padrão abaixo da média), clínico (nível para o qual surge sintomatologia), metabólico (valor para o qual surge contrarregulação metabólica) ou neurofisiológico (valor para o qual surgem alterações do fluxo cerebral).

Nesta perspectiva, a definição mais útil é a dita operacional, ou seja, a que corresponde ao limiar que obrigue a intervenção terapêutica, de acordo com a situação clínica do recém-nascido e a presença de factores de risco.

Assim, considera-se valor limite inferior de normalidade da glicémia (determinada em amostra de plasma) justificando intervenção terapêutica:

  • No RN saudável com mais de 3h de vida: < 2 mmol/L (36 mg/dL);
  • No RN sintomático: < 2,5 mmol/L (45 mg/dL);
  • No RN com hiperinsulinismo: < 3,5 mmol/L (64 mg/dL).

A determinação da glicémia deve ser feita utilizando um método rápido, sensível e barato, exequível à cabeceira do doente, e com pequena quantidade de sangue capilar (na prática, para rastreio, utiliza-se micrométodo com tiras-reagente pelo método da glucose-oxidase – Dextrostix®, BMtest®, etc.); de salientar que, com sangue total, o valor obtido é cerca de 10-15% inferior ao do plasma.

Considera-se actualmente que a determinação plasmática é a mais correcta, já que a determinação em sangue total é afectada pelo hematócrito (valores de glicémia respectivamente decrescentes no sangue: arterial > capilar > venoso).

São salientadas as seguintes regras práticas:

    • valores alterados baixos de glicémia, determinados por micrométodo, obrigam sempre a confirmação em amostras de plasma;
    • a verificação de glicémia < 20-25 mg/dL em todo e qualquer RN obrigará à administração de glucose IV com o objectivo de ser atingido o nível plasmático de glucose > 45 mg/dL;
    • com base em estudos anatomoclínicos, metabólicos, e de neurodesenvolvimento, para garantir a homeostase e evitar lesão do SNC, mesmo na ausência de sintomatologia, é crucial que se mantenha o valor da glicemia > 45 mg/dL no 1º dia de vida, e > 50 mg/dL, a partir das 24 horas de vida.

Aspectos epidemiológicos

A hipoglicémia constitui o problema metabólico mais frequente no RN.

De acordo com diversos estudos epidemiológicos, estima-se incidência entre 2 a 3/1.000 nados-vivos. Tendo em conta as particularidades fisiopatológicas da prematuridade e da restrição do crescimento intrauterino, não é de estranhar que em tais grupos de RN se verifiquem incidências maiores (5-10%).

 Etiopatogénese e classificação

A hipoglicémia pode surgir de forma transitória no recém-nascido por diversos mecanismos em que predominam, relativamente à glucose: diminuição da oferta; ou consumo excessivo.

Diminuição da oferta de glicose

Como grupos de risco ou de grande probabilidade de hipoglicémia em que prevalece este mecanismo, citam-se:

Prematuridade (gravidez encurtada)

No RNPT a probabilidade de hipoglicémia explica-se sobretudo pelo défice de reservas de glicogénio (fonte de glicose) e de gordura, cujo acréscimo se verifica sobretudo no terceiro trimestre.

São também determinantes a imaturidade da neoglucogénese (sobretudo por défice da actividade da fosfoenolpiruvatoquinase) e de várias enzimas implicadas no metabolismo da glucose. Verifica-se igualmente imaturidade da cetogénese.

Restrição de crescimento fetal ou intrauterino (RCIU)

Nos RN com RCIU os mecanismos são semelhantes aos descritos no RNPT, tendo menor relevância a imaturidade enzimática caso não exista prematuridade concomitante.

Verifica-se o papel preponderante das reservas diminuídas de glicogénio e de gordura, e do défice de neoglucogénese. De salientar que frequentemente existem situações associadas susceptíveis de aumentarem o consumo pré- e pós-parto como a asfixia perinatal. Uma das particularidades da hipoglicémia na RCIU é a tendência para se prolongar por cerca de 48-72 horas.

Asfixia perinatal

Nestas circunstâncias, a hipóxia e a acidose, incrementando a actividade e a libertação de catecolaminas, levam a glicogenólise e aumento de consumo da glicose por glicólise anaeróbia, baixando, por isso, a glucose no sangue. Tal acontece por necessidade de suprimento energético (glucose) à célula cerebral face ao défice de oxigenação.

Este mecanismo é, na generalidade, comum a outras situações, como infecção perinatal, hipotermia e RN com cardiopatia congénita cianótica (neste último caso em situações acompanhadas de défice de fluxo sanguíneo hepático dificultando a glicogenólise e a saída de glicose para o sangue).

Consumo excessivo de glucose

Como grupos de risco ou de grande probabilidade de hipoglicémia em que prevalece este mecanismo, citam-se:

RN de mãe diabética

O exemplo paradigmático deste mecanismo é o hiperinsulinismo fetal/neonatal por hiperplasia das células b dos ilhéus de Langerhans face à hiperglicémia materna no contexto de diabetes; o efeito no RN quanto a valor glicémico verifica-se após a laqueação do cordão umbilical (hipoglicémia nas primeiras horas e tanto mais acentuada e mais duradoira quanto mais elevada a hiperglicémia materna).

Outros efeitos do hiperinsulinismo são: incremento da síntese de proteínas e de glicogénio hepático causando macrossomia, cardiomiopatia com hipertrofia do septo e parede ventricular e hematopoiese extramedular.

A síndroma de policitémia/hiperviscosidade, isoladamente ou muitas vezes associada a problemas do RNMD, constitui também exemplo de consumo incrementado de glucose pela maior massa eritrocitária.

Outras situações acompanhadas de hiperinsulinismo

Cabe referir fundamentalmente:

  1. A utilização de medicamentos administrados à mãe grávida estimulando a produção de insulina e a libertação de catecolaminas (por ex. corticóides, beta-simpaticomiméticos, propranolol, tiazidas, etc.);
  2. A utilização de perfusão de dextrose intra-parto com suprimento de glucose superior a 8-10 gramas/hora originando estimulação das células b dos ilhéus pancreáticos;
  3. Certas formas clínicas de doença hemolítica por incompatibilidade Rh em que se admite que a hemólise maciça, originando incremento da glutationa reduzida, provoque estimulação das referidas células beta e hiperprodução transitória de insulina;
  4. Nutrição parentérica com cateter central, empregando soluções com elevada concentração de glucose, poderá estimular a secreção de insulina com consequente hipoglicémia; nos casos de cateter arterial umbilical (com solução de dextrose para manutenção da permeabilidade do mesmo) em posição incorrecta (entre D11 e L1), dirigido para o tronco celíaco que irriga directamente o pâncreas, poderá verificar-se igualmente estimulação da secreção de insulina com idênticas consequências;
  5. Exsanguinotransfusão com sangue hiperglicémico contendo citrato-fosfato-dextrose.

Outros mecanismos

A hipoglicémia pode surgir também de forma persistente ou recorrente por diversos mecanismos tais como: doenças hereditárias da neoglucogénese, da cetogénese, da glicogenólise, alterações endócrinas (hipopituitarismo, insuficiência adrenocortical, défice de hormona de crescimento, hiperinsulinismo congénito, certas formas da chamada síndroma de Beckwith – Wiedemann, etc.).

O hiperinsulinismo congénito (anteriormente designado nesidioblastose), constituindo a causa mais comum de hipoglicémia persistente no recém-nascido, deve ser destacado. A sua base etiopatogénica engloba várias entidades clínicas a que correspondem outros tantos mecanismos: alteração na regulação da secreção de insulina, defeitos dos canais de potássio regulados pelo ATP, formas autossómicas recessivas e dominantes (em relação com mutações de genes no cromossoma 11), défice da activação da glucoquinase, défice da activação do glutamato desidrogenase, défice da isomerase da fosfomanose, etc..

A síndroma de Beckwith-Wiedemann também merece ser destacada por cursar em 50% dos casos com hipoglicémia hiperinsulinémica por hiperplasia das células beta dos ilhéus; caracteriza-se fundamentalmente por visceromegália, onfalocele, macroglóssia, gigantismo e microcefalia.

O gigantismo é relacionado com mutações no cromossoma 11p15.5 em região próxima à dos genes da insulina e do IGF-2. Por outro lado, associa-se a tendência para certas neoplasias como tumor de Wilms, hepatoblastoma, carcinoma da suprarrenal, rabdomiossarcoma, etc..

Como será fácil depreender, as formas persistentes e recorrentes de hipoglicémia, estão habitualmente associadas a manifestações clínicas mais graves e a maior probabilidade de sequelas neurológicas.

Os Quadros 1 e 2 sintetizam as principais situações clínicas com risco elevado de hipoglicémia neonatal, especificando-se, nalgumas delas, a respectiva etiopatogénese.

[Nota referente à terminologia de hiperinsulinismo: Embora no RNMD exista hiperinsulinismo fetal (congénito), o mesmo não é considerado de causa genética (permanente), mas adquirido in utero (transitório)].

QUADRO 1 – Hipoglicémia neonatal (formas transitórias).

(*) Consultar texto sobre a etiopatogénese e o Capítulo sobre Embriofetopatia Diabética

Problemas maternos (*)

    • Diabetes (pré-gestacional e gestacional)
    • Drogas (beta-bloqueantes, hipoglicemiantes orais, tiazidas, )
    • Administração de glicose intraparto (> 8-10 gramas/hora)

Problemas neonatais (*)

    • Prematuridade (RNPT)
    • RN de mãe diabética
    • Restrição do crescimento intrauterino (RCIU) ou macrossomia
    • Asfixia perinatal
    • Hipotermia
    • Infecção sistémica
    • Policitémia
    • Nutrição parentérica

QUADRO 2 – Hipoglicémia neonatal (formas persistentes).

Causas endócrinas e doenças hereditárias do metabolismo

Hiperinsulinismo

    • Hiperinsulinismo congénito
    • Síndroma de Beckwith – Wiedmann

Défice de regulação hormonal

    • Hipopituitarismo
    • Défice de hormona de crescimento
    • Alterações adreno-corticais

Défice de oxidação dos ácidos gordos

    • Défice de oxidação dos ácidos gordos de cadeia média e longa

Doenças por erros da neoglucogénese

    • Défice de frutose 1,6-difosfatase

Glicogenoses

    • Défice de glucose-6-fosfatase
    • Défice de glicogénio sintetase

Outras

    • Galactosémia
    • Leucinose
    • Acidémia propiónica

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos a hipoglicémia é assintomática, não se verificando sequelas. Tal poderá explicar-se pelas circunstâncias de aquela não persistir para além de 2-3 horas, e de se verificar a utilização de lactato e corpos cetónicos como substratos metabólicos alternativos.

As manifestações clínicas de hipoglicémia – que são inespecíficas – globalmente constituem um epifenómeno da libertação de catecolaminas (por ex. taquicárdia e sudação), e do défice de glicose cerebral (por ex. tremores, hiperexcitabilidade, letargia, convulsões, coma, etc.). Outros sinais associados incluem: apneia, cianose, dificuldade respiratória, recusa alimentar, hipotensão, mioclonias, etc..

Diagnóstico

Uma vez que, como foi referido, a hipoglicémia nem sempre é sintomática, torna-se imprescindível proceder ao rastreio através de fitas reagentes-Dextrostix®, BMtest®, etc. – (colheita de sangue capilar na região calcaneana) – a partir das 3 horas de vida e nas primeiras 24-72 horas, – nos RN considerados de risco elevado, com prioridade para: RN PT e/ou de MBP, RN com RCIU, RNMD, RN macrossomáticos (> 4.000 gramas), RN grandes ou de peso excessivo para a idade gestacional.

Por outro lado, tal determinação é obrigatória sempre que exista qualquer sinal suspeito.

Chama-se a atenção para a necessidade de a técnica de colheita de sangue capilar ser realizada correctamente (cuidados de assépsia e aquecimento prévio do pé com o objectivo de promover vasodilatação e facilitar o fluxo de sangue).

No RN sem factores de risco, uma determinação confirmada de glicémia plasmática muito baixa deve levantar a suspeita de hipoglicémia de causa metabólica ou endócrina.

Determinadas situações obrigarão a esclarecimento etiológico mais complexo (investigação alargada incluindo outros exames laboratoriais), nomeadamente: hipoglicémia sintomática no recém-nascido de termo, alterações da consciência ou convulsões, hipoglicémia persistente ou recorrente, necessidade de perfusão endovenosa de glicémia com valores superiores a 10 mg/kg/minuto (ver adiante), síndroma malformativa associada a hiperinsulinismo, e história familiar de morte súbita ou de síndroma de Reye.

O Quadro 3 resume os exames complementares e parâmetros laboratoriais a investigar nos casos de hipoglicémia persistente ou recorrente (suspeita de doença endócrina ou hereditária do metabolismo).

QUADRO 3 – Investigação em casos de suspeita de doença endócrina ou doença hereditária do metabolismo (hipoglicémia persistente ou recorrente).

Sangue

    • Metabólitos intermediários (glicose, lactato, piruvato, alanina, ácidos gordos livres e corpos cetónicos)
    • Electrólitos, função hepática, pH e gases no sangue
    • Amónia
    • Aminoácidos
    • Carnitina total e livre
    • Perfil de acilcarnitinas
    • Insulina e péptido C, hormona de crescimento, cortisol e hormonas tiroideias

Urina

    • Corpos cetónicos
    • Ácidos orgânicos
    • Substâncias redutoras

Outros

    • Exame oftalmológico
    • Ecografia transfontanelar ou TAC


Constituem principais critérios de diagnóstico de hiperinsulinismo perante glicose no sangue < 50 mg/dL:

  1. Insulina no plasma < 2 uU/mL;
  2. Ácidos gordos no plasma < 1,5 mmol/L;
  3. Beta-hidroxibutirato < 2,0 mmol/L.

A elevação da glucose em 40 mg/dL, ou mais, após administração de glucagom (50 mcg/kg até máximo de 1 mg IV ou IM), coincidindo com hipoglicémia, sugere estado hiperinsulinémico com reservas de glicogénio adequadas e enzimas da glicogenólise intactas.

Se a amoniémia estiver elevada, atingindo 200 mmol/L, há que admitir mutação nos genes implicados na activação da glutamato desidrogenase/ deficiência desta enzima (ver atrás).

Tratamento

O principal objectivo do tratamento da hipoglicémia neonatal é manter o nível de glucose plasmática superior a 45 mg/dL.

Hipoglicémia sintomática

Uma vez diagnosticada, e independentemente do factor etiológico, é utilizado o seguinte procedimento:

  • Administração de glucose IV em bolus: 200 mg/kg (2 ml/kg de soro glicosado a 10%) em cerca de 2 a 3 minutos; de salientar que este procedimento (200 mg/kg em bolus inicial) é desaconselhado por certos autores, como Rozance (bibliografia de 2020);
  • O referido bolus deve ser sempre seguido de administração contínua de glicose IV na dose de ~ 8 mg/kg/minuto durante cerca de 1 hora, ao fim da qual se deve proceder à determinação da glicémia com fita reagente.

Se o valor da glicémia for > 45 mg/dL, a dose de glucose deve ser reduzida para 6 mg/kg/minuto durante três horas; se o valor da glicémia se mantiver > 45 mg/dL, deve reduzir-se progressivamente o suprimento de glucose em 1 mg/kg/minuto cada 12 horas (verificando a glicémia com tira reagente cerca de 1 hora após redução da dose) até se atingir a dose de glucose IV de 4 mg/kg/minuto, a manter durante mais cerca de 24 horas com determinações da glicémia de 8-8 horas; se durante a administração IV da solução de glucose neste período os valores da glicémia forem > 45 mg/dL, suspende-se a perfusão de glucose com ulteriores determinações da glicémia, três a 4 vezes por dia em função do contexto clínico.

Se o valor da glicémia se mantiver < 45 mg/dL após bolus inicial e início de perfusão de glucose na dose de 8 mg/kg/minuto, deve repetir-se o bolus e aumentar a dose de glucose progressivamente, não ultrapassando 12 mg/kg/minuto.

No RN com hiperinsulinismo persistente (demonstração de níveis excessivos de insulina para as concentrações séricas simultâneas de glicose) adopta-se o seguinte procedimento: – deve manter-se a glicémia > 64 mg/dL (> 3,5 mmol/L), o que poderá obrigar à necessidade de suprimento de glucose da ordem de 15 a 20 mg/kg/min e de soluções glucosadas com concentração superior a 10%; – deve igualmente manter-se o suprimento alimentar por via entérica sempre que possível (preferência para o leite materno, se necessário com a utilização de sonda orogástrica) assegurando acesso venoso permanente.

Regras práticas importantes:

    1. A alimentação entérica (preferência para o leite materno) pode ser iniciada em ritmo contínuo por sonda gástrica, acompanhada de redução lenta do volume de solução de glicose IV concomitantemente administrada.
    2. Durante a correcção da hipoglicémia deve atender-se a:
      • regras do suprimento hídrico recomendado em função do peso de nascimento, dias de vida, situação clínica, etc.;
      • limites máximos de concentração do soluto de glucose IV: até 12,5% se aplicado em veia periférica, e até 20% se aplicado em veia central.
    3. Como medida inicial de emergência, se o acesso venoso for difícil, pode ser administrado glucagom intramuscular (100 mcg/kg em bolus), que promove a glicogenólise hepática, a neoglicogénese e a cetogénese; no entanto, esta medida deve ser evitada em RN com RCIU cujas reservas de glicogénio (substrato para a acção do glucagom) são deficitárias.
    4. Nas hipoglicémias refractárias em geral (apesar do suprimento aumentado de glicose (o hiperinsulinismo, já referido, é um dos exemplos) está indicada a administração de fármacos hiperglicemiantes:
      • Corticosteróides (fármacos de primeira escolha aumentando a neoglicogénese): hidrocortisona IV (10 mg/kg/dia, em duas doses) ou prednisolona por via oral (1-2 mg/kg/dia em 3 doses) não ultrapassando 5 dias; nos casos de hiperinsulinismo poderá haver necessidade de tratamento mais prolongado.
      • Glucagom IM ou IV na dose inicial de 300 mcg/kg e na dose de manutenção podendo variar entre 100 e 200 mcg/kg de 12-12 horas.
      • Outros fármacos implicando precauções especiais e experiência da equipa assistencial: diazóxido IV: 10-15 mg/kg/dia (com efeitos colaterais importantes, por ex. trombocitopénia, hipotensão, etc.), análogo de somatostatina (octreotido), etc..
      • Pancreatectomia indicada nos casos em que se verifica:
        • hipoglicémia refractária [à glucose IV + diazóxido (até 20 mg/kg/dia) e a análogos da somatostatina], ou
        • adenoma do pâncreas.

Hipoglicémia assintomática

No caso de glicémia < 36 mg/dL (< 2 mmol/L) tratando-se de RN de termo, assintomático, de peso adequado para a idade gestacional e sem factores de risco, com idade superior a 3 horas de vida, o RN deve ser alimentado – de preferência com leite materno – determinando-se a glicémia ao cabo de 2-3 horas após a refeição. Alguns autores empregam uma dose de dextrose em gel bucal (200 mg/kg, podendo ser repetida), precedendo a alimentação oral descrita.

No caso de glicémia mantida < 36 mg/dL, ao mesmo tempo que é providenciada a alimentação entérica (por via oral ou por sonda em função do contexto clínico) deve ser iniciada administração de soluto de glucose IV na dose de 6 mg/kg/minuto, procedendo-se depois de modo idêntico ao descrito anteriormente para o tratamento da hipoglicémia sintomática.

Prevenção

As medidas de prevenção da hipoglicémia neonatal têm em vista facilitar a adaptação metabólica do feto à vida extrauterina na perspectiva dos eventos descritos a propósito da etiopatogénese.

  1. No RN saudável sem factores de risco: promoção do aleitamento materno colocando aquele ao peito da mãe já no bloco de partos para estímulo da secreção do colostro e leite; com efeito, o leite materno diminui o consumo de glicose, fomentando a cetogénese.
  2. RN com RCIU e RNPT com idade gestacional inferior a 32 semanas: suprimento de glicose endovenosa a 10% em dose semelhante à produção hepática endógena (> 6 mg/kg/minuto) e início precoce da alimentação com leite materno.
    No RNPT em que não haja contra-indicação de alimentação entérica, a administração de triglicéridos de cadeia média promove a elevação da glicose no sangue; por outro lado, deve ser evitado o suplemento de polímeros de glicose pelo risco de intolerância alimentar e pelos riscos associados à hiperosmolaridade (por ex. enterocolite necrosante).
  3. RN de mãe diabética (RNMD): o nadir esperado da hipoglicémia verifica-se em geral cerca das 4-6 horas de vida, podendo manter-se até às 48 horas, particularmente nos casos de glicémia materna pré-intraparto > 8 mmol/L (> 144 mg/dL).
    O procedimento preventivo inclui início precoce da alimentação e determinação da glicémia imediatamente antes da mamada, esperando obter-se valores estáveis e boa adaptação ao peito ou biberão.
  4. Nalguns centros existe experiência, com bons resultados, da utilização de gel de dextrose por via bucal.

Prognóstico

A probabilidade de sequelas neurológicas depende fundamentalmente da gravidade da hipoglicémia, da sua duração sem tratamento correctivo e especialmente da eventualidade de surgimento de convulsões.

As sequelas neurológicas descritas em estudos epidemiológicos dizem respeito a alterações do desenvolvimento cognitivo, a anomalias motoras e a convulsões recorrentes.

HIPERGLICÉMIA

Definição e importância do problema

O diagnóstico de hiperglicémia neonatal é biológico: define-se pela verificação de glicose plasmática em concentração > 125 mg/dL no RN de termo e > 150 mg/dL (> 8,2 mmol/L) no RNPT.

Trata-se duma alteração metabólica neonatal menos frequente que a hipoglicémia, embora ocorra com elevada prevalência nos RNPT submetidos a terapia intensiva, especialmente nos de peso inferior a 1.250 gramas (cerca de 30%-40%). Nalguns estudos tem-se verificado elevação da mortalidade e da duração do internamento quando os valores da glicémia ultrapassam 150 mg/dL nas primeiras 24 horas de internamento.

A importância deste problema clínico, com implicações prognósticas, decorre fundamentalmente das repercussões na osmolaridade do soro (o incremento de 18 mg/dL de glicémia provoca elevação de 1 mOsm/L) com consequências em vários territórios, nomeadamente SNC (probabilidade de hemorragia intraperiventricular-HIPV).

Etiopatogénese

O suprimento excessivo de glicose endovenosa é um factor causal frequente de hiperglicémia, sobretudo no RNPT, em relação inversa com a idade gestacional; a frequência atinge o acme nos RN pré-termo extremo (22-27 semanas).

Com efeito, em tais circunstâncias, há que valorizar as seguintes particularidades da fisiopatologia:

  • Neoglucogénese não totalmente inibida pela presença de glicose;
  • Insuficiência de insulina;
  • Certo grau de resistência periférica à acção da insulina e;
  • Elevação dos níveis circulatórios de catecolaminas e cortisol.

A administração parentérica de lípidos constitui outro factor etiológico: aumenta a neoglucogénese fundamentalmente através do aumento da oxidação de ácidos gordos.

Determinados fármacos, tais como a dexametasona, aminofilina e cafeína poderão originar hiperglicémia transitória através do estímulo de enzimas da neoglicogénese; no caso da cafeína verifica-se concomitantemente estimulação de enzimas da glicogenólise hepática.

Nas infecções sistémicas (em que existe igualmente probabilidade de hipoglicémia) o mecanismo da hiperglicémia relaciona-se com anomalias da resposta da insulina à elevação da glicose sanguínea, assim como da neoglicogénese e da glicogenólise por acção de mediadores inflamatórios.

No âmbito de procedimentos cirúrgicos, a hiperglicémia explica-se pela dor e estresse que originam libertação de catecolaminas, glucagom e cortisol favorecendo a glicogenólise hepática. Noutras situações acompanhadas de estresse (asfixia perinatal, SDR, etc.) verifica-se idêntico mecanismo.

A hiperglicémia pode igualmente constituir um epifenómeno duma entidade clínica rara designada por diabetes mellitus transitória neonatal (englobando outras alterações para além da hiperglicémia: desidratação, acidose metabólica e cetonémia), associada em cerca de 30% dos casos a antecedentes familiares de diabetes mellitus. Mais frequente nos RN com RCIU, o mecanismo relaciona-se essencialmente com atraso na maturação dos mecanismos libertadores de insulina das células beta dos ilhéus pancreáticas. Habitualmente verifica-se regressão completa do quadro clínico ao cabo de 1-3 meses de vida extrauterina.

Em suma, no Quadro 4 são discriminados os factores etiológicos mais comuns da hiperglicémia neonatal.

QUADRO 4 – Factores etiológicos mais comuns de hiperglicémia neonatal.

Administração endovenosa

    • Glicose
    • Lípidos

Fármacos

    • Cafeína, aminofilina
    • Dexametasona

Estresse, dor

    • Asfixia
    • Dificuldade respiratória (SDR)
    • Hemorragia intraperiventricular (HIPV)
    • Infecção sistémica
    • Procedimentos cirúrgicos com anestesia

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

Em geral a hiperglicémia não se acompanha de manifestações clínicas específicas. A glicosúria secundária a hiperglicémia pode levar a poliúria.

Nos casos de diabetes mellitus transitória, como foi descrito, pode verificar-se perda de peso, desidratação e acidose metabólica.

No âmbito da vigilância laboratorial da urina para pesquisa de glicosúria, há que reter uma noção prática importante: algumas tiras reagentes de diagnóstico rápido detectam “açúcares” em geral, os quais poderão englobar outros para além da glicose (como por ex. a galactose, o que indicaria a presença de galactosémia).

 Tratamento

A actuação no caso da hiperglicémia deve ser sobretudo preventiva, ponderando o possível efeito dos factores etiológicos descritos eventualmente presentes. Como norma geral, deve providenciar-se nutrição adequada, mantendo a glicémia no intervalo de valores que não originem diurese osmótica ou necessidade de intervenção agressiva (no caso de glicémia entre 150-180 mg/dL).

Com a utilização de bombas de perfusão permitindo doses e ritmos de administração e concentrações de glicose bem controlados, monitorizando a glicose plasmática e urinária, não será necessária a utilização de insulina.

Se, apesar dos referidos procedimentos, a glicémia persistir > 300 mg/dL, mesmo reduzindo a glicose administrada, deve ser utilizada insulina regular na dose de 0,05-0,1 Unidades/kg IV, com monitorização rigorosa da glicémia.

Nos casos comprovados de diabetes mellitus transitória neonatal pode utilizar-se insulina regular IV ou SC: em regra 0,1-0,5 U/kg/dose IV ou SC de 6-6 ou 8-8 horas, ou de modo contínuo na dose de 0,1 U/kg/hora.

BIBLIOGRAFIA

Cloherty JP, Stark AR (eds). Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Wolters & Kluwer, 2017

Cowett RM, Farrag HM. Selected principles of perinatal-neonatal glucose metabolism. Semin Neonatol 2004; 9: 37-47

Cornblath M, Hawdon JM, Williams AF, et al. Controversies regarding definition of neonatal hypoglycemia: suggested operational thresholds. Pediatrics 2000; 105: 1141-1145

Cornblath M, Ichord R. Hypoglycemia in the neonate. Semin Perinatol 2000; 24:136-149

Delonlay P. Neonatal hyperinsulinism: Clinicopathologic correlation. Hum Pathol 2007; 38: 387-399

Deshpande S, Platt MW. The investigation and management of neonatal hypoglycaemia. Semin Fetal Neonatal Med 2005; 10: 351-361

Eidelman A. Hypoglycemia and the breastfed neonate. Pediatr Clin North Am 2001; 48: 377-387

Gardner SL, Carter BS, Enzman-Hines ME, Hernandez JA (eds). Merenstein & Gardner’s Handbook of Neonatal Intensive Care. St Louis, MO: Elsevier, 2018

Guimarães JC, Carneiro MJ, Loio P, Macedo A, Tuna ML, et al. Manual Prático de Neonatologia. Lisboa: Hospital de S. Francisco Xavier/Uriage, 2016

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

 Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Levene I, Wilkinson D. Identification and management of neonatal hypoglycaemia in full-term infant. Arch Dis Child Education & Practice 2018 on-line June 14. Doi: 10.1136/archdischild-2018-314050

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Rozance PJ, Hay WW Jr. New approaches to management of neonatal hypoglycemia. Matern Health Neonatol Perinatol 2016; 2:3

Rozance PJ, Wolfsdorf JI. Hypoglycemia in the newborn. Pediatr Clin N Am 2019; 66: 333-342

Sperling MA., Menon RK. Differential diagnosis and management of neonatal hypoglycemia. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 703-723

Wackernagel D, Gustafsson A, Bonamy A-KE. Swedish national guideline for prevention and treatment of neonatal hypoglycaemia in newborn infants with gestational age ≥35 weeks. Acta Paediatrica 2020; 109: 31-44

Williams A F. Neonatal hypoglycaemia: Clinical and legal aspects. Semin Fetal Neonatal Med 2005; 10: 363-368

Yeung MY. Glucose intolerance and insulin resistance in extremely premature newborns, and implications for nutritional management. Acta Paediatr 2006; 95: 1540-1547

ALTERAÇÕES DO METABOLISMO DO CÁLCIO, FÓSFORO E MAGNÉSIO

Etiopatogénese e importância do problema

Cálcio e Fósforo

O cálcio (Ca), o mineral mais abundante no corpo humano, assume grande importância no recém-nascido em crescimento pelas funções de formação óssea e participação em processos metabólicos intra e extracelulares. Está igualmente envolvido na coagulação sanguínea, condução nervosa, contracção muscular e função cardíaca. Durante a gravidez o cálcio é transferido activamente da mãe para o feto através da placenta, com maior magnitude no terceiro trimestre.

O fósforo (P) é igualmente transferido para a circulação fetal através de transporte activo via placenta; no primeiro trimestre atinge concentração superior à do cálcio, decrescendo depois até ao final da gestação, precisamente no período em que se verifica o maior acréscimo de cálcio.

O recém-nascido está dependente da absorção intestinal de cálcio, do tipo de cálcio fornecido, e da forma como este se liga às gorduras ou proteínas. A relação adequada entre o suprimento de cálcio e fósforo (Ca/P) é também determinante para a sua absorção e retenção.

Magnésio

O magnésio (Mg), depois do potássio (K), é o segundo catião intracelular mais abundante: cerca de 60% do total encontra-se no tecido ósseo, 30% nos músculos, e 10% noutros tecidos. Actuando como coenzima em mais de 300 processos, a sua acção mais importante relaciona-se com o bloqueio da transmissão neuromuscular, diminuição da excitabilidade do músculo estriado e diminuição do tono da musculatura lisa. Tal como o cálcio, transferido para o feto, atinge o maior acréscimo no terceiro trimestre da gestação. Na data do nascimento os níveis sanguíneos de Mg dependem dos respectivos níveis maternos; na vida pós-natal a regulação depende da PTH. Baixa concentração de Mg incrementa a secreção de PTH, a qual contribui para mais elevada reabsorção tubular do mesmo. Pelo contrário, elevando-se a concentração sérica de Mg, é estimulada a secreção de calcitonina que diminui a reabsorção tubular do catião.

Entre o Ca e o Mg ocorre uma interacção fisiológica pois, qualquer alteração de um dos iões provoca alteração no outro. A PTH promove a elevação do teor de ambos, enquanto a calcitonina leva à diminuição. Como implicações clínicas importantes desta interacção há que salientar que a situação de hipocalcémia refractária ao tratamento poderá constituir um epifenómeno de hipomagnesiémia.

HIPOCALCÉMIA

Definição e importância do problema

A hipocalcémia é um problema comum no período neonatal, dado que o suprimento exógeno de cálcio nos primeiros dias de vida é inferior ao que corresponde à transferência materno-fetal transplacentar no último trimestre de gestação (cerca de 100-150 mg/kg de peso fetal/dia).

Nos RN de termo define-se hipocalcémia como valor sérico de cálcio ionizado (Ca2+) inferior a 4,40 mg/dL (1,10 mmol/L) e/ou de cálcio total inferior a 8,0 mg/dL (2,0 mmol/L). Dado que o Ca2+ é a única forma fisiologicamente activa do cálcio, este doseamento é o considerado preferível para estabelecer o diagnóstico.

Nos RN pré-termo, define-se hipocalcémia como valor de cálcio sérico total inferior a 7,0 mg/dL (1,75 mmol/L) e de cálcio ionizado (< 0,75-1,1 mmol/L ou < 3-4,4 mg/dL).

Salienta-se que a hipoalbuminémia pode levar à falsa sugestão de hipocalcémia porque em tal circunstância o valor sérico de Ca total está diminuído, embora o Ca ionizado (Ca2+) esteja normal. Por isso, em situações suspeitas de hipo- ou hipercalcémia, é preferível a determinação do Ca ionizado.

A hipocalcémia ocorre em cerca de 1 a 2% dos RN aparentemente saudáveis. A frequência é superior nos RN de mães diabéticas (RNMD, cerca de 50%) em relação directa com a gravidade da diabetes materna e associada habitualmente a hipomagnesiémia e a secreção diminuída de hormona paratiroideia (PTH).

Globalmente, nos RN pré-termo surge, como média, em 30% dos casos.

Ao contrário da hipoglicémia, não origina lesões estruturais no SNC.

Etiopatogénese e factores de risco

A normocalcémia depende da interacção de vários factores, nomeadamente do equilíbrio com outros iões, do equilíbrio ácido-base do organismo, e de respostas hormonais reguladas pela hormona paratiroideia (PTH), calcitonina e 1,25-(OH)2 vitamina D.

Os efeitos da PTH (não transferida através da placenta) são: elevação das concentrações séricas de Ca e Mg e diminuição das de P; tal resulta fundamentalmente da acção ao nível do osso (libertação de Ca, P, Mg com diminuição dos respectivos depósitos), rim (aumento da reabsorção de Ca e Mg, diminuição da reabsorção de P, e aumento da produção de 1,25-(OH)2 vitamina D).

Os efeitos da calcitonina (também não transferida através da placenta) são: diminuição das concentrações séricas de Ca, Mg e de P; tal resulta fundamentalmente da acção ao nível do osso (aumento de depósitos por diminuição da libertação de Ca e P), e do rim (aumento da excreção de Ca, P, e Mg).

Os efeitos do metabólito di-hidroxilado da vitamina D [1,25-(OH)2 colecalciferol], transferido através da placenta, são: elevação das concentrações séricas de Ca e P; tal resulta fundamentalmente da acção ao nível do intestino (aumento da absorção de Ca e P), osso (aumento da libertação de Ca e P), e rim (aumento da reabsorção de Ca e P).

São descritas duas formas clínicas de hipocalcémia em função da data de aparecimento:

  • Precoce (início antes das 48 e 72 horas de vida e relacionada com eventos intrauterinos ou perinatais); e
  • Tardia (iniciada em geral a partir da primeira semana de vida e relacionada com eventos iatrogénicos ou com defeitos congénitos). Estas formas clínicas integram grupos de risco diversos.

Hipocalcémia precoce

Após o parto existem factores predisponentes de hipocalcémia precoce; com efeito, após laqueação do cordão umbilical é interrompido o suprimento de cálcio proveniente da mãe e verifica-se uma sobrecarga endógena de fosfato (P) devido ao consumo das reservas de glicogénio com libertação concomitante de P para o espaço extracelular.

Diminuindo fisiologicamente os níveis de cálcio (Ca), a glândula paratiroideia é estimulada, do que resulta elevação dos níveis de PTH com o objectivo de elevação do referido cálcio sérico. Esta resposta à PTH em termos de elevação do cálcio sérico (traduzindo-se por mobilização do cálcio ósseo) faz-se em cooperação com o 1,25-di-hidroxi-colecalciferol (traduzindo-se por reabsorção tubular renal de cálcio e fosfatúria).

Ora, este mecanismo, em determinados grupos de RN de risco, é limitado:

  • RN pré-termo (RNPT);
  • RN de mãe diabética (RNMD);
  • RN com antecedentes asfixia perinatal;
  • RN de mãe epiléptica.

Nos primeiros três grupos de RN, em conjunto, o mecanismo geral descrito como resposta ao declínio do Ca sérico está retardado, verificando-se quadro de hipoparatiroidismo transitório, diminuição transitória dos níveis do metabolito di-hidroxilado da vitamina D (ou 1,25-di-hidroxi-colecalciferol) e aumento dos níveis de calcitonina (cujo significado não está completamente esclarecido).

Como mecanismos específicos, descritos respectivamente em cada grupo de risco, citam-se:

  • No RNPT, a taxa de natriurese intensifica as perdas de Ca urinário;
  • No RNMD, a menor actividade da PTH, assim como a hipomagnesiémia materna e fetal explicam a maior incidência e maior duração da hipocalcémia;
  • Na asfixia perinatal a hipoxémia e acidose, levando a catabolismo tecidual, originam libertação importante de P com consequente hiperfosfatémia e repercussão na paratiroideia (resistência relativa à PTH);
  • O tratamento materno com fármacos anticonvulsantes, como o fenobarbital e a difenil-hidantoína, pode incrementar o catabolismo hepático da vitamina D com consequente hipocalcémia na mãe e no feto.

Hipocalcémia tardia

Esta forma é tipificada pelas seguintes situações:

Hipoparatiroidismo

São descritas as seguintes formas de apresentação:

  • Hipoparatiroidismo congénito
    • ligado ao cromossoma X;
    • forma autossómica dominante, em relação com genes localizados no cromossoma 16 ou 18;
    • forma integrando a síndroma de DiGeorge (anomalias dos 3º e 4º arcos branquiais determinando, entre outras anomalias, ausência de timo e paratiroideias).
  • Hipoparatiroidismo secundário a hiperparatiroidismo materno, procedimentos cirúrgicos – tiroidectomia, paratiroidectomia –, doença autoimune, e a carência de vitamina D).
Pseudo-hipoparatiroidismo (insensibilidade periférica à PTH)

São descritas três formas (todas com hipocalcémia e hiperfosfatémia), distintas pelas variantes quanto a anomalias duma “proteína de ligação Gs-alfa” do receptor da PTH e da produção de adenilato-ciclase.

Furosemido e bicarbonato de sódio

Estes fármacos originam alcalose com consequente diminuição do cálcio ionizado; por outro lado, o furosemido origina igualmente calciúria importante.

Nutrição parentérica

Através da administração de lípidos a elevação de ácidos gordos livres pode formar complexos insolúveis com o Ca.

Défice de suprimento ou de absorção de Ca

As situações mais típicas de défice de absorção de Ca são a doença celíaca e a síndroma do intestino curto.

Excesso de suprimento de P

O excesso de fosfato (por ex. relacionado com a ingestão de fórmulas lácteas com elevado teor de P), para além de inibir a resposta da PTH, exerce efeito semelhante à calcitonina.

Alterações do equilíbrio ácido-base

A alcalose como consequência da administração de solutos alcalinizantes ou de hiperventilação (por ex. em situações de displasia broncopulmonar) pode precipitar hipocalcémia através da diminuição da concentração de Ca ionizado (tetania pós-acidótica).

 Manifestações clínicas e diagnóstico

A hipocalcémia no período neonatal pode ser assintomática, sobretudo na forma precoce.

As formas sintomáticas surgindo apenas em cerca de 0,2% dos casos [irritabilidade muscular, hipertonia em extensão descrevendo-se um quadro típico chamado espasmo carpo-pedal, (actualmente raro dado o investimento na prevenção), laringospasmo, tremores, convulsões generalizadas ou focais] podem ser desencadeadas pela coexistência doutras alterações iónicas, como hipomagnesiémia, hipercaliémia e alcalose metabólica.

Pode haver repercussão cardíaca traduzida por taquicárdia, sinais electrocardiográficos (prolongamento do intervalo Q-T no electrocardiograma, por vezes associado a arritmia).

Dado que os sinais clínicos e electrocardiográficos de hipocalcémia são inespecíficos e não patognomónicos desta situação, o diagnóstico definitivo só poderá ser feito através do doseamento sérico do cálcio, de preferência -como foi referido – da sua fracção ionizada; na mesma amostra de sangue é aconselhável proceder ao doseamento simultâneo do P e do Mg por serem frequentemente coexistentes alterações destes últimos, com manifestações semelhantes.

Outros doseamentos séricos (PTH, calcitonina, vitamina D ou seus metabólitos) devem ser reservados para situações de hipocalcémia prolongada, refractária ou recorrente.

Como nota prática, importa reter que a hipocalcémia prolongada deve orientar o clínico para a detecção de situações como hipoparatiroidismo congénito ou síndroma de DiGeorge.

Tratamento

O objectivo do tratamento da hipocalcémia é repor o nível sérico do Ca através da administração de sais de cálcio.

Nos casos de hipocalcémia assintomática precoce, recomenda-se uma atitude expectante, tendo em consideração que muitas destas situações são autolimitadas. A hipocalcémia, no entanto, mesmo assintomática, deve ser tratada sempre no RN pré-termo, e também sempre que seja verificado nível sérico de cálcio total inferior a 6,0 mg/dL.

São adoptados os seguintes procedimentos:

  1. Hipocalcémia assintomática ou sintomática na ausência de convulsões, tetania ou apneia
    Perfusão contínua de gluconato de cálcio a 10% na dose de 5-8 mL/kg/dia; na ausência de contra-indicação e de boa tolerância oral, a mesma dose poderá ser dividida em três a quatro tomas por dia (tendo em conta a seguinte correspondência: solução de gluconato de cálcio a 10% <> 9,4 mg de Ca elemento/mL ou 102 mg de gluconato de cálcio/mL);
  1. Hipocalcémia acompanhada de convulsões, tetania ou apneia
    Bólus de gluconato de cálcio a 10% à 1-2 mL/kg em 10 minutos, eventualmente a repetir mais 3-4 vezes ao longo de 24 horas caso se mantenha a sintomatologia; após bólus eficaz: perfusão IV contínua de gluconato de cálcio a 10% na dose de 5-8 mL/kg/24 horas.
    A administração deve ser interrompida após normalização da calcémia e desaparecimento dos sinais clínicos. Torna-se fundamental corrigir outros desequilíbrios associados e contabilizar eventual terapêutica hipocalcemiante em curso.
  1. Hipocalcémia tardia
    Para além de tratamentos específicos em função dos factores etiológicos, é fundamental: diminuir o suprimento de P (utilizando fórmulas lácteas com baixa concentração de P); aumentar o suprimento de Ca (suplemento); e aumentar a relação Ca/P.

Notas importantes:

    • Deve ser sempre garantida concomitantemente a administração, tanto por via oral como por via intravenosa, da dose diária de Ca recomendada em situações habituais de normalidade.
    • Uma vez que a administração de cálcio intravenoso pode originar complicações graves, sempre que possível e não exista contra-indicação, deve ser preferida a via oral.
    • São complicações possíveis da administração intravenosa de cálcio o extravasamento da solução com deposição de cálcio nos tecidos moles circundantes e necrose tecidual, ou mesmo deposição subcutânea em diversos órgãos; bradicárdia ou mesmo paragem cardíaca; litíase renal; e possivelmente também calcificações cerebrais nos RN em estado crítico.
    • O Ca não deve ser administrado: 1) por via intra-arterial (risco de lesão vascular); 2) por via IM (risco de necrose tecidual); 3) através de cateter venoso umbilical com cateter localizado intra-hepático ou perto do coração.
    • Não está recomendada a prevenção de hipocalcémia nos RN de risco, devendo estes ser vigiados clinicamente e medicados com dose basal adequada de cálcio; constitui excepção o caso do RN com peso de nascimento < 1.000 gramas.

Prognóstico

Quando diagnosticada e corrigida precocemente, a hipocalcémia tem bom prognóstico. Salienta-se contudo que a verificação de convulsões pode comportar risco imediato de vida.

HIPERCALCÉMIA

Definição e importância do problema

Define-se hipercalcémia neonatal como valor sérico de Ca total superior a 2,75 mmol/L (11mg/dL), ou de Ca ionizado superior a 1,4 mmol/L (5,6 mg/dL). De referir que a hiperproteinémia pode originar elevação da Ca total, mas não do Ca ionizado. Trata-se dum problema clínico raro no RN, em geral iatrogénico ou secundário a situações de hipofosfatémia grave (< 0,5 mmol/L ou < 2 mg/dL).

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Os factores etiológicos da hipercalcémia podem ser sistematizados do seguinte modo:

Hiperparatiroidismo primário (forma autossómica recessiva)

Nalgumas destas formas raras de hiperparatiroidismo a produção excessiva de PTH, por insensibilidade dos receptores da paratiroideia ao Ca ionizado, pode originar hipercalcémia elevada com hipotonia, dismineralização óssea e fracturas.

Hiperparatiroidismo secundário

Esta forma pode resultar de adenoma ou de hipoparatiroidismo materno do qual resulta hiperplasia paratiroideia, sendo que as alterações bioquímicas são transitórias ao contrário do que acontece na forma primária.

Outras doenças da paratiroideia

Incluem a hipercalcémia hipocalciúrica familiar benigna (forma autossómica dominante cujas manifestações são dominadas pela obstipação e hipotonia) e a hipercalcémia infantil idiopática, provavelmente relacionada com secreção anormal de calcitonina e resposta aumentada à vitamina D.

Hipercalcémia de causa nutricional

São exemplos:

  • Hipofosfatémia;
  • Verifica-se mobilização de Ca a partir do osso, sendo que este evento, por não haver deposição óssea do mesmo, poderá levar a nefrocalcinose;
  • Intoxicação pela vitamina D (aumento da absorção intestinal de Ca);
  • Intoxicação pela vitamina A (aumento da mobilização do Ca ósseo).

Necrose gorda subcutânea

Admite-se que se trata de anomalias do metabolismo das gorduras (com libertação de Ca a partir dos tecidos) associada a sensibilidade anómala à vitamina D. Ocorre sobretudo em RN macrossomáticos sujeitos a hipotermia, asfixia perinatal e parto traumático. Precedendo a hipercalcémia surgem placas bem demarcadas ao nível das proeminências ósseas, nádegas, regiões genianas, etc..

Doenças da tiroideia

Quer o hipotiroidismo (originando provavelmente absorção aumentada do Ca), quer o hipertiroidismo (originando mobilização de Ca a partir do ossso) podem levar a hipercalcémia.

Situações iatrogénicas

As mais frequentes são: – hipertratamento da hipocalcémia; – excesso de administração de Ca no decurso de exsanguinotransfusão para prevenção da hipocalcémia; – tratamento com tiazidas que promovem excreção urinária aumentada de Ca.

Tratamento

Nas formas assintomáticas pode adoptar-se atitude expectante até valores séricos de Ca ~ 12,5 mg/dL.

As medidas terapêuticas incluem:

  • Furosemido como agente calciurético administrado na dose de 1 mg/kg/dose cada 2 a 4 horas durante 1 a 2 dias;
  • Corticóides (por ex. prednisolona na dose de 1 mg/kg/dia durante 3-4 dias);
  • Outros fármacos poderão ser utilizados: fosfatos, inibidores da sintetase das prostaglandinas, etc..

HIPOFOSFATÉMIA

DEFINIÇÃO, ETIOPATOGÉNESE; CLÍNICA E TRATAMENTO

Os valores de referência para o P sérico no RN, situam-se entre 4,8-8 mg/dL.

A hipofosfatémia, potencial causadora de hipercalcémia (ver atrás) pode surgir em RNMBP submetidos a nutrição parentérica ou em lactentes alimentados com fórmulas lácteas com baixo teor de fosfatos (défice de suprimento).

Outras causas no RN podem ser assim sistematizadas:

  • Desvios transcelulares
    • Glucose IV, administração de insulina.
  • Perda renal
      • Hiperparatiroidismo, raquitismo hipofosfatémico ligado ao X, idem autossómico dominante, diuréticos, expansão de volume em fluidoterapia, glucocorticóides, etc..
  • Multifactorial
      • Sépsis, diálise;
      • Carência de vitamina D, raquitismo vitamina D dependente (em lactentes).

Se os valores séricos forem inferiores a 0,8 mmol/L (2,5 mg/dL), será necessário perfundir uma solução endovenosa de fosfato e interromper temporariamente a nutrição parentérica.

HIPERFOSFATÉMIA

DEFINIÇÃO, ETIOPATOGÉNESE; CLÍNICA E TRATAMENTO

A causa mais frequente de hiperfosfatémia (> 8 mg/dL) é a disfunção renal.

Outras causas no RN podem ser assim sistematizadas:

  • Desvios transcelulares
    • Hemólise aguda, síndroma de lise tumoral, rabdomiólise, acidose láctica.
  • Suprimento aumentado
    • Iatrogénica [tratamento da hipofosfatémia, enemas, laxantes, intoxicação pela vitamina D (em lactentes)].
  • Excreção diminuída
    • Disfunção renal;
    • Calcinose tumoral familiar (doença rara, AR, manifestada noutras idades).
  • Reabsorção aumentada no túbulo proximal
    • Hipoparatiroidismo e pseudo-hipoparatiroidismo.

Em situações de hiperfosfatémia deve dosear-se a creatininina e a ureia no sangue pela probabilidade de estar em causa quadro de disfunção renal. Em presença de hiperfosfatémia ligeira e hipocalcémia acentuada deve proceder-se ao doseamento de PTH, o que poderá levar a distinguir hipoparatiroidismo de pseudo-hipoparatiroidismo.

O tratamento da hiperfosfatémia aguda depende da gravidade e etiologia da mesma. Nas formas ligeiras, e perante função renal mantida, existe probabilidade de resolução espontânea com restrição do suprimento de P.

HIPOMAGNESIÉMIA

Definição e etiopatogénese

Define-se hipomagnesiémia como a verificação de valor sérico de Mg inferior a 1,6 mg/dL (0,66 mmol/L). Habitualmente, as manifestações clínicas só surgem quando o valor é inferior a 1,2 mg/dL (0,49 mmol/L).

Os factores etiológicos da hipomagnesiémia podem ser sistematizados do seguinte modo:

  • Défice de suprimento de Mg
    • Síndroma de intestino curto em que se verifica défice de absorção;
    • RN de mãe diabética (RNMD) no qual são descritos os seguintes mecanismos:
      1. défice de resposta da PTH a valor sérico baixo de Mg;
      2. hipomagnesiémia fetal causada pela perda urinária materna de Mg decorrente da poliúria durante a gravidez; tal défice fetal continua na vida pós-natal.
    • RN com restrição de crescimento intrauterino (RCIU) associado a défice de transferência transplacentar materno-fetal de Mg.
  • Excesso de perda de Mg
    Tal poderá acontecer nos casos de exsanguinotransfusão com sangue citratado: o citrato forma complexos com o Mg, diminuindo a sua concentração na forma livre.
  • Alterações da homeostase do Mg
    Como exemplos citam-se o hipoparatiroidismo neonatal e a hiperfosfatémia.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da hipomagnesiémia são semelhantes às da hipocalcémia: sinais de hiperexcitabilidade neuromuscular, convulsões tónicas, clónicas, focais ou generalizadas, etc.. A repercussão cardíaca pode traduzir-se em alterações do ECG: inversão da onda T e depressão do segmento ST.

  1.  

Nota importante: a hipomagnesiémia pode indiciar hipocalcémia refractária à terapêutica; com efeito, administração de Mg constitui um coadjuvante do tratamento da hipocalcémia.

Tratamento

O tratamento da hipomagnesiémia aguda tem como objectivo essencial a reposição do Mg (sulfato de magnésio) identificando e corrigindo a sua etiologia. Em geral utiliza-se o sulfato de Mg a 50% na dose de 0,1-0,2 mL/kg por via IM ou IV lenta durante 1 hora.

O sal com esta concentração contém 49.3 mg de Mg – elemento por mL ou 500 mg de sulfato de Mg por mL. A administração de sulfato de Mg IV ou IM – que pode ser repetida cada 12 ou 24 horas – obriga à monitorização cardíaca do RN, pelo risco de arritmias e alterações da condução auriculoventricular.

Havendo tolerância oral, uma vez calculada a dose diária de Mg, pode utilizar-se PO de 8-8 ou de 12-12 horas na condição de se utilizar concentração do sulfato de Mg a 5 ou 10%; tal implica diluição prévia do sulfato de Mg a 50%.

O tratamento obriga a determinação sérica diária do Mg e vigilância clínica no sentido de evitar a hipermagnesiémia.  

Quando diagnosticada e tratada adequadamente, a recuperação da hipomagnesiémia é completa.

Nota: A administração de cálcio ou vitamina D em situação de hipomagnesiémia não tratada, pode agravar o défice de Mg.

HIPERMAGNESIÉMIA

Definição e etiopatogénese

Define-se hipermagnesiémia como a verificação de valor sérico de Mg superior a 3 mg/dL. No RN a causa mais frequente desta alteração é a administração de Mg à mãe em relação com eclâmpsia materna ou parto pré-termo; a coexistência de asfixia perinatal e de prematuridade constituem factores agravantes, na medida em que existe défice de excreção urinária de Mg em tais situações.

Manifestações clínicas

As principais manifestações clínicas (em geral surgindo somente a partir de valores de Mg > 6 mg/dL) incluem depressão respiratória e neuromuscular; a duração de tais sinais depende mais da duração do tratamento com Mg instituído à mãe grávida do que do nível de hipermagnesiémia.

Tratamento

Deve adoptar-se atitude expectante a qual inclui, para além da interrupção de medicações contendo Mg, eventual suporte respiratório em função do contexto clínico.

Pode utilizar-se furosemido (1 mg/kg/dose cada 2 ou 4 horas) associado a fluidoterapia IV no sentido de promover a excreção urinária de Mg.

Nos casos de toxicidade neuromuscular está indicada a administração de gluconato de cálcio a 10% (0,1-0,3 mL/kg/dose) IV lento. Em casos extremos e refractários poderão estar indicadas a exsanguinotransfusão ou a diálise.

BIBLIOGRAFIA

Bass JK, Chan GM. Calcium nutrition and metabolism during infancy. Nutrition 2006; 22: 1057-1066

Bockenhauer D, Zieg J. Electrolyte disorders. Clin Perinatol 2014; 41: 575-590

Cloherty JP, Stark AR (eds). Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Wolters & Kluwer, 2017

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gardner SL, Carter BS, Enzman-Hines ME, Hernandez JA (eds). Merenstein & Gradner’s Handbook of Neonatal Intensive Care. St Louis, MO: Elsevier, 2018

Guimarães JC, Carneiro MJ, Loio P, Macedo A, Tuna ML, et al. Manual Prático de Neonatologia. Lisboa: Hospital de S. Francisco Xavier/Uriage, 2016

Inder TE, Perlman JM, Volpe JJ (eds). Volpe’s Neurology of the Newborn. Phikadelphia: Elsevier, 2018

Kelly A, Levine MA. Hypocalcemia in critically ill patient. J Intensive Care Med 2013; 166-177

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lavagno C, Camozzi P, Renzi S, et al. Breastfeeding-associated hypernatremia: a systematic review of the literature. J Hum Lact 2016; 32: 67-74

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Prentice A. Micronutrients and the bone mineral content of the mother, fetus and newborn. J Nutr 2003; 133: 1693S-1699S

Zelikovic I, Eisenstein I. Practical algorithms in pediatric nephrology. Basel: Karger, 2008

BALANÇO HIDRO-ELECTROLÍTICO NO RECÉM-NASCIDO

Importância do problema

Para uma correcta actuação nos casos em que se verifica alteração do equilíbrio hidro-electrolítico no RN, torna-se fundamental compreender a homeostase da água corporal e dos electrólitos, com especial ênfase para o sódio e potássio.

Este problema assume particular acuidade em situações de patologia grave do RN, especialmente no RN pré-termo de muito baixo peso e na fase de adaptação fetal à vida extrauterina.

Neste capítulo são descritas certas particularidades do balanço hidro-electrolítico no RN, em complemento da abordagem global feita na  Parte X.  

Água corporal, sódio e potássio

Pelas 15 semanas de gestação, a água corporal total corresponde a cerca de 95% do peso do feto. À medida que a gestação progride, a água corporal diminui, sendo que, pelas 24 semanas representa cerca de 86% do peso e, no termo, cerca de 75-80%.

Durante o crescimento fetal ocorrem igualmente modificações quanto à relação de água no espaço extracelular e no espaço intracelular: entre as 24 e 37 semanas o espaço extracelular diminui passando, respectivamente, de 59% do peso corporal para 44% do referido peso; pelo contrário, o espaço intracelular no mesmo período aumenta de 27% para 34% do peso corporal. Pode depreender-se que no RN pré-termo a magnitude do espaço extracelular em termos de percentagem do peso corporal é superior à do RN de termo. (Figura 1)

Os mecanismos homeostáticos que dizem respeito a estes movimentos da água e ao espaço extracelular são regulados pela intervenção dum conjunto de processos integrando hormonas e outros componentes de características hormonais, os quais têm particularidades e limitações no RN e, sobretudo, no RN pré-termo (RN PT).

FIGURA 1. Modificação gradual dos espaços líquidos do organismo no decurso da vida fetal e primeiro ano de vida.

Rim

Em circunstâncias de normalidade o sistema renal maturo reage ao aumento do volume no espaço extracelular com incremento da filtração glomerular e diminuição da reabsorção tubular de sódio e água filtrados no glomérulo; ora, esta resposta no RN PT é limitada tendo em conta o número reduzido de nefrónios.

Com efeito, o número de nefrónios vai aumentando com a gestação e, com a maturação dos mesmos, a taxa de filtração glomerular continua a aumentar nos 2 anos subsequentes.

Por outro lado, no RN em geral, e no RN PT em especial, a capacidade de concentração urinária é limitada em relação ao lactente e criança mais velha, o que compromete a resposta à contracção do espaço extracelular.

Coração e vasos

O débito cardíaco é directamente proporcional ao enchimento ventricular e, consequentemente, à perfusão renal (lei de Starling); ora, no RN de termo em geral, e no RN PT em especial, tal resposta é mais limitada tendo em conta a menor massa de miocárdio contráctil, o que compromete a resposta à expansão do espaço extracelular.

Sistema renina-angiotensina-aldosterona

Retomando o que foi dito a propósito da lei de Starling, cabe acrescentar que a menor perfusão renal – do que resulta menor taxa de filtração glomerular – conduz a menor oferta de sódio ao túbulo distal. As células justaglomerulares respondem a este fenómeno aumentando a produção de renina com as seguintes consequências: 1 – aumento da produção da angiotensina II; 2 – aumento da pressão arterial sistémica; 3 – aumento da filtração glomerular; 4 – maior secreção de aldosterona, a qual promove incremento da reabsorção de sódio e água no túbulo distal.

No que respeita a este mecanismo, que está desenvolvido já no RN PT, a limitação principal prende-se com as situações de patologia grave (insuficiência respiratória, assistência ventilatória, etc.).

Péptido natriurético auricular (PNA)

Este péptido é segregado na parede auricular cardíaca, a qual possui determinados receptores sensíveis ao aumento do volume sanguíneo; como resultado da distensão da referida parede e aumento do volume auricular o péptido produzido aumenta a taxa de filtração glomerular, diminui a produção de renina, diminui a secreção de aldosterona e reduz a pressão arterial através de bloqueio do efeito vasoconstritor da angiotensina.

Este mecanismo está comprometido em RN PT, sobretudo no PT extremo, com idade gestacional inferior a 28 semanas, e em maior grau se existir insuficiência respiratória (ver Glossário geral – péptidos natriuréticos).

Hormona antidiurética (HAD-sistema arginina-vasopressina)

A secreção da HAD, cuja acção é aumentar a reabsorção de água no túbulo distal renal e especialmente no tubo colector, inicia-se por volta das 14 semanas de gestação. A sua concentração aumenta com a idade gestacional, atingindo os níveis iguais aos do RN de termo por volta das 24 semanas.

A limitação quanto a este mecanismo da homeostase prende-se também com a fraca resposta tubular renal à hormona.

Catecolaminas

A noradrenalina limita a filtração glomerular e estimula a bomba de sódio-potássio ao nível do túbulo renal, reduzindo a excreção de sódio; de referir que as catecolaminas aumentam após o parto. Este mecanismo também está limitado no RN PT.

O sódio (Na) é o electrólito com maior concentração no líquido extracelular e plasma, de cuja composição electrolítica fazem parte outros catiões (potássio, cálcio e magnésio) e aniões (cloreto, bicarbonato e proteínas). A composição electrolítica sérica do RN também é determinada pela idade gestacional; com efeito, no RN pré-termo existe maior proporção de sódio e cloro por kg de peso devido à maior proporção do líquido extracelular.

No RN de termo verifica-se um balanço de Na positivo e menor capacidade de excreção renal a partir das 48 horas de vida.

Nos RN pré-termo (PT), sobretudo nos de peso < 1.500 gramas (MBP) verifica-se uma fracção excretada de sódio (Na) urinário aumentada (FeNa) da ordem de 4-5%, a qual se mantém até cerca da 4ª-6ª semana, data em que é atingido o valor que se verifica no RN de termo.

O potássio (K) é o catião mais abundante no líquido intracelular; estima-se que o conteúdo de potássio corporal total na data de nascimento seja da ordem de 40 mEq/L. De salientar que os valores de K plasmático são superiores aos verificados na criança maior, o que é explicado pela menor actividade da ATPase-Na+/K+ (bomba de sódio – potássio) que determina taxa mais elevada de transferência do líquido intracelular para o extracelular).

Em condições fisiológicas no RN de termo verifica-se menor capacidade de excreção devido à baixa taxa de filtração glomerular (TFG) e de secreção tubular. No RN PT (sobretudo de idade gestacional inferior a 32 semanas – muito pré-termo) a limitação quanto à secreção tubular renal é ainda mais acentuada.

Equilíbrio hidroelectrolítico na transição para a vida extrauterina; implicações clínicas

Tendo em conta a indicação frequente da fluidoterapia IV no RN com patologia – quer seja ou não pré-termo – e a imaturidade funcional renal, torna-se fundamental descrever as fases de adaptação fetal à vida extrauterina no que respeita à homeostase da água e electrólitos para compreensão das estratégias a adoptar.

Após o nascimento são descritas três fases:

Pré-diurética

Nesta fase pós-parto – primeiras horas de vida – verifica-se expansão do espaço extracelular com hipervolémia explicável pelos seguintes factores:

  • Reabsorção do líquido pulmonar fetal (LPF);
  • Fluidoterapia administrada à parturiente com hiponatrémia de diluição;
  • Passagem de água do espaço intracelular para o extracelular;
  • Baixa TFG do RN com défice de excreção de água e Na; contudo, o resultado final também contribui para a hiponatrémia de diluição, que se pode manter durante a primeira semana;
  • Menor excreção de K com tendência para hiperpotassémia não oligúrica (isto é, não acompanhada de disfunção renal).

Nesta fase existe risco de sobrecarga hídrica em situações associadas a fluidoterapia; contudo, se as perdas de água através da pele e do sistema respiratório forem importantes e não compensadas por fluidoterapia, poderá surgir elevação do Na no espaço vascular (hipernatrémia).

Esta fase transitória pode ser mais prolongada (dias) em situações de difícil adaptação à vida extrauterina (por ex. asfixia perinatal).

Diurética

Segue-se uma fase caracterizada por:

  • Diurese abundante surgida de modo abrupto, originando perda de água e retoma da proporção do espaço extracelular que se verifica cerca das 37 semanas (44% do peso) (ver atrás);
  • Perda de Na paralelamente a ulterior diminuição do compartimento extracelular a que se associa perda de Na pela urina; o resultado final poderá levar a hiponatrémia de depleção;
  • Concomitantemente, surge aumento progressivo da excreção de K, o que contribui para diminuir progressivamente a hiperpotassémia não oligúrica da fase pré-diurética.

Se a perda de água (relativamente superior à perda de sódio) for elevada, torna-se mais provável o aparecimento de hipernatrémia associada a défice de água (desidratação hipernatrémica).

Pós-diurética

Esta fase é caracterizada por diurese variável, com aumento da secreção tubular de K, estabilidade dos respectivos níveis séricos, e excreção renal estável de Na; se esta perda renal de Na não for compensada, poderá surgir hiponatrémia.

Perdas e necessidades em fluidos (manutenção)

Na perspectiva da administração de água e electrólitos (fluidoterapia) e da garantia de manutenção das condições fisiológicas (homeostase), torna-se fundamental conhecer as respectivas necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas, e anormais). É igualmente importante reter as seguintes noções:

  1. O movimento e renovação (turnover) de água no organismo (entradas/suprimento e saídas/perdas) são, relativamente ao peso, tanto maiores e mais rápidos quanto menor a idade e maior a velocidade do crescimento; deduz-se que esta particularidade cria maior vulnerabilidade e maior probabilidade de desequilíbrio;
  2. A água é fundamental para o crescimento;
  3. Como resultado dos processos metabólicos em geral, produz-se água endógena.

Assim, na prática, para o cálculo do suprimento de fluidos e garantia da manutenção do equilíbrio torna-se fundamental:

  1. Repor as perdas insensíveis (PI) de água (saída pela pele e sistema respiratório);
  2. Repor as perdas sensíveis de água (saída pelos sistema renal-urina, digestivo-fezes, e sudação activa);
  3. Contabilizar a chamada água endógena (produzida no próprio organismo como resultado da oxidação de proteínas, hidratos de carbono e gorduras), considerando esta parcela ~ 5-10 mL/kg/dia como suprimento ou entrada (ver Parte X).

Perdas insensíveis (PI)    

Na prática clínica é fundamental ter em conta os factores que interferem nas PI:

Factores de incremento de PI

*Fototerapia → + 30-50%
*Hipertermia → + 30-50%
*Taquipneia → + 20-30%
*Convecção forçada → +30-50%
*Berço aquecido com aquecimento radiante superior → + 50-100% (não incubadora)
*Prematuridade extrema (peso < 1.000 gramas) → +100-300%
*Lesão da pele ou defeitos de encerramento (por ex. onfalocele, gastrosquise) → variável

Factores de decréscimo de PI

*Assistência ventilatória/mistura gasosa humidificada (tubo endotraqueal) → – 20-30%
*Humidificação do ambiente da incubadora → – 50-100%
*Cobertura de plástico ou de “estanho” (incubadora ou berço aquecido) → – 30-50%
*Dupla parede da incubadora → -30-50%.

  • Como regras gerais, pode fixar-se que:
    • as PI oscilam entre 20 e 80 mL/kg/dia;
    • os cálculos das PI devem ser feitos caso a caso tendo em conta, nomeadamente, o peso e idade gestacional, a humidade ambiental e a condição de doença e sua gravidade;
  • Após a primeira semana de vida as perdas insensíveis no RN pré-termo aproximam-se das perdas insensíveis do RN de termo tendo em conta o processo relativamente rápido de maturação cutânea.    

Perdas urinárias

Em complemento do que foi descrito atrás, a propósito da adaptação renal à vida extrauterina – cabe recordar que a quantidade de água necessária para a formação da urina depende da função renal e da carga de soluto renal.

Como regras gerais, pode fixar-se que:

  • As perdas urinárias oscilam entre 25 e 60 mL/kg/dia;
  • Os cálculos das perdas urinárias devem ser feitos caso a caso, tendo em conta, nomeadamente, o peso e idade gestacional, a humidade ambiental, a condição de doença e sua gravidade, assim como a eventual administração de solutos a partir do nascimento.

Perdas fecais

Após a primeira semana de vida as referidas perdas correspondem a cerca de 10 mL/kg/dia.

Perdas e necessidades em fluidos (crescimento)

Em fase de estabilização clínica haverá que fornecer água necessária para o crescimento (taxa ~ 5-20 g/kg/dia), cerca de 12-14 mL/kg/dia no RN de termo e 15-25 mL/kg/dia no RN pré-termo, acrescentando esta parcela aos cálculos descritos atrás para a manutenção [-1) + -2) + -3)] (ver atrás – manutenção).

O Quadro 1 sintetiza de modo global as perdas e necessidades em fluidos em mL/kg/dia, no RN de termo e no RN pré-termo de muito baixo peso (MBP) para a manutenção, assim como para o crescimento.

QUADRO 1 – Perdas e necessidades em fluídos.

Perdas de fluídos (mL/ Kg/ dia)
Perdas insensíveis:  20-80
Perdas urinárias:  25-60
Perdas fecais:  2-10
Necessidades em fluídos (mL/ Kg/ dia)
RN de termo →
(D = dia de vida)
D1-D2: 70
D3-D4: 80
D5-D6: 90
(S = semana de vida) S2-3-4: 120 mL/kg/dia
RN pré-termo →
(D = dia de vida)
D1: 60-70
D2: 80-90
D3: 100-110
D4: 120-140
D5-6: 125-150
(S = semana de vida) S2-3-4: 150 -200
Necessidades hídricas adicionais para o crescimento (mL/kg/dia)
RN de termo → 12-14; RN pré-termo  → 15-25

Objectivos práticos e monitorização

Tendo em consideração as noções explanadas, a estratégia da fluidoterapia hidroelectrolítica consiste fundamentalmente na administração inicial de fluidos IV (em regra dextrose em água a 5% com registo do débito de glicose em mg/kg/minuto) aos quais são incorporados, a partir de determinada fase, Na (NaCl) e K (KCl), procedendo concomitantemente ao registo dos seguintes parâmetros:

  • Peso diário (em circunstâncias especiais – RN em terapia intensiva – registo do peso de 8-8 horas); perda de peso > 20% nos primeiros cinco dias indica, em princípio, perda insensível não devidamente contabilizada; perda < 2% nos primeiros cinco dias indica, em princípio, retenção hídrica;
  • Registo rigoroso da entrada/suprimento de fluidos IV, ou por via oral/entérica; é fundamental também contabilizar os líquidos que servem de veículo à administração de medicamentos ou utilizados para “lavagem” de cateteres inseridos em linhas endovenosas;
  • Diurese (utilizando saco colector de urina ou, quando tal for inviável, pesagem da fralda seca antes e imediatamente após a micção, acautelando a eventualidade de evaporação da urina caso se ultrapasse determinado tempo após a eliminação de urina. O objectivo é manter diurese entre 1 e 3 mL/kg/hora;
  • Ionograma sérico com especial realce para o Na e K. O objectivo é manter natrémia entre 130 e 150 mEq/L, e a potassémia entre 3,5 e 6 mEq/L;
  • Osmolalidade sérica e urinária. Idealmente a osmolalidade sérica deverá manter-se entre 274-305 mOsm/kg de água e a osmolalidade urinária entre 150 e 400 mOsm/kg de água;
  • Densidade urinária, utilizada na prática, com mais frequência do que a osmolalidade; a densidade urinária deverá ser mantida entre 1.008 e 1.012, sendo que densidade de 1.012 <> osmolalidade entre 280 e 400 mOsm/kg de água.

Como regra geral pode estabelecer-se que a adição de electrólitos aos fluidos depende da diurese e da concentração plasmática de electrólitos.
A administração de sódio (Na), de potássio (K) e de cloro (Cl) no RN pré-termo de muito baixo peso obedece à seguintes regras:

  • Na: início de administração sob a forma de cloreto de sódio (NaCl) somente após início da diurese e após perda de peso superior a 7% do peso de nascimento); com efeito, até então ter-se-á verificado contracção do espaço extracelular que, entretanto, contribuiu com suprimento endógeno de Na ao espaço vascular.

Em síntese:

Iniciar sódio após perda > 7% do peso ao nascer:

  • RN de termo: 2-3 mEq/kg/24h;
  • RN pré-termo de peso entre 1.000-1.500 g: até 3-5 mEq/kg/24h;
  • RN pré-termo de peso inferior a 1.000 g: até 4-8 mEq/kg/24h;
  • Se as necessidades forem superiores, será de considerar perfusão independente de solução de Na, em torneira de 3 vias;
  • Se houver perdas anormais há que contabilizá-las para o suprimento extra.

Conclui-se, pois, que as necessidades em Na podem ser superiores nos RN PT de muito baixo peso (em geral com < 32 semanas-34 semanas).

  • K: início de administração somente após diurese francamente mantida (sob a forma de KCl) na dose de 2 mEq/kg/dia.

Após os 10 dias de vida, em geral, dose de 3 mEq/kg/dia é suficiente para manter balanço positivo quanto a crescimento em todas as idades gestacionais.

Integrando os parâmetros descritos, o Quadro 2 pode orientar o clínico à cabeceira do doente no sentido de restringir ou liberalizar o suprimento de líquidos.

QUADRO 2 – Regras para o reajustamento da fluidoterapia.

1 – Restrição do suprimento de líquidos
    • Diurese > 4 mL/kg/hora
    • Na sérico < 130 mEq/L
    • Ganho ponderal nos primeiros 3 dias de vida
    • Edema sem sinais de compromisso hemodinâmico (pele rosada, boa perfusão periférica, frequência cardíaca e pressão arterial normais)
2 – Liberalização do suprimento de líquidos
    • Diurese < 0.5 mL/kg/hora
    • Na sérico > 150 mEq/L
    • Perda de peso ~ 15% do peso de nascimento ou > 2%/dia.
    • Sinais de desidratação na fase pós-diurética e de melhoria da função pulmonar: deficiente perfusão periférica/preenchimento capilar periférico lento, palidez, perda do turgor da pele, fontanela anterior deprimida, e hipotensão e choque em situações graves.

Nota: O suprimento de nutrientes acompanhando o de fluidos e electrólitos é abordado noutros capítulos.

Alterações iónicas  do sódio e potássio

Como complemento dos capítulos da Parte X, são descritas as alterações iónicas do sódio e potássio, chamando-se a atenção para certas particularidades no RN.

Hiponatrémia

Definição

A hiponatrémia é definida como o valor de Na plasmático inferior a 130 mEq/L.

Etiopatogénese

São descritos classicamente os seguintes mecanismos de hiponatrémia:

  1. Hiponatrémia de diluição no pós-parto imediato
    • Nesta situação a hiponatrémia é transitória – período pós-parto imediato – resultando da expansão do espaço extracelular por suprimento excessivo de fluidos intra-parto. De recordar que a esta fase se segue a fase de contracção do referido espaço extracelular.
  2. Hiponatrémia de diluição na primeira semana de vida (precoce ou tardia)
    Verifica-se água corporal aumentada (hipervolémia) fundamentalmente por:
    • Suprimento excessivo de líquidos;
    • Associada a lesão renal aguda (LRA) intrínseca com oligúria, ou a LRA funcional;
    • Associada a outras situações como: insuficiência cardíaca congestiva, nefropatia congénita, etc.;
    • Associada à síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH): secreção aumentada de HAD como resposta a estímulos osmóticos e não osmóticos.
  1. Hiponatrémia de depleção relacionada com diversos factores que promovem a excreção renal de Na: por ex. diuréticos de ansa e tiazídicos, metilxantinas, prostaglandinas, indometacina, dopamina, variante da síndroma de Bartter (defeito de transporte do cloro no ramo ascendente da ansa de Henle), etc.. A hiponatrémia de depleção pode ser acompanhada de hipovolémia (diminuição da água corporal) por ex. em casos de diarreia, vómitos, drenagem de fluidos, etc..
  1. Hiponatrémia de depleção tardia
    Surge em situações de normovolémia com água corporal normal no contexto de imaturidade renal (RN pré-termo de idade gestacional inferior a 34 semanas, entre a 2ª e 4ª semana pós-natal). Os factores fundamentais que podem contribuir para esta situação são:
    • Excreção aumentada de sódio por imaturidade tubular renal (défice da actividade da Na/K- ATPase e/ou por défice de resposta à aldosterona);
    • Desvio de sódio plasmático para os tecidos com necessidades aumentadas para o crescimento, designadamente o tecido ósseo;
    • Suprimento de Na inferior às necessidades.
Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações clínicas, por vezes inexistentes, dependem dos valores séricos: hipotonia e hiporreactividade nos casos de valores entre 120 e 130 mEq/L, e vómitos, hiperexcitabilidade e convulsões nos casos com valores inferiores a 120 mEq/L.

A SIADH, que surge em cerca de 1-2% dos RN submetidos a terapia intensiva, ocorre tipicamente no contexto de patologia respiratória e do SNC (meningite, EHI, etc.). Os critérios fundamentais de diagnóstico, para além da hiponatrémia e da ausência de edema e de insuficiência cardíaca são: osmolaridade urinária elevada, osmolaridade plasmática diminuída, função renal e suprarrenal normais, FeNa aumentada.

A síndroma de Bartter, para além doutras manifestações, cursa com hiponatrémia e natriurese.

Tratamento

A hiponatrémia de diluição no pós-parto imediato obriga na maior parte das vezes a atitude expectante vigiando o valor sérico do Na.

Na hiponatrémia de diluição assintomática correspondendo a valores de natrémia entre 120-130 mEq/L (incluindo SIADH) está indicada apenas a restrição hídrica; nos casos sintomáticos e/ou se a natrémia for inferior a 120 mEq/L, deve ser administrado sódio IV durante o período entre 1 e 4 horas, para se atingir valor de 130 mEq/L aplicando a fórmula:

Na (mEq/L) a administrar = 0,6 X peso (em kg) X 130 – Na (em mEq/L) do doente 

Na prática: utilizando soluto de NaCl a 20% (15 mL) + água destilada (85 mL) obtém-se uma solução (100 mL) em que 1 mL<>0,5 mEq.

Nos casos de hiponatrémia de depleção aplica-se a mesma fórmula, com suprimento de sódio em cerca de 24 horas.

Hipernatrémia

Definição

A hipernatrémia é definida como o valor de Na plasmático superior a 150 mEq/L. Detectada com a frequência de cerca de 15% em RN submetidos a terapia intensiva, a sua importância deriva, sobretudo, do risco de HIPV em RN pré-termo.

Etiopatogénese

São descritos os seguintes mecanismos:

  1. Suprimento hídrico deficitário;
  2. Suprimento excessivo de sódio (por exemplo, veiculado pelo bicarbonato de sódio e soro fisiológico administrados em diversas circunstâncias);
  3. Perdas hídricas excessivas: perdas insensíveis aumentadas, podendo conduzir a desidratação hipernatrémica, diarreia e vómitos, perdas renais aumentadas em relação com nefropatia, uropatia obstrutiva, tubulopatia, hipercalcémia, etc..
Manifestações clínicas

Nas situações de suprimento hídrico deficitário e de perdas hídricas excessivas (correspondendo a água corporal diminuída) verifica-se perda de peso, taquicárdia, hipotensão, acidose metabólica e oligúria. De salientar que a hipernatrémia nesta circunstância não significa excesso de sódio corporal, mas sim maior concentração do ião por défice de água.

Nas situações de suprimento excessivo de sódio (acompanhado de água corporal aumentada) verifica-se aumento de peso (> 2% em relação às 24 horas anteriores), edema, taquicardia, hipertensão e diurese normal.

Tratamento

O tratamento incide essencialmente na causa: primeiramente, reposição das perdas insensíveis através de suprimento hídrico adequado; depois, restrição do suprimento de sódio (que não deverá ser inferior a 0,5 mEq/kg/hora).

Hipopotassémia (Hipocaliémia)

Definição

A hipopotassémia é definida como o valor de K plasmático inferior a 3,5 mEq/L sendo que se considera o valor inferior a 2,5 mEq/L como crítico.

Etiopatogénese

São descritos os seguintes mecanismos causais:

  1. Suprimento deficitário de K;
  2. Perdas anormais de causas renais, digestivas, metabólicas, medicamentosas, etc. (diuréticos tiazídicos, furosemido, aminoglicosídeos, corticóides, tubulopatia com défice de reabsorção tubular, uropatia obstrutiva, diarreia, drenagem gástrica, diálise, hiperglicémia, hipercalcémia, insuficiência renal poliúrica, etc.);
  3. Captação intracelular incrementada de K (alcalose metabólica, administração de insulina, hipotermia, etc.).
Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações mais frequentes de hipopotassémia são: hipoactividade, letargia, bradicárdia, arritmia, hiporreflexia, distensão abdominal e íleo paralítico.

O ECG evidencia sinais de intervalo QT prolongado, onda T achatada e de depressão do segmento ST.

Tratamento

O tratamento é substitutivo, consistindo em aumentar o suprimento de K por via oral ou IV utilizando cloreto de potássio (que contribui para corrigir também a hipoclorémia que acompanha quase sempre a hipopotassémia).

Nas formas ditas ligeiras de RN estável (potassémia entre 3 e 3,5 mEq/L) pode utilizar-se a solução de KCl a 7,5% na dose de 3 mEq/kg/dia 4 vezes por dia. Deve vigiar-se laboratorialmente a situação para decisão terapêutica ulterior. (De salientar que esta estratégia é utilizada igualmente como prevenção nos casos de utilização prolongada de diuréticos).

A solução de KCl pode associar-se ao leite na dose de 2,5-3 mEq/kg/dia.

Nos casos de RN em estado crítico, com sintomatologia mais exuberante (arritmia, bradicárdia, íleo paralítico, etc.) e/ou com valores inferiores a 3 mEq/L, utiliza-se a via IV administrando K na dose de 0,3-0,4 mEq/kg/hora e utilizando a concentração de K de 20-40 mEq/L na solução, procedendo sempre a vigilância electrocardiográfica.

Hiperpotassémia

Definição

A hiperpotassémia é definida como o valor de K plasmático superior a 6 mEq/L, sendo que se considera o valor superior a 7,5 mEq/L como limite crítico. Salienta-se que a velocidade de elevação do potássio é mais importante do que a concentração sérica exacta do ião.

É frequente em RNPT com idade gestacional inferior a 30 semanas, sobretudo entre as 24 e 72 horas de vida

Tratando-se duma situação que comporta morbilidade e mortalidade significativas, relacionávies sobretudo com o seu efeito sobre a condução cardíaca, pode culminar na assistolia e paragem cardíaca.

Etiopatogénese

São descritos os seguintes mecanismos causais:

  1. Libertação excessiva de K intracelular (hemólise, hematomas, hemorragia intracraniana, hipercatabolismo celular, asfixia perinatal, etc.);
  2. Suprimento excessivo de K;
  3. Eliminação renal diminuída (imaturidade renal, IRA, IRC, uropatia obstrutiva, nefropatia de refluxo, etc.);
  4. Medicamentos (indometacina, captopril, espironolactona, etc.).
Manifestações clínicas

O quadro clínico caracteriza-se fundamentalmente por arritmia e alterações do ECG; estas, por ordem de gravidade, incluem: maior amplitude das ondas T, em “pico”, bloqueio cardíaco com alargamento do complexo QRS, arritmia e paragem cardíaca.

Tratamento

O tratamento depende essencialmente da situação de base e dos valores do potássio plasmático que devem ser monitorizados frequentemente.

Nas hiperpotassémias moderadas (6,0-7,5 mEq/L) sem alterações do ECG deve suspender-se o suprimento de potássio e administrar-se glucose IV com ou sem insulina. No esquema prático mais habitual procede-se a perfusão de solução de glucose a 25% (0,5 mL/kg/hora) associada a insulina (0,15U/kg/hora), esta última com duração de acção variando entre 1 a 4 horas (entrada de K na célula).

As formas graves (K > 7,5 mEq/L), associadas a alterações do ECG, constituem uma emergência médica, estando indicado o seguinte procedimento:

  • Gluconato de cálcio a 10% IV (1-2 mL/kg em 5 a 10 minutos) cuja acção pode durar até cerca de 4 horas; esta perfusão, cujo efeito é restaurar a excitabilidade da membrana celular, pode ser repetida;
  • Bicarbonato de sódio a 3% IV (1-3 mEq/kg em 10 minutos) cuja acção pode durar 2-4 horas; esta perfusão promove a entrada do K na célula e combate a acidose. Recorda-se que o bicarbonato deve ser administrado por acesso diferente do gluconato de cálcio;
  • Insulina na dose referida atrás;
  • Salbutamol (promovendo a deslocação do K do espaço extracelular para o intracelular) na dose de 4 mcg/kg em 5 mL de água destilada durante 20 minutos; este procedimento pode ser repetido. A via inalatória também pode ser utilizada.

Nas hiperpotassémias refractárias, para além da utilização simultânea de gluconato de cálcio, bicarbonato de sódio, glicose/insulina e salbutamol, está indicada a associação a medidas que promovem a eliminação do K [resinas permutadoras de iões, diuréticos de ansa (furosemido)] e, eventualmente, diálise peritoneal:

  • Resinas (por ex. suspensão de poli-estireno-sulfonato de sódio <> 15 g/60 mL) na dose de 1 g/kg 4 vezes por dia; como acções acessórias salienta-se o risco de hipercalcémia e calcificação do tubo digestivo com possibilidade de obstrução;
  • Furosemido na dose de 2 a 4 mg/kg/dia IV dividida em 4 vezes ou em perfusão contínua;
  • Diálise, hemodiafiltração ou exsanguinotransfusão, com a colaboração da equipa de nefrologia e da UCIN.

BIBLIOGRAFIA

Bockenhauer D, Zieg J. Electrolyte  disorders. Clin Perinatol 2014; 41: 575-590

Cloherty JP, Eichenwald EC, Strak AR. Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Lippincott Williams & Wilkins, 2008

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Guimarães JC, Carneiro MJ, Loio P, Macedo A, Tuna ML, et al. Manual Prático de Neonatologia. Lisboa: Hospital de S. Francisco Xavier/Uriage, 2016

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

 MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

McNeilly JD, Boal R, Shaikh MG, Ahmed SF. Frequency and aetiology of hypercalcaemia. Arch Dis Child 2016; 101: 344-347

Modi N. Management of fluid balance in the very immature neonate. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2004; 89: F108-111

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

 Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Oh W. Fluid and electrolyte of very low birth weight infants. Pediatrics and Neonatology 2012; 53: 329-333

TRANSPORTE DO RECÉM-NASCIDO

Importância do problema

Como é referido no capítulo 1, o desenvolvimento em Portugal dum plano de assistência perinatal levado a cabo nos últimos trinta anos englobando, entre outras medidas, a regionalização de cuidados e a criação dum sistema nacional de transporte neonatal inter-hospitalar, contribuiram decisivamente para francos progressos que se traduziram em melhoria das taxas de mortalidade infantil e perinatal.

Do plano de cuidados pré-natais faz parte a avaliação do risco e a transferência atempada da grávida para um centro de referência, quer por causas maternas, quer por causas fetais; o objectivo é proporcionar um nível de cuidados mais adequados à situação clínica, em obediência a um conceito clássico validado por estudos científicos.

Trata-se do conceito de “transporte in utero” segundo o qual “a melhor incubadora de transporte é o útero materno”.

Porém, em cerca de 10 a 20% dos RN sem antecedentes de risco pré-natal poderão surgir problemas clínicos graves com indicação de transferência. Daí a importância da existência dum sistema organizado de transporte permitindo que os RN doentes beneficiem de cuidados especializados prestados por neonatologista/intensivista pediátrico e enfermeira especialista, antes e durante a transferência para uma unidade de nível de cuidados mais diferenciado ou terciária (UCIN), onde existam recursos técnicos e humanos adequados à gravidade e especificidade da respectiva situação clínica.

Em Portugal, o modelo em funcionamento há mais de três décadas tem recebido reconhecimento internacional face aos resultados obtidos.

Princípios gerais

No âmbito do sistema de transporte do RN – que pressupõe organização, estruturas próprias e esquema coordenado – há que atender a um conjunto de princípios gerais tendo em vista a eficácia, eficiência e efectividade dos cuidados a prestar.

Assim, torna-se fundamental:

  1. Preferir, sempre que possível, o transporte pré-natal (já mencionado);
  2. Transferir o RN de modo seguro;
  3. Garantir que durante o transporte as condições assistenciais técnológicas e humanas sejam semelhantes ou melhores do que as praticadas na instituição que solicita a transferência; tal pressupõe a utilização de ambulância de tipo “medicalizado” (com médico e enfermeiro com competências diferenciadas em medicina intensiva), equipada com diverso material para reanimação, designadamente, incubadora, ventilador e equipamento portátil de monitorização;
  4. Assegurar que os benefícios da transferência ultrapassem os riscos inerentes à mesma;
  5. Diminuir a morbilidade e mortalidade neonatais através dos cuidados prestados pela equipa de saúde responsável pelo transporte;
  6. Haver boa relação custo-benefício, equacionando a decisão;
  7. Comunicar prévia e bidireccionalmente utilizando diversos meios tais como, via telefónica, videotelefónica, correio electrónico ou outro; tal pressupõe o funcionamento pleno e coordenado de três polos de comunicação, em obediência à ponderação sobre a alínea 6 (ver atrás):
    • equipa da instituição que decide sobre a transferência,
    • equipa móvel, de transporte,
    • equipa da instituição receptora de modo a ponderar e decidir a necessidade e benefícios da transferência, a qual deve ser comunicada e explicada aos pais;
  8. Actuar de modo humanizado, o que implica, entre outras atitudes, promover o contacto prévio mãe/pai – filho RN; em condições ideais: a mãe deve acompanhar o filho e à mesma (ou aos pais) devem ser entregues folha informativa com contactos da instituição de saúde que vai receber a criança e, sempre que possível, também uma fotografia do RN;
  9. Promover sempre a estabilização clínica do RN no hospital de origem antes do início do transporte.

Indicações

As principais indicações de transferência de RN para unidades com nível mais diferenciado de cuidados são:

  1. RN de peso < 1.500 gramas e/ou idade gestacional < 32 semanas;
  2. RN com dificuldade respiratória e/ou crises de apneia, estando indicada ventilação mecânica;
  3. RN com defeitos congénitos graves, estando indicada intervenção cirúrgica e terapia intensiva;
  4. RN em estado crítico com patologia diversa (metabólica, infecciosa, neurológica, hematológica, etc.);
  5. RN com encefalopatia hipóxico-isquémica com indicação de tratamento atendendo à eventual necessidade de terapia por hipotermia induzida.

Requisitos durante o transporte

A manutenção dos cuidados durante o transporte obriga a um conjunto de requisitos:

  • Manuseamento cuidadoso (com especial relevância nos casos de imaturidade) evitando lesões traumáticas;
  • Colocação de rolos e ninhos de contenção para melhor posicionamento e conforto;
  • Colocação de cintos de segurança;
  • Temperatura adequada, evitando, quer a hipotermia, quer a hipertermia (RN em incubadora de transporte ou berço aquecido) (Figura 1);
  • Oxigenação adequada, evitando, quer a hiperóxia, quer a hipóxia (importância do oxímetro de pulso);
  • Suprimento energético e hidroelectrolítico adequados (fluidos, electrólitos, alimentação parentérica, etc.);
  • Assépsia rigorosa tentando evitar a colonização microbiana e a infecção.

FIGURA 1. RN com capuz e envolvido em saco à base de estanho (material isolador) para evitar o arrefecimento.

Organização

Em Portugal continental existem três centros de coordenação dependentes de hospitais centrais em rotatividade por períodos variáveis, respectivamente: Lisboa (apoio à zona sul), Coimbra (apoio à zona centro), e Porto (apoio à zona norte). Efectua-se, na grande maioria das vezes, transporte por via terrestre utilizando a ambulância devidamente equipada para o grupo etário neonatal/pediátrico. (ver adiante)

Nas regiões autónomas (Açores e Madeira), e em situações especiais no continente, é possível utilizar a via aérea (helicóptero ou avião) quando a distância ou a situação clínica assim o exigirem.

A equipa (constituída por médico neonatologista/intensivista, enfermeira especializada, e técnico de ambulância de emergência/TAE) é recrutada de diversos hospitais e maternidades, em geral de zonas próximas do centro de coordenação, ou do próprio centro, segundo escala pré-determinada, garantindo apoio permanente 24 horas/dia, durante todo o ano.  

Na zona sul, adaptando o sistema já existente na zona norte e centro, passou a haver desde Janeiro de 2012 apenas uma equipa e uma ambulância para efectuar transporte simultaneamente neonatal e pediátrico, designada por TIP – transporte inter-hospitalar pediátrico (pertencente ao INEM – Instituto Nacional de Emergência Médica), adaptada, possuindo incubadora com ventilador (geminado), para recém-nascidos, e maca com ventilador pediátrico (portátil) para crianças em idade pediátrica.

A decisão sobre a instituição receptora depende das vagas existentes nas unidades da região e do tipo de patologia do RN que é transportado. O esclarecimento sobre as referidas vagas pode ser obtido permanentemente através de contacto por telefone móvel entre os hospitais e a equipa da ambulância que procede à evacuação.

A gestão e manutenção de todo o material da ambulância, incluindo consumíveis, assim como a organização de escalas rotativas de médicos e enfermeiros está a cargo do centro de coordenação do hospital/maternidade da respectiva região.

Trata-se, pois, dum modelo organizativo de parceria entre o INEM (cedendo ambulância equipada e TAE) e hospitais centrais do Serviço Nacional de Saúde (cedendo serviço organizativo e recursos humanos).

Noutros países existem outros modelos (por ex. organização de toda a logística a partir duma única instituição dando apoio à respectiva zona de influência).

Equipamento

Não cabendo, no âmbito desta obra, especificações técnicas sobre ambulâncias para o transporte de RN, é feita apenas uma resenha do material existente na ambulância de transporte neonatal e dos principais medicamentos indispensáveis.

Material

  • Estetoscópio e termómetro convencional;
  • Incubadora de transporte com sistema de aquecimento por convecção, com fonte de luz e bateria recarregável, e ainda sistema de regulação de temperatura servocontrolado;
  • Monitores electrónicos (de temperatura, cardiorrespiratório, de pressão arterial, oxímetro de ambiente/FiO2, oxímetro de pulso, etc.);
  • Sonda temperatura rectal (monitorização da temperatura central no transporte de doentes com indicação para hipotermia induzida);
  • Sistema de aspiração de secreções com sondas de aspiração estéreis, de calibres CH 5, 6, 8, 10;
  • Fonte de oxigénio e ar comprimido (cilindros com capacidade para 1.000 litros);
  • Balão tipo Ambu para ventilação manual com IPPB ou balão auto-insuflável;
  • Sistema para CPAP nasal;
  • “Máscaras” para ventilação, aplicáveis a RN de termo e pré-termo;
  • Material para entubação traqueal/tubos traqueais de diversos diâmetros → 2,5 (RN < 1.000 gramas); → 3 (RN com 1.000-1999 gramas); → 3,5 (RN com 2.000-2999 gramas); → 3,5 a 4 (RN > 3.000 gramas); laringoscópio de lâmina recta para RN com pilhas carregadas e sobresselentes;
  • Máscara laríngea;
  • Material para drenagem torácica;
  • Ventilador geminado com a incubadora permitindo ventilação por volume, por pressão ou ventilação de alta frequência oscilatória;
  • Sistema para administração de NO (óxido nítrico inalado);
  • Material para canalização arterial e venosa – artério e venoclise (cânulas, conjunto de agulhas tipo “borboleta”, agulha para injecção intraóssea, agulhas 18, 19, 20, seringas (tipo insulina de 1 mL, de 5 e 10 mL), material para cateterismo umbilical;cateteres venosos e arteriais umbilicais de diferentes calibres;
  • Sistemas de torneira de três vias;
  • Bomba de perfusão com seringa;
  • Material de pequena cirurgia;
  • Fitas reactivas para micrométodos (determinações no sangue capilar e urina, por ex. glicémia e glicosúria);
  • Sistema portátil para gasometria.

Fármacos

Soro fisiológico, glucose em água a 5% e 10%, bicarbonato de sódio molar (1 mL<>1 mEq), cloreto de potássio, cloreto de sódio a 10% e 20%, gluconato de cálcio a 10%, adrenalina a 1/1.000, diazepam, vitamina K1 (ampolas de 0,5 e 1 mg), fenobarbital, difenil-hidantoína, furosemido, dopamina, dobutamina, prostaglandina E1, gentamicina, ampicilina, lidocaína, surfactante, etc..

Miscelânea

Bata, máscaras, avental de plástico, óculos de protecção, luvas esterilizadas, sacos colectores de urina, etc..

Procedimentos

Antes do transporte

Aspectos gerais

Ao ser solicitado o transporte, a equipa do hospital de origem deverá transmitir previamente à equipa de transporte todos os dados da história clínica (eventualmente por via electrónica), sem prejuízo da informação clínica convencional, como resultados de exames complementares de diagnóstico que deverão acompanhar sempre o doente.

Eis alguns aspectos práticos:

  • Há que informar sobre o estado clínico do RN, o peso, dados fundamentais para o cálculo de doses de fármacos e fluidos a administrar;
  • É obrigatório discutir, aconselhar e programar o plano de transferência do RN;
  • Há que coordenar com o hospital emissor a hora aproximada de chegada;
  • Há que contactar o hospital receptor, confirmar a vaga, e transmitir dados clínicos do doente;
  • Há que mostrar disponibilidade por parte da equipa de transporte para aconselhar/orientar a equipa do hospital de origem.

Em suma, os bons resultados do paciente em relação ao transporte inter-hospitalar dependem fundamentalmente das medidas a tomar antes do início da viagem com o objectivo de garantir a estabilização clínica – estabilizar antes de transportar. O transporte deve ser seguro, quer para o RN, quer para a equipa.

É essencial a correção prioritária de determinadas situações a cargo da equipa médica do hospital de origem (implicando formação básica em cuidados especiais e em ventilação mecânica de curta duração), até à chegada da ambulância com a equipa de transporte.

As medidas essenciais de estabilização prévia dizem respeito a:

  • Acesso vascular para suprimento de fluidos, electrólitos, glucose e fármacos (garantia de normovolémia, normoglicémia, normopressão arterial, equilíbrio hidroelectrolítico, etc.;
  • Correcção da acidose;
  • Sedação e analgesia em função do contexto clínico;
  • Manutenção da normotermia corporal (~ 36,5ºC) monitorizando a temperatura rectal, e/ou cutânea, com sensor electrónico ao nível do hipocôndrio direito (RN sob fonte de calor, envolvimento do RN em saco de PVC exceptuando a face, etc.); para atingir tal temperatura cutânea (~ 36,5ºC), deverá providenciar-se ambiente de termoneutralidade na incubadora (garantindo a temperatura central do organismo com menor consumo de oxigénio);  

Se o RN estiver vestido e/ou ou no interior de concentrador de calor (“túnel” de perspex), por sua vez dentro da incubadora, a temperatura do ambiente desta pode ser inferior à referida atrás: peso ~ 1.000 gramas → 32ºC; peso ~ 2.000 gramas → 28ºC; peso ~ 3.000 gramas → 27ºC.

  • Administração de prostaglandinas (medicamento armazenado a 4ºC) a iniciar se houver suspeita de cardiopatia cianótica, pressupondo indicações dadas pela equipa de cardiologia pediátrica após contacto prévio, ou experiência do pediatra neonatologista.

   A dose de prostaglandina E1 (Prostin®) é:

    • inicial → 0,05-0,1 mcg/kg/minuto IV,
    • de manutenção 0,01-0,05 mcg/kg/minuto IV,
    • devido ao risco de apneia, está indicada nestes casos a entubação traqueal para início de ventilação mecânica, monitorizando a saturação transcutânea em O2 (SpO2);
    • Ventilação artificial de apoio com ventilador por pressão, utilizando os seguintes parâmetros:
      • PIP: 20 cm H2O,
      • PEEP: 3 cm H2O,
      • Relação I/E : 1/1,
      • FiO2: 50-60%,
      • Tempo inspiratório: 0,4 segundos;
  • Administração de surfactante se comprovada SDR por imaturidade pulmonar;
  • Ventilação por volume garantido ou ventilação de alta frequência consoante a situação clínica de base do RN;
  • Assistência ventilatória não invasiva – CPAP (ver adiante capítulo sobre “problemas respiratórios do RN”).
Situação especial
Indução da hipotermia em casos de encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI)

Desde que os RN preencham critérios de selecção para efectuar esta terapêutica, a iniciar no hospital de origem segundo directivas do hospital receptor, idealmente a criança deverá chegar ao hospital receptor até 6 horas após o início do quadro de EHI (período designado “janela terapêutica” para tentar garantir a eficácia da medida e o melhor prognóstico.

A hipotermia passiva deve manter-se durante o transporte com o objectivo de se atingir a temperatura considerada neuroprotetora de 34,5ºC rectal o mais rapidamente possível.

Situações do foro cirúrgico
Onfalocele e gastrosquise
  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Não administrar alimentação per os;
  • Prescrição de antibioticoterapia nos casos de gastrosquise e de onfalocelo rota;
  • Fluidoterapia IV com suprimento duplo ou triplo correspondente às necessidades de manutenção;
  • Protecção das vísceras expostas (gastrosquise ou onfalocelo rota);
Atrésia do esófago e obstrução intestinal

(atrésia duodenal, atrésia jejuno-ileal, anomalia anorrectal, íleo meconial, doença de Hirschprung, enterocolite necrosante)

  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre (aspiração contínua com pressão negativa ~ 10-20 cm H2O nos casos de atrésia do esófago);
  • Não administrar alimentação per os;
  • Fluidoterapia IV em todas as situações. Como particularidade, nos casos de enterocolite necrosante, suprimento duplo ou triplo das necessidades de manutenção, e suporte inotrópico para incrementar a perfusão mesentérica.
Anomalias congénitas das vias aéreas inferiores

(hérnia diafragmática de Bochdalek, enfisema lobar congénito, sequestro pulmonar, anomalia adenomatóide quística)

  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Entubação traqueal para início de ventilação mecânica;
  • Sedação e analgesia;
  • Detecção de possível quadro de hipertensão pulmonar (aplicação de dois oxímetros de pulso para avaliação da SpO2, num dos membros inferiores e no membro superior direito, respectivamente pós e pré-ductal.
Obstrução das vias aéreas superiores

(atrésia dos coanos, sequência de Pierre Robin, etc.)

  • Na atrésia dos coanos: colocação de tubo de Guedel (tamanho 0 ou 00) por via oral, fixando-o;
  • Na sequência de Pierre Robin, colocação do RN em decúbito ventral e, eventualmente, entubação traqueal.
Teratoma sacrococígeo
  • Manipulação cuidadosa evitando a compressão da região sacrococígea;
  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Antibioticoterapia de largo espectro abrangendo nomeadamente anaeróbios e Gram-negativos;
  • Decúbito ventral ou lateral envolvendo o tumor em compressas esterilizadas e secas.
Defeitos do tubo neural
  • Protecção da região afectada colocando o RN em decúbito ventral e imobilizando-o pela região axilar e coxas;
  • Não manipulação da área medular eventualmente exposta, humidificando-a e aplicando gotas de soro fisiológico frequentemente;
  • Não utilização de luvas com látex.

Notas:

    • Salienta-se a necessidade de garantir manuseamento do RN em condições de assépsia.
    • Outros procedimentos inerentes a situações específicas são abordados nos capítulos respectivos.
    • O RN deverá ser acompanhado de amostra de cerca de 10 mL de sangue materno sem anticoagulante.
    • Reitera-se a necessidade de informação clínica (escrita convencional ou enviada por via electrónica).

Durante o transporte

O RN somente deverá ser colocado na incubadora de transporte (previamente aquecida e ligada à corrente eléctrica do hospital) uma vez verificada a estabilização clínica.

Antes de iniciar viagem, a incubadora passará a estar ligada à bateria, e o RN à fonte de gases da ambulância.

Durante o transporte, com a equipa à cabeceira do doente, deverá proceder-se a:

  • Verificação da permeabilidade das vias aéreas, da permeabilidade da venoclise, da expansão da caixa torácica, do funcionamento da bomba de perfusão;
  • Monitorização da temperatura, das frequências respiratória e cardíaca, da SpO2, e da pressão arterial.

Na eventualidade de intercorrências durante a viagem (por ex. paragem cardiorrespiratória, obstrução das vias aéreas, extubação traqueal, pneumotórax, etc.) a ambulância deve efectuar paragem para facilitar a actuação emergente.

No caso de suspeita de pneumotórax, deve proceder-se, em condições de assépsia e após desinfecção da pele com solução antisséptica, a punção diagnóstica de emergência com seringa de 20 mL e agulha 21G, intercalando torneira de 3 vias; a punção deve fazer-se ao nível do IIº espaço intercostal na linha médio-clavicular do lado afectado, aspirando a seguir (seringa contendo soro fisiológico quando se efectua a operação pela primeira vez após punção; havendo ar ectópico no espaço pleural, observa-se “o borbulhar”). O ar aspirado é esvaziado em operações sucessivas rodando de cada vez a torneira para as posições de aspirar e esvaziar.

Este procedimento de emergência implica ulteriormente (na ambulância ou na UCIN) a eventual aplicação de drenagem permanente subaquática com dreno apropriado (II-IIIº espaço intercostal-linha axilar anterior ou Vº-VIº na linha axilar posterior) ligado a tubo de vidro passando através de tampa de frasco com líquido/soro fisiológico ou água estéreis, colocado em plano inferior ao doente; o comprimento do tubo em cm mergulhado abaixo do “nível de água” dá o valor da pressão negativa criada, em cm de H2O.

No caso de paragem cardiorrespiratória, há que proceder a manobras de reanimação neonatal (como no bloco de partos) implicando eventual re-entubação e ventilação manual com balão Ambu ou balão auto-insuflável, massagem cardíaca e administração de fármacos. (ver capítulo sobre “reanimação do RN”)

Admissão na UCIN

Trata-se do momento de “passagem de testemunho” da equipa de transporte à equipa do hospital receptor, havendo, em tal circunstância, oportunidade para:

  1. Relatar todos os eventos ocorridos durante o transporte, entregar a nota de transferência e resultados dos exames complementares de diagnóstico, caso existam e;
  2. Comentar aspectos relatados no relatório informativo de transferência que acompanha o doente.

BIBLIOGRAFIA

American Academy of Pediatrics.Task Force on Interhospital Transport. Guidelines for air and ground transport of neonatal and pediatric patients. Elk Grove Village /IL: American Academy of Pediatrics, 2000

American Academy of Pediatrics. Section on Transport Medicine. Guidelines for air and ground transport of neonatal and pediatric patients. Elk Grove Village /IL: American Academy of Pediatrics edition, 2007

Azzopardi DV, Strohm B, Edwards AD, et al. Moderate hypothermia to treat perinatal asphyxial encephalopathy. N Engl J Med 2009; 361: 1349-1358

Calheiros – Lobo JM, Pinho A, Fernandes MC, Laranjeira F. O transporte do recém-nascido. O Médico 1985; 117: 67-70

Cloherty JP, Eichenwald EC, Stark AR. Manual of Neonatal Care. Philadelphia: Lippincott Williamas & Wilkins, 2008

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Halliday H, McClure G, Reid M. Handbook of Neonatal Intensive Care. London: Baillère Tindall, 2004

Kattwinkel J(ed). Textbook of Neonatal Resuscitation. Dallas: American Academy of Pediatrics and American Heart Association, 2006

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lavaud J, Chabernaud JL, Barbier ML, et al. Réanimation et Transport Pédiatriques. Paris: Masson, 2001

Marba STM. Recomendações do Departamento de Neonatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria. Transporte de recém-nascido de alto risco. Rio de Janeiro: edição da Sociedade Brasileira de Pediatria, 2011

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Neto MT. Perinatal care in Portugal: effects of 15 years of a regionalized system. Acta Paediatrica 2006; 95: 1349-1352

O’Reilly KM, Tooley J, Winterbottom S. Therapeutic hypothermia during neonatal transport. Acta Paediatr 2011; 100: 1084-1086

Silva L J. Aspectos do transporte do recém-nascido. Medicina 1981; 11: 45-52

Wyllie J. Recent changes to UK newborn resuscitation guidelines. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2012; 97: F4-F7

CUIDADOS PALIATIVOS NEONATAIS E PEDIÁTRICOS

Introdução

A área dos Cuidados Paliativos (CP), enquanto especialidade médica estruturada, teve início na década de 60 do século XX no Reino Unido com o trabalho generoso e persistente de Cicely Saunders. Deve-se a esta personalidade ímpar, enfermeira, assistente social e médica, a criação em 1967 do Hospício de S. Cristóvão, primeiro local especificamente preparado para receber crianças e jovens com doenças graves, em fase avançada ou em fim de vida, adoptando uma filosofia extrapolada dos adultos e promovendo a formação de profissionais de saúde para a tarefa de melhorar a qualidade de vida daqueles.

E, tratando-se de um sistema assistencial com um âmbito alargado (designadamente abrangendo os períodos pré- e perinatal, da infância, adolescência e juventude pré-adultícia), com um modelo de cuidados que hoje está altamente organizado e funcionando com base científica, a Organização da Nações Unidas (ONU) passou a considerar os CP como um direito humano e uma prioridade. 

Para tentar enquadrar o tema, importa referir alguns números, que são expressivos:

    • Cerca de 10 em cada 10.000 crianças e jovens sofrem de doenças que limitam ou ameaçam as suas vidas;
    • 1 em cada 10.000 crianças com os referidos problemas morre cada ano.

Conceitos básicos

Para se compreender o valor e o significado desta prática médica no âmbito da área da Pediatria, torna-se necessário:

  1. Revisitar a base etimológica da palavra paliativo: derivada da palavra paliar, que significa aliviar, atenuar ou suprimir os sintomas, tais como dor, sofrimento, angústia sem efeito directo na etiopatogénese no processo mórbido que os provoca;
  2. Mencionar certos conceitos associados à morte (pela associação de ideias, por vezes distorcida, que por vezes se faz com cuidados paliativos):
    1. a distanásia ou obstinação terapêutica, envolvendo meios extraordinários e desproporcionados ao benefício esperado; e
    2. a eutanásia ou procedimento que tende a pôr termo à vida em situação desesperada e irreversível, evitando o sofrimento.

Definições

Uma das definições mais consensuais é a que deriva da Association for Children with Life-threatening or Terminal Conditions and their Families:

Sistema de cuidados activos totais incidindo sobre o corpo, a mente e o espírito da criança, incluindo também o apoio à família:

  • Iniciando-se quando se diagnostica uma doença complexa, potencialmente fatal ou limitante da sua vida e;
  • Continuando para além do período em que a criança deixa de receber tratamento específico para a doença em causa.

Pode concluir-se globalmente que tal modalidade de cuidados (atenuação ou prevenção de diversas formas de estresse provocados pela doença física ou psíquica, com o objectivo de melhoria da qualidade de vida) é centrada, não na patologia, mas sim nas pessoas (no doente, na família e nos profissionais envolvidos no processo assistencial).

Tal atitude pressupõe, pois, providenciar resposta humanizada, individualizada e continuada a necessidades e problemas vários, respeitando vínculos, valores e o princípio da autonomia.

Por outro lado, importa salientar duas ideias basilares: 1- paliar não significa prestação de cuidados exclusivamente em fim de vida e; 2 – dado considerando que as medidas a aplicar não são dirigidas à etiopatogénese da doença, paliar não significa abandono do doente.

Tipologia das indicações para cuidados paliativos

A Association for Children with Life Threatening or Terminal Conditions and their Families distingue quatro categorias de doenças com indicação para cuidados paliativos:

  1. Doenças curáveis, embora com possibilidade de falência terapêutica: o cancro é o paradigma desta categoria;
  2. Doenças cuja cura não é possível, embora a terapêutica possa modificar a respectiva evolução natural e prolongar a vida: a fibrose quística e a distrofia muscular de Duchenne são exemplos;
  3. Doenças incuráveis, mesmo com terapêutica apropriada: são exemplos as doenças hereditárias do metabolismo;
  4. Doenças não progressivas cujas sequelas podem constituir uma ameaça de vida para o doente: é exemplo paradigmático a encefalopatia na sequência de asfixia perinatal grave; embora posteriormente a doença não progrida, as suas consequências incluem sintomatologia diversa e devastadora, incluindo designadamente convulsões, pneumonia de aspiração, escoliose progressiva, perturbações cardiorrespiratórias, etc..

Nesta perspectiva, e quanto ao planeamento e execução dos cuidados paliativos pediátricos/CPP (incluindo neonatais/CPN) à semelhança do que acontece com os adultos, podem ser discriminados diferentes níveis de actuação:

  • Nível 1 (básico) – De carácter universal, estendendo-se a todas as pessoas que cuidam de crianças, incluindo, claro, os profissionais de saúde. Exige formação básica sobre o tema em análise para que os cuidadores em geral possam sentir-se sensibilizados, quer para o alívio da dor e doutros sintomas do paciente, quer para o alívio do sofrimento psicológico e emocional das famílias;
  • Nível 2 (generalista) – Inclui o apoio de profissionais com interesse especial em cuidados paliativos (com ou sem formação nesta área) nos casos em que as necessidades paliativas são frequentes; por exemplo, pacientes assistidos em unidades de neonatalogia, de oncologia, e de neurologia;
  • Nível 3 (especialista) – Inclui a prestação de cuidados por especialistas com formação avançada em cuidados paliativos pediátricos, em dedicação exclusiva e colaborando concomitantemente em acções de formação e em investigação.

Nalgumas situações, perante um diagnóstico fetal de tempo de vida limitado ou de patologia potencialmente fatal, o reconhecimento das necessidades paliativas poderá preceder o momento do nascimento. Em tais circunstâncias, exigindo-se uma resposta diferenciada, poderá haver necessidade de cooperação entre as equipas da Neonatologia e da Obstetrícia.

Especificidades

  1. Ao contrário do que se passa no adulto, no grupo etário pediátrico em diversos períodos (desde o recém-nascido e lactente ao jovem e adolescente) há a salientar características únicas relacionadas designadamente com o desenvolvimento, maturidade biológica e emocional, e certas realidades psicossociais (comunidade, escolaridade, etc.).
    Relativamente a tais características, importa relevar os seguintes aspectos: – enorme diversidade diagnóstica, frequentemente associada à incerteza prognóstica; – trajectória de doença longa, por vezes de décadas, desde a infância à idade adulta; – a circunstância de pais e familiares em geral, assumindo-se como os primeiros cuidadores, implicar a inclusão da família na equipa de cuidados paliativos.
  1. Por outro lado, relativamente ao período de recém-nascido, que comporta uma especificidade acrescida, importa relevar os seguintes aspectos: – os cuidados paliativos neonatais são frequentemente prestados em meio hospitalar, fruto das exigências tecnológicas da população assistida; – o local preferencial de cuidados deve ser ponderado individualmente, de acordo com os recursos disponíveis e num modelo culturalmente adequado; – tanto quanto possível, e sempre que desejado pelos pais, devem ser exploradas outros locais, por exemplo: como alojamento conjunto no serviço de obstetrícia, zonas requalificadas na unidade de cuidados intensivos neonatais, unidades pediátricas independentes, ou domicílio.
  1. A questão das especificidades dos Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) foi abordada num importante documento da Organização Mundial de Saúde (OMS), focando, a propósito, os seguintes aspectos:
    • Representam um cuidado global ao corpo e espírito, incluindo o apoio à família;
    • Começam com o diagnóstico da doença e continuam, independentemente de o tratamento para a doença continuar ou não;
    • Os profissionais de saúde devem avaliar as necessidades e aliviar o sofrimento (físico, psicológico e social), tanto do paciente como da família;
    • Exigem uma abordagem multidisciplinar, incluindo a família e utilizando os recursos comunitários disponíveis, eventualmente escassos;
    • Podem ser iniciados em diversos ambientes e circunstâncias: nos hospitais, nos cuidados de saúde primários e nos domicílios.

A equipa de cuidados paliativos

A equipa de cuidados paliativos (pediátricos e neonatais) englobando obrigatoriamente um líder/coordenador, compreende um conjunto de intervenientes com especificidades (fundamentalmente, profissionais e técnicos ou especialistas no âmbito da saúde, mas também familiares do paciente) e está envolvida em tomadas de decisão complexas e dolorosas de forma holística, integrada e interdisciplinar. Pressupõe-se que a equipa, não individualmente, mas como um todo, é responsável pelas decisões que toma.

Como suas funções gerais, citam-se:

  • Assegurar a comunicação interna;
  • Promover a reflexão e o diálogo entre os profissionais;
  • Manter uma disponibilidade permanente para responder às necessidades;
  • Promover o apoio emocional e psicológico ao doente e familiares;
  • Manter actualizado o nível científico.

Sob o ponto de vista organizativo, existe consenso quanto à necessidade de a equipa elaborar um documento escrito conhecido como plano geral, antecipado, de cuidados e, para cada paciente, um plano individual de intervenção específica (personalizado, humanizado).

Todas as intervenções deverão ter em conta o supremo bem e os superiores interesses da criança e jovem, salientando-se que algumas situações clínicas poderão implicar a decisão de não continuidade ou suspensão de determinados procedimentos.

 

A competência para comunicar constitui um aspecto fundamental da formação de todos os intervenientes. Com efeito, para além da aprendizagem técnica básica, a comunicação deverá ser objecto de prática constante utilizando diversas estratégias ensino-aprendizagem, tais como a de role-playing. (ver adiante)

No âmbito da comunicação, a desenvolver por todos os elementos da equipa, no sentido de diminuir o sofrimento parental (físico, psicológico, social, espiritual), há determinados aspectos que devem ser realçados:

  • Dever imperioso de escutar os pais/família com angústias e garantir que as mensagens transmitidas foram compreendidas;
  • Saber dar “más notícias” segundo metodologia correcta; subentende-se aqui o “lado humano” e subjectivo da clínica, fundamental para se estabelecer confiança multidireccional entre todos os intervenientes no processo);
  • A comunicação em geral (e a de más notícias, em especial) deve ser planeada pela equipa e realizada em reunião multiprofissional, o mais precocemente possível; idealmente, tal comunicação deve ser transmitida sempre pelo mesmo elemento.

Notas importantes:

    1. Quando a morte se torna iminente, é fundamental:
      • assegurar à família que o agravamento da situação não se deveu às escolhas, mas sim ao progresso natural da doença, e;
      • que irão ser mantidas todas as intervenções que promovam a qualidade de vida pelo tempo necessário.
    2. Outro aspecto delicado diz respeito à forma como se aborda uma ordem de não reanimação. Em geral, é sugerido por especialistas que se tenha uma conversa com os pais sobre a legitimidade de permitir uma morte natural, colocando a tónica numa acção positiva que previne o sofrimento (conforto), enfatizando o respeito pela pessoa (dignidade) e realçando o compromisso de um acompanhamento diferenciado e permanente (ver atrás o conceito de distanásia).

Tratamento da dor e doutros sintomas

O tratamento “da dor e doutra sintomatologia” susceptível de comprometer o mal-estar dos pacientes constitui um dos princípios fundamentais da filosofia dos cuidados paliativos. Para a sua detecção precoce é necessária aplicação de escalas de avaliação da dor, o que pressupõe destreza do profissional na interpretação neuro-comportamental da resposta do recém-nascido.

Todos os profissionais envolvidos na prestação dos cuidados em análise, devem conhecer estratégias não farmacológicas para controlo da dor e fomentar a sua aplicação; eis as principais: promoção da sucção não nutritiva, sacarose oral, posicionamento adequado, toque de contenção, voz suave (preferencialmente da mãe), redução da estimulação ambiental, promoção do método canguru e amamentação.

Nas unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN), sendo grande a frequência de intervenções dolorosas (inserção de cateteres, colheita de sangue, punções, etc.), deve atender-se a estes momentos, sendo a analgesia determinante para o bem-estar do paciente. Tanto quanto possível, os procedimentos devem ser planeados de forma a respeitar uma manipulação mínima e os períodos de sono/repouso do recém-nascido.

Em conformidade com as noções gerais referidas, transcreve-se um fluxograma de actuação, definido por peritos (Carragner e McNamara) e adoptado em diversas instituições:

  1. Identificação rigorosa, precoce, dinâmica das necessidades paliativas;
  2. Consenso multiprofissional (obstetrícia/neonatologia);
  3. Comunicação de más notícias aos pais (disponibilizar todas as opções, incluindo cuidados paliativos);
  4. Conhecimento dos desejos dos pais (apoiar independentemente da escolha);
  5. Plano inicial de intervenção (acordado com a família, dinâmico, bem documentado, partilhado entre todos os profissionais);
  6. Avaliação interdisciplinar dinâmica das opções/necessidades;
  7. Planeamento dos cuidados antecipatórios (gravidez, parto, período neonatal);
  8. Cuidados em fim de vida;
  9. Luto.

Sem formação (aprendizagem e treino) não será possível identificar e satisfazer, na medida do possível, as necessidades espirituais, emocionais, psicossociais e físicas dos pais e familiares. Por outro lado, a falta de formação dos profissionais e dos familiares para compreenderem as diversas etapas dos cuidados paliativos constituem uma forte barreira para a prestação de cuidados de qualidade.

(ver Capítulos sobre: Analgesia e Sedação na Parte XXVIII e Dor no RN na Parte XXXI).

Prevenção do esgotamento da equipa

Cuidar de doentes graves e em risco de vida, bem como apoiar as famílias nas suas múltiplas necessidades, podem levar os profissionais de saúde, e em particular os médicos, a uma situação caracterizada por esgotamento, mal-estar e perda de autoconfiança; se tal perda não for identificada nem acompanhada, poderá levar a sérias consequências para a saúde física e emocional dos mesmos profissionais.

Assim, a sobrecarga emocional mal controlada pode levar ao estado de exaustão física, emocional e mental, conduzindo a um progressivo sentimento de inadequação, impotência e fracasso.

Enfim, a equipa deve estar ciente das capacidades de cada um dos seus membros para superar a sobrecarga de trabalho, evitando o envolvimento exagerado, mantendo uma comunicação aberta entre pares, e pedindo ajuda quando necessário. A equipa deve, pois, autocuidar-se.

Apoio ao luto

O luto é definido como um processo reactivo a uma perda com uma duração e complexidade variáveis de acordo com a personalidade e narrativa de cada um dos progenitores. Trata-se duma resposta adaptativa à experiência de uma perda inevitável. Muitas perdas são vivenciadas à medida que o doente e a sua família se movimentam através das etapas da doença que levará à morte.

Perante uma família que sofreu uma perda perinatal ou neonatal, todos os membros da equipa devem cooperar no apoio através da compaixão, do empenhamento na ajuda, no respeito pela integridade dos seus membros e na partilha de informação de forma honesta e rigorosa. O trabalho em equipa deve prevalecer sobre o domínio de qualquer dos seus elementos.

Em suma, o apoio ao luto representa, pois, uma componente importante dos cuidados paliativos.

Cuidados paliativos pediátricos e neonatais em Portugal

Os cuidados paliativos pediátricos não são ainda uma realidade funcional, não só em Portugal, como também noutros Países. Existe, contudo, de há muito, sensibilidade para o cuidar em fim de vida, e alguns exemplos de boas práticas, destacando-se alguns que nos chegam de Institutos de Oncologia, Neuropediatria e Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais.

Em 2013, a Sociedade Portuguesa de Neonatologia elaborou um documento nesta área intitulado – Consenso em Cuidados Paliativos Neonatais e em Fim de Vida, resultado de um estudo Delphi que contou com a colaboração de 41% dos neonatalogistas nacionais e reuniu as considerações consensuais no painel.

O documento refere que os cuidados paliativos neonatais (CPN), visam a promoção da qualidade de vida do recém-nascido (RN) e família, e a diminuição do seu sofrimento ao longo de uma doença grave, potencialmente fatal ou limitadora do tempo de vida. Os critérios adoptados são os que vigoram internacionalmente através do documento da Association for Children with Life Threatening or Terminal Conditions, anteriormente citado. É dada ênfase seguidamente aos pontos principais do referido documento:

  1. Os CPN são importantes para o RN com doenças progressivas, sem opção curativa, na qual o tratamento é paliativo desde o diagnóstico. São exemplos as seguintes situações:
    • recém-nascido no limiar da viabilidade,
    • determinadas cardiopatias complexas, síndromas polimalformativas major, determinadas doenças metabólicas, doenças genéticas (trissomia 13 e 18),
    • doenças neurodegenerativas, encefalopatia hipóxico-isquémica grave com mau prognóstico,
    • defeitos congénitos graves do sistema nervoso central ou quadros clínicos caracterizados por graves sequelas neurológicas;
  1. Os CPN são importantes para RN em que o tratamento curativo não constitui solução para o problema, ou em que a morte é previsível, mas obrigando a internamentos longos e complexos. Temos como exemplos:
    • síndroma de aspiração meconial muito grave,
    • septicémia com falência multiorgânica e sem melhoria clínica,
    • hérnia diafragmática muito grave e sem melhoria clínica ou situações de intestino curto com graves problemas de absorção.

OS CPN são igualmente importantes em situações de doenças irreversíveis não progressivas, acompanhadas de incapacidade grave. Assim, o prognóstico relacionado com a qualidade de vida futura ajuda também a determinar se o RN poderá beneficiar de CPN. É o caso de situações de paralisia cerebral muito grave, com necessidades complexas de saúde, ou RN com graves sequelas pulmonares.

Barreiras à instituição dos cuidados paliativos pediátricos

Em Portugal, os cuidados paliativos pediátricos (incluindo os perinatais e os neonatais) são já referidos em legislação, em documentos reguladores centrais e em recomendações de peritos. Contudo, à semelhança do que acontece noutros países, existem diversos obstáculos à instituição desta modalidade assistencial:

  • Incerteza no prognóstico;
  • Dificuldade da família em reconhecer e/ou aceitar que a criança tem uma doença incurável;
  • Dificuldades de comunicação, tempo limitado dos médicos e falta de recursos humanos;
  • Escassez de formação dos profissionais de saúde para a prestação de cuidados paliativos;
  • Conflitos entre familiares e entre os profissionais e familiares sobre os objectivos dos cuidados e do plano de intervenção.

Importa referir que os pais valorizam a comunicação sensível e cuidadosa, incluindo uma conversa aberta e franca que os ajude a acompanhar o seu filho ao longo de todo o processo de doença, incluindo os cuidados em fim de vida e o processo de morrer.

Num estudo efectuado por Meyer e colaboradores, os pais identificaram as seguintes prioridades a atender na prestação dos cuidados paliativos:

  • Informação honesta e rigorosa;
  • Acesso fácil aos profissionais que cuidam do seu filho;
  • Uma boa comunicação e coordenação de cuidados;
  • Apoio emocional por parte da equipa;
  • Preservação da integridade da relação pais-filho e;
  • Espiritualidade.

As circunstâncias, sistematizadas a seguir, podem tipificar, directa ou indirectamente, certas barreiras à aplicação dos cuidados paliativos:

  1. Muitos pais sentem necessidade de ser escutados, respeitados e incluídos no processo de decisão, e de não ficarem sujeitos a juízos morais por parte dos profissionais;
  2. Embora a maioria dos profissionais assuma atitudes paliativas a nível individual, nem todos dispõem de competências em comunicação, de capacidade de empatia, de disponibilidade para a escuta activa, nem de capacidade para ajudar os pais na procura de um sentido que lhes permita ultrapassar os dias difíceis que vivem durante a doença;
  3. A doença grave de um recém-nascido leva muitos pais a fazerem um luto de antecipação de perda, originando problemas emocionais e psicológicos para os quais é necessária atenção e orientação apropriada; assim, os cuidados paliativos neonatais têm o seu centro no recém-nascido, mas devem igualmente dedicar toda a atenção aos pais, não apenas durante o internamento, mas também durante a ocorrência do óbito e no apoio ao luto.

Concluindo, todos os elementos da equipa devem ter formação adequada, actualizada e sustentável no tempo, de modo a manter a qualidade dos serviços prestados, evitando a criação de barreiras.

BIBLIOGRAFIA

Aidoo E, Rajapakse D. End of life care for infants, children and young people with life-limiting conditions: planning and management: the NICE guideline 2016.

Arch Dis Child Educ & Practice 2018; 103: 296-299

American Academy of Pediatrics. Palliative care for children. Pediatrics 2000; 106: 351-357

American Academy of Pediatrics. Clinical practice guidelines for quality palliative care. Pediatrics 2019; 143: e20183310; DOI: 10.1542/peds.2018-3310

Archer L, Biscaia J, Osswald W. Bioética. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1999

Barbosa A, Neto IG (eds). Manual de Cuidados Paliativos. Lisboa; Centro de Bioética da Faculdade de Medicina de Lisboa, 2006

Bellieni CV, Buonocore G. Using the pain principle to provide a new approach to invasive treatments and end-of-life care. Acta Paediatrica 2019; 108: 206-207

Bergsma J, Thomasma DC. Autonomy and Clinical Medicine: a History of the Autonomy Principle. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 2000

Branchett K, Stretton J. Neonatal Palliative and end of life care: what parents want from professionals. J Neonat Nurs 2012; 18: 40-44

Carter BS, Jones PM. Evidence-based comfort care for neonates towards the end of life. Semin Fetal Neonatal Medicine 2013; 18: 88-92

Carter BS, Miller-Smith L (eds). The Lure of Technology. Ethical Dilemmas for Critically Ill Babies. Amsterdam: Springer Netherlands, 2016

Côté A-J, Payot A, Gaucher N. Paediatric palliative care in practice: Perspectives between acute and long‐term healthcare teams. Acta Paediatrica 2020; 109: 613-619. DOI: 10.1111/apa.14969

Craig F, Mancin A. Can we trully offer a choice of place of death in neonatal palliative care. Semin Fetal & Neonatal Med 2013; 18: 93-98

Davies B, Sally A, Sehrin J, Et al. Barriers to Palliative Care for children: perceptions of pediatric health care providers. Pediatrics 2008; 121: 282-288

Downing J, Ling J, Benini F, Payne S, Papadatou D. Core Competencies for Education in Paediatric Palliative Care. 2013 European Association for Palliative Care. http://www.eapcnet.eu/LinkClick.aspx?fileticket=6elzOURzUAY%3D

Esptein EG. Moral obligations of nurses and physicians in neonatal end-of-life care. Nursing Ethics 2010; 17: 577-589

Friedel M, Aujoulat I, Dubois A-C, Degryse, J-M. Instruments to measure outcomes in pediatric palliative care: a systematic review. Pediatrics 2019; 143: e20182379. DOI: 10.1542/peds.2018-2379

Hanks G, Cherny N, Christakis N, et al (eds). Oxford Textbook of Palliative Medicine. Oxford: Oxford University Press, 2010

Jackson C, Vasudevan C. Palliative care in the neonatal intensive care unit. Paediatrics Child Health 2020; 30: 124-128

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lo B, Rubenfeld G. Palliative sedation in dying patients. JAMA 2005; 294: 1810-1816

Leahy AB, Feudtner C. Outcome dimensions in pediatric palliative care. Pediatrics 2019; 143: e20183347; DOI: 10.1542/peds.2018-3347

Lourenço-Marques A. Dor oncológica e unidades de dor. Fundão: edição da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital do Fundão, 1999

Mendes J, Silva LJ, Santos MJ. Cuidados paliativos neonatais e pediátricos para Portugal-um desafio para o século XXI. Acta Pediatr Port 2012; 43: 218-222

Mendes J, Silva LJ. Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), Secção de Neonatologia, Consenso clínico: Cuidados Paliativos Neonatais e em Fim de Vida, Lisboa: SPP, 2013. http://www.lusoneonatologia.com/site/upload/consensos/2013- cuidados _paliativos.pdf.

Meyer EC, Ritholz MD, Burns JP, et al. Improving the quality-of-life care in the Pediatric Intensive Care Unit: Parents’ priorities and recommendations. Pediatrics 2006; 117:649-657

Ministério da Saúde (MS). Cuidados Paliativos Pediátricos – Relatório do Grupo de Trabalho do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde. Lisboa: MS, 2014. Acessível em Maio de 2018: http://www.apcp.com.pt/uploads/Relato-rio-do-GdT-de-CPP.pdf

Moody K, Siegel L, Scharbach K, et al. Pediatric palliative care. Prim Care Clin Office Pract 2011; 38: 327-361

Nelson KE, Rosella LC, Mahant S, Guttmann A. Survival and surgical interventions for children with trisomy 13 and 18. JAMA 2016; 316: 420-428

Provost V, Mortier F, Bilsen J et al. Medical end-of-life decisions in neonates and infants in Flandres. Lancet 2005; 365: 1315-1320

Sanchez-Reilley S, Morrison L, Carey E, et al. Caring for oneself to care for others: physicians and their self-care. J Support Oncol 2013; 11: 75-81

Tan GH, Totaplly BR, Torbati D, Wolfsddorf J. End-of-life decisions and palliative care in a children’s hospital. J Palliat Med 2006; 9: 332-342

Woodroffe I. Supporting bereaved families through neonatal death and beyond. Semin Fetal Neonatal Medicine 2013; 18: 99-104

World Health Organization (WHO). Global Atlas of Palliative Care at the End of Life. Geneva: WHO (ed), 2014

DOR NO RECÉM-NASCIDO

Definição e importância do problema

A dor é definida como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesão tecidual. Trata-se, pois, dum fenómeno subjectivo demonstrável no RN, já a partir das 24 semanas de gestação; efectivamente, os elementos do SNC necessários para a transmissão do estímulo doloroso ao córtex cerebral estão presentes desde aquela idade gestacional, conquanto a maturação funcional e estrutural do sistema neurossensorial progrida durante a vida pós-natal.

O reflexo doloroso característico do primeiro trimestre é exagerado e hipersensível, devido a proliferação e diferenciação das células nervosas e ao aumento do número de receptores. Esta situação mantém-se até o início do período neonatal. Neste período, a resposta ao estímulo doloroso torna-se mais específica e localizada devido ao desenvolvimento, da actividade neural, factores tróficos, marcadores e formação de sinapses específicas.

O desenvolvimento cognitivo é determinante na reacção ao estímulo doloroso o que significa que, em cada faixa etária, a reação à dor pode variar. Apesar da existência de recursos relativamente reduzidos para a analgesia no período neonatal, existem alternativas seguras e eficazes para o tratamento doloroso neste grupo etário. Salienta-se que a indicação da analgesia deverá ser individualizada e sempre considerada em recém-nascidos portadores de doença potencialmente dolorosa e/ou submetidos a cirurgia ou manobras invasivas.

De acordo com estudos epidemiológicos, em média, cada RN hospitalizado em UCIN é sujeito a cerca de 8-10 procedimentos dolorosos por dia nas primeiras semanas de vida; no caso dos RNMBP tal acontece cerca de 500 ou mais vezes durante o respectivo internamento. Entre as múltiplas “agressões” associadas aos cuidados contam-se estímulos intensos auditivos, visuais, tácteis/manuseamentos intempestivos, punções, entubações, ventilação mecânica e aspiração de secreções. Nos doentes do foro cirúrgico assume importância a dor provocada por manobras cruentas ao nível de vários territórios.

Nesta perspectiva, em todas as unidades neonatais existe a preocupação de reduzir ao mínimo a dor, a qual se exprime de modo peculiar no RN.

Cabe referir, a propósito do combate à dor (analgesia ou conjunto de medidas que suprimem ou atenuam a dor) que por vezes o mesmo é utilizado em associação a outro tipo de medida (sedação ou conjunto de medidas de acalmia); o objectivo final é, minorando o estresse, proporcionar o máximo de bem-estar à criança, o que tem repercussões funcionais positivas ao nível de diversos órgãos e sistemas.

Etiopatogénese

Face a estímulo doloroso, o RN apresenta uma resposta global de estresse traduzida por alterações de tipo cardiovascular, respiratório, imunológico, hormoral, metabólico e comportamental.

Com efeito, a dor activa determinados mecanismos compensatórios do sistema nervoso autónomo. As alterações fisiopatológicas resultantes da percepção de dor (nocicepção) podem ser sistematizadas do seguinte modo: taquicárdia, elevação da pressão arterial sobretudo à custa da pressão sistólica, taquipneia ou bradipneia/apneia, variação da pressão intracraniana, hipoxémia, hipercápnia, libertação de mediadores como renina, endorfinas, catecolaminas, e cortisol ou seus precursores.Verifica-se igualmente catabolismo proteico, consumo de gorduras e hiperglicémia. Embora a especificidade e a sensibilidade destes “indicadores” variem muito, tais sinais e fenómenos são de fácil aplicação e estão disponíveis nas unidades de cuidades intensivos neonatais.

O estímulo doloroso prolongado pode ter consequências a médio prazo, tais como hemorragia intracraniana e leucomalácia periventricular. A longo prazo, demonstrou-se que o referido estímulo poderá ter repercussão sobre a estrutura (neurónios e sinapses) do próprio sistema nervoso central. Torna-se assim compreensível que o manejo inadequado do estresse num recém-nascido seja susceptível de ter impacte negativo na criança, predispondo no futuro a problemas de ordem cognitiva e comportamental.

Avaliação da dor

A avaliação e medição da dor na criança que não possui linguagem falada coloca problemas complexos pela dificuldade na concepção de um instrumento sensível e válido, e de fácil aplicação na prática clínica.

Em complemento do que foi referido antes, cumpre salientar os parâmetros fisiológicos que podem ser “medidos” para avaliar ou “objectivar” a dor, com a noção de que se trata de medidas fisiológicas objectivas, mas pouco específicas: frequência cardíaca (elevação), frequência respiratória (maior variabilidade, elevação ou apneia), pressão arterial sistólica (elevação), sudorese palmar (aumento), pressão transcutânea ou saturação transcutânea em O2 (diminuição) e hormonas de estresse.

De facto, podem ser obtidas reacções ou sinais orgânicos similares como resultado de estímulos desagradáveis (de desconforto), mas não dolorosos. Por outro lado, a avaliação da dor no RN pré-termo e no RN em estado crítico levanta problemas particulares, pois as manifestações encontradas poderão corresponder às manifestações da própria doença de base, sendo a dificuldade maior nos casos de disfunção cerebral.

A avaliação comportamental baseia-se na modificação de determinadas expressões comportamentais desencadeadas pelo estímulo doloroso; as que têm sido mais estudadas são: a resposta motora à dor (alterações do tono e movimentos do corpo), mímica facial, choro e padrão de sono-vigília.

O choro, considerado o método primário de comunicação dos recém-nascidos (RN), é por isso pouco específico; nos casos dos recém-nascidos de extremo baixo peso, na maioria das vezes entubados, tal dado não poderá ser avaliado.

A actividade motora isolada parece ser um método sensível, pois os RN pré-termo e de termo evidenciam classicamente um repertório organizado de movimentos após a estimulação sensorial.

A expressão facial fornece informações válidas, específicas e sensíveis sobre a intensidade da dor e permite uma comunicação eficaz entre o RN e os respectivos prestadores de cuidados.

Em comparação com os parâmetros fisiológicos, os parâmetros comportamentais são mais específicos, embora menos objectivos, dependendo da interpretação de cada observador.

Na prática clínica são utilizadas as chamadas escalas (ou valorização de modo estruturado de determinados parâmetros fisiológicos ou comportamentais), atribuindo-se pontuação aos referidos parâmetros; assim, é possível chegar-se a pontução total ou somatório dos pontos atribuídos a cada parâmetro isoladamente.

Tendo como base tal critério, a avaliação da dor poderá ser feita de modo sistematizado pela equipa assistencial, designadamente nas seguintes circunstâncias:

  • Procedimentos cirúrgicos;
  • Manobras invasivas;
  • RN submetidos a ventilação mecânica;
  • RN com lesões traumáticas, incluindo traumatismos de nascimento;
  • RN com enterocolite necrosante;
  • Queimaduras da pele;
  • Abrasão causada por sensores transcutâneos, monitores ou dispositivos de contacto.

Entre várias escalas, cabe salientar quatro, de aplicação relativamente fácil:

  • NFCS (Neonatal Facial Coding Scale) ou escala de avaliação da mímica facial – presença ou ausência de 8 parâmetros observáveis na fronte e face (Quadro 1);
  • NIPS (Neonatal Infant Pain Scale) ou escala de avaliação da dor para recém-nascidos – englobando presença ou ausência de parâmetros comportamentais e fisiológicos de dor (Quadro 2);
  • CRIES (Crying, Requiring O2 for saturation > 90%, Increased vital signs, Expression, and Sleeplessness), escala utilizada para a avaliação da dor pós-operatória de RN (Quadro 3);
  • PIPP (Premature Infant Pain Profile), a escala mais adequada para avaliação da dor em RN pré-termo (Quadro 4).

A escala CRIES integra cinco parâmetros; a cada um é atribuída a pontuação de 0 a 2, obtendo-se a pontuação máxima de 10. A determinação faz-se cada 2 a 4 horas no período de 48 horas após intervenção cirúrgica. Se a pontuação for igual ou superior a 5, está indicada analgesia.

Como limitações há referir, por exemplo, a dificuldade de avaliação do choro e da mímica facial em doentes submetidos a ventilação mecânica.

A escala de PIPP é a mais indicada para avaliação da dor neste grupo etário por considerar as alterações próprias desta faixa de pacientes. Salienta-se que a mesma foi validada quanto à sua aplicabilidade em situações de pós-operatório.

QUADRO 1 – NFCS (Neonatal Facial Coding Scale).

Se a pontuação for superior a 3 está indicada analgesia
Parâmetro Pontuação 0
(ausência)
Pontuação 1
(presença)
Fronte saliente  
Pálpebras contraídas  
Sulco nasolabial mais acentuado  
Lábios entreabertos  
Boca esticada/protusão labial  
Lábios franzidos  
Língua tensa  
Tremor do mento  

QUADRO 2 – NIPS (Neonatal Infant Pain Scale).

Se a pontuação for superior a 3 está indicada analgesia
ParâmetroPontuação 0Pontuação 1Pontuação 2
Estado de alertaA dormir e/ou calmoDesconfortável e/ou calmo
Membros superioresRelaxadosFlectidos/estendidos
Membros inferioresRelaxadosFlectidos/estendidos
RespiraçãoRegularIrregular
ChoroAusenteQueixosoVigoroso
Expressão facialRelaxadaContraída

QUADRO 3 – CRIES (Escala de avaliação da dor no pós-operatório).

Parâmetro                                    Pontuação (0), (1), (2)
Choro → Ausente (0), Forte (1), Inconsolável (2)
FiO2 para SpO2 > 90% → 21% (0), 21-30% (1), > 30% (2)
FC e PA → Não > FC e PA (0), Até > 20% FC ou PA (1), >20% FC ou PA
Mímica facial → Relaxada (0), Careta esporádica (1), Contraída (2)
Sono/vigília → Normal (0), Intervalos curtos (1), Ausente (2)
PA=pressão arterial; FC=frequência cardíaca
Se pontuação 5 está indicada analgesia

QUADRO 4 – Escala do perfil de dor, do recém-nascido prematuro (PIPP).

Pontuação igual ou inferior a 6 →  indica ausência de dor; entre 6 e 11 → indica dor leve;  se superior ou igual a 12 → dor moderada a intensa.

PIPPIndicadores0123
 IG (semanas)36 ≥ semanas  e 6 dias32 a 35 semanas e 6 dias28 a 31 semanas e 6 dias< 28 semanas
Observar RN por um período 15mEstado de alerta Activo
Acordado
Olhos abertos
Movimentos faciais presentes
Quieto
Acordado
Olhos abertos
Sem mímica
Activo
Dormindo
Olhos fechados
Movimentos faciais presentes
Quieto
Dormindo
Olhos fechados
Sem mímica facial
Registar FC e Sat. em O2 (SpO2)
(% ou grau de diminuição)
FC máxima
Saturação mínima
↑0 a 4 bpm
↓ 0 a 2,9%
↑ 5 a 14 bpm
↓ 2,5 a 4,9%
↑15 a 24
↓5 a 7,4%
↑≥ 25 bpm
↓≥ 7,5 %
Observar o RN por 30 segundosTesta  franzida
Olhos “espremidos”
Sulco naso labial
Ausente
(0-9% do tempo de observação)
Ausente
Ausente
Mínima
(10 a 39% do tempo de observação)
Mínimo
Mínimo
Moderado
(40 a- 69% do tempo de observação)
Moderado
Moderado
Máximo
(+ de 70% do tempo de observação)
Máximo
Máximo

Actualmente é possível a utilização de tecnologia (algesímetro) que permite, de modo objectivo, medir quantitativamente as alterações fisiopatológicas resultantes do estímulo doloroso (resposta nociceptiva atrás referida) com base nas propriedades de condutância da pele. Em Portugal este tópico foi investigado por L. Pereira-da-Silva na UCIN do Hospital Dona Estefânia.

Prevenção

A prevenção da dor no RN passa pela aplicação dum conjunto de medidas que promovem o conforto e reduzem o estresse, tais como: diminuir o ruído (alarmes, diálogos, etc.), assim como a incidência da luz intensa, (protecção das incubadoras com cobertor, utilização de luz com focos de intensidade variável, etc.), manutenção de ciclos de sono dia/noite preservando períodos livres para o contacto com os pais. Nesta perspectiva, o balanceio e o uso de colchões de água poderão contribuir para regular o estado de alerta e diminuir o estresse.

Outras medidas incluem manipulação mínima, boa gestão dos cuidados concentrando determinados procedimentos para a mesma hora no sentido de evitar estimulação excessivamente frequente do RN (colheitas de sangue, aspiração traqueal, posição confortável em flexão sempre que possível utilização dos chamados “ninhos ou lençóis /fraldas enrolados em torno do corpo, etc.) e reduzir ao mínimo indispensável a utilização de fitas adesivas sobre a pele.

Tratamento

Para o alívio ou inibição da dor (analgesia), podem ser utilizadas medidas não farmacológicas e medidas farmacológicas.

A dor também pode ser aliviada ou inibida através da diminuição ou extinção da sensibilidade dolorosa em determinada região do organismo; é o conceito de anestesia local, que se pode considerar uma forma de analgesia. A este propósito, é importante realçar que o conceito de que a “infiltração com fins anestésicos é tão dolorosa quanto a própria agulha utilizada como procedimento com fins terapêuticos” não parece ser verdadeira de acordo com os resultados de estudos científicos.

Os anestésicos tópicos actuam por bloqueio dos canais de sódio nas terminações nervosas nociceptivas responsáveis pela condução do estímulo doloroso à medula-espinhal.

Medidas analgésicas não farmacológicas

  • Contacto pele com pele
    Esta medida, preconizada em RN aparentemente saudáveis necessitando de procedimento que provoca dor (como por ex. punção capilar, punção venosa, injecção IM, etc.) pode ser concretizada pelo contacto físico mãe-filho durante a realização daquele.
  • Amamentação
    Colocando o lactente ao peito, verifica-se alívio da dor enquanto se realiza o procedimento. Estudos interessantes demonstraram, com efeito, que a amamentação bloqueia impulsos aferentes ao nível da medula-espinhal e, ao mesmo tempo, estimula a libertação de endorfinas.
  • Sucção não nutricional
    Em função do contexto clínico poderá utilizar-se esta medida através de colocação de chupeta na boca; demonstrou-se, com efeito, que durante os movimentos rítmicos de sucção se atenua a dor, a qual retorna quando há interrupção da sucção.
  • Solução de sacarose
    As soluções ligeiramente doces têm efeito analgésico demonstrado em diversos estudos; na prática utiliza-se solução de sacarose a 24% (24 gramas de sacarose/100 mL de água) na dose de 0,05 a 1,5 mL colocada na porção anterior da língua cerca de 2 minutos antes do procedimento a realizar (punções, aplicação de linhas IV, etc.).

Medidas analgésicas farmacológicas (gerais)

No âmbito das medidas farmacológicas podem ser utilizados fundamentalmente dois tipos de fármacos: analgésicos não opióides e analgésicos opióides. São referidos os mais frequentemente utilizados em Portugal.

Analgésicos não opióides

*Paracetamol

No período neonatal, dentro deste grupo de fármacos, emprega-se quase invariavelmente o paracetamol, o analgésico não opióide mais investigado e mais seguro no período neonatal.

As doses a utilizar são:

  • No RN de termo (10-15 mg/kg/dose cada 6 ou 8 horas);
  • No RN pré-termo (10 mg/kg/dose cada 8 ou 12 horas).

O início de acção é lento, cerca de 1 hora, pouco efectivo para processos muito dolorosos. Deve ser administrado por via oral, sendo que a absorção rectal é irregular (dose rectal: ~ 15-25 mg/kg cada 8 ou 12 horas). Poderá utilizar-se a via parentérica IV, sendo útil como coadjuvante na analgesia pós-operatória, por não interferir na agregação plaquetar. O paracetamol está contraindicado nos casos de crianças com défice enzimático eritrocitário de G-6PD (desidrogenase da glucose -6 fosfato); apesar da sua hepatotoxicidade, ela é baixa nesta faixa etária.

Analgésicos opióides

Nos RN submetidos a terapia intensiva são utilizados com maior frequência estes fármacos, os quais constituem a mais importante arma de analgesia. O fundamento da sua acção baseia-se no facto de existirem receptores opióides dispersos no SNC; tais receptores, uma vez activados, inibem a transmissão do estímulo doloroso aos centros superiores.

*Morfina

Potente analgésico e um eficaz sedativo, a morfina pode ser utilizada através das vias IV, SC ou IM. Em bólus a dose a aplicar é: 0,05-0,15 mg/kg/dose IV em 5 minutos; ou em alternativa, a mesma dose por via IM ou SC. Pode ser repetida após 4 horas.

Em perfusão contínua IV:

      • RN de termo à 5-10 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 10-20 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN pré-termo à 2-5 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 5-10 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN acordado e sem ventilação mecânica, poderá utilizar-se a dose de infusão contínua de 3 a 8 mcg/kg/hora.

Como efeitos colaterais (frequentes em todos os opióides) citam-se: depressão respiratória, íleo paralítico, náuseas, vómitos, retenção vesical, hipersudorese, etc..

Tendo em conta a libertação de histamina que provoca, pode surgir broncospasmo, facto a ter em consideração nos doentes com DBP.

Pela supressão do tono adrenérgico que origina, poderá surgir hipotensão arterial. Para combater a depressão respiratória emprega-se o antagonista naloxona, que é um agente antagonista não selectivo de opióides, extremamente potente. Como possui uma semivida curta, a maioria dos pacientes poderá necessitar de doses repetidas.

Nos casos de tratamento com morfina poderá verificar-se fenómeno de tolerância e, consequentemente, ulterior síndroma de abstinência aguda (convulsões, hipertensão, alterações do foro digestivo, entre outras manifestações). Tal poderá evitar-se, em certa medida, procedendo à redução gradual da dose (diariamente, cerca de 25-50% da dose previamente instituída).

Caso se comprove tal síndroma, está indicado o emprego de naloxona como antagonista efectivo da morfina (embora contraindicada nos lactentes de mãe toxicodependente e nos submetidos a tratamento com morfina durante mais de 6 dias), salientando-se que o período em que poderá ser utilizado em segurança para reversão da síndroma de abstinência é curto (apenas dentro do período < 6 dias de tratamento prévio com morfina).

*Fentanil

Em bólus a dose a aplicar é 1-3 mcg/kg/dose IV, cada 2 a 4 horas.

Em perfusão contínua IV (de preferência):

      • RN de termo à 0,5-1 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 1-2 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN pré-termo à 0,5 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 1 mcg/kg/hora (se dor intensa).

Também com o fentanil, poderá surgir fenómeno de tolerância, sobretudo quando se utiliza infusão contínua (obrigando eventualmente à necessidade de doses crescentes para obter efeito.

Como efeito colateral poderá observar-se bradicárdia. Se o tratamento for superior a 3 dias, deverá providenciar-se redução gradual da dose para evitar síndroma de abstinência.

Como antagonista emprega-se também a naloxona: dose de 0,01 mg/kg para reversão da depressão respiratória. A naloxona está contraindicada no RN de mãe toxicodependente. Doses elevadas de morfina > 5 mcg/kg, injectadas rapidamente, poderão levar a rigidez muscular sobretudo a nível torácico, com compromisso ventilatório.

*Meperidina

Actualmente está praticamente proscrita. Apresenta um metabólito tóxico a normeperidina, e pode diminuir o limiar convulsivo principalmente em RN com insuficiência renal.

*Tramadol

Trata-se dum opióide sobre o qual ainda existem aspectos não esclarecidos quanto a farmacocinética, farmacodinâmica e segurança. Cabe apenas referir que, de acordo com estudos realizados, este fármaco evidenciou excelentes propriedades analgésicas com efeitos acessórios irrelevantes – em comparação com a morfina – no que se refere a obstipação e depressão respiratória.

Em perfusão IV tem sido utilizado para a dor moderada, na dose de 0,10-0,25 mg/kg/hora, sem relato de efeitos adversos importantes.

Medidas analgésicas farmacológicas (locais)

Considerando os vários anestésicos locais disponíveis no mercado, a mistura eutética de prilocaína (25%) e lidocaína (25%) sob penso adesivo, com a marca registada EMLA® (sigla de eutectic mixture local anesthetics) produz analgesia em pele intacta durante cerca de 60-90 minutos após a aplicação; pode ser usada em RN de termo e pré-termo com idade gestacional superior a 32 semanas e idade pós-natal superior a 7 dias.

Como resultado da sua aplicação poderão surgir eritema, vesículas e petéquias. Estudos recentes demonstraram que a aplicação de EMLA® é um método seguro desde que a área de aplicação não ultrapasse 100 cm2 e sejam evitadas aplicações repetidas (risco de metemoglobinémia, mais marcado se se associar o paracetamol).

Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se lidocaína a 0,5%, sem adrenalina, na dose de 5 mg/kg, por via SC. O início do efeito deste último fármaco é quase imediato e a sua duração é de 30 a 60 minutos após a infiltração.

Sedativos

Os sedativos são agentes farmacológicos (não analgésicos), utilizados como complemento dos analgésicos; agem diminuindo a actividade, ansiedade e agitação do paciente, podendo levar à amnésia de eventos dolorosos ou não dolorosos.

Tais fármacos têm indicações muito restritas: realização de procedimentos diagnósticos que implicam certo grau de imobilidade do doente (por ex.TAC, RM, ECG, EEG, etc.) em situações acompanhadas de dor, tratadas com analgésicos.

Por outras palavras, a utilização continuada de sedativos deve ser desencorajada, pois comporta certos riscos como por ex.: prolongamento do período de ventilação mecânica, HIPV e LPV, entre outros.

Além disso, cabe ao clínico, antes da sua prescrição, excluir outras causas de agitação ou irritabilidade, como hipoxémia, ou a própria dor.

Os sedativos mais frequentemente utilizados com os objectivos descritos são:

Midazolam

Em bólus a dose a aplicar é 0,05-0,15 mg/kg/ dose IV, cada 2 a 4 horas.

Em perfusão contínua IV (de preferência): 10-60 mcg/kg/hora.

Como nota importante há que realçar a necessidade de reajustamento (diminuição) de dose se se utilizar em associação com morfina ou fentanil, para evitar depressão respiratória e hipotensão. É um fármaco com boa actividade sedativa hipnótica, sendo 2 a 4 vezes mais potente que o diazepam.

Hidrato de cloral

Utiliza-se em procedimentos terapêuticos ou de diagnóstico de curta duração a dose de 25-75 mg/kg, podendo ser repetida cada 6 ou 8 horas (vias oral ou rectal). Em RN pode levar a hiperbilirrubinémia (directa e indirecta) e acidose metabólica. Em RN pré-termo o efeito residual da droga pode manter-se até 64 horas após a administração.

BIBLIOGRAFIA

American Academy of Pediatrics Committee on Fetus and Newborn and Section on Surgery and Canadian Paediatric Society Fetus and Newborn Committee Prevention and management of pain in the neonate: an update. Pediatrics 2006; 118: 2231-2241

Arnand KJS, Aranda JV, Berde CB, et al. Summary proceedings from the neonatal pain-control group. Pediatrics 2006; 117: S 9-S 22

Arnand KJS & International evidence –based group for neonatal pain. Consensus statement for the prevention and management of pain in the newborn. Arch Pediatr Adolesc Med 2001; 155: 173-180

Craig KD, Korol C, Pillai R. Challenges of judging pain in vulnerable infants. Clin Perinatol 2002; 29: 445-457

Deindl P, Unterasinger L, Kappler G, et al. Successful implementation of a neonatal pain and sedation protocol at 2 NICUs. Pediatrics 2013; 132: 211-218

Foster JP, Taylor C, Bredemeyer SL. Topical anaesthesia for needle-related pain in newborn infants. Cochrane Database Syst Rev 2013; (1): CD010331

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gitto E, Pellegrino S, Manfrida M, et al. Stress response and procedural pain in the preterm newborn: the role of pharmacological and nonpharmacological treatments. Eur J Pediatr 2012; 171: 927–933

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hall RW, Anand KJ. Pain management in newborns. Clin Perinatol 2014; 41: 895-924

Harrison D, Beggs S, Stevens B. Sucrose for procedural pain management in infants. Pediatrics 2012; 130: 918-925

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadephia, PA: Lippincott Williamas & Wilkins, 2015

Maxwell LG, Fraga MV, Malavolta CP. Assessment of pain in the newborn: an update. Clin Perinatol 2020; 47: 693-708

Nemergut ME, Yaster M, Colby CE. Sedation and analgesia to facilitate mechanical ventilation. Clin Perinatol 2013; 40: 539-558

Ohlsson A, Shah PS. Paracetamol (acetaminophen) for prevention or treatment of pain in newborns. Cochrane Database Syst Rev. 2015;6(6):CD011219

Pereira-da-Silva L, Monteiro I, Gomes S, Rodrigues P, Virella D, Serelha M, Storm H. Effectiveness of skin conductance in assessing the nocicaptive response from heel prick in neonates compared with the neonatal infant pain scale. J Neonatal-Perinatal Medicine 2009; 2: 205 (abstract)

Stevens BJ, Gibbins S, Franck LS. Treatment of pain in the neonatal intensive care unit. Pediatr Clin North Am 2000; 47: 633-650

Taddio A, Ohlsson A, Einarson TR, Stevens B, Koren G. A systematic review of lidocaine-prilocaine cream (EMLA) in the treatment of acute pain in neonates. Pediatrics 1998; 101: 1-5

Taddio A. Opioid analgesia for infants in the intensive care unit. Clin Perinatol 2002; 29: 493-509

Thakkar P, Arora K, Goyal K, et al. To evaluate and compare the efficacy of combined sucrose and non-nutritive sucking for analgesia in newborns undergoing minor painful procedure: a randomized controlled trial. J Perinatol 2016; 36: 67-70

Vinall J, Grunau RE. Impact of repeated procedural pain-related stress in infants born very preterm. Pediatr Res 2014; 75: 584-587

RECÉM-NASCIDO DE MÃE TOXICODEPENDENTE

Definições e importância do problema

A utilização abusiva de drogas e determinadas substâncias, por vezes em associação (marijuana, morfina, cocaína, heroína, álcool, metadona, etc.), atingiu nas últimas décadas proporção de verdadeira epidemia com repercussão na grávida e no feto – futuro RN – pela exposição crónica aos referidos compostos.

Para melhor compreensão do problema importará definir fundamentalmente três conceitos interligados:

  1. Toxicodependência ou toxicomania: estado de intoxicação periódica ou crónica provocado pelo consumo repetido de uma substância (natural ou sintética), o qual é acompanhado por um desejo invencível ou pela necessidade de continuar a consumir a substância e de a obter por todos os meios, com tendência para aumentar as doses e para dependência psíquica, e frequentemente também física, em relação aos efeitos da mesma substância;
  2. Síndroma de abstinência (ou de privação): conjunto de sinais e sintomas específicos resultantes da suspensão ou redução do consumo da substância que criou dependência (sensação de a pessoa “não poder passar sem a mesma”), sendo que os referidos sinais e sintomas desaparecem com a administração da própria substância ou de um seu sucedâneo, como a metadona no caso da morfina; cabe referir, a propósito, que no contexto de utilização abusiva de substâncias, as acções verificadas podem ser o oposto das acções características das mesmas;
  3. Síndroma de abstinência neonatal (SAN): como se poderá deduzir, no feto (futuro RN), por efeito da exposição crónica aos referidos compostos, poderá surgir também dependência, acarretando ulterior quadro de manifestações clínicas (síndroma de abstinência neonatal) de duração variável, por privação brusca do efeito da substância a partir do momento da laqueação do cordão umbilical; descreve-se ainda uma SAN iatrogénica em situações que requereram sedação para realização de procedimentos invasivos ou intervenções cirúrgicas; saliente-se que o SAN não se define pela necessidade de terapêutica farmacológica.

A administração abusiva de substâncias e drogas (legais e ilegais) constitui um verdadeiro problema de saúde pública. Os efeitos adversos da toxicodependência na gravidez são variados e relacionam-se com cuidados pré-natais inadequados, risco aumentado de prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, morte in utero, risco de síndroma de abstinência e toxicidade, risco de doenças infecciosas de transmissão vertical, risco social (emprego precário, situação económica débil, capacidade parental reduzida com negligência dos filhos) e risco de perturbação do neurodesenvolvimento da criança.

Dados estatísticos dos EUA (National Survey on Drug Use and Health, 2011) estimam que entre cerca de 5% das grávidas, tomam medicamentos não recomendados no referido período, incluindo as chamadas substâncias ilícitas. A análise retrospectiva de uma amostra representativa dos EUA revelou que entre 2000 e 2009 a taxa de RN com SAN aumentou de 1,2 para 3,39 por 1.000 nascimentos hospitalares por ano. Em Portugal, em diversos estudos epidemiológicos realizados em diferentes décadas foram apuradas “relações de casos por mil nados-vivos” entre 2,7/1.000 e 10/1.000 (entre 1990 e 2006), testemunhando o aumento da prevalência e a importância da toxicodependência na mulher portuguesa em idade fértil.

Na grávida toxicodependente (TD), sobretudo nos casos de consumo de heroína, poderão surgir episódios de síndroma de abstinência cujas consequências poderão ser fundamentalmente o aborto, a morte fetal, a restrição de crescimento fetal e o parto pré-termo.

A terapêutica de substituição na grávida, realizada com metadona ou buprenorfina, parece reduzir as complicações na gravidez, não evitando, contudo, a SAN. Uma referência especial à marijuana cuja utilização nos EUA em 2006 atingiu a cifra superior a 11 milhões de utilizadores entre os 18 e 25 anos e com uma frequência nas grávidas, variando conforme as regiões, entre 5-35%.

Um dos factores mais pejorativos no grupo de grávidas toxicodependentes é a concomitância de determinadas infecções classicamente ligadas a comportamentos de risco, tais como, por VHB, VHC, HPV, VIH, etc., contribuindo para comorbilidade com repercussões no feto e RN.

Etiopatogénese

Os efeitos de drogas e substâncias sobre o feto/RN dependem de diversos factores: idade gestacional em que a substância actua; duração da exposição fetal; tipo de droga consumida, via de administração e concentração sanguínea atingida; estilo de vida da grávida.

Os mecanismos pelos quais as substâncias actuam são diversos: acção teratogénica; acção carcinogénica; interferência com a diferenciação de tecidos e órgãos; depressão ou sedação do feto/RN; dependência e ulterior síndroma de abstinência (privação brusca do efeito após laqueação do cordão umbilical).

Importa distinguir duas situações resultantes da exposição a determinadas substâncias in útero:

  • Toxicidade aguda, resultante da exposição directa à droga e que acarreta alterações neurocomportamentais semelhantes a SAN, mas que melhoram à medida que a substância é eliminada e;
  • Toxicidade não aguda, com agravamento à medida que ocorre a metabolização e a excreção da droga.

As substâncias que mais frequentemente são consumidas pela grávida são sistematizadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Substâncias de consumo abusivo pela grávida

Analgésicos narcóticos (opiáceos)

    • Heroína
    • Meperidina
    • Morfina
    • Propoxifeno
    • Metadona
    • Pentazocina
    • Codeína

Simpaticomiméticos (estimulação do SNC)

    • Anfetamina
    • Fenmetrazina
    • Metanfetamina
    • Cocaína
    • Dextroanfetamina

Hipnóticos e sedativos (depressão do SNC)

    • Barbitúricos (efeitos de curta ou longa duração)
    • Glutetimida
    • Fenotiazinas
    • Hidrato de cloral
    • Álcool
    • Sedativos e tranquilizantes menores (diazepam, clorodiazepóxido, etc.)
    • Alcalóides da beladona (escopolamina, atropina)
    • Hidrocarbonetos voláteis (gasolina, tolueno, etc.)

Alucinógenos

    • Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)
    • Mescalina
    • Marijuana (Cannabis sativa L) – por vezes considerada em grupo à parte
    • Fenilciclidina-hidrocloreto (“pó de anjos”)


Os opiáceos ligam-se aos receptores de opiáceos do SNC. Algumas das manifestações clínicas de privação resultam de hipersensibilidade alfa-2 adrenérgica, particularmente ao nível do locus ceruleus. No caso da cocaína, tal tipo de manifestações pode explicar-se do seguinte modo: a cocaína previne a recaptação de neurotransmissores (epinefrina, norepinefrina, dopamina e serotonina) nas terminações nervosas, resultando em hipersensibilidade ou resposta exagerada aos neurotransmissores ao nível dos órgãos efectores.

Os referidos opiáceos constituem a causa mais frequente de SAN. Em cerca de 90% dos RN nestas circunstâncias surgem manifestações clínicas de grau variável. Destes, em mais de metade (50-75%), a sintomatologia necessita de tratamento. A incidência e a gravidade de SAN é superior nos RN expostos a metadona comparativamente aqueles expostos à heroína e à buprenorfina.

Seguidamente são descritos de modo sucinto os efeitos de algumas das substâncias atrás discriminadas, reservando para a alínea “Manifestações clínicas” o quadro relacionado com a síndroma de abstinência neonatal.

Heroína

A heroína pode originar restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento; um dos efeitos biológicos é a elevação do magnésio sérico fetal e neonatal. Um fenómeno não completamente explicado é o aumento do número de casos de síndroma de morte súbita do lactente. Curiosamente, pela indução da glucuronil-transferase e das enzimas responsáveis pela produção de surfactante pulmonar, verifica-se respetivamente menor incidência de hiperbilirrubinémia e de DMH.

Morfina

O abuso de morfina na gravidez não está associado a anomalias congénitas.

Metadona

A metadona é um analgésico opiáceo sintético com uma semi-vida longa (16 a 25 horas no período neonatal). A sua indicação mais frequente (no contexto do tema que se apresenta) é a de substituir outras substâncias utilizadas no regime de abuso pela mãe durante tempo prolongado, num processo lento de retirada para evitar síndroma de abstinência materna. Nos fetos submetidos de modo prolongado à acção da metadona não se verifica incidência aumentada de anomalias congénitas, sendo que o respectivo peso de nascimento médio é superior ao verificado, por exemplo, nos fetos submetidos à acção da heroína. No entanto, o perímetro cefálico médio (não necessariamente acompanhado de restrição de crescimento fetal) é inferior ao verificado em fetos não expostos à droga. O mecanismo destas alterações é desconhecido. De salientar que a metadona administrada à grávida com fins terapêuticos de substituição poderá, por sua vez, originar síndroma de abstinência neonatal se o parto ocorrer ainda durante o processo de “desmame” da mesma. Alguns estudos têm descrito que a metadona afecta menos os prematuros que os recém-nascidos de termo, necessitando os primeiros de doses menores de opiáceos, menor duração do tratamento e do internamento (relacionado com o SAN). Admite-se que esta situação seja explicada pela imaturidade dos sistemas de metabolização, menor desenvolvimento das conexões nervosas, menor duração da exposição ao opiáceo e menor transmissão durante o 3º trimestre.

Anfetaminas

Admite-se que esta substância não tenha efeitos teratogénicos. Pode verificar-se restrição do crescimento fetal, parto prematuro, descolamento da placenta e sofrimento fetal. A existência de SAN secundário à exposição a anfetaminas é controversa. Um estudo retrospectivo refere que apenas 4% dos RN com sintomas atribuíveis a SAN por anfetaminas necessitaram de terapêutica. Não existem dados prospectivos que suportem a existência de SAN a anfetaminas.

Cocaína

Como resultado do consumo crónico deste composto (inalado, fumado, aspirado, por via IV, etc.), assim como de um seu derivado designado por crack, verifica-se maior risco de aborto, hipoperfusão placentar com consequente hipoxia crónica, descolamento da placenta, ruptura prematura das membranas e parto prematuro, entre outras repercussões. A mortalidade neonatal é mais elevada e relacionável fundamentalmente com restrição de crescimento fetal, difícil adaptação à vida extrauterina, anomalias congénitas e morte súbita. Alguns autores consideram mesmo, pelo seu efeito teratogénico, a individualização dum quadro de embriofetopatia cocaínica. Tendo sido demonstrado que a actividade da colinesterase, uma das enzimas de degradação da cocaína, está diminuída na grávida e feto, existindo nestes, maior susceptibilidade à referida droga.

Fenobarbital

O fenobarbital é utilizado frequentemente como droga de abuso em todas as classes socioeconómicas. Na mãe poderá verificar-se a ocorrência de síndromas de abstinência recorrentes (traduzidas por convulsões), com acção deletéria sobre a própria mãe e feto. Este fármaco atravessa a placenta distribuindo-se rapidamente por todos os órgãos do feto, com maior concentração no baço e encéfalo. Os efeitos da exposição in utero traduzem-se essencialmente por fenómenos hemorrágicos e anomalias congénitas menores. Os RN de mães dependentes de fenobarbital são geralmente de termo, sem compromisso do crescimento intrauterino. A incidência de síndroma de abstinência por fenobarbital não é conhecida.

Álcool

O álcool é teratogénico, se consumido nas primeiras 10-12 semanas após a concepção, sendo os efeitos mais acentuados com a absorção de cerca de 30-50 gramas de álcool absoluto por dia. Um quadro dismorfológico (embriofetopatia alcoólica) integrando defeitos congénitos, por vezes associados e de expressividade variável, pode ser identificado no RN: defeitos cardíacos e nefro-urológicos, fissura palpebral pequena, ptose palpebral, estrabismo, prega do epicanto, microftalmia, orelhas em abano, nariz pequeno, filtro longo, lábio superior fino, retrognatismo, lábio leporino, fenda palatina, microcefalia, etc..

No período neonatal precoce são notórios sinais de restrição de crescimento intrauterino, hipotonia, irritabilidade, sendo o prognóstico reservado, designadamente em termos de neurodesenvolvimento.

Alguns estudos chamaram a atenção para o papel da associação deletéria álcool-nicotina/cotinina do fumo do tabaco. A nicotina/cotinina na gestação está associada a aborto espontâneo, prematuridade, restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento. Um maço de cigarros fumado por dia conduz a decréscimo de aproximadamente 300 gramas do peso de nascimento num RN de termo. Os efeitos tóxicos podem ser explicados, quer pelo monóxido de carbono (CO), quer pelo vasospasmo induzido pela nicotina.

Diazepam

A exposição a este fármaco está associada a restrição de crescimento fetal, defeitos cardíacos e hemangiomas. No RN duas ordens de problemas neonatais no período pós-parto imediato poderão surgir:

  1. Síndroma relacionada com efeito do próprio fármaco, manifestada por hipotonia, letargia e dificuldade de sucção;
  2. Síndroma de abstinência: tremores, irritabilidade, hipertonia, diarreia, sucção vigorosa, etc..

LSD (dietilamida do ácido lisérgico)

Relativamente ao LSD importa referir a elevada incidência de anomalias congénitas associadas, sobretudo do globo ocular (catarata, microftalmia, displasia retiniana, etc.). Muito utilizada por adolescentes na década de 60, existe hoje nos EUA tendência para reincidência do seu abuso.

Marijuana e seus derivados (haxixe)

A marijuana é um extracto da planta Cannabis sativa contendo mais de 420 compostos, muitos dos quais biologicamente activos. Pela sua elevada lipossolubilidade, atravessa facilmente a placenta exercendo efeito directo e prolongado nas células fetais, tendo uma eliminação demorada (cerca de 4 semanas) e uma semi-vida de cerca de 1 semana.

Admite-se também que, pela elevação do nível de CO (muito mais elevado do que acontece com nicotina/cotinina), origina hipóxia fetal crónica. Partilha com a cocaína o efeito de elevação da pressão arterial na grávida e redução do leito vascular.

Outros efeitos descritos são: parto prematuro, maior incidência de eliminação de mecónio in utero, baixo peso de nascimento, etc.. Como efeitos a médio e longo prazo no RN, lactente e criança citam-se: alteração do padrão do sono, atraso da maturação do sistema visual, défice de atenção, etc..

Outras substâncias

Uma referência a outras substâncias como:

  • Pentazocina, analgésico não narcótico que pode originar restrição de crescimento fetal e síndroma de abstinência;
  • Substâncias inaladas (tolueno ou 1,1,1-tricloro-etano, gás butano, óxido nitroso, etc.) que, durante a gravidez poderão levar a restrição de crescimento fetal, prematuridade e síndroma malformativa semelhante à embriofetopatia alcoólica;
  • Ecstasy, com acções similares à anfetamina e mescalina, tem efeitos estimulantes e psicadélicos durando cerca de 3-6 horas; os estudos disponíveis não têm referido incidência aumentada de aborto ou de anomalias congénitas.

Manifestações clínicas de abstinência (SAN) e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas relacionadas com SAN, assim como a data do seu aparecimento, são variáveis e não dependem exclusivamente do tipo de substância consumida pela mãe. Admite-se que estejam relacionados com as seguintes condições:

  • Exposição materna: tipo de substância, frequência, dose, medicação concomitante (particularmente fármacos psicotrópicos), outras drogas (incluindo álcool e tabaco) e idade gestacional em que ocorre o consumo;
  • Factores maternos: nutrição, infecções, estresse, comorbilidades (incluindo psiquiátricas);
  • Metabolismo opióide placentário;
  • Factores genéticos (maternos e do feto);
  • Factores relacionados com o recém-nascido: prematuridade, infecções, taxa de metabolismo e excreção da droga;
  • Factores ambientais: capacidade dos cuidadores em dar resposta às necessidades do RN e ambiente físico.

Globalmente, tais manifestações traduzem repercussões da privação ao nível dos sistemas nervoso central e autónomo, e digestivo, as quais podem ser assim sintetizadas:

  1. Irritabilidade, hiperexcitabilidade, tremores, hipertonia, hiperreflexia osteotendinosa, choro de tonalidade aguda, reflexo de Moro vivo, abalos mioclónicos, convulsões (2-11%), diminuição do período de sono, etc.;
  2. Hipersudorese, instabilidade térmica, febre, obstrução nasal, crises esternutatórias, taquipneia, etc.;
  3. Dificuldades alimentares, incoordenação da sucção-deglutição, vómitos, diarreia, perda de peso excessiva, desidratação, recusa alimentar, etc..
Nesta perspectiva, pode concluir-se que, o diagnóstico provisório de SAN é essencialmente clínico, sendo fundamental a elaboração de anamnese perinatal e exame objectivo rigorosos, no pressuposto de elevado índice de suspeita clínica.

 

Para o estudo evolutivo durante o internamento hospitalar existem diversos instrumentos e escalas disponíveis (por exemplo a escala de Lipsitz, a escala de Finnegan, etc.). O objetivo é permitir avaliar a gravidade do SAN, sendo utilizadas para iniciar, ajustar e desmamar a terapêutica farmacológica. Apesar de não existirem provas científicas que suportem a utilização de uma escala em detrimento de outra, em Portugal, tal como na maioria dos países, utiliza-se mais frequentemente a Escala de Finnegan, a aplicar de 4/4 horas. Esta escala integra um conjunto de parâmetros clínicos aos quais se atribui determinada pontuação, sendo que se pode considerar a situação em vias de melhoria à medida que a pontuação final diminui. (Quadro 2)

Seguidamente são referidas algumas particularidades das manifestações em função da substância em causa.

QUADRO 2 – Escala de Finnegan.

Sinais de SANPontuação(Registos de 4-4 horas)
Choro gritado excessivo2 
Choro gritado excessivo contínuo3 
Sono pós-prandial
1 hora3 
2 horas2 
3 horas1 
Reflexo de Moro hiperactivo2 
Reflexo de Moro marcado3 
Tremor após estimulação, ligeiro1 
Tremor após estimulação, acentuado2 
Hipertonia ligeira3 
Hipertonia  marcada6 
Convulsões8 
Sudação1 
Temperatura rectal 37,8 ºC-38,3 ºC2 
Temperatura rectal > 38,3ºC2 
Bocejos > 3-4 vezes por cada 4 horas 1 
Escoriações
nariz1 
joelhos1 
dedos dos pés1 
Obstrução nasal1 
Espirros1 
Adejo nasal1 
FR > 601 
Retracção costal2 
Sucção “frenética”1 
Recusa alimentar1 
Regurgitação1 
Vómitos em jacto1 
Fezes moles2 
Fezes líquidas3 
Pontuação final  

Opiáceos, barbitúricos e benzodiazepinas

A SAN ocorre em cerca de 60-90% dos RN expostos, na maioria dos casos cerca dos 2-3 dias de vida; no entanto, o quadro clínico pode verificar-se desde o pós-parto imediato até 1-2 semanas. No caso da heroína a sintomatologia inicia-se habitualmente nas primeiras 24 a 48 horas de vida. A metadona condiciona SAN nas primeiras 48 a 72 horas de vida (semivida mais prolongada com declínio lento dos níveis), podendo ainda surgir somente entre as 2-4 semanas de vida (SAN tardia). Nos RN expostos a buprenorfina o início dos sintomas ocorre cerca das 40 horas de vida. Sinais como agitação, tremores, sono entrecortado e intolerância alimentar poderão prolongar-se durante cerca de 3-6 meses. Nos dias e semanas seguintes poderão surgir alterações neuro-comportamentais. De salientar que as convulsões surgem em cerca de 8% de RN de mães submetidas a tratamento com metadona, e em cerca de 2% de RN de mães abusando de heroína. No caso dos barbitúricos o SAN inicia-se entre o 1º e o 14º dia (pico aos 4-7 dias); outros sedativos hipnóticos têm SAN mais tardio (diazepam até aos 12 dias e cloradiazepóxido até aos 21 dias).

Cocaína

No caso da cocaína cabe particularizar os seguintes sinais (mais de intoxicação do que de SAN): irritabilidade, tremores, choro gritado, hiperreflexia, recusa alimentar, obstrução nasal, taquipneia e alteração dos padrões do sono. A criança pode evidenciar alterações neuro-comportamentais que podem ultrapassar o período neonatal.

Marijuana

Os RN de mães consumidoras de marijuana evidenciam geralmente alterações neuro-comportamentais a curto, médio e longo prazo.

O quadro clínico compatível com SAN, pela sua inespecificidade, sobretudo quando oligossintomático, obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com determinadas situações tais como, infecções, problemas metabólicos (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia), hipertiroidismo, hemorragia do SNC, EHI e outras.

Exames complementares

De acordo com a história clínica (salientando-se que a anamnese realizada à mãe é muitas vezes não concludente), está indicada a realização de determinados exames complementares na tentativa de esclarecimento da situação.

As amostras biológicas podem ser obtidas (com consentimento esclarecido) a partir da mãe ou do RN: urina, mecónio, líquido amniótico, vernix caseosa, cabelo, unhas, etc.. No entanto, todos os testes apresentam limitações clinicamente significativas e nalguns casos apenas estão disponíveis no contexto de investigação. De salientar que a presença da droga, ou de metabólitos de certa droga, no mecónio ou cabelo, permite deduzir administração dos mesmos durante o 2º e 3º trimestres, e exposição fetal prolongada. Os testes toxicológicos na urina do RN têm baixa sensibilidade (taxa elevada de falsos negativos) permitindo apenas a detecção se a exposição à droga for recente. A pesquisa de drogas numa amostra de urina ou mecónio, nos casos em que for justificada a sua realização, deve ser efectuada o mais precocemente possível porque a metabolização e excreção da maioria das drogas é rápida. A metadona, buprenorfina e oxicodona não são detectadas nos kits habitualmente utilizados.

Aspectos técnicos específicos relacionados com a realização de tais análises ultrapassam os objetivos do livro.

Tratamento

O tratamento tem como principais objectivos estabilizar as manifestações clínicas e restaurar a atividade normal do RN, nomeadamente estabelecer um ganho ponderal consistente e manter padrões de sono e alimentação adequados. A abordagem inclui medidas gerais e farmacológicas.

Medidas gerais

Estas medidas, que deverão ser individualizadas em função do contexto clínico, são: estimulação sensorial mínima (ambiente calmo, com pouca luz), posição em flexão, de preferência, com imobilização suave e almofadada, prevenção do choro excessivo recorrendo a carícias suaves e à chupeta, etc.. A utilização de luvas no RN poderá evitar escoriações que resultam da actividade excessiva do RN.

Se houver antecedentes maternos de regime com metadona deve providenciar-se aleitamento materno. Este está contraindicado se houver antecedentes de seropositividade para VIH, abuso materno de álcool, anfetaminas, heroína, cocaína, etc..

O regime alimentar deverá ser semelhante ao indicado em condições normais, respeitando o apetite da criança, muitas vezes com refeições pequenas e frequentes. Caso a progressão ponderal seja insuficiente deverá incrementar-se o suprimento energético com fórmulas hipercalóricas (150-250 kcal/kg/dia). Pode agravar a diarreia.

O rooming-in ou alojamento comum mãe/RN está indicado nos casos em que não há necessidade de terapêutica farmacológica, promovendo desta forma as competências parentais.

Quer durante a hospitalização, quer após a alta para o domicílio, das medidas gerais fazem parte ainda o apoio por equipa multidisciplinar (incluindo apoio pela família e pelo serviço social) e estímulo da interacção mãe-filho, reconhecendo-se à partida, as dificuldades no seguimento das crianças filhas de mãe TD.

Medidas farmacológicas

A decisão de iniciar tratamento farmacológico deverá fundamentar-se num sistema objetivo de avaliação da gravidade de SAN, como a Escala de Finnegan. Nestes casos o RN deverá ser internado na Unidade de Neonatologia.

As indicações para tratamento farmacológico podem ser assim sistematizadas:

  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 8 em três avaliações consecutivas; ou
  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 12 em duas avaliações consecutivas; ou
  • Convulsões.

De salientar, no entanto, que cada caso deverá ser ponderado para decisão de iniciar farmacoterapia, nomeadamente, valorizando agravamento clínico progressivo com repercussão importante no RN (irritabilidade progressiva, dificuldade alimentar e perda de peso significativa).

A escolha do fármaco a utilizar depende sobretudo da droga consumida pela mãe. Em Portugal, de acordo com a Secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, o enquadramento das diferentes situações é o seguinte:

SAN aos opiáceos

A morfina é a droga de primeira linha. A metadona é uma alternativa, mas a sua semi-vida é muito prolongada e variável no RN tornando difícil a avaliação da sua eficácia. O fenobarbital pode ser utilizado como segunda droga nos casos em que os sintomas não estão controlados com as doses máximas de morfina ou metadona. A buprenorfina mostrou-se segura e eficaz, bem como a clonidina (em monoterapia ou em associação a opiáceos), mas ambas as drogas necessitam de mais estudos para serem recomendadas para uso regular.

SAN aos não opiáceos

O fenobarbital constitui a droga de 1ª linha.

Durante a terapêutica é fundamental a monitorização cardiorrespiratória e a vigilância dos efeitos secundários, nomeadamente depressão respiratória, hipotensão, retenção urinária e atraso no esvaziamento gástrico.

Do ponto de vista prático, inicia-se a terapêutica com uma dose baixa e que se aumenta progressivamente até ao controlo dos sintomas (Índice de Finnegan consistentemente < 8). Após 72 horas de controlo sintomático inicia-se a redução progressiva até à suspensão. A vigilância deve ser mantida por mais 72 horas após interromper a farmacoterapia.

Em Portugal os fármacos mais frequentemente utilizados são:

*Morfina

  • Dose inicial 0,04 mg/kg a cada 3-4h, aumento de 0,04 mg/kg/dose até à dose máxima de 0,2 mg/kg/dose;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 48h, com suspensão quando atingir 0,1-0,12 mg/kg/dia.

*Metadona

  • Dose inicial 0,05-0,1 mg/kg a cada 6-12h, aumento de 0,05 mg/kg/dose até obter efeito, passando então a cada 12-24 horas;
  • Desmame: 0,05 mg/kg/dia, com suspensão quando atingir uma dose inferior a 0,05 mg/kg/dia.

*Fenobarbital

  • Dose inicial 15 mg/kg oral ou ev, seguindo-se a dose de manutenção de 5 mg/kg/dia (2 administrações), com dose máxima de 8 mg/kg/dia;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 72h. Se associado a morfina, esta deve ser suspensa antes de iniciar a redução do fenobarbital. Suspender quando a dose for inferior a 2 mg/kg/dia.

*Clonidina

  • Dose inicial 0,5-1 mcg/kg a cada 3-6h, com dose máxima de 1 mcg/kg a cada 3h;
  • Desmame: 0,25 mcg/kg a cada 6h.

Critérios para alta

  • Na ausência de SAN recomenda-se vigilância em internamento durante, pelo menos, 7 dias se a mãe estiver em programa de metadona, e 5 dias se a mãe for consumidora de outras drogas;
  • Na presença de SAN protelar a alta até 72 horas sem terapêutica farmacológica e livre de sintomas;
  • RN clinicamente estável, sem dificuldades alimentares e com aumento ponderal consistente;
  • Adequação dos pais na prestação de cuidados;
  • Avaliação e orientação pela assistente social;
  • Visitas domiciliárias com marcação prévia.

Prognóstico e prevenção

Os dados que permitem estabelecer o prognóstico dependem da possibilidade de seguimento completo das crianças filhas de mãe TD, seguimento que é difícil se não existir um programa estruturado de apoio multidisciplinar domiciliário, incluindo, claro está, a vertente preventiva. Tal dificuldade decorre designadamente do ambiente desorganizado em que vive a mãe ou a família, e tanto mais quanto mais jovem for aquela (frequentes faltas às convocatórias, mudanças frequentes de residência, institucionalização das crianças por deficiente apoio familiar, etc.).

De acordo com os dados disponíveis da literatura nacional e internacional (seguimento até aos 6 anos de idade) podem ser sintetizados os seguintes desfechos:

  • Má progressão ponderal/hipocrescimento;
  • Dificuldades nas áreas de percepção e cognição;
  • Défice de concentração, atenção e memória;
  • Alterações comportamentais;
  • Alterações neurológicas (sobretudo do tono muscular e coordenação), etc.;
  • Maior probabilidade de SMSL.

Estes achados são mais prevalentes se houver antecedentes de TD à heroína e à metadona.

O problema da toxicodependência, com enorme carga social, é muito complexo e multifactorial; por isso, a sua prevenção deverá incidir sobre múltiplas frentes cuja abordagem, pela sua magnitude, ultrapassa o âmbito deste capítulo.

Considerando como tópico central a díade mãe-filho, cabe salientar o papel importante dum sistema eficaz e sistemático de visitas domiciliárias a cargo de equipa multidisciplinar (envolvendo fundamentalmente médicos de família, pediatras, equipas de enfermagem, técnicos de acção social, psiquiatras comunitários, etc.) para apoio das famílias em risco numa perspectiva proactiva, quer de prevenção primária da toxicodependência, quer de desintoxicação em idade pré-concepcional.

BIBLIOGRAFIA

Agthe AG et al. Clonidine as an adjunct therapy to opioids for neonatal abstinence syndrome: a randomized, controlled trial. Pediatrics 2009; 123: e849-856

Behnke M, Smith VC. Committee on substance abuse and Committee on fetus and newborn. Prenatal substance abuse: short and long-term effects on the exposed fetus. Pediatrics 2013; 131: e1009-1024

Bogen DL, Whalen BL. Breastmilk feeding for mothers and infants with opioid exposure: What is best? Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 95-104 

Coelho ML, Nascimento O, Nunes MT, Almeida JP, Ramos-Almeida JM. Recém-nascidos filhos de mães toxicodependentes. Acta Méd Port 1995; 8: 11-13

Correia MA, Oliveira AP, Almeida JP, Sing CK, Dória-Nóbrega J. Mães toxicodependentes. Acta Méd Port 1995; 8: 5-10

Covington CY, et al. Birth to age 7 growth of children prenatally exposed to drugs: a prospective cohort study. J Neurotoxicol Teratol 2002; 24: 489-496

Ferreira IA, Fonseca MJ, Videira-Amaral JM. O recém-nascido de mãe toxicodependente. O Médico 1990; 122: 36-40

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hudak ML, Tan RC. Committee on Drugs. Committee on Fetus and Newborn. Neonatal Drug Withdrawal. Pediatrics 2012; 129: e540-560

Jackson L, et al. A randomized controlled trial of morphine versus phenobarbitone for neonatal abstinence syndrome. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2004; 89: F300-F304

Janson, LM. Neonatal abstinence syndrome. In UpToDate. Garcia-Prats JA (ed). Waltham, MA: Wolters Kluwer, 2015

Janson, LM. Infants of mothers with substance abuse. In: UpToDate. Garcia-Prats JA (ed). Waltham, MA: Wolters Kluwer, 2015

Jansson LM, et al. The opioid exposed newborn: assessment and pharmacologic management. J Opioid Manag 2009; 5: 47-55

Jones HE, et al. Neonatal abstinence syndrome after methadone or buprenorphine exposure. N Engl J Med 2010; 363: 2320-2331

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kraft WK, et al. Revised dose schema of sublingual buprenorphine in the treatment of the neonatal opioid abstinence syndrome. Addiction 2011; 106: 574-580

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadephia, PA: Lippincott Williamas & Wilkins, 2015

MacMillan KDL. Neonatal abstinence syndrome: review of epidemiology, care models, and current understanding of outcomes Clin Perinatol 2020; 47: 817-832

Martin CE, Terplan M, Krans EE. Pain, opioids, and pregnancy: historical context and medical management. Clin Perinatol 2020; 47: 833-838

Martins C, Guedes R, João A. Recém-nascido de mãe toxicodependente. Acta Pediatr Port 2008; 39: 115-119

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Palminha JM, Lucas AMH, et al. Os Filhos dos Toxicodependentes (Monografia). Lisboa: Edição Bial, 1992

Pizarro D, et al “Higher maternal doses of methadone do not increase neonatal abstinence syndrome” J Subst Abuse Treat 2011; 40: 295-298

Polak K, Kelpin S,Terplan M. Screening for substance use in pregnancy and the newborn Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 90-94 

Rosenthal EW, Baxter JK. Neonatal abstinence syndrome. Semin Perinatol 2019; 43: 173-176

Serrano A, Mendes MJ, Negrão F. Recém-nascido de mãe toxicodependente. Consenso Clínico, Lisboa: Secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, 2013. http://www.lusoneonatologia.com/site/upload/consensos/2013-RN_de_mae_toxicodependente.pdf

Velez M, Jansson LM. The opioid dependent mother and newborn dyad: non-pharmacologic care. J Addict Med 2008; 2: 113-120

Wachman EM, Lindsay A. Farrer LA. The genetics and epigenetics of neonatal abstinence syndrome. Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 105-110 

EMBRIOFETOPATIA DIABÉTICA

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

A ocorrência de diabetes mellitus (DM) durante a gravidez, nas suas diversas formas – diabetes pré-gestacional (DPG) tipos 1 e 2 e diabetes gestacional (DG) – pode condicionar distúrbios de índole diversa no feto e no recém-nascido, em dependência directa do controlo glicémico das grávidas, e com repercussões a médio e a longo prazo.

Anteriormente, a DPG era predominantemente do tipo 1, insulinodependente. Nos últimos anos, em especial nos países industrializados, 1/3 de todas as DPG são do tipo 2 frequente e erradamente interpretadas como gestacionais, ainda que detectadas no 1º trimestre de gravidez.

A prevalência e a incidência da DPG variam consideravelmente dependendo de factores étnicos e raciais e de fenómenos migrantes. Com o incremento relativo da diabetes tipo 2, o diagnóstico está de certo modo condicionado pelo rastreio em função de critérios de saúde pública para populações de risco.

Na generalidade, considerando embora as assimetrias populacionais, calcula-se que cerca de 1,1% são DPG. A incidência de DG, talvez até mais do que a DPG, depende, entre outros factores, da existência ou não de rastreios universais e sistemáticos durante a gravidez, da data do aparecimento e da metodologia do diagnóstico. Em geral, estima-se que entre 3%-7% de gravidezes são complicadas por DG.

Na experiência dos autores, num período de 2 anos, numa população não seleccionada de 5207 grávidas, a incidência de DG foi de 6,4%, atingindo 14,9% nas mulheres com antecedentes obstétricos de DG. Dois terços (66%) das mulheres com DG tinham uma história familiar de DM tipo 2, e 20% tinham obesidade pré-concepcional (IMC > 30%), versus 4% na população de controlo.

A idade média na data do parto foi de 32 anos, comparativamente aos 30 anos para uma população de controlo de mulheres com filhos grandes para a idade gestacional (GIG) não-diabéticas. Cerca de um terço (31,3%) das mulheres com DG necessitaram de insulinoterapia, nomeadamente nos casos com história familiar de diabetes, obesidade pré-concepcional e com DG em gravidezes prévias (33,4%, 45,8% e 36,2% respectivamente).

Reconhecendo a importância deste enorme problema de Saúde Pública, já em 1989 a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Diabetes (FID) propuseram, na Declaração de St. Vincent, o objectivo, a concretizar em 5 anos, de os resultados de uma gestação complicada de diabetes deverem aproximar-se dos da grávida não diabética. No entanto, e apesar de em centros de referência se ter observado uma redução significativa no número de abortamentos, de nados-mortos, de anomalias congénitas e de mortes no período neonatal relacionados com a diabetes na gravidez, a situação persiste.

Com efeito, mesmo nos países de desenvolvimento socioeconómico mais privilegiado, a incidência de abortamentos pode atingir 17%, a taxa de nados-mortos chega a ser 5 vezes superior, a de anomalias congénitas 4 a 10 vezes maior; a mortalidade perinatal atinge valores 5 vezes superior, a mortalidade neonatal até 15 vezes mais; relativamente à taxa de mortalidade infantil, esta poderá triplicar em relação à das gestações sem diabetes. De destacar que, com a possível excepção de maior incidência de defeitos congénitos nas DPG, todos estes maus resultados são também observados na DG.

Tendo em conta as assimetrias relacionadas com a assistência dispensada à grávida, importa reconhecer a etiopatogénese da embriofetopatia diabética e identificar os aspectos passíveis de intervenção, por forma a que os objectivos preconizados pela Declaração de St. Vincent não sejam apenas uma manifestação de intenções não concretizadas, passados mais de 25 anos.

ETIOPATOGÉNESE

A patogénese e todo o espectro da embriofetopatia diabética resultam fundamentalmente do excesso de glicose transferido da mãe para o feto, induzindo à hiperglicemia fetal – responsável primário pelas anomalias congénitas – e à consequente hipertrofia dos ilhéus pancreáticos e hiperplasia das células-β, de acordo com o diagrama representado na Figura 1.

O resultante hiperinsulinismo fetal crónico, integrando uma cascata de alterações metabólicas, é responsável pelo quadro clínico da embriofetopatia diabética, de consequências imediatas no período neonatal, podendo predispor à síndroma metabólica do adulto.

A desregulação do metabolismo glucídico materno justifica, neste modelo teórico, todo o início e manutenção da cascata da embriofetopatia diabética. No entanto, é possível que outros substratos metabólicos, para além da glicose materna, atravessem a barreira placentar contribuindo para alterações do meio fetal; as respectivas consequências dependem, não só do metabólito em si, mas dos estádios críticos do desenvolvimento em que tais alterações ocorram.

Esta hipótese é corroborada:

  • Por modelos experimentais subscrevendo o contributo de outros substratos, nomeadamente corpos cetónicos e produtos da peroxidação lipídica na patogénese das anomalias congénitas e;
  • Pela verificação em animais de laboratório de que a suplementação de determinados factores, em especial ácido araquidónico e mioinositol, “depuradores” de radicais livres de oxigénio e antioxidantes, reduz a taxa de defeitos congénitos em filhos de diabéticas. A utilidade de tais medidas e a sua aplicação na prática clínica constituem questões em aberto.

FIGURA 1. A embriofetopatia: aspetos da embriopatogénese.

Manifestações clínicas, interpretação fisiopatológica e actuação prática

Diabetes pré-gestacional (DPG)

As potenciais e múltiplas complicações evidenciam-se in utero: abortamento, morte fetal, anomalia congénita, restrição do crescimento fetal/intrauterino (RCIU) e macrossomia. O hiperinsulinismo fetal crónico, com o resultante aumento do metabolismo e consumo de oxigénio, levando à hipoxémia, para além da taxa aumentada de mortes fetais e prematuridade, constitui mais outro factor para a asfixia neonatal, frequentemente observada nos RN de mães diabética.

Embora a maioria destas complicações se relacione com o mau controlo metabólico da grávida, outras, no entanto, ocorrem mesmo em casos de diabetes bem controladas, pondo em causa metodologias e definições, intervenções e seu cumprimento e, provavelmente, outros substratos, que não apenas a glicose. Com toda esta constelação de problemas e complicações não é surpreendente que o recém-nascido de mãe diabética (RNMD) constitua uma população sujeita a taxas de internamento superiores às da população em geral.

Anomalias congénitas

Ao longo das últimas décadas tem sido postulado que, para além dos hidratos de carbono (glucose, galactose e manose) outros substractos metabólicos estariam igualmente envolvidos na etiopatogénese das malformações congénitas, desde que presentes em níveis elevados durante períodos críticos do desenvolvimento. Entre os possíveis metabólitos implicados salientam-se os corpos cetónicos em excesso, a deficiência de zinco, ácido araquidónico e mioinositol e alterações da peroxidação lipídica com produção de radicais oxigenados livres. (Figura 2)

Apesar de terem sido descritas inúmeras anomalias congénitas afectando diversos órgãos e sistemas na DPG, tanto do tipo 1 como do tipo 2, a associação é mais frequente para algumas anomalias, nomeadamente do pavilhão auricular e do foro óculo-aurículo-vertebral. Síndromas de regressão caudal são também mais frequentes, em particular a agenesia do sacro (risco 200-600 vezes superior ao da população controlo), defeitos do tubo neural e defeitos vários do SNC (desde anencefalia – risco 3 vezes maior, holoprosencefalia – risco 40-400 vezes mais elevado).

Considerando as cardiopatias, ocorrem com maior frequência defeitos do septo auricular e ventricular, transposição dos grandes vasos e persistência do canal arterial (4 a 6 vezes mais frequente). A nível nefro-urológico, anomalias como agenesia renal e duplicação ureteral têm igualmente prevalência aumentada na gravidez acompanhada de diabetes. Importa referir que a generalidade destas anomalias surge na diabetes com mau controlo metabólico durante a gravidez, com cuidados pré-concepcionais sofríveis ou nulos, em aparente correlação directa com os níveis de HbA1C, sendo a incidência de defeitos semelhante à da população de controlo nas grávidas com HbA1C < 6,9% desde que mantidos, pelo menos, durante 6-12 meses pré-concepção. Contudo, e apesar de um bom controlo metabólico (cuidados pré-concepcionais e valores adequados de HbA1C), a taxa corrigida de anomalias relacionadas com a DPG é superior à da restante população. Será pertinente questionar se os métodos utilizados para definir um “bom controlo metabólico” serão os mais adequados ou não, sendo a hiperglicemia o único agente teratogénico, qual o contributo que, isoladamente ou como adjuvante, os outros substratos possam ter na patogénese da embriofetopatia diabética. A detecção de anomalias congénitas deverá iniciar-se no primeiro trimestre por ecografia transabdominal e transvaginal, e repetida no segundo trimestre. No período pós-natal, os exame subsidiários a realizar deverão estar de acordo com os achados clínicos.

Macrossomia

Da mesma forma que para as anomalias congénitas, outros agentes teratogénicos metabólicos se propõem, que não apenas os açúcares; com efeito, a macrossomia parece resultar também de fenómenos multifactoriais interdependentes, entre eles corpos cetónicos, ácidos gordos livres, aminoácidos selectivos, e possivelmente IGF-1 e -2 a nível periférico. Os anticorpos insulínicos maternos e as hormonas contrarreguladoras da insulina são outros contributos suspeitos na etiopatogénese. A frequência da macrossomia varia entre 17%-50% nos RN de mães com DPG, consoante as séries. Contudo, importa diferenciar dois conceitos: RN grande para a idade gestacional (GIG) e macrossómicos. De facto, apesar de partilharem aspectos comuns, os verdadeiros macrossómicos evidenciam algumas particularidades decorrentes de uma distribuição anormal da sua gordura corporal, nomeadamente a nível da cintura escapulo-umeral. A questão não é meramente académica e assume, desde logo, importância prática para o obstetra, em termos de diagnóstico pré-natal e quanto à via do parto. Para o neonatologista a distinção é também importante porque apesar de ambos, GIG e macrossómicos, apresentarem uma tendência superior para hipoglicémia, policitémia, hipocalcémia e hiperbilirrubinémia; os verdadeiros macrossómicos têm ainda um risco acrescido de asfixia intraparto, de tocotraumatismo, em especial de paralisia do plexo braquial, e de cardiomiopatia. Para definir e identificar macrossomia, em vez da habitual referência a um determinado e arbitrário peso, ou à relação entre o peso de nascimento (PN) e a idade gestacional, outros parâmetros têm sido propostos, nomeadamente, razão perímetro braquial/cefálico, perímetro da coxa/cefálico, peso/perímetro cefálico, espessura de pregas cutâneas, etc., de discutível aplicação prática. Em recém-nascidos de termo, segundo a experiência dos autores, é preferível utilizar o índice ponderal (IP=peso/comprimento3 x 100) para distinguir o verdadeiro macrossómico de um GIG, por ser de maior exequibilidade na prática clínica diária. Este ponto é importante, designadamente pelas implicações quanto ao prognóstico a longo prazo.

FIGURA 2. Etiopatogénese das anomalias congénitas

Hipoglicémia

No período neonatal a hipoglicémia é um problema comum e multifactorial, devido ao hiperinsulinismo mantido e à ausência de respostas hormonais de contrarregulação conduzindo à diminuição da gluconeogénese hepática, da lipólise e a um aumento da captação periférica de glicose. Contudo, o termo hipoglicémia carece de uniformidade de critério quanto à definição. Desde logo, ao estabelecer-se um valor de glicose abaixo do qual se considera existir hipoglicémia, é fundamental referir em que produto biológico a determinação foi efetuada: sangue venoso, sangue capilar ou plasma, dado que a concentração de glicose no sangue total é cerca de 10% a 15% inferior à do plasma. Atendendo ao valor geralmente elevado do hematócrito dos RNMD, o valor a ter em conta deverá ser o plasmático e não o sérico: a determinação em sangue total é afectada pelo hematócrito (valores de glicémia sucessivamente decrescentes no sangue arterial-capilar-venoso). Porém, outras questões se colocam: que ”baixo nível de glicose” se deve considerar nocivo? Será que para o mesmo valor de hipoglicémia a repercussão a nível cerebral será diferente consoante a presença ou não de sintomatologia? Será que o RN poderá utilizar outros substractos em alternativa à glicose, nomeadamente lactato, piruvato, corpos cetónicos, etc., para o seu metabolismo cerebral? Ainda que o RN no pós-parto imediato possa utilizar lactato como substracto energético, o hiperinsulinismo mantido, inibindo a lipólise, indisponibiliza a utilização de corpos cetónicos; assim, será prudente manter a glicémia em níveis ≥ 2,6 mmol/L (~ 48 mg/dL), quaisquer que sejam as idades gestacional e pós-natal do RN. Na prática (Figura 3), importa promover a alimentação entérica precoce e, caso ela não seja exequível ou contraindicada, administrar glicose por via endovenosa (ev) ao débito de 5-6 mg/kg/min, a ajustar de acordo com as necessidades, frequentemente até ritmos de 8-10 mg/kg/min e, raramente, de 12 mg/kg/min.

FIGURA 3. Actuação perante hipoglicémia.

Perante hipoglicémia sintomática, em particular de neuroglicopénia, deve providenciar-se a administração de glicose em bólus ev na dose de 0,25-0,5 g/kg, seguida de perfusão ao ritmo necessário à manutenção da euglicémia. Deve ser iniciada a alimentação entérica com leite materno ou com fórmula logo que possível, com redução gradual da perfusão venosa por forma a evitar a ocorrência de hipoglicémia reactiva. Raramente, em emergências ou com hipoglicémias refractárias, será necessário a administração de glucagon (200-300 µg/kg) para fomentar a gluconeogénese e promover a oxidação hepática de ácidos gordos.

Hipocalcémia

A homeostasia do cálcio é conseguida através de um equilíbrio entre a sua absorção intestinal e a sua excreção renal, num processo hormonodependente. A paratormona (PTH) mobiliza o ião a partir do tecido ósseo, aumenta a sua reabsorção tubular renal e estimula a produção de 1,25-di-hidroxivitamina D. Esta, por sua vez, aumenta a absorção intestinal de cálcio e fosfato e facilita a sua mobilização óssea induzida pela paratormona. Além disso, a hipocalcémia constitui um estímulo para a libertação de paratormona.

No sangue, o cálcio circula sob duas formas: ligado a proteínas séricas (especialmente à albumina) e a iões (por ex. citrato), e sob a forma livre ou ionizada, esta última a forma fisiologicamente relevante, representando 40%-50% do cálcio total. O equilíbrio entre a deposição e a mobilização do cálcio no osso determina, em grande parte, a concentração de cálcio ionizado no sangue. Durante a gestação, o cálcio é transferido da circulação materna para a circulação fetal através de um gradiente de transporte activo transplacentar regulado pelo péptido relacionado com a paratormona (PTHrP) (parathyroid hormone-related peptide).

A paratormona e a vitamina D maternas praticamente não atravessam a placenta. Desta forma, a concentração plasmática fetal de cálcio é mantida num nível superior ao da mãe (particularmente no terceiro trimestre, quando a concentração de cálcio total no RN é de cerca de 10-11mg/dL e a do cálcio ionizado de 6 mg/dL), encontrando-se as glândulas paratiroideias fetais num estado de baixa actividade. Com o nascimento, ocorre uma suspensão súbita da transferência materno-fetal de cálcio, com subsequente diminuição da sua concentração plasmática para níveis de 8-9 mg/dL de cálcio total e de 4,4-5,4 mg/dL da forma ionizada, evidente pelas 24 horas de vida. Em resposta, ocorre uma estimulação das glândulas paratiroideias e, pela segunda semana de vida, os níveis séricos do ião atingem o nível considerado normal para crianças e adultos. A definição de hipocalcémia, em função do peso, considera cálcio total < 8 mg/dL e/ou ionizado < 4,4 mg/dL (RN ≥ 1500 g); e cálcio total < 7 mg/dL e/ou ionizado < 4,0 mg/dL (RN < 1500 g). Salienta-se que a calcémia total está dependente dos níveis séricos de albumina e do pH, sendo que, por cada variação de 1 g/dL da albuminémia, há variação no mesmo sentido de 0,8 mg/dL de cálcio total, e que a acidose eleva os níveis do cálcio ionizado, ao contrário da alcalose. Em cerca de 50% dos RN de mãe diabética ocorre hipocalcémia, tipicamente entre as 24 e as 72 horas após o parto, e em geral acompanhada de hiperfosfatémia e/ou de hipomagnesiémia, possivelmente por atraso adaptativo das glândulas paratiróides ao ambiente extrauterino. Decorridas as primeiras 72 horas de vida, as paratiróides apresentam maior actividade, pelo que nos RNMD a hipocalcémia é geralmente precoce e transitória.

A hipocalcémia correlaciona-se com a gravidade e duração da diabetes materna, sendo sobretudo prevalente em RN com doença pulmonar e/ou asfixia periparto.

A hipocalcémia neonatal nos RNMD, embora frequente, é na maioria dos casos assintomática e autolimitada, pelo que não se justifica a determinação do cálcio sérico de modo rotineiro.

A hipocalcémia sintomática, manifestada por tremor e irritabilidade, convulsões, hipersudorese, letargia, apneia, taquipneia e alterações electrocardiográficas na fase de repolarização, com prolongamento do intervalo QTc (intervalo QT corrigido para a frequência cardíaca), superior a 0,4 segundos, obriga à determinação da calcémia e à sua correção com 1-2 mL/kg/dose de gluconato de cálcio a 10% (◊ 9-18 mg/kg de cálcio elementar), – administração endovenosa lenta em 5 a 10 minutos – com monitorização electrocardiográfica pelo risco de bloqueio cardíaco, bradicárdia refractária e hipotensão.

Se necessário, deve manter-se a correcção com dose de 2-7 mL/kg/dia (máximo: 200 mg/kg em 10 minutos). A hipocalcémia é susceptível de correcção em 3 a 4 dias e, até à normalização dos valores, o cálcio sérico deve ser determinado com intervalos regulares, habitualmente de 12-12 horas. Sublinha-se que uma hipocalcémia persistente pode dever-se à coexistência de hipomagnesiémia, a qual deve ser corrigida. A correcção da hiperfosfatémia, quando presente, deve preceder a correcção da hipocalcémia, pois se o produto [Ca2+] x [PO4- ] for > 80, poderá ocorrer calcificação dos tecidos moles.

Policitémia

Policitémia define-se por hematócrito > 65% no sangue venoso em RN com ou sem sintomas. A sua incidência varia entre 0,4%-12% em RN saudáveis e deve-se ao facto de os eritrócitos fetais terem um maior volume globular médio e serem menos deformáveis que os eritrócitos mais maduros, conduzindo a hiperviscosidade sanguínea. No caso dos RNMD, mais de 30% são afectados. A sua etiopatogénese relaciona-se directamente com o hiperinsulinismo fetal crónico levando sequencialmente a um aumento do metabolismo e consumo de oxigénio, hipoxémia fetal, por sua vez determinando produção acrescida de eritropoietina e policitémia.

As consequências da policitémia são múltiplas: morte fetal, SDR, insuficiência cardíaca, hipertensão pulmonar, sinais neurológicos (tremor, irritabilidade, convulsões, apneia), trombose, gangrena e acidente vascular cerebral. O tratamento padrão, abordado com mais pormenor noutro capítulo, consiste na substituição parcelar do sangue do doente por sangue com valor de eritrócitos mais baixo e viscosidade normal, o que se consegue com diversas estratégias. A Figura 4 mostra aspecto geral do fenótipo de RNMD, ressaltando as características de macrossomia e plétora, e paralisia do plexo braquial, situação traumática a abordar noutro capítulo, adiante.

Icterícia

A imaturidade hepática presente no período neonatal é responsável pela chamada icterícia fisiológica que surge em 60%-70% dos RN (valores de bilirrubinémia em geral < 13 mg/dL); no entanto, esta icterícia só se torna importante (bilirrubinémia total ≥ 13 mg/dL) em cerca de 5% dos casos de RN termo saudáveis versus 30% dos casos de RNMD. À deficiência transitória da enzima glucuroniltransferase, com aumento consequente da circulação êntero-hepática, somam-se outros fatores, que justificam a mais elevada incidência em RNMD: prematuridade, policitémia, aumento da hemólise e macrossomia.

FIGURA 4. Fenótipo de RNMD com paralisia do plexo braquial* (URN-HDE)

*Trata-se duma fotografia histórica referente a época em que eram mais frequentes as paralisias braquiais e se usava faixa abdominal, hoje obsoleta.

Tem sido sugerido que a bilirrubina, em concentrações fisiológicas, exerce um efeito protector sobre os eritrócitos neonatais contra o estresse oxidativo. Porém, em concentrações patológicas prevalecem os efeitos citotóxicos e a hiperbilirrubinémia deve ser controlada. A avaliação clínica é pouco fidedigna e corre o risco de subestimar níveis significantes de icterícia neonatal. Os bilirrubinómetros transcutâneos mais recentes são preferíveis devido à sua capacidade de corrigir os valores de bilirrubina excluídos os efeitos da melanina e da hemoglobina e correlacionando-se favoravelmente com os valores estimados pelo laboratório (diferenças de 2-3 mg/dL com bilirrubinas < 15 mg/dL – 250 µmol/L).

Síndroma de dificuldade respiratória

Múltiplos factores, por vezes associados, contribuem para o aparecimento da síndroma de dificuldade respiratória (SDR) no RNMD. O parto pré-termo, outras condições associadas à própria diabetes, em especial a policitémia e hiperviscosidade concomitantes, a hipóxia e hipertensão pulmonar, a insuficiência cardíaca ocasional, e a alta taxa de cesarianas electivas condicionando atraso da reabsorção e eliminação do líquido pulmonar fetal (síndroma de taquipneia transitória ou “pulmão húmido”), são alguns do referidos factores.

A própria doença da membrana hialina (DMH), causada pela diminuição e/ou inibição da produção de surfactante face ao hiperinsulinismo fetal é mais frequente em RNMD, em qualquer idade gestacional.

Em gravidezes normais, com a administração antenatal de corticóides, tem-se verificado diminuição do risco de DMH. No entanto, pelo seu efeito hiperglicémico fetal e materno, o seu uso na diabética grávida não é consensual, obrigando a sua eventual administração a um controlo glicémico rigoroso, aplicando vários esquemas insulínicos, aparentemente com bons resultados. Particulamente importante, a diabetes bem controlada na gravidez não deve ser uma razão para um parto de pré-termo, efectivamente, com bons cuidados pré-natais, a gestação pode levar-se até termo, frequentemente após as 38 semanas sendo então o risco de SDR significativamente reduzido.

Cardiomiopatia hipertrófica

Em cerca de 30%-50% de diabetes tipo 1, de 25%-33% em tipo 2 e baixo risco na diabetes gestacional verifica-se cardiomiopatia reversível, com hipertrofia do septo interventricular e de uma ou ambas as paredes ventriculares, originando uma cardiopatia obstrutiva. O mecanismo deste tipo de patologia não está completamente esclarecido, embora se tenha comprovado a comparticipação da abundância em receptores para a insulina no miocárdio; como consequência, existe afinidade aumentada do miocárdio para a insulina levando a maior síntese de proteínas, glicogénio e gordura, e respectiva hipertrofia e hiperplasia.

Na fase pós-natal, com consequente diminuição da insulinémia, o número de receptores diminui, atenuando-se paralelamente a hipertrofia miocárdica. Ainda que cerca de 90%-95% dos casos sejam assintomáticos, nos restantes observa-se sinais de cardiopatia obstrutiva com baixo débito e/ou falência cardíaca.

O ecocardiograma pode confirmar o diagnóstico de cardiomiopatia obstrutiva enquanto os marcadores bioquímicos de disfunção miocárdica, nomeadamente CKMB, troponina I e pro-BNP necessitam de validação. Se for necessária terapêutica os β-bloqueadores (propranolol) poderão temporariamente diminuir a obstrução; de referir que a digoxina está contraindicada por redução do débito, aumento da própria obstrução e eventualmente exacerbando a falência cardíaca. Os sintomas resolvem-se habitualmente nas primeiras 2-4 semanas e as alterações ecocardiográficas nos primeiros 2-12 meses.

Síndroma do cólon esquerdo hipoplásico

A etiopatogénese, particularmente complexa e provavelmente multifactorial, deve-se com grande probabilidade aos episódios de hipoglicémia fetal induzidos por mau controlo diabético. As consequências desta hipoglicémia serão a libertação de glucagon e a concomitante diminuição da actividade simpática a nível da porção intestinal pré-esplénica, ambas contribuindo para a redução da motilidade do jejuno e do cólon esquerdo.

O resultado será um cólon de dimensões reduzidas e uma obstrução funcional. Este fenómeno de hipomobilidade poderá ser agravado pelo uso materno de drogas psicotrópicas com efeitos anticolinérgicos e a administração de magnésio durante a gravidez.

A apresentação clínica é a de uma obstrução intestinal orgânica ou funcional, e o diagnóstico será feito por ecografia ou radiografia simples do abdómen, por vezes com enema contrastado, que revelará as imagens características de dilatação colónica proximal, adelgaçamento em cone ao nível do ângulo esplénico com distensão pós-estenótica do cólon descendente e do sigmóide.

A terapêutica é conservadora: aspiração gástrica contínua, fluidoterapia endovenosa e, na ausência de perfuração intestinal, o próprio enema contrastado para além de confirmação diagnóstica poderá também ter efeitos terapêuticos. A cirurgia deve reservar-se para os casos de perfuração ou obstrução refractária recorrente sem resposta à terapêutica médica.

Diabetes gestacional (DG)

Grávida

Com o decorrer da gravidez, sobretudo a partir da segunda metade, o aumento do metabolismo materno exige maiores necessidades de insulina. Caso o limiar de metabolização da glicose seja ultrapassado, surge hiperglicémia. Todas as manifestações clínicas perinatais anteriormente descritas a propósito da DPG, são aplicáveis à DG, com a possível excepção das anomalias congénitas fetais, na situação presente, com menor prevalência do que na DPG. Contudo, determinados estudos apontem para uma alta taxa de defeitos congénitos na DG, provavelmente por corresponderem a casos de DPG, somente diagnosticados durante a gravidez. De facto, na última década nos países industrializados a DG tipo 2, constitui já 1/3 de todas as DPG.

Na população com diabetes gestacional, segundo a experiência dos autores, não se registaram mortes maternas, fetais ou perinatais; as intercorrências da gravidez, designadamente hipertensão gravídica, pré-eclâmpsia, oligo-hidrâmnio e RCIU, surgiram com menor incidência em relação a outras séries, sublinhando-se o bom controlo metabólico levado a cabo. Contudo, registou-se uma taxa de cesarianas de 43,9% versus 36,4% na população de controlo – mães com filhos GIG, não diabéticas.

Recém-nascido

A idade média na data do nascimento foi de 38 semanas, com um peso médio de 3,121 g (± 424 g) e um comprimento médio de 48,55 cm (± 1,77 cm). Os principais problemas clínicos são discriminados no Quadro 1, que estabelece a comparação entre RNMD e RN grandes para a idade gestacional (GIG) de mães não diabéticas. De salientar que, ao considerarmos a relação peso de nascimento/idade gestacional superior ao percentil 90 nos RNMD, esta percentagem foi extremamente baixa (2,9%); porém, ao aplicarmos o índice ponderal (IP > P90), essa percentagem sobe para 16,1%, o que se torna ainda mais evidente com o avançar da idade gestacional (22% e 25% às 39 e 40 semanas gestacionais, respetivamente). Tal facto sugere uma população de lactentes pequenos e obesos, em contraste com a de RN GIG de grávidas não diabéticas. Como tal, propomos que se utilize o IP como melhor indicador de macrossomia e não apenas a relação PN/IG.

Nesta coorte de RNMD registámos 10,3% de RN LIG (leves para a idade gestacional), em flagrante contraste com o diagnóstico obstétrico de restrição de crescimento fetal/intrauterino (RCIU) de apenas 0,9%, questionando a capacidade da avaliação obstétrica deste parâmetro há uma dezena de anos. A elevada taxa de cesarianas observada (43,9% versus 36,4% na população de controlo) não pode ser atribuída à macrossomia per se, pondo em causa induções electivas e fracassadas, agravando os problemas respiratórios destes neonatos com síndroma de adaptação pulmonar após cesarianas em RN de termo (síndroma de taquipneia transitória ou “pulmão húmido”).

Em suma, não se tendo registado quaisquer mortes maternas ou neonatais, resultados que suplantam muitas das séries publicadas, a morbilidade neonatal da DG, superior à da população em geral, continua a representar um importante problema de Saúde Pública.

QUADRO 1 – Morbilidade neonatal em RNMD e em GIG de mães não diabéticas.

Abreviaturas: RNMD: Recém-nascido de mãe diabética; GIG: RN Grande para a idade gestacional.

 RNMDGIGX2
 (n=211)(%)(n=157)(%)(p)
Fractura da clavícula4295,40,79
Paralisia do plexo braquial10,521,20,47
Anomalias congénitas94,394,70,582
Prematuridade2110,2116,60,959
Hipoglicémia63,142,40,663
SDR84,142,40,342
Icterícia6331,62816,8< 0,001
Policitémia73,695,40,437
Hipocalcémia94,721,20,054

Prognóstico

Se no 1º trimestre de gravidez as principais consequências da DPG se traduzem em anomalias congénitas e abortamentos, no final do 2º trimestre, período em que se verifica um aumento da diferenciação e maturação cortical cerebrais, um ambiente intrauterino desfavorável pode resultar em compromisso de vários tipos: cognitivo, psíquico e sensorial.

Factos provados cientificamente sugerem que estas crianças filhas de diabéticas apresentam défice psicomotor e psicossocial ligeiros a moderados, ainda que incidentes pós-natais possam igualmente contribuir para este prognóstico menos favorável.

Durante o 3º trimestre, devido à proliferação de adipócitos, células musculares e células-β dos ilhéus, as alterações metabólicas ocorridas poderão ter repercussões a longo prazo na idade adulta, nomeadamente quanto à incidência de obesidade, intolerância à glicose e diabetes não insulinodependente, de acordo com a hipótese de Barker: origem fetal de doenças com manifestações a partir da 4ª e 5ª décadas de vida. Este aspecto faz parte de um capítulo do livro (Volume 1- Parte IX).

Particularmente importante, do ponto de vista pediátrico, é determinar se a síndroma metabólica do adulto começa a manifestar-se precocemente e quais as características de apresentação. Nesta perspectiva, alargámos o leque de crianças filhas de mãe com DG para 335 e tomámos como população de controlo 295 crianças dos mesmos estratos sócio-económicos e da mesma área de distribuição geográfica.

Os resultados encontrados estão documentados nos quadros 2 e 3. Ainda que o IP, pelo menos para RN de termo ou próximo de termo, seja mais adequado para definir a composição corporal, neste estudo utilizámos o IMC na data do nascimento como parâmetro de comparação com as curvas de IMC no seguimento até à entrada para a escola (idade média 72 meses).

Pela análise do quadro 2, verificamos que a idade gestacional média dos filhos de mãe diabética insulinodepente (FMD ID) é significativamente inferior à dos filhos de mãe diabética não insulinodepente (FMD NID) e que à da população de controlo, em ambos os sexos. O IMC ao nascimento dos três grupos analisados é semelhante entre si; porém, há que ter em conta a diferença de idades gestacionais, sendo que, nos RNMID se verifica uma idade gestacional para um mesmo IMC semelhante aos restantes grupos.

No estudo de seguimento aos 72 meses de idade média (Quadro 3), verificamos um cruzamento ascendente de percentis de IMC transversal a todos os grupos, denotando o panorama preocupante actual de crianças com excesso de peso e de algumas, obesas. Esta tendência é particularmente acentuada nas raparigas FMD ID (Percentil IMC 15-50 ao nascimento versus 85-97 ao resultado do estudo de seguimento). Da mesma forma, as pressões arteriais sistólicas (PAS) são sempre mais elevadas nestas mesmas raparigas FMD IN, ainda que sem significado estatístico.

O peso relativo da carga genética, em confronto com noxas intrauterinas e pós-natais, não está completamente esclarecido. No entanto, pelo menos em modelos animais, a prevenção da hiperglicémia na gravidez reduz significativamente a prevalência de diabetes em futuras gerações. Os dados por nós documentados sublinham estas preocupações e confirmam que, apesar da Declaração de St. Vincent de 1989, este desidrato está longe de ter sido conseguido.

QUADRO 2 – Dados ao nascimento de filhos de mães diabéticas e população controlo.

Sexo feminino
 DG (n=160)Não-DG (n=138)
 ID (n=50)NID (n=110)  
Id. gestacional (X±Dp)37,7±0,8338,2±1,16p=0,00239,3±3,57p=0,001
IMC (X±Dp)
Percentil
13,1±1.49
15-50
13,2±1.25
15-50
p=0,41613,2±1.50
15-50
p=0,491
Sexo masculino
 DG (n=175)Não-DG (n=151)
 ID (n=55)NID (n=120)  
Id. gestacional (X±Dp)37,8±0,5638,0±1,49p=0,01739.07±1,14p=0,001
IMC (X±Dp)
Percentil
13,2±1.09
15-50
13,0±1.33
15-50
p=0,62313,3±1.03
15-50
p=0,154

 

QUADRO 3 – Dados do estudo de seguimento de filhos de mães diabéticas e da população controlo.

Sexo feminino
 DG (n=119)Não-DG (n=138)
ID (n=32)NID (n=87)  
Idade (Meses±dp)70±5.872±6.0p=0,17473±6.1p=0,029
IMC (X±dp)
Percentil
17.4±2.80
85-97
16.6±2.18
50-85
p=0,17616,6±2.53
50-85
p=0,541
PAS (mmHg±dp)101.4±10.6398.5±8.63p=0,05999,65±10,65p=0,289
PAD (mmHg±dp)54.7±8.8052.6±8.02p=0,18654,08±8.62p=0,343
Sexo masculino
 DG (n=135)Não-DG (n=151)
ID (N=44)NID (N=91)  
Idade (Meses±dp)72±5.971±9.2p=0,36274±6.8p=0,001
IMC (X±dp)
Percentil
16.5±2.25
50-85
16.7±3.33
50-85
p=0,57616.7±2.15
50-85
p=0,326
PAS (mmHg±Sd)102.1±9.0898.8±9.66p=0,14797,68.0±11,40p=0,090
PAD (mmHg±Sd)53.0±9.4152.6±7.72p=0,87354,9±10,39P=0,230

Estratégias possíveis de intervenção

De acordo com estudos de medicina baseada na evidência, segundo os quais um bom controlo metabólico pode alterar favoravelmente o panorama da diabetes na gravidez, porque é que, mesmo em países desenvolvidos, a generalidade dos resultados deixa tanto a desejar?

Em parte, porque muitos destes resultados reflectem cuidados pré-concepcionais e gestacionais muito heterogéneos e frequentemente insatisfatórios. Ainda que a carga genética possa ser desfavorável e ainda que outros substractos metabólicos para além da glicose, actuando em diferentes fases do desenvolvimento, possam contribuir para a etiopatogénese desta síndroma, de momento, contudo, a prioridade reside nos cuidados pré-concepcionais intensivos às mulheres diabéticas e na identificação das mulheres com risco de desenvolverem DG.

Nesta perspectiva, tais situações, uma vez diagnosticadas, deveriam beneficiar de um programa de controlo adequado, com redobrada atenção aos FMD não apenas no período neonatal incentivando, entre outras medidas, o aleitamento materno exclusivo e um estudo evolutivo de seguimento rigoroso com eventual controlo analítico de parâmetros precoces de síndroma metabólica do adulto com início na idade pediátrica.

Agradecimentos: Os autores, muito reconhecidamente, agradecem a colaboração da Professora Cláudia Silva da Faculdade de Ciências da Saúde/Universidade Fernando Pessoa, Porto, responsável pela análise estatística dos dados constantes deste capítulo.

BIBLIOGRAFIA

Adamkin DH. Metabolic screening and postnatal glucose homeostasis in the newborn. Pediatr Clin N Am 2015; 62 : 385-409

Carrapato MRG. The offspring of gestational diabetes. J Perinatal Med 2003; 31: 5-11

Carrapato MRG. Programming or the fetal origins of adult disease. Prenat Neonat Med 1999; 4: 89-93

Carrapato MRG TS, Prior AC, Caldeira T. The Offspring of Diabetic Mothers. Perinatal events and future outcome. In A Kurjak, M Pajntar (eds). Textbook of Perinatal Medicine. Zagreb: Croatia Parthenon Publishing Group, 2005

Durnwald C. Gestational diabetes: Linking epidemiology, excessive gestational weight gain, adverse pregnancy outcomes, and future metabolic syndrome. Semin Perinatol 2015; 39: 254-258

Eriksson UJ, Borg LA. Diabetes and embryonic malformations. Role of substrate-induced free-oxygen radical production for dysmorphogenesis in cultured rat embryos. Diabetes 1993; 42: 411-419

Eslamian L, Akbari S, Marsoosi V, Jamal A. Effect of different maternal metabolic characteristics on fetal growth in women with gestational diabetes mellitus. Iranian J Reproductive Med 2013; 11: 325-334

Feresu SA, Wang Y, Dickinson S. Relationship between maternal obesity and prenatal, metabolic syndrome, obstetrical and perinatal complications of pregnancy in Indiana, 2008-2010. BMC Pregnancy and Childbirth 2015; 15: 266-269

Georgieff MK, Sasanow SR, Mammel MC, Pereira GR. Mid-arm circumference/head circumference ratios for identification of symptomatic LGA, AGA, and SGA newborn infants. J Pediatr 1986; 109: 316-321

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hou RL, Zhou HH, Chen XY, et al. Effect of maternal lipid profile, C-peptide, insulin, and HBA1c levels during late pregnancy on large-for-gestational age newborns. World J Pediatr 2014; 10: 175-181

Huang T, Kelly A, Becker SA, et al. Hypertrophic cardiomyopathy in neonates with congenital hyperinsulinism. Arch Dis Child Fetal and Neonatal Edition 2013; 98: F351-354

Jenum AK, Morkrid K, Sletner L, Vangen S, Torper JL, Nakstad B, et al. Impact of ethnicity on gestational diabetes identified with the WHO and the modified International Association of Diabetes and Pregnancy Study Groups criteria: a population-based cohort study. Euro J Endocrinol 2012; 166: 317-324

Khandelwal M, Reece EA, Wu YK, Borenstein M. Dietary myo-inositol therapy in hyperglycemia-induced embryopathy. Teratology. 1998; 57: 79-84

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

McManus RM, Bouwmeester A, Hinz L, et al. Costs of recalled and recommended diets for pregnant women with type 1, type 2 and gestational diabetes. Canadian J Diabetes 2013; 37: 301-304

Nold JL, Georgieff MK. Infants of diabetic mothers. Pediatr Clin N Am 2004; 51: 619-637

Ornoy A, Reece EA, Pavlinkova G, Kappen C, Miller RK. Effect of maternal diabetes on the embryo, fetus, and children: congenital anomalies, genetic and epigenetic changes and developmental outcomes. Birth defects research Part C. Embryo Today Rev 2015; 105: 53-72

Rozance PJ. Update on neonatal hypoglycemia. Curr Opin Endocrinol, Diabetes, Obesity 2014; 21: 45-50

Sacks DA, Hadden DR, Maresh M, Deerochanawong C, Dyer AR, Metzger BE, et al. Frequency of gestational diabetes mellitus at collaborating centers based on IADPSG consensus panel-recommended criteria: the Hyperglycemia and Adverse Pregnancy Outcome (HAPO) Study. Diabetes Care 2012; 35: 526-528

Tin W. Defining neonatal hypoglycaemia: a continuing debate. Semin & Neonatal Med 2014; 19: 27-32

Ullmo S, Vial Y, Di Bernardo S, et al. Pathologic ventricular hypertrophy in the offspring of diabetic mothers: a retrospective study. Eur Heart J 2007; 28: 1319-1325

Wang F, Reece EA, Yang P. Advances in revealing the molecular targets downstream of oxidative stress-induced proapoptotic kinase signaling in diabetic embryopathy. Am J Obstetr Gynecol 2015; 213: 125-134

Wery E, Vambergue A, Le Goueff F, et al. Impact of the new screening criteria on the gestational diabetes prevalence. J Gynecol, Obstetri Biologie de la Reproduction 2014; 43: 307-313

Yuen L, Wong VW. Gestational diabetes mellitus: Challenges for different ethnic groups. World J Diabetes 2015; 6:1024-1032

RECÉM-NASCIDOS DE GESTAÇÃO MÚLTIPLA

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Durante milénios, a gestação múltipla foi quase sinónimo de bigemelaridade (encarada como uma excepção frequente) e apenas ocasionalmente como trigemelaridade (uma raridade). Em contextos de elevadas taxas de fecundidade, natalidade e mortalidade infantil (particularmente neonatal), a gestação múltipla era essencialmente um problema obstétrico, devido sobretudo à muito frequente apresentação não cefálica de um ou dois dos fetos, condicionante de maior morbilidade e/ou mortalidade perinatal e puerperal.

A redução da fecundidade e da natalidade na segunda metade do século XX acompanhou-se de maternidades mais tardias e do desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida. A disseminação destas técnicas provocou no final do século XX uma verdadeira “epidemia de multigemelaridade”, assistindo-se inclusivamente a gestações múltiplas de alto grau (quádruplas, quíntuplas, mesmo até séptuplas), de morbilidade desconhecida até então.

Em Portugal, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), desde meados da década de 1980, tem-se assistido ao aumento da frequência da gestação múltipla, não apenas em número absoluto, mas sobretudo em número relativo. O peso das gestações trigemelares, em particular, aumentou significativamente (em número absoluto de 8 em 1987, para 41 em 2001 versus respectivamente no que respeita a gestações duplas: 952 para 1277) em concomitância com o decréscimo da natalidade.

Do mesmo INE, relativamente ao período entre 2001 (correspondendo a 112.774 nados-vivos) e 2014 (ano em que foram registados 82.367 nados-vivos), através da publicação Estatísticas Demográficas, extraímos os seguintes achados: “- o número de nados-vivos resultante de partos gemelares aumentou de 2,4% para 2,7% do total de nados-vivos, entre 2001 e 2006; – a proporção de nados-vivos gemelares foi mais evidente nas mães com idades mais elevadas; – a proporção de nados-vivos gemelares de mães com menos de 30 anos de idade, face ao total de nados-vivos de mães no mesmo grupo etário, rondou os 2% no período 2001-2006 (2,1% em 2006), enquanto a mesma relação nas mães com idades iguais ou superiores a 30 anos oscilou entre os 2,8% (em 2001) e os 3,4% (em 2004), situando-se nos 3,2% em 2006; – entre 2009 e 2014, a proporção de nados-vivos resultantes de partos gemelares aumentou de 3,0% para 3,2% do total de nados-vivos, assumindo em 2014 valores superiores nas idades acima dos 30 anos.”

Enfim, na viragem para o século XXI, tem havido uma grande reflexão sobre o problema das gestações múltiplas de alto grau e a sua prevenção, no sentido de evitar a morbilidade e mortalidade inerentes, e elaborar novos protocolos. Este propósito tem suscitado questões éticas, ainda longe de estar superadas. Actualmente, parece que este ciclo “epidémico” está a chegar ao fim, tendo a Medicina Reprodutiva tirado ilações com base nos resultados de estudos epidemiológicos e em certas restrições impostas pela legislação, designadamente quanto ao número de embriões implantados.

Fisiopatologia e risco fetal na gestação múltipla

A gestação múltipla espontânea (não devida a aplicação de técnicas de concepção assistida) deve-se a um de dois mecanismos:

  • A fertilização e implantação de mais do que um óvulo libertado no mesmo ciclo ovulatório; ou
  • A duplicação do embrião resultante da fertilização de um único óvulo, ocorrida nos estádios precoces do seu desenvolvimento (pré ou pós-implantação).

Do primeiro processo, resultam gémeos dizigóticos (ou polizigóticos); do segundo, gémeos monozigóticos.

As gestações múltiplas induzidas por apoio médico para a concepção (ou iatrogénicas) correspondem à implantação simultânea de mais do que um embrião, resultantes da fertilização de mais do que um óvulo, qualquer que seja o método de fertilização assistida utilizado (indução da ovulação ou implantação de embriões obtidos por fertilização in vitro). É possível que ocorra a separação espontânea de embriões após a sua implantação artificial, mas é uma ocorrência muito rara.

Os gémeos polizigóticos possuem quase sempre placentas independentes, pois cada embrião implanta-se separadamente no endométrio. São, pois, gémeos pluricoriónicos. Existem, no entanto, relatos de fusão da camada externa do trofoblasto de dois embriões dizigóticos, levando à formação de uma gestação monocoriónica biamniótica.

Os gémeos monozigóticos podem partilhar uma única placenta ou possuir placentas individuais, o mesmo acontecendo com os amnion (sacos amnióticos), conforme o momento da separação dos dois embriões duplicados.

Os gémeos monozigóticos podem, portanto, ser mono ou policoriónicos e gémeos monocoriónicos podem ou não partilhar um mesmo saco amniótico. Caso a separação ocorra até ao 3º dia após a fertilização, terão dois amnion (mesmo que a implantação muito próxima das placentas no endométrio possa sugerir uma única placenta) e dois corion; as separações entre o 4º e o 7º dia levam a gestações monocoriónicas biamnióticas e, após o 7º dia, a gemelaridades monocoriónicas monoamnióticas.

Os gémeos monozigóticos em que a separação dos embriões é incompleta, por ser ainda mais tardia (após o 12º dia), são denominados “gémeos siameses”; trata-se de gémeos, sempre monocoriónicos e monoamnióticos.

Em suma, e em termos práticos de classificação, a bigemelaridade pode classificar-se sob os pontos de vista genético e morfológico:

  • geneticamente, como monozigótica ou di/polizigótica;
  • morfologicamente, como bicoriónica biamniótica (2 placentas e 2 sacos, ou fusão palcentar e 2 sacos), monocoriónica biamniótica (1 placenta e 2 sacos), ou monocoriónica monoamniótica (1 placenta e 1 saco).*

*Em termos de “prevalência global de gémeos” podem ser estabelecidos os seguintes dados: monozigóticos ~ 30%; dizigóticos ~ 70%; monocoriónicos ~ 10%; bicoriónicos ~ 90%; mesmo género 65%; género diferente ~ 35%. Os monocoriónicos são do mesmo género; os bicoriónicos podem ser do mesmo género ou de géneros diferentes.


Estas duas classificações não são totalmente sobreponíveis; isto é, embora possa ser quase certo que gémeos monocoriónicos monoamnióticos são monozigóticos, a multicorionicidade (particularmente a bicorionicidade) não é garantia de polizigotia. (ver adiante corionicidade)

A divulgação das técnicas de reprodução assistida não apenas aumentou o número absoluto de gestações múltiplas e o seu grau, mas também modificou as suas características genéticas, incrementando desproporcionadamente as gestações múltiplas heterozigóticas.

As gestações múltiplas, mono ou multizigóticas, apresentam diferente morbilidade, sendo superior nos casos de monozigotia. O aumento da proporção de multizigotias (de menor risco inerente) veio melhorar alguns dos indicadores globais de sucesso das gestações múltiplas, particularmente as bigemelares, dando uma melhoria do risco global da multigemelaridade.

Os problemas clínicos específicos que a gemelaridade coloca à equipa de perinatologia prendem-se com quatro aspectos fundamentais:

  1. A monocorionicidade;
  2. As anomalias congénitas;
  3. A prematuridade; e
  4. As exigências logísticas.

Embora todas as gestações múltiplas sejam potencialmente de maior risco do que as gestações únicas, as gestações gemelares monozigóticas, particularmente as monocoriónicas, são as que envolvem maior risco.

A partilha da placenta nas gestações monocoriónicas é um dos principais condicionantes de risco acrescido para os fetos. O maior destes é a transfusão feto-fetal: um dos gémeos recebe mais sangue da placenta do que o outro, devido a desequilíbrio nas anastomoses entre os vasos da placenta. Esta complicação parece ocorrer em 5% a 25% das gestações bigemelares monocoriónicas (particularmente nas biamnióticas), em qualquer fase da gestação. Pode haver quadros crónicos ou agudos, conforme o tempo decorrido entre o início do desequilíbrio hemodinâmico e o fim da gestação.

As consequências para o feto receptor são poli-hidrâmnio, hipervolémia com policitémia, podendo surgir insuficiência cardíaca congestiva in utero e, após o nascimento, fenómenos de hiperviscosidade e hiperbilirrubinémia. Na fisiopatologia da transfusão feto-fetal participa o sistema renina-angiotensina, verificando-se níveis elevados de hBNP (péptido natriurético cerebral humano) e endotelina-1. Mediadores vasoactivos produzidos no dador são desviados para o receptor, do que resulta hipertensão e cardiomiopatia hipertensiva.

Para o feto dador, as consequências são oligoâmnio, anemia crónica e hipovolémia, causando restrição de crescimento intrauterino, sofrimento fetal crónico e, potencialmente, morte in utero.

O risco de morte na transfusão feto-fetal grave pode chegar a 80%. O risco de anomalias congénitas por causas mecânicas é maior no gémeo dador, pela moldagem e compressão condicionada pelo seu oligoâmnio.

A morte fetal de um dos gémeos é um fenómeno frequente. Gémeos monoamnióticos (1% das gestações gemelares) têm maior risco de morte fetal (50%-60%), devido principalmente ao risco de os cordões se entrelaçarem e sofrerem compressão.

Fenómenos de transfusão feto-fetal graves incrementam, em primeiro lugar, o risco de morte fetal do gémeo dador, mas, num segundo tempo, potencialmente também do receptor. A morte de um dos gémeos desencadeia processos biológicos que afectam o gémeo com o qual partilha a circulação placentar. Os produtos tóxicos do metabolismo do cadáver entram na circulação do sobrevivente, afectando-o. Fenómenos tromboembólicos originários no gémeo falecido podem atingir o sobrevivente, provocando neste lesões isquémicas embólicas, particularmente nos órgãos de maior fluxo sanguíneo e circulação terminal, como o sistema nervoso central. Este risco é tanto maior quanto mais tarde ocorrer a morte fetal.

Por outro lado, tanto nas gestações mono como nas policoriónicas, a morte de um dos gémeos aumenta a probabilidade de se desencadear prematuramente o trabalho de parto. No entanto, o gémeo falecido em fase embrionária é geralmente reabsorvido, sem consequências para o(s) sobrevivente(s); na fase fetal precoce, se não se desencadear o trabalho de parto, evolui para o estado chamado feto papiráceo, adquirindo um aspecto mumificado. A prematuridade é, portanto, o outro risco major das gestações múltiplas, sendo hoje em dia a sua importância cada vez maior, devido ao aparecimento de maior número de gestações com riscos acrescidos.

Na maioria das gestações gemelares, o trabalho de parto inicia-se espontaneamente mais cedo do que nas gestações únicas. A idade média de término espontâneo das gestações bigemelares naturais é ~ 35 a 37 semanas, sendo de 33 semanas nas gestações trigemelares. As complicações descritas nas gestações monocoriónicas podem provocar precocemente o desencadeamento espontâneo do parto ou a sua interrupção médica, para salvar um ou todos os gémeos.

A multigemelaridade iatrogénica de elevado grau acompanha-se de uma diminuição desproporcionada do tempo de gestação viável, ocorrendo o parto tanto mais cedo quanto maior o número de fetos. O aumento do número de fetos (e suas placentas) com risco proporcional de complicações gravídicas graves (diabetes, hipertensão, eclâmpsia, síndroma HELLP, descolamento da placenta, etc.), determina a indicação médica de abortamento por causa materna, fetal ou combinada.

A fecundação assistida é mais frequente em mulheres de idade mais avançada, as quais possuem por si só um maior risco das patologias gravídicas referidas. Se a isto associarmos a adopção de técnicas ou protocolos (felizmente já abandonados em muitos países e instituições) que levam à implantação de um número elevado de embriões (para obviar o risco de insucesso em mulheres em idade fértil avançada) compreende-se que aumente o risco de prematuridade.

As gestações múltiplas apresentam também um risco acrescido de anomalias congénitas, cromossómicas e genéticas, ou secundárias a perturbações vasculares ou mecânicas. Sendo algumas destas anomalias incompatíveis com a vida fetal, aumenta o risco de morte in utero. O elevado risco de anomalias congénitas é particularmente evidente nas gestações múltiplas monozigóticas, sendo pouco significativo na multigemelaridade dizigótica.

Sendo a reprodução assistida mais frequente em casais com história longa de infertilidade, especialmente em mulheres com risco inerente elevado de conceber embriões com anomalias cromossómicas, não é surpreendente o aumento da sua prevalência. Contudo, calculando o risco de ocorrência de anomalias congénitas em gestações múltiplas iatrogénicas, se for controlada a variável idade materna, o número obtido não é superior ao das gestações únicas.

Nalguns casos de anomalias graves pondo em risco a vida fetal, certos protocolos estabelecem a indicação de abortamento. Poderá, por outro lado, colocar-se a seguinte situação: necessidade da correcção precoce ex utero de anomalia num dos gémeos, susceptível de desencadear prematuramente o parto, com possível repercussão sobre o gémeo dito “são”.

No plano logístico, a iminência do parto prematuro de uma gestação múltipla poderá originar dificuldades na preparação de vagas nas UCIN, em número igual ao de gémeos.

De facto, nem sempre sendo possível garantir um número de vagas de ventilação igual ao de gémeos, poderá ser necessária a transferência ex utero para outra UCIN, o que comporta risco de morbilidade e mortalidade associado ao transporte (mesmo utilizando o sistema especial de transporte neonatal com cuidados intensivos).

Manifestações clínicas e diagnóstico

Cabe à equipa de Perinatologia (obstetra, neonatologista, geneticista clínico, etc.) identificar o mais precocemente possível as situações de maior risco associadas a gestações múltiplas, de modo a poder corrigi-las, ou a minorar as suas consequências: número de embriões, corionicidade, anomalias congénitas, perturbações do crescimento, bem-estar embrionário ou fetal, e patologia materna associada.

Verificar o número de gémeos é relativamente fácil, através da realização precoce da ecografia obstétrica. No entanto, ainda actualmente ocorrem casos esporádicos de diagnóstico tardio de multigemelaridade espontânea.

A determinação da corionicidade (caracterização da morfologia relativamente aos corion) de gestações múltiplas espontâneas é por vezes difícil, mas deve ser recolhido o maior número possível de elementos para fazer o diagnóstico de mono ou multicorionicidade.

Os gémeos monoamnióticos são, em princípio, monocoriónicos; a dúvida pode colocar-se nos casos de gemelaridade biamniótica. Ecograficamente, as primeiras semanas após a implantação embrionária são as ideais para determinar, por ecografia, a corionicidade da gestação gemelar, pois é então geralmente possível a visualização de placentas separadas.

Caso não tenha sido possível realizar uma ecografia precoce, ou não tenham sido identificadas imagens claras de placentas independentes ou separadas, a ecografia obstétrica utiliza como critério a morfologia da confluência dos dois sacos amnióticos com o córion.

Se na secção ecográfica desta confluência existe um pequeno espaço triangular entre o âmnio e o córion (imagem em Y), provavelmente trata-se duma gestação bicoriónica; se a imagem obtida é a de ausência de qualquer separação entre o âmnio e o córion (imagem em T), trata-se provavelmente de uma gestação monocoriónica.

Na data do termo da gravidez, placentas independentes podem macroscopicamente parecer uma única, pois juntam-se no seu crescimento. No entanto, é possível identificar histologicamente a independência de placentas aparentemente únicas.

Em qualquer gestação múltipla espontânea em que não há informação ecográfica fidedigna acerca da corionicidade e é expulsa uma placenta aparentemente única, deve solicitar-se o exame histológico da placenta.

O diagnóstico da zigotia (intimamente ligado ao da corionicidade) é igualmente importante, a curto, médio e longo prazo, de tal modo que a “Declaração dos Direitos e Necessidades dos Gémeos e Múltiplos de Elevado Grau” (1995) refere explicitamente: a) o direito dos pais ao registo exacto da corionicidade e determinação da zigotia dos seus filhos gémeos do mesmo sexo; b) o direito de gémeos múltiplos do mesmo sexo, cuja zigotia não fora determinada à nascença, a poderem testá-la mais tarde.

As vantagens da determinação precoce e exacta da zigotia são:

  1. Determinar os riscos fetais e pós-natais associados à monozigotia e à dizigotia;
  2. Conhecer riscos tardios de doenças genéticas;
  3. Informar quando se trata de gémeos “idênticos” ou “fraternos”;
  4. Saber se os gémeos serão potenciais dadores de órgãos compatíveis;
  5. Determinar o risco de recorrência de gestação múltipla e;
  6. Poder obter dados para estudos de coortes de gémeos.

O método mais fácil e barato de determinar a zigotia é, de facto, verificar o sexo. Gémeos de sexos diferentes, não são monozigóticos; gémeos do mesmo sexo, podem ser, ou não, monozigóticos.

O diagnóstico ecográfico pré-natal da zigotia de fetos do mesmo sexo pode ser problemático, pois, como foi referido, a determinação da corionicidade é falível, particularmente nos casos de fetos policoriónicos. Recentemente, foi sugerida a verificação ecográfica do número de corpos lúteos ováricos no primeiro trimestre de gestação como método de elevada exactidão para a determinação da zigotia. A existência de mais do que um corpo lúteo sugere libertação simultânea de mais do que um óvulo, portanto, elevada probabilidade de polizigotia. Este método está pendente de validação com o método padrão.

No período pós-natal, para determinação de monozigotia, outro método fácil, rápido e barato, de especificidade e valor preditivo positivo elevados, mas de sensibilidade e valor preditivo negativo de monozigotia baixos, é a fenotipagem (Landsteiner, Rhesus, Kell e Duffy) dos eritrócitos do sangue, do cordão ou periférico, de ambos recém-nascidos. Antigénios eritrocitários diferentes dão certeza de heterozigotia, mas antigénios iguais não dão qualquer certeza.

A avaliação das características fenotípicas pela observação física após o parto, pode dar informações importantes, tendo-se já desenvolvido tabelas que auxiliam esta determinação, se necessário através de observações repetidas, em diferentes fases do desenvolvimento.

O estudo genético, através de análise PCR multiplex de séries estabelecidas de genes, permite a determinação com elevado grau de certeza, em casos mais difíceis, sendo considerado actualmente o gold standard.

O diagnóstico pré-natal de transfusão feto-fetal grave pode ser feito ecograficamente, em gestações monocoriónicas, através, quer da identificação de discrepância de dimensão do saco amniótico e peso em fetos inicialmente concordantes (em princípio, o feto maior é o que tem hidrâmnio), quer de sinais de insuficiência cardíaca no feto receptor (má função ventricular, ascite ou mesmo hydrops foetalis), ou de alteração dos fluxos arteriais umbilicais, da aorta e/ou artéria cerebral média (maiores no feto receptor, menores no dador).

A prova pós-natal é dada pela verificação de discrepância ponderal de 15% a 25% (discrepâncias superiores a 25% são consideradas graves), e/ou de diferença de concentração de Hb > 2,5 a 5 g/dL. A evidência de transfusão feto-fetal é tanto mais potente quanto maior a discrepância de peso e/ou hemoglobina, mas não existe homogeneidade de opinião entre investigadores quanto ao valor limiar de diagnóstico da condição. A presença de consequências, como anemia, policitémia, insuficiência cardíaca, ascite, etc., é confirmada através dos exames complementares adequados.

A discrepância ponderal entre gémeos pode ser devida, não apenas à transfusão feto-fetal (que ocorre apenas em 5% a 25% das gestações monocoriónicas, que são apenas 10% de todas as gestações bigemelares), mas também a problemas placentares, ou à presença de anomalia congénita num dos fetos.

A pesquisa de anomalias congénitas deve ser uma preocupação, pré e pós-natal, em toda gestação múltipla. A atenção deve ser particularmente maior quando há homozigotia suspeita ou confirmada. Na fertilização in vitro, é frequente proceder-se à exclusão de anomalias cromossómicas antes da implantação dos embriões. Todas as gestações múltiplas devem ser submetidas a ecografia morfológica e ecocardiografia fetal. Após o nascimento, para além das manobras de rastreio de anomalias comuns a todo recém-nascido, devem ser confirmadas eventuais suspeitas pré-natais, mantendo um nível de suspeição elevado nos casos de gestações mal vigiadas e em relação às anomalias que se manifestam ao longo do período neonatal (como a coarctação da aorta).

O diagnóstico dos problemas associados à prematuridade não é diferente do realizado nos casos de gestações únicas. Apenas há que ter em conta a possibilidade de ocorrência simultânea dos outros problemas para os quais o risco é acrescido na gestação múltipla, que podem agravar ou simular situações próprias da prematuridade. É frequente o(s) gémeo(s) com situação de estresse intrauterino ligeiro a moderado apresentar (em) uma maturação funcional superior, relativamente ao(s) casos associados a bem-estar fetal. Esta diferença pode reflectir-se não apenas na menor necessidade de cuidados, mas também em pontuação ligeiramente diferente na avaliação da idade gestacional observada.

O diagnóstico de adequação de crescimento intrauterino e pós-natal é ainda um assunto não consensual. Embora se tenham desenvolvido tabelas de crescimento adaptadas a gestações bigemelares (mesmo adaptadas a gestações de maior grau), duvidamos da sua utilidade. É nossa convicção de que a gestação múltipla não é uma variável do normal, sim um erro da natureza ou uma iatrogenia, sendo de supor que os embriões, fetos e recém-nascidos, deveriam ter o potencial de desenvolvimento normal se fossem de gestação única, pelo que admitimos que devem ser avaliados através das tabelas de crescimento das gestação simples. Apenas assim será diagnosticada correctamente a adequação do crescimento dum gémeo.

No desenvolvimento pós-natal dos gémeos é importante acompanhar as potenciais consequências das patologias associadas à monocorionicidade, prematuridade e anomalias congénitas. A ecografia cerebral é recomendada em gémeos monocoriónicos, particularmente naqueles em que ocorreram incidentes, como transfusão feto-fetal grave ou morte fetal. Deve ser dada atenção especial a sinais de paralisia cerebral e outras perturbações do neurodesenvolvimento, cuja frequência se verificou ser superior nestas situações.

Prevenção e tratamento

A prevenção dos problemas da gestação múltipla começa por uma abordagem preventiva da multigemelaridade iatrogénica. É importante verificar as situações em que está efectivamente indicada a utilização de técnicas de estimulação da ovulação, sendo imprescindível, quando indicadas, esclarecer o casal acerca dos riscos de ocorrência de gemelaridade de alto grau, dos riscos a ela inerentes e das opções existentes para diminuir este risco. Casais que não aceitam estes riscos ou são incapazes de os compreender, não deveriam ser elegíveis para este método.

A eliminação selectiva de embriões já implantados não é uma opção de primeira linha, pois levanta problemas éticos e legais óbvios; por isso, uma abordagem preventiva será sempre preferível.

O desenvolvimento de protocolos que levam a maior sucesso das gestações induzidas, permitiu adoptar políticas de implantação de apenas um ou dois embriões na fertilização in vitro. Os países em que estas abordagens foram efectivadas viram terminar ou reduzir rapidamente a epidemia de multigemelaridade iatrogénica de alto grau.

Um elevado grau de suspeição e um seguimento obstétrico rigoroso baseado em normas estritas é o segundo passo para uma eficaz prevenção dos riscos das gestações múltiplas: diagnosticar precocemente a gemelaridade, verificar a corionicidade, proceder ao rastreio de anomalias congénitas, e monitorizar o crescimento e o bem-estar fetais permitem o diagnóstico atempado dos problemas e a programação em tempo útil das intervenções que a tecnologia contemporânea coloca à disposição.

A boa acessibilidade aos cuidados de saúde à grávida, a adequada competência ecográfica dos profissionais envolvidos e uma referenciação atempada e acertada, são condições fundamentais para atingir estes objectivos.

Cada vez se torna mais evidente a vantagem da existência de Consultas de Gémeos, particularmente pré-natais, pois, segundo Papiernik e colaboradores, “todas as gestações gemelares são de alto risco para as crianças e a mãe, mesmo que decorram sem problemas aparentes”.

 

O diagnóstico atempado de transfusão feto-fetal grave em gestações monocoriónicas permite actualmente optar entre várias abordagens terapêuticas pré-natais: a amniorredução, no feto com hidrâmnio; a septostomia amniótica para igualar o volume de líquido amniótico nos dois fetos; a utilização endoscópica do laser para interromper anastomoses vasculares placentares ou para selar a ligação dos vasos umbilicais dum feto falecido à placenta; o feticídio selectivo, como forma de evitar a morte dos dois fetos; eventualmente, a interrupção médica da gestação.

A identificação precoce e exacta de complicações da gestação gemelar (como de qualquer outra) obrigará ao encaminhamento da grávida para centros perinatais especializados com o objectivo de garantir melhor vigilância, assim como terapêutica fetal e neonatal adequada.

No período neonatal, a abordagem terapêutica da multigemelaridade é a das suas complicações: anemia, hiperviscosidade, hiperbilirrubinémia, insuficiência cardíaca e hemodinâmica, ascite ou hidropisia, insuficiência respiratória, complicações da prematuridade, etc..

Os gémeos e múltiplos depois do parto

Sob o ponto de vista evolutivo, os gémeos levantam determinadas questões específicas que exigem soluções e têm influência no prognóstico. Seguidamente procede-se a uma abordagem sucinta de algumas delas.

Morbilidade e mortalidade

Sabe-se que o risco de prematuridade e/ou baixo peso nos múltiplos é cerca de 60%, e que também existe um risco elevado de disfunção de neurodesenvolvimento e de morte perinatal.

Daí a necessidade de a grávida ser acompanhada em consulta de alto risco e de o parto ocorrer em centro diferenciado. Depois do parto, podem ocorrer situações difíceis para os pais: um dos gémeos evidenciar uma anomalia congénita e o outro não; um dos gémeos poder evidenciar situação clínica que necessite de internamento em UCIN mantendo-se o outro junto da mãe; um dos gémeos ter alta e o outro permanecer internado durante mais tempo.

O risco de morte de um feto ou recém-nascido gémeo é três vezes superior ao de um feto ou recém-nascido único. Se considerarmos a morte perinatal, ela é cinco vezes superior nos gémeos e dez vezes superior nos triplos relativamente a um recém-nascido único.

Uma questão particular surge quando um dos gémeos morre e o outro sobrevive. Os pais ficam divididos entre a alegria do nascimento de um filho e a perda de outro. Também para os profissionais de saúde esta situação é difícil, sendo frequente ouvir-se: “Você ainda tem um bebé lindo!” ou “Como poderia você lidar com dois ao mesmo tempo?”. Torna-se óbvio que é importante não menosprezar a dor dos pais e criar oportunidades para conversar sobre a criança que morreu, sempre que os pais assim o expressem

Impacte no sistema familiar

Nas famílias com gémeos ou múltiplos, sem assistência adequada, existe maior risco de divórcio, doença e abuso infantil. De facto, a chegada dos gémeos ao núcleo familiar acarreta alterações estruturais importantes da dinâmica e organização familiares que podem prejudicar um ou mais dos seus membros. Se os pais tiverem acesso a informação útil, terão maior capacidade de antecipar dificuldades, o que poderá facilitar o processo de adaptação à nova situação. A consulta de bibliografia específica, já existente no nosso País, e a frequência de consultas pré-natais ou a integração em grupos de ajuda com outros pais de gémeos, são formas diferentes, mas complementares, de se atingir este objectivo. Por exemplo, se a grávida for informada sobre os benefícios biológicos, psicológicos e financeiros do aleitamento materno de recém-nascidos (pré-termo ou de termo), e se lhe forem ensinadas técnicas de aleitamento materno em simultâneo, a probabilidade de iniciar e manter o aleitamento materno após o nascimento dos gémeos será maior.

A família deve preparar a chegada dos gémeos, não só adquirindo roupa e outros equipamentos, mas também procurando obter apoio adicional para as tarefas domésticas. Pode fazê-lo recorrendo a ajuda de familiares, ou contratando serviços especializados, ou ainda, recorrendo a instituições de solidariedade social.

Quando existem outros filhos, o nascimento dos gémeos é um momento crítico para eles, pois tal implica certa separação da mãe pelas exigências de cuidados a prestar aos RN. Esta situação pode ser minorada quando os pais encontram formas de dedicar tempo e atenção aos filhos mais velhos e tentam envolvê-los nalgumas tarefas relacionadas com os gémeos.

Em suma, se a família se preparar para a chegada dos gémeos durante a gravidez, tendo em conta os cuidados de antecipação referidos, a ansiedade dos pais, as dificuldades após o parto, quer com o aleitamento materno, quer na organização familiar, serão mais facilmente ultrapassáveis.

Aleitamento em simultâneo

O aleitamento materno em simultâneo de duas, três ou mesmo quatro crianças é possível tendo em conta que a produção de leite resulta da estimulação efectuada pelas crianças, a qual é tanto maior quanto maior o seu número. O referido aleitamento permite à mãe ganhar algum tempo com uma tarefa que ocorre várias vezes por dia, libertando-a para outras. Existe, no entanto, a desvantagem de a mesma não poder dar atenção individual a cada filho. Assim, pode haver vantagem em amamentar os gémeos em simultâneo quando acordam ao mesmo tempo e choram com fome.

O posicionamento para a amamentação em simultâneo faz-se com a ajuda de várias almofadas; as crianças são colocadas de cada lado da mãe com o tronco e membros atrás da mãe, ou apoiadas em linha cruzada ou em paralelo, à frente da mãe. A maternidade é local ideal para o treino deste posicionamento pois, com o apoio da equipa, a mãe terá oportunidade para aprender e experimentar.

Se a mãe não puder ou não quiser amamentar os seus filhos, existem também técnicas de aleitamento artificial em simultâneo. Uma delas consiste em colocar as duas crianças sobre o colo, apoiando-as com um braço, enquanto o outro segura os dois biberões. Noutra técnica, as crianças são colocadas no colo da mãe viradas para a frente e a mãe envolve cada uma com um membro superior pegando no biberão com a respectiva mão.

O sono

Os gémeos podem ter mais dificuldade em adquirir um ritmo de sono regular do que a criança única, por vários motivos.

Tratando-se frequentemente de crianças pré-termo manipuladas com intervalos curtos e regulares durante o internamento na UCIN, poderá surgir a falta desse hábito em casa.

Pela sua prematuridade e/ou baixo peso, poderão necessitar de fazer intervalos das mamadas de 2 ou 3 horas durante a noite.

É frequente haver mais do que uma pessoa a cuidar dos gémeos e, consequentemente, diferentes formas de dar um biberão, o que dificulta o início duma rotina. E, se a mãe estiver ansiosa e insegura com o baixo peso ou a prematuridade, ela irá oferecer necessariamente mais refeições durante a noite.

De qualquer forma, é possível que os gémeos adquiriram uma rotina de sono até aos 6 a 9 meses de idade.

Uma questão colocada frequentemente é a da partilha do berço pelos gémeos. Pode ser desejável esta partilha enquanto são pequenos, por oferecer algumas vantagens: o acordarem ao mesmo tempo permitirá estabelecer mais precocemente uma rotina de sono e de se entreterem entre si. Existe, porém, o risco de sobreaquecimento, um dos factores que se considera associado ao risco de morte súbita do lactente.

Crescimento e desenvolvimento

O crescimento dos gémeos é semelhante ao de qualquer criança de gestação única. Os gémeos dizigóticos poderão apresentar um crescimento diferente um do outro na adolescência, pois o desenvolvimento pubertário pode ser desfasado, tanto mais se os gémeos forem de sexos diferentes.

O desenvolvimento dos gémeos de baixo risco é também semelhante ao da criança única, com excepção da linguagem. A conhecida linguagem silenciosa dos gémeos, também designada por criptofasia, parece envolver cerca de 40% dos casos; é mais frequente em gémeos monozigóticos e consiste na comunicação que se estabelece intra-par, podendo haver palavras acidentais, apenas reconhecidas pelo outro.

Esta situação resulta do facto de cada gémeo ter como modelo o seu irmão gémeo, com uma linguagem tão pobre como a dele; por isso, a linguagem de ambos vai-se modificando, ao ponto de se tornar irreconhecível para os outros, e apenas perceptível por ambos. Isto não acarreta qualquer problema, desde que os gémeos desenvolvam em simultâneo uma linguagem adequada à sua idade.

Entre os gémeos com antecedentes de problemas mais complicados (gestação em idade materna tardia, concepção assistida por técnicas mais invasivas, multigemelaridade de alto grau, complicações médicas da gravidez, monocorionicidade, transfusão feto-fetal, morte fetal de um dos gémeos, grande prematuridade, gestação de termo, etc.) o risco de paralisia cerebral é grande.

Tal risco em gémeos, em comparação com recém-nascidos de gestação simples, varia, sendo cerca de 4-9 vezes maior. De tal hipotética mas provável circunstância, os putativos progenitores deverão ser informados pela equipa técnica de concepção assistida a quem recorrem, no contexto de diagnóstico de gestação gemelar.

A educação dos gémeos tem algumas particularidades, devendo a individualidade e a privacidade ser respeitadas, procurando que cada criança tenha uma identidade própria e saiba funcionar de forma autónoma.

Nesta perspectiva, é fundamental que os pais entendam que os gémeos poderão manifestar um padrão de neurodesenvolvimento não necessariamente sobreponível. Por isso, é fundamental procurar proporcionar-lhes uma atenção e oportunidades individualizadas.

Uma das questões frequentemente colocadas pelos pais quando os gémeos entram para a escola é se ambos devem ou não frequentar a mesma turma. Por razões práticas, tem sido habitual os gémeos ficarem na mesma escola, mas deve ser evitado que sejam colocados na mesma sala de aula.

Há, no entanto, situações especiais, em que os gémeos não estão preparados para ficar afastados quando entram para a escola; por isso, é necessário que a separação se faça de modo gradual.

BIBLIOGRAFIA

Asztalos EV, Hannah ME, Hutton EK, et al. Twin Birth Study: 2-year neurodevelopmental follow-up of the randomized trial of planned cesarean or planned vaginal delivery for twin pregnancy. Am J Obstet Gynecol 2016; 214: 371.e1 – 371.el9

Barrett JF. Twin delivery: method, timing, and conduct. Best Pract Res Clin Obstet Gynecol 2014

Blickstein I. Do multiple gestations raise the risk of cerebral palsy? Clin Perinatol 2004; 31: 395-408

Bryan E. Preparing for twins and triplets. London: Multiple Births Foundation, 2006

Bryan E. Feeding twins and more. London: Multiple Births Foundation, 2007

Bryan E. How to get twins (or more) to sleep? London: Multiple Births Foundation, 2007

Cleary-Goldman J, DÁlton ME, Berkowitz RL. Prenatal diagnosis and multiple pregnancy. Semin Perinatol 2005; 29: 312-320

Cordero I, Franco A, Joy SD. Monochorionic monoamniotic twins: neonatal outcome. J Perinatol 2006; 26: 170-175

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadephia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Moise KJ Jr, Dorman K, Lamvu G, et al. A randomized trial of amnioreduction versus septostomy in the treatment of twin-twin transfusion syndrome. Am J Obstet Gynecol 2005; 193: 701-707

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Pearn J. Bioethical issues in caring for conjoined twins and their parents. Lancet 2001; 357: 1968

Pharoah PO. Twins and cerebral palsy. Acta Paediatr (Suppl) 2001; 436: 6-10

Rossi AC, D’Addario V. Twin-twin transfusion syndrome. Minerva Ginecol 2009; 61: 153-165

Tong S, Vollenhoven B, Meagher S. Determining zygosity in early pregnancy by ultrasound. Ultrasound Obstet Gynecol 2004; 23: 36-37

Topp M, Huusom LD, Langhoff-Roos J, Delhumeau C, Hutton JL, Dolk H. On Behalf of the SCPE Collaborative Group. Multiple birth and cerebral palsy in Europe: a multicenter study. Acta Obstet Gynecol Scand 2004; 83: 548-553.

Senat MV, Deprest J, Boulvain M, at al. Endoscopic laser surgery versus serial amnioreduction for severe twin-to-twin transfusion syndrome. NEJM 2004; 351: 136-144

Steer P. Perinatal death in twins. BMJ 2007; 334: 545-546

Virella D, Folha T, Andrada MG, Gouveia R, Calado E, et al. ,Vigilância Nacional da Paralisia Cerebral aos 5 Anos de Idade. Crianças nascidas entre 2001 e 2007. Lisboa: Federação FAPPC, Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral, 2016

PREMATURIDADE

Definições

É definido recém-nascido pré-termo todo aquele cujo parto se verifica antes das 37 semanas de gestação completas (menos de 259 dias) contadas a partir do 1º dia da última menstruação. A idade de gestação pode calcular-se de diversos modos, entre eles: contando o tempo a partir da data do primeiro dia da última menstruação (método que comporta probabilidade de erro ~ 1 a 2 semanas); por ecografia fetal (método que comporta probabilidade de erro ~ 3 a 6 dias); e por métodos clínicos estruturados do exame físico do próprio RN, os quais integram um conjunto de parâmetros morfológicos e neurológicos (por ex. método de Ballard, abordado anteriormente).

A noção de RN pré-termo engloba um grupo muito heterogéneo, quer no que respeita à grande variabilidade: a) do peso (< 1.000 g ou baixo peso extremo, < 1.500 g ou muito baixo peso, < 2.500 g ou baixo peso); b) da idade gestacional (entre 22 a 36 semanas); c) da relação peso/idade gestacional, traduzindo o comportamento do crescimento fetal, a qual pode ser adequada, deficiente ou restrita, e excessiva.

Actualmente, segundo a OMS e peritos internacionais, são considerados os seguintes subgrupos de idade gestacional em RN pré-termo, em semanas: 22-27 à pré-termo extremo; 28-31 à muito pré-termo; 32-36 à pré-termo moderado; 34-36 à pré-termo tardio.

A OMS recomenda que se incluam apenas os nados-vivos. Contudo, de acordo com os peritos, a inclusão dos nados-mortos somente contribuirá para modificação significativa dos números nos países em desenvolvimento.

Estes conceitos implicam a utilização de tabelas e curvas de crescimento utilizadas na prática clínica corrente, às quais se fez referência no capítulo sobre Introdução à Neonatologia.

Muitas vezes utiliza-se o termo de prematuro como sinónimo de pré-termo. De facto, sob o ponto de vista da linguística os termos são sinónimos; no entanto, hoje em dia, e por razões históricas, há a tendência para considerar a designação de pré-termo como mais correcta uma vez que, segundo a “designação mais antiga, “prematuro” era todo e qualquer RN com peso de nascimento < 2.500 gramas. No entanto, considera-se correcto utilizar o adjectivo derivado de prematuro para a designada situação clínica inerente: prematuridade.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com dados do INE e do Registo de RN de Muito Baixo Peso da Secção de Neonatologia da SPP, a incidência actual de prematuridade é cerca de 8,2% (dados de 2018). Dum modo geral, a referida incidência por país é tanto maior quanto menor o desenvolvimento socioeconómico; ou seja, países como a Índia e Brasil têm incidências ~ 20%. Nos EUA, país com largas assimetrias sociais, ronda o valor de 12%.

A estratificação dos RN pré-termo em subgrupos de idade gestacional e/ou de peso conduz necessariamente à noção de limite de viabilidade (definido como a idade gestacional a partir da qual a criança se poderá adaptar à vida extrauterina independentemente da idade de sobrevivência e do prognóstico a médio e longo prazo). O limite de viabilidade é abordado doutro modo por alguns neonatologistas e pediatras do desenvolvimento, os quais consideram tal conceito ligado à possibilidade de crescimento e desenvolvimento normais. Ou seja, trata-se de questão polémica, com implicações éticas.

Efectivamente, com o desenvolvimento da investigação em diversas áreas (farmacologia pré e pós-natal, bioquímica, biofísica, electrónica, etc.) tem sido possível, ao longo dos anos, um conhecimento cada vez mais profundo da fisiopatologia da prematuridade, o que tem permitido taxas de sobrevivência cada vez maiores; isto é, sobrevivem cada vez mais crianças com peso e idade gestacional cada vez mais baixos (nalguns centros com pesos de nascimento ~ 380 gramas e idades gestacionais ~ 21/22 semanas), o que poderá ter repercussões pejorativas sobre o desenvolvimento e qualidade de vida.

Nas últimas três décadas a taxa de sobrevivência de RN pré-termo de muito baixo peso aumentou muito nos países industrializados, designadamente nos Estados Unidos, Canadá, Japão e países do Norte da Europa; com efeito, nalguns destes países têm sido relatadas taxas de sobrevivência de 68% em RN com 23 e 24 semanas gestacionais, de 80% com 25 semanas, e de 91% com 28 semanas.

Em Portugal, onde se registaram progressos assinaláveis na assistência perinatal sobretudo nos últimos vinte anos – a que foi feita referência no Capítulo 1 – registaram-se, no ano de 2000, taxas de sobrevivência de ~ 25% em RN de 24 semanas, de ~ 80% em RN de 28 semanas, e de ~ 90% em RN de 32 semanas. Considerando o parâmetro peso, no mesmo ano, a taxa de sobrevivência em RN com peso de nascimento < 1.000 gramas foi ~ 60%.

Prognóstico

Estudos epidemiológicos internacionais relatam, como sequelas de prematuridade, prevalência de paralisia cerebral oscilando entre 10% e 15%, dificuldade escolar em cerca de 30% a 50% dos casos, perturbações associadas a défice de atenção e hiperactividade em cerca de 25%-30%, e perturbações psiquiátricas em cerca de 20% a 30%.

No nosso País, de acordo com os resultados do Grupo de Estudo do Recém-Nascido de Muito Baixo Peso da SNN/SPP, em 3099 sobreviventes ex-pré-termo aos 4 meses de idade foram apuradas sequelas de grau variável em 20% dos casos; os tipos de sequelas mais frequentemente identificadas foram as neurológicas (~ 57%), oftalmológicas (~ 31%), respiratórias (~ 28%) e digestivas (~ 8%).

Em síntese, os RN pré-termo evidenciam uma diversidade de problemas clínicos que exigem diagnóstico atempado e assistência em unidades de cuidados especiais ou intensivos, integradas em centros hospitalares com recursos humanos e técnicos (Hospitais de Apoio Perinatal Diferenciado/ HAPD) fazendo parte duma rede de cuidados regionalizados, englobando os cuidados primários/unidades de saúde familiar/centros de saúde, e os Hospitais de Apoio Perinatal (HAP).

Prevenção

Cabe aos cuidados primários uma acção imprescindível no campo da prevenção da prematuridade: educação para a saúde, programação da gravidez, apoio a grupos sociais de risco em que as necessidades de saúde não estão satisfeitas, identificação precoce de factores de risco (de parto prematuro, designadamente) e transferência atempada da grávida em tais condições para os centros com mais recursos, viabilizando o parto com maior segurança.

Apesar do desenvolvimento do sistema de transporte do RN em ambulâncias com equipa médica e de enfermagem – uma realidade em Portugal – propiciando terapia intensiva “em movimento”, os estudos epidemiológicos têm demonstrado que a morbilidade e mortalidade dos RN em risco (neste caso dos RN pré-termo) é muito menor quando o parto ocorre em hospital com unidade de cuidados intensivos médico-cirúrgicos, em comparação com situações que obrigam a transporte do RN para instituição com nível de cuidados mais diferenciado.

Salienta-se, em suma, que os cuidados a propiciar por uma equipa multidisciplinar ao “produto da concepção” devem ter início antes do nascimento e continuar na fase peri-parto e pós-parto. Idealmente, os médicos que irão prestar cuidados na fase pós-parto (clínicos gerais/médicos de família, pediatras – neonatologistas) assessorados por outros profissionais, devem participar na avaliação pré-natal, assim como os obstetras e especialistas em medicina materno-fetal devem ser informados sobre a evolução pós-natal. É este o “espírito da Perinatologia”.

De referir o papel dos pais na prestação de cuidados, ainda durante a hospitalização em obediência à filosofia da humanização e da prestação de cuidados centrados na família.

Factores etiológicos e exames preditivos de prematuridade

Apesar dos progressos realizados em investigação no âmbito da medicina materno-fetal, ainda há muitas incógnitas quanto aos factores etiológicos de prematuridade, sendo que o nascimento de um RN com peso deficitário, quer por encurtamento da gravidez, quer por restrição do crescimento fetal, traduz, de facto, certo grau de incapacidade no que respeita à previsão e prevenção de tais situações.

O Quadro 1 resume os principais factores associados a parto pré-termo de acordo com os resultados de estudos acumulados ao longo de décadas. De facto, numa perspectiva de promoção da saúde, de prevenção e de estratégias de intervenção, torna-se fundamental o seu conhecimento, salientando-se que os mesmos factores podem ser relacionados: com a situação de mãe/grávida com repercussões no feto; com o sistema de saúde (acessibilidade e cuidados prestados, ou não prestados, com implicações na detecção, ou não, de factores de risco; e com o nível do sistema socioeconómico em que os cidadãos estão integrados).

QUADRO 1 – Factores etiológicos de parto pré-termo.

Factores maternos
    • Infecção (infecção por Streptococcus do grupo B, Mycoplasma, Herpes simplex, sífilis, vaginose bacteriana, VIH, corioamnionite, etc.)
    • Pré-eclâmpsia
    • Doença crónica (drepanocitose, hipertensão arterial, cardiopatia cianótica ou outra)
    • Toxicodependência
    • Idade materna (< 16 ou > 35 anos)
    • Peso e estatura deficientes
    • Deficiente progressão de peso durante a gravidez
    • Esforço/trabalho excessivo
    • Hábitos de tabaco e álcool
    • Comportamento de risco
Factores uterinos
    • Anomalias uterinas (por ex. útero bicórnio)
    • Incompetência cervical
    • Anomalias do colo uterino
Placenta
    • Placenta prévia
    • Abruptio placentae
Factores fetais
    • Doença hemolítica
    • Gravidez múltipla
    • Anomalias congénitas
    • Hidropsia não imune
    • Infecção associada ou não a corioamnionite
Miscelânea
    • Traumatismo
    • Intervenção cirúrgica
    • Ruptura prematura de membranas
    • Poli-hidrâmnio
    • Cesariana

As situações de amnionite implicam admitir, até prova em contrário, infecção fetal; por sua vez, os estudos demonstraram que a verificação de corioamnionite está associada a risco aumentado de sépsis neonatal, problemas respiratórios (por pneumonia, por défice ou destruição de surfactante, por doença pulmonar crónica, etc.) hemorragia intraperiventricular (HIPV), leucomalácia periventricular (LPV), paralisia cerebral, etc..

Como instrumento prático de detecção de factores de risco (designadamente de prematuridade) refere-se o critério de avaliação de risco pré-natal de Goodwinn modificado, aplicável no âmbito dos cuidados de saúde primários. Assim, o apuramento de pontuação ≥ 3 implicará o encaminhamento da grávida para centro com recursos mais diferenciados (HAP ou HAPD).

Em 2020, os especialistas de medicina materno-fetal e perinatologistas dispõem dum conjunto de exames complementares sofisticados que, acrescentando valor ao grau de previsão de parto pré-termo, mesmo nos casos de gravidez assintomática e gemelar, permitem, por outro lado, programar e executar certas intervenções que podem minorar o risco. Trata-se de exames preditivos.

Citam-se sucintamente os seguintes:

  • Ecografia transvaginal para medição do comprimento cervical (o comprimento cervical encurta com a idade gestacional);
  • Biomarcadores: fibronectina fetal (fFN), marcadores inflamatórios/citocinas, como a IL-6 e IL1B;
  • Estudo do microbioma vaginal;
  • Estudo da alfa-macroglobulina placentar (PAMG-1);
  • Estudo do PIGFBP-1 (phosphorylated insulin-like growth factor binding protein 1), etc..

A combinação dos resultados dos biomarcadores com o valor do comprimento do pescoço contribuir para o incremento da eficácia preditiva.

Particularidades da fisiologia do RN pré-termo e implicações clínicas

O RN pré-termo constitui um exemplo paradigmático de RN de risco dependente, sobretudo, da imaturidade dos órgãos e das baixas reservas energéticas.

Como particularidades fisiológicas do RN pré-termo que estão na base, afinal, dos problemas clínicos clássicos e das possíveis sequelas, citam-se as principais:

  • Pulmão imaturo com défice da cartilagem dos pequenos brônquios e imaturidade dos sistemas produtores de surfactante pulmonar condicionando diminuição da capacidade residual funcional;
  • Hipodesenvolvimento muscular com hipotonia;
  • Caixa torácica de consistência diminuída por incompleta ossificação das costelas;
  • Maior resistência da via aérea ao fluxo aéreo (por menor calibre da via aérea);
  • Risco aumentado de infecção grave pela imaturidade do sistema imunológico em diversas vertentes;
  • Imaturidade dos mecanismos homeostáticos levando a vulnerabilidade no equilíbrio hidroelectrolítico e na termorregulação;
  • Diminuição da actividade reflexa e da coordenação motora (sucção-deglutição) dificultando a alimentação;
  • Imaturidade de diversos sistemas enzimáticos (por ex. antioxidantes, da glicogenólise, da gluconeogénese, etc.) com risco elevado, nomeadamente de lesões teciduais oxidantes e alterações metabólicas;
  • Imaturidade do sistema nervoso central (SNC);
  • Imaturidade da autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral.

Tendo sido abordado anteriormente o conceito de viabilidade, caberá referir, a propósito de desenvolvimento do SNC, que após a 24ª semana verifica-se um incremento do processo de organização estrutural traduzido pelo desenvolvimento das sinapses, diferenciação de dendritos e axónios, e apoptose (morte celular programada). O “pico” de desenvolvimento coincide com período crítico ou de maior vulnerabilidade às noxas ou factores potencialmente “agressivos”.

Como exemplo de possíveis noxas é fundamental citar o papel potencialmente lesivo do ambiente das unidades de cuidados intensivos, tipificado, por exemplo pelas técnicas invasivas que originam dor.

Com efeito, está demonstrado que experiências repetidas de dor originam diversos tipos de respostas fisiológicas em vários órgãos; ao nível do SNC, um dos efeitos é a libertação de neurotransmissores excitatórios com efeito neurotóxico actuando nas células, alterando a sua estrutura, isto é, lesando-as.

As áreas mais vulneráveis do encéfalo são o cerebelo e o lobo frontal (com períodos críticos cerca da 31-32 semanas), a estrutura designada por placa subcortical (com período crítico entre as 22 e 36 semanas), os gânglios da base, e o hipocampo. Como consequências futuras poderão surgir alterações motoras, problemas cognitivos, de comportamento e de atenção.

A imaturidade do SNC do RN pré-termo determina uma diminuição das capacidades autonómicas e de autorregulação, traduzida por maior dificuldade de resposta a situações de estresse e a estímulos adversos do meio ambiente com repercussões na homeostase e, por sua vez, no próprio desenvolvimento do SNC.

No que respeita à imaturidade e desenvolvimento sensoriais, cabe referir algumas especificidades que implicam determinadas intervenções nas unidades onde os RN pré-termo estão hospitalizados, a que adiante se fará referência:

  • O feto crescendo em ambiente intrauterino não está exposto à luz, sendo que a maturação do sistema visual se processa numa fase tardia da gestação; o feto-pré-termo, assumindo a vida extrauterina por gravidez encurtada é, pois, exposto à luz em condições/período etário de desenvolvimento de maior vulnerabilidade;
  • O feto, relativamente protegido do ruído externo, escuta predominantemente a voz e os batimentos cardíacos maternos; tem capacidade para responder activamente aos sons a partir da 25ª semana e, a partir da 32ª semana tem capacidade de resposta de “atenção “ ou de “alerta”; o feto assumindo a vida extrauterina após gravidez encurtada, é confrontado de modo abrupto nas unidades onde é hospitalizado com ruído de elevada intensidade.

Principais problemas clínicos no RN pré-termo

Os principais problemas clínicos surgidos no RN pré-termo podem ser divididos pela sua génese em função de órgãos e sistemas. Procede-se a uma enumeração sucinta dos mesmos, tendo em conta que a abordagem mais aprofundada de alguns deles é feita noutros capítulos.

Respiratórios

Os problemas respiratórios mais típicos da prematuridade são:

  1. Depressão perinatal no pós-parto por deficiente adaptação extrauterina;
  2. DMH por imaturidade pulmonar;
  3. DBP;
  4. Imaturidade dos mecanismos de automatismo respiratório, particularmente para a apneia decorrente de processo inflamatório/infeccioso do corpo carotídeo com consequente alteração da sensibilidade do mesmo aos estímulos a que está sujeito.

Seguidamente é dada ênfase à apneia.

Apneia

A chamada apneia do RN pré-termo é uma situação clínica surgindo em episódios de frequência variável, caracterizada por pausas dos movimentos respiratórios durante mais de 20 segundos, acompanhadas de alterações fisiológicas como cianose e bradicárdia (ou durante menos de 20 segundos associadas às referidas alterações).

De acordo com a verificação, ou não, de fluxo de ar nas vias respiratórias, a apneia do pré-termo classifica-se em 3 tipos:

1) apneia central, em que se verifica simultaneamente interrupção dos movimentos respiratórios e do fluxo de ar; pode surgir, por ex., por imaturidade do centro respiratório ou por lesão do SNC;

2) apneia obstrutiva, resultante de obstrução das vias respiratórias (por ex. por colapso das vias respiratórias face à fraqueza muscular das mesmas, por secreções, etc.), o que origina interrupção do fluxo de ar, continuando a verificar-se movimentos de expansão e retracção torácicos;

3) apneia mista, mais frequente, e surgindo em cerca de 50%-70% dos casos em que, para além dos anteriormente citados dois mecanismos [1) e 2)], outros factores etiológicos poderão estar presentes: anemia, alterações metabólicas, infecção, etc..

No âmbito do diagnóstico diferencial, para além da observação clínica cuidadosa e análise dos factores possivelmente implicados, torna-se fundamental observar (idealmente em simultâneo, mas nem sempre possível, o traçado cardiorrespirográfico (monitorização da frequência cardíaca e respiratória concomitantemente com a oximetria de pulso – SpO2) e determinação do CO2 exalado através do capnógrafo. A monitorização respiratória pode fazer-se com o clássico monitor de movimentos respiratórios, vulgo “colchão de apneia”.

O tratamento da apneia inclui, para além do tratamento da causa, o suporte ventilatório e o uso de xantinas. As mais utilizadas são a aminofilina e a cafeína.

  1.  Aminofilina: a dose de impregnação é 5-6 mg/kg IV ou PO; a administração IV faz-se com auxílio de bomba de perfusão em tempo > 20 minutos; a dose de manutenção é 2 mg/kg/dose (3-4 doses diárias) IV ou PO; a administração IV deve ser efectivada através de bomba em tempo > 5 minutos. Deve vigiar-se a FC, interrompendo-se o fármaco se FC > 180/min. Deve proceder-se a doseamento sérico mantendo níveis ~ 7-10 mcg/mL. Se o nível for baixo, deve administrar-se +1 mL/kg para obter incremento de +2 mcg/mL. Manifestações de toxicidade, para além da taquicárdia, incluem arritmia, convulsões e hemorragias intestinais;
  2. Citrato de cafeína: a dose de impregnação é 20 mg/kg IV ou PO; a dose de manutenção, a iniciar 24 horas após a dose de impregnação, é 5-12 mg/kg IV ou PO, sendo que se deve proceder a minibolus inicial em > 10 minutos, de 5 mg/kg/dose, aumentando-se de 72 em 72 horas, +1 mg/kg/dia até se atingir máximo de 12 mg/kg/dia.

Dadas as repercussões da hipoxémia e hipercápnia resultantes dos episódios de apneia, entre outras, existe risco de lesão do SNC em função da duração e frequência dos mesmos.

Uma nota sobre os resultados de estudos demonstrando o papel benéfico da música nos padrões de sono, na tolerância alimentar e nos sinais vitais.

Intestinais e nutricionais

O problema principal é a enterocolite necrosante (ECN), tópico abordado anteriormente, em capítulo próprio. Por outro lado, as especificidades maturativas do sistema digestivo comportam maior risco de problemas nutricionais.

Renais

O problema principal diz respeito à lesão renal aguda (LRA), descrita anteriormente na Parte XIX, sobre Nefro-Urologia.

Cardiovasculares

Os problemas principais podem ser sistematizados do seguinte modo:

Persistência do canal arterial (PCA) ou persistência do ductus arteriosus (PDA)

No RN pré-termo principalmente no RNMBP existe risco elevado de PCA sendo que vários estudos indicam taxas superiores a 50% em RN com peso de nascimento inferior a 800 g. A gravidez encurtada e a síndroma de dificuldade respiratória constituem os dois factores etiológicos mais importantes: nestas situações, existe resistência vascular pulmonar aumentada, respectivamente por hiperplasia da musculatura arterial pulmonar e por PaO2 reduzida, do que resulta o não encerramento, estabelecendo-se um shunt esquerda (E) → direita (D). O volume de ejecção do ventrículo esquerdo aumenta proporcionalmente ao grau do shunt E → D pelo canal arterial, com consequente dilatação e aumento da pressão da aurícula e ventrículo esquerdos e, secundariamente, descompensação cardíaca e edema pulmonar (ver capítulo próprio na Parte XXII sobre Cardiologia). Salienta-se a este propósito que:

  • o tono intrínseco do ductus no pré-termo em relação ao RN de termo evidencia débil capacidade contráctil devido à imaturidade das isoformas da miosina do músculo liso;
  • no processo de maturação do ductus verifica-se a influência de determinados genes;
  • no RN pré-termo as concentrações séricas de prostaglandinas E2 são mais elevadas do que no RN de termo, contribuindo para manter a permeabilidade do ductus naquele após o nascimento.

As manifestações clínicas que levantam a suspeita de PCA no RN pré-termo são, a partir do 4º-5º dia de vida: pulsos femorais amplos, precórdio hiperactivo, sopro sistólico ou contínuo (subclavicular esquerdo, por vezes com irradiação para o dorso), bradicárdia, crises de apneia e aumento das necessidades ventilatórias.

O diagnóstico deve ser confirmado por ecografia cardíaca com doppler. O tratamento consiste na restrição hídrica (suprimento hídrico não superior a 120 ml/kg/dia) e, caso não haja contra-indicação, ibuprofeno (dose inicial de 10 mg/kg IV, seguindo-se 5 mg/kg IV 24 e 48 horas após a dose inicial).

O ibuprofeno, evidenciando menor probabilidade de disfunção renal, menor repercussão sobre o débito sanguíneo na mesentérica, maior eficácia na autorregulação do débito sanguíneo cerebral e permitindo o encerramento em > 80% dos casos de ductus patente no RNMBP, oferece, pois, vantagens relativamente à indometacina, pelo perfil farmacológico mais seguro.

 Pode-se, contudo, em alternativa continuar a utilizar esta última com a seguinte posologia: 0,2 mg/kg/dose de 12-12h no total de 3 doses; e 0,1 mg/kg/dose de 24-24h no total de 6 doses no RN com < 1.000 g). O seu emprego implica precaução e vigilância clínica e laboratorial, pela possibilidade de disfunção hepática e renal, assim como de hemorragia digestiva.

Nos casos de PCA hemodinamicamente significativa sem resposta às medidas anteriores, há indicação para o encerramento cirúrgico-laqueação.

A questão do tratamento cirúrgico (laqueação) versus tratamento conservador é hoje matéria de debate entre os especialistas, dado que em determinados estudos se demosnstrou a associação de laqueação do ductus a maior risco de doença pulmonar crónica, de retinopatia e de alterações neurossensoriais.

Nos primeiros 5 dias de vida em RN pré-termo, a determinação sérica seriada do BNP (péptido natriurético do tipo B) constitui um biomarcador útil para definir a estratégia terapêutica nas situações de ductus arteriosus hemodinamicamente significativo. Determinados centros utilizam os seguintes critérios- “picos” pelas 24-48 horas de vida: se ~ 250 pg/mL à indicação de tratamento médico; se ~ 2.000 pg/mL à indicada laqueação cirúrgica.

Hipertensão arterial

Para fins práticos considera-se hipertensão (sistólica/diastólica), respectivamente: > 100/70 mmHg no RN de termo; e > 90/60 mmHg no RN pré-termo (0-7 dias). Tal situação pode constituir complicação do emprego de certos fármacos, de cateterismo umbilical ou de displasia broncopulmonar (DBP).

Hipotensão arterial

Mais frequente do que a hipertensão arterial, pode ser secundária a hipovolémia, disfunção cardíaca (por vezes associada a PDA), hipoxémia ou infecção sistémica, levando a vasodilatação. Em geral, considera-se como limite inferior de normalidade da pressão média durante o 1º dia pós-natal, o valor igual à idade gestacional em semanas. Como regra, pelo 3º dia, > 90% dos RN pré-termo com idade gestacional < 26 semanas têm uma pressão média > 30 mmHg.

Neurológicos

Os problemas neurológicos hemorragia intraperiventricular/HIPV e leucomalácia periventricular/LPV) são abordados adiante, em capítulos próprios.

Hematológicos

Os principais problemas hematológicos incluem a anemia e a hiperbilirrubinémia. (ver adiante)

Oftalmológicos

O principal problema oftalmológico associado à prematuridade – retinopatia – designadamente a RN com < 1.500 gramas e < 32 semanas, foi abordado na Parte XXVI, em capítulo próprio, “Doenças da retina”.  

Regulação térmica

Os RN pré-termo são especialmente susceptíveis à hipotermia e hipertermia. Este tópico foi analisado anteriormente, nesta Parte XXXI, no âmbito do capítulo sobre “Adaptação fetal à vida extrauterina”.

A propósito da regulação térmica, é importante definir o conceito de ambiente térmico neutro (ou de termoneutralidade): o ambiente com variação de temperatura tal que a temperatura corporal central/interior é mantida dentro da normalidade, com uma taxa metabólica mínima (medida pelo consumo de oxigénio). Esta zona de termoneutralidade pode variar com a idade gestacional, a idade pós-natal, o tamanho corporal e com a circunstância de o RN estar ou não vestido.

Cuidados ao RN pré-termo (RNPT) de muito baixo peso (MBP)

Bloco de partos

Na sequência do que foi descrito a propósito dos cuidados gerais a prestar ao RN, nesta alínea são focados aspectos particulares da assistência ao RN PT de MBP.

No pressuposto da vigilância pré-natal desejável, identificando risco de parto pré-termo, idealmente a mesma deverá realizar-se num hospital de apoio perinatal diferenciado (HAPD), local onde existem condições logísticas, técnicas e humanas (equipa multidisciplinar especializada e unidades de cuidados intensivos, quer neonatais, quer para a puérpera). Tal pressupõe transferência da grávida (reitera-se esta estratégia de grande importância) em tempo oportuno para a referida instituição (transporte in utero). Continua actual uma frase muito expressiva que traduz esta filosofia: “A melhor incubadora de transporte é o útero materno”.

Os progenitores deverão ser informados sobre a situação clínica materno-fetal e, também em condições ideais desejáveis, deverá ser-lhes propiciada uma visita prévia ao referido hospital de acolhimento.

Considerando a elevada probabilidade de mais difícil adaptação à vida extrauterina e risco elevado de asfixia, o parto implica a assistência por equipa de neonatologistas treinados em intensivismo, obedecendo ao lema da “execução de manobras cuidadosas e não traumatizantes em ambiente de termoneutralidade”.

De acordo com estudos recentes, no pré-termo com < 28 semanas, estando indicados todos os procedimentos no pós-parto imediato já descritos anteriormente com a finalidade de evitar as perdas térmicas, os peritos recomendam que em tal circunstância não se proceda à secagem da pele.

No que respeita à laqueação do cordão umbilical, prevendo a eventualidade de ulterior cateterismo de vasos, deverá providenciar-se um coto mais comprido do que o habitual.

De acordo com o capítulo atrás referido sobre reanimação na sala de partos, dado que na maioria das vezes os RN pré-termo no pós-parto imediato não necessitam de reanimação, mas de estabilização, os peritos recomendam que seja aplicada a norma quanto ao tempo de laqueação: não inferior à idade de 1 minuto; com efeito, diferindo o tempo da laqueação tem também outras vantagens como: garantir maiores reservas de ferro, pressão arterial mais estável, diminuição da necessidade de utilização de inotrópicos, assim como de transfusões de sangue. Chama-se, entretanto, a atenção para o facto de a clampagem do cordão umbilical, antes do primeiro movimento respiratório, poder originar bradicárdia e diminuição do débito cardíaco.

Estando a equipa da UCIN previamente avisada, o transporte do RN para a mesma, após estabilização clínica, deverá ser feito em incubadora de transporte adequada depois de o mesmo ser mostrado aos progenitores, devidamente informados sobre a situação.

Admissão na UCIN

Após admissão na UCIN procede-se, sob fonte de calor, à aplicação de eléctrodos para monitorização cardiorrespiratória e de temperatura cutânea, braçadeira de esfigmomanómetro electrónico para determinação não invasiva de pressão arterial, de terminais “em pinça” de oxímetro de pulso para avaliação não invasiva da oxigenação (saturação da Hb em O2/SpO2) e à instalação de acesso venoso periférico em diversas modalidades (cãnula, cateter percutâneo, etc.), quer para fluidoterapia, quer para colheita de sangue para análises em geral.

De referir, no entanto, que a tendência actual, com o apoio das novas tecnologias, é utilizar tanto quanto possível, métodos não invasivos. Para a avaliação da gasometria por método não invasivo pode utilizar-se o monitor por método transcutâneo através de eléctrodos sobre a pele para determinação da pressão transcutânea de O2 e CO2. Com o desenvolvimento do oxímetro de pulso, o método transcutâneo para PO2 e PCO2 tem sido progressivamente menos usado.

Em circunstâncias especiais está indicado o cateterismo dos vasos umbilicais: da veia, para fluidoterapia ou colheita de sangue para análises em geral, e/ou de uma das artérias para colheita de sangue e gasometria e/ou determinação contínua da pressão arterial por método invasivo. O cateterismo arterial umbilical não é considerado procedimento urgente mas, quando incicado, é aconselhável nas primeiras horas de vida).

Dos procedimentos iniciais faz ainda parte a colocação de saco colector de urina para cálculo da diurese (ou como alternativa – fralda cujo peso se conhece – que é periodicamente pesada para dedução do débito urinário).

Os RN com bom estado geral, sem dificuldade respiratória e com peso de nascimento > 2.000 gramas, poderão eventualmente ser mantidos em berço aquecido durante 6-8 horas com monitorização da frequência respiratória, cardíaca e oximetria de pulso (evitando SpO2 < 90%).

Nos casos de RN com peso de nascimento < 2.000 gramas, com sinais evidentes de doença (mau estado geral, choque, dificuldade respiratória, etc..) deverão ser colocados em incubadora com temperatura ambiente adaptada ao peso, servocontrolada ou não, ou em berços sofisticados de cuidados intensivos sob fonte de calor servocontrolada. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Temperatura recomendável do micro-ambiente da incubadora.

Peso (gramas)Temperatura
< 100035-36 ºC
1000-149934-35 ºC
1500-249933-34 ºC
2500-349932-33 ºC
≥ 350031-32 ºC


Para monitorização da temperatura cutânea do RN, deve ser aplicado sensor sobre a pele do RN. Dependendo do estado clínico (por ex. em situações de choque), poderá estar indicada a aplicação de dois eléctrodos para avaliação da temperatura diferencial: um, ao nível do hipocôndrio direito/área hepática, representativo da temperatura central; e outro, na planta do pé, afastado do primeiro, representativo da temperatura periférica.

Nota sobre temperatura cutânea servocontrolada: através de um equipamento sofisticado de software implicando conexão entre fonte de calor e sensor aplicado sobre a pele, a fonte de calor poderá variar automaticamente a intensidade da energia para garantir a temperatura cutânea desejada.

Nos berços sofisticados com sistema de aquecimento radiante superior (com a designação corrente de incubadoras “abertas”) ou nas incubadoras “convencionais”, possuindo sistema de temperatura servocontrolada: em função da temperatura que se deseja para a pele do RN (com sensor aplicado), e programada previamente, é gerada automaticamente a temperatura do microambiente que está indicada.

Estadia na UCIN

O processo clínico de todo e qualquer RN saudável (acompanhando a mãe ou não, pré-termo ou não), admitido em qualquer unidade neonatal, engloba sempre as folhas de registo da história clínica (anamnese, exame objectivo e diário clínico), folha de registo de ocorrências da equipa de enfermagem e o Boletim de Saúde Infantil que acompanhará a criança após a alta.

No caso do RN pré-termo admitido em UCIN, para além dos registos mencionados, existem outros mais específicos, destacando-se os seguintes: – Folha de registo de parâmetros de cuidados intensivos pela equipa de enfermagem;

  • Folha de prescrição médica;
  • Gráfico de curvas de crescimento intrauterino;
  • Gráfico de curvas de percentis para vigilância a longo prazo, com utilidade em RN com peso de nascimento < 1.000 gramas, para avaliação do peso, comprimento e perímetro cefálico, em função da idade pós-concepcional segundo Fenton (Figura 1);
  • Gráfico de evolução ponderal para RNMBP, AIG e LIG, segundo Ehrenkranz (Figura 2);
  • Folha de assistência ventilatória;
  • Folha de avaliação da idade gestacional (método de Ballard).

Particularidades na assistência ao ex-RN pré-termo na UCIN

De facto, apesar dos progressos quanto a diminuição relativa de sequelas motoras em crianças ex-RN pré-termo submetidos a terapia intensiva, regista-se uma elevada incidência doutro tipo de sequelas, nomeadamente de problemas de escolaridade, comportamentais e de atenção, relacionáveis com noxas ambientais durante o período neonatal.

Considerando determinados aspectos da fisiologia do RN pré-termo atrás mencionados, é importante reforçar a importância da modificação de certas rotinas, tentando que certos procedimentos e atitudes sejam minimamente invasivos; o objectivo último é promover um neurodesenvolvimento global harmónico. Eis alguns exemplos práticos:

  • A UCIN clássica é um ambiente muito iluminado, agradável como ambiente de trabalho para os profissionais, mas potencialmente lesivo para o desenvolvimento adequado do RN pré-termo. Por isso, é recomendável utilizar uma cobertura de pano sobre a incubadora para reduzir a intensidade luminosa e reduzir a intensidade da luz de toda a unidade no sentido de tentar criar a alternância do ciclo dia-noite a que o RN se irá habituando, susceptível de, por exemplo, aumentar o período de sono nocturno e, consequentemente, proporcionar ganho ponderal mais favorável;
  • A UCIN clássica é também um ambiente com níveis de ruído muito elevados: para além do ruído de fundo, há que ter em conta períodos em que o mesmo aumenta – visitas médicas, admissão de doentes, passagem de turno da equipa de enfermagem, etc.. Assim, há que reduzir o ruído que cada componente da equipa “produz” involuntariamente. Tal implica, contudo: esforço de colaboração por toda a equipa, necessidade de formação, sensibilização para o problema e condições logísticas especiais (designadamente amplo espaço das unidades, construídas com material que absorva o ruído).

A atitude sistemática de poupar o RN (e especialmente o RN pré-termo) a estímulos desnecessários e a estresse poderá contribuir para um neurodesenvolvimento mais harmónico (continua actual o aforismo “primum non nocere”). Tal atitude pode ser tipificada no programa integrado conhecido pela sigla NIDCAP (Newborn Individualized Developmental Care Assessment Program) desenvolvido por Als em 1984. Trata-se de medidas simples de cuidados individualizados com o objectivo essencial de reduzir o manuseamento intempestivo e estimular a participação dos pais nos cuidados.

FIGURA 1. Valores de referência quanto a evolução ponderal para as primeiras semanas pós-natais. (Segundo Ehrenkranz RA, 1999)

FIGURA 2. Valores de referência para curto prazo, após alta hospitalar. (Segundo Fenton TR, 2003)

São descritos (e alguns, reiterados) a seguir, de forma necessariamente resumida, alguns dos aspectos genéricos deste programa:

  • Colaboração dos pais nos cuidados personalizados (nomedamente de higiene e alimentação) em sintonia com as equipas médica e de enfermagem, as quais se deverão manter estáveis para garantia de melhor relacionamento;
  • Meio ambiente calmo e tranquilo (já referido atrás);
  • Contacto pele com pele- mãe/filho precoce e prolongado sempre que as circunstâncias o permitam, no hospital e após a alta, com aleitamento materno exclusivo (procedimento que faz parte do Método Canguru);
  • Posição adequada do RN durante o sono, alimentação, banho e procedimentos tendo em vista rendibilizar as respectivas competências;
  • Necessidade de providenciar determinados apoios em certas circunstâncias tais como mudança de posição, tentativa de despertar ou tentar adormecer, início ou fim de cuidados ou procedimentos (por ex. providenciar aumento da FiO2, contenção, sucção não nutricional, etc.);
  • Organização de procedimentos ao longo das 24 horas, tentando preservar os períodos de sono, evitando multiplicação de procedimentos invasivos (por ex. reduzir, gerir, racionalizar, sempre que possível, o número de colheitas de sangue ao longo do dia);
  • Proceder a intervenções mais invasivas com o apoio de duas pessoas.

Em suma, os estudos até hoje divulgados sobre o NIDCAP aplicados ao RNMBP apontam para resultados positivos no que respeita, nomeadamente, a menor duração da oxigenoterapia, menor incidência de doença pulmonar crónica, redução da estadia hospitalar, e melhores índices de neurodesenvolvimento.

  • Antes da alta, deve proceder-se aos rastreios da audição e da anemia da prematuridade, neste último caso, com a determinação da hemoglobina e hematócrito;
  • Imediatamente antes da alta, em crianças elegíveis e durante a estação da infecção por vírus sincicial respiratório/VSR, deve proceder-se à administração de anticorpo monoclonal (palivizumab) como medida profiláctica, continuando ulteriormente o esquema de administração em regime ambulatório;
  • Dum modo geral, considera-se que a criança poderá ter alta após resolução dos problemas clínicos, com peso ~ 1.800-2.000 gramas, com incrementos estáveis de peso de cerca de 30 gramas/dia;
  • Nas crianças com peso de nascimento < 1.500 gramas ou idade gestacional < 30 semanas deve proceder-se ao exame oftalmológico para rastreio da retinopatia da prematuridade.

Notas importantes sobre o ex-RN pré-termo após a alta hospitalar  

  • Deve seguir-se o calendário vacinal aplicado a crianças nascidas de termo, pressupondo estabilidade clínica. Na prática, aos 2 meses de idade cronológica (pós-natal), independentemente do peso de nascimento ou idade gestacional. A propósito, aconselha-se a consulta do capítulo sobre Imunização – Princípios básicos, na Parte XXIX.
  • Tendo em conta que existe risco elevado de síndroma de morte súbita do lactente (SMSL) nas crianças com antecedentes de prematuridade, importa que a equipa assistencial/médico assistente esclareçam, sem alarme, mas com realismo, os pais e família, chamando a atenção, designadamente para os seguintes aspectos simples da maior relevância numa perspectiva preventiva: promover o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses, evitar a posição prona durante o sono e evitar o tabagismo.
  • Apesar de os pais da criança serem portadores de um relatório clínico sobre o período de internamento, e sendo a referida criança seguida no âmbito dos cuidados primários (por pediatra e/ou médico de família), afigura-se de grande utilidade a troca de ideias, directa e personalizada, entre o pediatra neonatologista hospitalar e o futuro médico assistente.

BIBLIOGRAFIA

Askie LM. Optimal oxygen saturations in preterm infants: a moving target. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 188-192

Als H. Newborn individualized developmental care and assessment program (NIDCAP): new frontier for neonatal and perinatal medicine. J Neonatal Perinatal Med 2009; 2: 135-147

Carrapato MRG, Pereira T, Silva C, et al. Late preterms: are they all the same? J Maternal-Fetal & Neonatal Med. https://doi.org/10.1080/14767058.2018.1527897

Carrapato MRG, Andrade T, Caldeira T. (2018): Hypotension in small preterms: what does it mean? J Maternal-Fetal & Neonatal Med 2018. DOI: 10.1080/14767058.2018.1481034

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gauda EB, Shirahata M, Mason A, et al. Inflammation in the carotid body during development and its contribution to apnea of prematurity. Respir Physiol Neurobiol 2013; 185: 120-131

Gouyon JB, Iacobelli S, Ferdynus C, Bonsante F. Neonatal problems of late and moderate preterm infants. Semin Fetal Neonatal Med 2012; 17: 146-152

Graven SN. Sound and the developing infant in the NICU: conclusions and recommendations for care. J Perinatol 2000; 20: S88-93

Herreros-Fernandez ML, González-Merino N, Tagarro-Garcia A, et al. A new tchnique for fast and safe collection of urine in newborns. Arch Dis Child 2013; 98: 27-29

Inder TE, Perlman JM, Volpe JJ (eds). Volpe’s Neurology of the Newborn. Phikadelphia: Elsevier, 2018

Jhaveri N, Moon – Grady A, Clyman RI. Early surgical versus a conservative approach for management of patent ductus arteriosus that fails to close after indometacin treatment. J Pediatr 2010; 157: 381-387

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Loewy J, Stewart K, Dassler A-M, et al. The effects of music therapy on vital signs, feeding and sleeping premature infants. Pediatrics 2013; 131: 902-918

Mine K, Ohashia A, Tsuji S, et al. B-type natriuretic peptide for assessment of haemodinamically significant PDA in premature infants. Acta Paediatrica 2013; 102: e347-e352

Moriette G, Rameix S, Azria E, et al. Naissances très prématurées: dilemmes et propositions de prise en charge. Première partie: pronostic des naissances avant 28 semaines, identification d’une zone “grise”. Arch Pediatr 2010; 17: 518-526

Muelbert M, Harding JE, Bloomfield FH. Nutritional policies for late preterm and early term infants – can we do better? Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 43-47

Neto MT. Perinatal care in Portugal: effects of 15 years of a regionalized system. Acta Paediatrica 2006; 95: 1349-1352

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Raju TNK. The late preterm birth- ten years later. Pediatrics 2017; 139(3).pii:e20163331

Rautava L, Eskelinen J, Hakkinen U, et al. Five-year morbidity among very preterm infants in relation to level of hospital care. JAMA Pediatr 2013; 167: 40-44

Rose E, Engle WA. Optimizing care and outcomes for late pre-term neonates. Curr Treat Options Peds 2017; 3: 32-43

Ruiz-Palaez JG, Charpak N, Cuervo LG. Kangaroo mother care, an example to follow from developing countries. BMJ 2004; 329: 1179-1181

Sanchez K, Morgan AT. Music therapy for neurodevelopment in hospitalised infants. Acta Paediatrica 2019; 108: 784-786 DOI:10.1111/apa.14745

The Elfin Trial Investigators Group. Lactoferrin immunoprophylaxis for very preterm infants. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2013; 98: F1-F4

Woythaler M. Neurodevelopmental outcomes of the late preterm infant. Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 54-59

Zonnenberg IA, van Dijk-Lokkart EM. Neurodevelopmental outcome at 2 years of age in preterm infants with late-onset sepsis. Eur J Pediatr 2019; 178: 673-680

ALTERAÇÕES DO CRESCIMENTO FETAL

Introdução

O crescimento fetal pode estar desviado, por excesso ou por defeito (restrição). Em qualquer das circunstâncias tal situação pode constituir um epifenómeno de patologia de etiopatogénese diversa com implicações diagnósticas e terapêuticas específicas, ou apenas representar uma variante da normalidade.

1. RESTRIÇÃO DO CRESCIMENTO INTRAUTERINO (RCIU)

Definição

A restrição do crescimento intrauterino (RCIU) – termo considerado actualmente mais adequado por muitos autores do que o anterior, de “atraso de crescimento intrauterino” – é definida no sentido lato como a perda de oportunidade de o feto atingir o respectivo potencial de crescimento. No sentido estrito, o critério de definição mais utilizado baseia-se exclusivamente no peso ao nascer: recém-nascido (RN) com peso inferior ao que corresponde ao percentil 10 para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a idade de gestação (LIG) em valores representativos da população.

Outros autores preferem utilizar como valores de corte, o percentil 5, o percentil 3, ou dois desvios-padrão abaixo da média.

Embora a condição LIG possa constituir um razoável indicador de RCIU, em rigor, os conceitos de LIG e RCIU, não são sinónimos, dado que cada situação poderá ocorrer na ausência de outra. Há recém-nascidos (RN) LIG constitucionalmente pequenos, considerados saudáveis, assim como casos de desnutrição intrauterina com inflexão da trajectória do crescimento fetal em que o peso no momento do nascimento se situa entre os percentis 3 e 97 (RN adequados para a idade de gestação, designados pela abreviatura AIG).

Nesta última circunstância, é essencial recorrer a outros indicadores de desnutrição fetal, referidos mais adiante.

Aspectos epidemiológicos e diagnóstico pré-natal

A incidência de RCIU varia, de acordo com diversos estudos epidemiológicos, entre 3% e 7% dos RN; trata-se dum problema ao qual se associa risco significativo de mortalidade e morbilidade perinatais, especialmente na ausência de diagnóstico pré-natal. O método mais fidedigno para o diagnóstico de RCIU assenta na avaliação de, pelo menos, duas avaliações da biometria fetal por ultrassonografia, sendo o perímetro abdominal o parâmetro mais sensível. A hemodinâmica avaliada por ecografia-Doppler, designadamente através de medições do fluxo nas artérias umbilical, cerebral média e uterina, reveste-se de grande utilidade no diagnóstico de insuficiência útero-placentar, o principal factor etiológico de RCIU.

Etiopatogénese e classificação

Para compreender as diferentes classificações de RCIU, é importante recordar as três fases de crescimento fetal. Na primeira, predomina a hiperplasia celular, caracterizada por rápido aumento do número de células até às 16 semanas de vida intrauterina.

Na segunda, entre as 16 e as 32 semanas de gestação, há um abrandamento da hiperplasia e um progressivo aumento to tamanho das células (hipertrofia).

Na terceira, após as 32 semanas, predomina a hipertrofia, com rápido aumento da dimensão celular.

Os dois tipos mais usados de classificação de RCIU são o etiológico e o clínico.

Pela classificação etiológica, a RCIU pode ser de origem fetal (explicável por patologia intrínseca do feto, útero-placentar), ou materna (explicável por factores extrínsecos).

A classificação clínica assenta na proporcionalidade corporal. Ou seja, a RCIU é classificada em função da “simetria” ou “assimetria” dos parâmetros do numerador e denominador de fracção em que o peso ocupa o numerador e o comprimento o denominador, por exemplo: índice peso-comprimento, índice de massa corporal e índice ponderal.

O índice ponderal de Rohrer tem sido o indicador antropométrico mais utilizado para avaliar a proporcionalidade ao nascer: [Peso (em g)/ Comprimento3 (em cm)]x100]. Este índice tem vindo a cair em desuso, porventura por incluir o comprimento elevado ao cubo; ao ser uma medição difícil de se obter com rigor, qualquer erro se amplia pelo facto de o valor estar elevado à potência.

Na RCIU simétrica, harmoniosa, ou proporcionada, tanto o peso como o comprimento estão diminuídos. Quando o peso é predominantemente afectado, a RCIU é designada assimétrica, desarmoniosa ou desproporcionada.

Esta terminologia, muito utilizada, poderá originar erroneamente a ideia de que a RCIU simétrica, harmoniosa ou proporcionada representará um processo mais “benigno”. De facto, assim não é.

Tipicamente, a RCIU simétrica está associada a patologia intrínseca do feto, como infecções intrauterinas (rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose, sífilis, paludismo, etc.), anomalias cromossómicas, síndromas dismórficas e noxas maternas actuando no feto – tabaco, álcool, cocaína, heroína e certos fármacos como o propranolol e os corticosteróides. Neste tipo de RCIU, a alteração do crescimento manifesta-se precocemente na gravidez, podendo atingir a fase de hiperplasia celular e organogénese e levar a uma redução do número total de células.

A RCIU assimétrica, mais frequente, inicia-se tardiamente na gravidez e está associada a causas maternas e útero-placentares, pré-eclâmpsia, hipertensão crónica e anomalias uterinas. Nestas circunstâncias, é frequente encontrar enfartes ou alterações microvasculares da placenta.

A desnutrição fetal aguda ocorrendo no último trimestre, em geral apenas atinge a fase de hipertrofia celular e associa-se à redução das reservas adiposa e de glicogénio, com consequente diminuição dos tecidos subcutâneo, muscular e hepático (redução do perímetro abdominal). Além do défice de suprimento de nutrientes, na insuficiência útero-placentar frequentemente coexiste menor fornecimento de oxigénio e consequente hipoxia pré- e perinatal. (Quadro 1)

Há autores, porém, que questionam a relação entre a conformação somática do RN e os factores etiopatogénicos referidos.

No Quadro 2, complemento do Quadro 1, são discriminados os factores que mais frequentemente estão associados a RCIU.

Demonstrou-se que a angiogénese, processo fundamental para o crescimento e desenvolvimento, designadamente da placenta, está alterada em múltiplas situações acompanhadas de RCIU.

Diversos estudos chamaram a atenção para o papel do factor de crescimento endotelial vascular (VEGF ou vascular endothelial growth factor) como mediador da angiogénese, o qual exerce o seu efeito através da cooperação de 2 receptores aos quais se liga: VEGFR-1 e VEGFR-2, sendo que o VEGFR-1 constitui um potente inibidor de VEGF e dum factor de crescimento placentar.

Outros estudos concluíram que a concentração sérica de VEGFR-1 solúvel está muito elevada nos RN com RCIU no 1º dia de vida, o que pode reflectir hipóxia intrauterina e disfunção placentar, traduzindo provavelmente papel importante como factor de risco de RCIU.

Recentemente tem-se demonstrado a acção deletéria de poluentes a que a grávida está exposta, tais como monóxido de carbono e certos compostos hidrocarbonados aromáticos policíclicos; os efeitos são diversos: défice de oxigenação fetal a par de estresse oxidativo, lesão do ADN, etc..

Manifestações clínicas, complicações e avaliação

À RCIU associa-se maior risco de mortalidade e morbilidade neonatais, designadamente na de tipo simétrico.

Apesar de os RN com RCIU terem maior capacidade termogénica, estão mais propensos à hipotermia pela menor espessura da gordura subcutânea.

Relativamente à conformação corporal, a RCIU de tipo assimétrico associa-se a maior risco de hipoglicémia e asfixia, enquanto a de tipo simétrico, a maior taxa de prematuridade e complicações perinatais.

A hipoglicémia constitui a principal complicação metabólica do RN com RCIU, por diminuição das reservas fetais de glicogénio e compromisso da neoglicogénese e da glicogenólise hepáticas. A hipocalcémia ocorre essencialmente em RN com RCIU e sinais de hipotrofia e/ou que sofreram asfixia perinatal.

A asfixia perinatal está intimamente relacionada com a hipoxia crónica por insuficiência útero-placentar a qual, por sua vez, pode associar-se a síndroma de aspiração de mecónio, hipertensão pulmonar e policitémia por estimulação da eritropoietina fetal.

QUADRO 1 – Tipos de restrição do crescimento intrauterino (RCIU).

 AssimétricaSimétrica
Biometria – Parâmetro afetadoPesoPeso, comprimento e perímetro cefálico
CausaExtrínsecaIntrínseca ou extrínseca
Incidência80%20%
Início na gravidezTardioPrecoce
Fase da gravidezHipertrofia celularHiperplasia celular
PatogéneseInsuficiência útero-placentar: défice de suprimento de nutrientesDiminuição do número de células
Tecidos e órgãosDiminuição do tecido adiposo, muscular e hepáticoDiminuição do encéfalo
PlacentaAlterações histológicasHistologia normal (exceto na embriopatia infeciosa)

QUADRO 2 – Factores frequentemente associados a RCIU.

Fetais
Anomalias cromossómicas, fetopatias infeciosas, síndromas malformativas, irradiação, gestação múltipla, hipoplasia pancreática, deficiência de insulina, mecanismos anti-angiogénicos, deficiência de ILGF do tipo II, VEGFR-1

Placentares
Peso e/ou celularidade deficientes, área deficiente, placentite vilosa (bacteriana, vírica, parasitária), enfartes, tumores (mola hidatiforme, corioangioma), separação placentar, síndroma de transfusão intergemelar

Maternos
Toxémia e/ou hipertensão arterial, hipoxémia (doença pulmonar, cardiopatia cianótica, altitude elevada), subnutrição (carência em macro e micronutrientes), doença crónica, drepanocitose, drogas (narcóticos, álcool, tabaquismo, cocaína, antimetabólitos).

Nos RN com RCIU pode verificar-se diminuição da absorção entérica de macromoléculas, nomeadamente de lípidos e de proteínas.

Determinados sinais clínicos indicam hipoxia pré-natal. A presença de líquido amniótico tinto de mecónio é um sinal de sofrimento fetal agudo, enquanto o líquido com aspecto de “puré de ervilha” sugere um processo mais prolongado de hipoxia intrauterina. Neste caso, é habitual o RN evidenciar sinais de dismaturidade, apresentando um aspecto “envelhecido”, pele enrugada e descamativa e olhar alerta, não condizente com o peso deficitário e o aspecto emagrecido. Tratando-se de um RN com RCIU, de termo, o mesmo evidenciará a postura típica com membros superiores e inferiores em flexão, semelhante à postura do RN de termo sem RCIU, e diversa da do RN pré-termo cujos segmentos dos membros estão em extensão. (Figuras 1 e 2)

Na RCIU simétrica devem ser procurados sinais de dismorfia:

  • Ou enquadrados em síndromas polimalformativas;
  • Ou que sugiram infecção intrauterina do grupo TORCHS. Neste caso é necessário pesquisar microcefalia, hepatosplenomegália, exantema e outros sinais biológicos.

Alguns parâmetros somatométricos podem auxiliar no diagnóstico de desnutrição fetal e prever o risco metabólico precoce. O mais fácil de avaliar é o peso, mas como foi referido, muitos RN LIG não têm patologia, enquanto outros têm peso adequado à idade de gestação e sofreram desnutrição intrauterina. Uma desproporcionalidade corporal em que o peso é afectado, mas não o comprimento, pode ser um bom indicador desta condição; a pouca espessura das pregas cutâneas e outros índices poderão ser tão bons ou melhores indicadores. Entre estes, incluem-se os valores baixos da razão perímetro braquial/perímetro cefálico, da razão peso/comprimento, e valores baixos das áreas da secção transversal do braço (áreas adiposa e braquial) calculadas a partir da prega cutânea tricipital e do perímetro braquial.

No entanto, vários autores questionam a confiabilidade da medição das pregas cutâneas no RN, a validade das áreas da secção transversal do braço e o valor da conformação corporal na previsão do risco metabólico precoce. (Figura 1)

Em comparação com os RN de equivalente idade de gestação e peso adequado, os pré-termo com RCIU têm maior risco de complicações inerentes à prematuridade. (Figura 2)

Embora haja a ideia de que o estresse a que é submetido o RN com RCIU induz a maturidade pulmonar, foi demonstrado que o RN pré-termo com esta condição tem maior probabilidade de ter doença da membrana hialina.

A maior prevalência de asfixia perinatal e consequente redistribuição do fluxo sanguíneo, hiperviscosidade por policitémia e a própria prematuridade, predispõem à enterocolite necrosante.

Outras complicações da RCIU relacionadas com a prematuridade são a sépsis, a hemorragia intraperiventricular e as sequelas neurológicas.

FIGURA 1. RN de termo com RCIU. Aspecto geral desnutrido; postura em flexão dos membros superiores e inferiores compatível com a idade gestacional. (URN-HDE)

FIGURA 2. RN pré-termo com peso de nascimento semelhante ao da Figura 1: postura dos membros inferiores em extensão, e hipotonia marcada, compatíveis com a idade gestacional. (URN-HDE)

Importância do problema e implicações futuras

Barker, especulando sobre os mecanismos que determinam a repercussão a longo prazo da desnutrição fetal, deu origem a uma teoria conhecida por “hipótese de Barker” ou “hipótese da poupança” (thrifty hypothesis). Segundo esta teoria, o feto responde à desnutrição com uma série de mecanismos de adaptação, que incluem o armazenamento de gordura, redução do metabolismo não essencial, restrição do crescimento e redistribuição do fluxo sanguíneo e nutrientes para órgãos nobres (designadamente, cérebro, coração e suprarrenais) em detrimento doutros nos quais se verificam alterações de que resultam lesões permanentes. A privação nutricional pode influenciar de modo programado o feto (ou originar, assim, uma “programação” ou “marca” no mesmo, levando mais tarde a lesões estruturais e metabólicas permanentes). Estas alterações não se tornam tão evidentes se o indivíduo, após o nascimento, continuar a crescer em ambiente nutricionalmente deficitário, representando tal ambiente a continuidade de condições que já se verificavam antes (in utero) e uma “vantagem” em termos metabólicos”, facilitando os mecanismos de adaptação do feto à vida extrauterina.

No entanto, ao ser exposto a meio nutricionalmente rico, a “programação” pré-natal torna-se inadequada e no indivíduo em causa poderá desenvolver-se tardiamente a chamada síndroma metabólica, dominada por alterações da homeostasia da glicose-insulina. Nesta síndroma, incluem-se a diabetes de tipo 2 (DT2), a doença coronária, a hipertensão arterial, o perfil lipídico aterogénico e a obesidade de predomínio troncular.

Estudos em modelos animais permitem explicar alguns mecanismos patogénicos desta síndroma. A exposição a um regime nutricional intrauterino pobre em proteína, origina no pâncreas fetal uma diminuição da proliferação das células-β dos ilhéus pancreáticos e redução da dimensão dos mesmos por défice de vascularização. A redistribuição de nutrientes também pode levar à redução permanente dos transportadores de glicose no músculo, iniciando o círculo vicioso: hiperglicémia, aumento do estímulo para produção da insulina e exaustão e apoptose das células-β pancreáticas e diminuição da expressão da insulin-like growth factor II.

Relativamente à hipertensão e doença cardiovascular, foram observadas: alterações da angiogénese; exposição do feto a níveis elevados de glucocorticóides, aumento da expressão do respectivo receptor, e estímulo para a activação do sistema renina-angiotensina; mecanismos epigenéticos, envolvendo a metilação do ADN; e doença renal por redução fetal do número de nefrónios.

Entre os mecanismos favorecendo a futura obesidade, foram descritas no feto: selecção de clones celulares associados à produção endógena de lípidos; supressão da lipólise induzida pela insulina em adipócitos malnutridos.

Na espécie humana, foi descrita alteração congénita do padrão do apetite e saciedade resultante das adaptações metabólicas referidas. Um dos factores que participam nesta programação pode relacionar-se com a grelina, péptido orexigénico cujos níveis estão aumentados em indivíduos nascidos LIG.

Existem outros efeitos não relacionados com a futura síndroma metabólica, mas também resultantes da redistribuição do fluxo sanguíneo e de nutrientes, justificando a hipocelularidade e hipoplasia de outros órgãos e tecidos, como: eventual redução da massa muscular (sarcopénia) e osteopénia; diminuição do desenvolvimento e função do timo e tecido linfóide; e maior susceptibilidade a infecções respiratórias e diarreias durante a infância, por afecção de componentes do sistema imunitário, particularmente sensíveis a défice nutricional precoce.

Nos primeiros anos de vida, é notório o hipocrescimento estaturo-ponderal na RCIU de tipo simétrico. Contudo, a médio e longo prazo, o prognóstico parece melhor. No entanto, cerca de 10% a 15% de indivíduos nascidos com RCIU não recuperam o crescimento aos 2 anos de idade, estão em maior risco de terem baixa estatura na idade adulta e poderão beneficiar de tratamento com hormona de crescimento.

Curiosamente, mulheres que nasceram com RCIU podem ter maior predisposição para gerar filhos com a mesma condição, estabelecendo-se assim um efeito transgeracional. Isto verificou-se não só em mães que sofreram desnutrição aguda, da coorte de Holandeses sujeitos a fome extrema durante a segunda guerra mundial (Dutch Famine Cohort), mas também em mães suecas de meio favorecido. Em parte, o efeito transgeracional pode dever-se às pequenas dimensões do útero e ovários, observado em adolescentes que sofreram RCIU.

2. HIPERCRESCIMENTO INTRAUTERINO

Definição

Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessivo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade de gestação e género numa curva representativa da população; tal RN é designado grande (ou pesado) para a idade de gestação (GIG).

Os RN GIG de termo são geralmente macrossómicos (ou macrossomáticos), termos que significam peso de nascimento superior a 4.000 gramas.

Aspectos epidemiológicos e diagnóstico pré-natal

Estima-se que 9% a 13% dos RN sejam GIG, condição associada a certo número de complicações no período perinatal.

Frequentemente, a condição de feto macrossómico (macrossomia) não é detectada durante a gravidez e o trabalho de parto, pelo facto de a sensibilidade e especificidade das estimativas ultrassonográficas ficarem aquém do desejado. Um dos parâmetros com maior sensibilidade diagnóstica é o perímetro abdominal.

Existem classificações, como as de White e de Pedersen, com valor prognóstico para o feto de mãe diabética.

A macrossomia é típica do RNMD, entidade clínica descrita noutro capítulo.

Etiopatogénese

Um RN GIG pode constituir manifestação de determinada patologia (como RN de mãe diabética – RNMD) e determinadas síndromas, enquadrar-se no contexto de gigantismo de início pré-natal, ou corresponder apenas uma situação de RN constitucionalmente grande/pesado, sem patologia subjacente.

Mais raramente, a condição de GIG pode associar-se à eritroblastose fetal grave, hidropisia fetal e transposição das grandes artérias.

A classificação do RN GIG, baseada no índice ponderal individualizado, veio mudar a perspectiva etiopatogénica: não se consegue determinar a causa da macrossomia em cerca de 1/3 dos RN GIG, sendo que os RNMD não representam mais do que 10% daqueles, ao contrário do que se julgava.

Manifestações clínicas e complicações

Pelas dimensões do feto, o parto por via vaginal comporta maior risco de distócia de ombros, de fractura da clavícula e dos membros, e de asfixia perinatal.

Ao RNMD associam-se intolerância alimentar, hipoglicémia, hipocalcémia, policitémia, hiperbilirrubinémia não conjugada e atraso na produção de surfactante com consequente quadro de SDR (doença da membrana hialina). Uma vez que a incidência de anomalias congénitas é significativamente superior nos RNMD, torna-se necessário proceder ao respectivo rastreio em tal circunstância (cita-se como exemplo a cardiomiopatia hipertrófica. (Figura 3)

O exame objectivo de um RN macrossómico obriga à detecção de determinadas lesões traumáticas tais como fractura da clavícula e dos membros, traumatismo das partes moles, lesão do plexo braquial e céfalo-hematoma, designadamente se o parto se tiver realizado por via vaginal.

FIGURA 3. RN macrossomático (RNMD) com insuficiência respiratória submetido a terapia em UCIN. (URN-HDE)

No RN GIG e/ou macrossómico devem ser pesquisados determinados sinais classicamente associados à entidade “RNMD”, se houver antecedentes maternos sugestivos.

O RNMD tem um fenótipo característico, com acumulação de gordura na face e tronco. Pode ter aspecto pletórico, tremor, taquipneia e icterícia. A antropometria poderá ajudar a definir melhor o referido fenótipo. Há autores sugerindo que a acumulação da gordura troncular pode ser mais bem avaliada pelo índice de gordura centrípeta (ainda não validado), baseada na medida das pregas cutâneas subescapular (PSE), suprailíaca (PSI), tricipital (PT) e bicipital (PB): (PSE + PSI)/(PT + PB + PSE + PSI).

Outros, sugerem medidas antropomórficas que poderão sugerir se a distocia de ombros no RNMD foi ou não motivada por ombros e perímetros dos membros desproporcionadamente grandes.

Retomando a noção de proporcionalidade corporal atrás explicitada, na prática este critério permitirá a destrinça entre GIG e verdadeiro macrossómico.

A macrossomia pode também enquadrar-se num gigantismo de início pré-natal, com aumento excessivo do comprimento ao nascer e outras características sindromáticas evidentes desde o período neonatal: a síndroma de Sotos, associando dificuldades em se alimentar, hipotonia, macrocefalia com dolicocefalia e abaulamento do frontal, palato ogival, extremidades acromegalóides e idade óssea avançada; a síndroma de Beckwith-Wiedemann, associando hipoglicémia, letargia, macroglossia, hiperplasia de órgãos internos, pregas típicas nos pavilhões auriculares, onfalocele e outros defeitos da parede abdominal, e criptorquidia; a síndroma de Weaver, associando anomalias craniofaciais típicas, choro rouco e agudo, hipertonia e camptodactilia; a síndroma de Marshall, associando anteversão das narinas, achatamento da base do nariz, espaçamento dos olhos aparentando macroftalmia, espessamento da parte superior da calote craniana, calcificações intracranianas, catarata e anomalias do palato; e a síndroma de Perlman, associando displasia renal, tumor de Wilms, hiperplasia do pâncreas endócrino e outras anomalias congénitas.

Noções práticas sobre a avaliação do estado de nutrição em crianças nascidas pré-termo

A avaliação do estado de nutrição em crianças nascidas pré-termo baseia-se fundamentalmente na antropometria e na medição de marcadores bioquímicos usados frequentemente na clínica. Em determinados centros de investigação, e segundo a experiência do autor (LPS) podem ser utilizados métodos biofísicos, mais sofisticados, para caracterização da composição corporal e requerendo ainda validação, tais como os baseados na impedância bioeléctrica (BIO), na densitometria (DXA), ultrassonografia (US) e ressonância magnética (RM) (ver adiante).

Antropometria

As medidas antropométricas clássicas [utilizando instrumentos rudimentares como fita métrica, craveira e balança, e devendo ser interpretadas utilizando curvas e valores de referência adequados], têm especial utilidade com três objectivos essenciais:  diagnóstico de desnutrição fetal ao nascer, vigilância do crescimento e do estado de nutrição após nascimento e identificação precoce de desnutrição ou de sobrenutrição.

  • Peso, embora seja o parâmetro mais frequentemente utilizado, não fornece informação sobre os compartimentos corporais.
  • Comprimento, reflectindo o crescimento esquelético, é um indicador da massa magra; o rigor na sua medição (ver adiante) é essencial.
  • Perímetro cefálico (PC) indica o crescimento do cérebro; há que atender à possibilidade de ser afectado por factores relacionados com a morbilidade associada à  prematuridade, e não com a nutrição.
  • Perímetro braquial (PB) é fácil de medir; a sua avaliação longitudinal indica razoavelmente as variações da adiposidade corporal.
  • Pregas cutâneas estimando satisfatoriamente a gordura somática, não são, no entanto, representativas da gordura intrabdominal.
  • Ratio peso/comprimento [quer utilizando o índice de massa corporal, quer o índice ponderal] tem sido usada para avaliar a proporcionalidade corporal ao nascer. Estes e outros índices antropométricos, como a ratio perímetro braquial/perímetro cefálico (PB/PC) e as áreas da secção transversal do braço (por ultrassonografia ou por ressonância magnética), podem fornecer boa estimativa da composição corporal, embora necessitem de ser validados. (Consultar www.growthcalculator.org)

Marcadores bioquímicos

Os marcadores bioquímicos, devendo ser utilizados como complemento da antropometria, permitem avaliar o status sérico ou sanguíneo electrolítico e metabólico (essencialmente cloro, sódio potássio e glucose) assim como a nutrição em ferro, proteica (azoto ureico, pré-albumina sérica, proteína ligada ao retinol e transferrrina sérica) e óssea (calcémia, fosforémia, combinação fosfato sérico e fosfatase alcalina, fosfatase alcalina, assim como certos marcadores urinários).

Um valor baixo de azoto ureico pode indicar suprimento insuficiente de proteínas. Pela semivida curta, a pré-albumina e a proteína de ligação ao retinol são bons marcadores da nutrição proteica atual, mas podem ser afetados por fatores não nutricionais. A combinação da hipofosforémia com o nível sérico elevado de fosfatase alcalina é o melhor indicador bioquímico precoce de doença óssea metabólica.

Eis alguns dos resultados mais representativos:

  • Azoto ureico com valor baixo sugere suprimento proteico insuficiente. De salientar que valores moderadamente elevados são difíceis de interpretar, podendo indicar suprimento adequado de aminoácidos, baixo suprimento energético em relação ao proteico, ou intolerância aos aminoácidos.
  • Pré-albumina e proteína de ligação ao retinol, pela semivida curta, constituem bons marcadores de nutrição proteica actual: valores baixos <> suprimento proteico insuficiente. De salientar, contudo, que os valores poderão ser afectados, quer no contexto de inflamação/infecção, quer no contexto de carência em ferro, zinco ou vitamina A.
  • Transferrina sérica: tal como foi referido no âmbito do capítulo sobre anemia ferropénica, valor elevado <> carência em ferro, independentemente do estado de nutrição.
  • Cálcio, fósforo e fosfatase alcalina: os respectivos valores séricos são em geral utilizados para avaliação da mineralização óssea. Salienta-se que o valor baixo da fosforemia corresponde a elevada especificidade para o diagnóstico de doença metabólica óssea (DMO). Quanto à fosfatase alcalina, níveis > 900 U/L associam-se a especificidade de 71% e a sensibilidade de 88% para DMO, o que é considerado limitação para o referido diagnóstico; no entanto, valores de fosforémia  < 5,6 mg/dL (< 1,8 mmol/L) associados a fosfatase alcalina > 900 U/L, evidenciam sensibilidade de 100% e especificidade de 70%, o que confere a tal associação a característica de melhor marcador bioquímico precoce de DMO.
  • Marcadores urinários de cálcio e fósforo: classicamente, poderão ser utilizados os parâmetros ratio cálcio/creatinina, fosfatúria e reabsorção tubular de fosfato; na prática, importa salientar que os referidos valores são influenciados pelo tipo de alimentação, quer da mãe, quer do filho.

Medições e técnicas

  • Perímetro cefálico – Utilização de fita métrica inextensível de largura < 1 cm, bem aplicada em torno da cabeça, num plano – fronte, por cima das arcadas orbitárias – proeminência occipital – em posição que permita a leitura do valor máximo em três tentativas. Consultar curvas de crescimento.
  • Perímetro braquial (lado esquerdo) – Utilização de fita métrica inextensível de largura < 1 cm, a meia distância entre o acrómio e o olecrânio; o membro superior deve ficar pendente com flexão do antebraço sobre o braço garantindo ângulo de 90°. (Consultar tabelas de Frisancho e bibliografia).
  • Prega tricipital – Utilização de calibrador de espessura (por ex. calibrador de Harpenden) pregueando ou “pinçando” a pele previamente com os dedos, na região tricipital, a meia distância entre o acrómio e o olecrânio; a pressão exercida pelas pinças do calibrador deve ser constante.
  • Peso – Pressupõe-se que a balança deve estar correctamente calibrada.
  • Comprimento/estatura – Quer utilizando craveiras para bebés, quer estadiómetros para crianças maiores em quem se consiga a posição bípede estável, haverá necessidade de o observador ser ajudado por outra pessoa para evitar oscilação da bacia, garantindo membros inferiores em extensão completa, pés formando ângulo de 90° com as pernas sem arquear o dorso, cabeça no plano do tronco, e bordo inferior das órbitas no mesmo plano dos meatos auditivos.

Prognóstico e implicações futuras

Às condições GIG e macrossomia natal, independentemente de resultarem de diabetes materna, associam-se futuro risco de obesidade, de doença metabólica e de doença cardiovascular.

BIBLIOGRAFIA

Alberry M, Soothill P. Management of fetal growth restriction. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2007; 92: F62-7

Barker DJP. Fetal origins of cardiovascular disease. Ann Med 1999; 31: S3-S6

Beune IM, Bloomfield FHGanzevoort W, et al. Consensus based definition of growth restriction in the newborn. J Pediatr 2018; 196: 71-76.e1

Das UG, Sysyn GD. Abnormal fetal growth: intrauterine growth retardation, small for gestational age, large for gestational age. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 639-654

DeFelice C, Tassi R, De Capua B, et al. A new phenotypical variant of intrauterine growth restriction? Pediatrics 2007; 119: e 983-e990

Eriksson JG. The fetal origins hypothesis- 10 years on. BMJ 2005; 330: 1096-1097

Fewtrell M, Michaelsen KF, van der Beek E, an Elburg R, eds. Growth in Early Life: Growth Trajectory and Assessment, Influencing Factors and Impact of Early Nutrition. Queensland: John Wiley & Sons Australia, 2016

Forsum EK, Flinke E. The body composition study group. Premature birth was not associated with increased body fatness in four‐year‐old boys and girls. Acta Paediatrica 2020; 109: 327-331. DOI: 10.1111/apa.14990

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Goto E. Maternal blood leptin concentration in small for gestational age: a meta-analysis. Eur J Pediatr 2019; 178: 763-770 https://doi.org/10.1007/s00431-019-03351-6

Gupta P, Ray M, Dua T, et al. Multimicronutrient supplementation for undernourished pregnant women and the birth size of their offspring. Arch Pediatr Adolesc Med 2007; 161: 58-64

Ibañez L, Potau N, Enriquez G, Marcos MV, de Zegher F. Hypergonadotrophinaemia with reduced uterine and ovarian size in women born small-for-gestational-age. Hum Reprod 2003; 18: 1565-1569

Kistner A. Does low birthweight matter? Editorial. Acta Paediatrica 2019; 109: 228-230. DOI: 10.1111/apa.15064

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadephia, PA: Lippincott Williamas & Wilkins, 2015

Martorell R, Stein AD, Schroeder DG. Early nutrition and later adiposity. J Nutr 2001; 131: 874S-880S

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nold JL, Georgieff MK. Infant of diabetic mothers. Pediatr Clin North Am 2004; 5: 619-637

Olsen IE, Lawson ML, Meinzen-Derr J, Sapsford AL, Schibler KR, Donovan EF, et al. Use of a body proportionality index for growth assessment of preterm infants. J Pediatr 2009; 154: 486-491

Pereira-da-Silva L, Rosado L, Gomes-da-Costa MG, Sacramento-Monteiro ME, Antunes JA. Um caso de gigantismo cerebral (Síndrome de Sotos). Bol Clin Hosp Civis Lisboa 1985; 42: 23-27

Pereira-da-Silva L, Moura-Pires F, Rebelo I, Ferreira GC, Veiga M, Estrada J, Videira-Amaral JM, Monteiro MES. Evolução antropométrica do atraso de crescimento intrauterino simétrico. Resultados preliminares. Rev Port Pediatr 1990; 21: 427-434

Pereira-da-Silva L. Neonatal anthropometry: a tool to evaluate the nutritional status, and to predict early and late risks. In: Preedy VR, ed. The Handbook of Anthropometry: Physical Measures of Human Form in Health and Disease. Springer, New York, 2012, Chapt. 65; 1079-104

Pereira-da-Silva L. Nutrição e atraso de crescimento intrauterino. Nascer e Crescer 1993; 2: 97-99

Pereira-da-Silva L, Veiga Gomes J, Clington A, Videira Amaral JM, Bustamante SA. Upper arm measurements of healthy neonates comparing ultrasonography and anthropometric methods. Early Hum Dev 1999; 54: 117-128

Pereira-da-Silva L, Virella D, Videira-Amaral JM, Guerra A. Antropometria no Recém-Nascido: Revisão e Perspectiva Actual. Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2007

Pereira-da-Silva L. Nutrição durante a gravidez e o crescimento fetal: Implicações imediatas e futuras. In: Cordeiro-Ferrreira G, Pereira-da-Silva L (eds). Intervenção Nutricional na Infância e Aspectos Preventivos. Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2007; 1-18

Pereira-da-Silva L, Abecasis F, Virella D, Videira-Amaral JM. Upper-arm anthropometry is not a valid predictor of regional body composition in preterm infants. Neonatology 2009; 95: 74-79.

Pereira-da-Silva L, Virella D. Accurate direct measures are required to validate derived measures. Neonatology. 2018; 113: 266.

Raggal NME, Mohamed MH, Atef SH, Salem FA. Soluble vascular endothelial growth factor receptor-1 in intrauterine growth restricted neonates. J Neonatal Perinatal Medicine 2009; 2: 169-174

Sayer AA, Cooper C. Fetal programming of body composition and musculoskeletal development. Early Hum Dev 2005; 81: 735-744

Schegal A, Dahlstrom JE, Chandy Y, et al. Placental histopathology in preterm growth restriction. J Paediatr Child Haelth 2O19; 55: 582-587

Smarr MM. Vadillo-Ortega F, Castillo-Castrejon M, et al. The use of ultrasound measurements in environmental epidemiological studies of air pollution and fetal growth. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 240-246

Takayanagi T, Shichijo A, Egashira M, et al. Extrauterine growth restriction was associated with short stature and thinness in very low birthweight infants at around six years of age. Acta Paediatr 2019; 108: 112-117

Vural I, Ozdemir H, Teker G, et al. Delayed cord clamping in term large for gestational age infants. J Paediatr Child Haelth 219; 55: 555-560

REANIMAÇÃO DO RECÉM-NASCIDO NO BLOCO DE PARTOS

Importância do problema

Na maioria dos casos, o feto/recém – nascido (RN) tem uma boa adaptação à vida extra-uterina, sem necessidade de qualquer intervenção; no entanto, circunstâncias especiais (tais como gravidez ou partos de risco, designadamente em relação com prematuridade, patologia perinatal diversa, ausência ou deficiência de vigilância pré-natal e perinatal) estão associadas a adaptação difícil implicando a necessidade urgente ou emergente de medidas terapêuticas intraparto ou pós-parto imediato por equipa treinada.

O objectivo de tais medidas é o restabelecimento das funções vitais, ou reanimação; tais medidas, não sendo efectivadas, ou sendo mal conduzidas, poderão conduzir a morte ou sequelas, designadamente do SNC –anomalias adquiridas do neurodesenvolvimento e do comportamento.

De acordo com dados da OMS, cerca de 6-10% dos RN necessitam de manobras de reanimação de grau variável no pós-parto imediato (em geral assistência ventilatória ligeira), sendo que em menos de 1% há necessidade de manobras consideradas avançadas. Por outro lado, sabendo-se que ocorrem em todo o mundo cerca de cinco milhões de mortes neonatais por ano, cabe salientar que cerca de 1/5 das mesmas é explicado por adaptação complicada à vida extrauterina.

Daqui se infere que a reanimação no bloco de partos (reanimação habitualmente designada por primária) pode e deve ser prevista e preparada. Trata-se duma estratégia de antecipação que faz parte dos cuidados perinatais. Tal implica um esquema organizativo, a existência de equipa treinada e de condições técnicas logísticas (espaço físico e equipamento adequado).

  • Cerca de 5-10% dos RN requerem estimulação simples no pós-parto imediato como “ajuda” para a respiração: secagem e massagem suave nas plantas dos pés.
  • Cerca de 3-6% dos RN necessitam de reanimação básica com balão tipo Ambou e máscara.
  • Menos de 1% dos RN necessitam de reanimação avançada obrigando e entubação traqueal para ventilação, massagem cardíaca e aplicação de fármacos.
  • Mundialmente, cerca de 1 milhão de RN morre de asfixia perinatal.
  • Daqui se infere que o desenvolvimento da competência em reanimação neonatal tem enorme impacte na saúde infantil.

História natural da asfixia

Durante o trabalho de parto ocorre episódio de hipoxémia transitória/fisiológica provocada pela contracção uterina, a qual é bem tolerada pelo feto dito saudável; salienta-se, contudo, que episódios repetidos de hipoxémia poderão produzir efeito cumulativo semelhante ao da hipoxémia progressiva.

Se se tratar de hipoxémia transitória/fisiológica, após a paragem inicial da respiração (apneia primária) verifica-se o início de um período de movimentos respiratórios lentos de amplitude variável mas pouco eficazes (gasping), após o qual surgirá um período de apneia secundária.

No período de apneia primária poderá haver retorno à respiração espontânea normal após estímulos tácteis mínimos (por ex. estimulação/massagem suave das plantas dos pés).

Pelo contrário, em situações de hipoxémia e hipercápnia acentuadas (asfixia), com consequente acidose respiratória, atingindo-se a fase de apneia secundária, verifica-se:

  1. depressão do centro respiratório;
  2. vasoconstrição periférica e diminuição da oxigenação tecidual periférica como mecanismo de compensação para garantir oxigenação de territórios “mais nobres” – SNC e miocárdio (é o chamado diving reflex ou reflexo do mergulhador).

Se este mecanismo de compensação claudicar, entra em acção a glicólise anaeróbia à custa das reservas de glicogénio (com risco de esgotamento), o que conduz a:

  1. agravamento da oxigenação tecidual com consequente diminuição da pressão parcial de O2 (pO2) e acidose;
  2. diminuição da contractilidade miocárdica e contribuindo para agravamento da diminuição do fluxo sanguíneo para o próprio miocárdio, SNC e outros órgãos. Estabelece-se, pois, um círculo vicioso que poderá conduzir à morte.

Como se pode calcular, para além da estimulação táctil anteriormente referida (eficaz na fase de apneia primária), haverá seguramente necessidade doutras medidas na fase de apneia secundária para reversão do estado de asfixia.

Nesta perspectiva, a reversão pronta da asfixia (focada essencialmente numa ventilação artificial efectiva) poderá prevenir ou minorar situações de falência multiorgânica, a morte ou a incapacidade permanente.

Equipa perinatal   

Idealmente, o parto deverá ocorrer numa maternidade acoplada (colada) a hospital geral ou a hospital pediátrico; tratando-se deste último, importa que, por sua vez, esteja acoplado a hospital geral. Independentemente da instituição em causa e do modelo assistencial, é fundamental que a equipa assistindo à grávida e ao recém-nascido, integrando uma diversidade de profissionais de saúde (obstetras, pediatras, médicos doutras especialidades, enfermeiros, técnicos, auxiliares, etc.), seja competente e esteja treinada. e possa contar com.

No âmbito do funcionamento da mesma, importa realçar os seguintes pontos:

  1. Existência de condições logísticas e técnicas em função do nível de cuidados a prestar pela instituição onde se realiza o parto.
  2. Presença dum responsável (chefe de equipa).
  3. Previsão da reanimação, conhecendo os factores de risco e evitando gestos precipitados e perdas de tempo.
  4. Cooperação interprofissional, com especial destaque para a ligação: especialistas de medicina materno – fetal/obstetrícia/pediatria neonatal/enfermagem, equipa de transporte da grávida e ou RN; ou seja, a equipa deverá funcionar como uma “orquestra afinada”.

Da equipa perinatal, no mínimo, deve fazer parte, em permanência, um profissional que domine os aspectos básicos da reanimação neonatal: um enfermeiro treinado poderá desempenhar papel crucial.

Igualmente (e porque cada minuto conta), deverá haver a possibilidade de recurso rápido e eficaz a, pelo menos, um segundo elemento, (idealmente neonatologista, ou pediatra com experiência em neonatologia, ou anestesista- reanimador) com competência em reanimação neonatal. Efectivamente, poderá tratar-se de situações complicadas e ou de partos gemelares, com necessidade de procedimentos em simultâneo.

Notas importantes:

    • A eficácia da execução das manobras de reanimação deverá ser assegurada regularmente através da realização de um programa de formação teórico-prática.
    • A boa comunicação entre os profissionais da equipa de urgência garante os cuidados de antecipação assim como a eficácia, eficiência e efectividade das manobras de reanimação.
    • Realça-se igualmente a importância do vínculo a estabelecer com os progenitores do RN e família esclarecendo-os, de forma humanizada, sobre o quadro clínico e procedimentos a realizar ou realizados.

Condições técnicas

O Quadro 1 mostra o material indispensável (colocado em local de fácil acesso e com conhecimento de todos os elementos da equipa) para se proceder a manobras de reanimação no RN. Tal material deverá ser verificado e experimentado pelo reanimador antes de actuar; e, diariamente, e após cada utilização, por responsável designado pelo chefe da equipa ou director do serviço. Do material deve fazer igualmente parte um conjunto de pequena cirurgia embalado em condições de assépsia, incluindo campos esterilizados, luvas esterilizadas, pinças, lancetas, agulhas/material de sutura, etc..

Importa prever a necessidade da existência de certos instrumentos em duplicado (ou mesmo, em triplicado) admitindo a hipótese de partos gemelares.

QUADRO 1 – Material indispensável para reanimação do RN no bloco de partos.

Material
    • Mesa de reanimação com sistema de aquecimento e iluminação
    • Relógio
    • Estetoscópio pediátrico ou neonatal
    • Fonte de oxigénio
    • Aspirador de pressão negativa regulável
    • Sondas de aspiração de calibres: 6; 8; 10
    • Bolsa ou balão (tipo Ambou) de 500 ou 750 ml, auto-insuflável tipo Ambu, ou bolsa tipo “anestésica” com válvula de pressão, ou ressuscitador com limite de pressão e peça em T, regulador de FiO2/ dispositivo para mistura de ar/O2 regulável, e monitor de pressão; se possível, capnógrafo
    • Tubos de Mayo (vários tamanhos)
    • Laringoscópio
    • Lâminas rectas de laringoscópio de tamanhos: 00; 0; 1
    • Tubo endotraqueal (TET) de calibres: 2.5; 3; 3.5; 4 (Quadro 3)
    • Fio condutor para tubo endotraqueal (TET)
    • Cateteres umbilicais
    • Fio de nastro esterilizado
    • Luvas esterilizadas
    • Adesivo/ tintura de benjoim
    • Tesoura
    • Seringas (de 1;3;5;10; 20 ml)
    • Torneira de 3 vias
    • Oxímetro de pulso e monitor electrónico para FC/ECG/3 eléctrodos
    • Peças de adaptação do TET para administração de surfactante
    • Peças de adaptação do TET para ligação ao dispositivo de pressão controlada e ao aspirador
    • Fármacos (Quadro 2)


No QUADRO 2 são discriminados os fármacos que podem ser utilizados em contextos diversos a descrever adiante; no mesmo quadro são incluídas as doses respectivas a utilizar.

QUADRO 2 – Fármacos e doses a utilizar em reanimação do RN.

Naloxona

    • 0,1 mg/Kg
    • Qualquer via (endotraqueal, endovenosa ou intramuscular), bólus
    • Contra-indicação: mãe toxicodependente

Adrenalina

    • 0,01-0,03 mg/Kg/dose
    • Diluir 1 ml de adrenalina em 9 ml de soro fisiológico: 0,1-0,3 ml/kg/dose
    • Via endotraqueal ou endovenosa, bólus
    • Repetir até máx. de 2 ml/kg

Bicarbonato de sódio

    • Diluir 10 ml de NaHCO3 a 8,4% em 10 ml de água destilada
    • 1-2 mEq/Kg/dose
    • Via endovenosa em 2 a 5 minutos

Expansores de volume

    • Soro fisiológico
    • Lactato de Ringer
    • Sangue ORh(-)
    • 10 ml/Kg IV

Glicose a 10%

    • 2 ml/Kg – em 1 minuto IV; depois glucose a 5% em perfusão lenta

Actuação prática

A reanimação do RN deverá ser encarada numa perspectiva de prevenção de lesões evitáveis do sistema nervoso central. Os objectivos gerais são: evitar a hipoxia, evitar a infecção, evitar a hipotermia e combater a acidose.

Relativamente à prevenção da infecção, importa salientar que, sendo  as manobras de reanimação realizadas em bloco de partos, portanto, em ambiente de bloco operatório, tal implica que todos os procedimentos devem ser levados a cabo em ambiente de assepsia cujas regras, não sendo aqui explicitadas, deverão estar sempre na mente de quem tem acesso a tal ambiente e reanima. Como na transição para a vida extrauterina o tempo conta muito, o tempo em  segundos conta, é importante que no bloco de partos exista , mais do que um relógio bem visível, um conta-segundos. De facto, há situações “exigindo” procedimentos a realizar nos primeiros 60 (sessenta) segundos que devem ser executados.

Sistematização geral  (Figura 1)

No pós-parto imediato (primeiros segundos), a primeira etapa consiste em verificar se estão presentes as seguintes condições (avaliação básica do risco): – RN de termo? – Choro imediato e respiração normal? – Bom tono muscular?

Se a resposta a todas estas questões for positiva, o RN deve ser “entregue” à mãe, colocado “pele com pele”, promovendo estimulação suave tipo “massagem” nas plantas dos pés. A temperatura corporal da mãe aquece o bebé, evitando a hipotermia.

Se a resposta a qualquer das questões for “não”, o RN deve ser colocado sob calor radiante no berço, ou na incubadora, garantindo temperatura cutânea entre 36,5 e 37,5ºC, secado e promovendo estimulação cutânea ligeira. Sobre certas particularidades nos casos de RN pré-termo e em situação de asfixia perinatal grave, ver adiante a alínea Ambiente térmico. Deve proceder-se à aplicação de oxímetro de pulso para monitorização contínua da SpO2.

FIGURA 1. Fluxograma de actuação na reanimação do recém-nascido (segundo AHA, 2020).

Ao mesmo tempo verificar a presença de eventuais secreções ou saliva na boca, as quais devem ser removidas suavemente e não aspiradas de rotina (pelo risco de bradicardia), desde que não existam sinais de mecónio ou de obstrução da via respiratória. (Figura 2)

Se, após 30 (trinta) segundos, se verificar apneia, gasping ou frequência cardíaca (FC) < 100 bpm, deverá iniciar-se ventilação com pressão positiva intermitente (IPPV – iniciando-se com pico de 20 cm H2O), FR (frequência respiratória – 40-60/ minuto), usando balão Ambou e máscara, e FiO2 a 21% (ar) se RN com 35 semanas ou >, e 21-30% se RN com < 35 semanas. (Figura 3)

Decorridos os 30 segundos iniciais, mantendo a aplicação do oxímetro, deve proceder-se à aplicação de 3 eléctrodos cutâneos no tórax para monitorização contínua com ECG + FC e FR (frequência respiratória), não devendo ultrapassar 1 minuto (30 segundos iniciais + 30 segundos com este último procedimento).

Se, após o referido 1 minuto (correspondendo ao tempo consumido com as manobras anteriores), e apesar da garantia da permeabilidade da via respiratória e da ventilação iniciada com balão Ambou e máscara, se verificar FC < 60 bpm, deve proceder-se a entubação traqueal, após o que se deve de imediato iniciar massagem cardíaca/ compressão cardíaca em sincronismo com a ventilação (ratio 3:1 ou seja, 90 compressões/ 30 insuflações com dedos no terço inferior do esterno durante 45-60 segundos pelo menos), avaliando entretanto a resposta da FC. Concomitantemente deve elevar-se a FiO2 para 100%. (Figuras 4 e 5)

Salienta-se que:

    • O indicador mais sensível e rigoroso do sucesso da actuação geral descrita é o aumento da FC;
    • A entubação traqueal deve sempre preceder o início da massagem cardíaca).

 

Se, com as manobras descritas, a FC não responder ao cabo de 60 segundos de ventilação + massagem cardíaca, continuando este procedimento, está indicado o início da fase seguinte (letra C de ABC) relacionada com a reanimação circulatória: utilização de fármacos: adrenalina e expansores da volémia (situação rara).

Adrenalina: está indicada, como foi referido, nos casos de FC<60 bpm para além de 60 segundos de massagem cardíaca e ventilação.

É recomendada a via IV (eventualmente, a veia umbilical após cateterismo), pelo seu efeito mais rápido, na dose de 10 – 30 mcg/kg (doses mais elevadas não são recomendadas). Utilizando, em situações extremas, a via traqueal, menos eficaz, torna-se necessário usar doses superiores para obter o mesmo efeito (pelo menos, 50 – 100 mcg/ kg). A concentração da adrenalina para qualquer das vias deverá ser 1: 10.000 (0,1 mg/mL). Obtido um efeito de vasoconstrição periférica por estimulação dos receptores alfa-adrenérgicos, verifica-se melhoria do suprimento de oxigénio ao SNC e miocárdio.

Expansores da volémia: estão indicados nas seguintes situações: – ausência de resposta às medidas anteriormente descritas; – choque hipovolémico traduzido por palidez, má perfusão periférica/pele marmoreada, hipotensão arterial, pulsos débeis (situação eventualmente relacionada com perda de sangue);

Como expansores, utilizam-se soluções cristalóides isotónicas: soro fisiológico (NaCl a 0,9%) ou lactato de Ringer. A dose inicial é 10 mL/kg por via IV periférica ou umbilical em 5 a 10 minutos, podendo repetir-se a administração. Em situações de hemorragia importante pode ser utilizado sangue 0 Rh (-). (Figura 1)

Resumindo:

As manobras de reanimação devem ser sequenciais, em etapas, sem hesitações nem perdas de tempo, como é sugerido no algoritmo da Figura 1 aplicando a regra do ABC:

A- airways <> permeabilização da via aérea com cabeça/ pescoço em posição neutra ou em extensão muito ligeira, e remoção/ limpeza das secreções na boca, e não obrigatoriamente aspiração das mesmas.

B- breathing <> início da respiração/ ventilação utilizando estímulo táctil suave (por ex. nas plantas dos pés), seguindo-se ventilação artificial.

C- circulation <> garantir a circulação através da aplicação de compressão torácica/ massagem cardíaca sincronizada com a ventilação artificial, eventualmente em associação à administração de fármacos como a adrenalina ou a perfusão endovenosa para expansão da volémia.

FIGURA 2. Remoção suave das secreções somente da boca se originarem obstrução (RN em decúbito dorsal, estando já laqueado o cordão umbilical).

FIGURA 3. Ventilação com balão Ambu no lactente: A – Cabeça em extensão. Aplicar bem a máscara à face (sobre a boca e nariz) de modo a não permitir “fugas”. Evitar traumatizar os globos oculares. Comprimir o balão entre os dedos. “Aliviar” a máscara da face imediata e momentaneamente após a insuflação; B – A pressão de ventilação pode ser regulada como se demonstra na figura, apertando o balão com um ou mais dedos (o ideal será, no entanto, verificar a pressão com dispositivo conectado ao sistema – manómetro)

FIGURA 4. Manobras sequenciais de entubação orotraqueal: A – A lâmina do laringoscópio aborda o lado direito da boca; B – Avançando para a linha média referencia-se a úvula; C – Pressão sobre a língua ao mesmo tempo que a extremidade da lâmina deve progredir em direcção à epiglote; D – Referência da epiglote; E – Os três tempos permitindo ultrapassar a epiglote; F – Epiglote ultrapassada (verifica-se facilmente que o esófago está por baixo da laringe; RN em decúbito dorsal).

FIGURA 5 – Massagem cardíaca externa/ compressão torácica e ventilação com máscara. NB: idealmente a ventilação deve ser com TET. Neste caso utilizou-se a técnica com os dois polegares do reanimador.

Particularidades

Laqueação do cordão umbilical

Actualmente aconselha-se a sua realização para além de 30 segundos. De acordo com a ACOG, nos casos de normal adaptação à vida extrauterina, recomenda-se 30-60 segundos, quer em RN de termo, quer pré-termo. Determinados centros aconselham, mesmo, diferir até 3 minutos. Tais atitudes fundamentam-se em certas evidências: teores mais elevados de Hb e de reservas de ferro pelos 3-6 meses de idade, menor necessidade de transfusões futuras, designadamente nos pré-termo, e menor incidência de enterocolite necrosante e de hemorragia intraperiventricular. Recorde-se que no RN de termo a volémia na placenta corresponde a cerca de 35 mL/kg de peso.

Temperatura corporal e ambiente 

O ambiente térmico e a termorregulação constituem elementos-chave na reanimação do RN. Múltiplos estudos demonstraram que a hipotermia se associa a taxa de mortalidade mais elevada, assim como a alto risco de problemas respiratórios, hipoglicémia e sépsis tardia.

Assim, a todos os RN, como regra geral, deve ser garantida manutenção da temperatura cutânea entre 36,5-37,5ºC e da temperatura ambiente entre 23 e 25ºC (ou superior, nos RN pré-termo). Independentemente de tal garantia poder ser concretizada na maior parte dos RN de termo com boa adaptação à vida extrauterina com o calor/ temperatura da pele da mãe (“pele com pele”), importa antecipar a possível necessidade de utilizar em determinadas condições: incubadora aquecida, mesmo em RN vestidos, sistema de aquecimento radiante superior, eventualmente com temperatura servorregulada, campos de pano estéreis aquecidos, concentradores de calor de perspex (túneis), folhas, sacos de estanho ou de plástico, ou ainda, colchões exotérmicos apropriados.

A secagem da pele não deverá ser realizada em RN pré-termo com < 28 semanas, pois com tal procedimento verifica-se maior perda de calor por evaporação e convecção.

Reiterando: nos RN de termo com boa adaptação à vida extrauterina, a fonte de calor imediata a utilizar no pós-parto imediato poderá ser o calor corporal do tórax/ abdómen da mãe (“pele com pele”).

Líquido amniótico com mecónio

À luz dos conhecimentos actuais, quer nos RN com boa vitalidade, quer nos deprimidos, não vigorosos, não está indicada a entubação traqueal para aspiração do líquido meconial. Ou seja, os cuidados iniciais são idênticos aos aplicados em circunstâncias ditas normais (aquecimento, estimulação táctil suave, etc.). Os critérios para entubação traqueal são os mesmos que existem quando não se verifica a situação de líquido amniótico com mecónio.

Encefalopatia neonatal

Sendo esta situação clínica abordada adiante em capítulo especial, cabe sintetizar aqui algumas particularidades relacionadas com a actuação no pós-parto imediato por asfixia perinatal grave, obrigando a manobras de reanimação laboriosas. Em tal contexto, havendo antecedentes perinatais tais como por ex. prolapso do cordão, descolamento da placenta, sofrimento fetal, etc., as manifestações clínicas no RN, traduzindo disfunção neurológica (designadamente alterações do tono muscular, dos reflexos e do estado de consciência) são o resultado de lesão cerebral hipóxico-isquémica.

Em tal situação, para além da actuação imediata, já descrita, e dado que a hipotermia tem efeito neuroprotector, em vez de se promover o aquecimento do RN, até observação por neurologista /intensivista, está indicado o não aquecimento até decisão final, a curto prazo, de se avançar para o protocolo específico.

Depressão neonatal versus asfixia

Importa referir que vários problemas perinatais podem interferir no processo de adaptação do feto à vida extrauterina conduzindo eventualmente a um processo de depressão neonatal, e não de asfixia, no sentido correcto do termo: asfixia = hipóxia + hipercápnia + acidose). Eis alguns exemplos:

  • Prematuridade (esta condição determina que o RN seja hipotónico e hiporreactivo, tenha imaturidade do centro respiratório dificultando o automatismo respiratório, entre outras particularidades);
  • Fármacos administrados à mãe e anomalias congénitas várias do RN (condições que dificultam o início de ventilação espontânea).

Contudo, torna-se evidente que em tais circunstâncias, se não forem postas em prática determinadas manobras descritas, poderá instalar-se quadro de verdadeira asfixia na sequência da depressão inicial.

Evolução de conceitos

Ao longo das últimas décadas, com a evolução da ciência baseada nos resultados da investigação, têm sido divulgadas normas sobre Reanimação do Recém-Nascido, evidenciando mudanças de atitudes e procedimentos. Da edição anterior desta obra, transcrevemos: “…o ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) em 2010, e diversos organismos internacionais a nível mundial, destacando a American Heart Association, o European Resuscitation Council, e a American Academy of Pediatrics, publicaram novas recomendações ou normas de orientação/ guidelines, divergindo significativamente nalguns pontos-chave relativamente às de 2005, descritas na 1ª edição desta obra.”

Na presente edição, adaptámos as normas (NRP-Neonatal Resuscitation Program) divulgadas em 2015 no âmbito da American Heart Association, e American Academy of Pediatrics citando Wyckoff MH, et al. Estas foram revisitadas por Hainstock LM, et al em 2020 (consultar bibliografia).

Tendo em conta os objectivos deste tratado elementar, devotado essencialmente a estudantes e a clínicos gerais ou pediatras gerais, são relevados alguns tópicos que tipificam as modificações a que aludimos.

    • Vários estudos nos últimos anos têm questionado a necessidade de emprego sistemático de oxigénio (e, designadamente em concentrações elevadas, como FiO2 de 100%) para reanimar RN no pós-parto imediato. Com efeito, verificou-se que, após períodos prolongados de hiperóxia, as hipoxantinas se acumulam nos tecidos combinando-se com oxigénio na presença de xantinoxidase, libertando radicais livres que podem provocar lesão tecidual significativa; tal lesão tecidual que corresponde a processo inflamatório (peroxidação lipídica, essencialmente) resulta da inibição da síntese proteica e de ADN. De facto, os radicais livres de oxigénio (superóxido, peróxido de hidrogénio e radicais peróxido) têm sido implicados na patogénese de uma série de quadros clínicos neonatais (sobretudo pulmonares e neurológicos), particularmente nos RN pré-termo, os quais evidenciam limitações na capacidade antioxidante (défice de enzimas antioxidantes: catalase, superóxido-dismutase, glutationa-redutase, etc.). É, pois, possível utilizar ar ambiente e evitar FiO2 elevadas o que contribuirá para a redução do teor de radicais livres produzido e de lesões teciduais após reperfusão.
    • Relativamente ao índice de Apgar (que tem sido questionado por não permitir prever o desfecho clínico a prazo, mas tão somente a avaliação da resposta à reanimação), foi proposta a sua modificação: considerando como mais importante a frequência cardíaca (FC), tem sido sugerido não valorizar o parâmetro “cor da pele”.
    • Ainda, sobre o índice de Apgar, quanto ao parâmetro “irritabilidade reflexa” avaliada ao “aspirar as fossas nasais”: considerando que esta manobra actualmente não deve constituir rotina, por desnecessária e pelo efeito potencialmente nefasto, inclusivamente em RN deprimidos, a sua inclusão é controversa.
    • Nos casos de eliminação de líquido amniótico com mecónio (LAM), os cuidados iniciais são idênticos àqueles prestados nas circunstâncias em que o LA é límpido; de facto, não está actualmente indicada a entubação traqueal para aspiração daquele, independentemente de existir ou não depressão/ deficiente vitalidade. Somente existe uma excepção: nos casos de obstrução comprovada da via respiratória.
    • Chamada da atenção actual para a importância das manobras a realizar no Minuto 1 de vida (Minuto de Ouro) incluindo a necessidade de utilização, a par do oxímetro de pulso, da monitorização electrocardiográfica com três eléctrodos.
    • Chamada de atenção para a vantagem de diferir no tempo a laqueação do cordão umbilical (> 30-60 segundos, podendo em situações especiais atingir 3 minutos). (consultar texto e bibliografia)

Técnicas

O equipamento básico para a reanimação primária do RN no bloco de partos é descrito no Quadro 1. Essencialmente: fonte de oxigénio e de ar com misturador, aquecimento e humidificação, balão tipo Ambou para insuflação manual intermitente (para pressão positiva intermitente/ IPPV), máscara para aplicação boca/ narinas ligado ao balão, e tubos endotraqueais (TET). Eventualmente, tubo em T para aplicação de sistema de pressão positiva contínua, adiante delineado.

Sobre aspectos básicos da fisiologia da respiração neonatal e sobre pressão positiva contínua ou de distensão contínua no fim da expiração/ CPAP/ PEEP, aconselha-se, adiante, a consulta do capítulo sobre problemas respiratórios. Salienta-se que existe equipamento automático para gerar, quer IPPV, quer CPAP/ PEEP, para conectar a máscara ou TET.

Ventilação artificial*

Salientando que a cor da pele constitui um fraco indicador da SpO2 durante o período neonatal imediato, e que a ausência de cianose constitui um fraco indicador de oxigenação tecidual, daí o interesse e a grande utilidade da oximetria por via transcutânea (com o vulgarmente chamado oxímetro de pulso) para monitorização do estado de oxigenação, avaliando a necessidade de administrar, ou não, oxigénio suplementar em % regulável com o dispositivo/ misturador O2/ar. De acordo com o algoritmo da Figura 1, há que evitar, quer a hipóxia, quer a hiperóxia.

* Ao abordar o fenómeno da ventilação artificial importa uma referência muito básica a certas noções da fisiologia respiratória para melhor compreensão do funcionamento dos dispositivos de ventilação (quer básicos, quer sofisticados).

    • a frequência respiratória (FR) corresponde ao número de ciclos respiratórios por minuto;
    • numa inspiração controlada ou assistida por dispositivo de ventilação (sendo o balão tipo Ambou o mais básico) gera-se uma pressão positiva inspiratória na via aérea designada ventilação com pressão inspiratória positiva intermitente (PIP ou IPPV) ou pressão de “pico”; o ar introduzido nos pulmões é mantido na via aérea durante uma pausa, para que haja tempo para as trocas gasosas/difusão a nível alveolar; a pressão da via aérea durante esta pausa denomina-se pressão de plateau/planalto;
    • durante a expiração, o pulmão é esvaziado de forma passiva em função da retracção elástica pulmonar;
    • no final da expiração normal persiste no pulmão certo volume de ar (designado capacidade residual funcional);
    • após expiração forçada resta ainda certo volume de ar (designado volume residual); o volume residual, impedindo o colapso do alvéolo, gera certa pressão de distensão alveolar contínua fisiológica que garante as trocas gasosas – a chamada pressão positiva fisiológica no fim da expiração.  

Ora, para certas situações de dificuldade respiratória em que o paciente tem respiração espontânea (isto é, não está em apneia), no sentido de incrementar artificialmente a chamada pressão positiva fisiológica no fim da expiração, (tentando melhorar ou maximizar as trocas gasosas), é possível intercalar no circuito do fluxo gasoso, um dispositivo que aumente a referida pressão de distensão contínua, pressão medida em cm de H2O.

A este conceito de pressão positiva artificial no fim da expiração em paciente com respiração espontânea é dado o nome de ou CPAP –continuous positive airways pressure), equivalente ao de (PEEP ou positive end expiratory pressure) se ao paciente estiver a ser aplicada simultaneamente IPPV (ver adiante).           

Dispositivos para ventilação

A ventilação efectiva pode ser conseguida empregando dois dispositivos (ressuscitadores) como:

  • o vulgar balão (com capacidade máxima de 750 mL) do tipo Ambu, ligado a fonte ventilatória (em geral com débito de 5 L/min) permitindo variar a concentração de oxigénio através de misturador ar/O2;
  • o balão de tipo anestésico com a chamada peça em T, permitindo variar a pressão inspiratória.  

Empregando máscara bucofacial, esta deve ser de tamanho e material adequados (transparente, almofadada, cobrindo apenas nariz, boca e região mentoniana, e aplanada para reduzir o espaço morto) sendo que o formato anatómico de base triangular ajusta-se melhor ao RN de termo, e o formato arredondado ao RN pré-termo.

O sistema deve possuir um mecanismo de segurança (manómetro ou válvula) de modo a evitar pressão inspiratória excessiva) superior a 40 cm H2O (ver atrás).

Torna-se fundamental que o reanimador (isto é, a equipa) tenha prática e experiência, verificando designadamente, se a máscara está bem ajustada à face, garantindo que a boca fica ligeiramente aberta e tendo em atenção a eventualidade de secreções susceptíveis de originar obstrução.  

Constitui boa norma aplicar sonda nasogástrica ao proceder a ventilação com máscara para evitar ou diminuir a distensão gástrica.

As máscaras laríngeas (dispositivos que se adaptam à entrada da laringe e poderão ser manipulados por quem não tem experiência em entubação traqueal e destinados às situações de abordagem difícil das vias aéreas), constituem uma alternativa transitória até se conseguir uma solução mais estável para manter a permeabilidade da via aérea.

O ressuscitador manual neo-puff é um dispositivo incluindo debitómetro, ciclado manualmente, e permitindo gerar pressão inspiratória regulável e pressão de distensão contínua (PEEP). O mesmo tem aplicação prática quando se torna necessário o transporte de RN pré-termo sem disponibilidade de ventilador convencional.

Pressão positiva intermitente (PPI ou PIP)

Se se verificar apneia, gasping, ou FC < 100 /min após realização dos passos anteriormente descritos, deve ser iniciada ventilação com PPI. Na prática deve providenciar-se uma frequência de ventilação / insuflação de 40 a 60/min, monitorizando a FC, sendo objectivo que atinja, com a ventilação, > 100/min. A pressão de insuflação / pressão inspiratória deve ser monitorizada; uma pressão de 20 cm H2O poderá ser efectiva, mas nalguns casos são necessários picos de pressão mais elevados (~ 30-40 cm H2O), designadamente em RN de termo sem respiração espontânea.

Nalguns centros que possuem capnógrafo (dispositivo detector de CO2 por método colorimétrico para detectar obstrução da via aérea ou, no caso de entubação traqueal – ver adiante – para comprovar a correcta colocação do TET na via respiratória). Utilizando máscara, parece não haver utilidade do capnógrafo.

Pressão positiva contínua

A pressão positiva contínua (CPAP) poderá ser usada em RN pré-termo que respiram espontaneamente, mas manifestando dificuldade e esforço. Tal atitude poderá reduzir a necessidade de entubação traqueal e de ulterior doença pulmonar crónica; ter em atenção a maior a probabilidade de pneumotórax. (ver adiante INSURE).

Sobre o equipamento utilizado para CPAP e seu funcionamento, procede-se a uma abordagem sucinta adiante, no capítulo sobre Problemas respiratórios.

Pode utilizar-se a associação de PPI com pressão positiva no fim da expiração / pressão de distensão contínua (PEEP) pós-parto imediato, ainda no bloco de partos.

Entubação traqueal

As principais indicações da entubação traqueal são:

  • Apneia
  • Ventilação com máscara e balão Ambou ineficaz e prolongada. Aplicando em sincronismo ventilação + massagem cardíaca, esta última deverá ser iniciada após a entubação traqueal (nunca a preceder). (ver atrás)
  • Circunstâncias especiais, designadamente as descritas na alínea seguinte.

Após entubação endotraqueal e administração de PPI/IPPV o melhor indicador de que o tubo se encontra em posição correcta (no interior da via laringotraqueal), providenciando ventilação efectiva, é o rápido incremento da FC. Outros indicadores de correcta posição do TET são a auscultação de murmúrio vesicular bilateralmente e a expansão torácica simétrica em sincronismo com as insuflações.  

A  comprovação objectiva de correcta posição do TET também pode ser  realizada através da  detecção (positiva) de CO2 exalado através do capnógrafo. Caso tal não aconteça (detecção negativa), deduz- se que o tubo foi introduzido no esófago; a mesma conclusão se poderá tirar se a auscultação ao nível do epigastro  identificar ruído aéreo.

O Quadro 3 mostra, de modo aproximado, o diâmetro aconselhado do TET em função do peso do RN / idade gestacional, sendo prudente que o reanimador escolha como reserva um TET de diâmetro superior e outro de diâmetro inferior ao escolhido.  No mesmo é referido o comprimento a inserir desde o lábio superior (entubação orotraqueal).

Uma regra matemática permite calcular, também, o comprimento do TET a inserir: distância em cm = peso em kg + 6. Em alternativa, a distância tragus-nasal pode ser usada para avaliar a distância entre a extremidade do TET e o lábio.

QUADRO 3 – Calibre do TET.

TUBO ENDOTRAQUEAL (TET)
Peso (g)Idade gestacional (semanas)Diâmetro do tubo (mm)Comprimento a inserir desde o lábio superior (cm)

<1000
1000-1999
2000-2999
≥3000

<28
28-34
34-38
>38

2.5
3.0
3.5
3.5-4.0

6.5-7
7-8
8-9
>9

Notas importantes:
– Actuação:

1º – ventilação, idealmente com TET;
2º –  a massagem cardíaca que, portanto, só deve ser iniciada após a ventilação (e mantendo esta, idealmente via TET).

Como variante e pormenores desta técnica, referem-se:

    • Compressão feita com o indicador e o médio, “evitando o apêndice xifoideu”;
    • Grau de compressão correspondendo a cerca de 1/3 do diâmetro ântero-posterior do tórax;
    • Não deslocação dos dedos da sua posição inicial de contacto com a pele do RN para prevenir o traumatismo de órgãos vizinhos e a ineficácia da manobra.
    • O modo correcto das compressões e insuflações assim como a não interrupção do procedimento são mais importantes do que providenciar o número exacto de manobras por minuto. (Figura 5)

Actuação prática em casos especiais

Hérnia diafragmática congénita (HDC)

O diagnóstico de HDC, idealmente, deverá ser realizado antes do nascimento.

No RN com diagnóstico pré-natal de HDC, a equipa de reanimação, informada do diagnóstico, deverá electiva e imediatamente após o nascimeno proceder a; 1) entubação traqueal; 2) ventilação com pressão positiva; 3) colocação de sonda nasogástrica para evitar hiperdistensão gástrica; 4) restante suporte vital que a situação imponha.

Notas importantes:

    • Nos RN com síndroma de dificuldade respiratória no pós-parto imediato, abdómen escafóide, ventilação assimétrica, e desvio dos sons cardíacos é essencial ponderar este diagnóstico e proceder em conformidade.
    • Nos casos de HDC, o risco de pneumotórax durante a reanimação é considerável; caso se verifique, deverá ser feita a descompressão imediata através de punção pleural com agulha tipo butterfly no 4º espaço intercostal esquerdo (EIE) na linha axilar anterior, conectada a seringa ou a sistema de drenagem subaquática.

Gastrosquise

A gastrosquise pode ser diagnosticada no âmbito da vigilância pré-natal pela observação ecográfica de vísceras em localização extraparede abdominal, sem saco de revestimento.

Para além das manobras atrás descritas de reanimação caardiorrespiratória, salientam-se as particularidades da chamada fase de reanimação circulatória: reposição de líquidos (as perdas são essencialmente de plasma e fluidos intersticiais), com necessidade de volumes muito superiores aos habituais: 150-300 mL/kg/dia, isótonicos, colóides, soro fisiológico ou lactato de Ringer.

Obstrução da via respiratória superior

A obstrução da via respiratória superior, seja intrínseca ou extrínseca, pode determinar adaptação difícil à vida extrauterina (traduzida fundamentalmente por esforço respiratório precoce) susceptível de tornar a reanimação mais laboriosa.

  • No RN com macroglossia ou glossoptose, o decúbito lateral ou ventral pode ajudar a aliviar os sintomas; se tal não se verificar, com o apoio de anestesista e endoscopista, pode tentar-se a colocação de tubo nasofaríngeo sob controlo fibroendoscópico;  
  • No RN com anomalia congénita do maciço facial pode ser difícil a realização de entubação traqueal; se, após aplicação do laringoscópio a visualização das cordas vocais for difícil ou impossível, poderá tentar-se sem laringoscópio, usando o método táctil:
    1. RN em decúbito dorsal com plantas dos pés frente ao reanimador;
    2. Segura-se o TET com a mão direita e, com o 4º dedo da mão esquerda introduzido na boca do RN avança-se até tocar na ponta da epiglote que se tenta levantar enquanto se introduz o TET;

A entubação traqueal guiada por fibroendoscopia constitui uma alternativa a utilizar nos casos de obstrução da via respiratória superior.

Surfactante no bloco de partos

Essencialmente, existem duas estratégias no que respeita à administração de surfactante: a profiláctica e a de recurso (ou resgate).

Na estratégia profiláctica, o surfactante é administrado nos primeiros minutos de vida a RN com maior probabilidade de desenvolvimento do problema respiratório típico da prematuridade por défice de surfactante (doença da membrana hialina), designadamente, em situações associadas a idade gestacional < 28 semanas, e a não administração de corticoides à grávida.  

Na estratégia de recurso, a administração de surfactante é protelada até verificação dos primeiros sinais de dificuldade respiratória relacionável com a referida doença.

Muitos estudos publicados têm demonstrado que ambas as estratégias são seguras e eficazes, continuando, contudo, a existir controvérsia quanto à selecção de pacientes para tratamento profiláctico, e ao intervalo de tempo máximo recomendado para a administração de primeira dose. Salienta-se, contudo, que em regra é recomendada a administração profiláctica aos 10 minutos de vida após período de ventilação com pressão positiva iniciada no pós-parto imediato.

Tem sido observado um crescente interesse no uso precoce do método de pressão positiva contínua por via nasal (CPAP nasal – nasal continuous positive airway pressure) já a partir do bloco de partos, em RN com idades gestacionais mais baixas.

Alguns estudos têm sugerido que esta estratégia poderá diminuir a necessidade de ventilação invasiva, a utilização de surfactante e a incidência de doença pulmonar crónica.

Também, a estratégia designada de “INSURE” (ou intubation – surfactant – extubation) significando “entubação electiva para administração de surfactante seguida de extubação” e aplicação de CPAP nasal pode contribuir para reduzir a necessidade de ventilação mecânica e suas complicações. De facto, a pressão positiva contínua/CPAP, mantendo os alvéolos distendidos, reduz a probabilidade de lesão do surfactante e, por outro lado, estimula a sua produção.

Para melhor compreensão das estratégias de assistência respiratória no pós-parto imediato em RN pré-termo, e especialmente em situações de prematuridade  (< 28 semanas e < 1.000 gramas) tendo em vista a prevenção de lesão alveolar pulmonar e suas sequelas, será útil a consulta do capítulo sobre problemas respiratórios.

Cuidados pós-reanimação

Na fase imediata à reanimação (na Hora de Ouro), seguindo-se à recuperação dos sinais vitais (estabilização), existe risco de deterioração, o que implica preparação da equipa para eventual intervenção nas horas subsequentes. Mesmo que o RN submetido a reanimação não seja transferido para UCIN, deverá ficar sob vigilância nas horas subsequentes em unidade de internamento: – prevenindo a hipotermia, a hipoglicémia e a infecção; e – possibilitando a monitorização biofísica (frequência cardíaca, respiratória, pressão arterial, SpO2, etc.) e bioquímica.

Importa salientar que o aleitamento deve ser fomentado e iniciado o mais precocemente possível, exceptuando no contexto de eventual contraindicação relacionado com o estado clínico da mãe ou bebé.

A administração de naloxona não é recomendada como fazendo parte das medidas iniciais no bloco de partos para combater a depressão respiratória. Aliás, é importante referir que nunca deve ser utilizada em RN de mães com antecedentes de toxicodependência de opióides pelo risco de síndroma de abstinência neonatal caracterizada por hiperexcitabilidade e convulsões.

Outros fármacos tais como bicarbonato ou vasopressores (por ex epinefrina ou dopamina) raramente estão indicados na fase de estabilização, excepto perante acidose metabólica e ou necessidade de expansão da volémia.  

Tendo em consideração o efeito lesivo da hipoglicémia, a determinação da glucose no sangue deve ser realizada, sendo de considerar no pós parto imediato, em função do contexto clínico de cada caso, a perfusão de glucose IV para prevenir aquela situação.  

Nos casos de RN de termo ou quase de termo (com 36 semanas ou mais) com encefalopatia hipóxico-isquémica moderada a grave (ver capítulo sobre encefalopatia neonatal) os mesmos devem  beneficiar de hipotermia terapêutica devidamente controlada (33,5ºC a 34,5ºC), sendo tal procedimento  iniciado dentro das primeiras 6 horas após o parto, continuando durante 72 horas, com ulterior reaquecimento.

Dilemas éticos

No bloco de partos a equipa de pediatria-neonatologia é muitas vezes confrontada com situações que comportam decisão difícil, designadamente no que se refere à abstenção de reanimação ou à sua interrupção.

Cabe referir, a propósito, que se torna impossível estabelecer consenso absoluto no que respeita ao tópico “reanimação”, uma vez que a adopção de toda e qualquer medida é susceptível de abranger, não só aspectos éticos, mas também científicos, legais, culturais, religiosos, entre outros; por conseguinte, as normas estabelecidas poderão variar entre grupos sociais ou culturais. De qualquer modo, é geralmente admitido que o bloco de partos não constitui o local mais próprio para decidir sobre a vida ou a morte.

Tendo em conta tais condicionalismos, no âmbito de cada país e cada instituição é importante elaborar normas de actuação que poderão ser revistas regularmente, e modificadas se necessário. Por outro lado, as decisões deverão basear-se no maior número de elementos clínicos antenatais, sempre que possível, confirmados no período pós-natal.

As situações que na maior parte dos casos podem suscitar dúvidas e dilemas dizem respeito fundamentalmente aos RN com sinais de imaturidade extrema (RN inviáveis?), àqueles que evidenciam anomalias congénitas (incompatíveis com a vida?), e aos casos em que o tempo de reanimação se prolonga.

Na fase actual dos conhecimentos, no âmbito da maioria dos centros e sociedades científicas perinatais dos países industrializados foram, entretanto, obtidos determinados consensos em situações de parto pré-termo:

  • a idade gestacional é considerada melhor “marcador” de viabilidade do que o peso de nascimento;
  • inviabilidade definida quando a idade gestacional é inferior a 23 semanas;
  • a reanimação deve ser instituída se o diagnóstico de maturidade (idade gestacional precisa) não tiver sido previamente estabelecido;
  • a reanimação não deve ser instituída se a idade gestacional confirmada for inferior a 23 semanas, ou o peso de nascimento inferior a 400 gramas;
  • o sinal clínico “fusão palpebral” habitualmente conotado com imaturidade inviável pode surgir em cerca de 20% dos RN com idades gestacionais compreendidas entre 24 e 27 semanas; todos os esforços devem ser feitos na assistência ao parto e na reanimação de RN com idade gestacional > 27 semanas;
  • nos RN com idade gestacional compreendida entre 25 e 27 semanas haverá que ponderar determinados factores tais como, por ex. a medicação na grávida com corticóides, parto em centro diferenciado com UCIN pressupondo transporte in utero prévio, problemas associados imediatamente detectados no pós-parto, etc..

A este propósito cabe referir que, de acordo com resultados dos estudos da Rede Neonatal Vermont Oxford, a maioria dos RN com peso de nascimento <1.000 gramas submetida a massagem cardíaca e ou tratamento com adrenalina sobrevive (50 % sem HIPV).

Quanto aos RN portadores de anomalias congénitas evidentes, designadamente nos casos de diagnóstico confirmado de trissomia 13 ou trissomia 18, considera-se em geral que se deverá tomar a decisão de iniciar a reanimação. Dada a posssibilidade actual de diagnóstico pré-natal das situações atrás referidas, considera-se que a decisão deva ser discutida com os pais sob os pontos de vista cultural, legal, religioso, etc..

Nas situações de reanimação prolongada, e após 15 minutos de ausência de batimentos cardíacos, apesar da realização de todos os procedimentos de modo adequado, aquela deverá ser interrompida.

BIBLIOGRAFIA

American Academy of Pediatrics. Textbook of Neonatal Resuscitation. Elk Grove Village, IL: AAP, 2011

Apgar V. A proposal for a new method of evaluation of the newborn infant. Curr Res Anest Analg 1953; 32: 260- 267 Boyle RJ, Kattwinkel J . Ethical issues surrounding resuscitation. Clin Perinatol 1999; 26: 779-792

Chang C, Perlman J. Anticipation and preparation for delivery room emergencies. Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24 (6): Article 101031

Davis PG, Dawson JA. New concepts in neonatal resuscitation. Curr Opin Pediatr 2012; 24: 147 – 153

Davis PG, Tan A, O ́Donnell CP, et al. Resuscitation of newborn infants with 100% oxygen or air: a systematic review and meta-analysis. Lancet 2004; 364: 1329-1333

Dawson JA, Kamlin CO, Vento, et al. Defining the reference range for oxygen saturation for infants after birth, Pediatrics 2010; 125: e1340-1347

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Guimarães J, Tuna ML, Loio P, et al. Ventilação  Neonatal – Manual Prático. Lisboa: Associação Pediátrica de S. Francisco Xavier, 2016

Gutvirtz G, Tamar G, Masada R, et al. Does nuchal cord at birth increase the risk for cerebral palsy? Early Hum Develop 2019; 133: 1-4

Hainstock LM, Raval GR. Neonatal resuscitation. Pediatr Rev 2020; 41: 155-158

Halamek LP, Morley C. Continuous positive airway pressure during neonatal resuscitation. Clin Perinatol 2006; 33: 83- 98

Hooper SB, Roberts C, Dekker J, et al. Issues in cardiopulmonary transition at birth. Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24 (6): Article 101033

Hosono S, Tamura M, Isayama T, et al. Summary of japanese neonatal cardiopulmonary resuscitation guidelines 2015. Pediatr Int 2020; 62: 128–139.doi: 10.1111/ped.14055 Guidelines

Horbar J, Carpenter J, Buzas J, Soll R, et al. Timing of initial surfactant treatment for infants 23 to 29 weeks` gestation: Is routine practice evidence based? Pediatrics 2004; 113:1593- 1602

Kattwinkel J, Perlman JM, Aziz K, et al. Special report-neonatal resuscitation: 2010 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Pediatrics 2010; 122: S909 – S919

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lapcharoensap W, Lund K, Huynh T. Telemedicine in neonatal medicine and resuscitation. Curr Opin Pediatr 2021, 33:203–208

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Owen LS, Manley BJ, Davis PG. Delivery room emergencies: Respiratory emergencies.  Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24 (6): Article 101039

Powell R, Pattison HM, Bhoyar A, et al. Pulse oximetry screening for congenital heart defects in newborn infants: an evaluation of acceptability to mothers. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2013; 98: F59-F63

Raju TNK. Timing of umbilical cord clamping after birth for optimizing placental transfusion. Curr Opin Pediatr 2013; 25:180-187

Rao R, Bora R. Timing of umbilical cord clamping and infant brain development. J Pediatr 2108; 203: 8-9

Richmond S, Goldsmith JP. Air or 100% oxygen in neonatal resuscitation? Clin Perinatol 2006; 33: 11-27

Saugstad OD, Robertson NJ, Vento M. A critical review of the 2020 International Liaison Committee on Resuscitation treatment recommendations for resuscitating the newly born infant. Acta Paediatrica 2021;110:1107–1112

Saugstad OD. New guidelines for newborn resuscitation a critical evaluation. Acta Paediatrica 2011; 18:1-5

Soll RF. The use of oxygen in the delivery room. Pediatrics Jan 2019, 143 (1) e20183365; DOI: 10.1542/peds.2018-3365

Uslu S, Bulbul A, Can E, et al. Relationship between oxygen saturation and umbilical cord pH immediately after birth. Pediatrics and Neonatology 2012; 53: 340-345

Weiner GM. Textbook of Neonatal Resuscitation. Elk Grove,IL: American Academy of Pediatrics and American Heart Association, 2016

Welsford M, Nishiyama C, Colleen Shortt C, et al. Initial oxygen use for preterm newborn resuscitation: a systematic review with meta-analysis Pediatrics 2019; 143:  e20181828; DOI: 10.1542/peds.2018-1828

Welsford M, Nishiyama C, Colleen Shortt C, et al. Room air initiating for term newborn resuscitation: a systematic review with meta-analysis. Pediatrics 2019; 143: e20181825; DOI: 10.1542/peds.2018-1825

Wyckoff MH, Wyllie J. Endotracheal delivery of medications during neonatal resuscitation. Clin Perinatol 2006; 33: 153- 160 Wyllie J. Recent changes to UK newborn resuscitation guidelines. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2012; 97: F4 – F7

Wyckoff MH, Escobedo MB, et al. Part 13: Neonatal Resuscitation 2015. AHA Guidelines Update for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Circulation 2015; Nov 3; 132 (18 Suppl 2): S 543-S 560

Wyckoff MH, Wyllie J. Endotracheal delivery of medications during neonatal resuscitation. Clin Perinatol 2006; 33: 153- 160 Wyllie J. Recent changes to UK newborn resuscitation guidelines. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2012; 97: F4 – F7

CUIDADOS AO RECÉM-NASCIDO APARENTEMENTE SAUDÁVEL

Importância do problema

Este capítulo descreve os cuidados a propiciar ao RN aparentemente saudável durante o internamento no hospital-maternidade, o que pressupõe permanência do mesmo junto da mãe desde o nascimento até à alta para o domicílio promovendo o vínculo mãe-filho.

Nesta fase é de primordial importância que a equipa prestadora de cuidados (médico – pediatra/neonatologista, enfermeira e outros profissionais de saúde) exerça o seu papel de educação para a saúde junto dos pais, que se estabeleça contacto com o médico-assistente futuro (médico de família ou pediatra) e com o centro de saúde a que a família está ligada. É também desejável que, antes da alta, a mãe colabore nos cuidados ao filho acabado de nascer, o que constitui oportunidade ímpar de aprendizagem; de realçar o papel imprescindível dos profissionais de saúde no que respeita ao esclarecimento de dúvidas surgidas realçando a importância dos Boletins da Grávida e de Saúde Infantil e Juvenil.

Cuidados na sala de partos

Os cuidados a assegurar no pós-parto imediato são os seguintes:

  • Admitindo boa adaptação à vida extra-uterina e ausência de necessidade de reanimação, a laqueação do cordão deverá ser diferida até, pelo menos, 1 minuto;*
  • O RN deve ser imediatamente colocado sob uma fonte de calor e limpo com cuidado com um pano estéril, seco e aquecido. A substância gordurosa que o cobre (vernix caseosa) tem um efeito protector da pele, pelo que o banho na sala de partos apenas deve ser dado se houver sinais de amnionite ou a mãe for seropositiva para VIH ou portadora de hepatite B ou C. Embora este capítulo diga respeito ao RN aparentemente saudável, em geral, de termo, cabe salientar, a propósito dos cuidados gerais iniciais, segundo as novas normas de actuação, de consenso internacional, sob os auspícios do ILCOR 2010, nos RN de idade gestacional < 28 semanas, mantendo-se o tipo de cuidados referidos, não se deve proceder à secagem da pele;*
  • Avaliação sistemática do índice de Apgar ao 1º e 5º minutos de vida;
  • Realização de exame objectivo sumário com o objectivo de rastrear anomalias e avaliar o estado geral e a adaptação fetal à vida extrauterina. O peso de nascimento deve ser registado, assim como todos os dados referentes aos antecedentes pré-concepcionais e da gestação;
  • Profilaxia da doença hemorrágica com dose única de 1 mg de vitamina K1 por via intramuscular;
  • Profilaxia da conjuntivite neonatal por Neisseria gonorrhoeae com nitrato de prata;
  • Colocação de pulseira de identificação, a qual somente deverá ser retirada pelos pais quando o recém-nascido estiver em casa;
  • O RN vestido deve ser colocado num berço, sob uma fonte de calor, em decúbito dorsal junto à mãe na enfermaria desta (ou noutra enfermaria temporariamente se o estado clínico da mãe não o permitir) e “posto ao peito” nas primeiras duas horas de vida.

* ILCOR, sigla de International Liaison Committee on Resuscitation guidelines.
Trata-se das novas normas adoptadas internacionalmente, e elaboradas por oito grupos de trabalho de diversas sociedades internacionais, tais como a American Heart Association e Resuscitation Council (http://www. ilcor.org/en/consensus-2020/worksheets-2020)

Cuidados na enfermaria junto da mãe

  • Nesta área deverá ser confirmada a prestação dos cuidados adequados na sala de partos, nomeadamente: identificação, administração de vitamina K1 e profilaxia da conjuntivite;
  • Deve realizar-se um exame objectivo minucioso, não esquecendo o registo dos parâmetros somatométricos;
  • O Boletim de Saúde Infantil e Juvenil deve ser devidamente preenchido;
  • Devem ser administradas as primeiras vacinas: 1ª dose da vacina anti-hepatite B, e BCG (excepto se a mãe for VIH+, e tiver tuberculose pulmonar activa);
  • Independentemente do tipo de parto, o recém-nascido não deve ter alta antes das 36 horas de vida e nunca antes de ter havido comprovação de micções e de, pelo menos, uma dejecção.

Alimentação

Reiterando a “mensagem” que foi transmitida anteriormente sobre “alimentação com leite materno” – o melhor alimento para o recém-nascido é o leite da própria mãe –, sugere-se ao leitor a consulta da Parte sobre Nutrição-volume I. (Figura 1)

FIGURA 1. RN alimentado “ao peito”.

Higiene do coto umbilical

A desinfecção do coto umbilical faz-se diariamente com compressa embebida em álcool a 70º (não devendo ter aditivos), não esquecendo a zona junto à pele. O coto deve colocar-se fora da fralda, evitando-se que se molhe com urina. Deve ser observado diariamente, tentando detectar, nomeadamente, se apresenta mau cheiro, secreção ou hemorragia. Estando seco, o coto do cordão destacar-se-á mais precocemente: tal deverá ser explicado à mãe. Segundo a experiência de alguns autores, não haverá vantagem no emprego tópico de álcool a 70º ou de antissépticos em geral. 

Higiene corporal

  • O banho poderá ser propiciado durante a curta estadia na maternidade, mesmo antes de o cordão se destacar, desde que haja condições logísticas (incluindo profissionais de saúde suficientes facilitando o ensino à mãe) e de higiene básica na unidade neonatal. Quer em casa, quer na unidade neonatal, o mesmo (diariamente ou em dias alternados, atendendo sempre a situações especiais) deverá processar-se a temperatura ambiental adequada (em geral ~ 24-27ºC), com água a 35-36ºC para manter a temperatura rectal ~ 37ºC.
  • Em alternativa ao banho, pode lavar-se a criança parcelarmente por zonas, primeiro a cabeça, depois o corpo e, por fim, os membros de modo a evitar que se molhe o umbigo, e o arrefecimento.
  • Não devem ser usados produtos perfumados na limpeza da pele. O sabonete de glicerina é uma boa opção. A face deve ser lavada apenas com água.
  • O RN deve secar-se com uma toalha turca sem esfregar, incluindo as orelhas e as pregas, sem introduzir cotonetes no canal auditivo. As narinas também devem ser limpas suavemente para a remoção de secreções.
  • Depois do banho, a criança deve ser vestida: primeiro a camisa, e depois, a fralda.

Alguns problemas comuns

  • As fezes do lactente alimentado ao peito são ácidas e a pele em volta do ânus e órgãos genitais pode ficar vermelha, tipo “assado”. Quando se procede à mudança da fralda, após a higiene necessária, pode ser aplicado um creme protector.
  • Nos primeiros dias a urina pode deixar na fralda uma mancha residual cor de tijolo: tal se explica pela excreção de uratos. Este evento é considerado normal, regredindo espontaneamente.
  • No final da primeira semana de vida, pode surgir aumento do volume das glândulas mamárias (Figura 2) e, nos do sexo feminino, uma pequena hemorragia vaginal. Trata-se de manifestações clínicas consideradas normais, explicáveis pela transferência de hormonas da mãe para o recém-nascido, e regredindo espontaneamente, pelo que não está indicado qualquer procedimento.
  • O chamado eritema tóxico (máculas dispersas vermelhas, com um centro mais claro), constitui uma reacção habitual, não necessitando de cuidados especiais.

FIGURA 2. Tumefacção mamária em recém-nascido.

Cuidados no domicílio

  • Em casa, a criança deve ser recebida num ambiente calmo.
  • Todas as pessoas que manuseiam a criança devem praticar de modo sistemático hábitos fundamentais de higiene, designadamente, lavagem frequente das mãos antes e depois do manuseamento da mesma.
  • No local onde estiver o RN (evitando-se aglomerados numerosos), as pessoas não devem obviamente fumar; apesar de o contexto actual ser diverso daquele vivido há anos atrás, a insistência terá cunho pedagógico.
  • Nas saídas de casa a criança não deverá permanecer em locais com grande concentração de pessoas, tais como supermercados ou centros comerciais.
  • É aconselhável a posição de dormir em decúbito dorsal, explicando-se à mãe-família a razão de tal procedimento. Durante o dia, e sob vigilância rigorosa, quando o bebé está vígil, poderá ser colocado por períodos em decúbito ventral a fim de minorar a possibilidade de deformação craniana (plagiocefalia posicional). É o chamado “tummy time” ou período fraccionado permitido de posição em decúbito ventral.
  • O colchão deve ser plano e duro, de modo a não provocar covas, e ajustado aos bordos do berço. Não devem ser utilizados edredão nem almofada, assim como cordões ou fralda para segurar a chupeta.
  • Os irmãos e todas as pessoas que manuseiam a criança (nunca é exagero repetir) devem lavar cuidadosamente as mãos; deverá ser igualmente providenciada a lavagem da face dos irmãos que frequentam a escola ou infantário.
  • As pessoas com doença respiratória devem usar máscara que cubra a boca e o nariz, sempre que contactem com o lactente. As mãos devem ser lavadas antes e depois de colocar a máscara e, sempre, após o assoar.
  • Idem para o caso da mãe a amamentar, a qual pode continuar a amamentação.
  • Entre o 4º e o 6º dia de vida, o RN deve ser transportado ao Centro de Saúde da área de residência para se proceder à colheita de sangue para diagnóstico precoce (teste do pezinho) devendo marcar-se consulta médica entre a 1º e a 2ª semana de vida.
  • O Boletim de Saúde Infantil e Juvenil e o Boletim Individual de Saúde (de Vacinas) devem sempre acompanhar a criança no âmbito de todo e qualquer acto médico e/ou de enfermagem. Deve verificar-se se foi realizado e registado o resultado do rastreio auditivo.

Sinais de perigo

Como complemento do que foi descrito, estando ou não o RN já em casa, salienta-se que os pais devem ser esclarecidos quanto aos sinais considerados de perigo (aspecto geral de “não estar bem” podendo indiciar doença grave) os quais implicam observação por médico. São dados os exemplos mais significantes:

  • Recusa alimentar;
  • Secreções oro-nasais contendo abundantes bolhas de ar;
  • Dificuldade respiratória;
  • Vómitos biliares repetidos;
  • Palidez acentuada;
  • Cianose;
  • Petéquias;
  • Choro intenso;
  • Icterícia surgida nas primeiras 24 horas de vida ou, prolongada, para além de 2 semanas, com especial significado se o lactente não estiver a ser alimentado ao peito;
  • Gemido;
  • Irritabilidade, agitação, tremores espontâneos, convulsões;
  • Hiporreactividade, hipotonia;
  • Hipersudorese quando está a mamar ou a tomar biberão;
  • Perda de peso superior a 10% do peso de nascimento;
  • Febre ou hipotermia;
  • Alterações macroscópicas da urina ou fezes;
  • Distensão abdominal com vómitos e obstipação, etc..

Nota: a ausência ou atraso de eliminação de urina e/ou de mecónio nas primeiras 48 horas constitui sinal anómalo habitualmente detectado pelo médico ou enfermeiro, quando o RN ainda está internado após o parto.

BIBLIOGRAFIA

Cloherty JP, Eichenwald EC, Strak AR. Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Lippincott Williams & Wilkins, 2008

Davies PG, Dawson JA. New concepts in neonatal resuscitation. Curr Opin Pediatr 2012; 24: 147 – 153

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics. Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Miall L, Rudolf M, Levene M. Paediatrics at a glance. Oxford: Blackwell, 2007

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Ruiz-Pelaez JG, Charpak N, Cuervo LG. Kangaroo mother care, an example to follow from developing countries. BMJ 2004; 329:1179-1181

Wyckoff MH, Aziz K, Escobedo MB, et al. Neonatal resuscitation: 2015 American Heart Association guidelines update for cardiopulmonary resuscitation and emergency cardiovascular care. Circulation 2015; 132 (Suppl 2): S542-S560

Wyllie J. Recent changes to UK newborn resuscitation guidelines. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2012; 97: F4 – F7

EXAME CLÍNICO DO RECÉM-NASCIDO

Objectivos do primeiro exame clínico do RN

O primeiro exame clínico do RN, com especificidades relativamente ao exame clínico do lactente e criança em geral, tem como objectivos fundamentais:

  1. Avaliar a adaptação fetal à vida extra-uterina;
  2. Detectar anomalias congénitas (muitas vezes identificadas ou suspeitadas por exame imagiológico pré-natal);
  3. Avaliar a maturidade física e neurológica.

Tal exame implica a realização de anamnese perinatal (que, na perspectiva de antecipação de cuidados, deverá ser feita idealmente na fase pré-natal ou no pré-parto, à mãe grávida), entrando em conta com os dados obtidos a partir do Boletim da Grávida; este incluirá registos importantes relativos aos exames clínicos no âmbito da vigilância pré-natal (designadamente evolução da altura uterina, dados ecográficos, etc.) e a eventuais procedimentos englobados no conceito de diagnóstico pré-natal.

Anamnese

Os dados da anamnese a registar no processo clínico são sistematizados do seguinte modo:

  • Filiação, idades materna e paterna, morada, dia e hora de nascimento, nº do processo clínico;
  • Antecedentes familiares
    Doenças genéticas, anomalias congénitas, doenças endócrinas, doenças metabólicas, sífilis, tuberculose, infecção por VIH, SIDA, etc.;
  • Antecedentes maternos
    Idade, profissão, situação económico-social (índice de Graffar), consanguinidade, grupos sanguíneos (AB0 e Rh), doenças endócrino-metabólicas (diabetes, hipo ou hipertiroidismo, outras), hábitos de tabaco ou álcool, doenças hematológicas (anemia, púrpura, outras), hipertensão, epilepsia, infecções do grupo TORCHS), etc.;
  • Antecedentes paternos
    Idade, profissão, situação económico-social, estado de saúde, grupos sanguíneos (designadamente se mãe do grupo 0 ou Rh negativo).

Nota importante: a componente social/ambiental dos progenitores ou tutores pode ser avaliada através da chamada escala de Graffar (Consultar Anexos /vol. 3).

 

  • Antecedentes obstétricos
    Gravidezes anteriores (por ex. prematuridade, disfunção placentar, gemelaridade, iso-imunização, morte fetal, tipos de parto, aborto, etc.), drogas administradas durante a gravidez e parto, data do 1º dia da última menstruação, patologia da gravidez (eclâmpsia, síndroma antifosfolípida, hipertensão, lúpus eritematoso sistémico, doença renal crónica, hemorragia do terceiro trimestre, placenta prévia, ameaça de aborto, hospitalizações, etc.), características do parto (duração do trabalho de parto, febre intra-parto, via baixa, fórceps, cesariana, manobras de versão, tempo de ruptura da bolsa de águas, líquido amniótico (límpido, tinto de mecónio, fétido, quantidade- oligo ou polihidrâmnio, etc.), apresentação do RN, peso e aspecto da placenta (em condições de normalidade, cerca de 1/5 a 1/6 do peso do RN, eventuais zonas de enfarte, etc.), anestesia, analgesia, etc.;
  • Interpretação dos dados colhidos
    Determinados dados colhidos através da anamnese poderão ser de grande utilidade no que respeita à detecção antecipada de possíveis problemas:
    • Contacto da grávida com determinadas infecções → possível infecção no RN,
    • Hábitos de fumo com tabaco → baixo peso de nascimento,
    • Abuso de álcool → síndroma alcoólica fetal,
    • Gravidez em adolescente → baixo peso de nascimento e/ou prematuridade,
    • Febre materna ou febre intra-parto → possível infecção no RN,
    • Progressão ponderal na gravidez: deficiente → baixo peso de nascimento; excessivo → diabetes materna, macrossomia fetal,
    • Hipertensão arterial na gravidez → restrição do crescimento intra-uterino,
    • Oligo-âmnio → possível anomalia nefrourológica,
    • Poli-hidrâmnio → possível anomalia do SNC ou do tubo digestivo.

Exame objectivo

Sendo fundamental recordar a importância da prevenção das infecções, cabe chamar a atenção para a obrigatoriedade da lavagem das mãos e antebraços do observador antes da realização do exame objectivo (como os cirurgiões antes da operação); em situações especiais poderá estar indicada a realização do mesmo com luvas esterilizadas (e, eventualmente, de barrete, máscara e óculos de protecção).

No bloco de partos, após o nascimento, conhecendo o índice de Apgar, é realizado um primeiro exame objectivo sumário para avaliação do peso, comprimento, perímetro cefálico, comportamento e vitalidade (choro vigoroso, gemido, etc.), cor da pele (por ex. rosada, pálida, cianótica), actividade motora e postura dos membros (simetria ou assimetria, sendo que toda e qualquer assimetria de postura é anómala), frequência cardíaca/FC (normal:100-160 batimentos/minuto), frequência respiratória/FR (normal: 40-50 ciclos/minuto, índice de Silverman, pressão arterial/PA (em casos especiais), tempo de recoloração capilar da pele detectado por compressão digital na face anterior do tórax (normal até 3 segundos), detecção de anomalias congénitas (por ex. imperfuração anal), verificação dos vasos umbilicais (1 veia e 2 artérias), etc..

O exame objectivo mais pormenorizado e estruturado em alíneas que a seguir se discriminam (exame físico geral e exame físico por regiões), poderá ser realizado nas 2 a 4 horas a seguir ao parto, idealmente na presença dos pais; deverá aproveitar-se este acto médico para explicar os procedimentos realizados e esclarecer eventuais dúvidas surgidas.

A propósito da descrição dos aspectos semiológicos é abordada, nalgumas situações, a respectiva interpretação etiopatogénica.

Inspecção geral

Deve ser realizada antes de se proceder ao exame objectivo sistematizado por regiões. O RN deve estar sem roupa, numa marquesa própria, sob fonte de calor.

*Postura

No RN de termo verifica-se: cabeça em rotação lateral ou na linha média (região occipital assente no plano do berço); flexão simétrica dos segmentos dos membros superiores (antebraço sobre o braço e braço sobre o tronco) e semiflexão, também simétrica dos segmentos dos membros inferiores; dedos flectidos sobre as mãos; durante o choro executa movimentos dos quatro membros e da região cérvico-cefálica. (Figura 1)

FIGURA 1. Postura de RN de termo. (URN-HDE)

No RN pré-termo, os membros superiores e inferiores assumem posição em extensão pela hipotonia compatível com a imaturidade (Figura 2); à medida que avança a maturidade, a tendência para a flexão dos membros verifica-se no sentido membros inferiores (os primeiros a ficarem flectidos) → membros superiores (flexão em idade gestacional mais avançada).

Nos casos de fractura de clavícula ou de lesão óssea por sífilis congénita pode haver hipomobilidade do membro do lado afectado (superior na primeira hipótese, superior ou inferior na segunda hipótese).

Na apresentação de nádegas, os membros inferiores podem evidenciar uma postura assimétrica (Figura 3); nas apresentações de face, hiperextensão da cabeça; na paralisia do plexo braquial, extensão, pronação e rotação interna dum membro superior unilateralmente ou mão pendente unilateral (exemplos de assimetrias). Ou seja, e reiterando, toda e qualquer assimetria – estática ou de movimento – é considerada anómala.

*Fácies

Deve verificar-se a simetria da face (assimetria do sulco nasogeniano menos marcado, comissura labial mais aproximada da linha média e pálpebra superior do mesmo lado menos encerrada, sugestivos de paralisia facial periférica), fácies sui generis como na síndroma de Down, na síndroma de Edwards, fácies pletórica de “lua cheia” como nos RN de mãe diabética, fácies com retrognatismo, como na síndroma de Pierre Robin, fácies de bebé colódio, etc.. (Figura 4)

Um aspecto designado habitualmente por máscara equimótica (cor azulada da fronte e face como resultado da confluência de petéquias e pequenas sufusões) resulta de hipertensão no território da veia cava superior, em geral relacionável com circular do cordão apertada; poderá também ocorrer no contexto de parto precipitado, com período expulsivo rápido com consequente compressão e descompressão torácica bruscas, originando hipertensão no território da veia cava superior. (ver capítulo sobre lesões traumáticas)

*Choro

No RN de termo saudável, o choro é vigoroso, de tonalidade variável; a verificação de choro fraco, acompanhado ou entrecortado de gemido e/ou de dificuldade respiratória, agudo e monótono (o chamado “grito cerebral”) traduz situação anómala de etiopatogénese diversa. O chamado “choro miado” ou símile miar do gato é típico da “síndroma do miar do gato” ou cri du chat.

*Pele

No que respeita à textura, ela é muito variável (desde brilhante, lisa, gelatinosa no RN pré-termo a áspera, descamativa no RN pós-termo ou com antecedentes de disfunção placentar). Quanto à cor, pode evidenciar palidez (por anemia), cor vermelha viva ou aspecto pletórico, típica das situações de policitémia/ hiperviscosidade, ou icterícia (seguramente patológica se evidenciada precocemente -1as 24 horas de vida).

A cianose das extremidades (acrocianose ou periférica), traduzindo instabilidade vasomotora ou menor velocidade circulatória nas mãos e pés, provocada pelo frio, é muito frequente (sobretudo nos membros inferiores); regride geralmente com o aquecimento. A cianose dita central é notória ao nível da língua, leitos ungueais e lobos da orelha. O aspecto de pele marmoreada pode traduzir hipovolémia ou acção do frio.

As equimoses de etiopatogénese diversa, poderão traduzir fragilidade capilar, mais frequente no RN pré-termo; a localização depende da apresentação fetal.

A vernix caseosa é tanto mais abundante quanto menor a idade gestacional; nos RN de termo é observada sobretudo nas pregas de flexão.

Trata-se de matéria gorda de consistência saponácea que cobre parcialmente a pele do feto e RN; formada por sebo e células epiteliais descamadas e por pelos da penugem, tem como funções fundamentais a protecção da pele e o isolamento térmico.

FIGURA 2. Postura de RN pré-termo. (URN-HDE)

FIGURA 3. Postura assimétrica dos membros inferiores em RN com apresentação de nádegas/parto pélvico. (URN-HDE)

FIGURA 4. Fácies de ictiose (bebé colódio). (URN-HDE)

A pele (assim como faneras e cordão umbilical) poderão estar cobertos por mecónio eliminado por surtos durante a gestação como resultado de episódios de hipóxia.

Outros achados detectáveis à simples inspecção:

  • Hemangioma capilar, angioma plano ou nevus telangiectásico
    Este achado, que regride em geral durante o primeiro ano de vida, observa-se mais frequentemente na fronte, pálpebras superiores e nuca;
    A verificação de angioma extenso e verrucoso em segmento cefálico, no território do trigémio (hemifronte/face) pode fazer parte da síndroma de Sturge-Weber; pode verificar-se associação a angioma das leptomeninges;
  • Hemangioma cavernoso
    Nesta situação o aspecto do angioma é uma massa arredondada, firme, com cor de vinho ou arroxeada-avermelhada, simile framboesa, de localização diversa; em geral regride até aos 2-3 anos no sentido centrífugo.
    Na síndroma de Kasabach-Merritt existe associação de grande hemangioma a trombocitopenia;
  • Eritema tóxico ou tóxico-alérgico
    Consiste em lesões eritematopapulosas com centro mais claro ou amarelo, predominando no tronco. Detectadas no 2º-3º dias de vida, verifica-se regressão espontânea até aos 7-10 dias;
  • Milium sebáceo
    Por acção dos estrogénios maternos poderão surgir pequenas granulações com o tamanho de cabeça de alfinete, esbranquiçadas, formadas por pequenos quistos intra-epidérmicos localizados predominantemente no nariz e mento. Trata-se duma situação transitória (semanas) e sem significado patológico, resultante da dilatação dos canais sudoríparos ou dos folículos pilosos;
  • Mancha mongólica
    É uma mácula de cor azul-esverdeada, mais frequente e de maior dimensão na raça preta, desaparecendo até cerca dos 3-5 anos. Localiza-se mais tipicamente nas regiões lombossagrada, glútea, podendo, nalguns casos, atingir a região dorsal. A etiopatogénese relaciona-se com imaturidade da pele, da migração dos melanócitos e com factores raciais; (Figura 5)
  • Lanugo
    O lanugo é uma “penugem” ou conjunto de pelos finos que recobrem o corpo, mais frequentemente e com maior extensão nos RN pré-termo;
  • Fenómeno “arlequim”
    Trata-se duma alteração vasomotora transitória (minutos) e curiosa: hemicorpo rosado e hemicorpo pálido, sendo que existe uma linha recta de separação notória a meio do tronco, como que traçada a régua;

FIGURA 5. Mancha mongólica de grandes dimensões: nádegas e região dorsolombar. (URN-HDE)

  • Pênfigo palmo-plantar
    Corresponde a lesões bolhosas cutâneas contendo líquido seroso relacionáveis com sífilis congénita (um dos tipos de lesão cutâneo-mucosa de etiologia sifilítica, ou sifílide);
  • Pústulas com rubor circundante (foliculite), frequentemente de etiologia estafilocócica.

Parâmetros vitais e somatometria

Já nos referimos aos parâmetros vitais ao abordar o exame imediato do RN no bloco de partos.

No que respeita à somatometria (parâmetros peso, comprimento e perímetro cefálico), cabe referir:

  1. Noções práticas, salientando as seguintes correspondências: a cabeça+tronco correspondem a 2/3 do comprimento do RN, enquanto os membros inferiores, a 1/3 do mesmo comprimento; por sua vez, o perímetro cefálico corresponde ao comprimento “sentado”, ou seja, ao segmento superior;
  2. O peso, comprimento e perímetro cefálico devem ser relacionados com a idade gestacional através da consulta das chamadas curvas de crescimento intra-uterino, precisamente para detectar eventuais desvios do crescimento fetal, o que tem implicações na avaliação do risco do RN. (Figura 6)

FIGURA 6. RN com macrocefalia por hidrocefalia; perímetro cefálico > percentil 90. (URN-HDE)

Cabeça

*Crânio

De acordo com a semiologia clínica clássica, deverá proceder-se à inspecção, palpação e percussão do crânio (e eventualmente auscultação dependendo do contexto clínico).

Em função do modo de apresentação fetal poderá detectar-se assimetrias transitórias através da simples inspecção, assim como sinais de lesões traumáticas.

Através da palpação identifica-se:

  • Fontanela anterior (em losango, com diagonais ~ 2,5 x 2 cm) e a fontanela posterior (com < 0,5 cm em condições de normalidade); fontanela procidente e hipertensa sugere hipertensão intracraniana; fontanela deprimida é detectada em caso de desidratação; fontanela posterior de dimensões > 0,5 cm implica investigar possível hipotiroidismo. De salientar que o exame das fontanelas deverá ser sempre enquadrado na dinâmica do crescimento em geral, e sempre conjugado com o perímetro cefálico, sendo que dimensões muito reduzidas da fontanela anterior poderão sugerir encerramento precoce das suturas;
  • Suturas
    Investiga-se, quer cavalgamento, quer diástase ou afastamento, que constituem sinais anómalos.
  • Tumefacções
    As tumefacções podem ser englobadas em dois tipos:
    • Da linha média (devendo ser consideradas até prova em contrário como anomalias congénitas por defeito de encerramento do tubo neural (por ex. encefalocele, por vezes de pequenas dimensões),
    • Não obedecendo a noção de simetria (bossa serossanguínea e céfalo-hematoma).

A chamada bossa serossanguínea é uma tumefacção mole que ultrapassa o limite das suturas, notória no pós-parto imediato como resultado do edema de compressão do couro cabeludo (zona de apresentação) regredindo nos dias seguintes.

O chamado céfalo-hematoma é uma tumefacção ovóide, não necessariamente detectável no pós-parto imediato, aumentando de dimensões (ao contrário da bossa serossanguínea) e limitada às suturas (também ao contrário do que acontece com a bossa serossanguínea); trata-se duma colecção hemática subperióstica de consistência firme com sensação de flutuação; respeita as suturas, porque o periósteo é “independente” de osso para osso. Sendo colecção hemática subperióstica, se a mesma surgir atipicamente no pós-parto imediato, ela poderá constituir um epifenómeno de fractura óssea no contexto de parto laborioso e traumático. Existe tendência para calcificação/endurecimento da tumefacção, que se torna imperceptível nos meses ou anos seguintes à medida que o crânio cresce. (Figura 7)

A auscultação do crânio poderá detectar sopro, situação compatível com fístula arteriovenosa intracraniana.

*Face

Ao nível da face, a pesquisa de sinais incide sobre os olhos, nariz, orelhas, boca e região mandibular.

FIGURA 7. Tumefacção da cabeça: A – Bossa serossanguínea; B – Céfalo-hematoma. (URN-HDE)

Olhos
Pálpebras

As pálpebras permanecem na maior parte do tempo encerradas. Na inspecção das pálpebras deve analisar-se a inclinação das respectivas fendas (eixo simile-horizontal, mongolóide ou em V, e antimongolóide ou em “A”) assim como os respectivos movimentos; ptose (em relação com paralisia do 3º par craniano ou doença miopática; não encerramento (em relação com paralisia do 7º par), etc.; edema (em relação com a apresentação no parto).

Pupilas

Em situação de normalidade são de dimensões iguais reagindo à luz.

A presença de pupila “branca”, mais notória quando a pupila está mais dilatada, com a designação de leucocória, significa que existe processo patológico posterior à pupila, eventualmente grave, localizado no cristalino, vítreo ou retina. Pode tratar-se, com maior frequência, de catarata, retinoblastoma, ou retinopatia da prematuridade.

Conjuntivas

As hemorragias subconjuntivais, transitórias e raras, resultam de hipertensão no território da veia cava superior durante o parto.

Córnea

A verificação de córnea aumentada e opaca impedindo a visualização da íris é compatível com situação de glaucoma congénito.

Cristalino

A verificação de opacidade do cristalino (catarata) comprova-se incidindo foco luminoso perpendicularmente à íris, através da pupila (utilizando oftalmoscópio para melhor avaliação): em vez da visualização do fundo “avermelhado normal” [na gíria, o chamado REFLEXO VERMELHO NORMAL], obtém-se um fundo “branco” devido ao obstáculo da opacidade do cristalino interposto entre o cristalino e o fundo ocular. (De salientar que a noção semiológica de pupila de “cor branca” ou leucocória pode traduzir igualmente patologia do segmento posterior do olho, nomeadamente retina, exemplificando-se com o retinoblastoma).

Nota importante: alteração do Reflexo Vermelho com ou sem estrabismo, e ou leucocória, e ou antecedentes familiares de retinoblastoma implicam observação urgente por oftalmologista.
Esclerótica

De cor branca no RN de termo, a cor é azul no RN pré-termo e no RN com osteogénese imperfeita.

Nariz

Ao nível do nariz deve pesquisar-se essencialmente a forma (as anomalias de forma podem relacionar-se com defeitos intrínsecos do desenvolvimento, ou com deformações por pressão extrínseca relacionada com a posição in utero ou o próprio parto) e a permeabilidade das fossas nasais e dos coanos.

A obstrução nasal acompanhada de exsudado mucopurulento ou mucopiossanguinolento unilateral ou bilateral pode constituir sinal de sífilis congénita precoce.

A atrésia uni ou bilateral dos coanos pode suspeitar-se em caso de cianose que diminui com o choro; em tal circunstância deve introduzir-se uma sonda de polietileno para confirmação ou exclusão.

Orelhas

Os aspectos essenciais a pesquisar dizem respeito à forma, dimensões, implantação, obstrução do meato externo, presença de fístulas retroauriculares e apêndices pré-auriculares.

Considera-se implantação baixa se a hélice* se localizar abaixo duma linha imaginária horizontal que une as duas comissuras palpebrais externas. (Figura 8)

FIGURA 8. Implantação das orelhas. Tracejado: implantação normal; a cheio: implantação baixa. (consultar texto)

*Hélice da orelha (em inglês ou francês: helix) – prega saliente, em semicírculo, que rodeia o pavilhão da orelha, desde a concha à parte superior do lóbulo.

 

As alterações de forma e posição estão frequentemente associadas a anomalias renais, do primeiro arco branquial e a cromossomopatias.

Boca e região mandibular

No exame objectivo da boca deve averiguar-se sobre os seguintes aspectos: lábios (fenda labial ou lábio leporino? – Capítulo sobre anomalias cromossómicas – Figura 4 -, assimetria da comissura labial? por vezes só notória quando o RN chora, e relacionável com paralisia do facial), filtro (longo, na fetopatia alcoólica, curto na síndroma de Di George), retrognatismo por hipoplasia do maxilar inferior (um componente da síndroma de Pierre Robin, por ex.), orofaringe, palato duro e mole (fenda palatina?, úvula bífida? desvio da úvula?), tumefacções da mucosa e gengivas (quistos de retenção gengival? dente congénito? – por vezes associado a síndroma de Ellis van Creveld, implicando extracção pelo risco de aspiração para a via aérea), língua (macroglóssia sugerindo hipotiroidismo, síndroma de Beckwith-Wiedemann, síndroma de Down, glicogenose do tipo II (doença de Pompe, etc.).

A presença de secreções arejadas/saliva abundantes reaparecendo após aspiração pode levantar a suspeita de atrésia do esófago, designadamente havendo antecedentes de poli-hidrâmnio e sinais ecográficos pré-natais sugerindo obstrução do tubo digestivo superior.

A presença de exsudado branco semelhante a “leite coagulado” sobre as gengivas, face interna da região geniana e língua sugere infecção por Candida (monilíase oral ou “sapinhos”); trata-se de situação evidenciada ao cabo de alguns dias após o nascimento.

As chamadas pérolas de Epstein (alterações benignas e irrelevantes) são pequenas tumefacções do tamanho de cabeça de alfinete (correspondendo a quistos de inclusão, com acumulação de células epiteliais), por vezes agrupadas em número de 2-3, na linha média, tipicamente na transição do palato duro com o palato mole; regridem em semanas. (Figura 9)

As chamadas aftas de Bednar (evidenciadas após a primeira semana de vida) são úlceras localizadas bilateralmente ao nível do palato mole e da procidência das apófises pterigoideias; trata-se de lesões traumáticas raras relacionadas possivelmente com o fenómeno de sucção.

A rânula é uma tumefacção quística sublingual secundária a obstrução do canal excretor da glândula salivar sublingual.

FIGURA 9. Pérolas de Epstein. (URN-HDE)

Pescoço

Como característica fisiológica do RN, o pescoço é curto, sendo que, em situações anómalas como a síndroma de Klippel-Feilé excessivamente curto, o que se explica pela fusão de vértebras cervicais.

Através da inspecção pode observa-se o chamado pterygium colli ou prega bilateral do pescoço, simétrica, muito saliente, fazendo “ponte” entre a apófise mastoideia e os ombros.

Ao longo do bordo anterior do esternocleidomastoideu há que pesquisar tumefacções quísticas e fístulas branquiais. Por vezes detecta-se (somente após a 2ª-3ª semana) uma tumefacção esferóide dura, com cerca de 1 a 3 cm de diâmetro, ao longo de um dos feixes do referido músculo a qual corresponde a hematoma (surgido no contexto de traumatismo de nascimento); a retracção e encurtamento consequentes do músculo poderão originar torcicolo (torção do pescoço com inclinação da cabeça).

Na linha média deve igualmente pesquisar-se a presença de quisto ou fístula do canal tiroglosso, assim como de tiroideia aumentada de volume (bócio congénito).

Deve proceder-se igualmente à auscultação da base do pescoço.

Tórax

Podem ser pesquisados os seguintes aspectos: forma cilíndrica, variações morfológicas (em funil, em quilha, com o apêndice xifoideu saliente), tumores (Figura 10), glândulas mamárias tumefactas – não ocorrendo em todos os RN, em geral a partir do final da 1ª semana com regressão ulterior); deve igualmente verificar-se a distância intermamilar: mamilos muito lateralizados poderão enquadrar-se em síndromas malformativas.

FIGURA 10. Linfangioma quístico da parede do tórax e membro superior esquerdo. (URN-HDE; cortesia do Dr. J. Azevedo Coutinho)

O tipo de respiração é abdominal ou tóraco-abdominal, sendo frequentes variações da frequência e do ritmo respiratórios (e pausas no RN pré-termo).

Deve proceder-se à palpação das clavículas, sendo que qualquer tumefacção e/ou crepitação constitui sinal de fractura; nos casos em que estes sinais não são detectados, poderá ser a própria mãe, após a alta da maternidade, a detectar pequena tumefacção ovóide clavicular traduzindo calo de fractura anterior.

O exame do aparelho respiratório compreende essencialmente a auscultação: murmúrio vesicular audível simétrica ou assimetricamente, ruídos adventícios, etc..

O exame do aparelho cardiovascular compreende os seguintes passos:

  • Palpação do choque da ponta (no RN de termo, no 5º EIE e linha médio-clavicular; desvios traduzem situações anómalas (por ex. dextrocárdia, hérnia diafragmática esquerda, etc.); precórdio hiperdinâmico (procidência intermitente da região precordial coincidindo com a sístole/diástole do miocárdio) ou choque da ponta muito notório, podem constituir sinais de ductus arteriosus permeável;
  • Auscultação dos focos cardíacos convencionais, base do pescoço e dorso; sopro auscultado no dorso deve ser considerado anómalo; sopro mais audível na base do pescoço é compatível com ductos arteriosus permeável; em RN de termo, sopro auscultado no 3º ou 4º EIE ao longo do bordo esternal poderá ser considerado fisiológico, se isolado; a ausência de sopros não exclui cardiopatia;
  • Palpação de pulsos periféricos em regiões extratorácicas (femoral, umeral, radial, pedioso): trata-se dum procedimento fundamental que faz parte do exame cardiovascular; pulsos amplos em RN pré-termo sugerem ductus arteriosus permeável; pulsos femorais palpáveis pouco amplos ou ausentes, ou diferença, quanto à amplitude, dos pulsos nos membros superiores e inferiores sugerem coarctação da aorta; a diminuição generalizada da amplitude dos pulsos sugere hipotensão arterial ou hipovolémia;
  • Determinação da pressão arterial pelo método de doppler: valores médios no RN de termo: sistólica → 80 ± 15 mmHg; diastólica → 46 ± 15 mmHg; a ausência ou diminuição da amplitude dos pulsos femorais implica a necessidade de determinação da pressão arterial, não só nos membros superiores, mas também nos inferiores; hipertensão arterial (definida como valor de pressão arterial igual ou superior ao do percentil 95 para a idade) poderá relacionar-se com doença nefro-urológica.

Considera-se HTA no RN de termo a verificação de pressão sistólica > 100 mmHg (0-7 dias) e > 104 mmHg (8-28 dias).

Abdómen

Através da inspecção pode comprovar-se que o abdómen é globoso expandindo-se em coincidência com a inspiração de modo síncrono (situação normal) ou assíncrono (situação anormal relacionada com dificuldade respiratória); é menos globoso nos casos de restrição de crescimento intra-uterino.

A distensão abdominal importante sugere processos obstrutivos do tubo digestivo, massas abdominais, infecção sistémica, hipomagnesémia, etc.. Abdómen escavado ou menos globoso pode sugerir hérnia diafragmática de Bochdalek.

Outros aspectos que são evidentes à inspecção da parede abdominal incluem: onfalocele (exteriorização das vísceras cobertas por saco peritoneal), gastrosquise (exteriorização das vísceras não cobertas por saco peritoneal) e o coto umbilical; relativamente a este último, constitui procedimento sistemático a contagem dos vasos: duas artérias e uma veia, sendo que a verificação de artéria umbilical única poderá estar associada a anomalias cardiovasculares e/ou nefro-urológicas (associação pouco sensível e pouco específica). (Figura 11)

FIGURA 11. Coto umbilical evidenciando anomalia: artéria única (vaso de menor calibre). (URN-HDE)

Na observação do RN no decurso da primeira semana ou mais tarde, há que inspeccionar a base do cordão (ou a região umbilical após o cordão se ter destacado) para detecção de edema e outros sinais inflamatórios como exsudado eventualmente purulento (sinais de onfalite); por vezes, após se ter destacado, detecta-se ao nível da cicatriz umbilical uma pequena massa esferóide, do tamanho de grão de arroz ou de pequena ervilha, de cor vermelha brilhante constituída por tecido granulomatoso (granuloma).

No que respeita à palpação, salienta-se que o fígado é uma estrutura normalmente palpável (cerca de 2 cm abaixo do rebordo costal direito); em condições de normalidade o baço raramente é palpável; nos RN pré-termo os rins também podem ser palpáveis.

Salienta-se que mais de metade das massas abdominais anómalas no RN tem origem no rim.

Pela inspecção e palpação do hipogastro: a verificação de procidência ou distensão localizada na linha média, de superfície lisa e sob tensão relaciona-se, em geral, com distensão da bexiga (o chamado “globo vesical”); no sexo feminino a distensão pode relacionar-se com hidrometrocolpos.

Região anorrectal

Através da inspecção da região anal deve verificar-se a posição do ânus (desvios da linha média ou para diante em relação com possíveis lesões tumorais vizinhas), o pregueamento radiário normal (pregas da mucosa) testemunhando, em princípio, esfíncter anal funcionante; em situações de defeitos do tubo neural (spina bifida) pode não existir tal pregueamento, o que poderá traduzir esfíncter incontinente.

A eliminação de mecónio por via rectal traduz, em princípio, permeabilidade anorrectal; se tal não for comprovado, deverá introduzir-se sonda rectal para pesquisa da respectiva permeabilidade (progressão da sonda sem dificuldade, saindo, em geral, com restos de mecónio aderente).

Há que pesquisar igualmente fístulas, através das quais poderá ser eliminado mecónio (rectovaginal, recto-uretral, rectovestibular, perineal, etc.).

Região inguinal e órgãos genitais externos

Na região inguinoscrotal há que pesquisar:

  • Hérnia inguinal: saliência que aumenta de volume durante o choro, tosse e esforço, reduzindo-se quando se exerce sobre ela pressão (tumefacção redutível); é mais comum no sexo masculino e no RN pré-termo; quando se estrangula, perde estas características: torna-se imóvel, irredutível, dolorosa acompanhando-se de vómitos.
    Havendo informação por parte da mãe sobre este sinal anómalo não observado pelo examinador (pressupondo o exame realizado, não no pós-parto, mas no período neonatal tardio ou no lactente), torna-se necessário examinar o canal inguinal: com o dedo mínimo invagina-se a pele do escroto e procura-se atingir o anel inguinal interno; se o RN chorar, sente-se o impulso do saco herniário na ponta do dedo. Pode estar associada a hidrocele;
  • Hidrocele (acumulação de líquido seroso na túnica vaginal dos testículos ou no tecido que envolve o cordão espermático): manifesta-se no sexo masculino por bolsa escrotal aumentada de volume e tumefacção no canal inguinal, redonda ou levemente alongada, dura, irredutível e imóvel, que se deixa transiluminar (translúcida à transiluminação); a irredutibilidade e indiferença ao choro e esforço distinguem-na da hérnia inguinal; a ausência de dor e vómitos distinguem-na da hérnia inguinal estrangulada. (No sexo feminino tal anomalia corresponde à hidrocele do canal de Nuck);
  • Testículos: no RN de termo os testículos localizam-se nas bolsas escrotais, sendo que no RN pré-termo é frequente a situação designada por “escroto vazio” (a migração dos testículos no sentido abdómen → “fundo” do escroto” completa-se, em geral, nas 8 semanas que precedem o termo da gravidez);
  • Ovário encarcerado em saco herniário: no sexo feminino pode verificar-se tumefacção inguinal de cerca de 1 cm de diâmetro, que se move livremente, sem aderir à pele nem aos tecidos profundos.

No que respeita aos órgãos genitais externos do sexo masculino há que pesquisar:

  • Pénis: forma e dimensão; no chamado micropénis – em geral associado a outras anomalias – o comprimento é < 2 cm. A fimose (estreitamento do orifício do prepúcio) é fisiológica;
  • Posição do orifício externo da uretra (meato urinário) que, em situação de normalidade, está situado a meio da glande, no alinhamento do eixo do pénis; se o meato se localizar na face inferior do pénis, a anomalia designa-se hipospádia; se na face superior, epispádia (por vezes associada a extrofia da bexiga);
  • Jacto urinário: a emissão de urina em situações de normalidade verifica-se em “jacto forte”; a situação de gotejo ou de jacto fraco está invariavelmente associada a obstrução da uretra (nesta idade relacionável com anomalia congénita que implica resolução urgente – válvulas da uretra posterior).

Quanto aos órgãos genitais externos no sexo feminino, há que pesquisar:

  • Grandes e pequenos lábios: no RN de termo, os grandes lábios recobrem perfeitamente os pequenos lábios; no pré-termo, em grau variável em função da idade gestacional, os pequenos lábios ficam “a descoberto”;
  • Clítoris: verificação de possível hipertrofia sugestiva de síndroma adrenogenital;
  • Hímen: verificação de possível imperfuração que poderá originar acumulação de secreções a montante – na vagina (hidrocolpos), ou no útero (hidrometrocolpos);
  • Secreção mucóide ou fluxo hemorrágico (relacionável com influência dos estrogénios maternos).

Nota: por vezes há coexistência de caracteres de ambos os sexos (ambiguidade sexual), implicando a realização de exames complementares.

Coluna vertebral

Com o RN em decúbito ventral deve examinar-se o dorso e o trajecto da coluna em toda a sua extensão, pesquisando tumores ou depressões. Estes achados estão relacionados com neoplasias ou com defeitos de encerramento do tubo neural (fenda ou orifício originando bifidez da “espinha dorsal” ou spina bifida).

Muitos defeitos de encerramento do canal medular não são acompanhados de hérnia das meninges através dos mesmos: esta situação é designada por spina bifida oculta (coberta por pele e tecidos subjacentes e, por isso, não detectada à inspecção); pode ser suspeitada se existir depressão da pele a esse nível.

Sendo a região sacrococcígea a mais frequentemente afectada, cabe então referir os aspectos a pesquisar:

  • Depressão infundibuliforme – fosseta sacrococcígea – que pode terminar em fundo de saco ou estender-se, através de comunicação estreita ou seio pilonidal, até ao canal raquidiano;
  • Tumefacções ou massas ovóides, ulceradas ou não, (da linha média) relacionáveis com meningocele (hérnia das meninges através de fenda na coluna vertebral), ou mielomeningocele (hérnia das meninges e medula-espinhal com nervos e vasos).
    Ao nível do dorso e região sacrococcígea poderão ser também detectados tumores:
  • Teratoma sacrococcígeo: massa quística mais ou menos volumosa que pode chegar a exceder as dimensões da cabeça e ultrapassar a região sacrococcígea; a respectiva palpação evidencia zonas de consistência diversa (dura, mole, pétrea/ calcificada, etc.);
  • Outros tumores (hamartoma, ependimoma, neurofibroma, ganglioneuroma,

Membros

Os membros do RN são relativamente curtos em comparação com outras idades, sobretudo os inferiores; este aspecto é mais marcado no RN pré-termo. (ver atrás – Inspecção geral)

São dados característicos: mãos curtas e largas, curvatura tibial fisiológica, e hiperflexão plantar dos pés (pé talus calcaneus).

Os aspectos a pesquisar são:

  • Posição simétrica ou assimétrica;
  • Motilidade espontânea e passiva;
  • Defeitos congénitos (por ex. sindactilia (fusão de dedos), polidactilia (dedos supranumerários), ectromelia (paragem de desenvolvimento de membro, etc.); (Figura 12)
  • Nos membros inferiores, deformações em geral ligeiras, redutíveis ou não permanentes, e relacionáveis com má posição intra-uterina: metatarsos varus ou antepé varo (desvio do primeiro metatársico, em adução, relativamente ao eixo do pé – apoio no bordo externo), pé talus (apoio no calcanhar) e pé valgus (apoio no bordo interno);
  • O chamado pé boto equinovarus (equino ou com apoio na ponta do pé + varus ou com apoio no bordo externo), não redutível, é uma situação de potencial gravidade implicando intervenção cruenta. (A designação “boto” significa disforme, deformado);
  • Nos membros superiores podem ser observadas outras anomalias, tais como mão bota com encurtamento do membro por agenésia ou hipoplasia do rádio e desvio axial da mão e antebraço;
  • Pesquisa dos movimentos articulares dos membros: limitada na artrogripose congénita;
  • Detecção obrigatória de displasia da anca através da manobra de Ortolani descrita na Parte sobre Ortopedia.

FIGURA 12. Síndroma de bridas amnióticas. Amputação intrauterina do pé direito e constrição no 1/3 inferior da coxa direita. (URN-HDE)

Sistema nervoso

O comportamento do RN é fundamentalmente condicionado pela imaturidade do sistema nervoso (mielinização incompleta das fibras medulares, sobretudo do feixe piramidal, e incompleta diferenciação do córtex cerebral). Não existindo motilidade voluntária, mas sim actividade reflexa como manifestação de automatismo medular, o RN comporta-se, pois, como ser mesencefálico.

O exame neurológico sumário do RN, idealmente, deverá ser realizado cerca de 1-2 horas após a refeição (tentando evitar o choro excessivo ou a sonolência pós-prandial imediata, ruído ambiental excessivo, luz muito intensa, manipulação excessiva, etc.) e após as 12 a 24 horas de vida (tendo em conta a possível interferência de factores relacionados com o trauma do nascimento).

O mesmo integra a avaliação dos seguintes parâmetros: – atitude; – comportamento e actividade motora espontânea; – tono e força musculares; – reflexos; – pares cranianos.

Importa, por fim, detectar um conjunto de sinais que apontam para patologia do sistema nervoso obrigando a vigilância e eventual intervenção.

Atitude

No respeitante à atitude no RN de termo, verifica-se que: a cabeça está apoiada sobre a região occipital, mais ou menos rodada; membros superiores e inferiores com os respectivos segmentos flectidos simetricamente (antebraços sobre os braços, e braços sobre o tronco; pernas sobre as coxas, e coxas sobre o abdómen).

Em decúbito ventral mantém-se idêntica postura dos membros em relação ao tronco.

Actividade motora espontânea e comportamento

No RN de termo verifica-se: movimentos de rotação da cabeça; em decúbito dorsal, movimentos de flexão e extensão dos membros superiores e inferiores; em decúbito ventral, movimentos atrás descritos mais frequentes nos membros inferiores; em ambos os decúbitos, actividade do tronco nula.

O comportamento é classicamente avaliado em função dos estádios alternantes de vigília e sono, integrando essencialmente os seguintes parâmetros: o choro, os movimentos respiratórios e a posição das pálpebras:

  1. Respiração regular, pálpebras encerradas, ausência de movimentos espontâneos;
  2. Respiração irregular, pálpebras encerradas, movimentos espontâneos escassos;
  3. Pálpebras abertas, ausência de movimentos espontâneos;
  4. Pálpebras abertas, movimentos espontâneos frequentes, choro ausente;
  5. Pálpebras abertas ou fechadas, movimentos espontâneos muito frequentes, choro.

De referir que a não alternância de estádios ao longo do dia ou persistência de determinado estádio pode constituir sinal anómalo.

Tono e força musculares

Estes parâmetros avaliam-se das seguintes manobras:

  • O tono passivo, responsável pela postura, pode avaliar-se pela resistência aos movimentos passivos e pelo grau de alongamento muscular máximo.
    a) Resistência aos movimentos passivos
    Obtém-se informação “sacundindo” – com a precaução indispensável – uma extremidade; isto é, provocando movimentos oscilatórios de “vaivém” segurando na extremidade distal do membro superior (antebraço) ou inferior (perna) e verificando concomitantemente a amplitude de oscilação (balanceio) da mão ou do pé (maior amplitude → menor tono).
    Outro modo de pesquisar a passividade, com o RN em decúbito dorsal, é, ao nível do membro superior, levantar o membro superior e observar a velocidade da queda (maior velocidade → menor tono).
    b) Alongamento muscular máximo
    Trata-se de avaliar o grau de alongamento máximo que o músculo pode sofrer quando se afastam os seus pontos de inserção. É imprimido lentamente movimento passivo tentando a extensão dos segmentos dum membro em flexão até se verificar resistência (por exemplo extensão do joelho, determinando o ângulo popliteu com transferidor; ou extensão do cotovelo, determinado o ângulo antebraço – braço ao nível do sangradoiro (menor ângulo → maior tono).
  • O tono activo pode avaliar-se através de duas manobras:
    a) Manobra de puxar o tronco para diante e para trás
    Estando o RN em posição de decúbito dorsal, o mesmo é pegado pelo observador segurando-lhe os punhos, e puxado para passar da posição supina à posição de sentado.
    No RN de termo em situação de normalidade do tono verifica-se, uma vez obtida a posição vertical do tronco: alinhamento da cabeça com o tronco (os músculos flexores do pescoço “seguram” com relativa instabilidade a cabeça na posição vertical) e flexão dos joelhos e dos cotovelos.
    Considerando, na região cervicocefálica, os músculos flexores e extensores, se o tronco for reclinado demasiadamente para a frente, a cabeça por acção da gravidade acabará por acompanhar o tronco (mais rapidamente se existir hipotonia); reclinando depois o tronco para trás (manobra inversa) até ± 45º em relação ao plano horizontal, a cabeça “cairá para trás” por acção da gravidade (mais rapidamente se existir hipotonia).
    b) Manobra de suspensão ventral
    O RN é suspenso em decúbito ventral com a mão do observador abarcando o tronco; o objectivo é avaliar o tono do pescoço, tronco e extremidades. No RN de termo sem anomalia do tono verifica-se: a cabeça mantém-se no plano horizontal do tronco “contra a gravidade” com flexão dos membros superiores e inferiores.
Reflexos

Os reflexos primitivos ou arcaicos podem ser obtidos a partir das 28-30 semanas, sendo que a sua expressão depende do tono activo. Os mais frequentemente pesquisados são:

a) Reflexo de Moro (ou do abraço)
Pode ser obtido com diversos estímulos. Por exemplo, estando o RN em posição supina e segurado com a mão e antebraço do examinador, e sendo a cabeça suportada pela mão do lado oposto, largando esta mão – o que origina “queda” ou movimento da cabeça para trás e estimulação do labirinto – verifica-se num primeiro tempo extensão do tronco, extensão dos dedos das mãos, extensão e abdução dos membros superiores, seguidas, num segundo tempo, de flexão do tronco, flexão e adução dos membros superiores e flexão dos dedos das mãos, como que em acto de “abraçar”. (Figura 13)
Igualmente, estando o RN em decúbito supino, mas sobre um plano horizontal, um estímulo sonoro forte (bater com as mãos) ou luminoso intenso, origina idêntica resposta.
Este reflexo pode manter-se até cerca dos 4 meses.
Por vezes, a resposta não é completa nem exuberante, o que pode estar em relação com prematuridade ou o estádio de sono-vigília. A assimetria de resposta aponta para lesão do plexo braquial ou para fractura da clavícula.

FIGURA 13. Reflexo de Moro. (URN-HDE)

b) Reflexo tónico do pescoço
Obtém-se rodando a cabeça; a resposta a este estímulo origina extensão dos membros do lado para onde se roda a cabeça e flexão dos do lado oposto, como que em posição de “esgrimista”. Este reflexo pode manter-se até cerca dos 4 meses.

c) Reflexo de preensão
Obtém-se tocando com o dedo do observador (ou caneta, ou similar) na palma da mão: verifica-se flexão dos dedos prendendo o dedo/objecto que lhe toca. Ao nível do pé, a estimulação táctil do sulco metacarpofalângico origina flexão dos dedos respectivos. Este reflexo pode manter-se até cerca dos 2 meses. (Figura 14)

d) Reflexo dos pontos cardinais
A estimulação mecânica das comissuras e da parte média dos lábios superior e inferior (simile “norte-sul-leste-oeste”) com o dedo do observador, origina desvio da língua e cabeça para o lado estimulado.

FIGURA 14. Reflexo da preensão palmar.

e) Reflexo do encurvamento (ou arqueação) do tronco
A estimulação repetida da pele do dorso entre a 12ª costela e a crista ilíaca origina encurvamento do tronco do lado estimulado. Este reflexo, tal como o reflexo de Moro, é dos mais constantes no RN de termo saudável.

f) Reflexo da marcha automática
Com o RN em posição vertical seguro pelas axilas e com os pés apoiados em superfície lisa, promovendo ligeiro impulso para diante, verifica-se a execução de passos. Este reflexo desaparece até às 4 semanas de vida. (Figura 15)

Pares cranianos

Classicamente, no RN, o exame dos pares é estruturado de modo diferente relativamente a outras idades, sendo que muitos sinais referidos a propósito do comportamento, reflexos, mímica facial, sucção – deglutição, posição e mobilidade da língua, etc., se relacionam, de facto, com funções ou disfunções na dependência dos pares cranianos.

Em síntese, eis alguns exemplos:

  • A partir das 30 semanas o RN identifica o odor da mãe (Iº par- olfactivo);
  • O RN de termo fixa um objecto a cerca de 30 cm e reage também à luz com pestanejo. O reflexo fotomotor (contracção da pupila como reacção à luz) verifica-se já no RN pré-termo a partir das 29 semanas (IIº par- óptico);
  • A motilidade ocular e fixação dum objecto depende dos nervos oculomotores (IIIº par- motor ocular comum, IVº par- patético, e VIº par- motor ocular externo);
  • A verificação de assimetria da mímica facial, com apagamento do sulco nasogeniano do lado afectado e aproximação da comissura labial do lado afectado para o lado são, traduz paralisia periférica do VIIº par- facial que, por inervar o orbicular da pálpebra, origina, também, não encerramento da pálpebra do lado afectado;

FIGURA 15. Reflexo da marcha automática. (URN-HDE)

  • A resposta ao ruído através do VIIIº par (auditivo), por ex. para obter resposta reflexa de Moro, entre outras respostas, é possível a partir da 28ª semana de gestação;
  • A sucção e deglutição (só completamente desenvolvidas a partir do termo da gravidez) dependem respectivamente dos Vº (trigémio motor), VIIº, XIIº (grande hipoglosso) pares, e dos IXº (glossofaríngeo) e Xº (pneumogástrico) pares;
  • A mobilidade da língua depende do XIIº par;
  • Alteração do XIº par (espinhal) inervando o esternocleidomastoideu, pode explicar alteração dos movimentos de rotação da cabeça;
  • A sensação gustativa (dependendo dos VIIº e IXº pares) é difícil de avaliar, sobretudo no RN pré-termo.
  • Sinais anómalos

Realizado o exame neurológico do RN, cabe referir alguns sinais anómalos:

  • Letargia, correspondendo a persistência do estádio 1 de vigília- sono;
  • Coma, correspondendo a persistência do estádio 2;
  • Hiperexcitabilidade ou movimentos anómalos/ convulsões;
  • Choro persistente e de tonalidade aguda;
  • Hipertonia global;
  • Hipotonia global;
  • Opistótono;
  • Assimetria permanente da postura;
  • Desvio permanente da cabeça e olhos;
  • Dificuldade alimentar (sucção, deglutição, etc.).

Avaliação da idade gestacional

Um dos objectivos do primeiro exame clínico do RN é determinar a maturidade deste em função de determinados achados semiológicos, confrontando-os com a data do 1º dia da última menstruação, a partir da qual se inicia a contagem do tempo. Tal avaliação clínica, mesmo para clínicos experientes habituados a cálculo rápido após observação global, tem utilidade se houver antecedentes maternos de menstruações irregulares dificultando a contagem do tempo, e/ou em situações-limite de RN de baixo peso ou muito baixo peso em que não estão disponíveis outros dados, tais como resultados de exames ecográficos pré-natais. De facto, o rigor a imprimir a tal avaliação tem implicações clínicas práticas quanto à previsão de problemas e ao prognóstico.

Os métodos clínicos mais frequentemente utilizados (por ex., os de Dubowitz, Amiel-Tison, Ballard, etc.) integram de modo estruturado critérios somáticos e neurológicos validados estatisticamente, atribuindo a cada um deles determinada pontuação que, uma vez somada, conduz a uma pontuação final ou índice, a que corresponde determinada idade gestacional.

No Quadro 1 são discriminados os aspectos a considerar para cada critério do método de Ballard. A escala de Ballard modificada permite estimar a idade gestacional (IG) sempre que se realize nas primeiras 12 horas de vida.

Fórmula do cálculo: IG= [(2xpontuação)+120]/5.

QUADRO 1 – Avaliação da idade gestacional do recém-nascido (Método de Ballard).

QUADRO 1 – Avaliação da idade gestacional do recém-nascido (Método de Ballard) (cont.).

Critérios de maturidade física
-1 0 1 2 3 4 5
Pele Friável, transparente, húmida Gelatinosa, vermelha, translúcida Lisa, rosada veias visíveis Descamação superficial e/ou exantema, poucas veias Com sulcos, áreas pálidas, raras veias Apergaminhada: sulcos profundos, sem vasos Grossa, estalada com sulcos, enrugada
Lanugo Ausente Escasso Abundante Fino Áreas sem lanugo Maior parte sem lanugo (*)
(•) Somatório da pontuação dos critérios físicos e neuromusculares
-10 20
-5 22
0 24
5 26
10 28
15 30
20 32
25 34
30 36
35 38
40 40
45 42
50 44
Pontuação Semanas
Superfície plantar e sulcos Dedo-calcanhar 40-50 mm = -1 < 40 mm = -2 Dedo-calcanhar 50 mm, sem marcas Ligeiras marcas vermelhas Pregas transversais apenas na porção anterior Pregas nos 2/3 anteriores Pregas em toda planta
Região mamária Imperceptível Pouco visível Aréola plana, glândula não palpável Aréola proeminente, glândula de 1 a 2 mm Aréola elevada, glândula de 3 a 4 mm Aréola cheia, glândula de 5 a 10 mm
Olhos/orelha Pálpebras fundidas Francamente = -1 Fortemente = -2 Fenda palpebral aberta, pavilhão achatado Pavilhão parcialmente encurvado, reposição lenta à posição inicial Pavilhão bem encurvado, mole; reposição pronta Pavilhão formado e firme; regressão instantânea Cartilagem nos bordos, pavilhão firme
Genitais masculinos Bolsa escrotal lisa não enrugada Bolsa escrotal vazia, pouco enrugada Testículo no canal inguinal, bolsa escrotal com raras rugas Testículos no canal inguinal, poucas rugas Testículos na bolsa escrotal enrugada Testículos na bolsa em pêndulo, pregas profundas
Genitais femininos Clítoris proeminente, lábios rasos Clítoris proeminente, pequenos lábios pouco proeminentes Clítoris proeminente, pequenos lábios mais proeminentes Pequenos e grandes lábios igualmente proeminentes Grandes lábios maiores, pequenos lábios menores Grandes lábios recobrem o clítoris e os pequenos lábios

Súmula

Uma vez realizada a observação do RN, importa sintetizar metodicamente o resultado do exame clínico global, tentando classificação do caso em função de cinco diagnósticos clínicos iniciais a estabelecer:

  • De vitalidade ou de adaptação
    Índice de Apgar entre 7-10 corresponde, em princípio, a boa adaptação fetal à vida extra-uterina;
  • Somático
    Este diagnóstico baseia-se no peso independentemente da idade gestacional; na ausência de factores de risco ou de sinais anómalos associados, peso entre 2.500 e 4.000 gramas (normossomático) comporta bom prognóstico;
  • Cronológico e de maturidade
    Este diagnóstico baseia-se na idade gestacional de acordo com dados da anamnese perinatal, ecográficos pré-natais e resultado da avaliação clínica; o RN de termo (entre 37 e 41 semanas e 6 dias, isto é, entre 259 e 293 dias), na ausência de factores de risco ou de sinais anómalos, comporta melhor prognóstico relativamente a RN pré-termo ou pós-termo;
  • De crescimento intra-uterino
    Este diagnóstico, que traduz a dinâmica do crescimento fetal (restrito, adequado ou excessivo), baseia-se na relação entre peso e idade gestacional, e é estabelecido utilizando as chamadas curvas de crescimento intra-uterino.
    Os RN de termo, correspondendo a percentil entre 3 e 97, sem factores de risco nem sinais anómalos associados comportam melhor prognóstico relativamente àqueles de percentil > 97 ou < 3;
  • Sindrómico
    O diagnóstico sindrómico baseia-se na verificação de patologia evidente, por ex., dificuldade respiratória, icterícia, anemia, policitémia, etc..

BIBLIOGRAFIA

Cloherty JP, Eichenwald EC, Strak AR. Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Lippincott Williams & Wilkins, 2008

Fanaroff AA, Martin RJ. Neonatal-Perinatal Medicine-Diseases of the Fetus and Infant. St. Louis: Mosby, 2002

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Guimarães J, Carneiro MJ, Loio P, Macedo A, Pinto CG, Tuna M, Salazar A, Santos E, Aguiar M, Marçal M. Neonatologia-Manual Prático do Hospital de S. Francisco Xavier. Lisboa: Saninter, 2012

Inder TE, Perlman JM, Volpe JJ (eds). Volpe’s Neurology of the Newborn. Phikadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

 Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Palminha JM, Carrilho E (eds). Orientação Diagnóstica em Pediatria. Lisboa: Lidel, 2003

Perneta C. Semiologia Pediátrica. Rio de Janeiro: Interamericana, 2004

Volpe JJ. Neurology of the Newborn. Philadelphia: Saunders, 2001

ADAPTAÇÃO FETAL À VIDA EXTRAUTERINA

Definição e importância do problema

O conceito de adaptação fetal à vida extrauterina engloba o conjunto de modificações de ordem anatomofisiológica (metabólicas/bioquímicas, imunológicas, hormonais, etc.) na transição da vida fetal (que decorre em meio líquido/líquido amniótico), para a vida extrauterina, (em meio envolvente aéreo), de cuja perturbação poderão resultar determinados problemas clínicos no RN com possível repercussão futura.

O processo de tal adaptação, sobretudo intraparto (estresse do nascimento) é comparticipado de modo muito importante pelos sistemas simpático-suprarrenal (tendo papel importante a adrenalina e a noradrenalina, quimiorreceptores, barorreceptores), e parassimpático, o que é testemunhado pelos níveis elevados de catecolaminas, angiotensina e vasopressina no pós-parto. No entanto, no conceito de adaptação estão também englobados certos eventos fisiológicos – não imediatos – que se processam nas semanas e meses seguintes, não sendo possível determinar, com precisão, quando termina tal adaptação.

Durante o período médio de duração da gravidez de termo (40 semanas), a placenta tem como funções primordiais as da respiração, da termorregulação, da nutrição, da excreção de catabólitos, endócrinas, etc.. No embrião, primeiramente, (4ª-12ª semanas – precedidas pela fase pré-embrionária no período compreendido entre a 1ª e 3ª semanas), e no feto, depois (13ª-40ª semanas), ocorrem processos complexos de crescimento e de maturação até ser viável a autonomia do produto de concepção após o nascimento.

Na realidade, o processo de mudança mais espectacular e relativamente mais rápido na transição da “vida aquática” para a “vida gasosa” é o que diz respeito ao aparecimento da respiração e ao concomitante incremento da perfusão pulmonar (adaptação respiratória e cardiocirculatória envolvendo processos interligados); de uma PaO2 fetal ~ 25 mmHg passa-se, em situação de normalidade, para uma PaO2 neonatal ~ 60 mmHg ao cabo de 30 minutos de vida com movimentos respiratórios, inspirando ar cuja FiO2 é ~ 21%.

Ora, o RN (ex-feto) para sobreviver em ambiente rico em oxigénio necessita que os sistemas de defesa antioxidante – defesa contra radicais livres de oxigénio (intracelulares: dismutases do superóxido, peroxidase da glutationa, catalase; extracelulares: ascorbato, etc.) – estejam desenvolvidos ao nascer. Acontece que tal desenvolvimento se completa somente no termo da gestação, (sobretudo os sistemas de defesa intracelular), o que equivale a dizer que a probabilidade de lesão oxidante de órgãos por radicais livres é maior nos RN pré-termo. Curiosamente, o desenvolvimento de tais sistemas de defesa processa-se paralelamente à maturação do sistema enzimático responsável pelo desenvolvimento do surfactante pulmonar.

Adaptação respiratória

Líquido pulmonar fetal (LPF)

Durante o período fetal as trocas gasosas são asseguradas através da “membrana” placentar. Desde a concepção, o sistema respiratório evolui em 5 períodos – cuja nomenclatura não coincide precisamente com os períodos atrás considerados – e chamados:

  • Embrionário → com vias aéreas proximais (0-7 semanas);
  • Pseudoglandular → com vias condutoras (8-16 semanas);
  • Canalicular → com formação dos ácinos (17-27 semanas);
  • Sacular → com áreas para trocas gasosas (28-35 semanas);
  • Alveolar → com expansão da área para as trocas gasosas (das 36 semanas ao termo da gravidez).

Concomitantemente desenvolvem-se as estruturas da microcirculação; e, a partir da 26ª-28ª semana, existe superfície de troca suficiente para assegurar as trocas gasosas após o nascimento.

Durante a vida fetal os pulmões estão preenchidos pelo chamado líquido pulmonar fetal (LPF, de características diferentes do líquido amniótico com o qual contacta ao nível da hipofaringe) segregado pelo epitélio respiratório (pneumatócitos do tipo I); o referido PPF aumenta progressivamente, sobretudo após a 18ª semana, ao ritmo de 2-4 mL/kg/hora, atingindo o volume de cerca de 20 mL/kg pelas 36 semanas, semelhante ao valor da capacidade residual funcional (CRF); isto é, o pulmão durante a vida intra-uterina é maciço.

A secreção de tal LPF para o interior das vias aéreas (exercendo pressão de distensão contínua e garantindo como “molde” o crescimento/ expansão do pulmão, e o desenvolvimento epitelial da via respiratória) – predomina sobre a absorção, dependendo de um gradiente osmótico entre a circulação e o espaço aéreo virtual; neste fluxo circulação → alvéolo, entram em acção um sistema de bomba sódio-potássio/ATP-ase localizado no pólo basal do pneumatócito I junto ao capilar.

O LPF contém quantidade significativa de cloro (> 150 mEq/L) e baixa de bicarbonato (~ 2,8 mEq/L), e de proteínas (< 0,3 mg/mL) sendo o pH ~ 6,27. A pressão do LPF, superior à do líquido amniótico (em cerca de 2 mmHg), permite que circule segundo trajecto vias distais → traqueia: a maioria é deglutida pelo feto e uma pequena porção é eliminada para a cavidade amniótica.

Tal movimento é igualmente facilitado pelas forças de elastância do pulmão (ou de tendência para a retracção).

A partir da 11ª semana surgem, com carácter intermitente, movimentos de expansão e retracção do tórax (movimentos pseudo “respiratórios”) irregulares, baixa amplitude e ao ritmo de 60-90/minuto, cuja regulação poderá estar relacionada com o estímulo de receptores periféricos. Associados ao sono REM, a frequência de aparecimento, a frequência por minuto e a amplitude são influenciados por estímulos como acidose e hipercárbia (aumento), ou hipóxia, hipoglicémia, sedativos, etc. (diminuição).

Durante os períodos de movimentos de expansão-retracção fica facilitado o movimento do LPF no sentido vias distais → traqueia atrás referido. Concomitantemente com os períodos de movimentos torácicos verifica-se dilatação da glote; pelo contrário, nos períodos sem movimentos/”apneia” verifica-se constrição da glote com aumento da resistência à saída do LPF.

É importante acentuar que a diminuição do ritmo e frequência dos movimentos de expansão/retracção do tórax fetal compromete o crescimento do pulmão.

Na parte final da gravidez, cerca de dois dias antes do início do trabalho de parto espontâneo, começa a verificar-se: diminuição da secreção do LPF; fluxo deste no sentido alvéolo → capilar → microcirculação → linfáticos; e a aumentar a absorção ou fluxo no sentido inverso, preparando o pulmão para receber ar no pós-parto. Ou seja, a partir desta data e no período pós-natal passa a predominar a absorção sobre a secreção: a adrenalina e noradrenalina libertadas pelo sistema simpático-suprarrenal, assim como a vasopressina, actuando sobre receptores no pólo basal do pneumatócito I, vão estimular o AMP-cíclico e promover a abertura de canais de sódio no pólo apical do mesmo pneumatócito, facilitando tal fluxo e progressivo esvaziamento do alvéolo em LPF.

Calcula-se que durante o trabalho de parto e durante as primeiras horas de vida seja absorvido, cerca de 90% do LPF. Durante a passagem do feto pelo tracto genital inferior a compressão do tórax também contribui para a expulsão do LPF pela boca e nariz, sendo que este mecanismo apenas contribui para a expulsão de cerca de 10% do total de LPF. Este fenómeno fica comprometido se se verificar extracção do feto por cesariana electiva (antes do início do trabalho de parto), determinando que o volume do LPF no ser extrauterino (RN) seja, em tais circunstâncias, praticamente igual ao que existe na vida fetal, o que poderá dificultar a entrada de ar na via respiratória.

Os primeiros movimentos respiratórios

A primeira inspiração sobrevém aproximadamente dentro dos primeiros 15 segundos de vida extrauterina; é desencadeada pelo frio, estímulos nociceptivos e variações das PA (alveolares) de O2 e de CO2 secundárias à laqueação do cordão umbilical.

Entre o feto e o RN existe diferença significativa quanto à sensibilidade dos quimiorreceptores. A resposta do RN de termo ao CO2 é semelhante à do adulto; no RN pré-termo tal resposta é mais fraca, aumenta com a idade gestacional, podendo ficar comprometida se existir hipóxia associada.

A primeira inspiração é caracterizada pela abertura da glote e aumento do tono da musculatura respiratória; durante cerca de 0,5 a 1 segundo exerce-se uma pressão negativa de abertura atingindo (– 40) a (– 80) cm H2O, que permite opor-se à resistência viscosa do LPF existente na via respiratória e às forças de tensão superficial e resistências teciduais, e facilitar a entrada de 50-60 mL de ar na via aérea. De salientar que a abertura alveolar pulmonar não é uniforme dada a raridade dos poros de Kohn no RN, o que constitui um factor predisponente de pneumotórax.

A primeira expiração efectua-se com a glote semi-encerrada: corresponde ao primeiro choro. A pressão pleural mantém-se positiva (~ 20-30 cm H2O); por outro lado, nem todo o ar inspirado é expirado, sendo de referir que cerca de 20-30 mL (ar residual) fica localizado nos alvéolos que mantêm distensão residual estável desde que exista surfactante funcionante.

O estabelecimento de movimentos respiratórios rítmicos está essencialmente na dependência de quimiorreceptores carotídeos. Durante os primeiros dias que se seguem ao nascimento, dois reflexos com ponto de partida pulmonar desempenham igualmente papel importante:

  • O reflexo de Hering-Breuer, não existindo no adulto, mas sim no RN de termo e pré-termo: a insuflação pulmonar determina cessação do esforço respiratório;
  • O reflexo paradoxal de Head: inspiração activa como resposta a insuflação pulmonar.

O reflexo de Head, muito mais importante no RN do que em qualquer outra fase da vida, é responsável por frequentes “suspiros” observados no período neonatal, com utilidade no sentido de manter arejamento pleno dos pulmões.

Os primeiros movimentos respiratórios, irregulares e bastante amplos, são entrecortados por esforços expiratórios. À medida que se verifica a manutenção dos movimentos respiratórios, sucessivamente mais alvéolos vão sendo “recrutados” ou preenchidos, com aumento progressivo da capacidade residual funcional (CRF), a qual atinge o valor ~ 30 mL/kg ao 30º minuto de vida extrauterina.

Em sucessivas inspirações cada vez menos ar é mobilizado, sendo que o volume corrente diminui e estabiliza no valor ~ 6 mL/kg.

Quanto à distensibilidade (compliance) pulmonar, dependente da secreção de surfactante pulmonar a partir da 20ª semana de gestação pelos pneumatócitos do tipo II, os valores são, progressivamente: 2 mL/cmH2O aos 3 minutos, e 5 mL/cm H2O aos 7 dias de vida (no adulto: ~ 170 mL/cm H2O).

O défice de surfactante, levando ao colapso alveolar, compromete a manutenção do ar residual e, por isso, a adaptação respiratória.

Relação entre ventilação e perfusão

A distensão alveolar acompanha-se de abertura do leito vascular pulmonar; a superfície alveolocapilar torna-se, assim, a zona de trocas gasosas, sendo que a relação ventilação/perfusão não é considerada óptima no RN. A abertura alveolar não é homogénea, havendo certas zonas perfundidas não ventiladas criando-se um curto-circuito direito-esquerdo intrapulmonar (15-30% no RN contra 5% no adulto).

Hemoglobina F e hemoglobina A

Muito progressivamente, no decurso do 3º trimestre da vida extrauterina a Hb F (fetal) dá lugar à Hb A (do tipo adulto), tendo esta última menor afinidade para o oxigénio.

Condições básicas para a adaptação respiratória

Após descrição sucinta dos passos mais importantes da adaptação respiratória (indissociável da adaptação cardiocirculatória) será mais fácil deduzir as condições básicas para a manutenção do automatismo e função respiratórios, assim como os problemas clínicos – abordados noutros capítulos – que decorrem de perturbações das referidas condições. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Função respiratória – Condições básicas.

    • Centros respiratórios activos e receptivos
    • Vias de condução nervosa intactas
    • Suprimento adequado de O2
    • Músculos respiratórios eficientes
    • Vias aéreas livres
    • Alvéolos estáveis [pneumatócitos tipo II (surfactante)]
    • Rede arterial pulmonar com muscularização adequada
    • Difusão alveolocapilar adequada (pneumatócitos tipo I)

Adaptação cardiocirculatória

In utero, a circulação fetal é fundamentalmente caracterizada pela importância do débito placentar e pelo escasso débito pulmonar (inferior a 10% do débito ventricular).

Com o nascimento verificam-se transformações radicais: supressão da circulação placentar com a laqueação do cordão, e aumento maciço da perfusão pulmonar coincidindo com o arejamento das vias respiratórias.

A adaptação cardiocirculatória corresponde, afinal, ao somatório de modificações anatómicas e fisiológicas sob a dependência de factores mecânicos e bioquímicos.

Circulação fetoplacentar

O esboço embrionário do coração funciona como “bomba” efectiva pela 8ª semana de gestação, sendo que a estrutura do coração está completamente formada cerca da 10ª semana.

A circulação fetoplacentar relativamente à verificada após o nascimento difere fundamentalmente:

  1. Pela existência da placenta como órgão interposto entre o feto e a grávida (hemodinamicamente é uma região de baixa resistência);
  2. Pela existência do foramen ovale (ou buraco de Botal) que permite a passagem de sangue da aurícula direita para a aurícula esquerda;
  3. Pela existência do ductus arteriosus ou canal arterial que também determina um curto circuito direito-esquerdo pela comunicação que estabelece entre a artéria pulmonar e aorta.

O sangue que circula no feto é bombeado pela circulação fetal através das duas artérias umbilicais em direcção à placenta. Na placenta fazem-se as trocas gasosas (transferência de CO2 para a circulação materna e aquisição de O2 e nutrientes para a circulação fetal). O sangue oxigenado volta ao feto através da veia umbilical que dá origem a dois importantes ramos antes de alcançar o fígado: um ramo para o lobo esquerdo do fígado; e outro ramo (ductus venosus) que se liga à veia cava inferior, o que determina mistura de sangue mais oxigenado (proveniente da placenta) com sangue não oxigenado (proveniente dos membros inferiores e órgãos infradiafragmáticos).

Determinadas particularidades anatómicas no local em que a veia cava inferior se liga à aurícula direita fazem com que:

  1. O sangue não oxigenado proveniente dos membros inferiores e órgãos infradiafragmáticos se dirija para o ventrículo direito através da válvula tricúspide; este sangue mistura-se, por sua vez, com o sangue, também não oxigenado, que provém da cabeça e membros superiores. A grande parcela do débito do ventrículo direito dirige-se para a circulação sistémica através do curto circuito – ductus arteriosus – ligando a artéria pulmonar à aorta descendente;
  2. O sangue mais oxigenado atingindo a aurícula direita (parcela superior à do sangue não oxigenado) dirige-se preferencialmente da aurícula direita para a aurícula esquerda através do foramen ovale e, a seguir, para o ventrículo esquerdo.

Consequentemente, no feto, considerando o volume de sangue que atinge a aurícula direita, somente cerca de 10% do mesmo irriga o território pulmonar, sendo o restante “desviado” para a circulação sistémica por meio do foramen ovale e ductos arteriosus.

O facto de o ductus arteriosus (conduzindo sangue menos oxigenado) desembocar na aorta a jusante da emergência das artérias que contribuem para a irrigação do miocárdio e encéfalo (recebendo sangue mais oxigenado através do circuito foramen ovaleaurícula esquerdaventrículo esquerdo), faz com que estes territórios (encéfalo e miocárdio) recebam sangue mais oxigenado.

Os dois ventrículos trabalham “em paralelo”, sendo a frequência cardíaca elevada (130-150/minuto) e o débito importante: entre a 10ª e 30ª semanas o somatório dos débitos direito e esquerdo totaliza cerca de 200 mL/kg/minuto.

A circulação pulmonar é caracterizada por resistência vascular elevada (cerca de cinco vezes superior à resistência sistémica. As arteríolas são submetidas, sobretudo a partir da 28ª semana de gestação, a uma modificação anatómica e estrutural: aumento global do peso do pulmão (cerca de 4 vezes), aumento progressivo da espessura da musculatura da média em relação à espessura da íntima, aumento do número de pequenos vasos (cerca de 40 vezes), aumento do número de vasos por unidade de volume da ordem de 10 vezes até ao termo da gestação; tais alterações podem ser interpretadas como preparação do pulmão para receber na vida extrauterina um volume de sangue 10 vezes superior ao que se verifica in utero.

O tono vascular pulmonar é sensível a mediadores endoteliais vasoactivos (vasodilatadores ou vasoconstritores), por ex. pH, PO2, PCO2, NO, endotelina, etc.; in utero predomina a acção de factores que promovem vasoconstrição.

Caberá referir, a propósito, que no feto, tal como a resistência vascular placentar, a resistência vascular periférica e a pressão arterial sistémica têm valores baixos.

Circulação neonatal de transição

A supressão brusca da circulação placentar coincide com o início da ventilação pulmonar que conduz a:

  • Elevação do nível de oxigenação alveolar e arterial;
  • Dilatação rápida dos vasos pulmonares que promovem incremento do débito sanguíneo pulmonar na ordem de 10 vezes (em cerca de 24 horas).

O aumento significativo do débito sanguíneo pulmonar conduz a maior volume sanguíneo de retorno à aurícula esquerda aumentando a respectiva pressão e determinando o encerramento funcional do foramen ovale, o que contribui para diminuir o curto-circuito direito-esquerdo a este nível. O aumento do débito sanguíneo pulmonar coincide com diminuição da pressão na artéria pulmonar e no ventrículo direito.

Por sua vez, a redução do gradiente de pressão entre artéria pulmonar e aorta, associada à constrição progressiva (primeiramente funcional, e depois anatómica) do ductus arteriosus (DA) determinada pela elevação do nível de oxigenação tecidual, leva à diminuição e eliminação progressiva do curto circuito direito-esquerdo, através daquele (DA).

A laqueação do cordão umbilical, eliminando a circulação placentar – região de baixa resistência – vai contribuir para elevar a pressão arterial sistémica, sendo que a pressão aórtica se torna superior à pressão na artéria pulmonar.

A Figura 1 representa de modo esquemático a circulação fetal e neonatal.

FIGURA 1. Representação esquemática dos circuitos da circulação fetal e neonatal (consultar texto). Vasos de cor branca <> sangue oxigenado; vasos de cor preta <> sangue não oxigenado; vasos com ponteado em diversas tonalidades <> sangue de mistura (mais oxigenado com menos oxigenado, em graus variáveis).

Fases de diminuição da resistência vascular pulmonar ex-útero

A diminuição da pressão na artéria pulmonar processa-se em três fases:

Primeira fase (0-1 minuto)

Logo após os primeiros movimentos respiratórios, com a substituição do LPF por ar e a formação de interface líquido/ar ao nível da superfície alveolar, são criadas imediatamente forças de tensão superficial que, diminuindo a pressão no interstício do parênquima pulmonar, permite dilatação dos vasos e aumento do débito pulmonar.

Segunda fase (até 12-24 horas)

Nesta fase, ao longo de 12 a 24 horas a RVP diminui por acção de mediadores com acção vasoactiva produzidos no endotélio (exemplificam-se como mais importantes o NO e a prostaciclina).

Terceira fase (entre as 12-24 horas e cerca de 10 dias)

Nesta fase continua, de modo mais lento, a diminuição da RVP, sobretudo à custa da diminuição da espessura da camada muscular e achatamento das respectivas células endoteliais, o que contribui para aumentar, mais ainda, o calibre das artérias pulmonares de menor calibre.

FIGURA 2. Adaptação cardiocirculatória à vida extrauterina.

Encerramento do foramen ovale

O encerramento do foramen ovale inicia-se ao cabo de algumas horas. Nos primeiros dias poderá ocorrer curto circuito bidireccional por hiperpressão ocasional na aurícula direita (por ex. com choro), originando cianose transitória. O encerramento torna-se mais efectivo ao cabo de 8-10 dias, sendo que o encerramento anatómico é mais tardio.

Encerramento do ductus arteriosus

O canal arterial é uma estrutura muito particular: camada muscular lisa interposta entre duas camadas elásticas, com orientação longitudinal e circular das respectivas fibras.

Como estímulos que podem gerar constrição citam-se designadamente o incremento da PaO2 e de prostaglandinas no sangue circulante do canal, e da respectiva artéria nutritiva (ramo da aorta descendente ou duma coronária). Situações como SDR/hipóxia e prematuridade poderão levar a atraso de encerramento.

O encerramento funcional verifica-se em 80%-90% dos casos entre as 10 e 18 horas de vida; e o encerramento anatómico, na maioria dos casos, cerca das 8 semanas; por conseguinte, neste período poderá haver curto-circuito bidireccional e hipóxia transitórios. A permeabilidade permanente é estimada em cerca de 0,04% dos RN de termo, e em 20%-40% de RN pré-termo com peso de nascimento < 1.000 gramas.

A Figura 2 sintetiza os principais fenómenos da adaptação cardiocirculatória à vida extrauterina.

Circulação de tipo adulto

A circulação neonatal definitiva é caracterizada pelo funcionamento “em série” dos dois ventrículos. O ventrículo esquerdo torna-se progressivamente preponderante e as pressões sistémicas aumentam também progressivamente.

Condições básicas para a adaptação cardiocirculatória

Após descrição sucinta dos passos mais importantes da adaptação cardiocirculatória (indissociável da adaptação respiratória) será mais fácil deduzir as condições básicas para a manutenção da função cardiocirculatória, assim como os problemas clínicos – abordados noutros capítulos – que decorrem de anomalias das referidas condições. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Função cardiocirculatória – Condições básicas.

    • Funcionamento da circulação neonatal definitiva de tipo adulto
    • Sistema cardiovascular sem anomalias morfológicas
    • Rede capilar suficientemente desenvolvida

Adaptação térmica

Termorregulação durante a vida fetal

Os mecanismos fundamentais de produção e de perda de calor (regulação térmica) são regulados pelo centro termorregulador, no hipotálamo. O referido centro recebe informações de receptores térmicos, quer superficiais (pele), quer profundos (músculos esqueléticos, abdómen, espinhal medula, mucosa respiratória, etc.).

In utero, o metabolismo fetal determina uma temperatura fetal que é superior, em cerca de 0,5ºC, à temperatura da mãe, criando-se um gradiente que permite perda de calor no sentido feto → mãe, sobretudo através da circulação umbilical e placenta; isto é, na ausência de placenta, a temperatura fetal elevar-se-ia na ordem de 3ºC por hora.

Termorregulação após o nascimento

No momento do nascimento a temperatura rectal do RN é cerca de 37,6ºC-37,8ºC, e a do ambiente do bloco de partos, em geral, 23ºC. Após o nascimento, a situação inverte-se completamente, pois o RN é confrontado numa luta contra o frio, estabelecendo-se um importante gradiente térmico.

Por um lado, a pele do RN está molhada com resto do líquido amniótico; por outro, o mesmo RN tem panículo adiposo escasso e pele não queratinizada (características mais acentuadas no RN pré-termo), e a relação superfície corporal/volume corporal é muito superior à do adulto (sobretudo nos RN pré-termo de peso < 1.500 gramas).

Criam-se, assim, condições para uma perda térmica importante no sentido interior corporal → superfície corporal → ar ambiente, de quatro modos:

Evaporação

(RN molhado – líquido amniótico aderente à pele ou água do banho à superfície da pele);

Condução

(perda de calor por “contacto directo” com uma superfície de temperatura inferior à da pele, por ex. colchão frio, prato da balança frio, etc.);

Radiação

(perda de calor “à distância” para superfícies não em contacto com a pele – por ex. parede da sala ou da incubadora);

Convecção

(perda de calor tendo como “veículo” ar em movimento/corrente de ar).

Na ausência de cuidados, no RN deixado à temperatura ambiente, molhado, não vestido, não colocado sob fonte de calor, a temperatura cutânea pode baixar rapidamente (0,3ºC/minuto), assim como a temperatura rectal, de modo mais lento.

As possibilidades de adaptação ou de resposta do RN ao ambiente exterior frio são de dois tipos:

Diminuição da perda de calor

O RN submetido ao frio responde com vasoconstrição periférica por libertação de adrenalina e noradrenalina, levando a: 1) vasoconstrição pulmonar; 2) aumento do débito cardíaco; 3) incremento do metabolismo anaeróbio (elevação do glucagon, diminuição de insulina; glicogenólise e elevação da glicémia numa primeira fase, seguidas de esgotamento das reservas de glicogénio e hipoglicémia ulterior); e 4) acidose metabólica.

Produção de calor (termogénese)

A termogénese no RN é limitada e, por isso, diferente da do adulto: 1) o fenómeno de calafrio (contracção muscular) praticamente não existe, embora o choro e a agitação contribuam para aumentar a actividade muscular; 2) a maior fonte de produção de calor no RN é constituída pela chamada gordura castanha, mais abundante no RN do que no adulto, mas insuficiente nos primeiros dias de vida, sobretudo nos RN pré-termo ou de baixo peso, o que constitui uma limitação.

Os depósitos de gordura castanha, muito vascularizados e com inervação simpática, localizam-se na região subescapular, trajecto dos grandes vasos, goteiras paravertebrais, mediastino, e regiões perirrenais e perissuprarrenais.

Como resultado da exposição ao frio, a libertação de adrenalina e noradrenalina desencadeia lipólise ao nível da gordura castanha: hidrólise de triglicéridos com libertação de glicerol e ácidos gordos livres, e consequente produção de energia sob a forma de calor que, por condução, se vai transmitir aos vasos e sangue circulante nos tecidos contíguos.

Relativamente às possibilidades de resposta do RN ao ambiente exterior quente (situações relacionadas, por ex. com falta de precaução: tempo quente e excesso de roupa, hiperaquecimento inadvertido, etc.), há que salientar que existem limitações no que respeita ao mecanismo de compensação de perda de calor – normalmente funcionante em crianças de mais idade e adultos – através da sudorese. Com efeito, face à imaturidade do RN e lactente, as glândulas sudoríparas têm capacidade limitada de secreção, o que aumenta a probabilidade de hipertermia face a temperatura exterior elevada.

Em suma, os mecanismos de termorregulação nos RN têm limitações, havendo maior risco comparativamente a crianças de maior idade, quer de elevação anormal da temperatura se colocados em ambiente quente, quer de diminuição anormal da temperatura se colocados em ambiente frio.

Adaptação digestiva

Nutrição e crescimento fetais

Durante a vida fetal a nutrição é de tipo hematogénico, assegurada pela via transplacentar. De salientar que o crescimento pré-natal está dependente sobretudo de factores de crescimento maternos e placentares (e fetais em menor escala) tais como insulina e factores de crescimento semelhantes a insulina (IGF 1 e 2), leptina, etc., enquanto o crescimento pós-natal depende fundamentalmente de hormonas hipofisárias e doutras.

No 1º trimestre verifica-se aumento do número de células; no 2º trimestre verifica-se, quer aumento do número, quer do volume das mesmas células, sendo o incremento de gordura cerca de 50 gramas e o peso atingido do feto cerca de 1/3 do peso de nascimento.

No 3º trimestre – o período de verdadeira preparação para a vida extrauterina – continua o aumento do volume das células já formadas, o que se traduz num incremento de 500 gramas de gordura branca e castanha (10 vezes mais do que nos trimestres anteriores), e da maior parte das reservas

de minerais, glicogénio e oligoelementos; neste trimestre verifica-se incremento de peso correspondente a 2/3 do peso de nascimento.

As principais fontes energéticas para o feto são os hidratos de carbono representados pela glucose: por difusão, verifica-se um suprimento do referido nutriente no sentido mãe → feto, da ordem de 4-6 mg/kg/minuto durante o 2º trimestre da gravidez, período em que já é possível a glucogénese. A neoglucogénese processa-se no terceiro trimestre. (ver adiante)

O suprimento em azoto para a síntese proteica é levado a cabo através da transferência directa activa de aminoácidos mãe → feto, sendo que também se verifica síntese dos mesmos no citosol da placenta.

No que respeita aos lípidos, cabe referir que a lipogénese se processa no feto a partir das 12 semanas, sendo estimulada pela insulina e inibida pelo glucagon e AMPc. As fontes de lípidos para o feto são constituídas por: ácidos gordos livres provenientes da mãe e da síntese na placenta; ou da lipólise de triglicéridos, lipoproteínas ou fosfolípidos, quer da mãe, quer do próprio feto (salientando-se o papel da lipoproteína-lipase do endotélio capilar na hidrólise dos triglicéridos).

Tubo digestivo fetal

Todas as estruturas do tubo digestivo estão individualizadas desde a 12ª semana de gestação, sendo que a maturação anatómica e funcional se efectua progressivamente das regiões proximais para as regiões distais.

Como particularidades essenciais da fisiologia do tubo digestivo fetal cabe referir:

  • O feto tem capacidade para a sucção e deglutição; no termo da gestação tem possibilidade de deglutir até 10 mL/hora de líquido amniótico;
  • O processo de absorção intestinal activa da glucose existe desde a 12ª semana, aumentando significativamente até à 16ª semana; de referir que os elementos contidos no líquido amniótico são em grande parte absorvidos;
  • À medida que se vai constituindo o mecónio, este vai-se acumulando no tubo digestivo; somente em caso de sofrimento fetal se verifica emissão do mesmo para o espaço amniótico.

Nutrição e alimentação neonatais

Com a laqueação do cordão umbilical, a nutrição hematogénica transplacentar é bruscamente interrompida. Estando o tubo digestivo desenvolvido no termo da gestação, a via natural para o suprimento alimentar é a via digestiva; no caso de imaturidade, compreende-se que esta via (natural, extrauterina) comporta algumas limitações. Como particularidades essenciais da fisiologia do tubo digestivo do recém-nascido cabe referir:

  • A sucção e a deglutição, já presentes no feto, estão bem coordenadas no recém-nascido de termo a partir das 12 horas de vida; no RN pré-termo, e tanto mais quanto menor a idade gestacional, existe incoordenação da sucção-deglutição;
  • Atraso do esvaziamento gástrico nas primeiras 12 horas de vida pós-natal, melhorando gradualmente nos primeiros 4 dias;
  • O trânsito intestinal estabelece-se, na ausência de anomalias morfológicas e funcionais desde o nascimento. O ar penetra no tubo digestivo atingindo o intestino delgado entre as 2 e 12 horas de vida, e a porção mais distal do cólon entre as 18 e 24 horas;
  • O refluxo gastresofágico de grau variável por relaxamento do esfíncter esofágico inferior é habitual, sobretudo nos primeiros três dias;
  • A actividade proteolítica (pancreática e da pepsina) é baixa até cerca de 1 ano, desenvolvendo-se até aos 3 anos;
  • A lipase pancreática, com actividade fraca, é compensada pala lipase salivar;
  • As amilases salivar e pancreática também evidenciam actividade deficitária nos primeiros meses de vida;
  • As dissacaridases (sacarase, lactase, maltase) atingem a actividade máxima no termo da gravidez após incremento progressivo durante a gestação; a actividade da lactase diminui progressivamente com a idade e, designadamente após o período de alimentação láctea exclusiva;
  • A primeira refeição estimula a libertação duma variedade de hormonas entéricas incluindo insulina, hormona de crescimento, gastrina, enteroglucagon e motilina;
  • A primeira emissão de mecónio – que pode ser desencadeada pela primeira refeição de leite que estimula a motilidade através de hormonas intestinais – sobrevém nas primeiras 24 horas; situações em que tal não se verifique até às 48 horas implicam vigilância; de salientar que, nos casos de eliminação de mecónio in utero, se comprovou elevação dos níveis de motilina no sangue do cordão;
  • O atraso da eliminação de mecónio com sinais de obstrução intestinal pode observar-se em diversas situações como “síndroma de rolhão de mecónio” e síndroma de microcólon esquerdo; uma vez que cerca de 50% dos casos de atraso de eliminação de mecónio surgem em RN de mãe diabética, admite-se que a elevação do glucagon (secundária à hipoglicémia) pode diminuir a motilidade do cólon; a diminuição de tal motilidade por défice de libertação de acetilcolina secundária a hipermagnesémia neonatal pode também verificar-se nos casos de tratamento de eclâmpsia materna com magnésio.

Adaptação metabólica

A composição do meio interno do feto depende da concentração dos diversos elementos do sangue circulante materno, dos mecanismos de troca verificados ao nível da placenta e, em menor grau, da aquisição progressiva de funções de regulação (maturação) do próprio feto.

A laqueação do cordão umbilical interrompendo de modo abrupto, quer o suprimento de nutrientes e doutros compostos provenientes do organismo materno, quer o processo de depuração de catabólitos anteriormente a cargo da placenta, cria no RN uma situação de instabilidade metabólica ou de perturbação da homeostasia de grau e duração variáveis em função da idade gestacional do mesmo.

Dois tipos principais de situações podem ser considerados representativos de tal perturbação da homeostasia no período neonatal:

  • Carência em reservas energéticas para satisfazer as necessidades nutricionais, com maior acuidade nos RN com antecedentes de gravidez encurtada (pré-termo), de insuficiência placentar e/ou com restrição de crescimento intra-uterino;
  • Doenças hereditárias do metabolismo cujos efeitos in utero são compensados pelos mecanismos homeostáticos do organismo materno: sendo muitas das situações referidas assintomáticas ou acompanhando-se de período assintomático, o clínico deverá proceder ao respectivo rastreio na base da anamnese perinatal, do exame objectivo e de eventuais exames complementares.

Nesta alínea é dada ênfase a aspectos da adaptação do metabolismo do cálcio e dos hidratos de carbono.

Metabolismo do cálcio

In utero, o cálcio é transportado pela placenta de modo activo para o feto de modo que, no termo da gestação, os níveis séricos de cálcio sérico fetal sejam superiores aos níveis de cálcio materno.

No feto os níveis séricos de PTH (hormona paratiroideia) e de 1,25 (OH)2 – vitamina D são baixos, mas os níveis de calcitonina e de 24, 25 (OH)2 – vitamina D são elevados, o que favorece a deposição de cálcio no tecido ósseo.

Após o nascimento, a interrupção brusca de suprimento de cálcio transplacentar determina que no RN se verifique, não só diminuição da taxa de deposição de cálcio no osso, mas ainda remoção do mesmo para o sangue como “garantia” da manutenção da homeostase do cálcio extracelular até à data em que se inicia a ingestão de leite (que corresponde ao suprimento de cálcio e outros minerais).

Nas primeiras 24 horas verifica-se diminuição progressiva dos níveis de cálcio sérico que estimula a libertação de PTH que, por sua vez, estimula a síntese de 1,25 (OH)2 – vitamina D. Consequentemente verifica-se elevação do cálcio sérico explicada pelos seguintes mecanismos: 1) reabsorção/ remoção de cálcio ósseo por acção de PTH e 1,25 (OH)2 – vitamina D; 2) absorção de cálcio intestinal por efeito de 1,25 (OH)2 – vitamina D; 3) redução da eliminação renal de cálcio por acção de PTH e 1,25 (OH)2 – vitamina D; 4) redução gradual do fósforo sérico por excreção renal aumentada, como efeito da PTH.

Em condições de normalidade, o cálcio sérico estabiliza com valor > 8 mg/dL cerca de 48 horas após o nascimento, aumentando depois durante a primeira semana.

Metabolismo dos hidratos de carbono

O feto está dependente do suprimento materno de glucose, sendo que a glicémia fetal corresponde a cerca de 60%-70% da glicémia materna. Após a laqueação do cordão umbilical verifica-se descida abrupta da glicémia no RN, sendo atingido o nadir entre 1 e 2 horas de vida pós-natal, aumentando subsequentemente.

Os níveis de glucose no sangue são inicialmente mantidos através da mobilização e eventual depleção das reservas de glicogénio hepático, o que é facilitado pela elevação das catecolaminas e glucagon, e diminuição da insulina pós-natal.

Tendo em conta que o suprimento de hidratos de carbono através da alimentação nos primeiros dias de vida é escasso, e que somente cerca de 20%-50% da glucose para as necessidades provém do leite, o RN fica dependente da neoglucogénese a partir de aminoácidos, glicerol e lactato.

Alterações metabólicas diversas, maternas (diabetes, excessivo suprimento de glucose por via parentérica intra-parto, tocolíticos beta-simpaticomiméticos, etc.) ou neonatais (asfixia perinatal, hipotermia, restrição de crescimento intra-uterino, hiperinsulinémia, excesso de peso para a idade gestacional, etc.) poderão resultar em perturbação do metabolismo da glucose no RN conduzindo a hipoglicémia.

No RN de termo saudável alimentado nas primeiras 4 horas de vida verifica-se em geral glicémia superior a 40 mg/dL.

A hiperglicémia é rara no RN de termo.

Adaptação renal

Funções do rim

O rim tem numerosas funções: regula o volume e a composição do líquido extracelular, participa na manutenção do equilíbrio ácido-base, elimina os catabólitos azotados, activa a vitamina D, segrega a eritropoietina e sintetiza localmente prostaglandinas, endotelina, bradiquinina, NO e dopamina; é igualmente o alvo de numerosas hormonas extra-renais: vasopressina, hormona paratiroideia, aldosterona, catecolaminas, corticóides, etc.. Por intermédio do balanço do sódio e do sistema renina-angiotensina-aldosterona contribui para a regulação da pressão arterial. Sob o ponto de vista farmacológico, o rim constitui a via de eliminação de numerosos compostos activos ou dos seus catabólitos.

Rim fetal

No decurso da vida intra-uterina o feto não necessita dos seus rins, pois todas as funções homeostáticas são asseguradas pela placenta, a qual constitui um verdadeiro “rim artificial”.

A formação dos nefrónios processa-se numa sequência centrífuga e completa-se pela 35ª semana de gestação. O desenvolvimento da filtração glomerular e da perfusão renal têm uma evolução característica ao longo do último trimestre da gravidez. A maturação funcional é muito mais rápida do que o crescimento morfológico até à 35ª semana de gestação; a partir desta data verifica-se menor ritmo de incremento da filtração glomerular que passa a desenvolver-se paralelamente à massa renal.

A formação de urina pelo rim fetal começa entre a 9ª e 12ª semana de gestação.

A diurese, estimada por técnica ecográfica, é cerca de 10 mL/hora pela 32ª semana, atingindo cerca de 28 mL/hora no termo da gestação; a urina é hipotónica, com uma osmolalidade de cerca de 200 mOsm/kg H2O. No decurso do 2º trimestre verifica-se já um processo de reabsorção activa de glucose, cloro e sódio.

Nas situações de obstáculo da uretra o débito urinário pode ser < 2 mL/hora, verificando-se concomitantemente elevação da concentração urinária de sódio (> 100 mmol/L) e de cloro (> 90 mmol/L), assim como elevação da osmolalidade urinária (> 200 mOsm/kg/ H2O).

A indometacina (inibidor da síntese das prostaglandinas), que é utilizada na grávida como tocolítico, atravessa a placenta podendo diminuir a diurese fetal e originar oligoâmnio. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina utilizados como agentes anti-hipertensão podem igualmente originar oligo-anúria fetal e oligoâmnio.

Maturação renal pós-natal

Filtração glomerular e perfusão renal

Após o nascimento, o rim encarrega-se das funções homeostáticas até então desempenhadas pela placenta; em situações de normalidade a primeira micção do RN de termo verifica-se em cerca de 97% dos casos até às 24 horas de vida e em 100% até às 48 horas. A inexistência de diurese até às 24 horas no RN de termo levanta a suspeita clínica de patologia subjacente que importa investigar (por ex. hipóxia – isquémia, anomalias congénitas, fármacos administrados à mãe, etc.).

A filtração glomerular e a perfusão renal aceleram o ritmo desde as primeiras horas de vida extrauterina. A filtração glomerular, cerca de 20 mL/min x 1,73 m2 no RN de termo, duplica nas primeiras duas semanas (num adulto cuja superfície corporal média é cerca de 1,73 m2, a filtração glomerular atinge 100-120 mL/min). O desenvolvimento do débito plasmático renal segue uma evolução paralela, sendo que no período neonatal a maturação funcional é mais rápida que o crescimento morfológico.

No RN pré-termo, a filtração glomerular, partindo dum nível mais baixo, desenvolve-se de modo rápido. Esta maturação depende de modificações anatómicas e hemodinâmicas:

  • Crescimento glomerular;
  • Elevação da pressão arterial;
  • Diminuição da resistência vascular renal; e
  • Aumento da superfície de filtração e da permeabilidade capilar.

Está igualmente associada a importantes alterações da concentração de hormonas vasoactivas:

  • Diminuição da angiotensina II, das prostaglandinas, do péptido natriurético auricular (PNA ou ANP produzido nos miócitos da aurícula como resposta a hipoxémia ou a distensão da cavidade auricular); e da
  • Endotelina.

A maturação da filtração glomerular traduz-se clinicamente por modificações da creatininémia. No pós-parto, o RN apresenta valores elevados da creatininémia que reflectem a concentração materna desta substância. A creatinina plasmática do RN de termo diminui rapidamente e estabiliza por volta do 5º dia de vida num valor de cerca de 35 μmol/L. No RN pré-termo de muito baixo peso com cerca de 28 semanas de gestação e taxa de filtração glomerular muito mais baixa (cerca de 10 mL/min x 1,73 m2), o tempo necessário para excretar a creatinina materna é muito mais longo, podendo atingir 1 mês.

Regulação homeostática

A capacidade de diluição do RN de termo ou pré-termo é eficaz: a osmolalidade pode atingir valores até cerca de 40 mOsm/kg H2O. A capacidade de concentração no RN pré-termo é, pelo contrário, limitada em comparação com o adulto: osmolalidade urinária máxima de cerca de 680

mOsm/kg/H2O contra cerca de 1400 mOsm/kg/H2O no adulto; no RN pré-termo tal valor é < 680 mOsm/kg/H2O.

Tendo em conta a fraca capacidade de concentração, o RN de termo e, ainda mais, o RN pré-termo, necessitam de um volume mais importante de água para a excreção da carga osmótica diária.

Balanço do sódio

O rim desempenha papel primordial na regulação do balanço de sódio e, por conseguinte, na manutenção da osmolalidade e volume do líquido extracelular.

Como particularidades do mecanismo do balanço do sódio cabe referir:

  • Existe equilíbrio, quer no RN, quer no adulto, entre a filtração e reabsorção de sódio;
  • A fracção excretada de sódio (FeNa ou percentagem de sódio filtrado não reabsorvido e excretado) na data de nascimento está inversamente correlacionada o com a idade gestacional; e, mais tarde, com a idade pós-natal. Este facto dificulta a interpretação dos valores de FeNa no RN pré-termo com suspeita de insuficiência renal aguda;
  • Os RN pré-termo (e em menor grau os RN de termo) evidenciam incapacidade para excretar excesso de sódio resultante de suprimento excessivo do mesmo (por menor filtração glomerular, actividade aumentada do sistema renina-angiotensina-aldosterona, perfusão preferencial dos glomérulos juxtaglomerulares em detrimento dos corticais, etc.); tal conduz a balanço positivo em sódio;
  • Os RN pré-termo evidenciam incapacidade para reter sódio em situações de carência do mesmo (por resistência parcial do túbulo renal distal à aldosterona, entre outros factores);
  • As perdas de água transepiderme, muito elevadas no RNMBP, poderão originar hipernatrémia mesmo que o suprimento em sódio não seja excessivo;
  • No RN pré-termo de muito baixo peso é relevante considerar o período inicial em que ocorre, paralelamente à perda de peso, contracção do espaço extracelular que contém sódio; uma vez que a referida contracção corresponde a passagem de sódio do espaço extravascular para o vascular, haverá que adoptar prudência na prescrição de sódio em tal período de adaptação.
Equilíbrio ácido-base

A regulação do equilíbrio ácido-base é relativamente eficaz no RN. Este excreta, desde os primeiros dias, os ácidos produzidos pela oxidação dos substratos metabólicos e reabsorve os bicarbonatos filtrados.

Existe igualmente capacidade para diminuir o pH urinário em situação de acidose metabólica (valores mais baixos no RN de termo); os valores mais baixos são atingidos proporcionalmente a partir da 2ª semana de vida.

Tendo em conta o baixo limiar de excreção urinária, é importante referir as diferenças de comportamento no RN de termo e no pré-termo; no primeiro caso a concentração de bicarbonato plasmático é cerca de 20-22 mmol/L e, no segundo caso, 18-20 mmol/L.

Actividade da renina plasmática (ARP)

Na data do nascimento a concentração da RP no RN de termo é cerca de 10-12 ng/mL/hora; tal concentração vai diminuindo até cerca de 1 ng/mL/hora pelos seis anos de idade, valor que se mantém até à idade adulta.

Os principais estímulos para a libertação de renina são mediados pela PG-E2 e PG-I1. Ora, a excreção urinária destas prostaglandinas é relativamente maior nos RN pré-termo, variando de modo inversamente proporcional à idade de gestação.

Carga de soluto renal

A quantidade de água necessária para a formação da urina depende, não só da função renal, mas também da chamada carga de soluto renal. Esta última deriva, quer de produtos do catabolismo tecidual quando o suprimento energético e proteico é insuficiente, quer do suprimento exógeno de proteínas e electrólitos. Por sua vez, para o rim excretar a carga de soluto renal através da urina, necessita de água cujo volume deve oscilar entre 40 mL/kg/dia inicialmente, e 60-80 mL/kg dia nas semanas subsequentes.

Adaptação hematológica

Tendo em consideração que determinados tópicos relacionados com esta alínea foram analisados noutros capítulos, é dada ênfase à transfusão placentar e à dinâmica dos neutrófilos.

Transfusão placentar

A prática corrente tem sido proceder à laqueação entre os 30 e 60 segundos de vida extrauterina, considerando que o RN e placenta são colocados no mesmo plano da vulva (salientando-se que as normas actuais recomendam tempo não inferior a 1 minuto).

Estudos muito recentes (Junho de 2021) advogam diferir a laqueação do cordão até cerca de 3 minutos em RN de termo, com vantagens no neurodesenvolvimento.

Recordando que o volume total de sangue (da placenta + do RN de termo) varia entre 115-120 mL/kg, e que o valor da volémia do RN em idênticas circunstâncias varia entre 70-100 mL/kg, compreende-se que a placenta constitui um reservatório importante de sangue, podendo influenciar a volémia do RN.

A posição da placenta cerca de 50 cm acima do plano do RN favorece a transfusão placenta-feto, enquanto a posição inversa favorece a transfusão feto-placenta.

Se a laqueação for precoce (< 30 segundos) com RN-placenta-vulva no mesmo plano, obtém-se, na ausência de anomalias hematológicas prévias ou de patologia associada, hematócrito ~ 48-50%; se a laqueação tiver lugar aos 30 segundos, obtém-se incremento do valor de Hb em + 2g/dL; se ao cabo de 3 minutos, o valor da transfusão placento-fetal é cerca de 25-50 mL/kg (o que conduz a incremento da volémia de ~ +50%).

Dinâmica dos neutrófilos

Entre as 12 e 24 horas após o nascimento verifica-se elevação do número de neutrófilos, diminuindo depois até às 72 horas, mantendo-se com número relativamente estável a partir desta data; a relação entre número absoluto de neutrófilos imaturos e o número absoluto de neutrófilos totais é < 0,2. Nas situações de estresse perinatal tais, como infecção perinatal, asfixia, eclâmpsia, etc., aumenta a proporção de neutrófilos imaturos.

Adaptação neurológica e comportamental do RN

No que respeita aos ritmos circadianos, os chamados ritmos diurnos encontram-se no feto desde as 20 semanas, possivelmente relacionados com os ritmos de melatonina materna.

O comportamento do RN no pós-parto, designadamente no que respeita à actividade motora e alternância de sono-vigília, pode ser influenciado por factores diversos tais como analgesia materna, anestesia intraparto, toxicodependência materna, etc..

Nos primeiros 120 minutos pós-parto o RN está alerta, executa movimentos de rotação da cabeça, de flexão e extensão dos membros, movimentos de sucção e simile mastigação, evidenciando mímica semelhante a “caretas”, e movimentos mioclónicos dos globos oculares.

Após os primeiros 120 minutos começa a verificar-se alternância de períodos de actividade com períodos de sono; o sono activo pode oscilar em períodos de minutos a cerca de 4 horas; no entanto, este processo de ritmo circadiano pós-natal (alternância sono-vigília em relação com os níveis de cortisol e melatonina) poderá levar entre 8 e 12 semanas e estabilizar.

De salientar que tais fases evolutivas podem sofrer alteração como resultado de determinadas situações como toxicodependência, diabetes materna, e restrição do crescimento intra-uterino.

A hemorragia intracraniana secundária a traumatismo do nascimento pode ser considerada uma anomalia da adaptação fetal à vida extrauterina; tal como a asfixia, poderá traduzir-se por apneia ou convulsões nas 48 horas a seguir ao parto. Apneia e convulsões poderão também ocorrer secundariamente a hipoglicémia, hipocalcémia, abstinência de drogas ou policitémia.

Outras formas de adaptação

Resistência do cérebro à hipóxia perinatal

Durante a vida intra-uterina as necessidades do encéfalo em energia e em oxigénio são mais baixas em relação ao RN, à criança maior e ao adulto (menor idade <> neurónios mais pequenos, menos ramificados e com menor número de sinapses); contudo, tais necessidades aumentam com a idade gestacional. De salientar que o encéfalo imaturo, com capacidade glicolítica anaeróbia, utiliza como alternativa, entre outras fontes energéticas, os corpos cetónicos.

O período de transição feto-RN é também acompanhado de alterações neuroquímicas importantes. A concentração de aminoácidos excitatórios, tais como o glutamato atingindo a concentração máxima no termo da gestação, poderá contribuir para maior sensibilidade à hipóxia no RN de termo em comparação com o pré-termo.

Activação de genes

O trabalho de parto interfere no mRNA no que respeita à codificação dum certo número de enzimas (tais como hidroxilase da tirosina e a betahidroxilase da dopamina), e de compostos (como a chamada substância P). Esta última, produzida no tractus solitarius, evidencia uma concentração que aumenta significativamente nos primeiros dias de vida; admite-se que possa ter papel de regulação no automatismo respiratório como mediador na estimulação de quimiorreceptores em situações de hipóxia.

Índice de Apgar

O chamado índice de Apgar, criado em 1953 nos EUA por Virgínia Apgar, é um método de avaliação vital do RN, traduzindo a adaptação imediata do feto à vida extrauterina (ao 1 minuto e 5 minutos; e, eventualmente, também aos 10 minutos e 15 minutos). De modo estruturado, são avaliados 5 parâmetros, a cada um dos quais é atribuída respectivamente a pontuação de 0 ou 1 ou 2. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Índice de APGAR.

 012
Frequência cardíacaausência de batimentos< 100/min> 100/min
Respiraçãoapneiairregularchoro forte
Irritabilidade reflexaausentefracaboa
Cor da pelepalidezcianoserosada
Tono muscularhipotonia marcadaflexão ligeira das extremidadesflexão franca das extremidades
actividade motora

 

De acordo com a pontuação verificada, é possível dividir as situações encontradas em 4 grupos:

  • 0 <> feto morto;
  • 1-3 <> depressão grave;
  • 4-6 <> depressão ligeira a moderada;
  • 7-10 <> boa vitalidade ou boa adaptação à vida extrauterina.

Sugere-se a consulta do Capítulo sobre Reanimação Neonatal.

Como notas importantes relativamente a este critério de avaliação, cabe acentuar:

  1. Trata-se dum instrumento que orienta quem assiste ao parto sobre a eventual necessidade de executar manobras de reanimação (o principal interesse deste critério);
  2. Índice de Apgar baixo (depressão ou adaptação difícil) não traduz necessariamente situação de asfixia perinatal, nem de probabilidade de sequelas futuras;
  3. Em situações específicas acompanhadas de valor baixo persistente (< 3) até aos 15 minutos existe, de facto, probabilidade de sequelas neurológicas.

Nota – Sobre as limitações do índice da Apgar, designadamente em situações de prematuridade, e quanto ao significado do parâmetro “cor da pele”, consultar o Capítulo sobre Reanimação Neonatal.

BIBLIOGRAFIA

Andersson O, Mercer JS. Cord management of the term newborn. Clin Perinatol 2021; June: 447-470

Apgar V. A proposal for a new method of evaluation of the newborn infant. Anesth Analg 1953; 32: 260-263

Bancalari E, Eisler E. Neonatal respiratory support. In Kirby RR et al (eds). Mechanical Ventilation. New York: Churchill Livingstone, 1995

Britton JR. The transition to extrauterine life and disorders of transition. Clin Perinatol 1998; 25: 271-294

Cloherty JP, Eichenwald EC, Strak AR. Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Lippincott Williams & Wilkins, 2008 Davis PG, Dawson JA. New concepts in neonatal resuscitation. Curr Opin Pediatr 2012; 24: 147-153

Dukarm RC, Steinhorm RH, Morin FC. The normal pulmonary vascular transition at birth. Clin Perinatol 1996; 23: 711-726

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Greenough A, Milner AD (eds). Neonatal Respiratory Disorders. London: Arnold, 2006

Hillman NH, Kallapur SG, Jobe AH. Physiology of transition from intrauterine to extrauterine life. Clin Perinatol 2012; 39: 769-783

Hooper SB, Pas AB, Kitchen M. Respiratory transition in the newborn. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2016; 101: F266-271

Hooper SB, Polglase GR, Roeher Ch. Cardiopulmonary changes with aeration of the newborn lung. Pediatr Resp Rev 2015; 16: 147-150

Kirby RR, Smith RA, Desautels DA (eds). Mechanical Ventilation. New York: Churchill Livingstone, 1985

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Manroe BL, Rosenfeld CR, Weinberg AG, Browne R. The neonatal blood count in health and disease. I- Reference values for neutrophilic cells. J Pediatr 1979; 95: 89-98

McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010

Kurjak A(ed). Textbook of Perinatal Medicine. London: Parthenon, 1998

McIntosh N, Helms P, Smyth R, Logan S (eds). Forfar and Arneil´s Textbook of Pediatrics. London: Churchill Livingstone, 2008

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz. Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Platt MPW. The antenatal diagnosis of fetal anomaly: where to deliver the baby? Arch Dis Fetal Neonatal Ed 2013: 98:F190-F191

Polin RA, Yoder MC. Workbook in Practical Neonatology. Philadelphia: Elsevier Saundders, 2015

Raju TNK. Timing of umbilical cord clamping after birth for optimizing placental transfusion. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 180-187

Rao R, Bora R. Timing of umbilical cord clamping and infant brain development. J Pediatr 2108; 203: 8-9

Trines J, Hornberger LK. Evolution of heart in utero. Pediatr Cardiol 2004; 25: 287-298

Uslu S, Bulbul A, Can E, et al. Relationship between oxygen saturation and umbilical cord immediately after birth. Pediatrics and Neonatology 2012; 53: 340-345

Yu VYH (ed). Pulmonary Problems in the Perinatal Period and their Sequelae. London: Baillère Tindall, 1995

INTRODUÇÃO À NEONATOLOGIA

Objectivos da Neonatologia

O termo Neonatologia abrange o conjunto de conhecimentos necessários para a prestação de cuidados ao RN saudável ou doente. O desenvolvimento deste ramo da Pediatria implica cooperação íntima com a Medicina Materno-Fetal; com efeito, estas duas áreas da Medicina são devotadas ao mesmo produto de concepção em fases diferentes do desenvolvimento (intra-uterina/feto – extra-uterina-RN) com o papel activo de pediatras – neonatologistas, obstetras, especialistas em medicina materno-fetal, pediatras gerais, médicos de família, profissionais de enfermagem e outros profissionais e técnicos de saúde.

De facto, o clínico responsável pelos cuidados a prestar ao RN pode deparar com um largo espectro de situações clínicas no pós-parto imediato (muitas delas previstas no pressuposto de se ter verificado vigilância pré-natal): desde o RN saudável sem factores de risco, junto da mãe que amamenta, em enfermaria de puérperas e com alta precoce para o domicílio (cerca de 90%), ao RN exigindo cuidados especiais, ou em situação crítica exigindo terapia intensiva médico-cirúrgica e a colaboração de equipas multiprofissionais altamente especializadas (cerca de 7-10%).

Cabe referir que, em qualquer dos cenários, os cuidados a prestar ao RN deverão ser globais, incorporando as vertentes biológica e psicossocial, em obediência aos princípios do reconhecimento da criança recém-nascida como pessoa, e do papel fundamental da Família no chamado acto médico. Hoje em dia nenhum serviço poderá merecer a qualificação de excelente se desconhecer o RN como pessoa.

Nasce, assim, o conceito de Neonatologia centrada na Família como um processo de facilitar o encontro pais-filho RN, incluindo a convivência da Família nos serviços assistenciais; tal equivale a dizer que a mesma também faz parte da equipa, englobando neste conceito os cuidados domiciliários com o apoio indispensável de equipas assistenciais ligadas à instituição de saúde onde a criança nasceu ou foi assistida no pós-parto.

Em suma, podem ser delineados dois grandes objectivos da Neonatologia na perspectiva de respeito pelos direitos e superiores interesses da criança, com o fim último de melhor qualidade de vida:

  1. Prestação de cuidados aos RN saudáveis e doentes, englobando a detecção precoce de anomalias congénitas;
  2. Redução da mortalidade e da morbilidade no grupo dos chamados RN de alto risco (englobando, designadamente, sequelas ligadas à patologia do feto e RN).

Definições

Para que as estatísticas de mortalidade e morbilidade possam ser comparadas, quer na mesma instituição, quer noutras instituições nacionais ou internacionais, torna-se necessário uniformizar a terminologia a utilizar. Efectivamente, só deste modo se poderá planear e avaliar com rigor a política de saúde perinatal. Dito doutro modo, pode afirmar-se que a utilização de terminologia não uniformizada limita seriamente a interpretação exacta dos estudos epidemiológicos, especialmente quando se trata de comparar amostras ou populações de crianças nascidas prematuramente ou concebidas segundo tecnologia de reprodução assistida.

Seguidamente são revistas e comentadas algumas definições correntes em Neonatologia.

Idade gestacional

É o tempo decorrido entre o primeiro dia da última menstruação e o dia do parto. O primeiro dia do último período menstrual ocorre aproximadamente duas semanas antes da ovulação e três semanas antes da implantação do blastocisto. Uma vez que a maioria das mulheres sabe quando teve início o último período, mas não quando ocorreu a ovulação, este critério relativamente fidedigno tem sido utilizado para fazer uma estimativa sobre a data prevista do parto. Poderão verificar-se imprecisões irrelevantes (variações de 4-6 dias) quanto à data do parto, relacionadas, sobretudo, com variabilidade quanto à fertilização do ovo e à implantação do blastocisto. Imprecisões mais relevantes (variações da ordem de semanas) poderão ocorrer nos casos de mulheres com menstruações com frequência e duração muito irregulares, ou nos casos de hemorragias surgindo em dias próximos à concepção.

Notas importantes:

    1. A idade gestacional pode ser expressa em semanas ou dias completos; contudo, cabe referir exemplos para garantir o rigor do registo: por exemplo, um feto com 25 semanas + 5 dias, ou com 25 semanas + 3 dias, é considerado um feto de 25 semanas; ou seja, de acordo com as normas vigentes, não é correcto proceder ao arredondamento para 26 semanas. Contudo, é correcto (tomando como exemplo o caso de feto com 25 semanas) acrescentar o número de dias da semana não completada, ainda a decorrer, em superscript, precedido do sinal +: 25 semanas+5 ou 25 semanas+3;
    2. O primeiro dia do último período menstrual é o dia zero (0) e não o dia um (1);
    3. A 40ª semana da gravidez actual, a decorrer (ou período entre o 280º dia e o 286º dia) significa semana 39ª completa.

Idade cronológica (ou idade pós-natal)

É o tempo decorrido após o nascimento, o qual pode ser expresso em dias, semanas, meses e/ou anos.

Idade pós-menstrual

Este termo, expresso em semanas, compreende o somatório dos dois termos anteriores: idade gestacional + idade cronológica.

Idade corrigida (ou idade ajustada)

Este termo, expresso em semanas ou meses, corresponde à idade cronológica subtraída do número de semanas que antecederam o nascimento antes das 40 semanas. Este termo deverá ser usado apenas em crianças até aos 3 anos de idade, com antecedentes de prematuridade.

Nota: Deve dar-se preferência ao termo idade pós-menstrual nos casos referentes ao período entre as 28 semanas de gestação e o 7º dia de vida pós-natal (168 horas); e ao termo idade corrigida nos casos avaliados após o 7º dia de vida pós-natal.

Período perinatal

Período que se inicia a partir de 22 semanas completas de gestação (154 dias) – data a que corresponde habitualmente peso fetal ~ 500 gramas – e termina uma vez completados 7 dias após o nascimento.

Período neonatal

Período que se inicia na data de nascimento e termina após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: precoce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672 horas).

Nascimento vivo

É a expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção (nado-vivo) que, depois da separação (independentemente de o cordão ter sido ou não laqueado e a placenta ter sido ou não retirada), respire ou evidencie qualquer outro dos sinais de vida, tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical, e movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária.

Peso de nascimento

Constitui a primeira medida de peso a efectuar no produto de concepção após o nascimento (quer se trate de nado-vivo, quer de nado-morto).

Este parâmetro deve ser determinado durante a primeira hora de vida e antes de se iniciar a perda de peso fisiológica pós-natal.

Recém-nascido de baixo peso (RNBP) ou microssomático

RN com peso de nascimento < 2.500 gramas (até 2.499 gramas inclusive).

Recém-nascido de muito baixo peso (RNMBP)

RN com peso de nascimento < 1.500 gramas (até 1.499 gramas inclusive).

Recém-nascido de muito baixo peso extremo (RNMBPE)

RN com peso de nascimento < 1.000 gramas (até 999 gramas inclusive).

Recém-nascido normossomático

RN com peso de nascimento compreendido entre 2.500 e 4.000 gramas.

Recém-nascido macrossomático

RN com peso de nascimento > 4.000 gramas

RN pré-termo

Recém-nascido cuja idade gestacional é inferior a 37 semanas completas (< 259 dias).

Actualmente, segundo a OMS e peritos internacionais, são considerados os seguintes subgrupos de idade gestacional em RN pré-termo, em semanas:

  • 22-27 → pré-termo extremo;
  • 28-31 → muito pré-termo;
  • 32-36 → pré-termo moderado;
  • 34-36 → pré-termo tardio.

A OMS recomenda que se incluam apenas os nados-vivos.

Contudo, de acordo com os peritos, a inclusão dos nados-mortos somente contribuirá para modificação significativa dos números nos países em desenvolvimento.

RN de termo

Recém-nascido com idade gestacional compreendida entre 37 semanas e 41 semanas e 6 dias (259-293 dias).

Neste grupo de idade gestacional é considerado um subgrupo: 37-38 semanas (RN de termo precoce).

RN pós-termo

Recém-nascido com idade gestacional de 42 semanas completas ou mais (294 dias ou mais).

Antropometria e valores de referência

  1. De acordo com a OMS (1995), os valores da antropometria podem ser expressos em curvas de percentis ou, quando as medidas têm uma distribuição normal, em médias e desvios-padrão (DP). Em qualquer circunstância, são estabelecidos limiares de diagnóstico ou valores de corte (cut off) que reflectem melhor o equilíbrio possível entre a sensibilidade e a especificidade, de modo a identificar o que “não é normal”. A mediana corresponde ao percentil 50 e, por aproximação, -1DP ao percentil 5, +1DP ao 95, -2DP ao 3 e +2DP ao 97.
  2. Os valores de referência da antropometria ao nascer reflectem o crescimento intra-uterino e não devem ser confundidos com as curvas de crescimento intra-uterino construídas a partir das medições ecográficas fetais seriadas. Recentemente foram publicados valores de referência de crescimento intra-uterino a partir do registo da antropometria ao nascer com base numa amostra multirracial de 257.855 RN de gravidez única, nos EUA. Abrangendo o período das 22 às 42 semanas de gestação, são específicos para o género e incluem curvas de percentis (3 a 97), assim como médias e desvios-padrão para o peso, o comprimento e o perímetro cefálico. São as chamadas curvas de Olsen, que deverão substituir as clássicas, mas obsoletas, curvas de Lubchenco.

Os valores do peso, em função da idade de gestação, permitem classificar os RN em:

  • Leves para a idade de gestação (< percentil 3);
  • Adequados para a idade de gestação (percentil 3 a 97); e
  • Grandes para a idade de gestação (> percentil 97). (Figura 1)

O índice ponderal calcula-se pelo quociente: (peso em gramas X 100)/ (comprimento em cm elevado ao cubo).

Relativamente à avaliação antropométrica no lactente e criança em três situações diversas:

  1. Nas primeiras semanas pós-parto (avaliação do crescimento durante a hospitalização);
  2. A curto prazo (semanas após a alta hospitalar);
  3. E a longo prazo (meses/anos), sugere-se ao leitor a consulta das seguintes referências bibliográficas:
    • Ehrenkranz RA, et al ” Pediatrics 1999; 104: 280-289;
    • Fenton TR ” BMC Pediatr 2003; 3:13;
    • Guo SS, et al ” Arch Pediatr Adolesc Med 1966;
    • Guo SS, et al ” Early Hum Dev 1997.
Nota importante: De acordo com a literatura recente, não existe consenso relativamente aos valores de referência para avaliação do crescimento de crianças nascidas pré-termo.

Morte fetal

É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária (nado-morto).

Morte neonatal

É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias.

Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia zero) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vida. A partir do segundo dia de vida, e até 28 dias completos de vida, a idade de morte deve ser registada em dias.

Índice Ponderal= Peso em gramas x 100
(comprimento em cm)3

Adaptado de Olsen, 2010, com permissão)

FIGURA 1. Curvas de crescimento intra-uterino de Olsen para ambos os sexos: A+B <> sexo feminino; C+D <> sexo masculino. (consultar o texto)

Gravidez e recém-nascido de alto risco

Sucintamente, alto risco na gravidez, ou no recém-nascido significa possibilidade de doença ou de morte em relação com a presença de determinados factores, respectivamente para a díade grávida-feto, e recém-nascido.

Factores de risco na gravidez

Um dos objectivos dos exames de saúde/consultas pré-natais é, precisamente, detectar precocemente factores de risco na perspectiva de tomada de medidas atempadamente (por exemplo, encaminhamento da grávida para centro especializado, tratamento farmacológico, repouso, hospitalização, etc.) com a finalidade de reduzir ao mínimo, compensar ou anular situações adversas, quer na grávida, quer no feto. De referir que cerca de 2/3 dos factores de risco na gravidez podem ser identificados nos primeiros meses, e os restantes no final ou durante o parto.

A decisão de considerar a gravidez de alto risco cabe ao médico. Tal não impede, no entanto, a colaboração da equipa de enfermagem no que respeita à colheita de dados, e ao apoio do clínico no respeitante à tomada de decisão.

Seguidamente são mencionadas listas de factores de risco na gravidez (por vezes associados) que servem de orientação para se proceder à anamnese nas consultas pré-concepcional e pré-natal.

Factores sócio-económicos
  • Casal com graves dificuldades financeiras;
  • Habitação precária;
  • Problemas sociais do casal (pai ausente, conflitos conjugais, etc.);
  • Mãe solteira, em especial se adolescente;
  • Nutrição deficiente da futura mãe, antes ou durante a gravidez;
  • Idade da mãe < 16 anos ou > 35 anos;
  • Estatura da mãe inferior a 152 cm;
  • Mãe fumadora (sobretudo se fumar > 10 cigarros por dia);
  • Antecedentes familiares de doenças hereditárias;
  • Antecedentes obstétricos de: ausência de vigilância pré-natal anterior, infertilidade, abortos repetidos, gravidezes seguidas- intervalo inferior a 2 anos-, multiparidade, RN pré-termo anterior, parto prolongado, RN de baixo peso, RN macrossomáticos, nado-mortos ou mortes neonatais anteriores, filhos anteriores com doença motora cerebral ou doença neurológica, filho anterior com defeitos congénitos, mola hidatiforme, coriocarcinoma, síndroma antifosfolípida, etc..
Doenças maternas
  • Incompetência cervical;
  • Nefropatia gravídica;
  • Doença renal crónica, infecções urinárias repetidas, albuminúria persistente;
  • Diabetes mellitus e pré-diabetes;
  • Tromboflebite, embolia;
  • Doença cardíaca;
  • Doenças endócrinas (suprarrenal, tiroideia, hipófise, etc.);
  • Doença pulmonar grave incluindo tuberculose;
  • Doença sexualmente transmissível ou outras doenças infecciosas;
  • Anemia crónica (ferripriva, megaloblástica, hemoglobinopatias, etc.);
  • Subnutrição;
  • Obesidade;
  • Doença neoplásica;
  • Intervenção cirúrgica durante a gravidez;
  • Anomalias congénitas importantes do aparelho locomotor;
  • Epilepsia, atraso mental, etc.;
  • Alcoolismo crónico ou dependência de drogas.
Factores materno-fetais
  • Incompatibilidade sanguínea (Rh, ABO, Kell, outros);
  • Administração de fármacos durante o período da organogénese;
  • Infecções do grupo TORCHS;
  • Irradiação;
  • Alteração do crescimento fetal (restrição ou macrossomia).
Factores placentares e amnióticos
  • Hemorragia vaginal;
  • Hemorragia retroplacentar;
  • Disfunção placentar primária;
  • Placenta prévia ou abruptio placenta, outras alterações, etc.;
  • Ruptura prematura das membranas ovulares;
  • Poli-hidrâmnio ou oligo-âmnio.
Nota: Para quantificar de modo objectivo o risco pré-natal estão descritas na literatura médica diversas escalas estruturadas atribuindo pontuação parcelar a cada parâmetro considerado, o que permite uma pontuação final e, por exemplo, decisão de transferir, ou não, a grávida para centro especializado.

Factores de risco no RN (RN de alto risco)

A lista seguinte integra um conjunto de situações, por vezes associadas, que comportam risco de grau variável no RN.

Factores perinatais
  • Início prematuro de contracções uterinas;
  • Parto pós-termo;
  • Duração do parto
    • na primigesta: > 24 horas
    • na multigesta: > 12 horas
    • segundo período: > 2 horas;
  • Ruptura prolongada de membranas: > 24 horas;
  • Apresentação anormal;
  • Desproporção céfalo-pélvica;
  • Prolapso do cordão umbilical;
  • Parto com fórceps alto;
  • Cesariana;
  • Parto pélvico.
Factores neonatais
  • Peso de nascimento < 2.500 gramas ou > 4.000 gramas;
  • Parto múltiplo (gemelaridade);
  • Líquido amniótico meconial;
  • Índice de Apgar < 5 ao 1º minuto;
  • Resultados anómalos de exames para determinação do “bem-estar” fetal;
  • Sofrimento fetal agudo, subagudo ou crónico;
  • Manobras de reanimação;
  • Dificuldade respiratória;
  • Depressão do SNC por medicamentos administrados à mãe;
  • Sinais de lesão traumática relacionada com o nascimento;
  • Anomalias congénitas.

 Critérios de gravidade

Está hoje demonstrado que o prognóstico da doença neonatal não depende apenas das condições inerentes ao próprio organismo susceptíveis de criarem maior vulnerabilidade (tais como grau de imaturidade), mas igualmente da gravidade do processo mórbido. Ou seja, quando se trata de comparar estudos epidemiológicos sobre morbilidade e mortalidade neonatais no âmbito das mais diversas instituições, os bons ou maus resultados obtidos não podem ser relacionados apenas com o peso e/ou idade gestacional, (exemplificando tão somente com parâmetros de avaliação muito frequentemente considerados), mas igualmente com a gravidade da doença ou doenças de base.

Daí a necessidade de entrar em conta com critérios representativos da gravidade da doença, questão que, ao longo da evolução da Neonatologia moderna tem levado grupos de investigadores a testarem vários parâmetros combinados de modo estruturado e quantificado (escalas de avaliação de gravidade), procedendo à sua ulterior validação.

O objectivo fundamental de tais escalas é tentar aperfeiçoar os indicadores de desempenho das unidades de tal forma que seja possível realizar comparações mais rigorosas entre unidades, regiões e, principalmente, nas próprias em diferentes períodos, tendo em vista a melhoria gradual dos cuidados a prestar aos RN. É o conceito de auditoria.

Há que reconhecer as limitações do método, o qual deverá ser entendido como instrumento de orientação complementar para a equipa médica que, recebendo informação através da escala, presta cuidado a um doente específico; à referida equipa são, pois, exigidos bom senso clínico e ponderação no que respeita a decisões de vária ordem.

Existem diversos modelos de escalas de gravidade baseados em medidas fisiológicas, terapêuticas, diagnósticas, factores de risco, etc., sendo que a cada parâmetro é atribuída determinada pontuação, obtendo-se uma pontuação final ou “índice”.

Seguidamente são apresentados alguns dos critérios mais frequentemente utilizados em unidades neonatais, os quais são designados habitualmente pelas respectivas abreviaturas do título em língua inglesa.

CRIB (Clinical Risk Index for Babies)

O método CRIB (Quadro 1), a utilizar nas primeiras 12 horas de vida, é simples e pode ser aplicado a RN com peso de nascimento < 1.500 gramas e/ou idade gestacional < 31 semanas. Como limitação refere-se a dificuldade de aplicação a RN transferidos doutra unidade neonatal.

De acordo com estudos disponíveis, este critério não é preditivo da morbilidade nos sobreviventes.

Poderá obter-se um valor ou índice final entre 0 e 23, directamente proporcional à gravidade.

QUADRO 1 – Parâmetros do índice de gravidade CRIB.

* Para manter PaO2 de 50-80 mmHg e saturação de O2-Hb de 88-95%
ParâmetroPontuação
Peso de nascimento (gramas)
> 1350
851-1350
701-850
≤ 700

0
1
4
7
Idade gestacional (semanas)
> 24
≤ 24

0
1
Anomalias congénitas
Ausentes
Sem risco de vida
Com risco de vida

0
1
3
Défice de base máximo (mmol/L) – 1as 12 horas
< 7,0
7,0 a 9,9
10,0 a 14,9
≥ 15,0

0
1
2
3
FiO2 mínima adequada* nas 1as 12 horas
≤ 0,40 0
0,41 – 0,60
0,61 – 0,90
0,91- 1,00

0
2
3
4
FiO2 máxima adequada* nas 1as 12 horas
≤ 0,40
0,41- 0,80
0,81 – 0,90
0,91 – 1,00

0
1
3
5

SNAP (Score for Neonatal Acute Physiology) e SNAP-PE (Perinatal Extension)

Este método, na modalidade inicial (SNAP) integrando 34 parâmetros relacionados com sinais vitais e resultados de exames complementares (pontuação atribuída respectivamente a cada parâmetro: 1, 3, 5), pode ser utilizado em RN com qualquer peso de nascimento; com esta escala pretende-se quantificar o grau de instabilidade fisiológica. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Parâmetros do índice SNAP.

ParâmetroPontuação
135
Pressão arterial média, mmHg
Alta
Baixa
66-80
30-35
81-100
20-29
>100
<20
Frequência cardíaca
Alta
Baixa
180-200
80-90
201-250
40-79
>250
<40
Frequência respiratória60-100>100
Temperatura ºC35-35,533,3-34,9<33,3
PO2 mmHg50-6530-50<30
Relação PO2/FIO22,5-3,50,3-2,49<0,3
PCO2 mmHg50-6566-90>90
 Índice de oxigenação0,07-0,200,21-0,40>0,40
Hematócrito %
Alto
Baixo
66-70
30-35
>70
20-29

<20
Contagem de leucócitos (x 1.000)/ mmc2-5>2
Relação imaturos/totais>0,20
Número absoluto de neutrófilos totais/mmc500-999<500
Número de plaquetas (x 1.000)/mmc30-1000-29
Ureia, mg/dL40-80>80
Creatinina, mg/dL1,2-2,42,5-4>4
Débito urinário, mL/kg/hora0,5-0,90,1-0,49<0,1
Bilirrubina indirecta (por peso de nascimento)
> 2 kg: mg/dL
≤ 2 kg: mg/dL
15-20
5-10
>20
>10

Bilirrubina directa, mg/dL≥2,0
Sódio, mEq/L
Alto
Baixo
150-160
120-130
161-180
<120
>180
Potássio, mEq/L
Alto
Baixo
6,6-7,5
2,0-2,9
7,6-9
< 2,0
>9
Cálcio ionizado, mg/dL
Alto
Baixo
≥1,4
0,8-1

<0,8

Cálcio total, mg/dL
Alto
Baixo
≥12
5,0-6,9

<5,0

Glicémia, mg/dL
Alta
Baixa
150-250
30-40
>250
<30

Bicarbonato sérico, mEq/L
Alto
Baixo
≥33
11-15

≤10

PH sérico7,20-7,37,10-7,19<7,10
ConvulsãoÚnicaMúltipla
ApneiaResposta à estimulaçãoNão resposta à estimulaçãoCompleta
Sangue oculto nas fezesPositivo


Posteriormente esta escala foi de modo progressivo simplificada para SNAP-II, e SNAP-PE-II, sugerindo-se a consulta da bibliografia.

Notas importantes:

    1. A utilização dos referidos índices para decisões de carácter ético não é recomendada.
    2. Doentes com quadros clínicos semelhantes poderão evidenciar diversidade quanto à evolução.
    3. A informação fornecida pelos índices de gravidade deverá ser considerada um complemento da avaliação global pelo clínico responsável por determinado doente.

BIBLIOGRAFIA

Aujard Y. Topical issues in neonatology. Arch Pédiatrie 2017; 24: 792-794

Bastos G, Gomes A, Oliveira P, Torrado A. Comparação de quatro escalas de avaliação da gravidade clínica (CRIB, SNAP, SNAP-PE, NTISS) em recém-nascidos. Acta Méd Port 1997; 10: 161-165

Bataglia FC, Lubchenco LO. A practical classification of newborn infants by weight and gestational age. J Pediatr 1967; 71: 199-204

Carrapato MRG, Pereira T, Silva C, et al. Late preterms: are they all the same? J Maternal-Fetal & Neonatal Med. https://doi.org/10.1080/14767058.2018.1527897

Cloherty JP, Eichenwald EC, Strak AR. Manual of Neonatal Care. Philadelphia; Lippincott Williams & Wilkins, 2008

Committee on Fetus and Newborn. American Academy of Pediatrics. Pediatrics 2004; 114: 1362-1364

Direcção Geral da Saúde. Vigilância pré-natal e revisão do puerpério-Orientações Técnicas. Lisboa, 2016

Fanaroff AA, Martin RJ. Neonatal-Perinatal Medicine- Diseases of the Fetus and Infant. St. Louis: Mosby, 2002

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Guimarães J, Carneiro MJ, Loio P, Macedo A, et al. Neonatologia-Manual Prático. Lisboa/Hospital de São Francisco Xavier: Saninter, 2012

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

McIntosh N, Helms P, Smyth R, Logan S (eds). Forfar and Arneil´s Textbook of Pediatrics. London: Churchill Livingstone, 2008

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Olsen IE, Groveman SA, Lawson ML, et al. New intrauterine growth curves based on United States Data. Pediatrics 2010; 125: e214-e224

Pereira da Silva L, Neto MT (eds). New Challenges In Foetal And Neonatal Infections. Kerala, Índia: Research Signpost, 2011

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Polin RA, Lorenz JM. Neonatology. Cambridge: Cambridge University Press, 2008

Randis TM, Polin RA. Everyday dilemmas in neonatal care: a look at what is new. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 159-160

Richardson DK, Tarnow-Mordi WO, Escobar GJ. Neonatal risk scoring systems. Can they predict mortality and morbidity? Clin Perinatol 1998; 25: 591- 611

ASPECTOS DA MEDICINA PERINATAL II – VIGILÂNCIA INTEGRADA

A importância de novos paradigmas

Na sequência do que foi afirmado no capítulo anterior, pode inferir-se que o feto e o recém-nascido são um continuum de uma mesma entidade cuja abordagem é levada a cabo (e cuja prestação de cuidados é feita) em tempos diferentes por especialidades diferentes, com o objectivo de se assegurar um ser humano saudável.

O especialista em diagnóstico pré-natal, na posse do seu treino imagiológico e de técnicas de intervenção, tem uma acção muito dirigida ao feto; o obstetra procura que a mãe tenha as condições ideais para que o embrião e, depois, o feto, se desenvolvam harmoniosamente; e, finalmente, o pediatra vigia e cuida do recém-nascido desde o momento do nascimento.

De facto, a vigilância da mulher grávida em moldes clássicos, dando continuidade a práticas de há muito, valoriza essencialmente certos algoritmos de procedimentos e determinados exames complementares, subalternizando, não só certas características específicas e a individualidade da mulher, mas também a relevância do ambiente em que o feto se desenvolve.

Consequentemente, tendo em consideração a realidade descrita e os resultados da investigação, quer sobre a díade mãe-feto, quer sobre a importância do ambiente em que o feto se desenvolve (microambiente), e quer ainda sobre a do ambiente em que a grávida vive (macroambiente), os investigadores passaram a chamar a atenção para a necessidade de criar novos modelos de acompanhamento da gravidez.

O objectivo deste capítulo é descrever sucintamente, segundo a experiência e a investigação da autora, alguns dos pilares essenciais duma proposta de vigilância integrada da gravidez. (ver adiante)

Cuidados pré-concepcionais

Relativamente aos cuidados pré-concepcionais, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou diversas publicações, quer na sua plataforma (www.dgs.pt), quer na sua rede de intranet sobre Saúde Reprodutiva.

O impacte do trabalho profissional da grávida e da jovem mãe

As questões laborais no nosso País continuam a ter um impacte com repercussões negativas na grávida, apesar da legislação que apoia a gravidez e da existência de entidades que centralizam informação ou sinalização de casos (por ex. CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, acessível em www.cite.gov.pt). Qualquer grupo de trabalho nesta área terá uma capacidade de acção limitada, pois a prática clínica diária revela que a raiz do problema está na mentalidade estrutural da população.

Com efeito, as entidades patronais nem sempre “facilitam a vida” a trabalhadoras que tenham de seguir as orientações do médico. Eis alguns exemplos: ter de faltar para ir a consultas ou realizar exames, mudança de tarefas de uma funcionária, sua colocação num local compatível com esforço físico menos exigente, garantia de refeições a horas certas, ou ter de “picar o dedo” para colheita de sangue quatro vezes por dia para avaliar a glicémia.

Se o tempo de gravidez pode constituir, por si só, um risco de despedimento ou atitudes de má vontade da parte patronal, para a mãe, os primeiros tempos de vida do filho também poderão constituir uma preocupação baseada na realidade. E utilizando a licença de parto para que a mãe possa acompanhar em casa o filho, a mesma poderá não ser viável no contexto das profissões liberais. Por sua vez, na hipótese de os progenitores terem idêntica profissão, a licença de paternidade poderá ser inviabilizada.

Outras questões se levantam ainda, relacionadas designadamente com a circunstância de o bebé poder adoecer, implicando faltar ao trabalho por impossibilidade ou ausência do apoio por parte dos avós ou outros familiares.

Poderá surgir aqui um dilema: tendo em consideração que a população feminina jovem, valorizando muito uma carreira profissional com sucesso, por outro lado é confrontada com a imposição de condições estruturais adversas por parte da sociedade civil, o que poderá determinar situação de estresse com as implicações deletérias de impacte a longo prazo e transgeracional. (ver capítulo sobre “Doenças do feto com repercussão no adulto” – volume I).

Na verdade, na nossa prática clínica e na nossa vida diária, damo-nos conta de que existem situações laborais de pressão excessiva, de perseguição, ou mesmo de assédio por parte de certas entidades patronais no contexto de “colaboradora que está grávida ou tem um filho bebé”. Poderá tratar-se, pois, de situações que consubstanciam quadros bullying e harassment laboral com certa impossibilidade de mitigação face a uma legislação de protecção legal, que existe, mas é algo limitada.

A este propósito, importa salientar que, embora os actuais benefícios monetários disponibilizados às famílias possam constituir incentivo para certos grupos populacionais, tal critério não é aplicável à totalidade.

Enfim, para obviar alguns dos inconvenientes apontados, assim como alguns dos factores considerados adversos, especialmente no contexto da gravidez e dos primeiros meses de vida, torna-se lógico admitir que a flexibilização de horários, aplicada quer à grávida e jovem mãe que trabalha, quer ao pai, contribuiriam decisivamente para a redução do estresse a que nos referimos anteriormente.   

Actuação prática

A figura 1 esquematiza uma proposta de acompanhamento da grávida em que os diversos aspectos a ter em conta, desde o início, são planeados de forma integrada.

Figura 1. Proposta de acompanhamento planificado da gravidez por objectivos e com cuidados integrados. (TMV)

Na pré-concepção ou na primeira consulta da gravidez, propõe-se uma avaliação e uma caracterização multidisciplinar, devendo estabelecer-se um plano contemplando as seguintes vertentes:

  • cuidados nutricionais (indicados por nutricionista);
  • actividade física;
  • cuidados de âmbito emocional (com base no perfil psicológico detectado); – cuidados obstétricos (organização de acompanhamento periódico, exclusivamente por médico, ou partilhado por enfermeira especialista);
  • acompanhamento dirigido às especificidades laborais, contendo designadamente recomendações relativamente a tarefas profissionais compatíveis com a situação, ou a outras consideradas como contra-indicação;
  • eventuais reajustamentos ao longo da gravidez em função do contexto clínico, o que pressupõe seguimento, caso a caso, com definição de datas em períodos considerados mais vulneráveis.

No plano de gravidez inicial, deveriam ainda ser incluídos:

  • os tempos e os exames propostos para a realização de ecografias ou de diagnóstico pré-natal;
  • preparação para o aleitamento materno;
  • o programa de preparação para o parto com especificação de datas;
  • marcação da consulta de avaliação pediátrica pré-natal para o início do terceiro trimestre; e
  • programa de apoio social e domiciliário com especificação de datas, sempre que se considere conveniente.

Como importante nota complementar, este plano de gravidez deveria contemplar ainda:

  • todo o período da gravidez, parto, e primeiros dois meses pós-parto, até à revisão da puérpera, dado que todo este tempo é essencial para a saúde da mulher e do filho;
  • os cuidados pediátricos com especificação de datas ajustadas às directivas actuais e já praticadas, quer no âmbito dos cuidados primários de saúde, quer no de outros locais mais diferenciados.

O plano de acompanhamento psicológico deveria prolongar-se caso fossem identificadas situações de casos vulneráveis relacionados, por exemplo, com violência doméstica em associação a graves situações de medo e de ansiedade. Nesta perspectiva, seria ainda pertinente introduzir a figura da gestora da grávida, certamente desempenhada por uma enfermeira cuidadora e organizada, a qual deveria integrar todos os aspectos de acompanhamento e servir de ponte facilitadora entre as diversas áreas do plano individual de cuidados.

Conclusão

  1. Tendo como fundamentação o texto que integra este capítulo, é legítimo afirmar que a estratégia definida para o seguimento da gravidez é exigente sob o ponto de vista do envolvimento dos cuidados de saúde, uma vez que requer técnicos de várias áreas a trabalharem de uma forma multidisciplinar integrada, quer numa fase inicial, quer depois, de forma transdisciplinar e a longo prazo.
  2. No que respeita aos cuidados de saúde materna (quer primários, quer hospitalares), os mesmos deveriam ser reestruturados, tendo como base novas linhas de orientação mais atentas e abrangentes, pois o investimento feito nos primeiros mil dias da vida, ou seja, desde a concepção até se completarem dois anos de vida pós-natal, são fulcrais para toda a vida do indivíduo, com benefícios indiscutíveis para toda a sociedade.

BIBLIOGRAFIA

Barker DJ. The developmental origins of chronic adult disease. Acta Paediatr (Suppl) 2004; 93: 26-33

Barker DJ. Adult consequences of fetal growth restriction. Clin Obstet Gynecol 2006; 49: 270-228

Chatron N, Sanlaville D, Schluth-Bolard C. Noninvasive prenatal tests: advantages and pitfalls. Rev Méd Périnat 2016; 8: 3-8

Chitty LS, Kagan KO, Molina FS, et al. Fetal nuchal transparency scan and early prenatal diagnosis of chromosomal abnormalities by rapid aneuploidy screening: observational study. BMJ 2006; 332: 452-454

Cunniff C. Prenatal screening and diagnosis for pediatricians. Pediatrics 2004; 114: 889-894

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier, 2016

Kennedy RAK, Turner MJ. Development of a novel periconceptual nutrition score (PENS) to examine the relationship between maternal dietary quality and fetal growth Early Hum Develop 2019; 132: 6-12

Kinsella MT, Monk C. Impact of maternal stress, depression & anxiety on fetal neurobehavioral development. Clin Obstet Gynecol 2009; 52: 425-440

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kurjak A (ed). Textbook of Perinatal Medicine. London/New York: Parthenon Publishing, 1998

Lewis BE. Narrative medicine and healthcare reform. J Med Humanit 2011; 32: 9-20

Lo YM, Corbetta N, Chamberlain PF, et al. Presence of fetal DNA in maternal plasma and serum. Lancet 1997; 350: 485-487

Loureiro I, Miranda N. Promover a Saúde – dos Fundamentos à Acção. Lisboa: Almedina, 2016

Matias, A, Montenegro N, Areias JC, Leite LP. Haemodynamic evaluation of the first trimester fetus with special emphasis on venous return. Human Reproduction Update 2000; 6: 177-189

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2016

Nicolaides KH. Turning the pyramid of prenatal care. Fetal Diagn Ther 2011; 29: 183-196

Shonkoff JP, Levitt P, Fox NA, et al. National Scientific Council on the Developing Child. Boston: Center on the Developing Child/Harvard University, 2016

Smarr MM, Vadillo-Ortega F, Castillo-Castrejon, et al. The use of ultrasound measurements in environmental studies of air pollution and fetal growth. Curr Opin 2013; 25: 240-246

Ventura T e Gomes MC (eds). Os Primeiros Mil Dias – Actuar desde a concepção para melhorar a saúde das próximas gerações. Lisboa: Lantia Portugal, 2016

ASPECTOS DA MEDICINA PERINATAL I – GENERALIDADES E ASSISTÊNCIA PRÉ-NATAL

Generalidades

O imperativo da cobertura geral universal da população por cuidados de saúde primários e as necessidades especiais de grupos populacionais vulneráveis, obrigam a conferir alta prioridade aos cuidados de saúde a prestar às mulheres em idade fértil e às crianças.

A este propósito importa reter algumas noções extremamente básicas, mas muito importantes, tais como:

  1. É essencial que todas as grávidas possam ser examinadas durante a gestação; daqui nasce o conceito de vigilância ou assistência pré-natal.
  2. Uma gravidez não vigiada ou deficientemente vigiada leva ao insucesso, constituindo só por si um factor de risco.
  3. A melhoria dos indicadores de saúde perinatal, nomeadamente da mortalidade neonatal, depende fundamentalmente duma vigilância pré-natal correcta, idealmente na sequência duma avaliação pré-concepcional.
    • Nos últimos quarenta anos, sobretudo nos países industrializados (e designadamente em Portugal) tem-se assistido a uma diminuição significativa das taxas da mortalidade materna e neonatal, mercê de programas integrados de vigilância da grávida. Hoje em dia, para além da melhoria dos referidos indicadores, um dos grandes desafios é o combate à prematuridade.
    • Nos referidos países o parto prematuro espontâneo (antes das 37 semanas de gestação) ocorre em 6-11% de todas as gravidezes, e antes das 34 semanas em cerca de 3-5% das mesmas. Neste último período, a prematuridade comparticipa em cerca de ¾ a mortalidade neonatal, contribuindo igualmente para a morbilidade, sobretudo em termos de doenças do neurodesenvolvimento.
    • Os resultados de estudos recentes, incidindo sobre grávidas, demonstraram efeito benéfico e com segurança, da aspirina (ácido acetilsalicílico) em baixas doses, administrada desde fase muito precoce, mesmo antes das 16 semanas: redução muito significativa da taxa de prematuridade (em 8% no caso da aspirina), assim como da incidência de pré-eclâmpsia, restrição do crescimento fetal, insuficiência placentar, prematuridade e da contractilidade uterina. Tais efeitos foram explicados pelos efeitos de inibição da cicloxigenase e da acção antiagregante plaquetário da aspirina em baixas doses. Noutros estudos, utilizando fármacos do grupo dos antiagregantes plaquetários, foram obtidos resultados semelhantes.

Consulta pré-concepcional e pré-natal

I. Idealmente, e numa perspectiva extraordinariamente importante de prevenção, antes da gravidez deverá processar-se a chamada consulta pré-concepcional. Nesta consulta é avaliado o estado geral da “pré-grávida”, ponderando a eventual repercussão de antecedentes pessoais e familiares, quer da própria grávida, quer do parceiro, sobre a gravidez e produto de concepção.

Os aspectos específicos da consulta pré-concepcional podem ser sintetizados do seguinte modo:

  • Ponderar o risco genético susceptível de originar manifestações na futura criança;
  • Avaliar a somatometria (peso, altura, etc.) e os seguintes parâmetros: pressão arterial, Hb, Hct, regime alimentar, estado nutricional, tipo de actividade física habitual, etc.;
  • Propiciar orientações e aconselhamento sobre: vantagens do aleitamento materno, exercício físico, regime alimentar e factores de risco, etc..

II. A consulta pré-natal tem objectivos gerais e específicos:

Objectivos gerais:

  • Avaliar o bem-estar fetal e materno através de parâmetros clínicos e de exames complementares;
  • Detectar factores de risco que possam comprometer a evolução da gravidez e o bem-estar fetal, orientando correctamente cada situação;
  • Promover a educação para a saúde, integrando o aconselhamento sobre a importância do aleitamento materno e o apoio psicossocial ao longo de toda a gravidez.

Não existindo consenso (inclusive a nível internacional) sobre o número ideal de consultas pré-natais, de acordo com a Direcção Geral da Saúde é recomendado seguinte esquema:

  • Consultas mensais até à 32ª semana;
  • Consultas quinzenais entre 33ª e 37ª semanas;
  • Consultas semanais a partir da 38ª semana.

Considera-se esquema reduzido o número de 6 consultas (às 12, 20, 28, 32, 36 e 40 semanas).

Objectivos específicos:

  • Propiciar educação para a saúde e aconselhamento à grávida e sua família;
  • Propiciar um plano de rastreio e vigilância clínica com apoio de exames complementares com os objectivos de:
    • detectar precocemente desvios da normalidade,
    • minorar a sintomatologia associada à gravidez e apoiar a grávida na adaptação às alterações fisiológicas e às complicações que possam decorrer dos factores de risco.

Dos aspectos específicos da consulta pré-natal fazem parte:

  • Anamnese incidindo fundamentalmente sobre a detecção de factores de risco;
  • Exame físico incluindo determinação do peso (actual e incremento desde o início da gravidez), da altura, da pressão arterial, auscultação cardíaca e pulmonar, detecção de eventual mamilo pouco saliente, requerendo procedimento preventivo de repuxamento, edema, varizes, hemorróidas, outra patologia; e exame ginecológico (toque vaginal para apreciação do colo uterino e do estádio de apresentação depois das 34 semanas);
  • Aspectos indirectos relacionados com a semiologia fetal clínica convencional: determinação da altura do fundo uterino (distância entre sínfise púbica e fundo uterino), avaliação dos movimentos fetais, auscultação fetal (sendo que os batimentos cardíacos são audíveis com o estetoscópio de Pinard a partir das 19 semanas e a partir das 10 semanas com aparelhos do tipo Doptone), e avaliação da apresentação fetal no 3º trimestre;
  • Exames laboratoriais (grupo sanguíneo (A B 0) e factor Rh (assim como factor Rh do marido se a grávida tiver grupo Rh negativo), Hb e Hct, VDRL (a repetir obrigatoriamente em cada trimestre), serologia do grupo TORCHS e análise sumária de urina; em casos especiais: uricémia, creatininémia, prova de Coombs indirecta se for Rh- e marido Rh+, glicémia em jejum e pós-prandial, uricémia e urocultura;
  • Avaliação da pressão arterial da grávida;
  • Exames de imagem (ecografia fetal), a partir das 11-12 semanas;
  • Eventuais prescrições e revisão do regime alimentar.

Nota importante: Para o registo sequencial dos aspectos referidos, e de outros importantes, designadamente dos relacionadaos com promoção da saúde e prevenção da doença, foi concebido o pequeno livro chamado “Boletim da Grávida” de que a mesma deve ser portadora aquando das consultas ou episódios de observação por médico ou profissional de enfermagem. Trata-se, pois, dum documento informativo em circulação, de grande utilidade em prol da saúde da díade grávida feto/RN.

Avaliação do risco

Relativamente à avaliação do grau de risco (entendido como probabilidade de doença grave ou morte para a grávida e/ou feto/RN), exemplifica-se com o índice de Goodwinn. (Quadro 1), em que se atribui determinada pontuação [de 0 a 3] a certos parâmetros.

QUADRO 1 – Avaliação do risco pré-natal de Goodwinn, modificado.

I. História reprodutiva
IdadeParidade
≤ 17 e ≥ 40 = 3 
18 – 29 = 01 – 4 = 0  
30 – 39 = 1≥ 5 = 3  
História obstétrica anterior
Aborto habitual (≥ 3 consecutivos)= 1  
Infertilidade= 1  
Hemorragia pós-parto/dequitadura manual= 1  
Pré-eclâmpsia/eclâmpsia= 1  
Cesariana anterior= 2  
Feto morto/morte neonatal= 3  
Trabalho de parto prolongado ou difícil= 1  
Índice …………… ________________ + 
II. Patologia associada
Cirurgia ginecológica anterior= 1  
Doença renal crónica= 2  
Diabetes gestacional= 1  
Diabetes mellitus= 3  
Doença cardíaca= 3  
Outros problemas médicos
(Bronquite crónica, lúpus, etc.) Índice de acordo com a gravidade (1 a 3)
=  
Índice …………… ________________ +
III. Gravidez actual
Hemorragias1º Exame36ª Semana
≤ 20 semanas= 1   
> 20 semanas= 3   
Anemia (Hb ≤ 10 g/dL)= 1   
Gravidez prolongada (≥ 42 semanas)= 1   
Hipertensão= 2   
Rotura prematura das membranas= 2   
Hidrâmnio= 2   
Gravidez múltipla
Apresentação pélvica
Má apresentação
= 3   
Isoimunização Rh= 3   
Índice ……………________________________________
Total …………………………________________________________
BAIXO RISCO = 0-2
MÉDIO RISCO = 3-6
ALTO RISCO = ≥ 7


Em situações de risco médio ou alto (pontuação igual ou superior a 3), a grávida deverá ser encaminhada para centro especializado, sendo que a consulta neste último poderá envolver outros especialistas para além do especialista em medicina materno-fetal; o objectivo é avaliar a história natural da doença, estabelecer no feto o diagnóstico e o prognóstico, explicando aos pais e família aspectos psicossociais, assim como as possibilidades terapêuticas, incluindo, benefícios e riscos (aconselhamento).

A acessibilidade do feto leva ao conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) como um conjunto de procedimentos que permitem identificar ou excluir anomalias estruturais ou morfológicas, e funcionais, de um feto em desenvolvimento; ou seja, através do mesmo, é possível objectivar múltiplas situações de patologia fetal (ou excluí-las com elevado grau de especificidade), estabelecer eventual indicação de tratamento in utero, tratamento neonatal precoce, o que poderá contribuir para a melhoria do prognóstico.
Nesta perspectiva, subentende-se que o DPN, abordado adiante, deve ser encarado como uma das valências avançadas da vigilância pré-natal, o que pressupõe o cumprimento de determinadas etapas em centros especializados.

Notas importantes:

    1. Reportando-nos ao capítulo 1 desta obra, recorda-se a definição abrangente de Pediatria como “medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao fim da adolescência”, citada por uma figura de referência da pediatria e perinatologia: A. Torrado da Silva. A filosofia desta definição prende-se com a ideia de que o clínico que presta assistência a crianças (pediatra ou médico de família) deve valorizar os antecedentes pré-natais, dizendo respeito a eventos durante a gravidez com eventual impacto no embrião e ou no feto. Aliás, uma noção faz parte da história clínica pediátrica. Esta filosofia consubstancia a necessidade e o benefício em prol da saúde, de cooperação efectiva entre “médico da grávida e do parto” e “médico da criança”: este último, interessando-se pela evolução da gravidez e os primeiros, interessando-se pela evolução do bebé. É esta a base fundamental da perinatologia. Efectivamente, de acordo com a legislação portuguesa, no âmbito dos cuidados primários/centros de saúde, a grávida e a criança são observadas e seguidas por médico de família, os quais poderão referenciar os pacientes para especialistas em função do contexto clínico.
    2. Constituindo rotina a avaliação do risco pré-natal, a verificação de situações de médio ou alto risco implica a referenciação da grávida para centro especializado, local em que poderão ser realizados exames complementares mais sofisticados (abordados adiante), para além dos clássicos laboratoriais e ecografias pré-natais anteriormente citados.
    3. Relevando o papel da vigilância na gravidez, na década de 70 do século XX, em época anterior às novas tecnologias, um especialista sueco de renome – H. Hagberg – chamava a atenção para a enorme importância da utilização de instrumentos simples, perante recursos limitados: balança para avaliação seriada do peso, fita métrica para avaliação seriada da altura do fundo uterino, estetoscópio de Pinard para avaliação dos batimentos cardíacos fetais, esfigmomanómetro para avaliação da pressão arterial da grávida e bloco notas de papel para a mesma registar o número e horário dos movimentos fetais.
    4. Tendo sido sintetizados alguns aspectos das consultas pré-concepcional e pré-natal, salienta-se que, no âmbito da assistência pré-natal, as normas de orientação clínica poderão variar de centro para centro.
    5. Após o parto é distribuído à mãe/família do bebé um pequeno livro, chamado Boletim de Saúde Infantil e Juvenil para utilizar durante a idade pediátrica (contendo informação importante sobre a gestação, o período neonatal, educação para a saúde, recomendações em idades-chave, gráficos de crescimento e folhas para preencher pelo médico ou profissional de saúde no âmbito de actos médicos, vacinações ou episódios de doença. Trata-se, pois, dum importante documento informativo em circulação, que deve acompanhar a criança ou o jovem. Em anexo, contém o chamado Boletim Individual de Saúde (portfólio para registo de vacinas).

Semiologia fetal

Ecografia fetal convencional

A ecografia fetal é um exame imagiológico não invasivo que pode ser realizado por via transvaginal no primeiro trimestre da gestação, ou por via transabdominal em fases ulteriores.

De acordo com a experiência de vários centros considera-se como esquema ideal a realização de quatro ecografias durante a gestação:

  • 1ª entre as 11 e 14 semanas;
  • 2ª entre as 20 e 22 semanas;
  • 3ª entre as 26 e 28 semanas;
  • 4ª entre as 32 e 36 semanas.

As limitações da técnica estão relacionadas essencialmente com a posição do feto e a experiência do ecografista. Em função da experiência do ecografista e do grau de diferenciação do centro e capacidade técnica da aparelhagem onde é realizada a ecografia, são considerados classicamente três níveis:

  • Ecografia básica (nível I) realizada em ambulatório por imagiologistas, técnicos ou obstetras;
  • Ecografia diferenciada (nível II) realizada por obstetras com diferenciação especializada nesta área ou por imagiologistas;
  • Ecografia altamente diferenciada em centros altamente especializados onde se pode proceder igualmente a terapia fetal (nível III), realizada por especialistas em medicina fetal.

A ecografia fetal possui muitas potencialidades; entre outras, são destacadas as seguintes: avaliação da idade gestacional possibilitando melhor vigilância da evolução da gravidez, detecção de gravidez gemelar, detecção de restrição de crescimento fetal, detecção de anomalias congénitas com sensibilidade e especificidade de cerca de 95%, auxiliar para a realização de técnicas invasivas, avaliação do bem-estar fetal e medição da chamada translucência da nuca (TN).

A TN (imagem ecográfica hipoecogénica correspondente a líquido acumulado entre a pele e o tecido celular subcutâneo no triângulo posterior do pescoço do concepto entre as 11 e 13 semanas) constitui um método de rastreio de várias anomalias congénitas, incluindo anomalias cromossómicas e génicas; nalguns estudos sobre detecção pré-natal de trissomias 21, 13 e 18 verificou-se sensibilidade ~ 86% e especificidade ~ 95%.

O valor considerado normal é inferior a 2,5 mm; ou seja, a translucência considera-se aumentada quando evidenciar valor superior ao percentil 95 para a idade de gestação, o que obrigará a orientação da grávida para centro de medicina materno-fetal diferenciado.

Aquando da medição da TN pelas 11-13 semanas, o ecografista avalia em paralelo a anatomia fetal, sendo que o uso de sonda transvaginal aumenta o sucesso do referido estudo, designadamente quanto à visualização da face, rins e bexiga. Tal sucesso depende também da distância craniocaudal, do índice da massa corporal da mãe e do tempo despendido para o exame (idealmente nunca inferior a 25 minutos).

Ecografia tridimensional

Esta nova técnica, que não dispensa a ecografia convencional, permite a visualização do feto em três dimensões.

Como nota adicional, refere-se que o extraordinário desenvolvimento da ecografia destronou uma técnica invasiva envolvendo elevadas taxas de morbilidade e mortalidade que hoje pode ser considerada histórica – embrioscopia (visualização do feto por endoscopia intramniótica).

Ressonância magnética (RM)

A principal indicação deste exame imagiológico (ainda não exequível em todos os centros perinatais) é a detecção de anomalias congénitas do SNC.

Ecocardiografia fetal com ou sem doppler

A ecografia fetal, com ou sem doppler, está indicada em situações de risco gravídico elevado, e perante suspeita de defeito cardíaco. É realizada por cardiologista pediátrico com experiência nesta área, integrado na equipa multidisciplinar perinatal.

No Quadro 2 são resumidas algumas indicações deste exame complementar fetal.

QUADRO 2 – Indicações da ecocardiografia fetal.

Antecedentes familiares de cardiopatia congénita
Antecedentes familiares de morte perinatal de causa não esclarecida

Gravidez actual:

      • Arritmia cardíaca fetal
      • Hydrops fetalis de causa não imune
      • Anomalias fetais identificadas
      • Gemelaridade
      • Restrição do crescimento intra-uterino
      • Infecção do grupo TORCHS (ver adiante)
      • Idade materna > 35 anos
      • Outros factores de risco (diabetes, HTA, alcoolismo, fármacos, exposição a poluentes, etc.)

Amniocentese

A amniocentese (técnica de colheita de líquido amniótico por via abdominal para estudos vários – no âmbito da citogenética, biquímica, infecciologia, doenças metabólicas, etc.) é tradicionalmente realizada sob controlo ecográfico, entre as 16 e 18 semanas; em circunstâncias especiais pode ser realizada entre as 12 e 15 semanas.

Tal técnica, realizada por equipas experientes, propicia resultados conclusivos em cerca de 95% dos casos. As principais indicações deste procedimento constam do Quadro 3, que relaciona o tipo de exame a efectuar com a situação a esclarecer.

QUADRO 3 – Indicações da amniocentese.

Situação a esclarecerTipo de exame no líquido amniótico
Defeito do tubo neuralDoseamento da alfafetoproteína (AFP) acetilcolinesterase e pesquisa de células do sistema nervoso
Fibrose quística Fosfatase alcalina, aminopeptidase, dissacaridase
Maturidade pulmonar Relação lecitina/esfigomielina, fosfatidilglicerol
Infecções fetaisPesquisa de germe microbiano através do método PCR (reacção da polimerase em cadeia)
Doenças genéticasAnálise do ADN
Iso-imunizaçãoBilirrubina por espectrofotometria
Doenças metabólicasDoseamentos enzimáticos, identificação de metabólitos, estudo do fenótipo HLA, estudo molecular
Anomalias do tubo digestivoDoseamento de ácidos biliares, bilirrubina
Anomalias cromossómicasEstudo do cariótipo, sexo fetal, etc.

Cordocentese

A cordocentese é um procedimento em que se obtém amostra de sangue do cordão in útero por via percutânea com apoio imagiológico (ecogáfico), em geral realizado após as 19 semanas.

As principais indicações da cordocentese são:

  • Análise citogenética em caso de suspeita de anomalia congénita, doseamento de factor VIII, determinação da Hb em caso de iso-imunização fetal; e
  • Determinação de imunoglobulina M (IgM), PCR (reacção da polimerase em cadeia) e análise de ADN para identificação microbiana, havendo suspeita de infecção.

Biópsia das vilosidades coriónicas

Trata-se duma técnica em que se procede ao estudo histológico da camada citotrofoblástica das vilosidades da placenta em desenvolvimento, entre as 8 e 11 semanas de gestação contadas a partir do primeiro dia da última menstruação (mais frequentemente entre as 9 e 10 semanas); de acordo com a posição da placenta, utilizam-se as vias vaginal ou transabdominal, sob visualização ecográfica.

A biópsia das vilosidades coriónicas (que proporciona resultados rápidos e em fase precoce da gestação) realiza-se para estudo citogenético ao nível das células em mitose activa; podem também ser tiradas conclusões sobre o material genético do embrião a partir de cultura de células de fragmentos das vilosidades.

O grau de precisão dos resultados é semelhante ao obtido com a amniocentese; os riscos, no entanto, são ligeiramente superiores em comparação com esta última técnica.

Punção-biópsia e análise de células fetais

Em situações seleccionadas e muito específicas é possível, com o auxílio da ecografia, realizar punção ao nível de diversos órgãos (pele, fígado). Por outro lado, no sangue materno é possível detectar células fetais circulantes, pesquisando, designadamente, o respectivo ADN.

Ossos do nariz

Diversos estudos demonstraram, por método imagiológico, a existência de anomalias nos ossos do nariz em fetos com síndroma de Down, detectáveis já no primeiro trimestre (taxa de detecção de 73% para 5% de falsos positivos). A combinação deste parâmetro com o critério atrás descrito (associação de três parâmetros) permite aumentar para 95% o número de casos detectados, com 5% de falsos positivos.

Alterações hemodinâmicas no ductus venosus (DV)

Como se sabe, o ductus venosus é um vaso sanguíneo que, na vida intrauterina funciona como derivação reguladora (shunt) do fluxo venoso entre a circulação umbilical e o coração.

Através de ecografia doppler transvaginal ou transabdominal, estudo das alterações da forma das ondas de fluxo no sistema venoso fetal poderá dar informações importantes sobre a circulação central em fase precoce da gravidez (primeiro trimestre) devido às características do sistema venoso (baixa pressão, baixa velocidade e grande distensibilidade da parede vascular).

Ou seja, tal avaliação permitirá identificar precocemente na gravidez sinais de compromisso miocárdico e alterações do fluxo durante a contracção auricular fetais, as quais constituem o sinal mais precoce de compromisso cardíaco. Assim, é possível identificar fetos em risco de anomalia cromossómica, aneuploidia e/ou de insuficiência cardíaca.

Em estudos efectuados em fetos com aneuploidia verificou-se associação a dados anómalos do fluxo do DV, variável entre 59% a 95% dos casos; comparativamente com fetos evidenciando cariótipo normal foram encontrados sinais de fluxo anómalo em percentagens variando entre 3% e 21%.

Trata-se, no entanto, de um exame difícil, requerendo muita experiência para evitar erros de interpretação. Salienta-se, a propósito, que entre as dez e catorze semanas de gestação o DV tem um calibre de cerca de 2 mm.

Avaliação do bem-estar fetal

Para a avaliação do chamado “bem-estar fetal” ou estado vital do feto podem ser utilizados vários métodos:

Cardiotocografia (CTG)

Trata-se duma técnica sensível, mas pouco específica, para detecção de hipóxia fetal, habitualmente aplicada a partir das 28 semanas de gestação. Com o desenvolvimento da informática, existe hoje aparelhagem sofisticada que permite a interpretação automática dos dados obtidos. De salientar que a sua utilização foi suplantada pela fluxometria/doppler a referir seguidamente.

Fundamentalmente, cabe referir que a CTG integra um conjunto de parâmetros tais como: frequência cardíaca fetal (FCF) basal, a sua variabilidade, a relação entre aceleração da FCF e movimentos fetais, e a relação entre desaceleração ou diminuição da FCF com ausência ou presença de contracções uterinas.

Fluxometria

Trata-se duma técnica utilizada hoje em todos os centros de medicina perinatal, a qual tem como principal indicação a suspeita de restrição do crescimento do feto.

O fundamento da mesma é medir, pelo método doppler, a resistência vascular/onda pulsátil do sangue circulante nas artérias uterinas (compartimento materno), umbilicais (compartimento placentar), ou cerebral média (compartimento fetal), para avaliar o estado circulatório feto-materno.

Admite-se que uma diminuição do débito ou fluxo sanguíneo (por exemplo por disfunção placentar progressiva) traduz aumento da resistência ao mesmo fluxo. Tal aumento da resistência é evidenciado por diminuição do fluxo diastólico, e por eventual ausência ou inversão do fluxo durante a diástole.

Actualmente dá-se importância prognóstica ao padrão de onda pulsátil ao nível do ductus venosus, designadamente nas situações associadas a restrição de crescimento intra-uterino. (ver adiante)

Perfil biofísico

O chamado perfil biofísico integra um conjunto de parâmetros com o objectivo de avaliar o bem-estar fetal e, consequentemente, identificar situações de estresse ou de sofrimento fetal. Como instrumentos de avaliação são utilizados o CTG e a ecografia.

Os parâmetros avaliados são os seguintes: respiração fetal, movimentos fetais, tono muscular, frequência cardíaca fetal (FCF), e volume de líquido amniótico (Quadro 4). À situação de normalidade é dada a pontuação de dois (2); à situação anormal é dada a pontuação de zero (0). Os parâmetros são avaliados em períodos de 30 minutos.

QUADRO 4 – Critérios utilizados na avaliação do perfil biofísico.

(Adaptado de Creasy RK & Resnik R, 1994)

→ CTG

    • Pelo menos 2 episódios de aceleração da FCF de 15 ou mais batimentos/minuto, com duração de, pelo menos, 15 segundos, associados a movimentos fetais, durante período de 30 minutos = (2)
    • Menos de 2 episódios de aceleração da FCF, ou aceleração < 15 batimentos/minuto, durante período de 30 minutos = (0) 

→ Volume do líquido amniótico

    • Pelo menos 1 bolsa de LA com, pelo menos, 2 cm em 2 planos perpendiculares = (2)
    • Ausência de bolsa de LA ou 1 bolsa com < 2 cm = (0)

→ Tono fetal

    • Pelo menos 1 episódio de extensão activa com retorno à posição de flexão do, ou dos membros do feto; abrir e fechar a mão é considerado tono normal = (2)
    • Ou extensão lenta com retorno à flexão parcial, ou movimento do membro em extensão completa, ou ausência de movimento fetal com a mão em deflexão completa ou parcial = (0)

Movimentos de expansão e retracção do tórax (MER)

    • Pelo menos 1 episódio, durando pelo menos 30 segundos, no período de observação de 30 minutos = (2)
    • Ausência de MER ou nenhum episódio, durando pelo menos 30 segundos, no período de observação de 30 minutos = (0)

→ Movimentos fetais (do corpo ou membros)

    • Pelo menos 3 movimentos discretos em 30 minutos (episódios de movimentos contínuos são considerados 1 só movimento) = (2)
    • 2 ou menos episódios em 30 minutos = (0)

Uma pontuação total de 8-10 pode significar com elevado grau de confiança “bem-estar fetal”; pontuação de 6 é duvidosa, o que obrigará a repetição dentro de 12-24 horas; pontuação de 4 ou menos corresponde a alto risco e obrigará a reavaliação imediata e, provavelmente, a desencadear o parto.

Parâmetros laboratoriais no soro materno

É consensual que deverá ser disponibilizado a todas as grávidas um programa de rastreio de anomalias fetais e de patologia associada à gravidez a todas as grávidas, o qual pode ser sintetizado do seguinte modo:

Rastreio bioquímico de cromossomopatias

Entre as 11 e 13 semanas de gestação pode proceder-se ao doseamento da PAPP-A (sigla de pregnancy-associated plasma protein A – proteína A do plasma associada à gravidez) e da alfa-fetoproteína no soro da grávida.

  • O valor da PAPP-A aumenta em condições de normalidade com a idade de gestação. Na trissomia 21 os níveis são mais baixos, sendo que, de acordo com dados da literatura, a percentagem de casos falsos positivos é cerca de 5%. Tal determinação poderá detectar ~ 40% dos casos de trissomia.
  • O valor da alfa-fetoproteína está elevado em situações de gemelaridade e de defeitos do tubo neural (em ~ 100% dos casos de anencefalia, e em ~ 70% dos casos de spina bífida ou de defeitos de encerramento da parede abdominal). Nas trissomias e nas aneuploidias, o valor está reduzido.
Rastreio bioquímico de cromossomopatias e defeitos do tubo neural

Entre as 15 e 18 semanas pode proceder-se ao doseamento da alfa-fetoproteína e da gonadotrofina coriónica (b-hCG ou b-human chorionic gonadotropin) livre.

  • No soro materno o valor da b-gonadotrofina coriónica humana livre, diminui em condições de normalidade a partir das 10 semanas. Na trissomia 21 os respectivos valores estão aumentados. Isoladamente utilizada, a b-hCG livre poderá detectar cerca de 35% dos casos de trissomia 21, com 5% de casos falsos positivos. Associando a b-hCG livre à idade materna, é possível a detecção de cerca de 45% de trissomias. De referir que, no 1º trimestre, o doseamento da b-hCG total é menos discriminatório do que a b-hCG livre.*

*De salientar que a sub-unidade beta da gonadotrofina coriónica constitui um marcador biológico para diagnóstico da gravidez; em situação de normalidade, valor < 10 mUI/mL exclui estado de gravidez. Por ex., valores de referência entre 1.500 e 23.000 mUI/mL correspondem a gravidez de 4-5 semanas, sendo que os valores variam em função do número de semanas decorridas.

Neste tipo de rastreio aplica-se o que foi referido antes relativamente à alfa-fetoproteína.

Diagnóstico pré-natal no primeiro trimestre

Os avanços tecnológicos relacionados com o diagnóstico de patologia diversa e aplicáveis à díade materno-fetal, têm contribuído para o rápido progresso do chamado DPN. Estes avanços, cada vez mais seguros e sensíveis, e aplicados a populações de baixo risco, tiveram como resultado a sua expansão.

Assim, exames já antes referidos, como a ecografia de alta definição, técnicas de análise citogenética e molecular e respectiva divulgação pelos meios de comunicação social, têm permitido que os procedimentos que integram o DPN sejam bem aceites, não só pela população em geral, mas também pelos profissionais de saúde.

A este respeito, importa escolher um modelo de rastreio sistemático e universal, adequado para determinada população, com boa relação custo/benefício.

A realização do DPN no primeiro trimestre tem vantagens relacionadas, designadamente, com: 1- possibilidade de conhecer o resultado mais cedo, o que corresponde a um período menor de incerteza; 2- a gestação não é ainda conhecida pelo agregado familiar, o que torna mais simples decidir em função de um resultado desfavorável.

Nesta perspectiva, para que determinados procedimentos invasivos de DPN possam ser aplicados, deverão, à partida, estar satisfeitos os critérios de exequibilidade técnica, confiabilidade e utilidade (tratamento ou interrupção), necessidade, segurança (benefício superior ao risco) e consentimento informado e esclarecido.

De acordo com dados da literatura, o modelo de DPN no primeiro trimestre, aparentemente mais adequado e com melhor relação custo-benefício, integra o rastreio conjugado de dois parâmetros bioquímicos (doseamento de PAPP-A + b-hCG livre) e de um parâmetro imagiológico (medição da translucência da nuca), a realizar pelas doze semanas de gestação.

Segundo a Fetal Medicine Foundation, combinando num modelo matemático a idade materna, TN, b-hCG livre e PAPP-A, marcadores independentes entre si, é possível identificar anomalias em 87% dos casos rastreados, com 5% de falsos positivos.

A propósito de diagnóstico e tratamento pré-natal precoces, importa referir os avanços alcançados com a utilização de novas tecnologias para identificação e tratamento de diversas patologias fetais através da administração de células precursoras pluripotenciais/estaminais/stem cells.

BIBLIOGRAFIA

Aujard Y. Topical issues in neonatology. Arch Pédiatrie 2017;24:792-794

Chitty LS, Kagan KO, Molina FS, et al. Fetal nuchal transparency scan and early prenatal diagnosis of chromosomal abnormalities by rapid aneuploidy screening: observational study. BMJ 2006;332:452-454

Cloherty JP, Stark AR. Manual de Neonatologia. Philadelphia: Wolters-Kluwer, 2017

Creasy RK, Resnik R (eds). Maternal-Fetal Medicine: Principles and Practice. Philadelphia: Saunders, 1994

Cunniff C. Prenatal screening and diagnosis for pediatricians. Pediatrics 2004;114:889-894

Direcção Geral da Saúde. Vigilância pré-natal e revisão do puerpério-Orientações Técnicas. Lisboa, 2005

Ezashi T, Schust DJ, Schulz LC. Modeling the placenta with stem cells. NEJM 2019;381(17):1681-1683

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman – Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Harrison MR, Golbus MS, Filly RA. The Unborn Patient – Prenatal Diagnosis and Treatment. Philadelphia: Saunders, 1996

Hoffman MK, Goudar SS, Kodkany BS, et al. Low-dose aspirin for the prevention of preterm delivery in nulliparous women with a singleton pregnancy (ASPIRIN): a randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet 2020;395:285- 293

Hyett JA, Perdu M, Sharland GK, Snijders RJM, Nicolaides KH. Using fetal nuchal translucency to screen for major congenital cardiac defects at 10-14 weeks of gestation: population-based cohort study. BMJ 1999;318:81-85

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

Matias, A, Montenegro N, Areias JC, Leite LP. Haemodynamic evaluation of the first trimester fetus with special emphasis on venous return. Human Reproduction Update 2000;6:177-189

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Polin RA, Yoder MC. Workbook in Practical Neonatology. Philadelphia: Elsevier, 2015

Redline RW. The placenta as a tool for improving neonatal care. Acta Paediatrica 2018;107:2042-2043

Roberge S, Bujold E, Nicolaides KH. Aspirin for the prevention of preterm and term preeclampsia: systematic review and metaanalysis. Am J Obstet Gynecol 2018;218:287e-293e

Smarr MM, Vadillo-Ortega F, Castillo-Castrejon, et al. The use of ultrasound measurements in environmental studies of air pollution and fetal growth. Curr Opin Pediatr 2013;25;240-246

Thébaud B. Stem cell-based therapies in neonatology: a new hope. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2018;103: F583–F588. doi:10.1136/archdischild-2017-314451