Definições e importância do problema

A utilização abusiva de drogas e determinadas substâncias, por vezes em associação (marijuana, morfina, cocaína, heroína, álcool, metadona, etc.), atingiu nas últimas décadas proporção de verdadeira epidemia com repercussão na grávida e no feto – futuro RN – pela exposição crónica aos referidos compostos.

Para melhor compreensão do problema importará definir fundamentalmente três conceitos interligados:

  1. Toxicodependência ou toxicomania: estado de intoxicação periódica ou crónica provocado pelo consumo repetido de uma substância (natural ou sintética), o qual é acompanhado por um desejo invencível ou pela necessidade de continuar a consumir a substância e de a obter por todos os meios, com tendência para aumentar as doses e para dependência psíquica, e frequentemente também física, em relação aos efeitos da mesma substância;
  2. Síndroma de abstinência (ou de privação): conjunto de sinais e sintomas específicos resultantes da suspensão ou redução do consumo da substância que criou dependência (sensação de a pessoa “não poder passar sem a mesma”), sendo que os referidos sinais e sintomas desaparecem com a administração da própria substância ou de um seu sucedâneo, como a metadona no caso da morfina; cabe referir, a propósito, que no contexto de utilização abusiva de substâncias, as acções verificadas podem ser o oposto das acções características das mesmas;
  3. Síndroma de abstinência neonatal (SAN): como se poderá deduzir, no feto (futuro RN), por efeito da exposição crónica aos referidos compostos, poderá surgir também dependência, acarretando ulterior quadro de manifestações clínicas (síndroma de abstinência neonatal) de duração variável, por privação brusca do efeito da substância a partir do momento da laqueação do cordão umbilical; descreve-se ainda uma SAN iatrogénica em situações que requereram sedação para realização de procedimentos invasivos ou intervenções cirúrgicas; saliente-se que o SAN não se define pela necessidade de terapêutica farmacológica.

A administração abusiva de substâncias e drogas (legais e ilegais) constitui um verdadeiro problema de saúde pública. Os efeitos adversos da toxicodependência na gravidez são variados e relacionam-se com cuidados pré-natais inadequados, risco aumentado de prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, morte in utero, risco de síndroma de abstinência e toxicidade, risco de doenças infecciosas de transmissão vertical, risco social (emprego precário, situação económica débil, capacidade parental reduzida com negligência dos filhos) e risco de perturbação do neurodesenvolvimento da criança.

Dados estatísticos dos EUA (National Survey on Drug Use and Health, 2011) estimam que entre cerca de 5% das grávidas, tomam medicamentos não recomendados no referido período, incluindo as chamadas substâncias ilícitas. A análise retrospectiva de uma amostra representativa dos EUA revelou que entre 2000 e 2009 a taxa de RN com SAN aumentou de 1,2 para 3,39 por 1.000 nascimentos hospitalares por ano. Em Portugal, em diversos estudos epidemiológicos realizados em diferentes décadas foram apuradas “relações de casos por mil nados-vivos” entre 2,7/1.000 e 10/1.000 (entre 1990 e 2006), testemunhando o aumento da prevalência e a importância da toxicodependência na mulher portuguesa em idade fértil.

Na grávida toxicodependente (TD), sobretudo nos casos de consumo de heroína, poderão surgir episódios de síndroma de abstinência cujas consequências poderão ser fundamentalmente o aborto, a morte fetal, a restrição de crescimento fetal e o parto pré-termo.

A terapêutica de substituição na grávida, realizada com metadona ou buprenorfina, parece reduzir as complicações na gravidez, não evitando, contudo, a SAN. Uma referência especial à marijuana cuja utilização nos EUA em 2006 atingiu a cifra superior a 11 milhões de utilizadores entre os 18 e 25 anos e com uma frequência nas grávidas, variando conforme as regiões, entre 5-35%.

Um dos factores mais pejorativos no grupo de grávidas toxicodependentes é a concomitância de determinadas infecções classicamente ligadas a comportamentos de risco, tais como, por VHB, VHC, HPV, VIH, etc., contribuindo para comorbilidade com repercussões no feto e RN.

Etiopatogénese

Os efeitos de drogas e substâncias sobre o feto/RN dependem de diversos factores: idade gestacional em que a substância actua; duração da exposição fetal; tipo de droga consumida, via de administração e concentração sanguínea atingida; estilo de vida da grávida.

Os mecanismos pelos quais as substâncias actuam são diversos: acção teratogénica; acção carcinogénica; interferência com a diferenciação de tecidos e órgãos; depressão ou sedação do feto/RN; dependência e ulterior síndroma de abstinência (privação brusca do efeito após laqueação do cordão umbilical).

Importa distinguir duas situações resultantes da exposição a determinadas substâncias in útero:

  • Toxicidade aguda, resultante da exposição directa à droga e que acarreta alterações neurocomportamentais semelhantes a SAN, mas que melhoram à medida que a substância é eliminada e;
  • Toxicidade não aguda, com agravamento à medida que ocorre a metabolização e a excreção da droga.

As substâncias que mais frequentemente são consumidas pela grávida são sistematizadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Substâncias de consumo abusivo pela grávida

Analgésicos narcóticos (opiáceos)

    • Heroína
    • Meperidina
    • Morfina
    • Propoxifeno
    • Metadona
    • Pentazocina
    • Codeína

Simpaticomiméticos (estimulação do SNC)

    • Anfetamina
    • Fenmetrazina
    • Metanfetamina
    • Cocaína
    • Dextroanfetamina

Hipnóticos e sedativos (depressão do SNC)

    • Barbitúricos (efeitos de curta ou longa duração)
    • Glutetimida
    • Fenotiazinas
    • Hidrato de cloral
    • Álcool
    • Sedativos e tranquilizantes menores (diazepam, clorodiazepóxido, etc.)
    • Alcalóides da beladona (escopolamina, atropina)
    • Hidrocarbonetos voláteis (gasolina, tolueno, etc.)

Alucinógenos

    • Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)
    • Mescalina
    • Marijuana (Cannabis sativa L) – por vezes considerada em grupo à parte
    • Fenilciclidina-hidrocloreto (“pó de anjos”)


Os opiáceos ligam-se aos receptores de opiáceos do SNC. Algumas das manifestações clínicas de privação resultam de hipersensibilidade alfa-2 adrenérgica, particularmente ao nível do locus ceruleus. No caso da cocaína, tal tipo de manifestações pode explicar-se do seguinte modo: a cocaína previne a recaptação de neurotransmissores (epinefrina, norepinefrina, dopamina e serotonina) nas terminações nervosas, resultando em hipersensibilidade ou resposta exagerada aos neurotransmissores ao nível dos órgãos efectores.

Os referidos opiáceos constituem a causa mais frequente de SAN. Em cerca de 90% dos RN nestas circunstâncias surgem manifestações clínicas de grau variável. Destes, em mais de metade (50-75%), a sintomatologia necessita de tratamento. A incidência e a gravidade de SAN é superior nos RN expostos a metadona comparativamente aqueles expostos à heroína e à buprenorfina.

Seguidamente são descritos de modo sucinto os efeitos de algumas das substâncias atrás discriminadas, reservando para a alínea “Manifestações clínicas” o quadro relacionado com a síndroma de abstinência neonatal.

Heroína

A heroína pode originar restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento; um dos efeitos biológicos é a elevação do magnésio sérico fetal e neonatal. Um fenómeno não completamente explicado é o aumento do número de casos de síndroma de morte súbita do lactente. Curiosamente, pela indução da glucuronil-transferase e das enzimas responsáveis pela produção de surfactante pulmonar, verifica-se respetivamente menor incidência de hiperbilirrubinémia e de DMH.

Morfina

O abuso de morfina na gravidez não está associado a anomalias congénitas.

Metadona

A metadona é um analgésico opiáceo sintético com uma semi-vida longa (16 a 25 horas no período neonatal). A sua indicação mais frequente (no contexto do tema que se apresenta) é a de substituir outras substâncias utilizadas no regime de abuso pela mãe durante tempo prolongado, num processo lento de retirada para evitar síndroma de abstinência materna. Nos fetos submetidos de modo prolongado à acção da metadona não se verifica incidência aumentada de anomalias congénitas, sendo que o respectivo peso de nascimento médio é superior ao verificado, por exemplo, nos fetos submetidos à acção da heroína. No entanto, o perímetro cefálico médio (não necessariamente acompanhado de restrição de crescimento fetal) é inferior ao verificado em fetos não expostos à droga. O mecanismo destas alterações é desconhecido. De salientar que a metadona administrada à grávida com fins terapêuticos de substituição poderá, por sua vez, originar síndroma de abstinência neonatal se o parto ocorrer ainda durante o processo de “desmame” da mesma. Alguns estudos têm descrito que a metadona afecta menos os prematuros que os recém-nascidos de termo, necessitando os primeiros de doses menores de opiáceos, menor duração do tratamento e do internamento (relacionado com o SAN). Admite-se que esta situação seja explicada pela imaturidade dos sistemas de metabolização, menor desenvolvimento das conexões nervosas, menor duração da exposição ao opiáceo e menor transmissão durante o 3º trimestre.

Anfetaminas

Admite-se que esta substância não tenha efeitos teratogénicos. Pode verificar-se restrição do crescimento fetal, parto prematuro, descolamento da placenta e sofrimento fetal. A existência de SAN secundário à exposição a anfetaminas é controversa. Um estudo retrospectivo refere que apenas 4% dos RN com sintomas atribuíveis a SAN por anfetaminas necessitaram de terapêutica. Não existem dados prospectivos que suportem a existência de SAN a anfetaminas.

Cocaína

Como resultado do consumo crónico deste composto (inalado, fumado, aspirado, por via IV, etc.), assim como de um seu derivado designado por crack, verifica-se maior risco de aborto, hipoperfusão placentar com consequente hipoxia crónica, descolamento da placenta, ruptura prematura das membranas e parto prematuro, entre outras repercussões. A mortalidade neonatal é mais elevada e relacionável fundamentalmente com restrição de crescimento fetal, difícil adaptação à vida extrauterina, anomalias congénitas e morte súbita. Alguns autores consideram mesmo, pelo seu efeito teratogénico, a individualização dum quadro de embriofetopatia cocaínica. Tendo sido demonstrado que a actividade da colinesterase, uma das enzimas de degradação da cocaína, está diminuída na grávida e feto, existindo nestes, maior susceptibilidade à referida droga.

Fenobarbital

O fenobarbital é utilizado frequentemente como droga de abuso em todas as classes socioeconómicas. Na mãe poderá verificar-se a ocorrência de síndromas de abstinência recorrentes (traduzidas por convulsões), com acção deletéria sobre a própria mãe e feto. Este fármaco atravessa a placenta distribuindo-se rapidamente por todos os órgãos do feto, com maior concentração no baço e encéfalo. Os efeitos da exposição in utero traduzem-se essencialmente por fenómenos hemorrágicos e anomalias congénitas menores. Os RN de mães dependentes de fenobarbital são geralmente de termo, sem compromisso do crescimento intrauterino. A incidência de síndroma de abstinência por fenobarbital não é conhecida.

Álcool

O álcool é teratogénico, se consumido nas primeiras 10-12 semanas após a concepção, sendo os efeitos mais acentuados com a absorção de cerca de 30-50 gramas de álcool absoluto por dia. Um quadro dismorfológico (embriofetopatia alcoólica) integrando defeitos congénitos, por vezes associados e de expressividade variável, pode ser identificado no RN: defeitos cardíacos e nefro-urológicos, fissura palpebral pequena, ptose palpebral, estrabismo, prega do epicanto, microftalmia, orelhas em abano, nariz pequeno, filtro longo, lábio superior fino, retrognatismo, lábio leporino, fenda palatina, microcefalia, etc..

No período neonatal precoce são notórios sinais de restrição de crescimento intrauterino, hipotonia, irritabilidade, sendo o prognóstico reservado, designadamente em termos de neurodesenvolvimento.

Alguns estudos chamaram a atenção para o papel da associação deletéria álcool-nicotina/cotinina do fumo do tabaco. A nicotina/cotinina na gestação está associada a aborto espontâneo, prematuridade, restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento. Um maço de cigarros fumado por dia conduz a decréscimo de aproximadamente 300 gramas do peso de nascimento num RN de termo. Os efeitos tóxicos podem ser explicados, quer pelo monóxido de carbono (CO), quer pelo vasospasmo induzido pela nicotina.

Diazepam

A exposição a este fármaco está associada a restrição de crescimento fetal, defeitos cardíacos e hemangiomas. No RN duas ordens de problemas neonatais no período pós-parto imediato poderão surgir:

  1. Síndroma relacionada com efeito do próprio fármaco, manifestada por hipotonia, letargia e dificuldade de sucção;
  2. Síndroma de abstinência: tremores, irritabilidade, hipertonia, diarreia, sucção vigorosa, etc..

LSD (dietilamida do ácido lisérgico)

Relativamente ao LSD importa referir a elevada incidência de anomalias congénitas associadas, sobretudo do globo ocular (catarata, microftalmia, displasia retiniana, etc.). Muito utilizada por adolescentes na década de 60, existe hoje nos EUA tendência para reincidência do seu abuso.

Marijuana e seus derivados (haxixe)

A marijuana é um extracto da planta Cannabis sativa contendo mais de 420 compostos, muitos dos quais biologicamente activos. Pela sua elevada lipossolubilidade, atravessa facilmente a placenta exercendo efeito directo e prolongado nas células fetais, tendo uma eliminação demorada (cerca de 4 semanas) e uma semi-vida de cerca de 1 semana.

Admite-se também que, pela elevação do nível de CO (muito mais elevado do que acontece com nicotina/cotinina), origina hipóxia fetal crónica. Partilha com a cocaína o efeito de elevação da pressão arterial na grávida e redução do leito vascular.

Outros efeitos descritos são: parto prematuro, maior incidência de eliminação de mecónio in utero, baixo peso de nascimento, etc.. Como efeitos a médio e longo prazo no RN, lactente e criança citam-se: alteração do padrão do sono, atraso da maturação do sistema visual, défice de atenção, etc..

Outras substâncias

Uma referência a outras substâncias como:

  • Pentazocina, analgésico não narcótico que pode originar restrição de crescimento fetal e síndroma de abstinência;
  • Substâncias inaladas (tolueno ou 1,1,1-tricloro-etano, gás butano, óxido nitroso, etc.) que, durante a gravidez poderão levar a restrição de crescimento fetal, prematuridade e síndroma malformativa semelhante à embriofetopatia alcoólica;
  • Ecstasy, com acções similares à anfetamina e mescalina, tem efeitos estimulantes e psicadélicos durando cerca de 3-6 horas; os estudos disponíveis não têm referido incidência aumentada de aborto ou de anomalias congénitas.

Manifestações clínicas de abstinência (SAN) e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas relacionadas com SAN, assim como a data do seu aparecimento, são variáveis e não dependem exclusivamente do tipo de substância consumida pela mãe. Admite-se que estejam relacionados com as seguintes condições:

  • Exposição materna: tipo de substância, frequência, dose, medicação concomitante (particularmente fármacos psicotrópicos), outras drogas (incluindo álcool e tabaco) e idade gestacional em que ocorre o consumo;
  • Factores maternos: nutrição, infecções, estresse, comorbilidades (incluindo psiquiátricas);
  • Metabolismo opióide placentário;
  • Factores genéticos (maternos e do feto);
  • Factores relacionados com o recém-nascido: prematuridade, infecções, taxa de metabolismo e excreção da droga;
  • Factores ambientais: capacidade dos cuidadores em dar resposta às necessidades do RN e ambiente físico.

Globalmente, tais manifestações traduzem repercussões da privação ao nível dos sistemas nervoso central e autónomo, e digestivo, as quais podem ser assim sintetizadas:

  1. Irritabilidade, hiperexcitabilidade, tremores, hipertonia, hiperreflexia osteotendinosa, choro de tonalidade aguda, reflexo de Moro vivo, abalos mioclónicos, convulsões (2-11%), diminuição do período de sono, etc.;
  2. Hipersudorese, instabilidade térmica, febre, obstrução nasal, crises esternutatórias, taquipneia, etc.;
  3. Dificuldades alimentares, incoordenação da sucção-deglutição, vómitos, diarreia, perda de peso excessiva, desidratação, recusa alimentar, etc..
Nesta perspectiva, pode concluir-se que, o diagnóstico provisório de SAN é essencialmente clínico, sendo fundamental a elaboração de anamnese perinatal e exame objectivo rigorosos, no pressuposto de elevado índice de suspeita clínica.

 

Para o estudo evolutivo durante o internamento hospitalar existem diversos instrumentos e escalas disponíveis (por exemplo a escala de Lipsitz, a escala de Finnegan, etc.). O objetivo é permitir avaliar a gravidade do SAN, sendo utilizadas para iniciar, ajustar e desmamar a terapêutica farmacológica. Apesar de não existirem provas científicas que suportem a utilização de uma escala em detrimento de outra, em Portugal, tal como na maioria dos países, utiliza-se mais frequentemente a Escala de Finnegan, a aplicar de 4/4 horas. Esta escala integra um conjunto de parâmetros clínicos aos quais se atribui determinada pontuação, sendo que se pode considerar a situação em vias de melhoria à medida que a pontuação final diminui. (Quadro 2)

Seguidamente são referidas algumas particularidades das manifestações em função da substância em causa.

QUADRO 2 – Escala de Finnegan.

Sinais de SANPontuação(Registos de 4-4 horas)
Choro gritado excessivo2 
Choro gritado excessivo contínuo3 
Sono pós-prandial
1 hora3 
2 horas2 
3 horas1 
Reflexo de Moro hiperactivo2 
Reflexo de Moro marcado3 
Tremor após estimulação, ligeiro1 
Tremor após estimulação, acentuado2 
Hipertonia ligeira3 
Hipertonia  marcada6 
Convulsões8 
Sudação1 
Temperatura rectal 37,8 ºC-38,3 ºC2 
Temperatura rectal > 38,3ºC2 
Bocejos > 3-4 vezes por cada 4 horas 1 
Escoriações
nariz1 
joelhos1 
dedos dos pés1 
Obstrução nasal1 
Espirros1 
Adejo nasal1 
FR > 601 
Retracção costal2 
Sucção “frenética”1 
Recusa alimentar1 
Regurgitação1 
Vómitos em jacto1 
Fezes moles2 
Fezes líquidas3 
Pontuação final  

Opiáceos, barbitúricos e benzodiazepinas

A SAN ocorre em cerca de 60-90% dos RN expostos, na maioria dos casos cerca dos 2-3 dias de vida; no entanto, o quadro clínico pode verificar-se desde o pós-parto imediato até 1-2 semanas. No caso da heroína a sintomatologia inicia-se habitualmente nas primeiras 24 a 48 horas de vida. A metadona condiciona SAN nas primeiras 48 a 72 horas de vida (semivida mais prolongada com declínio lento dos níveis), podendo ainda surgir somente entre as 2-4 semanas de vida (SAN tardia). Nos RN expostos a buprenorfina o início dos sintomas ocorre cerca das 40 horas de vida. Sinais como agitação, tremores, sono entrecortado e intolerância alimentar poderão prolongar-se durante cerca de 3-6 meses. Nos dias e semanas seguintes poderão surgir alterações neuro-comportamentais. De salientar que as convulsões surgem em cerca de 8% de RN de mães submetidas a tratamento com metadona, e em cerca de 2% de RN de mães abusando de heroína. No caso dos barbitúricos o SAN inicia-se entre o 1º e o 14º dia (pico aos 4-7 dias); outros sedativos hipnóticos têm SAN mais tardio (diazepam até aos 12 dias e cloradiazepóxido até aos 21 dias).

Cocaína

No caso da cocaína cabe particularizar os seguintes sinais (mais de intoxicação do que de SAN): irritabilidade, tremores, choro gritado, hiperreflexia, recusa alimentar, obstrução nasal, taquipneia e alteração dos padrões do sono. A criança pode evidenciar alterações neuro-comportamentais que podem ultrapassar o período neonatal.

Marijuana

Os RN de mães consumidoras de marijuana evidenciam geralmente alterações neuro-comportamentais a curto, médio e longo prazo.

O quadro clínico compatível com SAN, pela sua inespecificidade, sobretudo quando oligossintomático, obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com determinadas situações tais como, infecções, problemas metabólicos (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia), hipertiroidismo, hemorragia do SNC, EHI e outras.

Exames complementares

De acordo com a história clínica (salientando-se que a anamnese realizada à mãe é muitas vezes não concludente), está indicada a realização de determinados exames complementares na tentativa de esclarecimento da situação.

As amostras biológicas podem ser obtidas (com consentimento esclarecido) a partir da mãe ou do RN: urina, mecónio, líquido amniótico, vernix caseosa, cabelo, unhas, etc.. No entanto, todos os testes apresentam limitações clinicamente significativas e nalguns casos apenas estão disponíveis no contexto de investigação. De salientar que a presença da droga, ou de metabólitos de certa droga, no mecónio ou cabelo, permite deduzir administração dos mesmos durante o 2º e 3º trimestres, e exposição fetal prolongada. Os testes toxicológicos na urina do RN têm baixa sensibilidade (taxa elevada de falsos negativos) permitindo apenas a detecção se a exposição à droga for recente. A pesquisa de drogas numa amostra de urina ou mecónio, nos casos em que for justificada a sua realização, deve ser efectuada o mais precocemente possível porque a metabolização e excreção da maioria das drogas é rápida. A metadona, buprenorfina e oxicodona não são detectadas nos kits habitualmente utilizados.

Aspectos técnicos específicos relacionados com a realização de tais análises ultrapassam os objetivos do livro.

Tratamento

O tratamento tem como principais objectivos estabilizar as manifestações clínicas e restaurar a atividade normal do RN, nomeadamente estabelecer um ganho ponderal consistente e manter padrões de sono e alimentação adequados. A abordagem inclui medidas gerais e farmacológicas.

Medidas gerais

Estas medidas, que deverão ser individualizadas em função do contexto clínico, são: estimulação sensorial mínima (ambiente calmo, com pouca luz), posição em flexão, de preferência, com imobilização suave e almofadada, prevenção do choro excessivo recorrendo a carícias suaves e à chupeta, etc.. A utilização de luvas no RN poderá evitar escoriações que resultam da actividade excessiva do RN.

Se houver antecedentes maternos de regime com metadona deve providenciar-se aleitamento materno. Este está contraindicado se houver antecedentes de seropositividade para VIH, abuso materno de álcool, anfetaminas, heroína, cocaína, etc..

O regime alimentar deverá ser semelhante ao indicado em condições normais, respeitando o apetite da criança, muitas vezes com refeições pequenas e frequentes. Caso a progressão ponderal seja insuficiente deverá incrementar-se o suprimento energético com fórmulas hipercalóricas (150-250 kcal/kg/dia). Pode agravar a diarreia.

O rooming-in ou alojamento comum mãe/RN está indicado nos casos em que não há necessidade de terapêutica farmacológica, promovendo desta forma as competências parentais.

Quer durante a hospitalização, quer após a alta para o domicílio, das medidas gerais fazem parte ainda o apoio por equipa multidisciplinar (incluindo apoio pela família e pelo serviço social) e estímulo da interacção mãe-filho, reconhecendo-se à partida, as dificuldades no seguimento das crianças filhas de mãe TD.

Medidas farmacológicas

A decisão de iniciar tratamento farmacológico deverá fundamentar-se num sistema objetivo de avaliação da gravidade de SAN, como a Escala de Finnegan. Nestes casos o RN deverá ser internado na Unidade de Neonatologia.

As indicações para tratamento farmacológico podem ser assim sistematizadas:

  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 8 em três avaliações consecutivas; ou
  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 12 em duas avaliações consecutivas; ou
  • Convulsões.

De salientar, no entanto, que cada caso deverá ser ponderado para decisão de iniciar farmacoterapia, nomeadamente, valorizando agravamento clínico progressivo com repercussão importante no RN (irritabilidade progressiva, dificuldade alimentar e perda de peso significativa).

A escolha do fármaco a utilizar depende sobretudo da droga consumida pela mãe. Em Portugal, de acordo com a Secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, o enquadramento das diferentes situações é o seguinte:

SAN aos opiáceos

A morfina é a droga de primeira linha. A metadona é uma alternativa, mas a sua semi-vida é muito prolongada e variável no RN tornando difícil a avaliação da sua eficácia. O fenobarbital pode ser utilizado como segunda droga nos casos em que os sintomas não estão controlados com as doses máximas de morfina ou metadona. A buprenorfina mostrou-se segura e eficaz, bem como a clonidina (em monoterapia ou em associação a opiáceos), mas ambas as drogas necessitam de mais estudos para serem recomendadas para uso regular.

SAN aos não opiáceos

O fenobarbital constitui a droga de 1ª linha.

Durante a terapêutica é fundamental a monitorização cardiorrespiratória e a vigilância dos efeitos secundários, nomeadamente depressão respiratória, hipotensão, retenção urinária e atraso no esvaziamento gástrico.

Do ponto de vista prático, inicia-se a terapêutica com uma dose baixa e que se aumenta progressivamente até ao controlo dos sintomas (Índice de Finnegan consistentemente < 8). Após 72 horas de controlo sintomático inicia-se a redução progressiva até à suspensão. A vigilância deve ser mantida por mais 72 horas após interromper a farmacoterapia.

Em Portugal os fármacos mais frequentemente utilizados são:

*Morfina

  • Dose inicial 0,04 mg/kg a cada 3-4h, aumento de 0,04 mg/kg/dose até à dose máxima de 0,2 mg/kg/dose;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 48h, com suspensão quando atingir 0,1-0,12 mg/kg/dia.

*Metadona

  • Dose inicial 0,05-0,1 mg/kg a cada 6-12h, aumento de 0,05 mg/kg/dose até obter efeito, passando então a cada 12-24 horas;
  • Desmame: 0,05 mg/kg/dia, com suspensão quando atingir uma dose inferior a 0,05 mg/kg/dia.

*Fenobarbital

  • Dose inicial 15 mg/kg oral ou ev, seguindo-se a dose de manutenção de 5 mg/kg/dia (2 administrações), com dose máxima de 8 mg/kg/dia;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 72h. Se associado a morfina, esta deve ser suspensa antes de iniciar a redução do fenobarbital. Suspender quando a dose for inferior a 2 mg/kg/dia.

*Clonidina

  • Dose inicial 0,5-1 mcg/kg a cada 3-6h, com dose máxima de 1 mcg/kg a cada 3h;
  • Desmame: 0,25 mcg/kg a cada 6h.

Critérios para alta

  • Na ausência de SAN recomenda-se vigilância em internamento durante, pelo menos, 7 dias se a mãe estiver em programa de metadona, e 5 dias se a mãe for consumidora de outras drogas;
  • Na presença de SAN protelar a alta até 72 horas sem terapêutica farmacológica e livre de sintomas;
  • RN clinicamente estável, sem dificuldades alimentares e com aumento ponderal consistente;
  • Adequação dos pais na prestação de cuidados;
  • Avaliação e orientação pela assistente social;
  • Visitas domiciliárias com marcação prévia.

Prognóstico e prevenção

Os dados que permitem estabelecer o prognóstico dependem da possibilidade de seguimento completo das crianças filhas de mãe TD, seguimento que é difícil se não existir um programa estruturado de apoio multidisciplinar domiciliário, incluindo, claro está, a vertente preventiva. Tal dificuldade decorre designadamente do ambiente desorganizado em que vive a mãe ou a família, e tanto mais quanto mais jovem for aquela (frequentes faltas às convocatórias, mudanças frequentes de residência, institucionalização das crianças por deficiente apoio familiar, etc.).

De acordo com os dados disponíveis da literatura nacional e internacional (seguimento até aos 6 anos de idade) podem ser sintetizados os seguintes desfechos:

  • Má progressão ponderal/hipocrescimento;
  • Dificuldades nas áreas de percepção e cognição;
  • Défice de concentração, atenção e memória;
  • Alterações comportamentais;
  • Alterações neurológicas (sobretudo do tono muscular e coordenação), etc.;
  • Maior probabilidade de SMSL.

Estes achados são mais prevalentes se houver antecedentes de TD à heroína e à metadona.

O problema da toxicodependência, com enorme carga social, é muito complexo e multifactorial; por isso, a sua prevenção deverá incidir sobre múltiplas frentes cuja abordagem, pela sua magnitude, ultrapassa o âmbito deste capítulo.

Considerando como tópico central a díade mãe-filho, cabe salientar o papel importante dum sistema eficaz e sistemático de visitas domiciliárias a cargo de equipa multidisciplinar (envolvendo fundamentalmente médicos de família, pediatras, equipas de enfermagem, técnicos de acção social, psiquiatras comunitários, etc.) para apoio das famílias em risco numa perspectiva proactiva, quer de prevenção primária da toxicodependência, quer de desintoxicação em idade pré-concepcional.

BIBLIOGRAFIA

Agthe AG et al. Clonidine as an adjunct therapy to opioids for neonatal abstinence syndrome: a randomized, controlled trial. Pediatrics 2009; 123: e849-856

Behnke M, Smith VC. Committee on substance abuse and Committee on fetus and newborn. Prenatal substance abuse: short and long-term effects on the exposed fetus. Pediatrics 2013; 131: e1009-1024

Bogen DL, Whalen BL. Breastmilk feeding for mothers and infants with opioid exposure: What is best? Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 95-104 

Coelho ML, Nascimento O, Nunes MT, Almeida JP, Ramos-Almeida JM. Recém-nascidos filhos de mães toxicodependentes. Acta Méd Port 1995; 8: 11-13

Correia MA, Oliveira AP, Almeida JP, Sing CK, Dória-Nóbrega J. Mães toxicodependentes. Acta Méd Port 1995; 8: 5-10

Covington CY, et al. Birth to age 7 growth of children prenatally exposed to drugs: a prospective cohort study. J Neurotoxicol Teratol 2002; 24: 489-496

Ferreira IA, Fonseca MJ, Videira-Amaral JM. O recém-nascido de mãe toxicodependente. O Médico 1990; 122: 36-40

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hudak ML, Tan RC. Committee on Drugs. Committee on Fetus and Newborn. Neonatal Drug Withdrawal. Pediatrics 2012; 129: e540-560

Jackson L, et al. A randomized controlled trial of morphine versus phenobarbitone for neonatal abstinence syndrome. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2004; 89: F300-F304

Janson, LM. Neonatal abstinence syndrome. In UpToDate. Garcia-Prats JA (ed). Waltham, MA: Wolters Kluwer, 2015

Janson, LM. Infants of mothers with substance abuse. In: UpToDate. Garcia-Prats JA (ed). Waltham, MA: Wolters Kluwer, 2015

Jansson LM, et al. The opioid exposed newborn: assessment and pharmacologic management. J Opioid Manag 2009; 5: 47-55

Jones HE, et al. Neonatal abstinence syndrome after methadone or buprenorphine exposure. N Engl J Med 2010; 363: 2320-2331

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kraft WK, et al. Revised dose schema of sublingual buprenorphine in the treatment of the neonatal opioid abstinence syndrome. Addiction 2011; 106: 574-580

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadephia, PA: Lippincott Williamas & Wilkins, 2015

MacMillan KDL. Neonatal abstinence syndrome: review of epidemiology, care models, and current understanding of outcomes Clin Perinatol 2020; 47: 817-832

Martin CE, Terplan M, Krans EE. Pain, opioids, and pregnancy: historical context and medical management. Clin Perinatol 2020; 47: 833-838

Martins C, Guedes R, João A. Recém-nascido de mãe toxicodependente. Acta Pediatr Port 2008; 39: 115-119

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Palminha JM, Lucas AMH, et al. Os Filhos dos Toxicodependentes (Monografia). Lisboa: Edição Bial, 1992

Pizarro D, et al “Higher maternal doses of methadone do not increase neonatal abstinence syndrome” J Subst Abuse Treat 2011; 40: 295-298

Polak K, Kelpin S,Terplan M. Screening for substance use in pregnancy and the newborn Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 90-94 

Rosenthal EW, Baxter JK. Neonatal abstinence syndrome. Semin Perinatol 2019; 43: 173-176

Serrano A, Mendes MJ, Negrão F. Recém-nascido de mãe toxicodependente. Consenso Clínico, Lisboa: Secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, 2013. http://www.lusoneonatologia.com/site/upload/consensos/2013-RN_de_mae_toxicodependente.pdf

Velez M, Jansson LM. The opioid dependent mother and newborn dyad: non-pharmacologic care. J Addict Med 2008; 2: 113-120

Wachman EM, Lindsay A. Farrer LA. The genetics and epigenetics of neonatal abstinence syndrome. Semin Fetal Neonatal Med 2019; 24: 105-110