REABILITAÇÃO DE ANOMALIAS CONGÉNITAS E ADQUIRIDAS DOS MEMBROS INFERIORES – NOÇÕES GERAIS

Importância do problema

Sob o ponto de vista epidemiológico, estima-se uma frequência de anomalias congénitas major dos membros inferiores, incluindo amputação congénita, cerca de 5 a 10 casos por 100.000 nascimentos, com uma relação de 3/1 no que respeita à localização – membros superiores/membros inferiores.

Dum modo geral, a etiopatogénese dos defeitos congénitos relaciona-se com noxas ocorridas entre a 4ª e 6ª semana de gestação. De salientar, contudo, que na maioria dos casos a causa de um defeito isolado é desconhecida.

No cômputo geral das anomalias adquiridas dos membros inferiores em idade pediátrica, as mesmas surgem em menor número que as congénitas e, na sua maioria, após os quatro anos de idade, em relação com traumatismos, neoplasias ou infecções.

Sistematização e definições

Em 1989, de acordo com a classificação internacional IOS-ISPO (International Organization for Standardization – International Society for Prosthetics and Orthotics), foi obtido consenso relativamente à terminologia a adoptar para as anomalias congénitas dos membros, com base em critérios anatómicos e radiológicos.

Assim, foram considerados dois grupos de defeitos:

  • Com deficiência transversa;
  • Com deficiência longitudinal.

Os defeitos com deficiência transversa não compreendem partes remanescentes distais. Nos defeitos com deficiência longitudinal existe ausência parcial ou total de um ou mais ossos, com porções distais presentes.

No que respeita a deficiências longitudinais congénitas continuam a ser usadas terminologias como défice femoral congénito, hemimelia fibular e hemimelia tibial, correspondendo a situações clínicas complexas, e com classificações anatómicas e radiológicas próprias para cada uma delas.

Tratando-se de amputações adquiridas, a terminologia refere-se ao osso envolvido (por ex., transtibial ou transfemoral).

Aspectos gerais da actuação

As necessidades físicas e psicossociais das crianças portadoras de tais deficiências, muito diferentes das do adulto, exigem um esforço conjunto de todos os membros de uma equipa multidisciplinar, que envolve: fisiatra e ortopedista pediátricos, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social e técnico perito em próteses (ortoprotésico). De referir que o envolvimento familiar constitui parte integrante e fundamental de qualquer programa de tratamento.

As avaliações iniciais concentram-se em informar os pais sobre o futuro terapêutico do seu filho. É importante transmitir uma informação positiva no que respeita ao que a criança irá conseguir fazer, tendo sempre presente que não devem ser criadas expectativas milagrosas quanto ao tratamento cirúrgico.

As alternativas terapêuticas para cada caso clínico devem ser explicadas, tendo sempre o cuidado de expor os prós e os contras de cada uma delas, para que os pais decidam, de forma esclarecida, a solução terapêutica para o seu filho.

A colocação da primeira prótese deverá ocorrer quando a criança começa a tentar elevar-se e a ficar de pé, agarrada. Ou seja, a prescrição da prótese deverá ser orientada para a maior funcionalidade da marcha, devendo a mesma ser adaptada às fases do neurodesenvolvimento. (Figura 1)

Nas deficiências congénitas transversas, ou nas adquiridas, a solução terapêutica é a colocação de uma prótese standard. (Figura 2)

Nas deficiências congénitas longitudinais, a solução terapêutica varia com o tipo e grau de deficiência.

Se a dismetria for grande, coloca-se uma prótese não-standard. (Figura 3)

FIGURA 1. Criança com deficiência transversa a iniciar fase de ortostatismo

FIGURA 2. Criança com prótese standard a brincar

FIGURA 3. Deficiência congénita longitudinal (défice femoral congénito) com prótese não-standard

Se a dismetria ainda for pequena, a colocação de uma compensação no calçado é suficiente.

Se houver grande instabilidade no tornozelo é necessário colocar uma ortótese associada ao calçado.

Estas medidas gerais permitem que a criança adquira o ortostatismo e a marcha sem grandes claudicações. Importa salientar que as próteses para crianças devem ser simples, leves e resistentes.

Com o crescimento, a dismetria dos membros vai-se acentuando e as compensações iniciais usadas no calçado terão que ser ulteriormente corrigidas, tornando-se inviáveis a partir dos 8 cm de espessura. Com efeito, as compensações grandes são inestéticas, pesadas, dificultam a marcha, impedem a criança de correr, originam quedas frequentes e entorses ao nível das articulações a montante.

A decisão terapêutica em alongar ou proceder à amputação de um segmento distal vai determinar a escolha do tipo de prótese a aplicar. A necessidade de inserir, ou não, estas crianças, num programa de tratamentos de fisioterapia varia de caso para caso.

Verificando-se deficiência nos 2 membros inferiores, torna-se necessário estabelecer um programa terapêutico para adaptação ao ortostatismo e à marcha, com as próteses. (Figura 4)

FIGURA 4. Criança biamputada em tratamentos de fisioterapia

Relativamente às crianças mais pequenas, os respectivos prestadores de cuidados devem ser ensinados a colocar e a tirar a prótese, e como proceder à sua limpeza diária. Desde cedo é importante estimular a independência destas crianças no que respeita à colocação e higiene da prótese, e aos cuidados com o coto (limpeza, hidratação e massagem).

A actividade física escolar deve ser estimulada e, consoante a personalidade da criança e o tipo de deficiência, deve ser orientada para a prática de um desporto adaptado (por ex., natação, atletismo, ou outras modalidades).

Até ao final do crescimento deve ser promovida a vigilância clínica periódica, focada essencialmente para avaliação do coto, do padrão de marcha e do estado da prótese.

A periodicidade para a substituição de uma prótese, variando entre 12 a 18 meses, deverá ser personalizada. Dependendo fundamentalmente do grau da actividade e da personalidade de cada paciente, há também que atender sempre, caso a caso, aos períodos de crescimento rápido.

Até ao final do crescimento, nas deficiências adquiridas e nas congénitas longitudinais, são necessárias várias intervenções cirúrgicas, quer para regularizar o coto, quer para corrigir possíveis alterações de alinhamento que possam interferir com a colocação da prótese.

As chamadas “dor-fantasma” não são frequentes na idade pediátrica nos casos de deficiências congénitas sujeitas a correcções cirúrgicas; contudo, poderão ocorrer nos casos de deficiências adquiridas.

GLOSSÁRIO

Amelia > Ausência dos quatro membros.
Hemimelia > Ausência de metade do membro.
Ortótese > Aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir alteração morfológica de um órgão, de um membro, ou a deficiência de uma função.
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um membro, um órgão, ou uma parte de um membro destruída ou gravemente afectada.

BIBLIOGRAFIA

Apkon S. Pediatric limb deficiencies – PM&R Update 2004; 8: 1-4

Benson MK, Macnicol MF, Parsch K (eds). Children’s Orthopedics and Fractures. Philadelphia: Churchill Livingstone 2002; 293-298

Boonstra AM, Rijnders LJM, Groothoff JW, Eisma WH. Children with congenital deficiencies or acquired amputations of the lower limbs: functional aspects. Prosthetics and Orthotics International 2000; 24: 19-27

Cramer KE, Scherl SA. Pediatrics, Orthopaedic Surgery Essentials. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004

Day HJB- The ISO/ISPO classification of congenital limb deficiency. Prosthetics and Orthotics International 1991; 15: 67-69

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Periago RZ (ed). Prótesis, Ortesis y Ayudas Técnicas. Barcelona: Elsevier Masson, 2009

Sabharwal S (ed). Congenital Femoral Deficiency Reconstruction and Lengthening Surgery in Pediatric Lower Limb Deformities. Heidelberg, New York: Springer, 2016

Spires MC, Kelly BM, Davis AJ (eds). Prosthetic Restoration and Rehabilitation of the Upper and Lower Extremity. New York: Demos Medical Publishing, 2014

SEGUIMENTO E REABILITAÇÃO NOS CASOS DE TORCICOLO CONGÉNITO MIOGÉNICO

Introdução

Como foi referido em capítulo no âmbito da Ortopedia Pediátrica, o diagnóstico de torcicolo é clínico. (Figura 1)

Neste capítulo procede-se a uma abordagem sucinta do seguimento e reabilitação do torcicolo congénito miogénico.

Após o primeiro exame clínico no período neonatal precoce, ainda na maternidade, a verificação de nódulo do esternocleidomastoideu e de assimetria cervicocefálica, traduzida designadamente por postura cefálica preferencial, obriga a referenciação do paciente para seguimento. Salienta-se que poderá haver assimetria facial, plagiocefalia e outros defeitos associados, designadamente displasia do desenvolvimento coxofemoral, desvios axiais do ráquis/atitude escoliótica, deformidades dos pés e défice auditivo e do campo visual.

FIGURA 1. Torcicolo congénito miogénico esquerdo em lactente de 5 meses.

Após o primeiro exame clínico no período neonatal precoce, ainda na maternidade, a verificação de nódulo do esternocleidomastoideu e de assimetria cervicocefálica, traduzida designadamente por postura cefálica preferencial, obriga a referenciação do paciente para seguimento. Salienta-se que poderá haver assimetria facial, plagiocefalia e outros defeitos associados, designadamente displasia do desenvolvimento coxofemoral, desvios axiais do ráquis/atitude escoliótica, deformidades dos pés e défice auditivo e do campo visual.

Seguimento

1 – Realizado o diagnóstico sindrómico, impõe-se como prioridade, a realização de ensino dirigido aos pais e prestadores de cuidados relativamente a posicionamentos ao colo, na cama e nos dispositivos de transporte, assim como a exercícios de alongamentos e a formas de estimulação.

2 – Em função do contexto clínico (designadamente na eventualidade de defeitos congénitos associados), poderá haver necessidade de realização de exames complementares para esclarecimento da etiopatogénese, tais como: ecografia de partes moles do pescoço, radiografia da coluna cervical, ou de observação por otorrinolaringologista e/ou oftalmologista.
Nos casos de sinal de Ortolani positivo, apresentação pélvica e/ou antecedentes familiares de displasia coxofemoral, está indicado o estudo imagiológico da anca: ecografia coxofemoral (se idade < 6 meses) ou radiografia (se idade > 6 meses).

3 – O tratamento de manutenção tem como objectivos: restabelecer o equilíbrio muscular e a mobilidade cervical, corrigir as alterações posturais, e prevenir ou corrigir as deformidades faciais e cranianas, promovendo um neurodesenvolvimento adequado e harmónico, visando tanto quanto possível obter a simetria. (Figura 2) Como medidas concretas que devem ser efectuadas precocemente citam-se: posicionamentos, massagem manual suave do esternocleidomastoideu encurtado (do lado da inclinação), mobilização cervical activa, activa assistida e passiva (visando simetria das amplitudes articulares), estiramento do esternocleidomastoideu encurtado, e fortalecimento muscular do esternocleidomastoideu contralateral (se se verificar estabilidade cefálica).

4 – As indicações gerais da fisioterapia nos pacientes com torcicolo podem assim ser sintetizadas: limitação da amplitude dos movimentos articulares, associação a plagiocefalia e/ou assimetria facial e associação a assimetria do tono muscular e da postura.
Tendo em conta a importância anteriormente referida do ensino aos pais e prestadores de cuidados, é fundamental, por outro lado, coordenar e validar as atitudes terapêuticas praticadas pelos mesmos.

Em casos especiais pode haver necessidade de utilização de ortóteses, para manutenção e ganho na amplitude da mobilidade cervical. A intervenção cirúrgica, indicada apenas em casos refractários ao tratamento conservador, implica no pós-operatório a necessidade de aplicação de ortótese e fisioterapia.

Em suma, quanto mais precoce o diagnóstico e o início do tratamento, melhor e mais rápido será o resultado. A gravidade do torcicolo e o atraso no início do tratamento podem influenciar negativamente o prognóstico.

FIGURA 2. Torcicolo congénito do lactente: execução de manobras de alongamento, tentando corrigir alterações posturais

BIBLIOGRAFIA

Antares JB, et al. Non-surgical and non-pharmacological interventions for congenital muscular torticollis in the 0-5-year age group. Cochrane Database of Systematic Reviews 2018

Benson MK, Macnicol MF, Parsch K (eds). Children’s Orthopedics and Fractures. Philadelphia: Churchill Livingstone 2002; 293-298

Binder H, Eng GD, et al. Congenital muscular torticollis: results of conservative management with long term follow-up in 85 cases. Arch Phys Med Rehabil 1987; 68: 222-225

Cramer KE, Scherl SA. Pediatrics, Orthopaedic Surgery Essentials. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004

Emery C. The Determinants of treatment duration for congenital muscular torticollis. Phys Ther 1994; 74: 921-929

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Periago RZ (ed). Prótesis, Ortesis y Ayudas Técnicas. Barcelona: Elsevier Masson, 2009

REABILITAÇÃO DE ANOMALIAS CONGÉNITAS DA MÃO – NOÇÕES GERAIS

Importância do problema

As anomalias congénitas do membro superior em cuja etiopatogénese podem estar envolvidas diversos factores, têm grande impacte no desenvolvimento da criança. As mãos são, com efeito, um dos principais instrumentos na aprendizagem da criança a interagir com o meio que a rodeia. O grau de defeito varia de pequenas (minor) anomalias congénitas, como uma simples camptodactilia, até grandes malformações como a ausência parcial ou total da mão. O impacte psicológico nos pais de um recém-nascido com defeito da mão, seja esta pequena ou grande, pode ser devastador.

Não há registos epidemiológicos referentes especificamente a RN com defeitos das mãos. O Eurocat (European Concerted Action on Congenital Anomalies and Twins) apenas tem o registo de algumas anomalias menores (polidactilia e sindactilia), não especificando a sua localização: mãos ou pés. As estatísticas disponíveis abrangem todas as anomalias do membro superior (0,4 a 0,5 por 1.000 recém-nascidos vivos), não especificando as pequenas anomalias da mão. Cerca de 80% destas anomalias do membro superior são unilaterais e, mais frequentes, no lado direito.

Muitos dos defeitos congénitos menores da mão têm resolução cirúrgica, sendo que nem sempre a reconstrução cirúrgica é possível ou a mesma é apenas estética, não melhorando a função. No entanto, em alguns deles o tratamento conservador tem bons resultados quando realizado precocemente, evitando a cirurgia. São exemplo destes, a camptodactilia, o polegar aduto e as anomalias de tendões (polegar em gatilho), cuja abordagem é feita nas alíneas seguintes.

Camptodactilia

Consiste numa deformação em flexão da articulação interfalângica proximal (IFP) de um ou mais dedos. Não há consenso quanto à etiopatogénese: fenómenos de retracção das partes moles periarticulares, hipoplasia do tendão flexor superficial, hipoplasia ou ausência do lumbricóide e desequilíbrio entre as forças de flexão e de extensão ao nível da IFP. O 5º dedo é o mais frequentemente afectado (Figura 1); tal alteração é geralmente bilateral, embora se possa verificar assimetria da deformação.

Segundo Benson et al, são descritos três tipos de camptodactilia:

  • Tipo 1, mais comum, presente na 1ª infância, afectando o quinto dedo, sem preferência por sexo;
  • Tipo 2 manifestando-se na pré-adolescência e predominando no sexo feminino, que pode evoluir para deformidade grave;
  • Tipo 3, presente desde o nascimento, e afectando vários dedos de forma acentuada e fixa, é bilateral e frequentemente está associado a síndromas (por exemplo, síndromas de Holt-Oram, Poland ou Marfan) e a outras anomalias congénitas.

FIGURA 1. Camptodactilia do 5º dedo

O diagnóstico diferencial é feito com dedo em gatilho (palpa-se um nódulo na face palmar) ou com a ausência congénita dos extensores.
O tratamento de primeira linha é conservador, com a colocação de uma ortótese para posicionar a articulação na extensão máxima possível (Figura 2).
Ulteriormente está indicada semanalmente uma revisão até se obter a extensão total. Quanto menor a idade da criança, mais rapidamente se consegue a extensão completa.
As recidivas podem ocorrer até ao final do crescimento. Esta informação deve ser dada aos pais para que se reinicie novamente a colocação da ortótese.

Antes da aquisição de “olho/mão”, por volta dos 4 meses de vida, as ortóteses podem manter-se 24h/dia, sendo retiradas apenas para higiene. Após a aquisição desta etapa de desenvolvimento psicomotor, o tempo de colocação da ortótese vai sendo reduzido, ficando apenas colocada durante as horas de sono. Se a extensão máxima for obtida nos primeiros 4 meses, a colocação da ortótese passa apenas a ser durante o sono.
Muitas vezes há recidivas quando os pais interrompem precocemente o uso das ortóteses à noite. Nestes casos, o tratamento deverá ser recomeçado e os pais alertados para a possível necessidade do uso da ortótese nocturna até à puberdade. Com o cumprimento desta regra, habitualmente não há recidivas nem necessidade de cirurgia.

FIGURA 2. Ortótese para camptodactilia do 5º dedo

Entre 2000 e 2018, no Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, todas as crianças com camptodactilia do tipo 1, tratadas de forma conservadora desde o 1º ano de vida, não necessitaram de intervenção cirúrgica.

Polegar aduto

A designação de polegar aduto corresponde a defeito congénito do polegar por ausência congénita do longo extensor do polegar e/ou aplasia/hipoplasia dos extensores do polegar com acentuada flexão da metacarpofalângica (MCF) e adução do 1º dedo na face palmar. De salientar que o subdesenvolvimento do aparelho extensor do polegar, acarretando um desequilíbrio entre os flexores/extensores, contribui para as manifestações das diversas formas de gravidade do polegar aduto congénito.

Frequentemente bilateral, verifica-se sobretudo no sexo masculino. Em 1/3 dos casos há incidência familiar.

Frequentemente só é detectado depois dos 4 meses, altura em que se desenvolve a extensão activa do polegar. Poderá constituir apenas uma deformidade isolada (uni ou bilateral) ou estar associado a outras malformações músculo-esqueléticas como a artrogripose e a displasia craniocarpotarsal (síndroma da “face em assobio”).

O diagnóstico diferencial é feito com o polegar “em gatilho” e com situações neurológicas no contexto de paralisia cerebral. Um polegar em adução também pode ser encontrado nas mãos com dedos “em rajada de vento” (dedos com desvio cubital congénito).

O polegar aduto engloba quatro formas clínicas. (Quadro 1 e Figuras 3 e 4)

QUADRO 1 – Classificação do polegar aduto

Grupo I
Défice de extensão apenas
Grupo II
Défice de extensão associado a contractura dos flexores
Grupo III
Hipoplasia do polegar (incluindo tendões e défice dos músculos do dedo)
Grupo IV
Todas as situações não incluídas nos grupos anteriores

FIGURAS 3 e 4 – Polegar aduto do grupo I antes do tratamento conservador

O grupo I é o mais frequente; seguem-se os grupos II e III. O grupo IV é raríssimo.

O tratamento conservador é o tratamento de escolha para o polegar aduto do grupo I.

Neste grupo, o tratamento de 1ª linha consiste na colocação do polegar em abdução palmar com extensão da articulação interfalângica (IF). (Figuras 5 e 6)

No 1º mês de vida recorre-se a uma ligadura que posteriormente é substituída por uma pequena ortótese. Até ao aparecimento da fase “olho-mão”, mantém-se a ortótese permanentemente só se retirando para higiene diária. Após esta aquisição do desenvolvimento psicomotor, a ortótese é colocada nas horas de sono, devendo ser estimuladas as actividades lúdicas que promovam a extensão activa do polegar (preensões globais). Por volta do 6º ou 7º mês de vida, tendo os tendões extensores já recuperado, o tratamento é suspenso.

A não existência de qualquer movimento activo na extensão do polegar por volta do 3º/4º mês de vida, indica que se tratará de uma aplasia dos tendões extensores. Nestes casos, a ortótese deverá ser mantida durante o sono até à cirurgia para se evitar a instalação de retracção das partes moles e o encurtamento dos tendões flexores.

Os grupos II (Figura 7), III e IV têm indicação cirúrgica. A colocação de ortótese nos meses que precedem a cirurgia pode ajudar a contrariar as retracções músculo-tendinosas existentes, e contribuir para o sucesso da cirurgia.

FIGURAS 5 e 6. Posicionamento do polegar em abdução com extensão através de ligadura

FIGURA 7. Polegar aduto do grupo II bilateral – a contractura dos flexores impede a abdução/extensão passiva dos polegares

Polegar em gatilho

O chamado polegar em gatilho é a patologia mais frequente no grupo de anomalias dos tendões, manifestando-se em geral por volta dos 2 anos de idade. Nos primeiros meses de vida a situação passa despercebida; são os pais habitualmente os primeiros a detectar e a alertar o médico.

A etiopatogénese é desconhecida e existe uma controvérsia sobre se se trata de situação congénita ou adquirida. Esta última é a mais aceite. Tratando-se duma situação esporádica, e podendo ocorrer unilateral ou bilateralmente, estão descritos familiares e associação a trissomia 13.

Clinicamente caracteriza-se por uma deformidade em flexão da articulação interfalângica (IF) do polegar, palpando-se um nódulo na região da cabeça do 1º metacarpo (nódulo de Notta) (Figura 8). Nalguns casos, inicialmente é possível a extensão, podendo verificar-se um ressalto durante a extensão.

Esta situação é causada por uma incompatibilidade nos tamanhos do flexor longo do polegar (FPL) e da poleia A1* que dificulta o deslizamento do tendão.

FIGURA 8. Nódulo de Notta

Do ponto de vista anátomo-patológico, verifica-se a existência, ao nível da bainha do tendão, de grandes quantidades de fibroblastos e colagéneo, sem alterações degenerativas ou inflamatórias.

* Poleia é um neologismo utilizado por fisiatras e cirurgiões da mão (do francês poulie), significando “roldana”, com o sentido de “transmissão do movimento”. Trata-se de bandas fibróticas transversais ou oblíquas que reforçam, na região anterior, os canais digitais por onde passam os tendões flexores. Há 5 poleias (arciformes) denominadas A1 a A5 e 3 poleias em forma de cruz denominadas de C1 a C3.

O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico.

O tratamento conservador, de primeira linha, pode conduzir a bons resultados (em cerca de 80-85% dos casos) nas situações em que a extensão é possível.

O mesmo consiste na colocação de ortótese com o polegar em extensão/abdução durante 24h/dia no 1º mês de vida (só se retirando para higiene). No 2º mês, começa a retirar-se 1 a 2 horas 2x/dia, deixando a criança brincar e utilizar o dedo. Se não for detectado ressalto devem ser incrementados semanalmente os períodos de pausa da ortótese. Finalmente fica colocada só de noite, durante 2 a 3 meses. Se durante este período de uso nocturno for detectado novo ressalto, deve recomeçar-se o tratamento como de início. Este tipo de tratamento conservador requer colaboração dos pais, os quais deverão receber formação neste campo (designadamente quanto a saber reverter a flexão quando esta se instala no período sem a ortótese. (Figura 9)

Devem ser evitadas actividades lúdicas associadas a movimentos repetidos de flexão da IF do polegar, ou a preensões de força.

Em suma, quanto mais precocemente se imobilizar o polegar em extensão/abdução moderada, melhor o prognóstico. De acordo com a experiência do SMFR do Hospital Dona Estefânia, a maioria das crianças com menos de 3 anos, se o bloqueio em flexão não for rígido, não precisa de cirurgia.

FIGURA 9. Ortótese para polegar em gatilho: A) visão palmar; B) visão dorsal

BIBLIOGRAFIA

Almeida SF, Monteiro AV, Lanes S. Evaluation of treatment for camptodactyly: retrospective analysis on 40 fingers Rev Bras Ortop 2014;49:134–139 / www.rbo.org.br

Benson MK, Macnicol MF, Parsch K (eds). Children’s Orthopedics and Fractures. Philadelphia: Churchill Livingstone 2002; 293-298

Chan O, Hughes T. Hand. BMJ 2005; 330: 1073-1075

Cramer KE, Scherl SA. Pediatrics, Orthopaedic Surgery Essentials. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004

Ghani HA, El-Naggar A, Hegazy M, et al. Characteristics of patients with congenital clasped thumb: a prospective study of 40 patients with the results of treatment. J Child Orthop 2007; 1: 313-322

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kozin SH. Upper-extremity congenital anomalies. J Bone Surg Am 2003; 85: 1564-1576

Lin SC, IN, Huang TH, Hsu HY, et al. A simple splinting method for correction of supple congenital clasped thumbs in infants. J Hand Surgery (British and European Volume) 1999; 5: 612-614

McAdams TR, Moneim MS, Omerge Jr. Long term follow-up of surgical release of the A (1) pulley in childhood trigger thumb. J Pediatr Orthop 2002; 22: 41-43

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Watt AJ, Chung KC. Generalized skeletal abnormalities- Congenital trigger thumb-Clasped thumb. Hand Clin 2009; 25: 265-276

Yannascoli SM, Goldfarb CA. Treating congenital proximal interphalangeal joint contracture. Hand Clin 2018; 34: 237-249

PATOLOGIA TRAUMÁTICA

Importância do problema

 As lesões osteoarticulares de causa traumática, muito frequentes em idade pediátrica, constituem cerca de 10 a 15% de todas as lesões traumáticas que acorrem ao serviço de urgência. Nas crianças mais pequenas são consequência da sua actividade lúdica característica e, nas mais velhas, incluindo adolescentes, são devidas essencialmente à actividade desportiva e a acidentes rodoviários. Nesta última circunstância, as lesões são dum modo geral, muito mais graves, exigindo medidas terapêuticas mais complexas.

Atendendo a que as lesões em causa atingem um organismo em fase de crescimento, as consequências podem ser agravadas pelo compromisso das cartilagens de crescimento, particularmente nas situadas nas regiões epifisiometafisárias dos ossos longos, com repercussão variável no crescimento dos respectivos ossos.

Etiopatogénese

O esqueleto em fase de crescimento tem particularidades que o distinguem do adulto, o que condiciona a sua resposta às lesões traumáticas encontradas neste escalão etário. Com efeito, para além da já referida presença das cartilagens de crescimento, há que salientar a presença de periósteo espesso e resistente, de uma relação matriz/osso superior à do adulto (o que condiciona uma maior elasticidade óssea) e uma velocidade elevada de renovação e remodelação ósseas (responsáveis por uma maior capacidade de reparação).

A distribuição das lesões em função do escalão etário está relacionada com a maior susceptibilidade de algumas regiões anatómicas ao trauma, e com a probabilidade acrescida da ocorrência de determinados mecanismos lesionais em certas idades.

Assim, são situações mais frequentes:

  • No recém-nascido: fractura da clavícula, torcicolo, fractura do fémur;
  • Nos primeiros 2-4 anos de vida: pronação dolorosa;
  • Entre os 5-8 anos: fractura supracondiliana do úmero;
  • Na infância tardia/adolescência: fracturas dos ossos do antebraço (e outros ossos longos), lesões de sobreuso/osteocondroses (calcâneo, tuberosidade anterior da tíbia ou pólo inferior da rótula, navicular, ), lesões das fises em fase de encerramento, para além de lesões com padrão já semelhante ao dos adultos.

Esta lista sumária não exclui a multiplicidade e simultaneidade doutras lesões que se poderão encontrar numa criança, nomeadamente no caso de traumatismos violentos, como acontece nos acidentes de viação ou quedas de grande altura.

Vem a propósito lembrar aqui a síndroma da criança maltratada, para a qual os profissionais de saúde devem estar particularmente atentos, englobando lesões traumáticas com diversas localizações, incluindo as osteoarticulares.

Por último, recorda-se que as fracturas nas crianças têm algumas particularidades no que toca à sua consolidação:

  • Rapidez do processo (tanto maior quanto mais nova for a criança);
  • Quase ausência de algumas complicações observáveis no adulto, tais como as pseudartroses;
  • Risco de hipercrescimento a nível do segmento ósseo fracturado, verificado até aos 18-24 meses pós-fractura, o qual é geralmente mais marcado após cirurgia de reparação óssea (osteossíntese);
  • Remodelação óssea que corrige maioritariamente defeitos de alinhamento axial (mas não rotacional) das fracturas; esta capacidade de remodelação é tanto mais importante quanto mais jovem for a criança;
  • Risco de atraso de crescimento (por vezes irreversível) simétrico ou assimétrico, consoante o tipo de lesão das cartilagens de

Semiologia clínica

A semiologia é relativamente monótona em função da variedade de situações clínicas, salientando-se a dor e a impotência funcional, às quais se podem associar a deformidade e sinais inflamatórios locais. Não é, porém, isenta de dificuldades, destacando-se, contrariamente ao que acontece no adulto, a habitual má colaboração do doente na anamnese (em função da idade) e na localização exacta da dor, e a eventual existência de dor referida a áreas anatómicas diversas das afectadas (por ex. joelho vs. anca), podendo falsear o diagnóstico da lesão verdadeira. Ainda nas crianças mais jovens, o único sinal de uma lesão do aparelho músculo-esquelético poderá ser uma pseudoparalisia de todo um membro, o que implica um exame clínico particularmente atento.

Exames complementares

O diagnóstico clínico de fractura ou a simples suspeita exige sempre o estudo radiográfico simples da área suspeita, feito obrigatoriamente em dois planos perpendiculares (com visualização das duas articulações contíguas no caso dos ossos longos). Nas crianças mais jovens com lesões de áreas ainda cartilagíneas, será conveniente realizar estudo ecográfico, efectuado por profissionais experientes neste tipo de situações. Também a cintigrafia é um precioso exame de segunda linha para detectar algumas lesões sem evidência radiológica (lesões de sobreuso ou de regiões de difícil caracterização radiológica, tais como a coluna). Finalmente, em casos seleccionados, a TAC ou a RM podem ser necessárias.

Classificação das lesões traumáticas osteoarticulares

Existem diversas classificações genéricas das fracturas e outras lesões osteoarticulares, bem como das específicas de cada osso/articulação; o interesse reside na respectiva orientação terapêutica e prognóstica, do foro do especialista.

Em termos gerais e do ponto de vista do clínico geral e do pediatra, apenas nos referiremos às fracturas por serem as lesões mais importantes. Podemos classificá-las, particularmente quando afectam os ossos longos, em dois grupos principais:

  1. Quanto à localização do traço, em fracturas diafisárias, metafisárias e epifisárias. Estas duas últimas são as mais importantes porque podem atingir as cartilagens de conjugação, dando origem a deformidades patentes, ou atingir até a cartilagem epifisária, articular, alterando as superfícies articulares, com o consequente compromisso da função. As diafisárias não levantam habitualmente o mesmo tipo de problemas porque o próprio osso (devido às características do esqueleto infantil e ao crescimento subsequente), compensa ou autocorrige muitos dos desvios que se verificam;
  2. Quanto à extensão do traço, em completas: – se o traço atinge ambas as corticais, com desvio mais ou menos acentuado dos topos ósseos; e incompletas: – se o traço inclui apenas uma cortical, e os topos se mantêm em contacto, sem desvios apreciáveis.

Reitera-se que a importância das fracturas metafisárias e epifisárias reside na lesão associada, praticamente constante, das cartilagens de conjugação. Estas estruturas moles, interpostas no segmento ósseo rígido, são menos resistentes do ponto de vista biomecânico, rompendo-se segundo padrões que importa conhecer pelas implicações práticas que têm, tanto de ordem terapêutica como prognóstica. Estes padrões encontram-se descritos em diversas classificações realçando-se a de Salter-Harris, na qual se definem cinco graus, de acordo com a direcção e a localização do traço de fractura, conforme se esquematiza. (Figura 1)

Destes cinco graus, os três últimos são os mais importantes por deixarem sequelas mais ou menos graves, derivadas do encerramento parcial da cartilagem de conjugação e consequente deformidade regional (dismetria e/ou desalinhamento axial do membro).

Quanto às restantes lesões traumáticas osteoarticulares da criança em crescimento, as luxações ou deslocamentos anormais das extermidades ósseas de uma articulação são muito menos frequentes do que no adulto, designadamente porque o local de menor resistência justarticular é, como já referimos, a cartilagem de conjugação.

As entorses (definidas como lesões traumáticas articulares, com alongamento, arrancamento ou rotura de um ou mais ligamentos) são frequentes, mas habitualmente, de pouca gravidade, sendo imprescindível verificar se estão associadas a fracturas de difícil detecção.

As Figuras 2 a 6 mostram exemplos radiográficos de fracturas de ossos longos estabelecendo correspondência com a classificação de Salter-Harris.

FIGURA 1. Classificação de Salter-Harris relativa às lesões traumáticas envolvendo a cartilagem de conjugação. As lesões de Grau I e II serão as de melhor prognóstico. Grau I – Separação através da fise; Grau II – Fractura através duma porção da fise, mas englobando também a metáfise; Grau III – Fractura através duma porção da fise, mas atingindo a epífise e a articulação; Grau IV – Fractura atingindo a metáfise, fise e epífise; Grau V – Fractura originando compressão e lesão por esmagamento da fise

FIGURA 2. Radiografias, em dois planos, da extremidade inferior do fémur onde se nota a existência de lesão traumática da respectiva cartilagem de conjugação (Grau I da classificação de Salter-Harris), mais evidente na radiografia de perfil (setas)

FIGURA 3. Radiografias, em dois planos, da extremidade inferior dos ossos da perna onde se nota a existência de lesão traumática com fractura em “ramo verde” do perónio, e lesão da cartilagem de conjugação distal da tíbia (Grau II da classificação de Salter-Harris)

FIGURA 4. Radiografias, ântero-posterior e perfil, do fémur esquerdo de uma criança de dois anos, após imobilização gessada, onde se nota fractura complexa dos dois terços distais do mesmo osso, com provável lesão da respectiva cartilagem de conjugação (Grau V da classificação de Salter-Harris).

FIGURA 5. Radiografias, ântero-posterior e perfil, do fémur esquerdo do mesmo doente da figura 4, cinco meses depois, com a fractura já consolidada, mas com sequelas de lesão prévia da cartilagem de conjugação distal do osso (Grau V da classificação de Salter-Harris); deformidade evidente da epífise correspondente

FIGURA 6. Radiografia, ântero-posterior, “em carga”, da pélvis, fémures e joelhos, do mesmo doente da figura 4, seis anos depois; nota-se a evolução das sequelas de lesão prévia da cartilagem de conjugação distal do fémur esquerdo (Grau V da classificação de Salter-Harris) – encurtamento considerável do fémur e deformidade evidente da epífise distal do mesmo osso. Báscula da bacia

Diagnóstico diferencial

É habitualmente fácil estabelecer pela anamnese o início das queixas em relação com o traumatismo. Em casos raros, e consoante a idade do doente, há que excluir as situações de artrite infecciosa ou inflamatória, de epifisiólise femoral proximal (por vezes também de origem macrotraumática), de doença de Perthes ou de lesão tumoral ou pseudotumoral (presença de quisto ósseo, por exemplo). Nesta última circunstância a fractura pode coexistir e ser a sua primeira manifestação clínica, através da qual é feito o diagnóstico do quisto.

Complicações

As fracturas podem dar origem a uma série de complicações, precoces ou tardias; no âmbito do capítulo interessa apenas referir as precoces e, dentro destas, destacando as lesões cutâneas, vasculares, nervosas e as síndromas compartimentais.

As lesões cutâneas são importantes porque podem determinar a comunicação do foco de fractura com o exterior e, consequentemente, a contaminação e possibilidade de infecção (osteomielite pós-fracturária).

As lesões vasculares e dos nervos periféricos geralmente estão associadas a fracturas justepifisárias e dependem das características anatómicas da região afectada (proximidade destas estruturas e do osso). Dão-se sobretudo a nível do cotovelo/úmero distal e joelho (extremidade inferior do fémur e proximal da tíbia e perónio).

As síndromas compartimentais devem-se ao aumento de pressão no compartimento ósteo-aponevrótico do osso fracturado, desencadeado pela hemorragia no foco de fractura. O aumento inicial dessa pressão conduz ao compromisso da circulação periférica das massas musculares, edema desses músculos e acréscimo gradual dessa pressão num compartimento que é inextensível. O resultado será a necrose e retracção das massas musculares desse compartimento com perda da funcionalidade e deformidade das articulações distais. Estas síndromas são mais frequentes no antebraço (isquémia de Volkmann), por fractura supracondiliana do úmero e, na perna, por fractura dos respectivos ossos.

As suas manifestações clínicas são dor persistente e progressiva, agravada pela tentativa de mobilização (activa e até passiva) dos dedos da mão ou do pé, edema dos mesmos e parestesias. De salientar que esta sintomatologia pode surgir mesmo depois de a fractura estar imobilizada (tala ou gesso), pelo que será muito importante alertar os pais para esta eventualidade. A síndroma, uma vez instalada, é irreversível e constitui uma emergência, exigindo o recurso imediato ao serviço de urgência para avaliação da situação e eventual tratamento cirúrgico (descompressão do ou dos compartimentos).

Tratamento

Medidas básicas iniciais

Na grande maioria dos casos, as lesões osteoarticulares da criança são susceptíveis de um tratamento relativamente simples que deverá ser dirigido pelo especialista.

No entanto, habitualmente compete ao clínico geral ou ao pediatra, os primeiros a observar o doente, a realização de uma série de procedimentos terapêuticos básicos, antes de o encaminharem para o especialista.

Entre esses procedimentos destacam-se os seguintes:

  • Penso estéril local – na ferida do foco de fractura, caso a fractura seja exposta, no sentido de impedir a contaminação adicional;
  • Imobilização provisória – com ligadura, contenção elástica ou contenção rígida (consoante a gravidade) que, no caso de suspeita de fractura, deverá incluir as articulações adjacentes (proximal e distal) ao segmento ósseo suspeito;
  • Descarga do membro afectado que, no membro inferior, implica o uso de 2 canadianas para as crianças colaborantes, e o repouso no leito, com ou sem tracção desse membro;
  • Elevação do membro afectado durante a fase de edema e dor;
  • Crioterapia local (cerca de 15 minutos, de duas em duas horas, durante 2-3 dias);
  • Terapêutica analgésica e/ou anti-inflamatória

Nas situações com risco vital, naquelas em que há deformidades major (com ou sem exposição óssea), ou nos casos em que há um quadro álgico significativo (mesmo em repouso), os doentes deverão ser rapidamente encaminhados para um serviço de urgência (com ortopedista disponível, de preferência).

Perspectiva terapêutica do ortopedista

Na idade pediátrica, as lesões osteoarticulares atingem preferencialmente o osso e a cartilagem de crescimento, sendo raras as lesões ligamentosas.

Actualmente, as fracturas dos ossos longos têm tido um aumento relativo das suas indicações cirúrgicas, fruto de três ordens de factores: alta energia de alguns acidentes (rodoviários e desportivos), advento de técnicas cirúrgicas com muito boa relação custo-benefício (tal como o encavilhamento elástico dos ossos), e progressiva redução dos tempos de internamento/imobilização do doente. No entanto, e apesar deste facto, a grande maioria das fracturas consolida rapidamente e sem sequelas valorizáveis.

No caso das fracturas com desvios nos planos frontal e sagital (e sem lesão da cartilagem de crescimento), como já foi referido, poderá não haver necessidade de redução da fractura, desde que o desvio não exceda cerca de 20° (variável consoante a idade); no entanto, desvios rotacionais no foco de fractura implicam a sua correcta redução e imobilização.

No que se refere às lesões articulares, particularmente se atingirem a cartilagem de conjugação, e como princípio básico, todas as fracturas deverão ser reduzidas anatomicamente e assim mantidas, por meios incruentos ou cruentos, sob pena de darem origem a sequelas importantes.

Ainda em relação às lesões das cartilagens de crescimento e aos grupos da citada classificação de Salter-Harris, poderá considerar-se que as lesões do grupo I e II não costumam dar origem a complicações, sendo susceptíveis de tratamento incruento, embora as do grupo II requeiram habitualmente tratamento cirúrgico; as do grupo III e IV, atingindo a interlinha articular, exigem sempre tratamento cirúrgico e dão origem a sequelas com grande frequência; as do grupo V são em geral reconhecidas, apenas retrospectivamente, pela deformidade resultante do encerramento prematuro, de grau variável, da cartilagem de crescimento.

As sequelas destas lesões, com importância variável, mas quase sempre relevante, são as situações que colocam os maiores problemas a resolver no campo da traumatologia do grupo etário pediátrico. O seu tratamento implica, necessariamente, diferentes tipos de estratégias cirúrgicas (realinhamentos, alongamentos, desepifisioideses*, encurtamentos contralaterais, etc.) para minorar as repercussões na vida da criança afectada.

* Epifisioidese consiste na separação das cartilagens de conjugação de um osso longo por um implante a fim de travar o crescimento.
  Desepifisioidese é um procedimento com objectivo inverso.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

PATOLOGIA REGIONAL ESPECÍFICA DO TRONCO

Tronco doloroso

Cervicalgia, dorsalgia e lombalgia

A dor é sempre um sintoma essencial, seja qual for a circunstância em que ocorre; mas, se localizada no tronco e na fase de crescimento, atinge uma particular relevância porque é muito rara, contrariamente ao que acontece no adulto.

Na idade pediátrica é habitualmente de natureza orgânica e, excluindo a causa traumática, a sua origem está frequentemente relacionada com situações infecciosas ou tumorais. Constitui, por isso, um sintoma suspeito de situação clínica potencialmente grave que deve ser objecto de exploração cuidada, diagnóstico devidamente confirmado, e consequente terapêutica adequada. Consoante a zona da coluna em que está localizada assim se denomina cervicalgia, dorsalgia ou lombalgia, assumindo na prática, em todas estas localizações, os mesmos atributos. Dependendo da sua causa efectiva, acompanha-se habitualmente de rigidez ou espasmo muscular defensivo da respectiva região da coluna, a qual pode assumir posturas anómalas ou mover-se em bloco, com limitação da amplitude global dos movimentos do tronco. Esta característica é mais evidente nas zonas da coluna com maior mobilidade (coluna cervical – torcicolo; coluna lombar – escoliose antiálgica). À sintomatologia referida pode associar-se uma série de manifestações (alteração da força muscular, dos reflexos osteotendinosos, da sensibilidade, clono, etc.) relacionadas com possível compromisso medular e/ou radicular proveniente, por sua vez, da causa da dor.

Quanto à etiologia da dor e para efeitos de diagnóstico, podemos classificá-la em dois grupos principais – traumática ou atraumática, consoante existe ou não episódio traumático prévio. Entre as características do esqueleto infantil que condicionam a forma como este reage ao trauma e suas consequências, destacam-se a maior elasticidade óssea e do aparelho cápsulo-ligamentoso. Assim, no caso da coluna e antes da adolescência, prevalecem as lesões articulares (luxações e subluxações) sobre as fracturas puras. Isto verifica-se particularmente nas regiões mais móveis da coluna, nomeadamente na coluna cervical e na junção occipitocervical.

Mais tarde, as lesões traumáticas assumem padrões que se aproximam daqueles observados e descritos nos adultos.

No processo de elaboração do diagnóstico os dados clínicos são, como sempre, fundamentais para estabelecermos as hipóteses possíveis; torna-se, por isso, obrigatória a avaliação do estado neurológico do doente pelos riscos que a patologia da coluna pode implicar neste domínio. Esses dados são também importantes porque nos orientam para os exames complementares a realizar, correspondendo à imagiologia um papel determinante a desempenhar (radiologia simples, TAC ou RM).

A terapêutica depende da etiologia provável da dor, mas terá sempre como objectivo primordial a preservação da função neurológica, implicando os cuidados necessários para evitar o seu compromisso ou agravamento. Daí a importância do repouso e imobilização da coluna enquanto não se chegar a um diagnóstico definitivo que oriente a evolução do tratamento.

Deformidades do tronco

Torcicolo

Designa-se por torcicolo a deformidade caracterizada pelo desvio rotatório, mais ou menos fixo, da cabeça, com inclinação contralateral desta, a que se associa cervicalgia de intensidade variável, despertada ou agravada pelo movimento.

A forma clínica designada adiante por “torcicolo congénito miogénico” é a terceira deformidade músculo-esquelética mais comum em idade pediátrica, com uma incidência de cerca de 0,3-4%.

É clássico considerar dois grupos de torcicolos – congénito e adquirido – conforme a deformidade está presente na data do nascimento ou aparece mais tarde.

No primeiro caso, e de acordo com a sua etiologia, pode ainda subdividir-se em:

  • Torcicolo congénito miogénico, se resultante de um encurtamento do músculo esternocleidomastoideu, por metaplasia fibrosa retráctil do feixe esternal e/ou clavicular; o encurtamento muscular pode estar associado a nódulo ou espessamento do esternocleidomastoideu como sequela de hematoma surgido no contexto de parto distócico;
  • Torcicolo congénito ósseo se devido a malformação das vértebras cervicais (hemivértebra, sinostose parcial, );

Quanto ao torcicolo adquirido, consideram-se também dois grupos principais:

  • Torcicolo adquirido osteoarticular quando provocado por lesões localizadas na coluna, por exemplo, de natureza traumática, situações inflamatórias agudas ou crónicas da coluna cervical, reumatismos, discopatias, infecções ósseas, ;
  • Torcicolo adquirido sintomático se a causa é extrínseca à coluna, levando ao aparecimento da deformidade por contractura assimétrica, reactiva, da musculatura do pescoço (astigmatismo, diplopia, distúrbios labirínticos, abcessos orofaríngeos, ).

As manifestações clínicas resumem-se à posição viciosa da cabeça com rigidez mais ou menos acentuada dependendo da etiologia, e dor inconstante podendo, quando presente, ser despertada ou agravada pela tentativa de movimento.

É típica a atitude cefálica em inclinação homolateral e rotação contralateral (cabeça inclinada para o lado do músculo afectado com rotação do mento no sentido oposto), o que se explica por encurtamento do músculo esternocleidomastoideu. (Figura 1 do capítulo sobre seguimento e reabilitação nos casos de torcicolo – ver adiante)

O diagnóstico é orientado fundamentalmente pelos dados da anamnese, conjugados com os da observação clínica, na qual é obrigatório incluir a palpação do esternocleidomastoideu para pesquisa de eventual nódulo duro, assim como um exame neurológico completo a fim de avaliar a integridade medular e/ou radicular. O torcicolo pode conduzir a plagiocefalia, assimetria facial e a atitude escoliótica. Por outro lado, pode estar associado a outras deformidades do pé e a displasia do desenvolvimento da anca.

Os exames complementares devem adequar-se às hipóteses de diagnóstico formuladas, mas são dominados pela imagiologia, com prioridade para a ecografia das partes moles e radiologia convencional, por vezes difícil de interpretar devido à posição da cabeça; neste caso, é conveniente recorrer à TAC e/ou RM para completo esclarecimento da situação, particularmente se existirem antecedentes de natureza traumática.

O tratamento depende da etiologia. Como medidas imediatas deverá prescrever-se repouso e imobilização da coluna cervical (ortótese de suporte cervical), a que se associa medicação (analgésicos, AINE e relaxantes musculares), de acordo com o contexto clínico de cada caso (consultar capítulo sobre seguimento e reabilitação nos casos de torcicolo).

Escoliose

Chama-se escoliose a toda a curvatura da coluna vertebral no plano frontal. Tal curvatura pode não ter importância alguma e constituir postura corporal voluntariamente assumida ou, pelo contrário, corresponder a deformidade que progride até se tornar esteticamente inaceitável, comprometendo o funcionamento de outros órgãos e aparelhos. (Figura 1-A, B)

As escolioses classificam-se em dois grandes grupos, com manifestações clínicas e prognóstico diferentes: as escolioses não estruturais e as estruturais.

Nas primeiras – escolioses não estruturais – as curvaturas não coincidem com alterações da morfologia normal das vértebras e nunca progridem. Estas escolioses podem representar apenas uma postura temporária e voluntária, habitualmente adoptada por qualquer indivíduo, ou ser sintomáticas, isto é, como reacção a patologia subjacente que, uma vez resolvida, possibilita à coluna reassumir espontaneamente a sua configuração normal, rectilínea (no plano anatómico frontal), com desaparecimento da curvatura neste plano. O prognóstico é habitualmente bom do ponto de vista da curvatura, mas em relação ao doente dependerá da patologia de base.

Como exemplos de escolioses não estruturais incluem-se as escolioses posturais, as compensatórias (por dismetrias dos membros inferiores) e as antiálgicas, por situação inflamatória, traumática ou tumoral (osteoarticular ou neurológica).

 

FIGURA 1. A) Doente com escoliose idiopática. B) Radiografia póstero-anterior do mesmo doente, em ortostatismo

No segundo grupo – escolioses estruturais – as vértebras estão deformadas (em forma de cunha no plano frontal e rodadas no plano horizontal) (Figura 2-A, B), as curvas progridem sempre, embora com velocidade variável conforme a sua etiologia e a idade dos doentes, pelo que o prognóstico deve ser, em princípio, reservado. Este grupo é dominado pelas chamadas escolioses idiopáticas cuja causa não se conhece, representando cerca de 70% dos casos de escolioses estruturais. Podem aparecer em qualquer idade; são muito mais frequentes na adolescência e no sexo feminino, estando sujeitas a agravamento na fase de crescimento rápido do tronco, verificada nesse período. Ainda dentro deste grupo das escolioses estruturais, embora menos frequentes, existem as escolioses congénitas (por anomalias congénitas das vértebras), as escolioses neurogénicas (por situações do foro neurológico – paralisia cerebral, doenças degenerativas do sistema nervoso, anomalias congénitas da medula e raízes, etc.), escolioses miopáticas (resultantes de doenças musculares), e por alterações do tecido conjuntivo (neurofibromatose, síndroma de Marfan).

As manifestações clínicas resumem-se à deformidade, a qual permite distinguir os dois referidos grupos de acordo com a sua flexibilidade e a existência ou não, de alterações do contorno do tronco. Essa distinção faz-se pela clínica, mediante o teste de Adams, e pela radiologia convencional.

FIGURA 2. Escoliose estrutural – deformidade das vértebras. A) no plano frontal; B) no plano horizontal

O teste de Adams consiste na observação do dorso do doente, no sentido – crânio-caudal e caudo-cranial, em bipedestação e depois de flectir a coluna, mantendo-se nessa posição, com os membros superiores pendentes. Nas escolioses não estruturais não se observam alterações do contorno posterior do tronco enquanto nas estruturais há assimetria, mais ou menos marcada desse contorno, de acordo com a gravidade e a localização da curvatura. (Figuras 3-A, B e 4-A, B)

O exame radiológico convencional permite também fazer a distinção dos dois grupos, mas com o inconveniente de termos de submeter o doente à radiação. Exige dois radiogramas ântero-posteriores da zona da curvatura, com o doente em decúbito, e a coluna sucessivamente em flexão lateral direita e esquerda; quando a escoliose não é estrutural, a curvatura rectifica-se na flexão lateral feita para a convexidade da curvatura; tal não sucede nas escolioses estruturais, cuja curvatura pode atenuar-se um pouco dependendo da sua flexibilidade, mas não desaparece, evidenciando-se a dismorfia dos respectivos corpos vertebrais.

Não é frequente, em idade pediátrica, o aparecimento doutro tipo de sintomatologia; haverá, porém, interesse em avaliar a flexibilidade da curva associada ou não à existência de dores, as quais constituem sintomas importantes de suspeita da presença de lesões inflamatórias ou tumorais na génese da escoliose.

FIGURA 3. A) Escoliose não estrutural, teste de Adams negativo; simetria do contorno posterior do tronco; B) Escoliose estrutural, teste de Adams positivo; assimetria do contorno posterior do tronco

Queixas do foro neurológico também não são habituais, mas podem existir nalguns casos raros, por exemplo, de escolioses congénitas com componente cifótico. Constituem um sinal de alarme que poderá agravar-se com a inevitável progressão destas escolioses. Este facto obriga sempre ao exame neurológico (sumário, mas atento) em todos os casos de curvatura anómala.

O diagnóstico é fundamentalmente clínico, mas deverá ser confirmado pela radiologia convencional, aconselhando-se fazer dois radiogramas da coluna inteira, frente e perfil, os quais permitem colher informação útil para correcta avaliação.

Na prática, o problema é habitualmente descoberto pelos familiares ou pelos professores de ginástica que enviam o doente ao clínico geral ou ao pediatra. Estes, perante dados clínicos sugestivos, deverão encaminhar o caso para o especialista a quem compete decidir sobre a oportunidade e modalidade do tratamento a executar, seja ele, incruento (cinesiterapia, uso de ortóteses, etc.) ou cruento (correcção da curvatura mediante instrumentação e artrodese)*.

(*) Artrodese – intervenção cirúrgica que consiste em bloquear definitivamente uma articulação.

FIGURA 4. Escoliose estrutural – deformidade das vértebras. A)  Representação esquemática da alteração do contorno do tronco resultante das deformidades referidas, com o doente em ortostatismo; B) Acentuação desta alteração do contorno do tronco quando o doente flecte a coluna (Teste de Adams)

Cifose

Define-se cifose como a curvatura da coluna, no plano sagital, de convexidade posterior. De salientar que existem cifoses fisiológicas a nível torácico e sacrococcígeo, as quais passam a ser consideradas deformidades se ultrapassam determinada magnitude ou se têm uma localização diferente da referida. A sua importância reside no risco neurológico que envolvem, ao poderem vir a dar origem muito rapidamente a compressão anterior da medula ou das raízes, quando são mais acentuadas ou incluem um pequeno número de vértebras (denominadas cifoses angulares). (Figura 5)

Quanto à etiopatogénese, as cifoses classificam-se em posturais, congénitas, traumáticas, idiopáticas (doença de Scheurmann – osteocondrose dos “pratos” ou apófises polares das vértebras) e infecciosas (resultando na destruição do disco e colapso anterior das vértebras).

As manifestações clínicas restringem-se à deformidade, mais ou menos acentuada, com menor ou maior flexibilidade, e às dores que, contrariamente ao que acontece nas escolioses, surgem aqui mais cedo e com muito maior frequência; é habitual que a elas se fique a dever a descoberta da própria deformidade. Pode também haver sinais de compromisso medular e/ou radicular progressivo consoante a localização e as características da deformidade (ex. as já referidas cifoses angulares). O diagnóstico é clínico e imagiológico, sendo obrigatório realizar a todos estes doentes um exame neurológico cuidado.

FIGURA 5. A) Representação esquemática de uma cifose angular; B) Doente com cifose angular de etiologia traumática

O tratamento deverá ser conduzido pelo especialista e depende da etiologia da deformidade. Nas cifoses posturais, bem como nas idiopáticas que são as mais comuns, é habitualmente incruento (medicação antiálgica, cinesiterapia, utilização de ortóteses específicas); nas restantes poderá ser necessário recorrer à cirurgia.

Espondilólise e espondilolistese

A espondilólise é uma solução de continuidade do arco posterior da vértebra, habitualmente bilateral, devido a um defeito de ossificação do chamado istmo, ou seja, da zona de confluência da lâmina, do pedículo e das respectivas apófises articulares dessa vértebra (Figura 6). Localiza-se habitualmente a nível de L4 e L5, e está relacionada com a carga a que estas vértebras estão sujeitas pela bipedestação.

Trata-se duma anomalia relativamente frequente que, por via de regra, se mantém assintomática até à idade adulta. Constitui em geral um achado radiográfico na sequência de episódio de lombalgia com a qual poderá nem sequer ter qualquer relação.

A fim de se poder visualizar melhor o defeito ósseo, os exames radiográficos da coluna lombossagrada devem ser realizados nos dois planos clássicos (ântero-posterior e perfil) e também em posição oblíqua (direita e esquerda), sendo nestas últimas projecções que melhor se costuma identificar o defeito vertebral.

FIGURA 6. Representação esquemática de espondilólise

A espondilólise não carece de tratamento nem é impeditiva de uma vida normal, sendo, porém, conveniente proteger a coluna, cuidando a correcção da postura, e a tonificação e o reequilíbrio da musculatura do tronco.

A sua importância reside na possibilidade de evoluir para espondilolistese que consiste no deslizamento ou migração anterior (listesis) da parte proximal da vértebra (correspondente ao corpo, pedículos e apófises articulares superiores) sobre a distal (englobando o resto do arco neural e as apófises articulares inferiores). (Figura 7)

Esta evolução é sempre gradual e classifica-se de acordo com a extensão do percurso do segmento proximal sobre o distal; observam-se deslocamentos de grau variável, desde os insignificantes até ao extremo da “queda” de L5 na pelve, com localização do corpo desta vértebra à frente do corpo de S1, situação que se denomina espondiloptose.

As manifestações clínicas da espondilolistese são variáveis, podendo ter alguma relação com o grau de deslizamento anteriormente explicado. 

FIGURA 7. Representação esquemática de espondilolistese

Surgem crises de dor lombar relacionadas com o esforço, podendo associar-se-lhe sinais de compromisso radicular, encurtamento do tronco, horizontalização da pelve e retracção ou encurtamento mais ou menos acentuado dos músculos isquiotibiais. Este encurtamento pesquisa-se com o doente em decúbito dorsal e revela-se pela diminuição da amplitude da elevação do membro inferior a partir do plano da cama, mantendo o joelho em extensão.

O diagnóstico é imagiológico podendo exigir, para além da radiologia convencional, TAC ou RM, em função das queixas neurológicas presentes.

O tratamento está subordinado à evolução do deslocamento e à sintomatologia presente, incluindo medicação (antiálgicos e AINE), cinesiterapia e cirurgia.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

PATOLOGIA REGIONAL ESPECÍFICA DO MEMBRO INFERIOR

Relativamente ao grupo nosológico em epígrafe, adoptou-se critério de abordagem sucinta, de acordo com a região anatómica e, dentro desta, com a sintomatologia mais frequente.

Anca dolorosa

A dor com origem na articulação coxofemoral localiza-se habitualmente a nível da virilha, podendo irradiar para a face anterior da coxa. Por vezes, surge apenas com esta última localização ou até só na face interna do joelho e terço distal da face interna da coxa. Neste caso trata-se de uma dor referida, em virtude de a enervação cutânea desta zona depender do nervo obturador, do qual também depende a maior parte da enervação da articulação coxofemoral.

Como sinal isolado, a dor não é muito frequente a não ser nas fases iniciais da patologia subjacente, a qual determina também a variabilidade da sua natureza e evolução. A outra sintomatologia que rapidamente se lhe associa é a alteração da mobilidade, geralmente manifestada como limitação do arco normal do movimento articular, podendo acompanhar-se também de impotência funcional ou incapacidade para mobilizar e apoiar o respectivo membro.

A idade constitui um dado importante para a orientação do diagnóstico da patologia responsável pela dor. Assim, na criança pequena que ainda não sabe dizer o que sente, a relativa imobilidade do membro e as reacções de defesa (choro, agitação, etc.) à tentativa de mobilização deste, são manifestações objectivas de dor e deverão sempre levantar a suspeita de artrite séptica em fase inicial, exigindo as medidas já descritas para a sua detecção e tratamento.

Sinovite transitória da anca

Na criança já em fase da marcha e até ao final da idade escolar (3-8 anos), a causa mais frequente de dor na coxofemoral é a chamada sinovite transitória da anca. Consiste numa situação inflamatória da articulação de natureza reactiva, em geral a um traumatismo, mas também a inflamações prévias ou coincidentes noutros locais do organismo. Acompanha-se de derrame intra-articular de volume variável, mantendo-se a sintomatologia, em regra, cerca de uma semana.

A existência de um derrame de dimensões apreciáveis pode originar uma atitude da articulação em semi-flexão, ligeira abdução e rotação externa; tal corresponde à posição de maior capacidade da cavidade articular, espontaneamente adoptada para acondicionar melhor e com menor tensão esse derrame, numa tentativa inconsciente de defesa com consequente diminuição da dor. Concomitantemente, e com o mesmo significado, pode haver incapacidade funcional e limitação da mobilidade, sendo a rotação interna e a adução os primeiros movimentos alterados.

Os exames laboratoriais para avaliação do estado geral e da repercussão da doença são inconclusivos.

Quanto aos exames imagiológicos, o radiograma simples não revela alterações, mas tem interesse para detectar outro tipo de patologia; a ecografia permite confirmar a presença do derrame e respectivo volume.

O tratamento limita-se ao repouso e à administração de anti-inflamatórios, evoluindo o episódio para a cura espontânea, sem deixar sequelas; note-se, porém, que não é rara a evolução por crises repetidas com as mesmas características ao longo do referido intervalo de idades. Estas crianças podem vir a desenvolver, mais tarde, uma osteocondrose da cabeça femoral, a chamada doença de Legg-Calvé-Perthes.

Epifisiólise femoral proximal

Trata-se doutra patologia localizada à articulação coxofemoral, de aparecimento mais tardio, mas que se manifesta também por dor intensa.

Surge no início da adolescência, entre os onze e os dezasseis anos de idade, e está relacionada com as alterações hormonais dessa fase do desenvolvimento e sua repercussão sobre as cartilagens de crescimento. É habitual estar associada a traumatismos de intensidade variável, predominando no sexo masculino, nomeadamente em indivíduos com um morfotipo particular (adiposogenital ou longilíneo).

Consiste numa falência das propriedades mecânicas da cartilagem de conjugação ou fise, situada entre a cabeça e o colo femoral, permitindo que a epífise, sob a acção das forças que sustenta, e devido à configuração morfológica dessa extremidade do fémur, vá escorregando sobre o topo do colo femoral, no sentido posterior e inferior, acabando nos casos extremos por ficar implantada na porção inferior da face posterior do referido colo. (Figura 1)

Dependendo do grau de deslocamento, do tempo decorrido desde o início da sintomatologia, e da incapacidade funcional com que se apresenta, assim existem outras tantas classificações, numa tentativa de orientação terapêutica e prognóstica. A mais recente, e talvez mais determinante neste aspecto, é a que considera duas formas clínicas: as epifisiólises estáveis e as instáveis.

FIGURA 1. Representação esquemática do deslizamento do núcleo cefálico do fémur sobre o respectivo colo: epifisiólise femoral proximal (EFP)

Nas primeiras (estáveis), o doente, apesar das queixas, consegue fazer marcha sem recorrer às canadianas e o tratamento adequado é bem-sucedido em cerca de 95% dos casos, sendo o prognóstico quanto à função bom ou razoável.

Nas segundas (instáveis), o apoio do membro e a marcha são impossíveis sem canadianas, o escorregamento costuma ser considerável, e o tratamento apenas resulta em menos de 50% dos casos; a percentagem de complicações, nomeadamente a necrose avascular da cabeça femoral, é muito elevada.

A sintomatologia é local e dominada pela dor, com a distribuição característica da sua origem na articulação coxofemoral (virilha, face anterior da raiz da coxa, e referida à face interna do terço distal da coxa). Está sempre presente, embora com intensidade variável, podendo ser mais acentuada nas fases agudas da doença (primeiras três semanas) e manter-se assim ou atenuar-se depois, evoluindo para a cronicidade. Com a progressão do deslocamento da epífise e posicionamento relativo do colo femoral, o membro vai assumindo uma rotação externa que acabará por se fixar, limitando, ou até perdendo, a rotação interna. Simultaneamente, perde também comprimento (cerca de 2 a 3 cm), diminuindo o braço de alavanca dos músculos glúteos e, consequentemente, a sua eficácia mecânica, traduzida pelo sinal de Trendelenburg que estes doentes sempre apresentam. A marcha, se possível, é claudicante não só pela insuficiência dos referidos músculos, como também pela dor, fazendo-se em rotação externa do membro.

O diagnóstico baseia-se na clínica e nos exames imagiológicos, sendo a radiologia convencional suficiente para o estabelecer. Para isso, será indispensável obter dois radiogramas da bacia, um com os membros inferiores em posição neutra, e outro com a coxa flectida a 90º e abdução de cerca de 60º; será fácil visualizar o perfil do colo femoral e assim detectar qualquer tipo de desvio da posição relativa da epífise femoral. (Figuras 2 e 3)

FIGURA 2. Radiografia ântero-posterior da pelve de um doente com EFP esquerda

FIGURA 3. Radiografia da coxofemoral esquerda do mesmo doente; nota-se desvio considerável do núcleo cefálico femoral

Os restantes exames (RM e TAC) só têm interesse para uma melhor definição da orientação terapêutica.

O tratamento é sempre cirúrgico e deverá ser considerado urgente; consiste na fixação da cabeça femoral ao colo, com ou sem reconstituição prévia da sua normal posição anatómica. Não é isento de taxa elevada de complicações (necrose avascular ou condrólise ⁄ rigidez articular ⁄ artrose precoce), dependente da magnitude do desvio e das manobras cirúrgicas empreendidas, complicações essas que sempre comprometem, em grau variável, a funcionalidade da articulação.

Doença de Legg-Calvé-Perthes

Esta doença, que será abordada com mais pormenor adiante, pode evoluir com sintomatologia dolorosa da anca, embora esta não seja a manifestação clínica predominante. Neste caso, a dor é habitualmente moderada, localizada à virilha ou referida à face ântero-interna do terço distal da coxa e está relacionada com o movimento. De salientar, porém, que pode inclusivamente nem existir, passando a doença despercebida aos pais e evidenciando-se só mais tarde, já na sua fase final, por encurtamento do membro e restrição dos movimentos (rotação interna e abdução).

Alterações da mobilidade da anca

Anca instável

Sendo a coxofemoral uma enartrose (articulação constituída por superfície articular de forma praticamente esférica), possui, não só uma mobilidade em todos os planos do espaço, como também uma estabilidade considerável, acrescida pelas resistentes estruturas cápsulo-ligamentosas que a integram. Assim, para que a instabilidade se evidencie, será necessário que os componentes ósseos percam a sua morfologia ou as suas relações anatómicas normais, a qual é intensificada pela distensão ou fragilidade das referidas estruturas de contenção.

Estas circunstâncias podem ser congénitas, como no caso da chamada displasia de desenvolvimento da anca, manifestando-se a instabilidade logo à nascença, ou surgir mais tarde, como resultado de situações patológicas prévias, principalmente de natureza traumática ou infecciosa (artrite séptica).

Nesta alínea é apenas considerada a displasia de desenvolvimento da anca (DDA), denominação que deve substituir a impropriamente chamada luxação congénita da anca porque, de facto, as crianças não nascem com a anca luxada.

Como o nome indica, consiste numa alteração dos componentes articulares que, embora presentes e completamente formados aquando do nascimento, mantêm uma morfologia e orientação ainda fetais, consideradas anómalas para uma criança nascitura. Este atraso do desenvolvimento da articulação, se não for detectado e correctamente tratado à nascença, persiste; e, nos meses subsequentes até à idade da marcha, induz as condições mecânicas favoráveis à progressiva perda de contacto entre as superfícies articulares, ou seja, à luxação da coxofemoral. Assim, a luxação é tardia e só ocorre se o diagnóstico passar despercebido e não der lugar ao tratamento atempado e adequado.

A sintomatologia, como a criança ainda não sabe queixar-se e a DDA não se traduz por dor, resume-se à instabilidade articular, detectável por manobras de exploração clínica (de Barlow e Ortolani) habitualmente utilizadas.

A manobra de Barlow, uma vez realizada, “provoca a saída” da cabeça femoral do acetábulo. Para realizar esta manobra, as ancas e os joelhos devem estar flectidos a 90°. As mãos do observador seguram o membro inferior do recém-nascido, colocando o polegar na face interna da coxa e os restantes dedos na face externa. Aplica-se pressão no joelho em direcção posterior enquanto se faz adução do fémur (Figura 4). Se a manobra for positiva, sente-se um ressalto em “clique” que corresponde à luxação da cabeça femoral e à sua passagem sobre o rebordo do acetábulo.

FIGURA 4. Manobra de Barlow – colocação dos dedos da mão do observador com a anca em abdução média e pressão exercida pelo polegar na face ântero-interna da raiz da coxa, a fim de testar a estabilidade da articulação

A manobra de Ortolani é um “sinal de recolocação” da cabeça femoral dentro do acetábulo. A posição de colocação das mãos é idêntica à da manobra de Barlow. No entanto, o observador executa uma manobra de abdução enquanto pressiona o grande trocânter em sentido anterior e interno (Figura 5). Se a manobra for positiva sente-se igualmente um ressalto e um “clique” que corresponde à redução da cabeça femoral dentro do acetábulo e à sua passagem sobre o rebordo posterior do acetábulo.

No RN com a anca luxada verifica-se retracção dos músculos adutores. Assim, depois de idades superiores a um-três meses, já não é possível reduzir a anca com a manobra de Ortolani.

A obrigatoriedade do diagnóstico precoce, feito imediatamente após o nascimento, permite instituir uma actuação que é relativamente simples e de êxito assegurado na maioria dos doentes, melhorando significativamente o prognóstico. Esta evidência levou à aplicação em todos os países, a partir da década de setenta do século vinte, de um programa de rastreio clínico desta situação que faz parte obrigatória do primeiro exame clínico do recém-nascido. Os casos duvidosos são encaminhados para o especialista para esclarecimento e eventual tratamento, conseguindo-se com esta estratégia diminuir, de forma drástica, o número de doentes que aparecem já em fase de luxação, muito mais difíceis de tratar e de resultado sempre problemático.

FIGURA 5. Manobra de Ortolani – posição das mãos do observador que, partindo da adução completa das ancas, induz a sua abdução passiva até ao extremo do movimento

Os restantes sinais clínicos habitualmente descritos nesta doença, para além da discreta assimetria da abdução (diminuída do lado afectado), nem sempre têm significado patológico, ou, se o têm, só se torna aparente mais tarde, já depois de se dar a luxação da cabeça femoral. Entre eles contam-se a assimetria das pregas, o encurtamento do membro, a diminuição franca da abdução, o alargamento assimétrico do períneo, a marcha claudicante e o sinal de Trendelenburg. Estes dois últimos sinais traduzem a insuficiência dos músculos glúteos devido ao encurtamento do braço de alavanca e perda do seu ponto de aplicação fixo (cabeça femoral contida no acetábulo), resultantes da luxação. Por essa razão, quando a pelve está sustentada apenas pelo membro inferior, sede da lesão, (apoio num só pé-monopodálico), os glúteos não a estabilizam, descaindo para o lado contrário à lesão em vez de se manter na horizontal, com evidente desnível das cristas ilíacas e das correspondentes pregas glúteas.

Nos casos de bilateralidade, há ainda a referir a hiperlordose lombar, por báscula dianteira da bacia, e a “marcha de pato”, também denominada de Duchene, resultante da falta de apoio acetabular da cabeça femoral e consequente alteração da eficácia dos músculos glúteos.

Os exames complementares de diagnóstico são do foro imagiológico. A ecografia é o exame de eleição nas quatro primeiras semanas de vida, período em que o núcleo cefálico não está ossificado, impossibilitando uma leitura correcta do radiograma simples. Tal exame exige, porém, equipamento adequado e experiência por parte de quem a executa e interpreta, para que os resultados possam ser credíveis.

A partir das quatro semanas de vida a radiologia convencional é suficiente para acompanhar a evolução da morfologia articular.

O tratamento na fase inicial é simples e consiste em manter a coxofemoral em flexão de 90°, abdução de cerca de 30 a 40º e rotação neutra; existem diversos dispositivos para manter esta posição favorável à progressão do crescimento adequado, com normalização da anatomia e funcionalidade articulares. Entre o quarto e o sexto mês de vida, se esta medida não resultar, será sempre possível tentar a redução incruenta sob anestesia geral seguida de imobilização rígida; se houver dúvida quanto ao benefício desta orientação, ou após os seis meses de idade, deverá optar-se pelo tratamento cirúrgico adequado.

Qualquer tipo de tratamento está sempre sujeito a complicações, com maior frequência na modalidade cirúrgica, das quais a mais importante é a necrose avascular do núcleo cefálico, dando lugar a deformidade mais ou menos marcada da cabeça e colo femorais, limitação funcional da articulação, e artrose precoce.

Anca bloqueada

As alterações da mobilidade da anca estão quase sempre presentes na maioria das situações patológicas da anca dadas as características anatómicas da articulação (esfericidade das superfícies articulares, extenso e íntimo contacto das mesmas). A manifestação clínica de tais alterações é variável, consoante a gravidade da situação: desde a restrição ligeira dos movimentos até ao bloqueio completo ou anquilose da articulação.

Devido aos condicionalismos anátomo-funcionais articulares, o primeiro movimento a ficar limitado é a rotação interna, seguindo-se-lhe a abdução e, só depois, os restantes movimentos. Dependendo da patologia de base e da sua evolução, esta restrição não progride necessariamente até à anquilose, que se faz habitualmente com a anca em posição viciosa de rotação externa, adução e semi-flexão. Por isso, o que se verifica na maioria das vezes é a sua estabilização num dos estádios intermédios, com ou sem regressão ulterior.

A limitação da mobilidade, como sintoma isolado, é rara, acompanhando-se habitualmente de dor simultânea ou prévia, conforme já foi referido, e, por vezes também, de impotência funcional, embora neste caso costume aparecer só mais tarde.

As situações patológicas mais frequentes que podem manifestar-se apenas por esta limitação são o derrame articular discreto, por exemplo, de natureza traumática ou inflamatória, e a doença de Legg-Calvé-Perthes (ou mais simplesmente doença de Perthes).

A doença de Legg-Calvé-Perthes pertence ao grupo das denominadas osteocondroses que, conforme já referimos, constituem um conjunto de afecções de etiologia desconhecida, caracterizadas pelo aparecimento de alterações necrótico-degenerativas, de natureza isquémica com extensão variável, e localizadas nos núcleos de ossificação de algumas epífises ou apófises. Evoluem de forma espontânea, mas muito lentamente, para a cura, dependendo a sua gravidade do segmento ósseo atingido. No caso particular da doença de Perthes, ao afectar a epífise proximal do fémur, componente essencial da articulação mais volumosa do corpo humano, a sua importância é considerável, pelas consequências funcionais nocivas que dela podem resultar.

Aparece nas crianças dos três anos até ao fim da idade escolar (10-11 anos), com um pico de incidência dos três aos oito anos; é mais frequente no sexo masculino (5 / 1) e pode ser bilateral em cerca de 1/5 dos casos (incidência ~1/1.200 crianças).

Sob o ponto de vista fisiopatológico, as referidas alterações produzem uma atrofia relativa e perda de consistência do núcleo de ossificação cefálico do fémur, deixando sem suporte adequado a cartilagem articular suprajacente que colapsa, perdendo-se a esfericidade da cabeça femoral, indispensável à manutenção da mobilidade normal da articulação (Figura 6). O referido colapso e consequente deformidade da cabeça femoral vão depender da extensão e da localização dessas lesões, estando descritas formas clínicas diversas com elas relacionadas.

Ao evoluir para a cura, ou seja, para a reossificação do núcleo, o resultado final dependerá da extensão da doença, deformidade já existente, idade da criança e tratamento executado. Em regra, é possível verificar-se alguma deformidade residual, mais ou menos importante, que nos casos piores termina na chamada “coxa magna”; esta corresponde a uma alteração da forma da extremidade superior do fémur, caracterizada por cabeça volumosa, mais ou menos aplanada, com colo femoral curto e espesso, e encurtamento do membro respectivo.

As manifestações clínicas iniciais, mais evidentes e importantes, são a limitação da mobilidade, concretamente da rotação interna, seguida da abdução. Pode acompanhar-se de dor relacionada com o movimento, mais ou menos intensa, mas na maioria das vezes discreta ou nula.

FIGURA 6. Doença de Legg-Calvé-Perthes (DLCP): representação esquemática da evolução da doença (consultar texto)

Localiza-se, como dissemos, na virilha e face anterior da raiz da coxa, sendo, porém, frequente a presença apenas de dor referida à face ântero-interna do terço distal da coxa, a qual pode ser interpretada erroneamente como manifestação de patologia do joelho. Na fase terminal da doença, a sintomatologia dolorosa, se existiu, desaparece, mantendo-se apenas o défice da mobilidade e a possível atitude viciosa do membro, em ligeira rotação externa e adução com encurtamento.

O diagnóstico, nas fases iniciais da doença, é fundamentalmente clínico, mas pode vir a ser apenas de presunção, com base na exclusão de outras entidades mais evidentes do ponto de vista da sintomatologia e das alterações precocemente detectáveis pelos exames complementares, laboratoriais ou imagiológicos. O diagnóstico definitivo só é possível em presença das alterações visíveis nestes últimos exames. A radiologia convencional (radiogramas ântero-posteriores da bacia, com os membros inferiores em posição neutra e em abdução e rotação externa) é, em geral, suficiente para caracterizar o estádio e a evolução da doença, mas tem o inconveniente de só revelar alterações ao fim de três a quatro semanas de evolução da doença.

A tradução radiográfica destas lesões tem aspectos diferentes consoante a fase de evolução, correspondendo a necrose a uma imagem de condensação cálcica do núcleo, de dimensões inferiores ao normal, com desaparecimento da estrutura trabecular regular que habitualmente se observa (Figuras 7 e 8).

FIGURA 7. Radiografia ântero-posterior da bacia de um doente com DLCP à esquerda em fase de necrose; ancas em posição anatómica

FIGURA 8. Radiografia ântero-posterior da bacia de um doente com DLCP à esquerda em fase de necrose; ancas em abdução e rotação externa (para visualização do perfil do colo femoral)

A ressonância magnética (RM), pode ter alguma utilidade nas fases precoces da doença pelas indicações que fornece sobre a integridade vascular do núcleo de ossificação cefálico, mas a falta de correlação dos dados fornecidos com o resultado à distância, não permite ainda retirar ilações sobre o prognóstico e a necessidade de terapêutica activa.

O tratamento, que deve ser orientado pelo especialista, não é electivo porque, não se sabendo a causa da doença, não se consegue dominar eficazmente a sua evolução natural, que é sempre lenta (cerca de dois anos). De facto, a actuação limita-se a medidas terapêuticas secundárias, cruentas ou não, de modo a minorar as suas sequelas. Assim, seja qual for a modalidade de tratamento utilizada, o seu objectivo primordial será prevenir a deformação da cabeça do fémur, conseguindo que a transmissão das forças a que se encontra sujeita a cabeça femoral se faça de modo uniforme em toda a sua extensão e não haja sobrecarga de umas zonas em relação a outras, dando origem ao referido colapso da cartilagem articular. Para tal, há que manter a cabeça femoral bem centrada no acetábulo e perfeitamente coberta por este, enquanto o núcleo cefálico passa pelas sucessivas fases de necrose e fragmentação (com a consequente perda de consistência e aumento da sua plasticidade, até à fase final de reconstituição e remodelação ósseas).

Na fase de sequelas, o tratamento é sempre cirúrgico e tendente a conservar ou melhorar a congruência articular, prevenindo a artrose secundária precoce.

O prognóstico é muito variável e depende, não só do padrão das lesões, como também da idade e do sexo dos doentes; é mais favorável no sexo masculino e quanto mais nova for a criança, devido a maior capacidade de reconstrução e remodelação ósseas.

Deformidade coxofemoral

Em virtude das particularidades anatómicas da articulação coxofemoral, nem sempre é possível detectar uma deformidade, principalmente nas suas fases iniciais. Localizada profundamente e envolvida por massas musculares volumosas, o que dificulta o acesso directo à sua exploração clínica, a anca pode deformar-se de modo insidioso, sem se notar de imediato, a não ser que se manifeste por interferência rápida na mobilidade articular e na atitude do membro.

A deformidade pode ser temporária, por contractura reactiva da musculatura periarticular a um processo inflamatório, com derrame, assumindo o membro a postura já descrita (semi-flexão, rotação externa e ligeira abdução); tal corresponde à posição de maior capacidade da cavidade articular, retomando a posição neutra, normal, uma vez resolvida a situação.

A deformidade pode também ser permanente, com alteração da anatomia normal ósteo-articular, ou seja, dos componentes osteocartilaginosos e/ou capsulofibrosos da articulação.

As manifestações clínicas nos estádios mais avançados da deformidade traduzem-se por encurtamento do membro, associado a défice da mobilidade, ou até bloqueio desta, com alteração mais ou menos marcada da posição do referido membro, que perde definitivamente a capacidade espontânea de atingir a posição anatómica normal. A citada posição viciosa é muito variável, consoante a patologia de base que a determina, mas assume quase sempre uma flexão fixa (que se detecta pelo chamado teste de Thomas) (Figura 9), à qual podem estar associados outros componentes, habitualmente de adução, com ou sem rotação externa.

Realiza-se este teste com o doente em decúbito dorsal, mandando-o fazer a flexão máxima da coxa contrária e verificando o que acontece à posição da anca suspeita; se a respectiva coxa se mantém assente no plano do leito, o teste de Thomas será negativo, traduzindo ausência de contractura em flexão; se fica elevada em relação ao plano do leito, o teste de Thomas diz-se positivo, o que significa a existência dessa contractura. Para além da clínica, a caracterização da natureza da deformidade faz-se recorrendo à radiologia convencional, com radiogramas obtidos numa ou mais posições dos membros inferiores.

Joelho doloroso (gonalgia)

Constitui uma queixa que motiva frequentemente consulta de Ortopedia Pediátrica; a origem pode ser atribuível a situações patológicas de importância muito diversa. Assim, tanto pode representar uma queixa incaracterística, fugaz e recorrente, sem repercussões funcionais evidentes, como corresponder a uma manifestação clínica de processos patológicos relevantes, localizados no próprio joelho ou até à distância, como já referimos no caso da dor referida proveniente da anca.

No âmbito da patologia do joelho sobressaem: a de natureza traumática, os processos infecciosos e inflamatórios, as osteocondroses, os tumores, as síndromas de hiperpressão circunscrita articular, as displasias, etc..

FIGURA 9. Teste de Thomas positivo à direita

A dor tem características muito variáveis (intensidade, localização, relação com factores que a aliviam, duração, etc.), de acordo com a sua origem. Pode associar-se a uma série de outros sinais e sintomas, como: dificuldade em subir escadas, em se manter sentado muito tempo ou em passar da posição sentada à de pé, bloqueio articular, aumento de volume do joelho por derrame articular e limitação da mobilidade.

A localização da dor, embora seja por vezes difícil de precisar por parte dos doentes, se associada a algumas das queixas anteriormente referidas, pode indiciar a sua origem. Assim, quando é anterior e acompanhada de dificuldade em permanecer muito tempo sentado ou em subir escadas, sugere patologia da articulação patelofemoral; dor na face externa ou interna do joelho, associada a bloqueio sugere patologia meniscal; instabilidade no plano frontal acompanhada de dor pode significar rotura do ligamento lateral respectivo, etc..

Alterações da mobilidade do joelho

Num joelho previamente são, estas alterações manifestam-se de duas maneiras extremas: limitação da mobilidade ou exagero da mesma, tendo como referência os limites normais do movimento.

Limitação da mobilidade

A limitação da mobilidade pode ter expressões diversas consoante a sua origem, costumando estar associada a dor e/ou derrame intra-articular. Tal derrame, habitualmente relacionado com traumatismos ou processos inflamatórios e infecciosos, traduz sempre um sofrimento articular. Se for de volume suficiente, é detectável pelo chamado sinal de “choque da rótula”, restringindo a mobilidade nos extremos do arco de movimento normal da articulação, ou seja, dificultando ou impedindo a execução “dos últimos graus” da extensão e da flexão máximas. No caso de atingir proporções consideráveis, torna-se notório o aumento de volume do joelho, assumindo este, espontaneamente, uma posição viciosa de semi-flexão, correspondente à posição de maior capacidade articular. Por isso mesmo, também se denomina posição de defesa anti-álgica porque, ao permitir uma maior acumulação de líquido, diminui a pressão exercida por este nas estruturas cápsulo-ligamentosas, responsável pelo desencadear do estímulo doloroso.

Por vezes, essa limitação da mobilidade aparece bruscamente, no decurso da exploração do movimento, como uma resistência elástica, mas real, que não é possível vencer e a que chamamos bloqueio da articulação. Este é normalmente relacionado com alterações da regularidade das superfícies articulares que, interpondo-se, dificultam ou impedem a progressão do movimento; tal acontece, por exemplo, no caso de lesões osteocondrais ou dos meniscos, de origem traumática, ou de condromatose, ou ainda, em casos raros, da chamada osteocondrite dissecante.

A osteocondrite dissecante do joelho é uma doença característica da segunda década de vida, embora possa surgir com menor frequência na criança mais velha e no adulto jovem. Caracteriza-se por necrose óssea circunscrita, subcondral, mais ou menos extensa, constituindo um fragmento osteocartilaginoso que se destaca habitualmente em grau variável do respectivo leito ósseo, podendo vir a destacar-se por completo, transformando-se num corpo livre intra-articular. Localiza-se com maior frequência na porção média, da vertente externa do côndilo interno, mas pode aparecer noutras zonas do joelho, como na porção posterior do côndilo externo, na tróclea femoral ou na superfície articular da rótula. Admite-se que a sua origem esteja relacionada com traumatismos repetidos e isquémia em doentes com “esqueleto imaturo”, pelo que é frequente encontrar-se em praticantes de desporto intensivo.

As manifestações clínicas traduzem-se por: dor espontânea ou relacionada com o esforço, bem como desencadeada ou agravada pela pressão da zona lesada; derrame ou até hemartrose; atrofia da musculatura da coxa; e dificuldade na mobilização da articulação com eventuais episódios de bloqueio transitório.

O diagnóstico é clínico e imagiológico (radiologia convencional), necessitando, por vezes, de projecções especiais para melhor visualização da lesão.

O tratamento deverá ser conduzido por especialista e depende das características da lesão (localização, extensão e fase de evolução da doença), assim como do grau de maturidade esquelética do doente: pode variar entre a modalidade incruenta e a cruenta ou cirúrgica, feita habitualmente por via artroscópica.

Exagero da mobilidade

O exagero da mobilidade pode considerar-se de dois tipos:

  • Hipermobilidade – se o movimento se faz para além dos limites normais;
  • Instabilidade – se existe défice de solidez da articulação, mesmo quando em repouso, por incapacidade de contenção das suas estruturas cápsulo-ligamentares.

Ambas as modalidades, quando ligeiras ou moderadas, podem ser consideradas normais nas crianças muito jovens (até aos três/quatro anos), devido à hiperelasticidade da cápsula e dos ligamentos de reforço, bem como a uma certa hipotonicidade da musculatura protectora dessas estruturas. A elas se deve, nessas idades, o aparecimento de um desvio mais ou menos acentuado do alinhamento dos joelhos no plano frontal (joelho varo e valgo/genu varum e valgum) ou no plano sagital (joelho em hiperextensão/genu recurvatum), detectáveis nas seguintes circunstâncias: quando o doente assume a bipedestação; ou, estando este em decúbito dorsal, se testa a solidez látero-medial da articulação, ou se explora e força a extensão do joelho para além dos limites normais.

A existência de hipermobilidade ou instabilidade anormais para a idade do doente exige a investigação da sua causa; esta poderá residir numa deficiência do aparelho cápsulo-ligamentar ou na alteração da morfologia normal das superfícies articulares, hipóteses que a clínica e os exames complementares de diagnóstico, particularmente a imagiologia, permitem esclarecer devidamente.

Deformidade do joelho

As deformidades a nível do joelho (contrariamente ao que acontece na anca por se tratar de uma articulação superficial, coberta por tegumentos de pouca espessura) são fácil e rapidamente detectáveis pela observação clínica. Para efeitos de sistematização, estas deformidades, a que já nos referimos, podem descrever-se no plano frontal (joelho varo e joelho valgo/genu varum e genu valgum), no plano sagital (joelho flexo e joelho recurvado/genu flexum e genu recurvatum), ou serem mistas, assumindo formas complexas nos diferentes planos do espaço. A sua origem está em relação com transtornos intrínsecos da articulação (alterações morfológicas das superfícies articulares e do aparelho cápsulo-ligamentar) ou extrínsecos (patologia neuromuscular ou óssea, justa-articular – tumores, sequelas de trauma, etc.).

Estas transformações da configuração normal do joelho, não considerando as situações generalizadas, mas apenas aquelas localizadas a esta articulação, podem ter origem congénita, e manifestar-se logo ao nascer, como no caso da luxação congénita dos joelhos, ou ser adquiridas. Neste caso estabelecem-se mais tarde, podendo a sua causa inserir-se, como sempre, num dos grandes capítulos da patologia geral; ou seja, pode ser idiopática, traumática, inflamatória, tumoral, neurológica ou vascular.

No âmbito das deformidades adquiridas, já nos referimos aos desvios patológicos dos eixos de causa idiopática, susceptíveis de tratamento, do foro do especialista.

As deformidades de origem traumática, também importantes, podem dar lugar a defeitos consideráveis, dependendo do tipo de lesão das cartilagens de crescimento fisárias da extremidade distal do fémur e proximal da tíbia.

O mesmo acontece com as deformidades de origem inflamatória, particularmente com as infecções, quer sejam do tipo purulento (artrites sépticas), como granulomatoso (tuberculose).

Seja qual for a causa destes defeitos, o seu diagnóstico não põe habitualmente grandes problemas pela acessibilidade da articulação, não só à exploração clínica, como à investigação complementar, quer imagiológica ou até invasiva (biópsia articular).

O tratamento depende da lesão e é da competência do especialista.

Nesta região anatómica e dentro das deformidades, convém fazer uma referência à doença de Osgood-Schlatter por ser muito frequente e resultar em deformação visível do contorno do joelho, a nível da tuberosidade anterior da tíbia.

Pertence ao grupo já referido das osteocondroses, neste caso da epífise proximal da tíbia; está relacionada com o esforço de tracção exercido pelo tendão rotuliano no ponto da sua inserção óssea. Aparece no final da idade escolar e princípio da adolescência, e manifesta-se de início por dor ao esforço em extensão do joelho (correr, subir escadas, etc.) e à palpação da região referida. Segue-se, em fase mais tardia, o aumento de volume visível, com proeminência da tuberosidade anterior da tíbia.

A evolução é arrastada com tendência para a cura; contudo, em casos raros pode dar lugar à paragem de crescimento da porção anterior da epífise tibial respectiva (epifisiodese), originando deformação da extremidade proximal da tíbia, com inclinação anterior do prato tibial e joelho recurvado/genu recurvatum.

O diagnóstico é clínico e imagiológico (radiologia convencional), visualizando-se nos radiogramas simples deste segmento do osso os aspectos já descritos, correspondentes ao respectivo estádio da doença (fragmentação, necrose, reabsorção e reossificação).

O tratamento é quase sempre incruento (repouso, antiálgico e anti-inflamatório) exigindo, nalguns casos, o recurso a infiltrações locais de corticosteróides e/ou de soluto de dextrose hiperosmolar (a 12,5%).

Pé doloroso

Na idade pediátrica (excluídas as situações traumáticas, inflamatórias e tumorais), a causa mais frequente de dor no pé reside nas calosidades plantares, habitualmente associadas a eventuais alterações da morfologia ou funcionalidade deste segmento anatómico; estas queixas dolorosas podem ainda surgir associadas a anomalias congénitas, a situações de osteocondrose, (também existentes a este nível) e a defeitos posturais, resultando, neste caso, da distensão e fadiga dos complexos sistemas cápsulo-ligamentosos do pé.

Sendo o pé a estrutura mais distal de suporte do organismo, e a bipedestação a atitude normalmente assumida, o peso do corpo e os esforços repercutem-se a este nível, o que determina a intensidade de toda a sintomatologia dolorosa. A sua localização é fácil de esclarecer pela acessibilidade à exploração clínica, permitindo caracterizar melhor essa dor, identificando com alguma precisão a estrutura anatómica lesada.

Quanto às anomalias congénitas que produzem dor, como única ou primeira manifestação clínica, há que considerar os diferentes tipos de sinostose (barras ósseas) dos ossos do tarso; é mais comum e sintomática, a sinostose astragalo-calcaneana (ponte óssea ligando os dois ossos); o diagnóstico é imagiológico e pode exigir a ressecção cirúrgica.

Entre as osteocondroses que aparecem habitualmente no pé, há a referir a doença de Köhler e a doença de Sever. Em ambas, a dor é a queixa principal, habitualmente incómoda apenas na marcha, no apoio, ou à palpação local; no primeiro caso, situa-se no escafóide társico e no segundo, a nível do núcleo de ossificação da apófise posterior do calcâneo. O radiograma simples é suficiente para fazer o diagnóstico, sendo a imagem da estrutura óssea afectada idêntica nas diferentes fases da evolução da doença à das osteocondroses com outras localizações. A doença segue o curso natural até à cura, sendo o objectivo terapêutico minorar o esforço a que o respectivo segmento ósseo está sujeito, até à sua reconstituição espontânea e consequente normalização da sua capacidade de resistência.

Nos defeitos posturais que vulgarmente se observam no pé, a dor pode ser difusa, irradiando a todo o pé, ou localizar-se apenas numa região deste (antepé ou retropé) de acordo com o tipo de desequilíbrio verificado; está relacionada, não só com o peso da criança, como também com a bipedestação. É importante verificar, mediante a observação clínica, se estes pés mantêm a flexibilidade própria das idades jovens ou se, pelo contrário, existe rigidez à manipulação, com ou sem contractura reactiva da musculatura regional. Nesta última circunstância, há que investigar a presença de anomalia congénita do tipo da sinostose, ou de situação do foro neurológico.

Deformidades do pé

As deformidades do pé, dada a sua constituição anatómica complexa, podem ser difíceis de definir pela sua multiplicidade e interdependência mútua. Nesta perspectiva, faremos uma abordagem dos aspectos essenciais com aplicações práticas na clínica, apenas das três situações mais simples e evidentes: o pé valgo, o pé cavo e o pé boto.

Outras deformidades, como os metatarsus adductus (antepé desviado para dentro) ou o pé talo valgo (pé em dorsiflexão exagerada, com região dorsal tocando a face anterior da perna) são menos frequentes e importantes, pelo que nos limitamos a mencioná-las; geralmente relacionadas com má-posição intra-uterina, são evidentes no recém-nascido, temporárias, verificando-se na maioria das vezes correcção espontânea, embora possam necessitar de terapêutica, em regra incruenta.

Convém ainda salientar que todas estas deformidades implicam o parecer e orientação do ortopedista.

Pé valgo e pé cavo

O pé plano valgo, também denominado pé plano, é a mais frequente de todas as alterações da forma do pé; consiste num pé com ausência da arcada longitudinal interna, ou seja, o seu bordo interno assenta por completo no solo. (Figura 10-A)

Com significado patológico pouco definido, na maioria das vezes trata-se de uma situação irrelevante, podendo constituir até um estádio mais ou menos evidente do desenvolvimento normal da criança. Assim, nas crianças pequenas, desde o início da marcha até cerca dos três anos de idade, este tipo de pé é observado com muita frequência, podendo considerar-se normal nesta fase da vida. O pé mantém sua elasticidade e se o observamos com a criança suspensa, ou seja, sem estar em carga, desaparece e adquire a configuração habitual, com reaparecimento das respectivas arcadas. 

FIGURA 10. Representação esquemática de deformidades do pé: A) Pé plano; B) Pé cavo

O mesmo se verifica se pedimos ao doente para fazer marcha em “bicos dos pés”, o que traduz uma maior eficácia da musculatura actuante no pé.

No entanto, esta configuração de pé pode prolongar-se para além da idade referida e constituir o resultado de desvios axiais do respectivo membro, localizados a outros níveis, como por exemplo, anteversão exagerada do colo femoral, e/ou valgismo do joelho.

Convém ainda salientar que todas estas deformidades implicam o parecer e orientação do ortopedista.

No entanto, a persistência desta deformidade no final da infância e na adolescência já não se admite como normal, embora possa constituir uma característica orgânica individual, transmitida hereditariamente, permanecendo quase sempre assintomática e flexível ao longo da vida.

Nos pés mais rígidos será aconselhável investigar a sua causa que pode ser um defeito congénito do próprio pé (ex.: sinostose astrágalo-calcaneana, ou calcâneo-escafoideia), ou consequência de situações neurológicas em geral evidentes (ex.: paralisia cerebral, spina bifida, mielodisplasia, sequela de poliomielite, etc.).

As consequências deste tipo de defeito dependem da respectiva causa; contudo, nos pés planos flexíveis, não são habitualmente importantes. Para além da aparência inestética, da deformação e do desgaste do calçado, os pés planos flexíveis são assintomáticos, permanecendo indolores por muito tempo.

O pé cavo é um pé com curvatura plantar exagerada, sobretudo à custa da arcada longitudinal interna, mas também da arcada longitudinal externa nos casos mais graves. Como consequência, há encurtamento do comprimento do pé, proeminência da sua região dorsal, retracção da fascia plantar e dedos em garra. O apoio plantar passa então a fazer-se numa área mais restrita do que o normal (apenas no antepé e retropé) (Figura 10-B), provocando o rápido e persistente aparecimento de calosidades e dores, deformação do calçado e dificuldades na marcha.

O seu aparecimento e evolução são, em geral insidiosos, chamando-se a atenção para a necessidade de avaliação clínica precoce. Com efeito, não obstante, existirem formas idiopáticas, geralmente pouco acentuadas, o pé cavo deve ser sempre considerado patológico até prova em contrário, tornando-se imperioso investigar a sua causa, pela elevada probabilidade de constituir um sinal precoce de patologia neurológica evolutiva.

Pé boto

Também conhecido como pé torto na linguagem popular ou, na forma erudita, como pé equinovaro-aduto congénito, representa a mais frequente anomalia congénita do pé, sendo bilateral em 50% dos casos (com ou sem assimetria de gravidade). A sua etiopatogénese é desconhecida, mas admite-se que possa ser multifactorial (hereditária, postural intra-útero, neuromuscular, etc.).

Embora de magnitude variável, é sempre uma deformidade complexa, com um componente de equino-varo do retropé (posição relativa do calcâneo), supinação do médio-pé (planta do pé voltada para dentro), e aduto do antepé (eixo do antepé fazendo com o eixo do retropé um ângulo aberto para dentro). (Figura 11)

A posição anormal do pé, particularmente do tarso, leva a alterações dos correspondentes tecidos moles, espessamento dos ligamentos, retracções capsulares, atrofias musculares que, mantendo-se, impedem o normal desenvolvimento do esqueleto respectivo, com fixação e agravamento das deformidades.

FIGURA 11. Pés botos

As manifestações clínicas nos primeiros meses de vida resumem-se ao aspecto do pé e à escassa mobilidade dos seus segmentos; mais tarde, na idade da marcha, esta torna-se difícil, com o aparecimento de calosidades nas zonas de apoio, e dores.

O diagnóstico é fácil, requerendo apenas um simples e sumário exame objectivo da criança; mais difícil e importante será determinar a gravidade da situação, relacionada com a magnitude dos diferentes componentes da deformidade, e o grau de rigidez, sendo ambos os aspectos determinantes do sucesso do tratamento.

Os exames complementares não têm grande utilidade; apenas a ecografia tem interesse para o diagnóstico pré-natal, sendo possível detectar o pé boto a partir da 16ª semana de gestação. A importância deste diagnóstico deve-se ao facto de a deformidade poder estar associada a outras anomalias congénitas, alertando o clínico para a sua pesquisa. A radiologia convencional, ao permitir avaliar a posição relativa dos ossos do tarso, pode ser útil para controlar a evolução do tratamento e a necessidade de o modificar, recorrendo à cirurgia.

A terapêutica, de início sempre incruenta, deve ser iniciada precocemente, logo após o nascimento e executada pelo especialista. Consiste em sessões periódicas de manipulação do pé, seguidas de imobilização no máximo da correcção conseguida em cada sessão, até se obter pé plantígrado. Eventualmente, poderá ser necessário recorrer à cirurgia, não só dos tecidos moles (tendões, fáscias) como também óssea, embora esta só em fase final do crescimento. O resultado final depende, não só da precocidade do diagnóstico e da instituição imediata do tratamento adequado, como também do grau de deformidade e da flexibilidade do pé.

Importa ainda voltar a referir a associação desta deformidade com outras anomalias congénitas, nomeadamente com a displasia de desenvolvimento da anca, o que exige proceder sempre a exame cuidadoso doutras articulações em todos os casos de pé boto.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

PATOLOGIA REGIONAL ESPECÍFICA DO MEMBRO SUPERIOR

Importância do problema

Excluindo as doenças com compromisso geral do esqueleto e as situações localizadas ou regionais de natureza congénita, habitualmente raras (sinostose radiocubital com bloqueio da prono-supinação, luxação completa ou parcial da cabeça radial com proeminência posterior desta e restrição da mobilidade do cotovelo, as “mãos botas”, etc.), infecciosa e tumoral, pode dizer-se que a patologia deste segmento anatómico é dominada pelas situações de origem traumática e suas sequelas, as quais não serão abordadas por ultrapassarem o âmbito do livro.

Neste capítulo apenas será feita referência: 1) à chamada pronação dolorosa de Ombredanne ou simplesmente pronação dolorosa, por ser uma situação comum causando alguma perplexidade ao clínico menos habituado a lidar com patologia do esqueleto infantil; e 2) às osteocondroses.

Pronação dolorosa

Verifica-se nas crianças pequenas (até cerca dos 4-5 anos), ainda com grande elasticidade cápsulo-ligamentar e musculatura débil. Consiste numa subluxação da cabeça radial por distensão ou ruptura parcial do ligamento anular do rádio que se desloca sobre a cabeça deste, interpondo-se às superfícies articulares da cúpula cefálica radial e do côndilo umeral, bloqueando os movimentos. O mecanismo da lesão deve-se à tracção do membro, em extensão do cotovelo e pronação, como acontece quando os pais ou educadores levantam ou suspendem a criança pela mão, ou seja, o membro superior é submetido a um esticão brusco.

A sintomatologia resume-se a dor intensa e impotência funcional imediata, com o cotovelo bloqueado em extensão e pronação. O diagnóstico é fácil e a terapêutica também, embora seja aconselhável ser executada por especialista. A manobra de redução dessa subluxação consta da manipulação imediata, suave, do cotovelo, reproduzindo o movimento contrário ao que esteve na origem da lesão, ou seja, realizar simultaneamente a compressão da cúpula radial contra o côndilo umeral, a supinação e a flexão do cotovelo, mantendo este em repouso transitório (“braço ao peito” com o cotovelo em flexão a 90° e supinação completa).

O prognóstico costuma ser excelente, pelo que a sua importância não corresponde à intensidade das queixas nem ao sentimento de culpa do adulto, causador involuntário da situação.

Osteocondroses

Sob esta designação costuma considerar-se um conjunto de doenças caracterizadas pelo aparecimento de alterações necrótico-degenerativas, de natureza provavelmente isquémica, mais ou menos extensas e localizadas nos núcleos de ossificação de algumas epífises ou apófises; a causa é desconhecida, embora pareça relacionada com traumatismos repetidos. A doença evolui espontaneamente para a cura com revascularização da zona necrótica e reconstituição do tecido ósseo normal em tempo variável, mas habitualmente longo (meses ou até anos), dependendo da sua localização anatómica.

As mais importantes do ponto de vista clínico situam-se no membro inferior, pelo que as abordaremos com mais pormenor no capítulo seguinte. No entanto, podem também aparecer no membro superior, mas só muito raramente, localizando-se a nível do cotovelo e carpo e recebendo denominação diferente consoante o segmento ósseo atingido (doença de Panner – côndilo umeral; doença de Kienbock – no semilunar; doença de Burns – cabeça do cúbito).

A sintomatologia, dependendo da localização e do estádio de evolução da doença, é dominada pela dor, habitualmente moderada, e pela incapacidade funcional, mais ou menos intensa que lhe está associada. O diagnóstico baseia-se na clínica e na imagiologia, sendo suficiente o exame radiológico convencional, em dois planos perpendiculares. A imagem visualizada na radiografia simples corresponde ao estádio de evolução do processo patológico: de início, condensação óssea (atrofia e hipercalcificação⁄necrose), fragmentação dessa imagem (revascularização⁄início da reossificação); ulteriormente, normalização das características radiográficas da zona afectada, com ou sem alteração da sua morfologia (cura do processo, com ou sem deformidade residual).

O tratamento é sintomático (antiálgicos e/ou anti-inflamatórios), a que se associa o repouso ou descarga da zona afectada, nomeadamente em período de agudização das queixas dolorosas. O prognóstico é, em geral, excelente.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

DESVIOS AXIAIS DOS MEMBROS

Importância do problema

Os desvios axiais dos membros em idade pediátrica, embora verificáveis tanto nos membros superiores como nos inferiores, constituem nestes últimos uma situação frequentíssima e notória, preocupando os pais e os médicos assistentes; trata-se duma das causas mais frequentes de consulta em Ortopedia Pediátrica.

Os desvios axiais são menos aparentes e não têm um efeito estético tão marcado nos membros superiores, devido ao facto de estes não sustentarem o peso corporal e terem maior amplitude de movimentos, o que lhes permite assumir posturas compensatórias com maior facilidade. Além disso, contrariamente ao que acontece no membro inferior, os desvios axiais no membro superior considerados como patológicos, são quase sempre resultado de lesões prévias, particularmente de natureza traumática

Por estas razões, apenas serão abordados os desvios axiais ao nível dos membros inferiores, começando por alertar para o facto de as modificações do alinhamento com esta localização e durante os primeiros seis anos de vida, serem na sua grande maioria fisiológicas, pelo que são escassos os casos que necessitam de tratamento ortopédico.

Em primeiro lugar será conveniente distinguir as deformações dos joelhos em valgo/genu valgum (os joelhos aproximam-se da linha média e as pernas ficam divergentes, com um exagerado afastamento dos tornozelos), das deformações em varo/genu varum (joelhos afastados com os tornozelos em contacto) (Figura 1). Seguidamente, em função da idade da criança, da gravidade da deformidade, dos antecedentes pessoais e familiares, e da existência ou não de patologia sistémica relacionada, será tomada uma eventual decisão terapêutica.

FIGURA 1. Representação esquemática do desvio dos joelhos em valgo (A) e em varo (B)

Etiopatogénese

Os mecanismos que conduzem a desvios axiais dos membros inferiores no plano frontal são diferentes consoante o tipo de deformidade em valgo ou em varo, distinguindo-se os seguintes:

Fisiológico – mais frequente em ambos os casos de varo e valgo; como referido, o varo é observável entre o 1º e 2º ano de vida e o valgo entre o 2º e 6º ano de vida. Trata-se duma situação geralmente assintomática, simétrica, benigna, de resolução espontânea, que não precisa de tratamento.

Não fisiológico – resulta de alterações biomecânicas mantidas e progressivamente agravadas, que conduzem a um desequilíbrio de forças exercidas a nível do joelho com sobrecarga, seja do compartimento externo (valgo) ou interno (varo).

Joelho valgo

Distinguem-se dois tipos:

Idiopático – é mais frequente em adolescentes; coexiste geralmente com gonalgia anterior e interna, com circumduction gait (marcha com necessidade de um joelho “contornar” o outro) e, por vezes, com instabilidade patelo-femoral.

Trata-se duma situação habitualmente progressiva, que não regride espontaneamente e que pode requerer tratamento cirúrgico.

Secundário – mais frequente dos 3 aos 10 anos, habitualmente associado a doenças como raquitismo, artrite reumatóide, displasias ósseas, síndroma de Down, síndroma de Marfan, neurofibromatose, sequelas de fracturas, etc..

Joelho varo

Podem ser considerados também dois tipos:

Idiopático – trata-se de joelho varo persistente após o 2º ano de vida, com angulação significativa, mas que regride espontaneamente após 1-2 anos de evolução, mantendo-se as epífises sem alterações morfológicas (imagiologia normal). Existe ainda uma outra situação de joelho varo, a chamada doença de Blount (ou tíbia vara idiopática) que importa referir porque, apesar de rara, constitui uma deformidade progressiva, de causa desconhecida, caracterizada por crescimento deficiente e anormal da porção interna e posterior da epífise proximal da tíbia (prato tibial interno), com tradução imagiológica evidente. Pode surgir em qualquer idade (da infância à adolescência), dando origem a deformidades do joelho em varo, de grau variável, mas habitualmente grave e de difícil correcção.

Secundário – é mais frequente dos 3 aos 10 anos, e com causas semelhantes às do joelho valgo secundário, mas com alterações biomecânicas que afetam predominantemente o compartimento interno do joelho.

Avaliação clínica

O pediatra ou o clínico geral são habitualmente os primeiros médicos a observar o doente com este tipo de situação, competindo-lhes avaliá-la correctamente antes de encaminharem aquele para o ortopedista. Esta avaliação implicará proceder a história clínica completa (anamnese e observação), inquirindo essencialmente sobre os seguintes pontos: início das alterações e circunstâncias do seu aparecimento, sua progressão, antecedentes pessoais e familiares, queixas dolorosas locais associadas, índice de massa corporal, deformidade localizada/generalizada, hiperlaxidão ligamentar (deformidade que aumenta com a carga), joelhos que “roçam na marcha” (marcha em circundução), estabilidade e excursão da rótula, avaliação de eventuais desalinhamentos rotacionais do membro (anteversão e/ou torção femoral; rotação/torção da tíbia), etc..

Será ainda conveniente quantificar a importância do desvio, o que se faz executando-se algumas medições simples (diferentes consoante o desvio); por norma, com o doente em posição de pé (também denominada “em carga” ou “ortostatismo”) e com os pés paralelos entre si e perpendiculares ao plano frontal:

Joelho valgo – neste caso, a avaliação é feita medindo a distância intermaleolar (DIM), na posição referida e com os joelhos em contacto pela sua face interna (côndilos femorais internos). Consideram-se normais valores até aos 2 cm; ultrapassando esta medida distinguem-se três graus de valgismo – ligeiro (DIM entre 2-5 cm), moderado (DIM entre > 5-9 cm) e grave (DIM > 9 cm). De salientar que esta medição poderá não ser correcta, e a deformidade vir a ser sobreavaliada nos indivíduos obesos com coxas volumosas, devido à dificuldade em se conseguir o contacto da saliência dos côndilos femorais (face interna dos joelhos), devendo recorrer-se então à medição radiológica.

Joelho varo – neste caso, a avaliação do desvio faz-se medindo a distância entre a face interna de ambos os joelhos, com o doente na posição acima descrita, mas com os pés juntos (maléolos internos em contacto). O padrão considerado normal do varismo altera-se, como já foi referido, ao longo dos dois primeiros anos de vida, atenuando-se progressivamente até desaparecer por completo na fase adulta (o joelho adulto tem um discreto valgo, mais acentuado no sexo feminino).

Exames imagiológicos

Os exames imagiológicos destinados a caracterizar os desvios suspeitos como patológicos, podem ser solicitados pelo pediatra, até para facilitar uma eventual primeira observação pelo ortopedista. Eis os recomendados:

  • Radiografia extralonga, “em carga” (ortostatismo) dos membros inferiores;
  • Radiografias em dois planos, ântero-posterior e perfil, dos joelhos (para definição de eventuais alterações locais).

Acessoriamente e a decidir pelo ortopedista, poderão ser pedidos outros exames:

  • Radiografias das coxofemorais, ântero-posterior e perfis (se a radiografia extralonga detectar anomalias da fise femoral proximal);
  • Radiografia do punho esquerdo para determinação da idade óssea;
  • Estudo por tomografia axial computadorizada” (TAC) e por ressonância magnética (RM).

Exames laboratoriais

Em função do contexto clínico (por ex. síndromas plurimalformativas) estarão indicados exames laboratoriais diversos, como os relacionados com o metabolismo fosfo-cálcico. Salienta-se que o tipo de situações referidas poderá requerer o apoio multidisciplinar, nomeadamente da Endocrinologia e da Genética Médica.

Orientações para o clínico

Apesar de o joelho valgo constituir uma patologia muito frequente e habitualmente benigna, deverá ser solicitada a observação do ortopedista sempre que se verificar a sua associação a alguma das seguintes condições:

  • Deformidades múltiplas associadas;
  • Valgismo moderado-grave dos joelhos (DIM ou distância intermaleolar > 5 cm);
  • Sintomatologia dolorosa local;
  • Valgismo dos joelhos que não regrediu espontaneamente, em crianças de idade superior aos 6-7

No caso do joelho varo, sempre que persista para além dos dois anos de idade, há que encaminhar a criança à consulta de Ortopedia.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

TUMORES ÓSSEOS

Importância do problema

Considerando os diversos tipos de tumores do sistema músculo-esquelético, apenas será feita uma referência sucinta aos tumores primitivos dos ossos, omitindo os secundários ou metastáticos.

Os tumores primitivos dos ossos ocorrem predominantemente nas idades jovens (crianças, adolescentes e adultos jovens), correspondendo a cerca de 20% do total de tumores registados nestas idades.

A sua localização é variável, dependendo do tipo e natureza do tumor; contudo mostram uma certa preferência pelos ossos longos, e nestes, pela região epifisiometafisária das chamadas epífises “férteis” dos membros. Denominam-se assim aquelas epífises que contribuem mais para o crescimento longitudinal dos membros, considerando-se que no membro superior correspondem às da região proximal do braço e distal do antebraço e, no membro inferior, às da região distal da coxa e proximal da perna. Isto significa que estas lesões, no membro superior, mostram predilecção pela região do ombro e do punho, e no membro inferior pela região do joelho.

O osteossarcoma é o tumor maligno primário mais comum em idade pediátrica (> 10 anos), seguindo-se em frequência o sarcoma de Ewing. Este último ultrapassa o primeiro em frequência abaixo dos 10 anos, sendo que ambos surgem sobretudo na 2ª década de vida com relação semelhante quanto ao sexo (M/F) cerca de 1,5/1.

Classificação e características

Os tumores primitivos dividem-se em dois grandes grupos, benignos e malignos, com características e prognóstico completamente diferentes, sendo os primeiros muito mais frequentes do que os segundos, e mostrando estes uma prevalência que ronda os 10 por milhão de habitantes com < 18 anos/ano. A classificação usualmente adoptada é a histológica, dividindo-os em grupos de acordo com a natureza e grau de diferenciação das células originárias predominantes do tumor; assim, pode considerar-se que tumores, tanto benignos como malignos, podem ser provenientes do tecido ósseo, cartilagíneo, fibroso, da medula óssea, dos vasos, ou do mesênquima.

Os tumores benignos caracterizam-se por serem capsulados, terem um crescimento gradual e não invasivo das estruturas vizinhas, não recidivarem quando correctamente tratados, nem metastizarem, não mostrarem alterações citológicas de malignidade no exame anátomo-patológico do tecido tumoral, e terem habitualmente bom prognóstico.

Os tumores ósseos benignos classificam-se em: 1) tumores formadores de osso (osteoma osteóide, osteoblastoma); e 2) tumores formadores de cartilagem (osteocondroma, osteocondromatose múltipla, encondroma, encondromatose múltipla, condroblastoma e fibroma condromixóide). Os quistos ósseos são considerados lesões pseudotumorais.

Pelo contrário, os tumores malignos têm crescimento rápido, invasivo e destrutivo, com limites muito mal definidos, infiltram os tecidos vizinhos, e o respectivo exame anátomo-patológico revela atipias celulares evidentes; por outro lado, recidivam e metastizam sempre, aparecendo as metástases muito precocemente, donde se depreende que o prognóstico é sempre mau.

Tendo como referência o osteossarcoma e o sarcoma de Ewing, cumpre referir algumas características distintivas. Assim – Sarcoma de Ewing -> Célula de origem: célula primitiva neuroectodérmica; Biologia: activação de oncogenes EWS-FLI1, EWS-ERG, EWS-ATF1; Osteossarcoma -> Célula de origem osteoblasto; Biologia: alteração dos antioncogenes (RB e TP53).

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas dependem do tipo e natureza do tumor. Dum modo geral, a anamnese e a observação do doente, associadas à interpretação correcta dos exames imagiológicos adequados, são suficientes para se chegar a um diagnóstico provisório muito próximo do definitivo. Este exigirá ainda a identificação histológica do tumor a partir do material de biópsia, o que nem sempre é fácil pelas dificuldades de interpretação que muitas vezes se levantam.

Ainda como elementos orientadores do diagnóstico, e no que se refere ao exame clínico, podemos considerar a idade do doente (as lesões neoplásicas são raras antes dos cinco anos de vida), a sintomatologia geral (repercussão sobre o estado geral) e a local, destacando nesta a dor, a impotência funcional e a tumefacção.

A dor é o sintoma mais importante; sempre presente nos tumores malignos, mas não constante nos benignos, pode apresentar-se de forma peculiar, como a conhecida predominância nocturna no caso do osteoma osteóide, ou como fractura patológica num tumor que evolui silenciosamente até essa ocorrência. Importa ainda caracterizar, na dor, a sua natureza, se é espontânea ou provocada, a sua localização, evolução e condições que a exacerbam ou atenuam.

A impotência funcional está habitualmente associada à dor e constitui um sinal de defesa porque o movimento ou a contracção da musculatura regional a agrava; o seu significado patológico corresponde à compressão ou a infiltração e invasão dos tecidos vizinhos pela massa tumoral.

A tumefacção é geralmente um sinal mais tardio e a sua evidência depende da localização do tumor. Importa determinar a data do seu aparecimento e respectiva evolução, bem como os sinais associados (calor, rede vascular, repercussão articular, mobilidade anormal traduzindo a presença de fractura patológica, etc.).

Como nota orientadora para o médico que observa a criança em primeiro lugar, importa salientar o elevado nível de suspeição que deverá ter face a um quadro clínico com a sintomatologia referida, exigindo o encaminhamento atempado para centro especializado porque o êxito do tratamento e, consequentemente, o prognóstico, dependem sempre de um diagnóstico correcto e precoce.

Na actualidade já é possível utilizar biomarcadores, alguns, específicos para certos tipos de tumores, como acontece com o osteossarcoma. Tais biomarcadores permitem também avaliar o prognóstico. Como exemplo, citam-se, entre outros, a LDH, fosfatase alcalina, homocisteína, galectina-3, IGF-1 (factor de crescimento), VEGF (factor de crescimento endotelial vascular) e endostatina, moléculas identificadas pela metabolómica, micro RNA, células tumorais circulantes, etc..

Exames complementares

A avaliação laboratorial em geral é pouco informativa: poderá verificar-se elevação dos valores da lactato-desidrogenase e da fosfatase alcalina, relacionando-se, esta última, com a actividade osteoblástica, a qual poderá constituir, por sua vez, um marcador da resposta ao tratamento.

Quanto aos exames imagiológicos, a prioridade será dada à radiologia convencional cujos achados, na imensa maioria dos casos, permitem fazer a distinção entre lesões benignas e malignas. Assim, são indicadores de benignidade a integridade da cortical óssea, os limites nítidos da lesão, a ausência de reacção perióstica e o crescimento lento verificado nos exames sequenciais (Figura 1). Pelo contrário, no caso de a lesão ser maligna há interrupção irregular da cortical, bordos e contornos muito mal definidos, descolamento e/ou reacção perióstica, estrutura óssea anormal com destruição e/ou ossificação aberrante. (Figura 2)

FIGURA 1. Radiografia de tumor benigno da metáfise proximal da tíbia – cortical íntegra e regular, osteólise uniforme, sem reacção perióstica

FIGURA 2. Radiografia de tumor maligno do 1/3 distal do fémur – aumento regional do volume do osso, rotura irregular da cortical, zona de osteólise e osteocondensação irregulares e reacção perióstica a nível da zona de implantação da massa tumoral

Os exames subsequentes são a TAC e a RM, pela ordem que se achar mais conveniente face à situação clínica concreta, não esquecendo que no primeiro se visualiza mais o tecido ósseo, enquanto o segundo é mais útil na identificação dos tecidos moles, permitindo ambos caracterizar a lesão e avaliar o estádio evolutivo, ou seja, o grau de extensão da doença.

A cintigrafia terá interesse para detectar a localização de lesões de pequenas dimensões e a possibilidade de disseminação da doença. A biópsia é um exame que deverá ser sempre muito ponderado e discutido com o cirurgião e com o imagiologista de intervenção.

Tratamento e Prognóstico

No caso do osteossarcoma está indicada a quimioterapia associada a cirurgia. No sarcoma de Ewing procede-se a quimioterapia mais cirurgia associada a radioterapia.

O prognóstico quanto à vida e função nos tumores benignos é geralmente bom; há, porém, a referir a possibilidade (rara) de recidiva local em determinadas situações, mesmo quando correctamente tratadas, e os casos muito mais raros de degenerescência maligna ocorrida nos doentes já adultos, portadores de lesões previamente benignas, como as descritas na osteocondromatose múltipla (também denominada exostose múltipla hereditária).

Nos tumores malignos, o prognóstico quanto à vida e função é reservado ou mau. Porém, nos últimos quinze anos, a introdução de novos protocolos terapêuticos em doentes com esta patologia, têm resultado numa melhoria significativa das taxas de sobrevida, aos cinco anos. Tal facto, associado às novas técnicas de cirurgia conservadora do membro, tem conduzido a diminuição drástica da percentagem de doentes amputados (Parte XVII).

Considerando o osteossarcoma e os tumores da “família” Ewing, na ausência de metástases, é obtida cura da ordem de 60-70%. Nos casos com metástases (mais frequentemente pulmonares) a sobrevivência é < 20% no primeiro caso e ~ 20-30% no segundo caso.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

ARTRITE SÉPTICA

Definição e importância do problema

 A artrite séptica ou supurada é uma infecção do espaço articular que (na criança) resulta, na maioria das vezes, de disseminação hematogénica bacteriana.

Este tipo de patologia tem especial importância por duas razões essenciais: a gravidade clínica susceptível de interferir com o prognóstico funcional e por vezes vital do indivíduo afectado; e a significativa incidência anual, sendo de referir que em países ditos desenvolvidos são atingidas 10 crianças/ano em cada 100.000, números que incluem todas as articulações. Esta proporção aumenta em regiões quentes e húmidas e em populações com condições socioeconómicas precárias.

De acordo com diversos estudos, nos últimos anos tem-se assistido a um aumento da incidência de infecções graves por bactérias multirresistentes (MR), relevando-se mais uma vez a especial susceptibilidade das crianças com doença de células falciformes para este tipo de patologia osteoarticular.

Podendo surgir em qualquer idade, cerca de 30% dos casos ocorre antes dos 2 anos e 50% antes dos 3 anos. O joelho é a articulação mais frequentemente atingida depois dos 2 anos, e a anca antes dessa idade, nomeadamente no recém-nascido. As artrites do joelho e da anca correspondem a cerca de 85% de todos os casos de artrite em idade pediátrica.

Etiopatogénese

Várias são as vias pelas quais os agentes infecciosos podem atingir uma articulação:

  • Via hematogénica (é a mais frequente, verificando-se em mais de 80% dos casos);
  • Disseminação de osteomielite na proximidade;
  • Infecção periarticular;
  • Procedimentos diagnósticos ou terapêuticos invasivos (iatrogenia);
  • Feridas perfurantes.

Os germes bacterianos implicados na artrite séptica são os mesmos que provocam a osteomielite, salientando-se os seguintes agentes: S. aureus sensível ou resistente à meticilina, S. aureus produtor ou não de LPV e Kingella kingae. Refira-se que a doença de Lyme pode incluir no seu quadro clínico – forma tardia – a manifestação de artrite, e que a etiologia relacionável com o Haemophilus influenzae do tipo b e o S. pneumoniae tem diminuído com a aplicação das respectivas vacinas a número cada vez maior de crianças.

Por outro lado, conforme o “terreno” clínico, o tipo de agente microbiano pode divergir dos mais frequentes. Assim, por exemplo, em situações de drepanocitose, haverá alta probabilidade de estar em causa o S. pneumoniae; em casos de síndroma de imunossupressão serão os Gram-negativos os agentes mais prováveis; nas feridas penetrantes do pé ou de artrite de inoculação, serão, respectivamente, Pseudomonas ou S. aureus e Gram-negativos e anaeróbios; e nos adolescentes sexualmente activos a N. Gonorrhoeae (doença gonocócica). Esta última situação, hoje mais rara, é acompanhada, na sua fase precoce, de exantema febril e compromisso poliarticular simétrico, designando-se este conjunto de sinais por síndroma artrite-dermatite (artrite com líquido sinovial estéril apesar de bacteriémia comprovada). Na fase tardia surge compromisso monoarticular com isolamento frequente do germe microbiano em causa.

Num estudo realizado em 2018 no Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, em 18 doentes com doença de células falciformes associada a osteomielite aguda ou crónica e osteoartrite, foram isolados (em 8 casos) os seguintes agentes: S. aureus metilino-sensível, Serratia marcescens multirresistente/MR, Enterococcus faecium MR, Enterobacter cloacae MR, Pseudomonas aeruginosa MR, e Klebsiella pneumoniae MR. No grupo de doentes com infecção por bactérias MR, verificou-se predomínio da proveniência de países PALOP.

A presença de bactérias (ou dos seus metabolitos) no interior da articulação tem as seguintes repercussões.

Consequências histoquímicas:

  • Condrólise (por aumento local das enzimas de origem bacteriana);
  • Inibição da regeneração cartilagínea (pela redução da produção de líquido sinovial, pela redução da síntese dos proteoglicanos e pela imobilização da própria articulação).

Consequências mecânicas:

  • Compressão vascular;
  • Luxação articular ou epifisiólise, nos casos particularmente

Manifestações clínicas

Após a realização da anamnese, tendo o cuidado de averiguar as circunstâncias em que surgiu a sintomatologia presente, quando se observa uma criança com suspeita de artrite séptica, há que ter em conta um conjunto de sinais gerais e locais.

Sinais gerais: hipertermia, anorexia, irritabilidade, prostração; no conjunto, estes sinais indicam um estado geral comprometido, com franca aparência de criança em “estado de doença”. Nos recém-nascidos, deve-se dar particular atenção a manifestações clínicas mais discretas, ou incaracterísticas como a pseudoparalisia de um membro que, por vezes, constitui o único achado positivo nestas situações de artrite.

Sinais locais: perda dos contornos ósseos da articulação, aumento da temperatura local e rubor, derrame articular com onda de choque positiva (no caso do joelho, pode haver acumulação de líquido até 200 cc); limitação dolorosa da mobilidade.

De acordo com o período evolutivo, a artrite séptica pode classificar-se em aguda (1ª semana), subaguda (2ª-4ª semana) e crónica (mais de 4 semanas de evolução).

Exames complementares

As análises de sangue (hemograma, velocidade de sedimentação e doseamento da proteína C reactiva e procalcitonina) revelam, em geral, leucocitose e elevação dos restantes parâmetros. No entanto, a punção articular (artrocentese), com aspiração e/ou lavagem articular, seguida de análise do líquido articular, constituem os procedimentos de eleição para o diagnóstico da artrite séptica, que deverão ser efectuados em ambiente estéril (bloco operatório) e por quem tenha experiência.

A hemocultura e o exame cultural do líquido articular são positivos em cerca de 50-60% dos casos. No entanto, devido ao efeito bacteriostático do líquido sinovial, o referido exame cultural do aspirado articular poderá ser negativo, mesmo no caso de ser purulento.

Na adolescência, o esclarecimento etiológico da artrite implica a exploração da existência de N. gonorrhoeae (exame directo e cultural) em vários locais do organismo, como faringe, recto, uretra e colo do útero.

O exame radiológico convencional nas fases iniciais do processo pode evidenciar alterações: acentuação da opacidade correspondente aos tecidos moles periarticulares (nomeadamente numa articulação profunda como a coxofemoral), aumento do espaço articular (indicativo de presença de derrame intra-articular) e rarefação óssea epifisária e metafisária.

Nas fases tardias da artrite surgem já sinais evidentes da natureza destrutiva do processo infeccioso, como a diminuição e irregularidade marcadas da interlinha articular, deformidades das epífises e metáfises correspondentes, alterações imagiológicas do respectivo tecido ósseo (osteorrarefacção e osteocondensação) e perda mais ou menos completa do contacto entre as superfícies articulares (subluxação ou luxação).

Quanto aos restantes exames imagiológicos, a ecografia tem interesse para a detecção e avaliação do derrame articular (particularmente na coxofemoral – articulação de difícil acesso à exploração clínica pelo volume considerável de tecidos moles envolventes); a cintigrafia permite excluir a osteomielite (através da marcação de leucócitos); a tomografia axial computadorizada (TAC), ideal para avaliar as alterações do tecido ósseo (extensão do processo destrutivo e a presença de sequestros – com o inconveniente da elevada radiação a que o doente fica exposto), foi suplantada pela RM, exame elucidativo na detecção de alterações dos tecidos moles, permitindo avaliar o grau de destruição da cartilagem e distinguir a artrite do abcesso profundo e da celulite.

Diagnóstico diferencial

Os parâmetros clínicos, laboratoriais e imagiológicos que acabámos de enunciar não são exclusivos da artrite séptica, para o diagnóstico da qual se exige o isolamento do germe no líquido articular. No Quadro 1 é indicado um conjunto de situações clínicas que importa considerar no diagnóstico diferencial da artrite séptica.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial da artrite séptica

    • Sinovite transitória
    • Osteomielite aguda
    • Bursite supurada
    • Celulite periarticular
    • Miosite
    • Traumatismo
    • Artrite reumatóide
    • Fascite
    • Artrite não supurada
    • Febre reumática
    • Doença de Lyme
    • Abcesso do psoas
    • Doença autoimune
    • Doenças acompanhadas de compromisso articular (por ex. Púrpura de Henoch-Schönlein, Doença de Crohn, Doença de Kawasaki)

Tratamento

O tratamento antimicrobiano inicial da artrite séptica baseia-se na idade, considerando a probabilidade do germe provavelmente envolvido, e o resultado da coloração Gram do líquido articular aspirado. Refira-se que antes do início deste tratamento, deverá ser feita a tentativa de isolamento do germe em causa, o que é viável apenas em centro especializado.

Conhecendo o germe, estará indicado o esquema de administração de antibióticos por via endovenosa que se descreve a seguir.

No recém-nascido e lactente com menos de 2 meses:

  • Streptococcus do grupo B: ampicilina + aminoglicosídeo;
  • S. aureus: oxacilina, flucloxacilina ou vancomicina;
  • Bacilos Gram-negativos aeróbios (Klebsiella pneumoniae, E. coli): cefotaxima ou ceftriaxona + aminoglicosídeo ou amoxicilina;

Em crianças maiores:

  • S. aureus: mesmo esquema
  • S. pneumoniae: penicilina G ou cefotaxima ou ceftriaxona ou vancomicina (conforme a respectiva sensibilidade);
  • Streptococcus do grupo A: penicilina G ou amoxicilina ou cefotaxima ou ceftriaxona;
  • Neisseria gonorrhoeae: ceftriaxona;
  • Hemophilus influenza do tipo b: cefuroxima ou cefotaxima ou ceftriaxona;
  • Kingella kingae: amoxicilina ou

Sobre a bactéria Kingella Kingae, germe emergente descrito por Elizabeth King na década de 60 (daí o seu nome), importa salientar que, devido à melhoria dos métodos de cultura, demonstrou-se que é causa de mais de metade das artrites sépticas nalgumas series.

A duração do tratamento depende da evolução clínico-laboratorial e do tempo decorrido entre o início dos sintomas e o diagnóstico. No caso do S. aureus, o tratamento deve durar, pelo menos, três semanas. Dependendo da idade do doente e da evolução clínica da situação, poderá passar-se a tratamento por via oral.

A imobilização, com ou sem tracção, dependendo neste caso da articulação atingida, deverá fazer-se na fase inicial na posição de maior capacidade articular, tendo como objectivos, não só o repouso do segmento articular (facilitando a resposta anti-inflamatória dos tecidos), como também a diminuição da dor e do espasmo muscular. Na evolução mais tardia, e dependendo da resposta ao tratamento médico instituído, estas medidas inserem-se num programa de reabilitção geral da articulação, contrariando as posições viciosas e a recuperação útil da mobilidade articular.

Não havendo resposta clínica favorável num relativo curto espaço de tempo (não mais de 48h), a criança deverá ser encaminhada para centro especializado, a fim de ser reavaliada e se proceder ao tratamento cirúrgico adequado.

Prognóstico

Pode considerar-se bom quanto à vida e favorável quanto à função articular se o diagnóstico for precoce e o tratamento também precocemente iniciado e adequado. Nos recém-nascidos e lactentes, particularmente se se verificar osteomielite concomitante, já o prognóstico será mais reservado, não sendo possível de imediato avaliar o grau de compromisso do crescimento que irá resultar.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

OSTEOMIELITE

Definição e importância do problema

A osteomielite é uma infecção óssea frequentemente causada pela colonização e proliferação de germes bacterianos, e mais raramente fungos e vírus, atingindo todos os elementos constituintes do osso. De acordo com a evolução clínica distinguem-se as formas aguda e crónica; nas crianças é típica da primeira a chamada osteomielite hematogénica; na forma crónica distinguem-se dois tipos: a osteomielite crónica ab initio, sem fase aguda prévia – denominada abcesso de Brodie; e a crónica, como evolução de uma forma aguda precedente.

A osteomielite aguda surge com uma incidência de cerca de 1 / 5.000 crianças com idade inferior a 13 anos; metade desta relação verifica-se em idades inferiores a 5 anos (cerca de um terço com idades inferiores a 2 anos). Predomina no sexo masculino na razão de 2,5 / 1.

Neste capítulo é dada ênfase à osteomielite aguda hematogénica.

Etiopatogénese

Maioritariamente provocada por Staphylococcus aureus (sensível ou resistente à meticilina), afecta recém-nascidos, crianças e adolescentes, sendo cerca de duas vezes mais frequente do que a artrite séptica. Certas estirpes de S. aureus (que produzem uma toxina: leucocidina de Panton e Valentine ou LPV), estão associadas a formas graves de osteomielite e artrite. Tais estirpes são geralmente sensíveis à meticilina. Nas infecções adquiridas na comunidade existe maior probabilidade de se verificar a comparticipação de estirpes de S. aureus sensível à meticilina.

Outros germes poderão estar implicados como Kingella kingae (bacilo Gram-negativo cada vez mais frequente abaixo dos 5 anos, nalguns centros com maior incidência que o S. aureus), Streptococcus do grupo A, Salmonella (sobretudo em casos de drepanocitose), espécies Candida e bactérias Gram-negativas (sobretudo em infecções nosocomiais), Streptococcus do grupo B, Streptococcus pneumoniae e Treponema pallidum (sobretudo em recém-nascidos). Haemophilus influenzae do tipo b é hoje menos frequentemente implicado devido à imunização realizada a partir da idade dos 2 meses.

Os microrganismos atingem o osso essencialmente de duas formas: 1) disseminação hematogénica a partir de foco infeccioso vizinho; ou à distância (pele, amígdala, ouvido médio, etc.) que corresponde à forma mais frequente em crianças e lactentes; 2) inoculação directa na sequência, por exemplo, de acto cirúrgico, procedimento invasivo ou lesão traumática.

O microrganismo, atingindo o tecido ósseo, localiza-se habitualmente ao nível das metáfises dos ossos longos.

Esta localização explica-se pelas características regionais da própria rede vascular intra-óssea, derivada da artéria nutritiva do osso; tal rede é constituída por ansas longas, dilatadas, de paredes muito finas, responsável pela diminuição da velocidade circulatória, o que favorece a implantação e multiplicação dos germes com formação de um microabcesso. Com a antibioticoterapia precoce e em dose correcta, a situação não ultrapassa normalmente esta fase; se tal não acontecer, a lesão evolui e o material purulento difunde-se rapidamente através dos canais de Havers, progredindo para a cortical (abcesso subperióstico) e para o canal medular, com necrose isquémica do tecido ósseo perifocal e a possibilidade de formação de sequestros (fragmentos de osso necrosado) (Figura 1). Numa fase ainda mais avançada do processo infeccioso, o abcesso subperióstico pode perfurar os tecidos moles interpostos e fistulizar, com drenagem espontânea de pus para o exterior.

Se a metáfise onde ocorrem estas transformações é intra-articular, ou seja, se faz parte da extremidade óssea articular cuja respectiva cápsula se insere abaixo da cartilagem de conjugação, como acontece a nível da extremidade superior do fémur e da extremidade proximal do rádio, a perfuração do abcesso subperióstico faz-se para dentro da articulação, dando origem a uma artrite séptica. No caso do chamado abcesso de Brodie ou osteomielite crónica ab initio, a situação não evolui com a exuberância acima referida; por aumento da resistência do hospedeiro e/ou virulência moderada do germe, o organismo consegue delimitar o processo, conferindo-lhe características de cronicidade, sendo escassos ou moderados os sinais clínicos e imagiológicos.

 

A – Formação metafisária de microabcesso com pus e osteólise focal;
B – Progressão do pus para a periferia, rotura do periósteo (abcesso subperióstico) e reacção periostal em “casca de cebola ” ;
C – Ossificação periostal, osteólise irregular, necrose óssea e formação do sequestro.

FIGURA 1. Representação esquemática da evolução de um foco de osteomielite aguda

Manifestações clínicas

 O quadro clínico, que pode variar com a idade, é caracterizado habitualmente pelo início brusco, com dor intensa, metafisária, exacerbada à mínima pressão local, acompanhando-se de febre elevada e alteração do estado geral. Com a difusão da infecção verifica-se edema do segmento do membro afectado e marcha claudicante no caso de localização. Nos recém-nascidos podem surgir sinais sistémicos e quadro de pseudoparalisia ou imobilidade do membro, explicável pela dor.

Nas formas provocadas por S. aureus LPV o quadro clínico integra formas invasivas, sistémicas com choque e possibilidade de fascite e miosite necrosantes e ainda trombose séptica profunda e pneumonia.

Os ossos mais frequentemente afectados são o úmero, a tíbia e o fémur (70% a 75% dos casos). As infecções dos pequenos ossos das mãos e dos ossos achatados, no conjunto, surgem em 25 a 30% dos casos.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da situação clínica com os sinais atrás descritos, em função de determinadas localizações, deve fazer-se, essencialmente, com artrite infecciosa, enfarte ósseo (no contexto da drepanocitose), celulite, fascite, discite, artrite reumatóide e neoplasia maligna óssea. Relativamente a esta última, cabe realçar, sobretudo nas crianças a partir dos cinco anos, o sarcoma de Ewing que, nas fases iniciais, tem um comportamento clínico e imagiológico muito semelhante.

Exames complementares

O hemograma pode revelar leucocitose com neutrofilia, por vezes acompanhada de aparecimento de neutrófilos imaturos no sangue periférico. A proteína C reactiva (PCR), a procalcitonina (PCT) e a velocidade de sedimentação com valores elevados revelam, em geral, sensibilidade para o diagnóstico e baixa especificidade; refira-se, no entanto, a importância da sua determinação seriada, a ponderar caso a caso para valorizar a situação; a descida dos valores da PCR constitui um dos critérios de evolução favorável, uma vez iniciado o tratamento antimicrobiano.

Nas formas causadas por S. aureus LPV é frequente leucopénia inicial.

A hemocultura é positiva em cerca de 30 a 60% dos casos.

Nas fases iniciais do processo infeccioso, o estudo radiográfico simples não revela alterações; em geral, somente a partir de duas a três semanas de evolução, são detectados os primeiros sinais anómalos – descolamento/elevação inicial e, ulteriormente, espessamento do mesmo periósteo (em estratos sobrepostos e concêntricos, correspondendo à descrição clássica da imagem em casca de cebola), associado a zonas de osteocondensação e osteólise metafisárias, com padrão desigual.

Mais tarde, no caso de a infecção prosseguir sem tratamento ou com tratamento inadequado, intensificam-se as imagens descritas a que se associam sinais de necrose/osteólise irregular. Como resultado da necrose, nas situações de processo crónico, formam-se os chamados sequestros ou fragmentos de osso esclerosado, não vascularizado que se traduz na radiografia simples por uma imagem de condensação cálcica, irregular, separada do osso adjacente. (Figura 2)

O diagnóstico inicial é essencialmente clínico, mas a partir das primeiras 48h de evolução, há a possibilidade de ser necessário o recurso à cintigrafia óssea simples ou com leucócitos marcados com Gálio, para indicar ou excluir a etiologia infecciosa.

FIGURA 2. Radiografia dos ossos do antebraço de uma criança com osteomielite crónica – reacção perióstica já ossificada, com consequente dismorfia e aumento do volume dos ossos, englobando sequestro bem visível no seu interior

A ressonância magnética (RM) representa para muitos autores a melhor prova de imagem para a osteomielite e artrite séptica. A ecografia tem interesse para evidenciar abcessos subperiósticos ou das partes moles sem que a sua normalidade exclua o diagnóstico. A TAC caiu em desuso pela excessiva radiação.

Tratamento

A osteomielite deve ser reconhecida e tratada adequada e precocemente, pois só assim se podem evitar (ou atenuar) as suas graves complicações.

Para além das medidas gerais de imobilização do membro e repouso em função da idade da criança, a escolha da antibioticoterapia inicial (empírica) antes do isolamento do agente deve basear-se na probabilidade do germe possivelmente em causa tendo em conta o contexto clínico (por ex. infecção adquirida na comunidade ou hospitalar), doenças associadas e a idade da criança.

Relativamente ao tratamento antimicrobiano por via IV existem diversos esquemas:

  • No recém-nascido e lactente: antibiótico antiestafilocócico (flucloxacilina ou vancomicina) associado a aminoglicosídeo ou cefalosporina de largo espectro de modo a abranger os germes gram-negativos; após isolamento do germe, deve(m) ser escolhido(s) o(s) antibiótico(s) mais adequado(s). As doses (por via IV) devem ser iguais às utilizadas para o tratamento da septicémia e da meningite;
  • Noutras idades: flucloxacilina ou clindamicina; nos doentes com drepanocitose a antibioticoterapia inicial deverá incluir a cefotaxima ou a ceftriaxona, com actividade anti-Salmonella.

Após isolamento do agente (antibioticoterapia dirigida), com esquema ponderado em função do contexto clínico de cada caso:

  • se S. aureus meticilino-sensível está indicado o seguinte esquema: flucloxacilina ou amoxicilina/ácido clavulânico, ou clindamicina;
  • se S. aureus meticilino-resistente: vancomicina + rifampicina;
  • no caso de Kingella kingae: amoxicilina ou cefotaxima;
  • se Streptococcus A: amoxicilina ou cefotaxima ou ceftriaxona;
  • se Streptococcus pneumoniae: amoxicilina ou cefotaxima ou ceftriaxona;
  • se S. aureus LPV: cefuroxima ou amoxicilina/ácido clavulânico + aminoglicosídeo + clindamicina ou rifampicina.

A duração do tratamento deve oscilar entre 4 a 6 semanas; de acordo com a evolução e a idade, a terapêutica por via endovenosa pode ser continuada por via oral desde que a mesma seja exequível. Em geral, verifica-se resposta favorável (clínica e laboratorial) à antibioticoterapia endovenosa ao cabo de 48-72 horas; se tal não acontecer estará indicada a drenagem cirúrgica/descompressão que, nesta fase inicial e na maioria dos casos, consiste numa intervenção simples, com perfurações múltiplas com broca fina, da zona metafisária atingida.

A drenagem cirúrgica está também indicada nos casos de compromisso da articulação da anca ou de compressão vertebral da espinhal medula.

Nota: A situação clínica poderá acompanhar-se de choque e/ou sépsis, aplicando-se os procedimentos descritos em capítulos próprios.

Prognóstico

Nas situações de osteomielite submetidas a tratamento precoce e adequado o prognóstico é favorável; o mesmo é mais reservado em recém-nascidos e lactentes com compromisso da anca e ombro. Poderá surgir recorrência em cerca de 5% dos casos, considerados todos os grupos etários. Como complicações referem-se as relacionadas com a perda do tecido ósseo e as deformidades mais ou menos acentuadas, resultantes do compromisso do crescimento ósseo local.

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147

INTRODUÇÃO À ORTOPEDIA PEDIÁTRICA

Conceitos fundamentais

Etimologicamente e tal como foi escrito pela primeira vez por Nicolas Andry em meados do século XVIII, no título de um tratado que escreveu sobre a correcção das deformidades na criança, Ortopedia significa: “arte de corrigir, nas crianças, as deformidades do corpo”. Rapidamente, porém, estendeu-se este termo ao estudo e tratamento de outros tipos de patologia com repercussão dominante sobre o esqueleto, sem distinção da idade do doente, e generalizou-se a partir do final do século XIX a toda a patologia do aparelho locomotor. Na actualidade, embora a denominação deste ramo da Medicina se tenha mantido inalterada, traduz um âmbito muito mais amplo, podendo-se definir, de forma abreviada, e de acordo com a Academia Americana de Cirurgia Ortopédica, como “a especialidade que compreende o diagnóstico, tratamento, reabilitação e prevenção das lesões e doenças do sistema músculo-esquelético”.

Este sistema músculo-esquelético desempenha basicamente três tipos de funções primordiais: a de depósito e reserva de elementos indispensáveis à vida do organismo, de suporte e protecção de estruturas nobres importantes, e a de protagonista na postura e na mobilidade dos diferentes segmentos anatómicos em que habitualmente dividimos o corpo humano.

Em virtude desta sua última função, cumpre um papel fundamental na locomoção e, através dela, na vida de relação do indivíduo de qualquer idade, contribuindo na criança, de forma secundária mas determinante, para o seu desenvolvimento.

Devido às particularidades anátomo-fisiológicas do esqueleto da criança e adolescentes que os tornam distintos do adulto, adquire nessas idades o estatuto de sector especializado – a Ortopedia Pediátrica – com diferenciação e individualidade próprias dentro da actividade ortopédica geral, constituindo o objectivo temático da presente Parte deste Tratado.

Entre as referidas particularidades, a mais importante e típica destas idades será o crescimento, como capacidade intrínseca e única do esqueleto infantil, desde a origem, para aumentar as suas dimensões e modelar a sua morfologia até assumir por completo, no final da adolescência, as características do esqueleto do adulto.

Este crescimento, apesar das variações de velocidade com que se efectua, dependentes, entre outras circunstâncias, da idade cronológica da criança e da região anatómica considerada, realiza-se de forma permanente, desde o aparecimento do esboço ósteo-articular primitivo, cerca da oitava semana da gestação, até à completa maturidade esquelética; por isso, o crescimento representa um factor condicionante básico de toda a patologia ortopédica na idade pediátrica.

Assim, face a determinada situação patológica ortopédica, tratando-se de um organismo em crescimento e desenvolvimento, às alterações primárias decorrentes da própria lesão músculo-esquelética, há que associar sempre uma avaliação do potencial de crescimento remanescente no segmento anatómico afectado, porque dele depende a magnitude e o tipo das alterações secundárias resultantes da referida lesão. Este potencial tanto pode actuar em desfavor como em benefício do doente, o que significa a possibilidade de originar e agravar deformidades, ou de as prevenir e corrigir se, pelo contrário, for bem aproveitado e conduzido.

A ambivalência deste factor dá relevância a uma outra característica importante e bem visível da Ortopedia Pediátrica, na sua vertente terapêutica; referimo-nos à prevenção das alterações ou deformidades do crescimento. Como é evidente, esta prevenção (que, em determinadas circunstâncias poderá ser possível na fase pré-natal), será sempre muito mais fácil de executar e com resultados mais gratificantes do que a correcção das deformidades, uma vez estabelecidas.

Ainda no que se refere ao tratamento destas situações, seja ele preventivo ou curativo, será conveniente salientar a necessidade de o equacionar sempre também numa perspectiva de longo prazo, para a eventualidade de futuras exigências terapêuticas adicionais na idade adulta que podem ficar comprometidas se ignorarmos ou minimizarmos esta condição.

Na presente Parte optou-se por uma abordagem sucinta das situações mais comuns que afectam o sistema músculo-esquelético, dividindo-a em dois sectores. No primeiro faremos algumas considerações sumárias sobre factores de ordem geral, relativos às características do esqueleto da criança e à sintomatologia habitual da sua patologia, para, no segundo sector, subdividido em duas secções, nos referirmos à patologia não traumática e traumática deste grupo etário. Na impossibilidade evidente de nos alongarmos nestas considerações, tivémos como objectivos essenciais transmitir os aspectos práticos que permitam chegar ao diagnóstico correcto da situação e a uma avaliação das suas consequências, proporcionar a informação básica relativa à terapêutica adequada, e prover orientações para o encaminhamento atempado dos doentes para o especialista.

Considerações gerais sobre semiologia

O esqueleto na idade pediátrica distingue-se do esqueleto do adulto, conforme já dissémos, por apresentar um determinado número de características que o individualizam no seu comportamento não só fisiológico, habitual, como também na forma como responde às agressões que o atingem. As mais importantes são: a sua maior elasticidade, uma grande capacidade de remodelação, a presença de um periósteo espesso e a existência das cartilagens de crescimento, nomeadamente das chamadas cartilagens fisárias, de conjugação ou simplesmente fises.

Se as primeiras lhe permitem ter uma maior plasticidade, adaptando-se melhor às forças a que se encontra sujeito, mantendo ou readquirindo a configuração que lhe é própria, a espessura do periósteo, além de constituir um invólucro robusto do tecido ósseo subjacente, contribui, pela sua grande capacidade de regeneração óssea, juntamente com as cartilagens de crescimento, para o aumento gradual das dimensões e forma da peça óssea correspondente. Nos ossos longos, protagonistas do crescimento do esqueleto na sua dimensão mais aparente, ou seja, em comprimento, entre as distintas cartilagens de crescimento existentes, as mais importantes do ponto de vista fisiopatológico e clínico, são as chamadas cartilagens de conjugação. Trata-se de estruturas com alto nível de diferenciação histológica e funcional, responsáveis pelo crescimento longitudinal do osso, localizadas nas respectivas metáfises e interpostas no tecido ósseo; aquelas constituem, pela sua natureza cartilagínea, um segmento de menor resistência mecânica, susceptível de se fracturar ou descolar do tecido ósseo subjacente, dando assim origem a transtornos do crescimento, de gravidade variável. Se, como dissémos, as podemos considerar estruturas frágeis do ponto de vista mecânico, por outro lado, ao estarem interpostas no tecido ósseo desta zona anatómica dos ossos longos, servem habitualmente de barreira à expansão de lesões de natureza infecciosa ou tumoral localizadas na sua vizinhança.

As referidas características do esqueleto infantil, cujo potencial é máximo à nascença, vão-se atenuando gradualmente com a idade, acabando por desaparecer no final da adolescência, quando o indivíduo atinge a idade adulta.

Passando agora à abordagem dos aspectos semiológicos revelados por um exame clínico adequado, importa considerar que, se a qualidade deste exame é fundamental na prática clínica de qualquer especialidade, na Ortopedia tem uma importância capital porque, com frequência, dá-nos de imediato o diagnóstico, ou para ele nos orienta, conseguindo-se chegar a uma conclusão acertada mediante o recurso a poucos e simples exames complementares. Na Ortopedia Pediátrica, embora esta característica se mantenha, ao abranger doentes numa faixa etária em que se produzem profundas transformações orgânicas e comportamentais, esse exame assume aspectos particulares e impõe condicionalismos a que devemos atender.

Assim, na observação clínica de uma criança pequena, quase sempre irrequieta ou amedrontada, não é possível aplicar a metodologia habitual, longa e exaustiva, utilizada no exame do adulto.

Requerem-se por isso, da parte do médico, imaginação e experiência para saber seleccionar rapidamente, a partir da história, o conjunto de manobras exploratórias, de execução simples e breve, adequadas à detecção da causa das queixas actuais.

Por outro lado, é preciso saber que a sintomatologia de determinadas situações patológicas nem sempre se revela de forma constante no decurso das várias etapas do crescimento; por exemplo, as infecções dos discos intervertebrais (discites) na criança pequena podem manifestar-se inicialmente por uma incapacidade para a marcha; mais tarde, apenas por alterações do estado geral; e, na adolescência, por dor local na coluna vertebral. Portanto, o exame clínico deverá ser realizado tendo sempre em conta, não só a suspeita da patologia em causa, como também a idade do doente.

Reportando-nos agora apenas aos sinais e sintomas locais das afecções ortopédicas, e abstraindo dos sintomas gerais eventualmente associados, são três os achados semiológicos principais, básicos, habitualmente presentes neste tipo de situações: dor, deformidade e impotência funcional. É porém evidente que em Pediatria, a comprovação exacta do predomínio relativo de qualquer um deles será muito variável, dependendo não só do tipo da doença e sua fase de evolução, como também até da capacidade de avaliação e comunicação das queixas por parte do próprio doente, o que estará em relação directa com a idade e respectivo desenvolvimento neuropsíquico. Será, por isso, muito diferente a maneira como uma criança pequena, outra em idade escolar, e um adolescente, manifestam a presença e intensidade de sintomas, competindo ao médico a responsabilidade e o engenho necessários à sua adequada caracterização.

A dor é um sintoma importante a valorizar devidamente porque em Ortopedia Pediátrica e, contrariamente ao que se passa no adulto, tem uma causa orgânica em mais de 80% dos casos. Porém, na criança pequena, incapaz de se exprimir de forma adequada, este sintoma manifesta-se muitas vezes apenas pelo choro mais ou menos contínuo ou intenso, aumentando com a tentativa de mobilização da parte afectada, e na recusa em mobilizar ou utilizar o segmento anatómico do membro atingido pela lesão. Na criança mais velha e no adolescente, já será possível e obrigatório investigar a localização exacta da dor e sua eventual irradiação.

A sua duração e natureza, bem como as circunstâncias que determinaram o seu aparecimento e as que a aliviam ou a agravam, interferindo ou não com o sono (esclarecendo-nos sobre a sua intensidade e permanência), são outros tantos aspectos que interessa averiguar, por serem orientadores de um possível diagnóstico. Assim, por exemplo, uma dor persistente, sem causa aparente, não muito intensa, localizada na zona metafisária e prolongando-se ao longo de semanas, pode ser sugestiva de lesão tumoral. A dor aguda, intensa, pulsátil, justa-epifisária ou articular faz suspeitar de lesão inflamatória ou infecciosa.

Quanto à deformidade, tomada no sentido lato de alteração da forma ou da aparência habitual, tanto dos membros como do tronco (ou de qualquer um dos seus segmentos anatómicos), é necessário sublinhar que a criança se adapta facilmente à mesma, contrariamente ao que se passa no adulto, não lhe causando em geral grande limitação funcional.

Os pais são os primeiros a detectá-la e a fornecerem toda a informação desejada, mas é importante caracterizar bem o que, neste âmbito, se entende por patológico, principalmente no caso de este tipo de queixas surgir isolado. Com grande frequência os pais recorrem ao médico porque descobriram no filho o que, no seu entender, consideram ser deformidades, esperando daquele a confirmação da anomalia e exigindo a imediata actuação terapêutica. Acontece, porém, que na maioria dos casos, os invocados problemas não passam de situações sem qualquer significado patológico, traduzindo variantes da normalidade que se corrigem muitas vezes espontaneamente durante o desenvolvimento subsequente da criança.

Haverá, por isso, que investigar e interpretar correctamente certas alterações, enquadrando-as no conjunto da restante sintomatologia, e inquirindo especialmente sobre a sua localização, natureza e duração (quando e como começou; se tem sido progressiva, e rapidez dessa progressão). A impotência ou incapacidade funcional é outro dos sintomas dominantes na patologia ortopédica; trata-se do achado relacionado com a dor e a deformidade, e no grupo etário mais baixo pode constituir o único aparente. É mais evidente quando se estabelece de forma aguda e relacionado com um episódio recente, por exemplo, de natureza traumática ou inflamatória. Outras vezes instala-se de forma insidiosa e gradual, tornando-se menos perceptível, devido aos mecanismos de compensação funcional que a criança facilmente encontra e aos quais se adapta. Todos estes aspectos deverão, por isso, ser convenientemente investigados e valorizados na colheita da história clínica.

Os três sintomas/sinais principais que acabámos de mencionar estão sempre relacionados entre si, podendo haver predomínio de um ou outro consoante a patologia presente e as circunstâncias próprias do doente. No entanto, como princípio orientador, será importante não esquecer o conhecido aforismo: “a criança que se queixa tem quase sempre razão até prova em contrário”.

Isto significa que, nestas idades, a grande maioria dos doentes com sintomatologia evidente do tipo referido, tem uma causa orgânica subjacente que a explica e que importa investigar. No adolescente, tal não é tão evidente, aproximando-se do que se passa nos adultos: muitas vezes as queixas deste foro podem ter um componente emocional ou psíquico que as potencia ou determina, com o que será necessário contar para uma interpretação correcta das mesmas.

Considerando-se os sintomas/sinais descritos como os mais frequentes e notórios colhidos na anamnese e exame objectivo de doentes desta faixa etária com patologia ortopédica, torna-se depois necessário proceder à sua caracterização e interpretação com rigor.

Como na maioria das situações ortopédicas – incluindo muitas das doenças sistémicas com repercussão músculo-esquelética – as lesões têm carácter predominantemente regional ou local; é, por isso, conveniente adoptar uma estratégia definida na execução do referido exame objectivo. Embora cada observador possa seguir a que mais lhe convier, julgamos aconselhável sistematizar essa abordagem clínica, sugerindo, por exemplo, começar-se pela observação global do doente, passando depois à observação regional (membros e tronco), particularmente na zona das queixas actuais, para terminar na área anatómica exacta das referidas queixas.

O pormenor com que se procederá a estas distintas etapas dependerá do tipo de patologia e das circunstâncias particulares do doente, aspectos estes primariamente esclarecidos pela anamnese, com a qual, porém, todos os achados do exame objectivo devem ser permanentemente confrontados e testados, como única forma de se chegar a uma interpretação fidedigna de toda a informação recolhida e, daí, a um diagnóstico correcto.

Sublinha-se que um exame objectivo adequado exige a colaboração do doente e familiares, o que neste grupo etário, principalmente na criança pequena, não é fácil de conseguir. Irá depender da sua idade, desenvolvimento, comportamento, educação e relacionamento com os familiares directos (que, por vezes dificultam mais do que ajudam) e da paciência, capacidade de improvisação e experiência do médico que o atende. Sem estes atributos onde prevalece o chamado bom senso clínico, arriscamo-nos a transformar este exame numa cena de luta inglória com a criança e os familiares, com total impossibilidade de se chegar a conclusões válidas.

Por isso, a estratégia acima referida, é apresentada apenas como orientação genérica, devendo ser adaptada a cada caso concreto, segundo as suas características peculiares, não hesitando o clínico em passar imediatamente à última fase, a do exame local se for julgado conveniente, em vez de esgotar a débil capacidade de atenção e colaboração da criança em manobras exploratórias sem utilidade prática imediata na elaboração do diagnóstico.

Nunca será demais repetir que o exame objectivo deve ser realizado nas melhores condições possíveis no que diz respeito às instalações, com o doente despido e na presença dos pais ou familiares. A sua execução, independentemente da citada estratégia, custuma obedecer a uma sistematização que compreende as três etapas clássicas de inspecção, palpação e mobilização. Se é preferível e didacticamente mais correcto que estas etapas se processem de acordo com a referida ordem, nada impede que a experiência do clínico e o tipo de patologia presente determinem a modificação do esquema indicado, permitindo realizá-las em simultâneo.

Na Ortopedia Pediátrica, tal como acontece noutra áreas da Medicina, para a confirmação do diagnóstico não são necessários habitualmente múltiplos e dispendiosos exames complementares; na maioria das vezes os referidos exames complementares de diagnóstico resumem-se aos exames laboratoriais clássicos para avaliação global da situação, a que se acrescentam os específicos em função da área da patologia infecciosa e inflamatória, e aos exames imagiológicos; salientam-se a radiologia simples do esqueleto, a tomografia axial computadorizada (TAC), a ressonância magnética (RM), a ecografia e a cintigrafia. Com este leque de possibilidades no âmbito referido é quase sempre possível confirmar ou excluir o diagnóstico clínico sem que se tenha de recorrer a provas mais complicadas e caras.

Sistematização

Nesta Parte serão abordadas de forma necessariamente sucinta e genérica, algumas das situações mais correntes do foro ortopédico que afluem às consultas de Pediatria e para as quais os ortopedistas são muitas vezes solicitados a dar parecer. Procuraremos dar uma noção da sua frequência, importância do ponto de vista clínico e orientação terapêutica. O Quadro 1 sistematiza os tópicos a abordar nos capítulos seguintes.

QUADRO 1 – Sistematização ortopédica pediátrica

Patologia não traumática

    Patologia geral:

      • Infecções
      • Tumores
      • Desvios axiais dos membros

    Patologia regional específica:

      • Membro superior
      • Membro inferior:
        1. Coxofemoral:
          • Anca dolorosa (sinovite transitória; epifisiólise femoral proximal, doença de Legg-Calvé-Perthes)
          • Alterações da mobilidade (anca instável – displasia de desenvolvimento da anca; anca bloqueada)
          • Deformidade
        2. Joelho
          • Dor (gonalgia)
          • Alterações da mobilidade
          • Deformidade (osteocondroses; genu varumvalgum; flexum e recurvatum)

          • Dor
          • Deformidade (pé valgo e pé cavo; pé boto)
        3. Tronco
          • Dor (cervicalgia, dorsalgia e lombalgia)
          • Deformidade (torcicolo; escolioses; cifoses; espondilólise e espondilolístese)
Patologia traumática. Noções gerais

BIBLIOGRAFIA

Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal deformity: a comprehensive assessment at presentation. Spine 2002; 27: 225-2259

Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2001

Boulnois I, Gouron R, Pluquet E, et al. Late recurrence of an osteoarticular infection caused by Klebsiella pneumoniae in a child. Arch Pédiatr 2018; 25: 497-499

Conrad DA. Acute hematogeneous osteomyelitis. Pediatr Rev 2010; 31: 464-471

Dormans JP. Pediatric Orthopaedics. Core Knowledge in Orthopaedics. St Louis: Elsevier Mosby, 2005

Edgar M. New classification of adolescent idiopathic scoliosis. Lancet 2002; 306: 270-271

Gereige R, Kumar M. Bone lesions: benign and malignant. Pediatr Rev 2010; 31: 355-363

Herring JA. Tachdjian’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Saunders, 2002

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet 2004; 364: 369-379

Lorrot M, Doit C, Ilharreborde B, et al. Antibiotic therapy of bone and joint infections in childhood: recent changes. Archives de Pédiatrie 2011; 18: 1016-1018

Mediamolle M, Mallet MC, Aupiais C, et al. Bone and joint infections in infants under three months of age. Acta Paediatrica 2019; 108: 933-939

Mooney JF, Murphy RF. Septic arthritis of the pediatric hip: update on diagnosis and treatment. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 79-85

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015.

Morrissy R, Weinstein S, (eds). Lovell & Winter’s Pediatric Orthopaedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins Publishers, 2001

Otani Y, Aizawa Y, Hataya H, et al. Diagnostic errors in pediatric bacterial osteomyelitis. Pediatr Intern 2019; 61: 988-993

Paakkonen M, Peltola H. Bone and joint infections. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 425-436

Podeszwa DA, Mubarak SJ. Physeal fractures of the distal tibia and fibula. J Pediatr Orthop 2012; 32: S62-S68

Robinette ED, Brower L, Schaffzin JK, et al. Use of a clinical care algorithm to improve care for children with hematogenous osteomyelitis. Pediatrics 2019; 143: e20180387; DOI: 10.1542/peds.2018-0387

Rosenberg JJ. Scoliosis. Pediatr Rev 2011;32: 397-398

Salter R. Textbook of Disorders and Injuries of the Musculoskeletal System. Baltimore: Williams & Wilkins, 1984

Slovis TL. Caffey’s pediatric diagnostic imaging. Philadelphia: Mosby, 2008

Staheli LT. Fundamentals of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2003

Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins, 2006

Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dextrose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128

White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105

Yang S, Zusman N, Lieberman E, Rachel Y. Goldstein RY. Developmental dysplasia of the hip. Pediatrics 2019; 143: e20181147; DOI: 10.1542/peds.2018-1147