Definição e importância do problema

 A artrite séptica ou supurada é uma infecção do espaço articular que (na criança) resulta, na maioria das vezes, de disseminação hematogénica bacteriana.

Este tipo de patologia tem especial importância por duas razões essenciais: a gravidade clínica susceptível de interferir com o prognóstico funcional e por vezes vital do indivíduo afectado; e a significativa incidência anual, sendo de referir que em países ditos desenvolvidos são atingidas 10 crianças/ano em cada 100.000, números que incluem todas as articulações. Esta proporção aumenta em regiões quentes e húmidas e em populações com condições socioeconómicas precárias.

De acordo com diversos estudos, nos últimos anos tem-se assistido a um aumento da incidência de infecções graves por bactérias multirresistentes (MR), relevando-se mais uma vez a especial susceptibilidade das crianças com doença de células falciformes para este tipo de patologia osteoarticular.

Podendo surgir em qualquer idade, cerca de 30% dos casos ocorre antes dos 2 anos e 50% antes dos 3 anos. O joelho é a articulação mais frequentemente atingida depois dos 2 anos, e a anca antes dessa idade, nomeadamente no recém-nascido. As artrites do joelho e da anca correspondem a cerca de 85% de todos os casos de artrite em idade pediátrica.

Etiopatogénese

Várias são as vias pelas quais os agentes infecciosos podem atingir uma articulação:

  • Via hematogénica (é a mais frequente, verificando-se em mais de 80% dos casos);
  • Disseminação de osteomielite na proximidade;
  • Infecção periarticular;
  • Procedimentos diagnósticos ou terapêuticos invasivos (iatrogenia);
  • Feridas perfurantes.

Os germes bacterianos implicados na artrite séptica são os mesmos que provocam a osteomielite, salientando-se os seguintes agentes: S. aureus sensível ou resistente à meticilina, S. aureus produtor ou não de LPV e Kingella kingae. Refira-se que a doença de Lyme pode incluir no seu quadro clínico – forma tardia – a manifestação de artrite, e que a etiologia relacionável com o Haemophilus influenzae do tipo b e o S. pneumoniae tem diminuído com a aplicação das respectivas vacinas a número cada vez maior de crianças.

Por outro lado, conforme o “terreno” clínico, o tipo de agente microbiano pode divergir dos mais frequentes. Assim, por exemplo, em situações de drepanocitose, haverá alta probabilidade de estar em causa o S. pneumoniae; em casos de síndroma de imunossupressão serão os Gram-negativos os agentes mais prováveis; nas feridas penetrantes do pé ou de artrite de inoculação, serão, respectivamente, Pseudomonas ou S. aureus e Gram-negativos e anaeróbios; e nos adolescentes sexualmente activos a N. Gonorrhoeae (doença gonocócica). Esta última situação, hoje mais rara, é acompanhada, na sua fase precoce, de exantema febril e compromisso poliarticular simétrico, designando-se este conjunto de sinais por síndroma artrite-dermatite (artrite com líquido sinovial estéril apesar de bacteriémia comprovada). Na fase tardia surge compromisso monoarticular com isolamento frequente do germe microbiano em causa.

Num estudo realizado em 2018 no Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, em 18 doentes com doença de células falciformes associada a osteomielite aguda ou crónica e osteoartrite, foram isolados (em 8 casos) os seguintes agentes: S. aureus metilino-sensível, Serratia marcescens multirresistente/MR, Enterococcus faecium MR, Enterobacter cloacae MR, Pseudomonas aeruginosa MR, e Klebsiella pneumoniae MR. No grupo de doentes com infecção por bactérias MR, verificou-se predomínio da proveniência de países PALOP.

A presença de bactérias (ou dos seus metabolitos) no interior da articulação tem as seguintes repercussões.

Consequências histoquímicas:

  • Condrólise (por aumento local das enzimas de origem bacteriana);
  • Inibição da regeneração cartilagínea (pela redução da produção de líquido sinovial, pela redução da síntese dos proteoglicanos e pela imobilização da própria articulação).

Consequências mecânicas:

  • Compressão vascular;
  • Luxação articular ou epifisiólise, nos casos particularmente

Manifestações clínicas

Após a realização da anamnese, tendo o cuidado de averiguar as circunstâncias em que surgiu a sintomatologia presente, quando se observa uma criança com suspeita de artrite séptica, há que ter em conta um conjunto de sinais gerais e locais.

Sinais gerais: hipertermia, anorexia, irritabilidade, prostração; no conjunto, estes sinais indicam um estado geral comprometido, com franca aparência de criança em “estado de doença”. Nos recém-nascidos, deve-se dar particular atenção a manifestações clínicas mais discretas, ou incaracterísticas como a pseudoparalisia de um membro que, por vezes, constitui o único achado positivo nestas situações de artrite.

Sinais locais: perda dos contornos ósseos da articulação, aumento da temperatura local e rubor, derrame articular com onda de choque positiva (no caso do joelho, pode haver acumulação de líquido até 200 cc); limitação dolorosa da mobilidade.

De acordo com o período evolutivo, a artrite séptica pode classificar-se em aguda (1ª semana), subaguda (2ª-4ª semana) e crónica (mais de 4 semanas de evolução).

Exames complementares

As análises de sangue (hemograma, velocidade de sedimentação e doseamento da proteína C reactiva e procalcitonina) revelam, em geral, leucocitose e elevação dos restantes parâmetros. No entanto, a punção articular (artrocentese), com aspiração e/ou lavagem articular, seguida de análise do líquido articular, constituem os procedimentos de eleição para o diagnóstico da artrite séptica, que deverão ser efectuados em ambiente estéril (bloco operatório) e por quem tenha experiência.

A hemocultura e o exame cultural do líquido articular são positivos em cerca de 50-60% dos casos. No entanto, devido ao efeito bacteriostático do líquido sinovial, o referido exame cultural do aspirado articular poderá ser negativo, mesmo no caso de ser purulento.

Na adolescência, o esclarecimento etiológico da artrite implica a exploração da existência de N. gonorrhoeae (exame directo e cultural) em vários locais do organismo, como faringe, recto, uretra e colo do útero.

O exame radiológico convencional nas fases iniciais do processo pode evidenciar alterações: acentuação da opacidade correspondente aos tecidos moles periarticulares (nomeadamente numa articulação profunda como a coxofemoral), aumento do espaço articular (indicativo de presença de derrame intra-articular) e rarefação óssea epifisária e metafisária.

Nas fases tardias da artrite surgem já sinais evidentes da natureza destrutiva do processo infeccioso, como a diminuição e irregularidade marcadas da interlinha articular, deformidades das epífises e metáfises correspondentes, alterações imagiológicas do respectivo tecido ósseo (osteorrarefacção e osteocondensação) e perda mais ou menos completa do contacto entre as superfícies articulares (subluxação ou luxação).

Quanto aos restantes exames imagiológicos, a ecografia tem interesse para a detecção e avaliação do derrame articular (particularmente na coxofemoral – articulação de difícil acesso à exploração clínica pelo volume considerável de tecidos moles envolventes); a cintigrafia permite excluir a osteomielite (através da marcação de leucócitos); a tomografia axial computadorizada (TAC), ideal para avaliar as alterações do tecido ósseo (extensão do processo destrutivo e a presença de sequestros – com o inconveniente da elevada radiação a que o doente fica exposto), foi suplantada pela RM, exame elucidativo na detecção de alterações dos tecidos moles, permitindo avaliar o grau de destruição da cartilagem e distinguir a artrite do abcesso profundo e da celulite.

Diagnóstico diferencial

Os parâmetros clínicos, laboratoriais e imagiológicos que acabámos de enunciar não são exclusivos da artrite séptica, para o diagnóstico da qual se exige o isolamento do germe no líquido articular. No Quadro 1 é indicado um conjunto de situações clínicas que importa considerar no diagnóstico diferencial da artrite séptica.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial da artrite séptica

    • Sinovite transitória
    • Osteomielite aguda
    • Bursite supurada
    • Celulite periarticular
    • Miosite
    • Traumatismo
    • Artrite reumatóide
    • Fascite
    • Artrite não supurada
    • Febre reumática
    • Doença de Lyme
    • Abcesso do psoas
    • Doença autoimune
    • Doenças acompanhadas de compromisso articular (por ex. Púrpura de Henoch-Schönlein, Doença de Crohn, Doença de Kawasaki)

Tratamento

O tratamento antimicrobiano inicial da artrite séptica baseia-se na idade, considerando a probabilidade do germe provavelmente envolvido, e o resultado da coloração Gram do líquido articular aspirado. Refira-se que antes do início deste tratamento, deverá ser feita a tentativa de isolamento do germe em causa, o que é viável apenas em centro especializado.

Conhecendo o germe, estará indicado o esquema de administração de antibióticos por via endovenosa que se descreve a seguir.

No recém-nascido e lactente com menos de 2 meses:

  • Streptococcus do grupo B: ampicilina + aminoglicosídeo;
  • S. aureus: oxacilina, flucloxacilina ou vancomicina;
  • Bacilos Gram-negativos aeróbios (Klebsiella pneumoniae, E. coli): cefotaxima ou ceftriaxona + aminoglicosídeo ou amoxicilina;

Em crianças maiores:

  • S. aureus: mesmo esquema
  • S. pneumoniae: penicilina G ou cefotaxima ou ceftriaxona ou vancomicina (conforme a respectiva sensibilidade);
  • Streptococcus do grupo A: penicilina G ou amoxicilina ou cefotaxima ou ceftriaxona;
  • Neisseria gonorrhoeae: ceftriaxona;
  • Hemophilus influenza do tipo b: cefuroxima ou cefotaxima ou ceftriaxona;
  • Kingella kingae: amoxicilina ou

Sobre a bactéria Kingella Kingae, germe emergente descrito por Elizabeth King na década de 60 (daí o seu nome), importa salientar que, devido à melhoria dos métodos de cultura, demonstrou-se que é causa de mais de metade das artrites sépticas nalgumas series.

A duração do tratamento depende da evolução clínico-laboratorial e do tempo decorrido entre o início dos sintomas e o diagnóstico. No caso do S. aureus, o tratamento deve durar, pelo menos, três semanas. Dependendo da idade do doente e da evolução clínica da situação, poderá passar-se a tratamento por via oral.

A imobilização, com ou sem tracção, dependendo neste caso da articulação atingida, deverá fazer-se na fase inicial na posição de maior capacidade articular, tendo como objectivos, não só o repouso do segmento articular (facilitando a resposta anti-inflamatória dos tecidos), como também a diminuição da dor e do espasmo muscular. Na evolução mais tardia, e dependendo da resposta ao tratamento médico instituído, estas medidas inserem-se num programa de reabilitção geral da articulação, contrariando as posições viciosas e a recuperação útil da mobilidade articular.

Não havendo resposta clínica favorável num relativo curto espaço de tempo (não mais de 48h), a criança deverá ser encaminhada para centro especializado, a fim de ser reavaliada e se proceder ao tratamento cirúrgico adequado.

Prognóstico

Pode considerar-se bom quanto à vida e favorável quanto à função articular se o diagnóstico for precoce e o tratamento também precocemente iniciado e adequado. Nos recém-nascidos e lactentes, particularmente se se verificar osteomielite concomitante, já o prognóstico será mais reservado, não sendo possível de imediato avaliar o grau de compromisso do crescimento que irá resultar.

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