Importância do problema

Sob o ponto de vista epidemiológico, estima-se uma frequência de anomalias congénitas major dos membros inferiores, incluindo amputação congénita, cerca de 5 a 10 casos por 100.000 nascimentos, com uma relação de 3/1 no que respeita à localização – membros superiores/membros inferiores.

Dum modo geral, a etiopatogénese dos defeitos congénitos relaciona-se com noxas ocorridas entre a 4ª e 6ª semana de gestação. De salientar, contudo, que na maioria dos casos a causa de um defeito isolado é desconhecida.

No cômputo geral das anomalias adquiridas dos membros inferiores em idade pediátrica, as mesmas surgem em menor número que as congénitas e, na sua maioria, após os quatro anos de idade, em relação com traumatismos, neoplasias ou infecções.

Sistematização e definições

Em 1989, de acordo com a classificação internacional IOS-ISPO (International Organization for Standardization – International Society for Prosthetics and Orthotics), foi obtido consenso relativamente à terminologia a adoptar para as anomalias congénitas dos membros, com base em critérios anatómicos e radiológicos.

Assim, foram considerados dois grupos de defeitos:

  • Com deficiência transversa;
  • Com deficiência longitudinal.

Os defeitos com deficiência transversa não compreendem partes remanescentes distais. Nos defeitos com deficiência longitudinal existe ausência parcial ou total de um ou mais ossos, com porções distais presentes.

No que respeita a deficiências longitudinais congénitas continuam a ser usadas terminologias como défice femoral congénito, hemimelia fibular e hemimelia tibial, correspondendo a situações clínicas complexas, e com classificações anatómicas e radiológicas próprias para cada uma delas.

Tratando-se de amputações adquiridas, a terminologia refere-se ao osso envolvido (por ex., transtibial ou transfemoral).

Aspectos gerais da actuação

As necessidades físicas e psicossociais das crianças portadoras de tais deficiências, muito diferentes das do adulto, exigem um esforço conjunto de todos os membros de uma equipa multidisciplinar, que envolve: fisiatra e ortopedista pediátricos, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social e técnico perito em próteses (ortoprotésico). De referir que o envolvimento familiar constitui parte integrante e fundamental de qualquer programa de tratamento.

As avaliações iniciais concentram-se em informar os pais sobre o futuro terapêutico do seu filho. É importante transmitir uma informação positiva no que respeita ao que a criança irá conseguir fazer, tendo sempre presente que não devem ser criadas expectativas milagrosas quanto ao tratamento cirúrgico.

As alternativas terapêuticas para cada caso clínico devem ser explicadas, tendo sempre o cuidado de expor os prós e os contras de cada uma delas, para que os pais decidam, de forma esclarecida, a solução terapêutica para o seu filho.

A colocação da primeira prótese deverá ocorrer quando a criança começa a tentar elevar-se e a ficar de pé, agarrada. Ou seja, a prescrição da prótese deverá ser orientada para a maior funcionalidade da marcha, devendo a mesma ser adaptada às fases do neurodesenvolvimento. (Figura 1)

Nas deficiências congénitas transversas, ou nas adquiridas, a solução terapêutica é a colocação de uma prótese standard. (Figura 2)

Nas deficiências congénitas longitudinais, a solução terapêutica varia com o tipo e grau de deficiência.

Se a dismetria for grande, coloca-se uma prótese não-standard. (Figura 3)

FIGURA 1. Criança com deficiência transversa a iniciar fase de ortostatismo

FIGURA 2. Criança com prótese standard a brincar

FIGURA 3. Deficiência congénita longitudinal (défice femoral congénito) com prótese não-standard

Se a dismetria ainda for pequena, a colocação de uma compensação no calçado é suficiente.

Se houver grande instabilidade no tornozelo é necessário colocar uma ortótese associada ao calçado.

Estas medidas gerais permitem que a criança adquira o ortostatismo e a marcha sem grandes claudicações. Importa salientar que as próteses para crianças devem ser simples, leves e resistentes.

Com o crescimento, a dismetria dos membros vai-se acentuando e as compensações iniciais usadas no calçado terão que ser ulteriormente corrigidas, tornando-se inviáveis a partir dos 8 cm de espessura. Com efeito, as compensações grandes são inestéticas, pesadas, dificultam a marcha, impedem a criança de correr, originam quedas frequentes e entorses ao nível das articulações a montante.

A decisão terapêutica em alongar ou proceder à amputação de um segmento distal vai determinar a escolha do tipo de prótese a aplicar. A necessidade de inserir, ou não, estas crianças, num programa de tratamentos de fisioterapia varia de caso para caso.

Verificando-se deficiência nos 2 membros inferiores, torna-se necessário estabelecer um programa terapêutico para adaptação ao ortostatismo e à marcha, com as próteses. (Figura 4)

FIGURA 4. Criança biamputada em tratamentos de fisioterapia

Relativamente às crianças mais pequenas, os respectivos prestadores de cuidados devem ser ensinados a colocar e a tirar a prótese, e como proceder à sua limpeza diária. Desde cedo é importante estimular a independência destas crianças no que respeita à colocação e higiene da prótese, e aos cuidados com o coto (limpeza, hidratação e massagem).

A actividade física escolar deve ser estimulada e, consoante a personalidade da criança e o tipo de deficiência, deve ser orientada para a prática de um desporto adaptado (por ex., natação, atletismo, ou outras modalidades).

Até ao final do crescimento deve ser promovida a vigilância clínica periódica, focada essencialmente para avaliação do coto, do padrão de marcha e do estado da prótese.

A periodicidade para a substituição de uma prótese, variando entre 12 a 18 meses, deverá ser personalizada. Dependendo fundamentalmente do grau da actividade e da personalidade de cada paciente, há também que atender sempre, caso a caso, aos períodos de crescimento rápido.

Até ao final do crescimento, nas deficiências adquiridas e nas congénitas longitudinais, são necessárias várias intervenções cirúrgicas, quer para regularizar o coto, quer para corrigir possíveis alterações de alinhamento que possam interferir com a colocação da prótese.

As chamadas “dor-fantasma” não são frequentes na idade pediátrica nos casos de deficiências congénitas sujeitas a correcções cirúrgicas; contudo, poderão ocorrer nos casos de deficiências adquiridas.

GLOSSÁRIO

Amelia > Ausência dos quatro membros.
Hemimelia > Ausência de metade do membro.
Ortótese > Aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir alteração morfológica de um órgão, de um membro, ou a deficiência de uma função.
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um membro, um órgão, ou uma parte de um membro destruída ou gravemente afectada.

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