REABILITAÇÃO NEUROLÓGICA

Conceitos fundamentais

Como introdução a este tema é fundamental definir alguns conceitos fundamentais para a compreensão do mesmo: sequência do desenvolvimento cerebral, plasticidade cerebral, detecção precoce e intervenção precoce.

1. Sequência do desenvolvimento cerebral

Os complexos circuitos neuronais existentes no cérebro em desenvolvimento são constituídos durante um período de tempo prolongado, na vida pré e pós-natal.

No período pré-natal ocorrem sequencialmente:

  • neurogénese (1º mês de gestação) – produção de neurónios na matriz germinal;
  • proliferação e migração neuronais (2º trimestre).

No período pós-natal:

  • sinaptogénese – formação axonal e desenvolvimento das conexões dendríticas;
  • desenvolvimento da glia;
  • organização e mielinização (com início pré-natal, mas só finalizada vários anos após o nascimento).

A sinaptogénese é o aspecto mais importante para o desenvolvimento cerebral normal.

As alterações genéticas ou adquiridas em cada uma das fases anteriores podem levar a padrões distintos de patologia cerebral ou disfunção.

Nos 2 primeiros anos de vida há uma superprodução de neurónios com um máximo desenvolvimento das conexões sinápticas nas várias camadas do córtex simultaneamente, correspondendo ao aparecimento das funções. Dos 2 aos 12 anos dá-se uma redução selectiva das sinapses através do processo designado por morte neuronal programada (apoptose) e há um “pico” de mielinização e biossíntese dos neurotransmissores correspondendo ao aperfeiçoamento das funções.

A este propósito, será importante reter as seguintes noções: 1) existem períodos chamados sensíveis ou “críticos” a que corresponde aumento do número de células e conexões sinápticas e aparecimento de aquisições/funções, traduzindo a designação “crítico”, maior susceptibilidade a determinadas noxas (noção de estrutura transitória); 2) existem estruturas específicas que provavelmente favorecem a migração celular e a formação de sinapses; 3) a morte celular e processos regressivos correspondem à especialização das funções; 4) é possível o chamado “rearranjo do sistema”: determinadas áreas silenciosas ou supletivas podem vir a “ser chamadas” a substituir uma função quando determinada zona cerebral é lesada.

2. Plasticidade cerebral

Sendo o sistema nervoso central (SNC) um sistema dinâmico, a “plasticidade cerebral” corresponde à sua capacidade de reorganização após lesão; esta reorganização implica modificação da estrutura e da forma, através de novas conexões sinápticas de modo a preservar a competência.

O desenvolvimento e a maturação cerebrais da criança têm um ritmo muito rápido nos primeiros anos de vida, pelo que tal capacidade de reorganização cerebral é seguramente maior neste período da vida do que no adulto.

A recuperação da função será tanto mais eficaz quanto mais precoce, intensiva, continuada, motivadora e específica for a actuação, sobretudo se decorrer num ambiente estimulante. Depende também da extensão e localização da lesão, sabendo-se que existem idades sensíveis para cada função. Por exemplo, no caso duma criança com uma surdez neuro-sensorial que não foi diagnosticada precocemente, sendo colocada a prótese depois os 6/9 meses, perde-se a capacidade de recuperação da audição por falta de estimulação do córtex auditivo.

Em suma, a plasticidade cerebral constitui a base em que assentam os princípios da intervenção precoce. (ver adiante)

3. Detecção precoce

Algumas deficiências manifestam-se logo ao nascer ou mesmo antes; contudo, na maioria dos casos poderá haver factores de risco susceptíveis de causar deficiência, tornando-se esta evidente apenas no decorrer do desenvolvimento da criança.

Tais crianças em risco de uma perturbação do desenvolvimento deverão ser, por isso, identificadas antes de tal pertubação se manifestar (é a noção de detecção precoce).

Assim, para uma detecção precoce dos problemas de desenvolvimento da criança é essencial que a avaliação do mesmo faça parte integrante dos cuidados de vigilância da saúde, em particular nas situações de risco biológico ou social; tais cuidados pressupõem o acompanhamento, esclarecimento e participação da família.

Por outro lado, através da avaliação do desenvolvimento, poderão ser detectados sinais de “alerta” nas áreas da motricidade, visão, audição, linguagem, cognição e comportamento, bem como problemas do ambiente social que podem e devem ser adequadamente avaliados e acompanhados através duma intervenção precoce.

4. Intervenção precoce

Intervenção precoce é toda a forma de actividades de estimulação dirigidas à criança, e de orientações dirigidas aos pais, levadas a cabo como consequência directa e imediata da detecção do risco, ou da identificação dum problema de desenvolvimento.

A intervenção precoce diz respeito à criança, aos pais, à família e ao meio ambiente alargado, tendo como objectivo criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento.

Inclui actividades como: estimulação do desenvolvimento, com ensino, e várias terapias (fisioterapia, terapia ocupacional e da fala), estratégias educacionais e a colaboração de diferentes serviços, funcionando em equipas transdisciplinares.

 O apoio cobre o período entre o momento do eventual diagnóstico pré-natal e aquele em que a criança atinge a idade da escolaridade obrigatória.

  1. Qual a sua importância?
    • Desenvolver estratégias que promovam uma adaptação plástica do cérebro aos estímulos do meio (relembrando o conceito plasticidade cerebral) uma vez que a função favorece o desenvolvimento das estruturas neuronais;
    • Experiências mais enriquecedoras podem promover alterações neuronais que favoreçam o controlo da disfunção, tendo em conta as fases de maturação do SNC, tirando partido da plasticidade cerebral.
  2. Quando se deve iniciar?
    • O mais precocemente possível, enquanto o sistema ainda está lábil e com capacidade de reorganização atendendo aos marcos, datas e idades “sensíveis” para cada função (como já atrás foi referido).
  3. Quando poderá ser demasiado tarde?
    • Quando o SNC já está organizado num “mapa” cerebral de modelos e circuitos funcionais estáveis.
  4. Objectivos da intervenção precoce:
    • Assegurar que todas as crianças em situação de risco ou com problemas de desenvolvimento, bem como as suas famílias, recebam os cuidados específicos de que necessitam, sendo necessária uma colaboração estreita dos Serviços de Saúde, Segurança Social e Educação;
    • Criar condições na família, escola e sociedade, de modo que a criança tenha o máximo de autonomia e integração;
    • Ajudar a família a ultrapassar os aspectos negativos da deficiência e a criar um olhar positivo sobre as aptidões da criança;
    • É a noção de resiliência, chamando-se a atenção para a importância dos pontos de viragem (Touch points).

Problemas neurológicos, habilitação e reabilitação

Os problemas neurológicos em que mais frequentemente está indicada a respectiva reabilitação através do SMFR são: sequelas de prematuridade; sequelas de asfixia perinatal; spina bifida; e as doenças neuromusculares.

Debruçar-nos-emos sobre a intervenção, orientações e seguimento levados a cabo pelo SMFR do HDE incidindo sobre crianças com sequelas de prematuridade, visando os recém-nascidos (RN) com um peso ao nascer (PN) inferior a 1.500 g; tais crianças constituem um grupo de risco susceptível de alterações do desenvolvimento, e igualmente um bom modelo para compreender a acção multidisciplinar da reabilitação.

A patologia da prematuridade, neste grupo de muito baixo peso (MBP), é frequentemente multissistémica, de gravidade inversamente proporcional à idade gestacional, pelo que requer o envolvimento duma equipa multidisciplinar.

Do ponto de vista do fisiatra, a maior atenção no futuro destas crianças, será dirigida a eventuais sequelas pulmonares – displasia broncopulmonar (DBP), e neurológicas – motoras, cognitivas e sensoriais (visão e audição), alterações da linguagem, do comportamento e dificuldades de aprendizagem; por isso, é feito um seguimento sistemático do seu desenvolvimento nas idades-chave, para detecção precoce de eventuais desvios/disfunções. A identificação (sinalização) e intervenção iniciar-se-ão durante o internamento na unidade de cuidados intensivos neonatais (UCIN).

Neste âmbito e revisitando os conceitos de reabilitação e habilitação, caberá dizer que no contexto da prematuridade prevalecerá o conceito de habilitação, isto é: usar um conjunto de estratégias que visem estimular e potenciar as capacidades da criança de modo que o seu desenvolvimento possa decorrer da forma mais aproximada da normalidade. Ou seja, a ideia-chave do termo “habilitação” associa-se a proactividade e antecipação.

Se uma criança com antecedentes de prematuridade vier a ter um quadro de paralisia cerebral (PC), e tiver de se submeter a uma cirurgia, por ex. para alongamentos tendinosos, tal intervenção na sequência do pós-operatório caberá no conceito de reabilitação.

Na UCIN, e de acordo com cada situação clínica, a atitude poderá ser apenas expectante e de vigilância activa de modo a detectar eventuais alterações neurológicas e/ou perturbações do neurodesenvolvimento – detecção de eventuais sinais de alarme. Inicialmente, poderá ser possível proceder apenas a cinesiterapia respiratória, se for esse o caso. Eventualmente, poderá nem haver condições para qualquer intervenção que não seja o falar com os pais, ouvi-los, tranquilizá-los, explicar-lhes, ensinando-os a interagir com “aquele ser tão pequeno”, mas que “emite sinais que têm de ter reciprocidade”.

Durante este período de internamento será privilegiado o processo de vinculação: estimulada e reforçada a importância da interacção com a criança (relação mãe/filho), que nestes casos não será tão espontânea como em circunstâncias ditas normais, pelo próprio contexto, (situação clínica, meio hospitalar, especificidade das UCIN) e impactes causados por uma situação inesperada de angústia, medo e insegurança. A envolvência na relação com aquele bebé, que é seu, e que necessitará de alguns cuidados diferentes dos habituais dum mais “maturo”, será de primordial importância. Serão apoiados e ensinados os pais no seu manejo logo que existam condições clínicas para tal.

Será feita uma sensibilização no sentido de proporcionar condições facilitadoras do bem-estar do RN: ritmo sono/vigília, calmantes da dor/diminuindo o estresse, envolvendo equipa médica e de enfermagem (por exemplo, redução da luz, do ruído e do número de intervenções com manipulação do RN).

Alguns exemplos práticos: cobrir as incubadoras de modo a protejer o RN da luz artificial das UCIN; após intervenções mais dolorosas envolver a criança com cobertor confortável em flexão, ou colocá-la sobre a mãe em posição de canguru; se tal for possível, esse contacto pele com pele é muito calmante e relaxante. Vários autores advogam também o uso cuidadoso de soluto de sacarose a 2% aplicado sobre a língua como medida de consolação em casos de dor aparente.

Serão adoptadas estratégias que promovam um neurodesenvolvimento tão harmonioso quanto possível, de acordo com as diferentes fases clínicas e a triagem das necessidades da criança, respeitando sempre o seu ritmo biológico e estabilização hemodinâmica; será melhorado o conforto promovendo uma correcta postura de “descanso”, usando por ex. os “ninhos com panos moles”; demonstrado e explicado o banho.

Será demonstrado e ensinado à mãe o manuseamento do bébé como forma de estimulação táctil, proporcionando um contacto pele com pele, transmissor de afectos, relaxante e calmante da dor, comprovadamente impulsionador de ganho ponderal.

Este é um momento íntimo e privilegiado de dar e receber, de alerta para todos os sinais que o bebé possa transmitir, os quais serão a base da comunicação para que possa crescer e desenvolver-se. Mais uma vez, a importância dos Pontos de viragem.

Far-se-á uma estimulação sensorial melhorando a interacção com a mãe de modo que essa seja uma relação gratificante.

Treinar-se-á a sucção chamada não nutritiva (que estimula a secreção salivar, designadamente) como forma de preparar a futura sucção nutritiva que, conjuntamente com uma boa coordenação com a deglutição, libertará a criança de formas mais dependentes de nutrição (parentérica, entérica, etc.) e lhe proporcionará independência na alimentação oral, nesta fase.

Este tipo de alimentação, quer seja ao peito, quer por biberão, não deverá iniciar-se antes das 34 semanas de idade pós-concepcional, pois a sucção exige um esforço demasiado para bebés muito imaturos, sendo que todo o processo que conduz a uma alimentação eficaz exige uma maturidade de várias estruturas, estabilidade clínica, treino progressivo e boa adaptação. Se, apesar de todos os anteriores pressupostos, não houver uma boa resposta, será feita uma avaliação do tono e motricidade oral para detecção de patologia; e, no caso de esta existir, serão usadas técnicas para a sua normalização.

Na prática são realizados os seguintes procedimentos:

Na data da alta hospitalar

  • Reforçado o apoio e ensino, feita a ponderação psicológica e socioafectiva de cada família;
  • Dadas eventuais orientações para as áreas de saúde respectivas de acordo com as necessidades;
  • Feito encaminhamento para o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação (MFR);
  • Outros destinos.

Após a alta hospitalar

Na Consulta (semanal) de Neonatologia (seguimento):

  • colaboração efectiva do médico reabilitador;
  • triagem das perturbações do desenvolvimento;
  • orientações e encaminhamento.

No Serviço de MFR          

  • Consulta de vigilância (seguimento do RN de MBP e RN com antecedentes de patologia perinatal);
  • Consulta de vigilância e plano terapêutico de re(habilitação);
  • Consulta de vigilância e orientações periódicas (grupo de apoio aos pais).

Na Consulta de MFR

  • Avaliação da criança e da família;
  • A avaliação do desenvolvimento psicomotor nas idades-chave (3M; 6M; 9M; 12M; 18M; 24M, posteriormente semestral ou anualmente de acordo com as necessidades);
  • Rastreio de alterações;
  • Aplicação de testes de avaliação do desenvolvimento. (M= meses)

Plano terapêutico de Re(habilitação)

  • Individualizado;
  • Implicando sempre os pais;
  • Adaptado às necessidades;
  • Reavaliado periodicamente.

A periodicidade e duração será de acordo com os objectivos propostos para:

  • o grupo etário;
  • a patologia em causa;
  • a disponibilidade dos pais;
  • os recursos institucionais.

Outros procedimentos

  • Estudo de ajudas técnicas;
  • Confecção de ortóteses – “casts”, talas-;
  • Aplicação de toxina botulínica (nas situações de espasticidade);
  • Intervenção no planeamento de cirurgia (alongamentos tendinosos, osteotomias, e outras);
  • Planeamento de actividades com componente lúdico-terapêutico: hidroterapia, natação, hipoterapia, outras actividades de grupo, de acordo com os objectivos pré-estabelecidos;
  • Orientação escolar (mantendo a ligação à escola com intercâmbio de informação com os professores, sinalizando os problemas mais relevantes e as áreas mais afectadas de modo a haver um treino mais incisivo, alertar para a necessidade de eventual apoio escolar suplementar – recrutamento de professor de apoio – Apoios Educativos Especiais e Planos Educativos Individuais previstos na lei e regulamentados para alunos portadores de deficiência, em escolas do Ensino Regular. Dec. Lei 319/91 de 23 de Agosto;
  • Integração no ensino regular que deverá ser feita com deslocação da equipa à escola, embora este processo se realize com grande dificuldade, na dinâmica do meio hospitalar;
  • Promover sempre a máxima autonomia para que seja possível uma boa integração e socialização.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: MacKeith Press, 2009

Bottos M, Feliciangeli A, Sciuto LS, et al. Functional status of adults with cerebral palsy and implications for treating children. Dev Med Child Neurol 2001; 43: 516-528

Butler C, Darrah J. Effects of neurodevelopmental treatment (NDT) for cerebral palsy: an AACPDM evidence report. Dev Med Child Neurol 2001; 43: 778-790

Campagnoni AT (ed). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

De la Torre AJLuat AFJuhász C, et al. A multidisciplinary consensus for clinical care and research needs for Sturge-Weber syndrome. Pediatr Neurol 2018; 84: 11-20. doi: 10.1016/j.pediatrneurol.2018.04.005.

Forsyth R, Newton R. Pediatric Neurology. Oxford: Oxford University Press, 2007Guralnick MJ (ed). The Developmental Systems Approach to Early Intervention. Baltimore: Paul H Brookes, 2005

Giacino JTKatz DISchiff ND, et al. Practice guideline update recommendations summary: disorders of consciousness. Neurology 2018; 91: 450-460. doi: 10.1212/WNL.0000000000005926

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kohli-Lynch M, Tann CJ, Ellis ME. Early intervention for children at high risk of developmental disability in low- and middle-income countries: a narrative review. Int J Environ Res Public Health 2019, 16, 4449; doi:10.3390/ijerph16224449

Moro M, Málaga S, Madero L. Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007: 733-742

DOENÇAS NEURODEGENERATIVAS

Definição e importância do problema

As doenças degenerativas são situações hereditárias de baixa incidência (< 1/5.000 crianças) caracterizadas por regressão progressiva do desenvolvimento e sintomas neurológicos progressivos. Como manifestações sistémicas mais marcantes citam-se: perdas da visão, fala, audição, locomoção, muitas vezes em associação a convulsões, dificuldade alimentar e défice cognitivo).

As doenças degenerativas podem ser classificadas pelo defeito subjacente (no lisossoma, no peroxissoma, na mitocôndria, etc.) ou pela localização anatómica predominante (substância branca, substância cinzenta, gânglios da base e cerebelo). O estudo imagiológico por ressonância magnética constitui o exame que proporciona as indicações mais precisas sobre a localização do defeito. A detecção do estado de portador pode ser feita por estudo enzimático.

Perante um doente com suspeita de doença heredodegenerativa é fundamental uma cuidadosa história clínica. A anamnese permite descobrir casos semelhantes na família e perceber o tipo de hereditariedade em questão. Os antecedentes de gravidez, de parto e pós-natais podem orientar para uma etiologia sequelar e não progressiva. No que se refere à doença actual, pode evidenciar-se o carácter subagudo ou crónico da doença, a idade de aparecimento de sinais ou sintomas, o tipo de doença neurológica, a regressão do desenvolvimento e sinais ou sintomas de doença sistémica.

Apesar de não existir terapêutica eficaz, o diagnóstico é fundamental para proporcionar à família o prognóstico e o aconselhamento genético. Na maioria dos casos a transmissão é autossómica recessiva, o que confere uma probabilidade de 25% de recorrência. Pode verificar-se igualmente transmissão hereditária ligada ao cromossoma X e, mais raramente, autossómica dominante.

Estas doenças devem ser acompanhadas em centros especializados, embora os respectivos cuidados gerais possam ser ministrados no âmbito dos cuidados primários.

Manifestações clínicas

Atraso e regressão do neurodesenvolvimento

Nas formas de início neonatal o atraso pode ser grave, não se verificando aquisições.

Nas formas infantis precoces (início entre 4-18 meses) pode haver alguma aquisição de competências e, nas infantis tardias (início entre 18 meses–4 anos) e juvenis (início após os 4 anos), pode haver claramente um período de desenvolvimento normal.

Em crianças com atraso de desenvolvimento, uma lentidão extrema no ritmo de aquisições, ou a sua regressão constituem indicadores de doença progressiva.

Da mesma maneira, o aparecimento de sinais ou sintomas neurológicos, psiquiátricos ou sistémicos, ou uma história familiar informativa, são indicadores de doença progressiva e obrigam a uma investigação etiológica.

Epilepsia

A epilepsia pode surgir em várias doenças degenerativas, sugerindo o envolvimento da substância cinzenta. De facto, nas doenças da substância cinzenta a epilepsia é a manifestação clínica predominante com a particularidade de ser refractária. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças neurodegenerativas e epilepsia

GM 1Doença de Menkes
Doença de SandhoffDoença mitocondrial
Doença de Tay Sachs(MERRF)
Défice de biotinidaseSialidose II
Síndroma de AlpersD. de Unverricht-Lungborg
Defeito de peroxissomasDoença de Lafora

Doença motora

A espasticidade associada à hiperreflexia osteotendinosa indica lesão da via piramidal, o que é relacionável com doença da substância branca (leucodistrofia).

A ataxia manifesta-se nas doenças do cerebelo e das vias cerebelosas, e a discinésia (distonia e coreoatetose) nas que afectam predominantemente os gânglios da base.

A neuropatia periférica pode ser resultante de desmielinização do neurónio motor periférico no estádio avançado das doenças degenerativas do sistema nervoso central. Constitui a manifestação principal em doenças do neurónio motor periférico (Charcot Marie Tooth) e nos casos de doenças com envolvimento do cerebelo (degenerescências espinocerebelosas).

Comportamento e alterações psiquiátricas

As alterações do comportamento e a doença psiquiátrica podem ser a forma de apresentação, especialmente nas formas de início juvenil e no adulto. São exemplos a doença de Wilson, a adrenoleucodistrofia, a leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe, a doença de Nieman Pick e a lipofuscinose.

Alterações do perímetro cefálico

A microcefalia progressiva por atrofia cerebral é frequente nas doenças degenerativas. Mais raramente verifica-se macrocefalia, como por exemplo nas doenças de Tay Sachs, Alexander e Canavan. O Quadro 2 resume, de modo integrado, as principais alterações do exame neurológico em diversas afecções.

QUADRO 2 – Alterações do exame neurológico nas doenças neurodegenerativas

++: alteração predominante; +: alteração associada; *: ataxia dentado rubro pálido luisiano
 EspasticidadeAtaxiaDiscinésiaOutras alterações
Leucodistrofia metacromática+++ Disartria; deterioração cognitiva; neuropatia
Adrenoleucodistrofia++++Alteração do comportamento; disfagia; neuropatia
Doença de Pelizaeus Merzbacher+++Hipotonia inicial; nistagmo
Doença de Krabbe++++Irritabilidade; neuropatia
Doença de Canavan++  Hipotonia inicial; macrocefalia
Doença de Alexander++++Macrocefalia, sinais bulbares
Argininémia++++Epilepsia; regressão
Doença de Refsum + Neuropatia; surdez
Doença de Tay Sachs GM2+++ Epilepsia; macrocefalia
GM1+++Miocardiopatia; epilepsia
Doença de Nieman Pick++++Hepatosplenomegália; epilepsia; hiperesplenismo
Síndroma de Rett+++Estereotipias das mãos; epilepsia; hiperventilação; microcefalia
Lipofuscinoses +++Epilepsia mioclónica; microcefalia
Défice de biotinidase++ Eczema; alopécia; epilepsia
Doença de Hallervorden Spatz+ ++Deterioração cognitiva
Doença de Wilson  ++Rigidez; tremor; disfagia; disartria; doença psiquiátrica
Doença de Huntington +++Disartria; epilepsia; deterioração cognitiva
Ataxia de Friedreich+++ Neuropatia; diabetes; disartria; miocardiopatia; pés cavus
Ataxia telangiectasia +++Neuropatia; apraxia óculo-motora; infecções
DRPLA* ++Epilepsia; regressão

Alterações oculares

A avaliação oftalmológica é importante, podendo orientar para a etiologia. (Quadro 3) (Partes XXVI e XXXII)

QUADRO 3 – Alterações oculares nas doenças neurodegenerativas

Atrofia ópticaDoença de Krabbe
Doença de Canavan
Doença de Pelizaeus-Merzbacher
Leucodistrofia metacromática
Síndroma de Zellweger
Lipofuscinose
Mácula cor de cerejaGM2 (Tay Sachs)
GM1
Doença de Nieman Pick
Leucodistrofia metacromática
Sialidose (tipo I e II)
Doença de Farber
RetinopatiaSíndroma de Zellweger
Mucopolissacaridoses
CDG
Doença de Refsum
Síndroma de Cockayne
Doença de Hallervoden-Spatz
Síndroma de Kearns-Sayre
Lipofuscinose
NistagmoDoença de Pelizaeus
Merzbacher
Síndroma de Leigh 
OftalmoplegiaSíndroma de Kearns-SayreSíndroma de Leigh 
Ectopia do cristalinoHomocistinúriaDéfice de Sulfito – Oxidase 
Opacidade da córneaMucopolissacaridosesOligossacaridosesMucolipidose IV
CataratasSíndroma de Zellweger
Síndroma de Lowe
Doença de CockayneGalactosémia
Anel de Kayser FleischerDoença de Wilson  
TelangiectasiaAtaxia telangiectasia  

Visceromegália

A visceromegália é sugestiva de doença lisossomial de armazenamento ou tesaurismose. Na doença de Gaucher há esplenomegália e nas mucopolissacaridoses e oligossacaridoses há hepatosplenomegália. A função hepática também pode estar alterada. A cirrose hepática na doença de Wilson e a icterícia na doença de Nieman Pick podem ser a primeira manifestação da doença.

Doença cardíaca

A doença cardíaca (cardiomiopatia e defeitos de condução) está associada a várias doenças heredodegenerativas e pode ser a causa de morte. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Alterações cardíacas nas doenças neurodegenerativas

Doenças degenerativasAlterações cardíacas
GM 1Miocardiopatia, disritmia
Glicogenose IICardiomegália; ECG típico
Doença de RefsumDefeitos de condução, insuficiência cardíaca
Mucopolissacaridoses e MucolipidosesEspessamento do miocárdio: disfunção valvular
Doença de Kearns-SayreDefeitos de condução
Ataxia de FriedreichCardiomiopatia; defeitos de condução
Doença mitocondrial de início precoceCardiomiopatia; alteração do ritmo
Doença de DuchenneMiocardiopatia

Doença renal

Na doença de Fabry há insuficiência renal por acumulação de glicosfingolípidos nos rins; na síndroma de Lowe (cérebro-óculo-renal) verifica-se disfunção tubular renal; na doença de Leish-Nyham há hiperuricémia, nefrolitíase e nefropatia obstrutiva; e, na síndroma de Zellweger, quistos renais.

Alterações cutâneas

Nalguns casos, são as alterações da pele ou do cabelo que alertam para o diagnóstico. São exemplos a síndroma de Menkes com os “pili torti”; a dermatite seborreica do défice de biotinidase; o exantema tipo pelagra da doença de Hartnup; a distribuição anómala da gordura subcutânea da síndroma CDG; ou os nódulos subcutâneos da doença de Farber. Na adrenoleucodistrofia há hiperpigmentação secundária à doença de Addison.

Diagnóstico

O diagnóstico assenta na evidência de regressão, nos sinais e sintomas neurológicos, e na presença de manifestações sistémicas.

Doenças tratáveis do SNC como tumores, processos inflamatórios (relacionáveis, por exemplo, com infecções pelo vírus da imunodeficiência humana), vasculares ou hidrocefalia devem ser excluídas.

A epilepsia refractária pode acompanhar-se de deterioração cognitiva e regressão, num processo muito semelhante ao que se encontra nas doenças degenerativas, sendo o EEG importante nesta situação.

O estudo imagiológico por ressonância magnética é um exame fundamental na investigação deste grupo de doenças, identificando as estruturas cerebrais mais afectadas. A espectroscopia permite detectar alterações do “pico” de lactato nas doenças mitocondriais, do N-acetil-aspartato na doença de Canavan, e da creatina nas doenças por défice de creatina.

O electroencefalograma (EEG), o electromiograma (EMG), a avaliação dos potenciais evocados visuais e o electrorretinograma estão indicados em casos específicos, assim como o exame do líquido céfalo-raquidiano.

Os estudos bioquímicos e metabólicos do sangue e da urina devem ser realizados, mas sempre orientados pela clínica.

O diagnóstico definitivo obtém-se pela identificação do defeito metabólico ou enzimático no sangue ou nos fibroblastos.

A disfunção neurológica acompanha-se de lesão neuronal, a qual se pode identificar por biopsias periféricas. Nas doenças caracterizadas por grande heterogeneidade genética poderá ser necessário comprovar a existência de alterações histopatológicas nos tecidos para orientar o diagnóstico molecular. Noutros casos, o estudo molecular do gene responsável constitui a via mais directa para estabelecer o diagnóstico.

Tratamento

Não existe tratamento eficaz para a grande maioria das doenças heredodegenerativas.

Em doentes assintomáticos cujo diagnóstico foi feito pela identificação da doença num familiar antes do aparecimento de doença neurológica ou em fases muito precoces da doença, são tentadas certas terapêuticas. Na adrenoleucodistrofia, a administração de gliceril trioleato e trierucato (óleo de Lorenzo) a rapazes assintomáticos, com idade inferior a 6 anos e com RM normal pode atrasar o aparecimento de alterações neurológicas.

O transplante medular também já foi utilizado em casos de adrenoleucodistrofia, na doença de Krabbe e na leucodistrofia metacromática, com algum benefício.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J (ed). Diseases of the Nervous System in Childhood. London: Mac Keith Press, 2009

Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Campistol J (ed). Neurologia para Pediatras. Madrid: Panamericana, 2011

Escolar ML, Poe MD, Provenzale JM, et al. Transplantation of umbilical-cord blood in babies with infantile Krabbe’s disease. NEJM 2005; 352: 2069-2080

Gitler AD, Dhillon P, Shorter J. Neurodegenerative disease: models, mechanisms, and a new hope. Disease Models & Mechanisms 2017; 10: 499-502; doi: 10.1242/dmm.030205

Kaye EM. Update on genetic disorders affecting white mather. Pediatr Neurol 2001; 24: 11-24

Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS. Practical Strategies in Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2004

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Krit W. Allogenic stem cell transplantation for the treatment of lysosomal and peroxisomal metabolic diseases. Semin Immunopathol 2004; 26: 119-132

Kruer MC, Boddaert N. Neurodegeneration with brain iron accumulation: a diagnostic algorithm. Semin Pediatr Neurol 2012; 19: 67-74

Kurian MA, McNeill A, Lin JP, et al. Chilhood disorders of neurodegeneration with brain iron accumulation (NBIA). Dev Med Child Neurol 2011; 53: 394-404

Mann JA, Siegel DH. Common genodermatosis: what the pediatrician needs to know. Pediatr Ann 2009; 38: 91-99

McLone DG. Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 2001

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Moser H, Dubey P, Fatemi A. Progress in X-linked adrenoleukodystrophy. Curr Opin Neurol 2004; 17: 263-269

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Schiffmann R, van de Knaap MS. The latest on leukodystrophies. Curr Opin Neurol 2004; 17: 187-192

Schiffman R, Brady RO. New prospects for treatment of lysosomal storage diseases. Drugs 2002; 62: 733-742

Zorzi G, Zibordi F, Chiapparini L, et al. Therapeutic advances in neurodegeneration with brain iron accumulation. Semin Pediatr Neurol 2012; 19: 82-86

DOENÇAS NEUROMUSCULARES

Definição e importância do problema

As doenças neuromusculares (DNM) constituem um grupo nosológico heterogéneo, tendo em comum o compromisso da unidade motora num dos seus segmentos: neurónio motor ou 2º neurónio (tronco cerebral ou cornos anteriores da medula), raízes nervosas, nervo periférico, junção neuromuscular e músculo.

A maioria destas doenças é determinada geneticamente, tendo nas duas últimas décadas ocorrido um importante avanço na genética molecular, permitindo um diagnóstico mais rigoroso, o aconselhamento genético e o diagnóstico pré-natal.

As alterações supranucleares, ou seja, as situações em que a disfunção encefálica determina a disfunção motora (como a paralisia cerebral) não se incluem no conceito de doenças neuromusculares.

A classificação das DNM pode ser feita de acordo com a topografia, carácter congénito e adquirido, agudo ou crónico, e progressivo ou estático. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças neuromusculares classificadas de acordo com a sua topografia e etiologia

Neurónio Motor Periférico

    • Causa Genética: Atrofia Muscular Espinhal – I a III
    • Causa Adquirida: Poliomielite

Raízes e Nervos Periféricos

    • Causa Genética: Neuropatias Hereditárias Sensitivo-Motoras
    • Causa Adquirida: Síndroma de Guillain-Barré, Paralisia de Bell

Junção Neuromuscular

    • Causas Genéticas: Síndroma Miasténica Congénita
    • Causa Adquirida: Miastenia Gravis e Botulismo

Fibra Muscular

    • Causas Genéticas: Distrofias Musculares, Miopatias Congénitas, Distrofias Miotónicas e Miotonias, Miopatias Metabólicas
    • Causas Adquiridas: Miopatias Tóxicas, Miopatias Infecciosas, Miopatias Inflamatórias, incluindo Dermatomiosite Juvenil

Etiopatogénese e relação com a semiologia clínica

A anamnese e o exame do sistema neuromuscular permitem a suspeição da existência de uma DNM e da sua etiologia provável. A anamnese deverá incluir múltiplos dados relevantes, sendo de salientar a idade de início dos sintomas e a sequência temporal destes, o género do doente, a progressão temporal da doença (aguda, subaguda ou crónica), a presença de história familiar- sugerindo etiologia genética, ou o envolvimento de outros órgãos e sistemas (nomeadamente a nível cardíaco, pulmonar, cerebral, gastrintestinal, ou renal).

O exame físico, na suspeita de DNM, deve incluir a avaliação da presença de dismorfismos, da postura, da marcha, da atividade motora espontânea, do aumento do esforço respiratório, do volume das massas musculares, da presença de fasciculações, e da mobilidade articular (presença de contraturas articulares ou de hiperlaxidão ligamentar, por exemplo). A avaliação rigorosa do tónus muscular e da força muscular são fundamentais na caracterização clínica de uma possível DNM.

A hipotonia periférica ou neuromuscular relaciona-se com lesão da unidade motora. É muito menos frequente do que a hipotonia central. Quando se origina no período pré-natal, pode associar-se a artrogripose, diminuição dos movimentos fetais e poli-hidrâmnio (por dificuldades da deglutição do feto). A hipotonia é generalizada e simétrica, associa-se a parésia, a hipomobilidade, a hipo ou arreflexia (osteotendinosa e dos reflexos arcaicos), e a atrofia muscular. Geralmente não há dismorfismos associados.

No lactente, devido à hipotonia fisiológica observada a partir do 2º mês de vida, o atraso nas aquisições do desenvolvimento motor assume um papel importante.

O espectro de gravidade clínica no recém-nascido e no lactente é grande (Quadro 2), manifestando-se desde hipotonia com ligeiro atraso do desenvolvimento motor, até quadro de dificuldade alimentar (por sucção débil) e insuficiência respiratória. A abordagem terapêutica do recém- nascido com grave compromisso motor e respiratório é delicada, constituindo um problema ético.

Consideram-se parâmetros indicadores de mau prognóstico: índice de Apgar ≤ 5 aos 5 minutos, prematuridade < 36 semanas de gestação, presença de artrogripose e necessidade de ventilação mecânica por período > 4 semanas.

A hipotonia central é secundária a lesão do SNC (encefalopatias não progressivas – encefalopatia hipóxico – isquémica; cromossomopatias – síndromas de Down ou Prader-Willi; e doenças hereditárias do metabolismo – doenças dos peroxissomas, entre outras causas).

Como sinais mais sugestivos, apontam-se: o predomínio axial da hipotonia, a letargia e/ou convulsões, o exame neurológico com assimetrias (sugerindo lateralização), a persistência dos reflexos arcaicos, a hiperreflexia ósteo-tendinosa, a presença de dismorfismos e, habitualmente, a preservação da força.

Na hipotonia mista há compromisso central e periférico simultâneo, com sobreposição dos sinais clínicos referidos. São exemplos, as citopatias mitocondriais e as leucodistrofias.

A criança mais velha com doença muscular apresenta-se geralmente com compromisso das cinturas, caracterizado por défice motor proximal e atrofia dos músculos das cinturas escapular e pélvica.

A perturbação da marcha, que pode ser adquirida tardiamente, associa-se a quedas frequentes e à dificuldade em correr ou subir escadas.

Na marcha miopática (que sugere doença muscular ou uma das atrofias musculares espinhais) observa-se báscula alternada da bacia para compensar parésia proximal dos membros inferiores. Há acentuação da lordose lombar, e sinal de Gowers – (para se levantar, a criança inclinada para a frente com joelhos semiflectidos, vai apoiando as mãos nos membros inferiores, gradualmente dos pés para os joelhos, “como que “ajudando” com as mãos a estender os joelhos, a endireitar o tronco, e como que “estivesse a subir sobre si mesma”. A positividade deste sinal, para além do 3 anos indica provável DNM.

De acordo com o tempo de evolução da doença poderá haver retracções tendinosas (como a retracção do tendão de Aquiles) e deformidades esqueléticas (como o pé equino e varo) associadas ao défice motor e à atrofia muscular. Outras manifestações de doença neuromuscular são possíveis, como o palato arqueado, a paralisia facial e ocular (com ptose palpebral) e a luxação congénita da anca (consequência de hipomobilidade intrauterina).

Um défice motor com predomínio distal, atrofia muscular, hipo ou arreflexia e compromisso, também distal, da sensibilidade, sugerem o diagnóstico de neuropatia periférica. Nesta situação pode observar-se a marcha com steppage: a flexão excessiva das coxas compensa a parésia de dorsiflexão dos pés (pés pendentes).

O padrão evolutivo da doença pode sugerir um diagnóstico específico. Refira-se a fatigabilidade crescente ao longo do dia, típica de miastenia, ou o padrão de surtos desencadeados por infecções, actividade física ou jejum, sugestivos de miopatias metabólicas (citopatias mitocondriais ou glicogenoses), ou paralisia periódica.

Na distrofia miotónica e nas miotonias congénitas ocorre um fenómeno de dificuldade no relaxamento muscular após uma contracção voluntária (habitualmente mais proeminente nos músculos distais).

A associação das alterações neuromusculares com doença sistémica (hepática ou cardíaca) e metabólica (como a acidose láctica), ou de uma afecção do SNC (pela clínica e pela imagiologia), sugerem citopatia mitocondrial.

Nalguns subtipos de distrofia muscular congénita, e na distrofia miotónica, também há envolvimento do SNC. Na distrofia muscular progressiva de Duchenne podem ocorrer cardiopatia e défice cognitivo ligeiro.

O espectro fenotípico das doenças neuromusculares é muito amplo quanto à gravidade mas, na mesma família, o fenótipo tende a ser semelhante.

QUADRO 2 – Doenças neuromusculares e gravidade clínica no recém-nascido e lactente com hipotonia

*Neuropatias hereditárias sensitivo-motoras (NHSM)

Doença NM Grave

    • Dificuldade alimentar
    • Insuficiência respiratória

Atrofia Muscular Espinhal tipo 1
NHSM tipo III (forma congénita) *
Distrofia Muscular Congénita (merosina negativa)
Síndroma Miasténica Congénita
Distrofia Miotónica Congénita
Miopatia Centronuclear
Miopatia Nemalínica
Miopatia Mitocondrial

Doença NM Moderada

    • Atraso do desenvolvimento motor
    • Graus variáveis de paralisia e atrofia muscular

Atrofia Muscular Espinhal tipo 2
NHSM tipo III
Distrofia Muscular Congénita (merosina positiva)
Miopatias Congénitas
Mitocondriopatias

Doença NM Ligeira

    • Com uma vida quase normal

Atrofia Muscular Espinhal tipo 3
Síndroma Miasténica Congénita
Miopatias Congénitas

Exames complementares

A anamnese e o exame objectivo permitem a suspeita de doença neuromuscular, assim como da localização (segmento da unidade motora provavelmente afectado).

Os exames complementares de diagnóstico mais úteis são a enzimologia muscular (doseamento da fosfocreatinocinase – CPK), o electromiograma (EMG), a biópsia de músculo, a biópsia de nervo, as provas terapêuticas (como a prova do edrofónio), e os estudos de genética molecular. Refira-se ainda o estudo metabólico, os exames imagiológicos (TAC e RM), e a avaliação cardíaca (ecocardiografia).

O doseamento da CPK poderá ser útil na diferenciação entre doenças musculares primárias e neuropatias. No recém-nascido, um aumento de CPK poderá indicar distrofia muscular congénita ou distrofia miotónica congénita; no lactente e criança mais velha colocam-se as hipóteses de distrofia muscular congénita, miosite, distrofia muscular progressiva (mesmo em fase pré-sintomática), miopatias congénitas e distrofia miotónica infantil. Nos rapazes no 3º ano de vida com atraso na aquisição ou alterações da marcha, o doseamento de CPK é importante, e caso seja elevado (> 10.000 UI/L) há indicação para realizar estudo genético, dispensando-se o EMG ou a biópsia muscular.

O EMG permite diferençar qual o segmento da unidade motora afectado, sendo especialmente útil para o rápido diagnóstico de atrofia muscular espinhal tipo I (AME I – doença de Werdnig-Hoffman), de neuropatia (distinguindo a neuropatia desmielinizante da axonal, sendo fundamental o registo da velocidade de condução nervosa), e de doença da placa motora (a estimulação repetitiva do músculo induz fatigabilidade progressiva).

A biópsia de músculo (com microscopia óptica, electrónica ou com estudo imuno-histoquímico) permite o diagnóstico dos vários tipos de doenças musculares. Na distrofia muscular congénita, distrofia muscular progressiva e distrofia miotónica congénita, a microscopia óptica comprova a distrofia, sendo necessário o estudo imuno-histoquímico para uma classificação mais completa (estudo da presença de merosina ou de distrofina e sarcoglicanos, com recurso a técnicas de Western Blotting para análise quantitativa). Igualmente importante para caracterizar várias miopatias congénitas e para o diagnóstico de miopatia inflamatória.

A biópsia do nervo confirma a hipótese de neuropatia, classificando-a (por exemplo: desmielinizante ou hipomielinizante).

A RM – CE poderá ser útil nas citopatias mitocondriais (alteração de sinal dos núcleos da base e da substância branca), na distrofia muscular congénita com afecção do SNC (defeitos de desenvolvimento cortical e atrofia cerebelosa) e na distrofia miotónica congénita (áreas de possível gliose cerebral).

O estudo metabólico (lactato, piruvato, amónia, aminoácidos, ácidos orgânicos, entre outros) deve ser realizado se existir suspeita de doença metabólica.

A avaliação cardiológica deve ser feita na suspeita de doença neuromuscular que se associe a cardiopatia (miocardiopatia ou disritmias), como a distrofia muscular progressiva – de Duchenne ou de Becker, algumas mitocondriopatias, glicogenoses, algumas miopatias congénitas e distrofia miotónica.

Os estudos de genética molecular, realizados em centros especializados, são essenciais para a confirmação diagnóstica de algumas doenças neuromusculares e sua classificação mais exacta (classificação que, com os progressos rápidos da ciência, se desactualiza a breve trecho).

Os estudos de genética molecular são essenciais para a confirmação diagnóstica das doenças neuromusculares genéticas. Estes estudos são particularmente úteis para distinção das diferentes formas de distrofias musculares, de miopatias congénitas, de miopatias mitocondriais e de polineuropatias sensitivo-motoras (agrupadas com a designação genérica de CMT- proveniente do epónimo doença de Charcot-Marie-Tooth, que designa grande parte das neuropatias genéticas). Igualmente nos casos suspeitos de distrofinopatia pela verificação de elevação do CPK em jovens pré-escolares do sexo masculino, com hipertrofia dos gémeos/ retração do tendão de Aquiles, ligeiro atraso no início da marcha, com ou sem antecedentes familiares de doença muscular, está indicado o estudo inicial do gene DMD.

Saliente-se que os painéis NGS atualmente disponíveis não identificarão as doenças neuromusculares genéticas devidas à variação do número de cópias, sendo necessário para estas métodos de diagnóstico próprios (como ocorre na maioria dos casos de Distrofia Muscular de Duchenne/ Becker, distrofia fascio-escápulo-umeral, ou na distrofia miotónica, por exemplo). 

Tratamento

A abordagem terapêutica destas doenças consiste sobretudo em métodos paliativos, como a reabilitação motora e a cirurgia ortopédica, tentando minorar os défices motores apresentados pelos doentes. A abordagem terapêutica do recém-nascido com grave compromisso motor e respiratório é delicada, constituindo um problema ético. Nas patologias em que pode haver compromisso da função respiratória, esta deve ser avaliada periodicamente, iniciando, logo que se justifique, programa de ventilação (inicialmente não invasiva, e intermitente, como o BIPAP nocturno); se existirem dificuldades alimentares há que ponderar a gastrostomia. A restante patologia associada (cardiológica, oftalmológica, pedopsiquiátrica, otorrinolaringológica) deverá ser avaliada pelo especialista respectivo por indicação do médico responsável.

Alguns tipos de doença neuromuscular progressiva têm terapêutica farmacológica específica (por exemplo: várias modalidades de imunomodulação e medicamentos colinérgicos na miastenia grave, e corticóides na distrofia muscular de Duchenne).

Uma nova etapa no tratamento das doenças neuromusculares genéticas começa agora. Em 2017 foi aprovada a primeira terapia genética para Atrofia Muscular Espinhal (nusinersen). As terapias aprovadas ou em avaliação através de ensaios clínicos podem ser assim sumarizadas, referindo-se apenas as principais:

  1. Terapêuticas de interferência no mRNA:
    1. exon skipping com oligonucleotidos antisense para promover a restauração da reading frame  em diversos estudos nomeadamente em doentes com Distrofia Muscular de Duchenne com deleções que causam disrupção da reading frame
    2. modificadores do splicing do pre mRNA com oligonucleotidos antisense terapêuticas já aprovadas para Atrofia Muscular Espinhal (nusinersen e risdiplam)
    3. supressão do nonsense promove a leitura do mRNA através de um codão stop prematuro, aumentando a síntese da proteína (ataluren, já aprovado para Distrofia Muscular de Duchenne com mutações nonsense)
  2. Terapia génica: é realizada a transdução do gene através da sua inclusão num vector viral (AAV- vírus adeno-associados) administrado endovenosamente (onasemnogene abeparvovec, já aprovado para Atrofia Muscular Espinhal, outros em avaliação em ensaios clínicos)

A integração do indivíduo com doença neuromuscular no seu meio é um desafio multidisciplinar, envolvendo diferentes parceiros (assistente social, professores, entre outros), e a obtenção de ajudas técnicas (cadeiras de rodas, coletes ortostáticos, computadores, etc.).

Formas clínicas

De acordo com o segmento da unidade motora afectado, são descritas sucintamente as doenças neuromusculares mais frequentes e/ou mais típicas em clínica pediátrica.

1. Doenças do corno anterior medular

Atrofia muscular espinhal (AME)

Importância do problema: trata-se de uma doença degenerativa (por mecanismo apoptótico) dos cornos anteriores medulares e dos núcleos motores de alguns pares cranianos.

Constitui a segunda doença neuromuscular mais frequente (a seguir à distrofia muscular de Duchenne), com uma incidência de 1/20.000 recém-nascidos. 

Etiologia: a AME é uma doença genética autossómica recessiva associada em 95% dos casos à deleção homozigótica do exão 7 do gene SMN-1 (Survival Motor Neuron, de localização telomérica), no braço longo do cromossoma 5 (5q11q13). A gravidade do fenótipo relaciona-se com o número de cópias existentes do gene SMN-2 (idêntico ao SMN-1, mas situado no centrómero); é menos grave se houver muitas cópias presentes, justificando-se assim a variabilidade fenotípica.

Patologia: existe atrofia muscular neurogénica (desnervação) ou secundária.

Clínica e evolução: variam de acordo com a idade de início e a gravidade do envolvimento motor:

  1. AME – 1 (Doença de Werdnig-Hoffmann). É a causa mais frequente de hipotonia neuromuscular no recém-nascido e no lactente. Os sinais clínicos têm início antes dos 6 meses de idade, não adquirindo a criança a capacidade de se sentar sem apoio. Os movimentos fetais são escassos. As manifestações iniciais são: hipotonia progressiva, parésia de predomínio proximal, arreflexia e fasciculações da língua. A afecção dos músculos intercostais e bulbares leva a compromisso respiratório, com insuficiência e infecções respiratórias graves, sendo estas a causa de mortalidade, ocorrendo geralmente antes dos 2 anos de idade.
  2. AME – 2 (Forma Intermédia). Inicia-se entre os 6 e 12 meses de idade, com hipotonia e parésia (sobretudo dos membros inferiores). A criança consegue sentar-se sem apoio, embora não adquira a marcha. Há um progressivo envolvimento dos membros superiores e dos músculos respiratórios, com compromisso respiratório na segunda década de vida (causa de morte).
  3. AME – 3 (Doença de Kugelberg-Welander). Tem início após os 18 meses de idade, com aquisição da marcha (embora com dificuldades associadas). Há diminuição da força das cinturas pélvica e escapular. Poderá haver perda da marcha na segunda década de vida.

Diagnóstico: é confirmado pelo EMG, biópsia de músculo e estudo de genética molecular.

Poliomielite

Etiopatogénese e clínica: a infecção pelo poliovírus tipos 1-3 (enterovírus) é hoje pouco comum nos países desenvolvidos e designadamente em Portugal, o que se explica pelo sucesso dos programas de imunização.

O período de incubação oscila geralmente entre 8-12 dias (com variações entre 5 e 35 dias).

Descrevem-se as seguintes formas clínicas:

  1. Forma assintomática (mais de 90% dos casos);
  2. Doença minor ou não paralítica (cerca de 5% dos casos). As manifestações clínicas são: febre, mal-estar, odinofagia e vómitos surgindo cerca de 4 dias após exposição ao vírus; a evolução é favorável com cura espontânea;
  3. Forma paralítica (cerca de 0,1% dos casos) ocorrendo com uma sequência de manifestações idênticas às da doença minor;
  4. Por sua vez, a poliomielite paralítica integra 3 síndromas distintas relacionadas com os territórios do SNC mais intensamente afectados:
    1. bulbar acompanhada de paralisias dos músculos faciais, da mastigação, respiratórios, etc. em função dos centros afectados;
    2. polioencefalite em que se verifica compromisso dos centros superiores do encéfalo; podem surgir convulsões e coma, para além de paralisia espástica e sinais de irritação meníngea;
    3. espinhal: é esta forma que é paradigmática da afecção do corno anterior e que justifica a inclusão da poliomielite neste capítulo de doenças neuromusculares.

Para além de fasciculações e espasmos, salienta-se a particularidade da paralisia flácida assimétrica, sobretudo das áreas proximais do membro inferior de um lado (um só músculo ou grupos de músculos), podendo posteriormente outro membro (superior) também ser atingido. A fase de paralisia tem duração variável com recuparação ou sequelas, o que depende do grau de lesão neuronal. A paralisia dos membros inferiores pode associar-se a disfunção vesical ou dismotilidade intestinal. Se forem afectados os segmentos espinhais cervicais e torácicos, pode surgir insuficiência respiratória.

Tratamento: o tratamento é sintomático, sendo que não existe tratamento específico antivírico. Na fase aguda estão contraindicados procedimentos cirúrgicos e injecções intramusculares.

De referir que as estirpes de vacina viva podem originar infecções fatais em crianças com agamaglobulinémia ou imunodeficiência combinada.

2. Polirradiculoneuropatias

Síndroma de Guillain-Barré (SGB)

Definição e importância do problema: trata-se de uma polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória aguda, levando a paralisia progressiva após infecção ou imunização.

A SGB tem uma prevalência de 1-4/100.000, afectando, em geral, as crianças com idade superior a 2 anos. Ocorre insuficiência respiratória em 25% dos casos, sendo necessária ventilação artificial. A mortalidade é cerca de 2-3% na criança, sendo superior no adulto (até 15%). 

Etiopatogénese: observa-se lesão do neurónio motor (raiz e nervo periférico) com desmielinização, presença de linfócitos e de macrófagos, mediada por mecanismo auto-imune (presença de auto-anticorpos anti-gangliósido – GM1 e GM1b). Uma infecção ou imunização que leve a uma alteração das populações de células T supressoras, e de linfócitos T e B que reconhecem antigénios do sistema nervoso, poderá estar na génese do SGB. A infecção desencadeante tem geralmente etiologia vírica (VEB, CMV, VHA, VHB, vírus da varicela-zóster, vírus do sarampo e da rubéola, Influenza A e B, Coxsackie e Echovirus), embora possa ser bacteriana (Campylobacter jejuni e Mycoplasma). As vacinas anti-rábica ou anti-influenza também se associam a SGB.

Clínica e evolução: a redução gradual da força e as parestesias são as queixas iniciais. A avaliação neurológica revela uma paralisia generalizada, essencialmente simétrica, geralmente distal (embora possa ser proximal ou mista), com carácter ascendente (sequencialmente: membros inferiores, membros superiores, tronco, e face) e arreflexia generalizada. A paralisia dos músculos respiratórios com necessidade de ventilação mecânica é uma complicação da SGB.

Caso haja ataxia e oftalmoplegia é provável tratar-se da síndroma de Miller-Fisher (SGB com afecção dos pares cranianos). Há sinais de disfunção dos nervos autonómicos tais como hipotensão, taquicardia, hipertensão e arritmia cardíaca; pode verificar-se igualmente disfunção do esfíncter vesical. Após o início dos primeiros sintomas pode haver agravamento no período de 10 a 30 dias.

Diagnóstico: o exame do LCR revela dissociação albumino-citológica (hiperproteinorráquia com contagem celular < 10 células/mm3). A electrofisiologia revela diminuição das velocidades de condução nervosa sensitiva e motora, compatível com desmielinização. O diagnóstico diferencial deve ser feito com as neuropatias periféricas (tóxicas e infecciosas), a poliomielite (sobretudo a vacinal), mielopatia aguda por compressão medular (tumor, trauma, abcesso), esclerose múltipla, doença muscular (polimiosite, miopatia mitocondrial) e doença da placa neuromuscular (miastenia gravis).

Prognóstico: a recuperação é, em geral, completa, havendo sequelas neurológicas em 5-25% dos doentes. Pode haver recorrência de SGB em 3% dos casos. Os factores de mau prognóstico são: maior gravidade do défice motor; maior período desde o início da doença até ao início da recuperação, e EMG com sinais de desnervação.

Tratamento: a instabilidade clínica obriga a internamento hospitalar com monitorização contínua dos parâmetros vitais; poderá ser necessário entubação para ventilação imediata. A abordagem terapêutica actual baseia-se na administração de imunoglobulina (2 g/kg) por via intravenosa (dose total), em 2 dias – com resultados sobreponíveis à plasmaferese.

Neuropatias hereditárias sensitivo-motoras (CMT/Charcot-Marie-Tooth)

Importância do problema: as neuropatias hereditárias sensitivo-motoras são o grupo de doenças degenerativas do sistema nervoso periférico mais comuns na criança (40% das neuropatias crónicas).

Etiopatogénese e clínica: a degenerescência da bainha de mielina e/ou axónios leva a uma amiotrofia paralítica distal com arreflexia, envolvendo inicialmente os membros inferiores. Os avanços na genética molecular contribuiram para uma melhor compreensão destas doenças.

A classificação actual combina critérios electromiográficos (demielinizante versus axonal) com padrões de transmissão genética: dominante e desmielinizante (CMT1), dominante e axonal (CMT2), recessiva (CMT4).

  1. CMT1A (dominante, desmielinizante, duplicação do gene PMP22 no cromossoma 17); pode surgir na criança depois dos 3 anos de idade.
  2. CMT4 (recessiva, múltiplos genes descritos) (o epónimo Déjerine- Sottas era anteriormente usado para algumas destas neuropatias); o quadro clínico tem início na infância precoce com paralisia predominantemente distal, arreflexia, por vezes hipertrofia de troncos nervosos, associando-se a não aquisição ou perda da marcha.
  3. Uma forma congénita mais grave (neuropatia congénita hipomielinizante, também com vários genes identificados) pode ainda determinar insuficiência respiratória e compromisso dos músculos bulbares.

Diagnóstico: o EMG é fundamental, revelando redução na velocidade de condução nervosa. A biópsia de nervo realiza-se actualmente com menor frequência, tendo vindo a ser substituída pelos estudos de genética molecular.

Paralisia de BELL

Definição e etiopatogénese: a paralisia de Bell é uma paralisia aguda do nervo facial, unilateral, não associada a outras neuropatias cranianas ou a disfunção do tronco cerebral.

Surge em todas as idades abruptamente, cerca de 2 semanas após uma infecção vírica (mais frequentemente por vírus Herpes simplex tipo 1), mas também em associação a Mycoplasma ou Borrelia. De tal resulta neuropatia desmielinizante do VIIº nervo craniano.

Trata-se dum processo de mecanismo imune, secundário à agressão infecciosa inicial. No período neonatal, a paralisia facial pode resultar de compressão traumática do nervo facial por forceps.

Clínica, tratamento e prognóstico: verifica-se no lado afectado parésia da hemiface, sulco nasogeniano menos marcado, comissura labial mais aproximada da linha média e impossibilidade de aproximação das pálperas (lagoftalmo por paralisia orbicular).

Existe diminuição da sensibilidade gustativa dos 2/3 anteriores da língua em cerca de 50% dos casos. No RN a assimetria da mímica facial pode raramente ser causada por ausência congénita do músculo depressor angular oris.

Por vezes verifica-se hipertensão arterial. Como há impossibilidade de aproximação das pálpebras do lado afectado (trata-se duma paralisia facial periférica) pode surgir conjuntivite ou ceratite secundária, implicando cuidados especiais (protecção do globo ocular) com penso oclusivo, a definir pelo oftalmologista.

A prednisolona oral (1 mg/kg/dia) durante 7 dias, iniciada nos primeiros 3-5 dias da evolução poderá contribuir para processo de melhoria mais rápida. A fisioterapia está indicada nos casos arrastados.

O prognóstico é favorável com recuperação espontânea em cerca de 90% dos casos, a qual, no entanto, pode verificar-se em 2-3 meses.

3. Doenças da junção neuromuscular

Estas doenças, raras em Pediatria, integram três tipos:

Síndroma miasténica congénita (não autoimune)

Pode manifestar-se desde o nascimento (raramente), ou durante a infância. Diferentes defeitos ao nível pré-sináptico, sináptico ou pós-sináptico levam a défices distintos (nos receptores colinérgicos, na acetilcolinesterase, etc.). Existem diferentes padrões de transmissão genética (autossómica recessiva ou autossómica dominante) e várias mutações descritas.

O diagnóstico de síndroma miasténica congénita deve ser considerado quando há hipotonia com choro fraco (num recém-nascido ou lactente), fatigabilidade afectando a musculatura ocular, bulbar e dos membros, existência de familiar com quadro clínico semelhante, resposta electromiográfica alterada com a estimulação repetitiva e doseamento de anticorpos anti-receptores de acetilcolina (ACh) negativo. A resposta à terapêutica com medicamentos colinérgicos é geralmente insuficiente.

Miastenia gravis com início juvenil (autoimune)

Caracteriza-se por apresentação aguda de fraqueza muscular nos membros, com fadiga crescente ao longo do dia e envolvimento bulbar (dificuldade na mastigação, na deglutição e na fonação) e ocular (ptose palpebral bilateral e oftalmoplegia). Associa-se a outras doenças autoimunes, sobretudo a hipotiroidismo. A investigação deverá incluir uma prova terapêutica (com edrofónio, ou com neostigmina); o doseamento de anticorpos anti-receptores de ACh; o EMG (com estimulação repetitiva de um nervo motor, obtendo-se potenciais cada vez menos amplos, com aumento do tempo de latência pela fatigabilidade muscular); e a TAC torácica (para pesquisa de timoma). A abordagem terapêutica inclui fármacos colinérgicos, corticoterapia, imunossupressores, gamaglobulina endovenosa, plasmaferese e, por vezes, a timectomia.

Miastenia neonatal transitória

Trata-se duma forma transitória no recém-nascido, filho de mãe com miastenia gravis (ocorrendo em 15% dos casos); manifesta-se nas primeiras 48 horas de vida com sinais miasténicos acentuados (SDR, hipotonia, actividade motora diminuta, reacção fraca ou ausente, dificuldade na deglutição) que duram enquanto houver anticorpos anormais no sangue e músculo. Não existe risco da miasteria grave mais tarde.

O tratamento é sintomático (assistência respiratória, alimentação com sonda gástrica, etc.), incluindo em geral a administração de colinérgicos.

4. Doenças musculares

As doenças musculares constituem um conjunto heterogéneo de patologia afectando primariamente o músculo, na sua maioria transmitidas geneticamente.

Distrofias musculares progressivas

O termo distrofia significa crescimento anormal e deriva do Grego trophe, que corresponde a alimento ou nutrição.

Uma distrofia muscular distingue-se de todas as outras doenças neuromusculares por 4 critérios obrigatórios: miopatia; base genética; evolução progressiva; e degenerescência e morte das fibras musculares em diversas fases da doença.

As distrofias musculares progressivas heredofamiliares são caracterizadas anátomo-patologicamente por alteração do músculo (fibras musculares necrosadas, com sinais de regeneração, hialinizadas, com mistura de fibras atróficas e hipertróficas, e ainda proliferação de colagénio e adipócitos na zona da lesão das fibras musculares), o que se traduz na clínica pela ocorrência de pseudo-hipertrofia dos gémeos e miocardiopatia).

Para além da distrofia muscular de Duchenne e de Becker, a que se dá ênfase como formas de distrofia muscular progressiva, cabe referir ainda a distrofia facio-escápulo-umeral (apenas citada).

  • Distrofias musculares progressivas de Duchenne (DMD) e de Becker (DMB). A DMD é a doença neuromuscular hereditária mais comum, com padrão de transmissão recessiva ligada ao cromossoma X. Tem uma incidência aproximada de 17 por 100.000 recém-nascidos. A DMB tem uma menor incidência (cerca de um terço), mas igual prevalência devido à maior longevidade nesta última.
    Pelo facto de a proteína implicada na etiopatogénese ser a distrofina, estas doenças também se denominam distrofinopatias. O gene da distrofina, localizado no braço curto do cromossoma X (Xp21), apresenta habitualmente deleção, sendo possível demonstrá-lo em 60-70% dos casos na DMD, e em 90% dos casos na DMB.

A distrofina localiza-se nas membranas celulares dos miócitos, encontrando-se também no SNC. Cerca de 30% dos casos deve-se a novas mutações. As mulheres portadoras são geralmente assintomáticas, embora raramente possa haver manifestações ligeiras a moderadas (por lionização desigual, mosaicismo X0/ XX, ou cromossoma X anómalo).

Na DMD a distrofina está ausente, e na DMB há produção de distrofina, embora em menor quantidade ou com menor peso molecular.

As manifestações clínicas iniciais da DMD têm início entre os 2-4 anos (por vezes mais cedo), com pseudo-hipertrofia dos gémeos, sinal de Gowers e marcha miopática. Aos 6-7 anos surge envolvimento da cintura escapular, e entre os 9-12 anos há perda da marcha autónoma. No final da segunda década de vida ou início da terceira há insuficiência respiratória e cardíaca, conduzindo à morte. Na DMB os sintomas iniciam- se entre os 6-7 anos (ou mais tarde); a perda da marcha nem sempre acontece.

Ocorre défice cognitivo, em geral ligeiro, em 30% dos casos de DMD, e em 10% dos casos de DMB. A cardiomiopatia observa-se em mais de metade dos doentes com distrofinopatia, afectando sobretudo a parede póstero- lateral do ventrículo esquerdo e levando a valvulopatias e arritmias.

O diagnóstico baseia-se fundamentalmente na genética molecular e na biópsia muscular (nos 20% dos casos em que não se encontra a mutação). Em determinados casos, o doseamento de CPK (geralmente > 10.000 UI/L, sendo normal < 160) poderá dar o seu contributo. É possível diagnóstico pré-natal.

O tratamento com corticóides – prednisolona ou deflazacort – com início aos 5-6 anos (ainda com a massa muscular conservada), em esquema intermitente, parece reduzir a velocidade da progressão da doença, podendo atrasar em 1 a 3 anos a utilização da cadeira de rodas, e a progressão da cifoscoliose. O transplante de mioblastos e a terapia génica encontram-se em investigação. Relativamente a este último tópico, cabe referir estudos sofisticados (englobando vectores adenovíricos e fragmentos da molécula da distrofina/microdistrofina, de resultados ainda não conclusivos) com o objectivo de restaurar a expressão da distrofina.

Distrofias musculares congénitas (DMC)

A designação de DMC pode considerar-se confusa, pois todas as DM são geneticamente determinadas (transmissão AR é a regra).

Estas situações correspondem a um grupo heterogéneo de doenças degenerativas primárias e progressivas do músculo esquelético, com início no período intrauterino, ou até ao primeiro ano de vida. A incidência é cerca de 1/60.000 nascimentos, e a prevalência é de 1/100.000 habitantes. Várias DMC têm sido identificadas com base nas características clínicas, patológicas e genéticas: deficiência de merosina ou laminina alfa 2, tipo Ullrich (genes do colagénio 6A), com «rigid spine» (gene SEPN1), síndromas oculocerebromusculares (múltiplos genes) e outras.

No tipo mais frequente (no Japão, Alemanha, Escandinávia e Turquia) a seguir à DMD foi identificado defeito genético no locus 8q 31-33; e em certas formas clínicas, mutações em genes essenciais para a migração do neuroblasto no SNC, como o POMT1. É o designado por “tipo de Fukuyama”.

As DMC caracterizam-se por hipotonia, paralisia com predomínio proximal, arreflexia, retracções tendinosas, frequente afecção dos músculos respiratórios e dificuldade alimentar. Nalguns casos há afecção do SNC, com anomalias estruturais encefálicas, cardiomiopatia e microcefalia.

O diagnóstico baseia-se na clínica, no doseamento de CPK (com ligeiro/moderado aumento), na biópsia muscular e na genética molecular (diagnóstico definitivo).

Histologicamente ocorrem alterações distróficas musculares (fibras com calibre variável, com necrose e proliferação de tecido intersticial), podendo a imuno-histoquímica revelar a presença, ou não, de merosina (alfa-2 laminina).

A evolução clínica é em geral lentamente progressiva ou estática, podendo haver compromisso respiratório (com envolvimento do diafragma), levando à morte.

Outras distrofias musculares

Estão de longa data descritos na literatura neurológica doentes ou famílias com um fenótipo semelhante a DMD ou intermédio entre DMD e DMB, e um padrão de transmissão de doença recessiva ou dominante. Este grande grupo de distrofias musculares foi progressivamente individualizado com base em estudos de genética molecular. Utiliza-se habitualmente a sigla LGMD (limb-girdle muscular distrophy).

O tipo LGMD1 corresponde às formas dominantes que têm em geral uma apresentação mais tardia e um curso menos grave. O tipo LGMD2 designa as formas recessivas. Os subtipos classificam-se com letras (exemplos LGMD2A-calpainopatia, LGMD2B-disferlinopatia, LGMD2C-alfa-sarcoglicanopatia, etc.).

As distrofias musculares de tipo recessivo têm frequentemente um início na primeira infância. São relativamente frequentes, evidenciando pseudo-hipertrofia dos gémeos e cardiomiopatia. Algumas crianças têm uma apresentação «pseudo-metabólica» com episódios de mioglobinúria associados com esforço ou doenças infecciosas.

Miopatias congénitas

As miopatias congénitas são doenças primárias do músculo, na sua maioria de transmissão genética (com vários padrões), e manifestação precoce. Na base desta patologia estão diversos genes implicados em anomalias do processo de diferenciação da célula mesodérmica indiferenciada.

A evolução é lentamente progressiva ou estática. A histopatologia revela anomalia estrutural muscular, com variações no tamanho e número de fibras e/ou presença de inclusões evidenciadas por microscopia electrónica. Na sua origem haverá provavelmente uma anomalia do desenvolvimento e maturação das fibras musculares.

Geneticamente estão descritos diferentes loci implicados.

Como manifestações clínicas referem-se hipotonia, hiporreflexia, amimia facial, micrognatia e palato ogival. A CPK pode estar normal ou moderadamente aumentada; e o EMG revela potenciais motores polifásicos de baixa amplitude. A biópsia muscular associada à microscopia electrónica e a genética molecular confirmam o diagnóstico.

As miopatias congénitas mais bem caracterizadas são:

  • Miopatia central core
    Pelo exame anátomo-patológico identificam-se, nas fibras musculares tipo I, áreas centrais desprovidas de enzimas oxidativas. Há hipotonia neonatal e deformidades-luxação congénita da anca, cifoscoliose e contracturas dos dedos da mão em flexão.
    Estão descritos padrões de transmissão dominante, recessiva e formas esporádicas. Este tipo de miopatia evidencia susceptibilidade à hipertermia maligna.
  • Miopatia nemalínica 
    Histologicamente observam-se estruturas em forma de filamento (rods), compostas por a-actinina e desmina (dos discos z). Há heterogeneidade fenotípica, apresentando a forma mais grave hipotonia neonatal e paralisia proximal, amimia, dificuldade alimentar e respiratória, dismorfismos craniofaciais e envolvimento cardíaco. Os quadros menos graves têm um início mais tardio. O padrão de transmissão pode ser autossómico recessivo ou autossómico dominante. São conhecidas várias mutações genéticas afectando uma proteína muscular específica.
  • Miopatia centronuclear
    A microscopia revela miotúbulos fetais dispostos centralmente na fibra muscular, sugerindo um atraso na maturação do sistema sarcotubular. Há várias apresentações possíveis: na forma ligada ao cromossoma X (locus Xq28) a sintomalogia clínica é muito grave, com insuficiência respiratória e dificuldade alimentar após o parto; as formas autossómicas (recessivas ou dominantes) são menos graves, com variabilidade fenotípica. A sinomatologia é muito grave, com insuficiência respiratória, dificuldade alimentar, ptose palpebral, oftalmoplegia e ocasional envolvimento do SNC (com convulsões e défice cognitivo).

Doença miotónica (Doença de Steinert)

Com uma incidência de 1/30.000 na população geral e, de transmissão AD, é a segunda distrofia muscular mais comum nos EUA, Europa e Austrália. Não somente a musculatura estriada está afectada, mas igualmente e musculatura lisa do aparelho digestivo, útero e coração. Pode haver endocrinopatia, imunodeficiência e cataratas.

As manifestações iniciais aparecem no período pré-natal (artrogripose múltipla ou polidrâmnio) ou neonatal com hipotonia, fácies miopática, palato ogival, dificuldade alimentar e respiratória (com necessidade de ventilação); a mortalidade é elevada (25% dos doentes) por insuficiência respiratória. As crianças que sobreviveram ao 1º ano podem apresentar défice cognitivo e “fraqueza” facial, (lábio superior em V invertido) com melhoria evidente da função muscular até à 2ª ou 3ª década de vida, altura em que se instala um quadro de miopatia progressiva com défice cognitivo. A miotonia só se observa após o período neonatal. A mãe da criança é doente, podendo não manifestar os sintomas exuberantes.

A biópsia muscular sugere deficiente maturação muscular (fibras pequenas, pouco diferenciadas com padrão muito semelhante ao da miopatia miotubular). A genética molecular contribui para o diagnóstico, revelando a expansão da repetição do tripleto CTG na análise da mutação do gene DMPK (gene da miotonina-locus 19q13.3). Nesta doença há o fenómeno de antecipação que consiste numa maior precocidade no início da doença, e num aumento da gravidade da mesma nas gerações seguintes.

Miosites

A inflamação do tecido muscular ou miosite (pós-infecciosa) é uma situação aguda e transitória, possivelmente mediada imunologicamente, e desencadeada por uma infecção vírica (Enterovirus, Echovirus, Coxsackie B, Influenza A e B, VEB, HSV, Varicella-zoster, entre outros). O quadro clínico consiste em mialgias intensas (geralmente nos gémeos), com dor à palpação dos músculos envolvidos, e impotência funcional. A terapêutica é sintomática, sendo esta situação auto-limitada. As miosites de origem bacteriana ou parasitária são muito raras nos países desenvolvidos.

NOTA: Sugere-se a consulta do Glossário Geral relativamente aos termos Artrogripose e Miotonia.

BIBLIOGRAFIA

Arzimanoglou A, O’Hare A, Johnston M, Ouvrier R. Aicardi’s Diseases of the Nervous System in Childhood. London: Mac Keith Press, 2018

Darras BTJones HR. Diagnosis of pediatric neuromuscular disorders in the era of DNA analysis. Pediatr Neurol 2000; 23: 289-300

Darras BT, Jones HR, Ryan MM, De Vivo DC. Neuromuscular Disorders of Infancy, Childhood and Adolescence- A Clinician’s Approach. London: Elsevier, 2015

Deconinck N, Dan B. Pathophysiology of Duchenne Muscular Dystrophy: current hypotheses. Pediatr Neurol 2007; 36: 1 – 7

Dowling JJ, Gonorazky HCohn RD, et al. Treating pediatric neuromuscular disorders: the future is now. Am J Med Genet A 2018;176(4):804-841. doi: 10.1002/ajmg.a.38418

Houlden H, Blake J, Reilly MM. Hereditary sensory neuropathies. Curr Opin Neurol 2004; 17: 569-577

Kana V, Kellenberger CJ, Rushing EJ, Klein A. Muscle magnetic resonance imaging of the lower limbs: valuable diagnostic tool in the investigation of childhood neuromuscular disorders. Neuropediatrics 2014; 45: 278 | – 288

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kynes JM,  Blakely M, Furman K, et al. Multidisciplinary perioperative care for children with neuromuscular disorders. Children (Basel) 2018; 5(9):126. doi: 10.3390/children5090126

Mercuri E, Pera MC, Brogna C. Neonatal Hypotonia and Neuromuscular Conditions. In: De Vries LS, Glass HC, editors. Handbook of Clinical      Neurology- Neonatal Neurology. Cambridge, MA: Elsevier, 2019; 435-448

Ravi B, Antonellis A, Sumner CJ, Lieberman AP. Genetic Approaches to the Treatment of Inherited Neuromuscular Diseases. Human Molecular Genetics 2019; 28(R1): p55-64.

Swaiman KF, Ashwal S, Ferriero DM, Schor NF, et al. Swaiman’s Pediatric Neurology- Principles and Practice. Edinburgh: Elsevier, 2018

Wylam ME, Anderson PM, Kuntz NL, Rodriguez V. Successful treatment of refractory myasthenia gravis using rituximab: a pediatric case report. J Pediatr 2003; 143: 674-677

SÍNDROMAS NEUROCUTÂNEAS

Definição

As síndromas neurocutâneas (anteriormente designadas facomatoses – termo derivado de phakos <> lesões na pele, e de oma <> tumorações extracutâneas) são definidas como doenças hereditárias heterogéneas que se caracterizam por anomalias nas estruturas de origem ectodérmica, manifestações cutâneas com tendência tumoral, e alterações do sistema nervoso; outros órgãos como o olho, rim e coração, pulmão e esqueleto são também afectados.

Por estar comprometida a diferenciação e o crescimento celulares (designadamente a diferenciação da ectoderme primitiva), a organogénese está igualmente perturbada, com consequente formação de tumores, geralmente benignos.

As situações que cabem no âmbito da definição são a neurofibromatose, a esclerose tuberosa, a síndroma de Sturge-Weber, a incontinentia pigmenti, a ataxia telangiectasia, a doença de von Hippel-Lindau, a síndroma PHACE, a hipomelanose de Ito e a síndroma de nevus linear.

Formas clínicas

Nesta alínea são abordadas as formas mais frequentes de síndromas neurocutâneas.

1. Neurofibromatose tipo 1 (NF1), ou doença de Recklinghausen, é a síndroma neurocutânea mais frequente, ocorrendo aproximadamente na proporção de 1/3.000 nascimentos. É devida a uma mutação no gene NF1 localizado no cromossoma 17q11.2 o qual codifica uma proteína citoplásmica activadora – a neurofibromina – que actua como supressor ou regulador do crescimento celular e tumoral.
Afecta todos os sexos e raças, e a hereditariedade é autossómica dominante, com penetrância de 98%. A clínica pode ter uma expressão muito variável, sendo o diagnóstico afirmado na presença de determinados critérios (dois ou mais) dos referidos no Quadro 1. Salienta-se que o diagnóstico pode demorar a fazer-se até aos 4-5 anos, quando a doença adquire maior expressividade.

QUADRO 1 – Diagnóstico de neurofibromatose

Critérios de diagnóstico de neurofibromatose (presença de dois ou mais)
    • 6 ou mais manchas “café com leite” (≥ 5 mm abaixo dos 6 anos e ≥ 15 mm acima dos 6 anos)
    • Áreas hiperpigmentadas (sardas), axilares e inguinais
    • 2 ou mais nódulos de Lisch (hamartomas da íris)
    • 2 ou mais neurofibromas ou um neurofibroma plexiforme
    • Lesão óssea (escoliose/cifose, pseudartrose, displasia esfenoidal)
    • Glioma óptico
    • Parente em primeiro grau com a doença

As manchas de tipo “café com leite”, geralmente presentes desde o nascimento, tendem a aumentar em número e tamanho com a idade, ao mesmo tempo que vão surgindo os neurofibromas na pré-puberdade (Figura 1). Associam-se frequentemente ao glioma das vias ópticas (Figura 2) e a estenose do aqueduto de Sylvius. De referir, contudo, que nem todos os indivíduos com tais manchas padecem de neurofibromatose.

Os hamartomas da íris ou nódulos de Lisch raramente se encontram nos primeiros anos de vida, surgindo durante a adolescência. Podem ser identificados através do exame com lâmpadas de fenda.

FIGURA 1. Neurofibromatose tipo I. Manchas tipo “café com leite”

FIGURA 2. Glioma da via óptica (TAC-CE)

A NF1 constitui a forma clínica que mais frequentemente se associa a tumores do sistema nervoso central (SNC), periférico e doutros órgãos, sendo de natureza histológica e de incidência muito variáveis.

Os gliomas da via óptica, os mais frequentes (cerca de 15%), estão presentes desde o nascimento na maioria dos casos (Figura 2). O diagnóstico deve ser feito nos primeiros anos de vida; o exame imagiológico através da ressonância magnética (RM) é o ideal para avaliação das lesões tumorais.

Os tumores do sistema nervoso periférico são neurofibromas e schwannomas, localizados na maioria das vezes na zona de exteriorização das fibras sensitivas no canal raquidiano.

FIGURA 3. Neurofibromatose tipo I: imagem radiológica de pseudartrose.

As alterações ósseas são também frequentes, destacando-se a escoliose com ou sem cifose, a pseudartrose, (Figura 3) a displasia facial (esfenoidal) e, menos frequentemente, a hemi-hipertrofia facial ou generalizada.

As dificuldades escolares são muitas vezes a primeira preocupação dos pais. O défice cognitivo nestes doentes não é habitualmente acentuado, mas estima-se que o quociente de inteligência (QI) se situe entre 15 a 20 pontos abaixo do dos irmãos não afectados. A epilepsia é habitualmente uma complicação menor da NF1 e geralmente de fácil controlo. Outras complicações descritas são a puberdade precoce, além de perturbações endócrinas e a agenesia do corpo caloso.

Neste tipo I de neurofibromatose, advoga-se o tratamento conservador. Quando existem tumores invasivos de crescimento rápido pode tentar-se o tratamento cirúrgico, radioterapia ou quimioterapia, sendo que se gera controvérsia nalgumas modalidades tais como no caso do glioma do nervo óptico.

Na maioria dos casos de NF tipo I a evolução é lentamente progressiva, o que permite sobrevivência significativa. Como se pode depreender, está indicado o seguimento multidisciplinar dada a complexidade da etiopatogénese. 

2. Neurofibromatose tipo II (NF2), com uma incidência de 1/50.000 (10% das neurofibromatoses), e manifestando-se após a segunda década de vida, comporta também o modo de transmissão autossómica dominante; podem ocorrer casos esporádicos. O seu gene (NF2), localizado no cromossoma 22q12.2 em 70% dos casos, determina a produção duma proteína anómala chamada merlina. As manchas “café com leite”, clássicas da NF1, podem ou não estar presentes; quando presentes, em menor número relativamente à NF1.

As manifestações iniciais traduzem-se dum modo geral por hipoacusia uni ou bilateral; daí o facto de esta doença ser inicialmente conhecida por neurofibromatose acústica, traduzindo a presença de neurinomas (schwannomas) do acústico unilaterais ou bilaterais. Neste tipo de NF pode verificar-se igualmente o desenvolvimento doutros tumores intracranianos, tais como meningiomas, astrocitomas e schwannomas espinhais.

O diagnóstico obriga à presença dos seguintes critérios: massas bilaterais do VIIIº nervo craniano e história familiar de NF2 com massa do VIIIº nervo craniano unilateral, ou 2 dos seguintes: neurofibroma, meningioma, glioma, schwannoma e cataratas subcapsulares posteriores.

Na maior parte das situações de NF tipo II, opta-se por tratamento conservador, estando indicada a radioterapia perante sinais de malignização. Recentemente nalguns centros tem-se administrado erlotinib para tratamento do schwannoma vestibular com bons resultados.

O prognóstico é muito reservado, em especial pela associação com tumores evolutivos do SNC que recidivam e se multiplicam rapidamente.

3. Incontinentia pigmenti, ou síndroma de Bloch – Sulzberger, afecção dominante ligada ao cromossoma X, atinge sobretudo o sexo feminino (morte in utero dos indivíduos do sexo masculino). Trata-se dum alteração hereditária da mesoderme devida a mutação no gene IKBKG, também denominado NEMO (Xq28.34). O fenótipo resulta de mosaicismo funcional causado por inactivação aleatória do referido gene dominante no cromossoma X, que é letal no sexo masculino.

A afecção, fundamentalmente de expressão dermatológica, caracteriza-se por diminuição ou ausência de melanina nas células basais da epiderme, com incremento da mesma na derme. As lesões da pele passam habitualmente por quatro estádios, desde uma fase inflamatória a outra exclusivamente pigmentada. Em 90% dos doentes na primeira semana de vida (50% dos casos na data do nascimento) surgem lesões eritematosas, vesículas, máculas, pápulas e bolhas, com uma distribuição linear, proximal e predomínio nas superfícies flexoras, acompanhadas de eosinofilia marcada. (Figura 4)

FIGURA 4. Caso de incontinentia pigmenti ou doença de Bloch-Sulzberger. Distribuição linear das lesões cutâneas. (NIHDE)

Mais tarde, estas lesões tornam-se pustulares, queratosas, desenvolvendo-se a pigmentação, usualmente simétrica, de forma espiralada e cor acinzentada ou de chocolate, desaparecendo apenas na segunda ou terceira décadas de vida. Na idade adulta, a presença de máculas hipomelânicas constitui a única manifestação. Quando a doença evidencia esta evolução típica não há necessidade de exame histológico da pele para o diagnóstico.

As manifestações neurológicas, presentes em 30 a 50% dos casos, como epilepsia, atraso mental, paraparésia espástica, microcefalia ou ataxia, constituem as manifestações extradermatológicas mais importantes, na medida em que condicionam o prognóstico. Outras manifestações frequentes são as oculares (em 1/3 dos doentes: retina displásica, pseudoglioma e estrabismo), dentárias (erupção tardia ou dentes cónicos) e ortopédicas (luxação da anca e hemivértebras).

A RM permite demonstrar alterações da substância branca subcortical ou estruturais.

Não existe tratamento específico. De salientar a importância do conselho genético e do seguimento multidisciplinar para detecção de complicações.

4. Síndroma de Sturge-Weber, ou angiomatose encefalotrigeminal, rara, ocorre esporadicamente com uma frequência de 1/50.000. Estão descritos casos de transmissão autossómica recessiva e transmissão dominante. Atinge igualmente os dois sexos e caracteriza-se por anomalias vasculares, habitualmente num processo multissistémico que envolve a pele, SNC, olhos e outros órgãos.

A sua forma completa associa sinais e sintomas relacionados com o angioma leptomeníngeo, o angioma cutâneo e o angioma ocular. (Figura 5)

O angioma cutâneo é um angioma cutaneomucoso facial, cor de vinho do Porto, presente desde o nascimento, que tende a ser unilateral e a envolver a metade superior da face e pálpebra (nevus flammeus), limitado ao território de um ou vários ramos do trigémio. O angioma ocular (da coróide) é ipsilateral, presente em 30% dos casos e pode estar associado a glaucoma.

Da patologia associada, destaca-se a epilepsia em 75 a 90% dos casos, com início no primeiro ano de vida em quase metade destes doentes; a gravidade está muitas vezes relacionada com a localização e extensão da lesão cerebral.

A hemiparésia, (ou hemiplegia), está presente em 30 a 45% dos casos antes dos dois anos e é quase sempre colateral à lesão angiomatosa cerebral.

A insuficiência intelectual afecta > 70% dos doentes e a sua gravidade relaciona-se com a precocidade e gravidade da epilepsia.

O contributo da imagiologia para o esclarecimento do quadro clínico desta situação é importante.

FIGURA 5. Síndroma de Sturge-Weber: angioma cutaneomucoso da hemiface direita e fronte. (NIHDE)

A radiografia simples do crânio pode evidenciar calcificações cranianas a partir da segunda década de vida.

A TAC-CE demonstra precocemente a localização e extensão das calcificações, assim como a hemiatrofia cerebral e a maior captação do contraste na zona angiomatosa e no plexo coroideu homolateral.

A RM com gadolínio permite a visualização em toda a sua extensão da angiomatose meníngea de forma precoce e ainda em fase assintomática.

A angio-RM permite detectar angiomas venosos e lesões trombóticas.

Mediante a PET/tomografia de alta resolução/com emissão de positrões, pode evidenciar-se o hipometabolismo cortical da glucose nas áreas afectadas e estabelecer uma correlação entre a extensão da lesão e o prognóstico.

O prognóstico da síndroma de Sturge-Weber é muito variável e dependente, sobretudo, do controlo das crises, bem como dos défices motor e cognitivo. É muito frequente a evolução para epilepsia refractária à terapêutica médica, razão pela qual a cirurgia da epilepsia deve ser encarada muito precocemente em tais situações.

Com o tratamento estético com laser para o angioma facial têm sido obtidas melhoras parciais. Nos casos de descolamento da retina está indicada a fotocoagulação. O surgimento do glaucoma implica a intervenção do oftalmologista. Tal como nas situações descritas anteriormente, é fundamental a colaboração multidisciplinar.


5. Ataxia telangiectasia
, afectando cerca de 1/40.000 nados vivos, pelas suas características clínicas ocupa um lugar importante dentro das doenças degenerativas.

A transmissão é autossómica recessiva, com uma alta incidência de novos casos, por mutações do respectivo gene ATM (11q23.3); de tal resulta uma proteína truncada não funcionante com efeitos diversos, tais como hipersensibilidade a radiações ionizantes, atingimento do processo de reparação do ADN, inibição da sua síntese, incremento de rupturas cromossómicas com consequentes anomalias imunológicas, e incremento da apoptose.

Cursa com ataxia cerebelosa, coreoatetose, telangiectasias oculocutâneas, imunodeficiência, hipersensibilidade às radiações e elevada incidência de neoplasias, como leucemias e linfomas. A ataxia cerebelosa é progressiva, com um início precoce e presente em todos os doentes, (cerca dos 2 anos) enquanto a coreoatetose pode surgir em menos de metade dos mesmos. As telangiectasias oculocutâneas, evidenciando-se geralmente entre os 4-6 anos, afectam de uma forma simétrica a conjuntiva, formando uma rede de finas telangiectasias.

Movimentos oculares anómalos (apraxia óculo-motora), presentes em todos os doentes, podem preceder as telangiectasias. Posteriormente, aparecem as telangiectasias cutâneas (em 40% dos casos), sempre simétricas, na base do nariz, nos pavilhões auriculares ou nas mãos.

O doseamento da alfa-fetoproteína, (elevada), do antigénio carcinoembrionário e das imunoglobulinas (diminuição de Ig A secretória, Ig G2, IgG4 e IgE), são importantes marcadores diagnósticos, associados ao estudo cromossómico e à evolução clínica.

A RM-CE em fases avançadas evidencia atrofia cerebelosa.
O prognóstico está sobretudo dependente da deterioração neurológica. Existe degenerescência espinocerebelosa, lesão dos cornos posteriores da medula com perda dos reflexos tendinosos e atrofia espinal medular: na maioria dos doentes há necessidade de cadeira de rodas entre os 10-15 anos.

A imunodeficiência leva a infecções recorrentes, por vezes graves, interferindo também de uma forma importante no prognóstico.

O tratamento, que não é específico, baseia-se essencialmente na administração de imunoglobulina nos casos de infecções recorrentes, na fisioterapia e na terapia ocupacional. Salienta-se que é importante o diagnóstico precoce, a vigilância clínica atendendo à detecção de eventual surgimento de tumores, o conselho genético e o diagnóstico pré-natal com estudos moleculares.


6. Complexo esclerose tuberosa (CET)
, ou doença de Bourneville-Pringle, tem uma prevalência de 1/6.000 a 1/8.000, sem diferenças de sexo ou raça. Doença hereditária com ampla variabilidade clínica, devida a anomalia congénita do desenvolvimento embrionário, associa basicamente sinais cutâneos e tumores do SNC.

Transmite-se de modo autossómico dominante (penetrância variável), tendo-se demonstrado mutações espontâneas em 60-80% dos casos. Foram identificados 2 loci génicos, TSC1 no cromossoma 9 (9q34.3) e TSC2 no 16 (16p13.3). A incidência de novas mutações é muito elevada.

A patogénese desta anomalia reside na presença de tuberosidades corticais (que deram o nome à doença), nódulos subependimários e tumores de células gigantes, juntamente com anomalias da migração, proliferação e diferenciação neuronais.

Sob o ponto de vista anatomopatológico encontram-se no cérebro tuberosidades corticais formadas por nódulos de tamanho variável, com células gigantes, redução do número de neurónios e aumento dos núcleos astrocíticos, e nódulos subependimários formados por células astrocíticas fusiformes com deposição cálcica fazendo, no seu conjunto, procidência para dentro do ventrículo.

As manifestações clínicas que habitualmente conduzem ao diagnóstico são cutâneas, podendo existir também neurológicas, retinianas, cardíacas e renais.

O atingimento cutâneo é constante. As manchas cutâneas hipopigmentadas (90% dos doentes), poligonais ou em forma de folha ou ponta de lança, podem estar presentes desde o período neonatal ou infância precoce. Podem observar-se à vista desarmada ou com lâmpada de Wood.

O angiofibroma facial ou adenoma sebáceo (em > 70% dos doentes) compreende um conjunto de nódulos rosados no nariz, região malar e região nasogeniana (os chamados nódulos de Pringle), de tamanho variável, entre o da ponta duma agulha e de uma lentilha. Estas lesões podem aparecer já na idade pré-escolar.

Podem coexistir fibromas ungueais, periungueais (tumores de Koenen) e na mucosa oral, falhas no esmalte dentário em forma de fossetas, e lesões de despigmentação tipo serpentina ou madeixas de cabelos brancos.

As manifestações neurológicas – que podem preceder ou surgir em simultâneo com as cutâneas – são a epilepsia (80-90%), o défice cognitivo (60-70%) e as alterações do comportamento como défice de atenção e hiperactividade, autismo, agressividade e psicose.

Os tumores benignos resultantes da proliferação glial são mais frequentes no córtex cerebral, gânglios da base e paredes dos ventrículos. Os nódulos subependimários de maiores dimensões podem condicionar hidrocefalia (ver atrás).

Quanto às manifestações oculares destacam-se os hamartomas retinianos e as manchas hipopigmentadas na íris.

Os rabdomiomas cardíacos (30-70% dos casos) são hamartomas que tendem a ser múltiplos, podendo ser detectados por ecocardiograma fetal e desaparecer espontaneamente nos primeiros anos de vida.

Outras manifestações sistémicas do CET são o angiomiolipoma (75% dos casos) ou quistos renais, a linfangiomatose pulmonar com formação de quistos, pólipos hamartomatosos do recto, lesões ósseas quísticas e alterações endócrinas como puberdade precoce, doenças da tiroideia e gigantismo.

Para o diagnóstico consideram-se as chamadas características major e as minor.

As características major incluem: lesões cutâneas, cerebrais, oculares, e tumores no coração, rins ou pulmões.

As características minor incluem: quistos ósseos, pólipos rectais, alterações do esmalte dentário, anomalias do SNC (alterações da migração celular na substância branca), fibromas gengivais, hamartomas não renais, alterações despigmentares da retina, lesões cutâneas e quistos renais múltiplos.

O diagnóstico definitivo do CET faz-se em função da presença de 2 ou mais critérios major ou 1 major e 1 minor. O diagnóstico provável faz-se, se existir 1 critério major e 1 minor.

Na avaliação diagnóstica destes doentes é fundamental a imagiologia cerebral (TAC ou, de preferência, RM), EEG, ecografia renal, ECG, ecocardiograma, radiografia do tórax, etc..

O tratamento e o prognóstico são variáveis e dependem, não das manifestações cutâneas, mas essencialmente do aparecimento de tumores internos.

A verificação de hipertensão intracraniana relacionável, por ex. com obstrução do buraco de Monro, poderá estabelecer a indicação de intervenção neurocirúrgica urgente.


7. Síndroma PHACE

Esta síndroma agrupa um conjunto de anomalias a que correspondem as letras da sigla PHACE, a saber: anomalias da fossa Posterior, Hemangiomas, anomalias Arteriais, Coarctação da aorta, e outras anomalias – cardíacas e oculares (Eye).

Verifica-se predomínio no sexo feminino. Os hemangionas da via aérea podem originar obstrução. O interferão-alfa tem sido empregue para tratamento dos hemangiomas.


8.
Angiomatose cerebelorretiniana (doença de von Hippel-Lindau)

Esta doença transmite-se com carácter autossómico dominante e penetrância variável. A anomalia relaciona-se com o gene VHL (3p25-26), o qual codifica duas proteínas supressoras de tumores.

As manifestações clínicas são marcadas fundamentalmente pela presença de hemangioblastomas do cerebelo e angioblastomas da retina a partir dos 10 anos de idade. A sintomatologia integra sinais agudos de disfunção cerebelosa e policitémia devida à produção de eritropoietina pelo tumor.

As complicações podem surgir a vários níveis: compressão medular por hemorragia, descolamento da retina, laucoma secundário, quistos congénitos do pâncreas e rim, hipernefroma ou feocromocitoma.

O tratamento é cirúrgico e o prognóstico depende da presença e dimensões dos tumores intracranianos ou abdominais. Actualmente nalguns centros especializados têm sido aplicados inibidores da angiogénese nos tumores extraneurais.

AGRADECIMENTOS

Os autores e editor agradecem ao Dr. Raul Silva a cedência das imagens das Figuras 1, 2 e 3.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J (ed). Diseases of the Nervous System in Childhood. London: Mac Keith Press, 2009

Barros FSMarussi VHRAmaral LLF, et al. The rare neurocutaneous disorders: update on clinical, molecular, and neuroimaging features. Top Magn Reson Imaging 2018; 27: 433-462. doi: 10.1097/RMR.0000000000000185

Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Campistol J (ed). Neurologia para Pediatras. Madrid: Panamericana, 2011

Crino PB, Nathanson KL, Henske EP. The tuberous sclerosis complex. NEJM 2006; 355: 1345-1356

DiMario FJ Jr. Brain abnormalities in tuberous sclerosis complex. J Child Neurol 2004; 19: 650-657

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Korf BR, Bebin EM. Neurocutaneous disorders in children. Pediatr Rev 2017; 38:119-128

Mann JA, Siegel DH. Common genodermatosis: what the pediatrician needs to know. Pediatr Ann 2009; 38: 91 – 99

McLone DG. Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 2001

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Osborne JP, Merrifield J, O’Callaghan JK. Tuberous sclerosis – what’s new? Arch Dis Child 2008; 93: 728 – 731

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Swaiman KF, Ashwal S, Ferriero DM, Schor NF. Swaiman’s Pediatric Neurology. Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012

Williams VC, Lucas J, Babcock MA, et al. Neurofibromatosis type I revisited. Pediatrics 2009; 123: 124 – 133

A RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NO DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL DOS DEFEITOS CONGÉNITOS DO SNC

Importância do problema

A Neurologia Pediátrica é uma especialidade devotada ao estudo das afecções do sistema nervoso central (SNC) e periférico, as quais comportam elevada complexidade explicada pelos problemas diagnósticos colocados, pelas dificuldades em estabelecer um prognóstico e pelos escassos recursos terapêuticos disponíveis.

A este propósito, importa referir que grande número de doenças neurológicas detectadas em idades tardias da vida da criança têm origem pré-natal, e que em cerca de 25% das respectivas gravidezes se verificam alterações do SNC explicando, em tais circunstâncias, elevada percentagem de mortes fetais.

Daí, a importância do diagnóstico pré-natal (DPN) incidindo especialmente sobre a patologia do SNC, devido à multiplicidade de diagnósticos neuropatológicos possíveis, dos quais poderão decorrer decisões importantes dos pontos de vista terapêutico, ético e do acompanhamento médico pós-natal.

Desde há várias décadas que a ultrassonografia é utilizada como técnica de imagem amplamente difundida, disponível e indicada por rotina em todas as gravidezes, sendo que os defeitos congénitos ou as alterações adquiridas do SNC representam um dos grupos nosológicos mais frequentemente detectados.

Independentemente do reconhecido valor da ultrassonografia fetal no diagnóstico de patologia do SNC, importa relevar que as respectivas sensibilidade e especificidade são relativamente baixas, o que tem implicações clínicas. A corroborar esta realidade, num estudo prospectivo em 2017 por Griffiths e colaboradores, concluiu-se que a precisão diagnóstica neuropatológica desta técnica é de apenas 68%.

Os avanços recentes da técnica da Ressonância Magnética (RM) tornaram possível uma melhoria da resolução da imagem obtida, oferecendo informação anatómica detalhada de estruturas cerebrais milimétricas. Assim, apesar da menor disponibilidade e do maior custo inerente, o diagnóstico fetal de patologia do SNC tem-se tornado progressivamente mais comum utilizando a RM.

Em termos quantitativos, o panorama actual quanto à precisão diagnóstica de técnicas imagiológicas aplicadas ao SNC do feto pode traduzir-se do seguinte modo: a RM fetal “demarca-se” da ultrassonografia pela sua maior precisão diagnóstica (93%), acrescentando informação adicional ao diagnóstico ultrassonográfico em 49% dos casos e alterando o prognóstico em 20%, com consequente influência nas decisões clínicas em cerca de 1 em cada 3 casos.

Abordagem clínica

O uso indiscriminado de exames complementares e a profusão tecnológica de marcadores biológicos poderão levar ao abuso na utilização daqueles em detrimento da valorização da história clínica.

Na situação específica que tem por base o DPN, o enquadramento clínico dos resultados obtidos por RM fetal deverá sempre ser realizado por uma equipa multidisciplinar constituída por obstetra, pediatra, neonatologista, neurologista pediátrico, neurorradiologista, neurocirurgião, geneticista, entre outros especialistas considerados relevantes.

Depois da recolha e análise da informação disponível, a discussão com a família poderá ser complexa, com implicações médicas, éticas, legais, culturais e filosóficas. Frequentemente a família poderá procurar aconselhamento sobre eventual interrupção da gravidez e definição clara do prognóstico e do tipo de limitações previsíveis durante o crescimento da criança.

De acordo com a lei vigente, a interrupção da gravidez em caso de defeito congénito grave do SNC, apenas poderá ocorrer antes das 24 semanas de gestação, razão pela qual é importante a realização atempada de RM fetal.

Generalidades

A sensibilidade e especificidade diagnósticas da RM fetal são influenciadas não apenas pela sua excelente resolução espacial, mas também pelo facto de ser pouco influenciada pelo morfotipo materno, posição placentária, apresentação fetal ou oligo-hidrâmnio. A possibilidade de aquisição de imagens volumétricas e consequentes reformatações multiplanares, embora realizada com menor frequência, constitui uma vantagem adicional desta técnica.

Tendo como base os dados obtidos em mais de 3 décadas de utilização, não existe prova científica de que a RM fetal tenha qualquer efeito prejudicial sobre o feto ou sobre o desenvolvimento a longo prazo da criança. Desta forma, a RM é considerada uma técnica segura e não invasiva, quando utilizada a partir das 18 semanas de gestação.

Os aspectos observados por RM reflectem alterações da organogénese, da histogénese e da mielinização. Estão claramente identificadas as datas de gestação referentes aos diferentes estádios do volume encefálico, padrão de sulcação, configuração interna e mielinização. (Figura 1)

FIGURA 1. Exemplos de normal padrão de sulcação de acordo com idade gestacional (IG), representando sequencialmente, 21 semanas, 28 semanas e 35 semanas, apenas com esboço de fissura sílvica às 21 semanas e desenvolvimento progressivo de sulcos e maior opercularização

Actualmente, o diagnóstico imagiológico fetal é baseado no estudo da morfologia; todavia, está a ser estudada a utilização de técnicas avançadas de RM, como tractografia, espectroscopia e RM funcional. Admite-se que estas técnicas possam vir a dar um valioso contributo quanto ao incremento da sensibilidade e especificidade da RM fetal.

Indicações da RM

A RM fetal não está indicada como método de rastreio. A sua utilização está preconizada apenas após detecção de anomalias por ultrassonografia perante antecedentes familiares relevantes ou a suspeita de lesões potencialmente destrutivas, causadas por factores maternos, como coagulopatia, hipóxia, trauma ou infecção. As indicações mais comuns estão enunciadas no Quadro 1, sendo a ventriculomegália a mais frequente.

QUADRO 1 – Indicações comuns da realização de RM fetal

Ventriculomegália
Suspeita de defeito congénito
Lesão destrutiva potencial
Anomalias congénitas fetais múltiplas
Antecedentes familiares de anomalias congénitas e/ou de doença genética
Infecção materna
Gravidez gemelar com transfusão fetofetal e avaliação pós-ablação de vasos placentários por técnica de laser

Tendo em conta os objectivos deste livro, dispensando-nos de descrição pormenorizada, as alterações fetais do SNC identificadas por RM, neste capítulo são descritas de modo sucinto as mais representativas e frequentes.

Alterações fetais do SNC

Ventriculomegália

Relativamente a esta alteração – ventriculomegália -, (Figura 2) facilmente identificável por RM fetal, a respectiva causa apenas em 60% dos casos é esclarecida. É importante referir que a ventriculomegália se acompanha de outra alteração do SNC (disgenésia do corpo caloso, por ex.) em 85% dos casos, sendo a RM um instrumento valioso para a sua detecção.

O prognóstico desta situação depende da causa da dilatação ventricular, da idade gestacional em que ocorre, e da sua progressão. Todavia, ventriculomegália ligeira está associada a atraso do neurodesenvolvimento em 19 a 36% dos casos, sendo este mais prevalente se existirem concomitantemente outras anomalias do SNC associadas.

Lesões adquiridas do SNC

Lesões destrutivas, isquémicas, hemorrágicas, calcificações ou tumores podem ocorrer como consequência de doença materna ou fetal adquirida.

A RM permite a identificação da presença de produtos de degradação da hemoglobina. A presença de pequenas hemorragias da matriz germinal (Figura 3) é relativamente frequente, muitas vezes com significado clínico indeterminado. No entanto, as hemorragias da matriz germinal podem causar lesão parenquimatosa extensa com consequências sérias no neurodesenvolvimento (Figura 4). A detecção de produtos de degradação da hemoglobina ajuda a identificar a potencial causa de ventriculomegália ou porencefalia. A RM é particularmente sensível no diagnóstico de lesões isquémicas agudas e subagudas, ao contrário da ultrassononografia.

FIGURA 2. Marcada dilatação ventricular supratentorial, com evidente redução da espessura dos hemisférios cerebrais, a que se associa ruptura da porção anterior do septum pellucidum (seta), traduzindo assim processo de hidrocefalia. Idade gestacional/IG: 19 semanas

FIGURA 3. Imagens T2 e T1 demonstrando hemorragia da matriz germinal direita, grau I. IG: 24 semanas

FIGURA 4. Enfarte hemorrágico periventricular frontal direito, com extensão intraventricular, edema envolvente e hidrocefalia. IG: 31 semanas

A infecção fetal por citomegalovírus (CMV) (Figura 5) é a infecção congénita mais comum, apresentando um espectro alargado de alterações neuropatológicas, dependendo do estádio de desenvolvimento em que ocorreu a agressão. Assim, a apresentação em RM fetal poderá ser microcefalia, lesão encefaloclástica, ventriculomegália, quistos, calcificações periventriculares ou anomalias do desenvolvimento cortical.

Os tumores congénitos do SNC são extremamente raros, sendo os teratomas os mais frequentes (Figura 6), representando entre 33% a 50% do total. Outros possíveis tumores congénitos incluem os astrocitomas, papilomas do plexo coroideu, meduloblastomas, tumores embrionários anteriormente designados por tumores neuroectodérmicos primitivos, entre outros, ainda mais raros. A RM fetal é particularmente útil na sua detecção e caracterização.

Os quistos aracnoideus (Figura 7) são colecções de líquido cefalorraquidiano que se desenvolvem entre os folhetos aracnóides, e que normalmente não têm significado patológico. No entanto, quando volumosos e presentes durante o desenvolvimento do SNC, podem ter impacte na formação das normais estruturas anatómicas.

FIGURA 5. Assimetria ventricular, quistos subependimários, dismorfia e dilatação do corno temporal direito, admitindo-se alterações da substância branca e eventual alteração cortical frontal direita. Aspectos sugestivos de infecção congénita por CMV. IG: 32 semanas

FIGURA 6. Volumosa lesão intracraniana ocupando espaço, aparentemente extra-axial, heterogénea, maioritariamente quística e com componentes sólidos periféricos, determinando significativo efeito de massa. A suspeita de teratoma confirmou-se histologicamente. IG: 21 semanas

FIGURA 7. Volumoso quisto inter-hemisférico direito, septado, com características de sinal idênticas ao restante LCR. IG: 35 semanas

Disgenésias do corpo caloso

A agenésia do corpo caloso (Figura 8), frequentemente encontrada na população geral, com uma prevalência de 0,02% a 0,5%, tem um impacte muito variável no neurodesenvolvimento; por isso, torna-se difícil estabelecer o prognóstico. Contudo, estando esta anomalia frequentemente associada a outros defeitos tais como anomalia de Dandy-Walker ou disrafismos, anomalias cromossómicas e síndromas genéticas, a sua identificação poderá ser importante na marcha diagnóstica.

A hipogenésia do corpo caloso pode resultar de um desenvolvimento incompleto ou de um processo destrutivo ulterior à sua formação. Estudos retrospectivos demonstraram que 43% dos casos de agenésia do corpo caloso diagnosticados por RM fetal não tinham sido detectados por ultrassonografia.

Patologia malformativa da fossa posterior

Este termo engloba um vasto leque de defeitos congénitos, sendo os mais frequentes aqueles que se definem como um espaço aumentado de líquido cefalorraquidiano na fossa posterior, sem ou com patologia cerebelosa. Entre estas, destacam-se: – no primeiro grupo as mais comuns, mega cisterna magna (Figura 9) e quisto da bolsa de Blake, habitualmente sem significado patológico; e – no segundo grupo, a hipoplasia vermiana inferior e a anomalia de Dandy-Walker (Figura 10). Ao contrário desta última, os casos de hipoplasia vermiana inferior isolada apresentam prognóstico muito variável, sendo impossível prever as manifestações clínicas durante o desenvolvimento fetal.

Através da descrição anatómica pormenorizada dos achados imagiológicos fetais é possível identificar, quer situações que virão a ser raramente sintomáticas, quer outras com prognóstico muito reservado, associado a compromisso neuropsíquico. As anomalias cerebelosas mais graves são frequentemente parte constituinte de síndromas complexas, associadas a patologia cerebral e extracerebral.

FIGURA 8. Agenésia completa do corpo caloso. IG: 33 semanas

FIGURA 9. Mega cisterna magna. Vérmis e 4º ventrículo normais. IG: 23 semanas

FIGURA 10. Anomalia de Dandy-Walker. Hipoplasia acentuada do vérmis, com dilatação de aspecto quístico do 4º ventrículo e alargamento da fossa posterior. IG: 34 semanas

Distúrbios do desenvolvimento cortical

Frequentemente indetectáveis por ultrassonografia, uma grande parte das anomalias do desenvolvimento cortical (proliferativas, migratórias ou pós-migratórias) podem ser diagnosticadas por RM fetal, nomeadamente microcefalia (Figura 11), lisencefalia, polimicrogiria, heterotopia ou esquizencefalia. Esta informação é particularmente útil no âmbito do aconselhamento genético para gravidezes futuras, pois a maioria dos distúrbios do desenvolvimento cortical têm uma origem genética.

Apesar de se tratar de alterações frequentemente subtis, esta técnica evidencia sensibilidade e especificidade elevadas no DPN de polimicrogiria e esquizencefalia; contudo, no que se refere a heterotopia (Figura 12), a identificação frequentemente não é viável antes do terceiro trimestre de gestação.

FIGURA 11. Microcefalia com concomitante atraso no padrão de sulcação e giração. IG: 23 semanas

FIGURA 12. Heterotopias subependimárias ao longo do contorno ependimário dos cornos occipitais e átrios. IG: 23 semanas

FIGURA 13. Malformação de Chiari tipo 2 associada a mielomeningocele, com representação dos aspectos típicos: fossa posterior pequena, implantação baixa da tenda do cerebelo e da torcula de Herófilo (confluência dos seios), herniação do tronco cerebral e amígdalas cerebelosas com apagamento dos espaços de LCR, e disrafismo lombar. IG: 33 semanas

Anomalias do desenvolvimento do tubo neural dorsal

Sobre as anomalias congénitas associadas ao desenvolvimento do tubo neural dorsal, abordadas em capítulo próprio, é importante referir que a RM fetal evidencia elevada sensibilidade para o seu diagnóstico, nomeadamente no que se refere à malformação de Chiari Tipo 2 associada a mielomeningocele (Figura 13); tal sensibilidade, contudo, não é tão elevada nos casos de disrafismos fechados discretos.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem muito reconhecidamente à Dra. Eulália Calado a revisão do manuscrito e as sugestões apresentadas.

GLOSSÁRIO

Espectroscopia > Avaliação semiquantitativa de metabólitos (por exemplo, colina, N-acetilaspartato, lactato, lípidos, creatina, etc.) por RM de determinado volume parenquimatoso seleccionado.

Matriz germinal > Região adjacente aos ventrículos laterais do cérebro fetal onde existe proliferação neuronal com ulterior migração neuronal. Devido à sua elevada taxa metabólica, a matriz germinal é particularmente a hemorragia.

Opercularização > Formação do opérculo que ocorre com o normal desenvolvimento dos lobos frontal, parietal e temporal, que acabam por cobrir o lobo da ínsula, com a consequente formação da fissura sílvica.

RM funcional > Técnica RM que pretende discriminar áreas de maior actividade neuronal, baseando-se no fluxo sanguíneo.

Sulcação e giração > Normal desenvolvimento encefálico resulta no aumento da superfície cortical, resultando na formação dos sulcos corticais e giros/circunvoluções.

Tractografia > Imagens 3D que pretendem representar as vias neuronais, baseando-se na maior difusibilidade das moléculas de água ao longo dos axónios.

T1 e T2 > Ponderações básicas de RM obtidas a partir dos “tempos de relaxamento” nuclear, que diferem consoante o tipo de tecido ou alterações patológicas. O sinal obtido traduz-se numa escala de cinzento, revelando características consideradas normais ou patológicas.

BIBLIOGRAFIA

Atlas SW. Magnetic Resonance Imaging of the Brain and Spine. Philadelphia: Wolters Kluwer, 2017

Blondiaux E, Garel C. Fetal cerebral imaging-ultrasound vs. MRI: an update. Acta Radiol 2013; 54:1046-1054

Garcia-Flores J, Recio M, Uriel M, et al. Fetal magnetic resonance imaging and neurosonography in congenital neurological anomalies: supplementary diagnostic and postnatal prognostic value. J Matern Fetal Neonatal Med 2013; 26: 1517-1523

Girard N, Raybaud C, Gambarelli D, et al. Fetal brain MR imaging. Magn Reson Imaging Clin North Am 2001; 9: 19-56

Glenn OA, Cuneo AA, Barkovich AJ, et al. Malformations of cortical development: diagnostic accuracy of fetal MR imaging. Radiology 2012; 263: 843-855

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Griffiths PD, Bradburn M, Campbell MJ, et al, on behalf of the MERIDIAN collaborative group. Lancet 2017; 389: 538-46

Hubbard AM, Simon EM. Fetal imaging. Magn Reson Imaging Clin North Am 2002;10: 389-408

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Prayer D. Fetal MRI. Berlin-Heidelberg: Springer, 2011

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Shekdar K, Feygin T. Fetal neuroimaging. Neuroimag Clin North Am 2011; 21: 677-703

Trop I, Levine D. Hemorrhage during pregnancy: sonography and MR imaging. Am J Roentgenol 2001;176: 607-615

DEFEITOS DA MIGRAÇÃO NEURONAL E OUTRAS ANOMALIAS DO SNC

Sistematização

Como foi referido no capítulo dedicado aos defeitos do tubo neural, as anomalias congénitas do SNC são detectadas no RN com uma frequência de 0,5 a 5%.

Neste capítulo são abordados:

  1. os defeitos da migração, proliferação e diferenciação neuronais;
  2. as anomalias da segmentação e da divisão cerebrais;
  3. e, sucintamente, a porencefalia.

Trata-se de situações raras, por vezes com diversidade de anomalias associadas, e com consequências diversas: o espectro de manifestações varia entre casos detectados sem repercussões clínicas relevantes (heterotopia mínima de neurónios), e outros com repercussões devastadoras incluindo incapacidade intelectual e motora graves, e síndromas acompanhadas de convulsões.

1. DEFEITOS DA MIGRAÇÃO, PROLIFERAÇÃO e DIFERENCIAÇÃO NEURONAIS

No que respeita a alterações da migração neuronal, investigações experimentais recentes chamaram a atenção para o papel de determinados genes e suas mutações.

Nesta alínea é feita uma abordagem sucinta de algumas formas clínicas em que a imagiologia, designadamente a RM, tem um papel fundamental na respectiva identificação.

Lisencefalia

Também designada agiria, esta anomalia rara é caracterizada por ausência de circunvoluções cerebrais/cérebro “liso”, com fissura sílvica vestigial; o aspecto macroscópico do cérebro é o de cérebro fetal com cerca de 12-16 semanas de gestação. (Figura 1A: imagem de RM – CE)

Lisencefalia do tipo I

A este grupo pertence à síndroma de Miller-Dieker caracterizada por fenótipo especial: fronte estreita e saliente, hipertelorismo, nariz curto com anteversão das narinas, orelhas de implantação anómala e micrognatismo, microcefalia, convulsões, atraso do desenvolvimento, hipocrescimento, hipoplasia do nervo óptico e microftalmia.

Esta forma clínica depende de expressão defeituosa do gene LIS1(17p13.3) e do gene da lisencefalia (LIS-1).

Nos casos em que se comprova associação a disgenesia do corpo caloso e a hipoplasia do cerebelo e do tronco cerebral foram identificadas mutações no gene TUBA1A (12q22-q24).

Lisencefalia do tipo II

O protótipo desta forma clínica é a síndroma de Walker-Warburg, caracterizada por hidrocefalia, agíria, defeito do cerebelo, displasia da retina, onfalocele e distrofia muscular congénita, hipotonia e morete precoce.

A transmissão hereditária é do tipo autossómico recessivo, tendo-se identificado vários genes responsáveis, tais como POMT1, POMT2, ISPD, FKTN, etc., situados respectivamente nos cromossomas 9q14, 14q24.3, 7p21, 9q31-33.

FIGURA 1A: Imagem de lisencefalia. (RM-CE)

Esquizencefalia

Nesta anomalia verifica-se a presença de fendas unilaterais ou bilaterais ou ao nível dos hemisférios cerebrais. Nalguns casos os achados da RM permitem visualizar fenda de comunicação entre o ventrículo e o espaço craniano extra-axial; muitas destas fendas/”comunicações” estão tapetadas por substância cinzenta anormal. Como manifestações clínicas refere-se atraso mental, convulsões refractárias, microcefalia, e tetraparésia espástica quando as fendas são bilaterais. Se a fenda for unilateral pode verificar-se hemiparésia. (Figura 1B: imagem de RM – CE)

Esta anomalia pode ser determinada geneticamente (gene EMX2, 10q26.1).

Descrevem-se dois tipos I e II, conforme respectivamente os bordos estajam abertos ou fechados.

Agenesia do corpo caloso

A esta anomalia, clinicamente muito heterogénea (desde formas assintomáticas e QI normal, até síndromas neurológicas complexas acompanhadas de défice mental), está associada hereditariedade ligada ao X, ou autossómica dominante; pode igualmente estar ligada a anomalias cromossómicas (trissomias 8 e 18) e associada a certas doenças hereditárias do metabolismo.

Na síndroma de Shapiro a agenesia do corpo caloso associa-se a episódios recidivantes de hipotermia e diaforese.

 

FIGURA 1B: imagem de esquizencefalia. (RM-CE)

A síndroma de Aicardi (quadro complexo caracterizado essencialmente por atraso mental, espasmos em flexão/hipsarritmia, convulsões refractárias, coriorretinite “em queijo Gruyères” e anomalias vertebrais/hemivértebras) está tipicamente também associada a agenesia do corpo caloso. Predominando no sexo feminino, admite-se anomalia do cromossoma X, a que corresponde elevada letalidade no sexo masculino.

Na síndroma de Anderman (gene SLC12A6) existe associação a neuropatia periférica.

Agenesia dos nervos cranianos

Esta anomalia, por vezes associada a diversas situações clínicas, compreende ausência de certos nervos cranianos ou dos respectivos núcleos originando sinais clínicos diversos, por ex. ptose palpebral congénita, fenómeno de Marcus Gunn (concomitância de movimentos de sucção e pestanejo/sincinésia, etc.). Na síndroma de Moebius verifica-se paralisia facial bilateral.  

Heterotopias neuronais

Neste defeito existem colecções de neurónios em localiazação anómala.

Descrevem-se três grupos:

Heterotopias nodulares subependimárias periventriculares

Este grupo tem na sua base diversas alterações genéticas tais como, entre outras: ligadas ao cromossoma X(Xq28, gene da filaminaA, FLNA) e outras dependentes de gene autossómico (20q13.13), gene ARFGEF2).

Heterotopias subcorticais e marginais glioneurais

Este grupo está relacionado com alterações nos genes LIS1 (17p13.3) e DCX (Xq22.3-q23).

Heterotopias laminares subcorticais

Este grupo está limitado praticamente ao sexo feminino, com transmissão dominante ligada ao cromossoma X(Xq22.3-q23, gene DCX). No sexo masculino esta alteração genética pode associar-se a lisencefalia.

Megalencefalia, macrocefalia e hemimegalencefalia

A megalencefalia define-se como desenvolvimento precoce de cérebro anormalmente grande. Existe uma forma familiar benigna (com hereditariedade autossómica dominante, sobretudo no sexo masculino. Os ventrículos cerebrais podem ser de dimensões normais ou moderadamente de grandes dimensões.

Na macrocrânia ou macrocefalia observa-se crânio grande, nem sempre acompanhado de cérebro grande (constitucional ou familiar, igualmente observado nas síndromas de Sotos, de Weaver, acondroplasias, etc.).

A hemimegaloencefalia define-se como hipertrofia difusa cerebral unilateral, secundária a anomalias na proliferação e migração neuronais (gene L1-CAM, Xq28), a qual se manifesta por macrocefalia nem sempre assimétrica, atraso psicomotor e epilepsia precoce rebelde ao tratamento.

Microcefalia

Define-se pela verificação de perímetro cefálico inferior a 2 DP do considerado normal para a idade, sexo e idade gestacional. Consideram-se dois grupos: microcefalia primária e microcefalia secundária.

Uma forma extrema de microcefalia primária é o chamado microcérebro radial a que corresponde cérebro com < 50 g.

Num grupo característico de microcefalias primárias familiares, de hereditariedade autossómica recessiva, estão implicados fundamentalmente sete genes, desde MCPH1, 8p23; MCPH2, 19q13.12; MCPH3, 9q33, etc., a MCPH7, 1p32.3-p33. Estas situações, em geral no contexto de consanguinidade, estão associadas a fenótipo em que ressaltam, entre outras, as seguintes características: nariz proeminente, orelhas desproporcionadamente grandes, micrognatismo, e incapacidade intelectual.

2. ANOMALIAS DA SEGMENTAÇÃO E DIVISÃO CELULARES

Holoprosencefalia

Trata-se duma anomalia resultante de clivagem defeituosa do prosencéfalo com incidência da ordem de 1/5.000-1/16.000 e susceptível de ser diagnosticada no período pré-natal a partir da 10ª semana. Compreende três formas: alobar, semilobar, e lobar.

De transmissão autossómica recessiva, por vezes associada a diabetes materna, em cerca de 50% dos casos, existe associação com trissomias 13, 15 e 18; Estão implicados diferentes genes, tais como: SHH (7q36), ZIC2 (13q32), SIX3 (2p21), TGIF (18p11.3), etc..

Como manifestações clínicas de anomalias da segmentação e divisão cerebrais, são notórias as anomalias faciais: fenda palatina, lábio leporino, ciclopia, cebocefalia, incisivo central único, e agenesia pré-maxilar. Através da RM, a forma lobar evidencia ausência de separação dos hemisférios e ventrículos laterais, substituídos por ventrículo único central.

Anomalias do septum pellucidum

Este tipo de anomalias pode ter duas expressões:

  • quisto do septum pellucidum que pressupõe a persistência duma cavidade intrasseptal própria do feto (cavum) para além dos 4-5 meses de vida, a qual é raramente sintomática;
  • ausência do septum pellucidum a qual provoca a fusão dos ventrículos laterais para originar uma cavidade única central. Este defeito pode estar associado a hipoplasia dos nervos ópticos, malformações do prosencéfalo e disfunção hipotalâmica (displasia septo-óptica ou síndroma de Morsier com anomalias nos genes HESX1/PAX3, 3p21.1-p21.2, e SOX2, 3q27), que se manifesta por nistagmo, ambliopia, hipopituitarismo e défice motor. O diagnóstico é confirmado através de exames de imagem –TAC e RM.

3. PORENCEFALIA

A designação genérica de porencefalia refere-se às situações em que existem quistos ou cavidades intracerebrais. Para além da etiopatogénese relacionada com defeito do desenvolvimento (congénita), tal quadro morfológico pode também ser adquirido na sequência de enfarte tecidual.

Esta anomalia, por vezes associada a outras (encefalocele, microcefalia, etc.), manifesta-se fundamentalmente por insuficiência intelectual, hemi ou tetraparésia espástica, atrofia óptica e convulsões.

Nota final: Como foi referido no capítulo 196, os defeitos do cerebelo, as hidrocefalias, as cranossinostoses e síndroma de Klippel-Feil são abordadas noutros capítulos, de modo integrado.

AGRADECIMENTO

O autor agradece à Dra. Eulália Calado a cedência das imagens. (Figura 1)

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: Mac Keith Press, 2009

Barkovich AJ, Kuzniecky RI, Jackson MD, e tal. Classification system for malformations of cortical development. Neurology 2001; 57: 2168-2178

Campagnoni AT, el al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Campagnoni AT. Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Cheek WR. Atlas of Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 1996

Gill D, O´Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh: Churchill Livingstone, 2003

Clark GD. The classification of cortical dysplasias through molecular genetics. Brain Dev 2004; 26: 351-362

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Rasmussen SA, Yazdy MM, Frias JL, Honein MA. Priorities for Public Health Research on Craniosynostosis. Am J Med Genet 2008; 146 A: 149-158

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Roberts B. Neuronal migration disorders. Radiol Technol 2018; 89: 279-295

Speltz ML, Kapp-Simon KA, Cunningham M, et al. Single-suture craniosynostosis: a review of neurobehavioral research and theory. J Pediatr Psychol 2004; 29: 651-668

Swaiman KF, Ashwal S, Ferriero DM, Schor NF. Swaiman’s Pediatric Neurology. Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012

Sztriha L. Spectrum of corpus callosum agenesis. Pediatr Neurol 2005; 32: 94-10

PLAGIOCEFALIA POSICIONAL

Definição e importância do problema

Como foi descrito no capítulo anterior, o termo plagiocefalia significa genericamente obliquidade ou assimetria da forma da cabeça nos planos sagital ou coronal.

A plagiocefalia posicional (PP) é a designação dada à plagiocefalia não sinostótica, variedade que surge como resultado da acção de forças extrínsecas de moldagem sobre o crânio.

Tais forças extrínsecas exercidas de modo mantido ao nível da mesma área da cabeça são tipificadas pela postura cefálica preferencial nos primeiros meses de vida (posição viciosa da cabeça no berço, por exemplo, recém-nascido em decúbito dorsal mantido).

Com efeito, num período em que o crânio imaturo e em crescimento rápido é susceptível de se deformar, poderá surgir depressão na região occipital na sequência da referida posição, com compensação do crescimento ósseo ao nível da região frontal. O efeito de pressão poderá também verificar-se ainda in utero por posição fetal mantida.

A incidência desta forma posicional é superior à das restantes, anteriormente descritas.

A propósito do problema da plagiocefalia posicional e da sua génese, importa abordar um facto histórico. Com efeito, a Academia Americana de Pediatria lançou em 1992 a campanha Back to Sleep aconselhando a posição dos lactentes para dormir em decúbito dorsal, no sentido de prevenir a morte súbita. Esta medida teve bastante sucesso: conseguiu-se uma diminuição significativa (~40%) da morte súbita; mas simultaneamente observou-se um incremento exponencial (~600%) da plagiocefalia.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com diversos estudos nas últimas décadas, a incidência da plagiocefalia posicional é cerca de 20% pelos 4 meses de idade, diminuindo nos três anos seguintes (~7% aos 12 meses e ~3,3% aos 24 meses), e tornando-se irrelevante pelos 3 anos de idade.

Estes valores são muito superiores aos verificados nas outras formas de plagiocefalia: – 0,003%.

Etiopatogénese

Determinados factores de risco (muitos dos quais não susceptíveis de prevenção) têm relevância nos pacientes com plagiocefalia posicional: torcicolo congénito, preferência posicional para dormir com cabeça para o mesmo lado, actividade motora escassa, posição supina desde o nascimento e às 6 semanas, alimentação exclusiva com biberão, tummy time (isto é, tempo de posição em decúbito ventral permitido sob vigilância com o bebé acordado – ver adiante) < 3 vezes por dia e atraso no neurodesenvolvimento.

Sem ser possível estabelecer seguramente uma relação de causa-efeito, foram comprovadas diferenças significativas quanto às etapas-chave da motricidade grosseira (sedestação, gatinhar, rolar, etc.) entre pacientes com e sem PP.

No que respeita a factores causais mais relevantes relacionados com as forças extrínsecas de moldagem sobre o crânio, salientam-se as seguintes situações:

  • no período pré-natal à oligoâmnio, e gestação múltipla;
  • no período pós-natal à a posição de dormir (predominantemente), e o torcicolo miogénico congénito (sendo que existe um mecanismo de potenciação entre plagiocefalia e torcicolo).

Anamnese, observação e diagnóstico diferencial

Dado que o diagnóstico de plagiocefalia é essencialmente clínico, e considerando a semelhança de características entre plagiocefalia lambdóide (sinostótica) e plagiocefalia posicional (as quais têm indicações terapêuticas diferentes), importa que o pediatra e o clínico geral estejam capacitados para proceder ao diagnóstico diferencial.

No Quadro 1 são referidos os parâmetros que permitem a destrinça entre plagiocefalia posicional (não sinostótica) e sinostótica.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial entre plagiocefalia posicional e lambdóide (sinostótica)

CaracterísticasPlagiocefalia posicionalCraniossinostose occipital lambdóide
InícioGeralmente depois do nascimentoAo nascimento
Posição cefálica preferencialComumRara
Sutura lambdóide Não palpávelPalpável (crista óssea)
Bossa frontalIpsilateral (do mesmo lado do achatamento occipital)Contralateral (do lado contrário ao do achatamento occipital)
Pavilhão auricular ipsilateralDeslocamento anterior (maior angulação)Deslocamento posterior (menor angulação) – critério variável
Forma do crânio
Visão superior/vértex

Semelhante a paralelograma

Semelhante a trapézio
DiagnósticoHistória clínicaHistória clínica e Imagiologia
Tratamento Não cruento (encaminhamento para centro de medicina física e reabilitação)Cirúrgico (encaminhamento para centro especializado)

Prioritariamente deve proceder-se à inspecção:

  • da forma do crânio;
  • visão por cima (semelhante a paralelograma na plagiocefalia posicional, e trapezoidal na forma sinostótica) e;
  • da angulação da orelha relativamente à região mastoideia, verificando se há afastamento (ângulo maior na forma posicional), ou aproximação (ângulo menor na forma).

Dois parâmetros que também podem ser considerados são:

  • na forma sinostótica à bossa parieto-occipital associada a bossa frontal no lado oposto ao do achatamento occipital;
  • na forma posicional à bossa occipital no lado oposto ao do achatamento occipital.

A palpação da sutura lambdóide também deve ser realizada: a verificação de crista óssea aponta para forma sinostótica.

Do exame físico faz também parte a avaliação do tono dos músculos do pescoço. O tono passivo, responsável pela postura, pode avaliar-se pela resistência aos movimentos passivos. A resistência à mobilização passiva aponta para a presença de torcicolo (factor de risco para forma posicional). A verificação de atraso no desenvolvimento motor aponta também para a presença de factor de risco para plagiocefalia posicional por diminuição da actividade motora e tendência para postura preferencial mantida.

De acordo com o que foi referido no capítulo anterior, em qualquer situação de deformação craniana deve proceder-se à avaliação do índice cefálico utilizando-se o craniómetro (consultar infocefalia.com). Nos casos de plagiocefalia deve igualmente proceder-se à medição dos diâmetros diagonais (à direita e à esquerda) para obter a diferença diagonal transcraniana (medindo as 2 diagonais a partir das eminências frontais e com o mesmo ângulo de cada lado em relação à linha ântero-posterior). Numa cabeça sem deformação, o valor das duas é igual. Na Figura 1 exemplifica-se um caso em que existe diferença entre os referidos dois diâmetros.

O Quadro 2 mostra a relação entre tal diferença e o grau de plagiocefalia.

FIGURA 1. Diferença transcraniana diagonal (diâmetros transcranianos occipitofrontais). Na Figura do lado direito verifica-se diferença do comprimento entre os dois diâmetros

FIGURA 2. Aspecto geral do craniómetro (A) e utilização do mesmo (B).
O afastamento ou aproximação das hastes de aplicação à cabeça, em ligação a um “ponteiro”, permite a deslocação do mesmo, deslizando ao longo de escala (régua curva) com numeração em centímetros (cm) e milímetros (mm)

QUADRO 2 – Medição com craniómetro (diferença entre as duas diagonais) e graus de plagiocefalia

0 – 9 mm Plagiocefalia leve
10 – 19 mm Plagiocefalia moderada
> 20 mm Plagiocefalia grave

Nos casos em que os parâmetros clínicos apontam para craniossinostose, está indicado o estudo imagiológico.

Actuação prática

O pediatra ou clínico geral com responsabilidade na assistência ao paciente com plagiocefalia posicional obtém a colaboração do centro de medicina física e reabilitação onde constitui rotina:

  • proceder a medições que fornecem dados objectivos permitindo quantificar o estudo evolutivo;
  • determinar o grau de deformidade segundo a classificação de Argenta, considerando 5 níveis.

Prevenção

Numa perspectiva preventiva deste problema crescente relacionado com a campanha Back to Sleep, anteriormente referida, a Academia Americana de Pediatria em 2000 lançou nova campanha designada Back to Sleep – Tummy Time to Play, passando a aconselhar durante o período em que o bebé está acordado, o decúbito ventral de 10-15 minutos, pelo menos 3 vezes por dia, sob estrita vigilância.

Entretanto, outras medidas foram desenvolvidas:

  • alternar a rotação da cabeça da criança quando colocada a dormir;
  • alternar diariamente a sua orientação na cama;
  • reduzir o tempo nas cadeiras de transporte e noutros dispositivos restritivos;
  • promover ambientes que permitam o movimento espontâneo.

Em suma, a actuação descrita, a explicar aos pais, tem diversas vantagens: estimulação do desenvolvimento psicomotor; diminuição do tempo de postura mantida da cabeça; e redução do efeito de pressão constante da mesma área da cabeça contra plano duro.

Intervenção

Perante um quadro clínico de plagiocefalia posicional, a intervenção inclui as seguintes medidas simples, a ensinar aos pais: reposicionamento, aconselhando, no decúbito dorsal, a rotação da cabeça para posição sobre a região occipital mais proeminente; estimulação sensorial (visual, auditiva), preferencialmente feita do lado da região occipital mais proeminente; todas as medidas descritas devem ser aplicadas igualmente na cadeira de transporte; os posicionamentos ao colo devem permitir o alívio de pressão na zona occipital achatada; mantém-se o aconselhamento de períodos em decúbito ventral (tummy time) de acordo com a metodologia descrita antes, logo que a criança evidencie estabilidade cefálica, sempre sob vigilância.

A fisioterapia está indicada, quer nos casos de torcicolo associado, quer no contexto de ensino aos pais, pressupondo a colaboração activa dos mesmos.

A ortótese craniana (capacete) é opção apenas em casos mais graves.

Devem ser enviados para consulta de Medicina Física e de Reabilitação: os pacientes que apresentam torcicolo associado à plagiocefalia; e aqueles que, após aplicação de medidas simples de posicionamento, evidenciam ausência de resposta ou agravamento.

Notas finais

  • Todas as situações de craniossinostose eventualmente detectadas devem ser encaminhadas para consulta de Neurocirurgia.
  • O incremento do perímetro cefálico (PC) é exponencial nos 3 primeiros meses de vida e mantém-se a uma velocidade elevada nos 9 meses seguintes; a partir dos 12 meses o referido incremento é muito mais lento.
  • Quanto mais precoce for a intervenção, melhores e mais rápidos serão os resultados, tendo em conta a potencialidade de remodelação, mais relevante nos primeiros meses de vida.

BIBLIOGRAFIA

Brent R. Collett BR, Erin R. Wallace ER, Deborah Kartin D, et al. Cognitive outcomes and positional plagiocephaly. Pediatrics 2019;143 (2) e20182373; DOI: 10.1542/peds.2018-2373

Collett BR, Wallace ER, Kartin D, et al. Cognitive outcomes and positional plagiocephaly. Pediatrics 2019; 143 (2): e20182373. doi: 10.1542/peds.2018-2373

Ghizoni E, Denadaib R, Raposo-Amaralb, et al. Diagnóstico das deformidades cranianas sinostóticas e não sinostóticas em bebês: uma revisão para pediatras. Rev Paul Pediatr 2016; 34: 495-502

Kelly KM, Joganic EF, Beals SP, et al. Helmet treatment of infants with deformational brachycephaly. Glob Pediatr Health 2018; 5:2333794X18805618. doi: 10.1177/2333794X18805618. 

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Loman WS, Flannery AB. Evidence-based care of the child with deformational plagiocephaly. Part I: assessment and diagnosis. J Pediatr Health Care 2012; 26: 242-250

Losee JE, Mason AC. Deformational plagiocephaly: Diagnosis, prevention and treatment. Clin Plast Surg 2005; 32: 53-64

Matushita H, Alonso N, Cardeal DD, Andrade FG. Major clinical features of synostotic occipital plagiocephaly: mechanisms of cranial deformations. Childs Nerv Syst 2014;30:1217-1224

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nield LS, Brunner MD, Kamat D. The infant with a misshapen head. Clin Pediatr (Phila) 2007; 46: 292-298

Rasmussen SA, Yazdy MM, Frias JL, Honein MA. Priorities for public health research on craniosynostosis. Am J Med Genet 2008; 146 A: 149-158

Ridgway EB, Weiner HL. Skull deformities. Pediatr Clin North Am 2004; 359-387

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Shweikeh F, Nuño M, Danielpour M, et al. Positional plagiocephaly: an analysis of the literature on the effectiveness of current guidelines. Neurosurg Focus 2013; 35(4): E1

Speltz ML, Kapp-Simon KA, Cunningham M, et al. Single-suture craniosynostosis: a review of neurobehavioral research and theory. J Pediatr Psychol 2004; 29: 651-668

Swaiman KF, Ashwal S, Ferriero DM, Schor NF. Swaiman’s Pediatric Neurology. Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012

Zitelli BJ, McIntire SC, Norwalk AJ (eds). Zitelli and Davis’ Atlas of Pediatric Physical Diagnosis. Philadelphia: Elsevier, 2012

DISCRANIAS E VARIANTES

Definição e nomenclatura

Discrania (ou alocefalia) define-se como anomalia da dimensão e/ou da forma do crânio, congénita ou adquirida, de patogénese diversa, com um espectro variado de manifestações.

A normocrania (ou normocefalia) engloba as situações de normalidade da forma e dimensões do crânio, assim como as respectivas variantes dismórficas consideradas fisiológicas.

Na literatura científica relacionada com a Dismorfologia, existem ainda as designações de deformidades cranianas, dismorfias e de dismorfismos, compreendendo as discranias e as variantes.

Adoptando a classificação de A. Galdó e M. Cruz, são considerados três grandes grupos de discranias: as macrocefalias, as microcefalias e as craniossinostoses.

Como exemplos de normocranias citam-se: mesocefalia, dolicocefalia, braquicefalia e hiperbraquicefalia.

Semiologia

Com interesse semiológico para o diagnóstico diferencial das dismorfias cranianas, e para a caracterização de situações-limite, importa recordar a noção de índice cefálico.

O índice cefálico (IC) obtém-se dividindo o resultado do diâmetro cefálico transversal (DCT) pelo do diâmetro cefálico ântero-posterior (DCAP), multiplicando este quociente por 100: IC = DCT/DCAP x 100.

Os valores traduzindo normalidade de dimensões oscilam entre 70 e 90.

Assim, IC < 75 corresponde a dolicocefalia; IC entre 75 e 79 corresponde a mesocefalia; IC entre 80 e 85 corresponde a braquicefalia; e IC > 85 corresponde a hiperbraquicefalia.

Para as medições pode utilizar-se um instrumento simples (~ pinça curva de abertura larga para adaptação ao crânio, envolvendo-o, articulada com ponteiro deslizando ao longo de régua de leitura acoplada, indicando entre 80 e 170 mm: craniómetro. (Figura 1)

Com interesse semiológico para o diagnóstico diferencial das dismorfias cranianas, e para a caracterização de situações-limite, importa recordar a noção de índice cefálico.

O índice cefálico (IC) obtém-se dividindo o resultado do diâmetro cefálico transversal (DCT) pelo do diâmetro cefálico ântero-posterior (DCAP), multiplicando este quociente por 100: IC = DCT/DCAP x 100.

Os valores traduzindo normalidade de dimensões oscilam entre 70 e 90.

Assim, IC < 75 corresponde a dolicocefalia; IC entre 75 e 79 corresponde a mesocefalia; IC entre 80 e 85 corresponde a braquicefalia; e IC > 85 corresponde a hiperbraquicefalia.

Para as medições pode utilizar-se um instrumento simples (~ pinça curva de abertura larga para adaptação ao crânio, envolvendo-o, articulada com ponteiro deslizando ao longo de régua de leitura acoplada, indicando entre 80 e 170 mm: craniómetro. (Figura 1)

Como notas semiológicas importa ainda salientar:

  • a importância da avaliação seriada do perímetro cefálico – com ou sem dismorfia – relacionando-o com outros parâmetros como o peso, idade e estatura;
  • perante história de prematuridade e/ou muito baixo peso de nascimento (inferior a 1.500 gramas) deve relacionar-se o perímetro cefálico com a idade pós-concepcional e não com a idade pós-natal (consultando tabelas próprias).

FIGURA 1. Craniómetro

Desenvolvimento do crânio

Na criança, o crânio é uma estrutura que mantendo a rigidez necessária à sua protecção, permite o enorme crescimento do cérebro em tal grupo etário.

A calote craniana, de origem membranosa, é constituída a partir da 6ª semana de gestação pela união de centros de ossificação; por sua vez, a membrana mesenquimal passa a integrar dois folhetos: o externo que origina o pericrânio, e o interno que origina a dura-máter, com poder osteogénico.

Cerca da 23ª semana de gestação está formada a calote craniana, com ossos separados por áreas não ossificadas: 1) fontanelas (anterior ou bregmática, posterior ou lambdóide, e ântero-laterais ou esfenoidais); e 2) suturas (sagital ou interparietal, coronal/transversal ou parietofrontal, metópica ou interfrontal, lambdóide ou parieto-occipital e esfenoparietal); a metópica funde-se até aos 2 anos.

Na data de nascimento os ossos estão justapostos e unidos por tecido fibroso. Relativamente às fontanelas, no recém-nascido após gestação de termo e em condições de normalidade, somente é notória a fontanela anterior; de salientar que o encerramento desta fontanela não é acompanhado de obliteração das suturas.

A fontanela posterior, de escassas dimensões, poderá ser palpada no RN pré-termo ou em casos associados a atraso de ossificação de diversas etiologias, nomeadamente hipotiroidismo. As restantes somente são demonstráveis através de radiografia. (Figura 1-A)

FIGURA 1-A. Crânio: fontanelas e suturas; visão esquemática superior abstraindo as observadas em visão lateral (Adaptado de SBP)

Fisiopatologia

A propósito da relação da estrutura óssea craniana com o conteúdo encefálico importa reter as seguintes noções básicas:

  • o aumento de capacidade do crânio é um processo secundário ao aumento de volume das estruturas intracranianas;
  • o tamanho da cabeça pode ser afectado pela espessura dos ossos do crânio;
  • a dimensão e a forma do crânio ao longo do desenvolvimento resultam do equilíbrio entre esse estímulo e a capacidade de crescimento dos ossos ao longo das suturas;
  • a ruptura de tal equilíbrio depende de três factores: moldagem interna, moldagem externa e encerramento precoce de uma ou várias suturas (craniossinostose).

Como exemplo de moldagem interna (situação em que o conteúdo craniano influencia a forma da cabeça) cita-se o aparecimento de bossas frontais observáveis nos casos de colecções extracerebrais benignas.

Como exemplos de moldagem externa (por forças externas ou pela acção do próprio peso) citam-se as deformações transitórias no pós-parto, nas primeiras semanas nos RN pré-termo e, as resultantes do decúbito dorsal ou lateral mantido, recomendado para dormir, na perspectiva da prevenção da morte súbita. (ver adiante)

Sobre o encerramento/ossificação precoce de suturas ou craniossinostose (com aspectos da patogénese ainda não totalmente esclarecidos), importa uma referência à chamada lei de Virchow: quando determinada sutura é precocemente encerrada, o crescimento ósseo é interrompido no sentido perpendicular à referida sutura; por compensação, o desenvolvimento do crânio ocorre no sentido paralelo, à custa das suturas não afectadas. O resultado final será o surgimento de deformações de grau variável e/ou assimetrias; por outro lado, a palpação da zona da sutura encerrada precocemente evidencia saliência óssea.

A repercussão clínica das craniossinostoses em termos de lesões do sistema nervoso é muito variável, dependendo da localização. Enquanto nalguns tipos poderá não se verificar qualquer lesão, noutros, por exemplo, poderá ser causa de atrofia óptica por alongamento do nervo óptico. (ver adiante)

1. MACROCEFALIA

Definição e semiologia

A macrocefalia, significando crânio de grandes dimensões, define-se pela verificação de perímetro cefálico acima do percentil 97 e crescimento excessivo da cabeça. Na prática, tal critério sobrepõe-se ao que é definido por alguns autores: perímetro cefálico > 2 desvios-padrão acima da média para uma determinada idade e sexo.

Como notas semiológicas importantes a propósito da definição (que tem limitações), importa salientar que:

  • cerca de 2-3% da população considerada dentro da normalidade preenche os referidos critérios diagnósticos de macrocefalia;
  • o perímetro cefálico pode ter uma velocidade de crescimento muito rápida traduzida pelo cruzamento de percentis (nomeadamente nos casos de lactentes em fase de recuperação de crescimento ou catch up growth), sobretudo se houver antecedentes de prematuridade ou de restrição de crescimento fetal;
  • nem sempre um perímetro cefálico de valor elevado é sinónimo de crânio volumoso: por exemplo, em determinados casos de dolicocefalia o crânio terá um perímetro maior do que outro mais esférico, conquanto o volume de ambos seja o mesmo.

O Quadro 1 resume as principais causas de macrocefalia.

QUADRO 1 – Causas principais de macrocefalia

isiológicas
Lactente ex-pré-termo ou restrição de crescimento fetal, familiar constitucional, estatura elevada
Alterações predominantemente ósseas
Raquitismo, hipofosfatasémia, acondroplasia, disostose crânio-facial de Crouzon, mucopolissacaridoses – gargoilismo ou doença de Hurler, etc.
Alterações da substância nervosa
Megaencefalia, tumores cerebrais, neurofibromatose, gigantismo cerebral ou síndroma de Sotos
Alterações das meninges
Derrame subdural, hematoma subdural
Alterações da circulação do líquido cefalorraquidiano
Hidrocefalia congénita ou adquirida, ventriculite

As situações de macrocefalia devem ser encaminhadas para centros especializados. (ver capítulo sobre alterações da migração neuronal)

2. MICROCEFALIA

Definição e classificação

A microcefalia ou diminuição do volume do crânio é definida pela verificação de perímetro cefálico abaixo do percentil 3 (ou inferior a 2 desvios – padrão/DP abaixo da média) em associação a velocidade lenta, anormal, do crescimento da cabeça.

Situações com DP entre < 2 e < 3 poderão comportar-se sob o ponto de vista neurológico como normais. Por outro lado, a incapacidade intelectual é praticamente uma constante nos casos de perímetro cefálico < 3 DP. Exceptuando nos casos de craniossinostose, a microcefalia implica sempre microencefalia, isto é, encéfalo anormalmente pequeno.

A microcefalia é classificada como primária quando resulta de aberração do desenvolvimento ou de agressão em fase precoce da neurogénese; a consequência é a diminuição do número ou das dimensões das células. São considerados diversos tipos de hereditariedade (AD, AR, ligada ao X), sendo mais favorável o prognóstico nas formas dominantes. Como regra, a microcefalia já é óbvia na data de nascimento.

A microcefalia é considerada secundária quando resulta de agressões ou noxas variadas actuando sobre um encéfalo previamente normal, ou no final do 3º trimestre da gravidez, ou durante o período perinatal (pós-natal precoce).

As situações de microcefalia devem ser encaminhadas para centros especializados.

O estudo imagiológico por TAC ou RM tem um papel fundamental na investigação etiopatogénica. Para além da possibilidade de visualização das estruturas ósseas, permite revelar eventuais calcificações, sugestivas de eventaul infecção pré-natal. (ver capítulo sobre RM e defeitos congénitos do SNC)

O Quadro 2 resume as principais causas de microcefalia.

QUADRO 2 – Causas principais de microcefalia

Genéticas
Familiar não associada a atraso do neurodesenvolvimento (microcefalia vera), forma autossómica recessiva associada a dificuldades de aprendizagem, associada a diversas síndromas (por ex. Menkes, Cornelia de Lange, Rubinstein – Taybi, Smith-Lemli-,Opitz, Seckel, etc.
Cromossómicas
Associada a trissomias: 21-síndroma de Down, 18-síndroma de Edwards, 13-síndroma de Patau
Causas intrauterinas
Infecções do grupo TORCHS, irradiação fetal, diabetes materna, fenilcetonúria ou aminoacidúria materna, etc.
Causas perinatais
Sequelas de hipóxia-isquémia, de infecção do sistema nervoso central, de lesões traumáticas, de toxicidade bilirrubínica/kernicterus, etc.)

3. CRANIOSSINOSTOSE

Aspectos epidemiológicos

A craniossinostose, quer na sua forma isolada, quer associada a outras anomalias congénitas integrando ou não síndromas, ocorre aproximadamente em 1 para 2.000 nados-vivos.

A situação mais frequente corresponde ao encerramento prematuro da sutura sagital, com um predomínio no sexo masculino de 3/1. A craniossinostose coronal surge com uma frequência aproximada de 20%, predominando no sexo feminino. As craniossinostoses metópica e lambdóide são mais raras.

A frequência com que se verifica associação de encerramento de duas ou mais suturas é cerca de 15%.

Estão descritas formas esporádicas e familiares, respectivamente com incidências de 1/1.700 a 2.500, e 1/25.000 nados-vivos.

Aspectos genéticos

Certas formas clínicas de craniossinostose são geneticamente determinadas; a este respeito, importa salientar 4 genes principais associados a formas sindrómicas de craniossinostose. Descrevem-se mais de 100 síndromas com craniossinostose associada.

A caracterização molecular dos genes associados a formas sindrómicas de craniossinostose é importante, pois permite fazer um diagnóstico mais preciso, especialmente durante o período neonatal, de forma a definir o tratamento e o seu possível resultado (como a eficácia duma intervenção cirúrgica craniana); igualmente, por permitir calcular o risco de recorrência na família.

O painel de testes inclui 10 mutações pontuais nos 4 genes principais associados a formas sindrómicas de craniossinostose: FGFR1 (Pfeiffer), FGFR2 (Apert, Crouzon e Jackson-Weiss), FGFR3 (Muenke e Seathre-Chotzen) e RAB23 (Carpenter). Com este painel de mutações é possível identificar a base molecular das formas mais frequentes e graves das síndromas genéticas de craniossinostose. De salientar que as mutações FGFR (gene do factor de crescimento dos fibroblastos) representam a maioria das formas sindrómicas.

Classificação

As craniossinostoses, quanto ao tipo, podem classificar-se em:

  • simples, quando somente está afectada uma sutura;
  • complexas, quando várias suturas estão afectadas;
  • sindrómicas, quando existe associação a outros defeitos, constituindo síndromas genéticas perfeitamente definidas. (ver adiante)

Manifestações clínicas

Para além do sinal de alerta que é a dismorfia craniana, aponta-se a possibilidade de perda de visão. Pode observar-se também proptose na sinostose da sutura coronal e nas craniossinostoses complexas e sindrómicas.

FIGURA 2. Esquema de conformações anormais do crânio. A: Turricefalia; B: Braquicefalia; C: Escafocefalia; D: Plagiocefalia (Adaptado de SBP)

I – Craniossinostoses não sindrómicas

Seguidamente procede-se à descrição sucinta de diversas formas de craniossinostose, exemplificando-se esquematicamente com algumas destas na Figura 2 (designadas por A, B, C e D).

Escafocefalia ou craniossinostose longitudinal
ou sagital – C

Como se referiu antes, é a mais comum das craniossinostoses, predominando no sexo masculino. Resultando da ossificação precoce da sutura sagital, surge a forma de crânio em nave “com a quilha virada para cima”: crânio alongado no sentido ântero-posterior com proeminência dos ossos frontal e occipital; por conseguinte, verifica-se simultaneamente dolicocefalia. A fontanela anterior ou bregmática pode estar presente e desviada.

Dum modo geral não existe modificação importante do perímetro cefálico nem repercussão neurológica.

Plagiocefalia

Este termo significa genericamente obliquidade ou assimetria da forma da cabeça nos planos sagital ou coronal. Existem três formas de plagiocefalia: frontal, occipital e posicional.

Plagiocefalia frontal ou craniossinostose coronal unilateral/crânio oblíquo – D

Seguindo-se em frequência à escafocefalia, neste tipo verifica-se assimetria do crânio e face: depressão ou achatamento unilateral da fronte, elevação ipsilateral da órbita e sobrancelha e redução da cavidade orbitária com desvio do nariz para o lado não afectado. Tipicamente resulta da fusão prematura de uma sutura coronal e esfenofrontal. O índice cefálico pode estar normal, aumentado ou diminuído.

Plagiocefalia occipital lambdóide sinostótica

Resulta da fusão ou esclerose de uma sutura lambdóide, unilateralmente, com consequente achatamento occipital unilateral, procidência contralateral dos ossos frontal e occipital, o que determina forma trapezóide da cabeça. Esta discrania ocorre na proporção ~1/300.000 nados vivos. A forma bilateral é mais rara.

O diagnóstico diferencial da plagiocefalia sinostótica faz-se com a plagiocefalia posicional ou não sinostótica. (ver capítulo seguinte)

Trigonocefalia ou craniossinostose metópica ou frontal

A ossificação precoce da sutura frontal origina saliência ao longo do trajecto da mesma ou proeminência em forma de “quilha de barco”. Verifica-se hipotelorismo e a fontanela bregmática está sempre fechada. O crânio tem aspecto triangular com certa retracção das porções laterais das regiões frontais. As formas ligeiras são mais comuns.

Como a fusão ocorre em geral in utero, a criança evidencia esta anomalia ao nascer. De referir a probabilidade de associação a outras anomalias do encéfalo, tais como holoprosencefalia.

Turricefalia – A

A combinação mais frequente diz respeito à craniossinostose coronal e sagital. Tal pode conduzir a crescimento do crânio para cima em “torre” ou turricefalia; pode associar-se a braquicefalia (B).

Podendo estar associada a hipoplasia do maciço facial, esta modalidade conduz, em geral, a défice de crescimento do encéfalo e a insuficiência mental.

Braquicefalia (acro ou acrobraquicefalia) ou craniossinostose coronal bilateral – B

Nesta modalidade de craniossinostose verifica-se redução da distância ântero-posterior e aumento látero-lateral. A fronte apresenta-se achatada. A fontanela anterior, quando presente, está desviada para diante.

Pode associar-se turricefalia (A) e a sinais de hipertensão intracraniana.

Oxicefalia ou craniossinostose coronal e sagital

A manifestação mais típica da ossificação de todas as suturas é uma protuberância ou “gibosidade” na região da fontanela anterior originando a chamada oxicefalia.

Uma vez que se trata de deformação pouco notada, em geral o diagnóstico é tardio, quando surgem por vezes manifestações como convulsões ou sinais de hipertensão intracraniana. (Figura 3)

FIGURA 3. Aspecto de lactente com quadro de escafocefalia associada a oxicefalia. (NIHDE)

II – Craniossinostoses sindrómicas

No âmbito deste tipo de craniossinostoses, cabe salientar algumas das mais representativas entidades clínicas:

  • síndroma de Crouzon com acantosis nigricans ou disostose craniofacial em que se verificam: exoftalmia, hipertelorismo, nariz curvo em “bico de papagaio” e prognatismo consecutivo a hipoplasia do maxilar superior. Trata-se de doença hereditária com transmissão autossómica dominante de expressividade variável (4p 16.3, FGFR3).
  • síndroma de Apert ou acrocefalossindactilia de tipo I, em que as manifestações são similares às da síndroma de Crouzon, acrescentando-se sindactilia das mãos e pés. Esta afecção tem hereditariedade dominante, salientando-se que, na maioria das vezes, tem carácter esporádico relacionado com mutações de novo (10q26, FGFR2).
  • síndroma de Carpenter ou acrocefalossindactilia do tipo II, em que existe dismorfismo facial, acrocefalia, braquiclinossindactilia das mãos e polissindactilia dos pés. A transmissão hereditária é de tipo autossómico recessivo com expressividade variável (16p12.1-q12, RAB23).
  • síndroma de Pfeiffer ou acrocefalossindactilia do tipo V, caracterizada por turricefalia, anomalias faciais dismórficas, sindactilias discretas, polegares e dedos dos pés grandes. A transmissão hereditária é de tipo autossómico dominante com expressividade variável (8p11.2, FGFR1; 10q26, FGFR2).

Exames complementares

As craniossinostoses correspondem a situações diagnosticadas na sua maioria durante os períodos pré-natal (por ecografia) ou neonatal (por radiografia simples do crânio).

Havendo antecedentes familiares, e na perspectiva do diagnóstico sindrómico, poderá estar indicado o estudo do ADN, o qual pode ser obtido a partir das vilosidades coriónicas, líquido amniótico, sangue ou fibroblastos de biópsia fetal.

A radiografia simples do crânio é um exame considerado de eleição por confirmar a anomalia morfológica e permitir objectivar as suturas encerradas. (Figura 4)

A tomografia axial computadorizada (TAC) confirma o diagnóstico com mais rigor, permitindo estudo tridimensional. A ressonância magnética (RM) do encéfalo permite o diagnóstico de anomalias encefálicas associadas por vezes.

O diagnóstico diferencial deve fazer-se com as microcefalias ligadas a compromisso encefálico primitivo em que o atraso do neurodesenvolvimento não é acompanhado de encerramento precoce das suturas nem de hipertensão intracraniana.

Tratamento e prognóstico

O tratamento das craniossinostoses tem os seguintes obectivos: 1- assegurar o crescimento normal do cérebro; 2- prevenir a hipertensão intracraniana; 3- prevenir as sequelas neurológicas, oculares e auditivas; 4- contribuir para a melhoria estética do crânio e face.

Nos casos de escafocefalia a actuação é apenas estética. Como regra geral, pode estabelecer-se que, quando está indicado tratamento, este é sempre cirúrgico, da competência dos especialistas de neurocirurgia pediátrica; se a intervenção for realizada nos primeiros seis meses de vida serão obtidos melhores resultados.

O prognóstico depende de vários factores: tipo de craniossinostose, idade do diagnóstico, existência ou não de anomalias congénitas associadas, de hipertensão intracraniana, estrabismo, atrofia óptica, e de neurodesenvolvimento afectado. 

FIGURA 4. Aspecto radiográfico do crânio em lactente com turricefalia, não sendo visíveis as suturas por sinostose. (NIHDE)

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: Mac Keith Press, 2009

Campagnoni AT, el al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Cheek WR. Atlas of Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 1996

Galdo A, Cruz M. Exploracion Clínica em Pediatria. Barcelona: Editorial Jims, 2000

Gill D, O´Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh: Churchill Livingstone, 2003

www.infocefalia.com (Acesso em Janeiro de 2019)

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Loman WS, Flannery AB. Evidence-based care of the child with deformational plagiocephaly. Part I: assessment and diagnosis. J Pediatr Health Care 2012; 26: 242-250

Losee JE, Mason AC. Deformational plagiocephaly: Diagnosis, prevention and treatment. Clin Plast Surg 2005; 32: 53-64

McLone DG. Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 2001

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nield LS, Brunner MD, Kamat D. The infant with a misshapen head. Clin Pediatr (Phila) 2007; 46: 292-298

Rasmussen SA, Yazdy MM, Frias JL, Honein MA. Priorities for public health research on craniosynostosis. Am J Med Genet 2008; 146 A: 149-158

Ridgway EB, Weiner HL. Skull deformities. Pediatr Clin North Am 2004; 359-387

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Speltz ML, Kapp-Simon KA, Cunningham M, et al. Single-suture craniosynostosis: a review of neurobehavioral research and theory. J Pediatr Psychol 2004; 29: 651-668

Swaiman KF, Ashwal S, Ferriero DM, Schor NF. Swaiman’s Pediatric Neurology. Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012

Zitelli BJ, McIntire SC, Norwalk AJ (eds). Zitelli and Davis’ Atlas of Pediatric Physical Diagnosis. Philadelphia: Elsevier, 2012

HABILITAÇÃO PARA A MARCHA E AJUDAS TÉCNICAS EM CRIANÇAS COM SPINA BIFIDA

Importância do problema

Conforme é tratado no capítulo anterior, a spina bifida (SB) é a forma mais comum de disrafismo espinal.

Tendo em perspectiva a habilitação para a marcha nos casos com esta anomalia, o Quadro 1 discrimina os diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas.

QUADRO 1 – Diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas

Nível da lesãoDéfices muscularesAlterações ortopédicas
L2 e acimaParalisia completa dos membros inferioresAncas – Flexum e luxação
L3Paralisia praticamente completa dos membros inferiores,
excepto parte dos flexores e adutores das ancas
Ancas – Flexum e luxação
Pés – Deformidades várias
L4Ancas – Défice dos abdutores, extensores e recto interno
Joelhos – Défice do quadricípete
Pés – Défice do tricípete e do tibial posterior
Ancas – Flexum e rotação externa Risco de luxação
Joelhos – Recurvatum
Pés – Talus-varus
L5Ancas – Défice dos extensores Joelhos – Défice dos ísquio-tibiais
Pés – Défice do tricípete sural
Ancas – Flexum
Joelhos – Défice de flexão
Pés – Talus
S1Ancas – Défice dos extensores
Pés – Défice do tricípete sural e dos peroneais
Ancas – Flexum redutível
Pés – Talus e talus-valgus
S2Défice dos músculos intrínsecos dos pésPés cavus e dedos em garra

Intervenção

A actuação envolve uma série de intervenções pluridisciplinares escalonadas ao longo do tempo, adaptadas à evolução da criança, e tentando responder às solicitações da família em que ela se insere.

Em qualquer intervenção (re)-habilitadora há que: respeitar e facilitar as diversas etapas do neurodesenvolvimento da criança, nomeadamente a aquisição do controlo cefálico e do tronco, da quadrupedia (quando possível), da verticalização, e da funcionalidade dos membros superiores; e, igualmente estimular o desenvolvimento das funções perceptivas e cognitivas e da aquisição da linguagem e da fala.

Em geral, as crianças com SB são simpáticas e sociáveis, e não levantam problemas de comunicação nem de socialização.

Só uma equipa multi e transdisciplinar que envolva médicos, médicos fisiatras, enfermeiros, terapeutas (fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e terapeutas da fala), psicólogos, técnicos do serviço social, educadores e professores, pode dar resposta aos inúmeros desafios que um doente com spina bifida coloca.

A (re)-habilitação destas crianças visa essencialmente três objectivos: 1 – a preservação da função renal (e a obtenção de continência esfincteriana socialmente aceitável). 2 – a aquisição da marcha ou, na impossibilidade desta, a deambulação autónoma. 3 – a promoção dum desenvolvimento psicomotor adequado.

Neste capítulo é abordada concisamente a intervenção na área da (re)abilitação motora, que visa essencialmente: a) – evitar as deformidades e alterações posturais; b) – a aquisição da deambulação autónoma.

O tratamento preventivo dos desalinhamentos segmentares dos membros inferiores em crianças com esta patologia, uma preocupação presente desde o nascimento, mantém-se ao longo do crescimento.

Desde os primeiros dias de vida avaliam-se as alterações músculo-esqueléticas, motoras, sensitivas e esfincterianas, estabelecendo o nível da lesão medular. Nas situações em que se detectam, ou prevêem, alterações posturais ou contracturas musculares (que podem originar flexum, subluxações, talismo ou equinismo), utilizam-se técnicas de fisioterapia (mobilização, estimulação e posicionamentos) e confeccionam-se pequenas ortóteses; de preferência ligaduras funcionais executadas com adesivo hipoalérgico, ou talas de material termomoldável, necessariamente leves e almofadadas para posicionamento dos joelhos, tíbio-társicas e pés. Um exemplo frequente de contracturas precoces é o dos flexores da anca e do joelho, (flexum) cuja instalação pode ser prevenida colocando o bebé em decúbito ventral várias vezes por dia.

À medida que a criança cresce e se desenvolve vai sendo necessário reavaliá-la periodicamente, estabelecendo de modo definitivo o nível de lesão medular, o que nem sempre se consegue nas primeiras observações. Presta-se especial atenção à detecção precoce de deformidades, não só nos membros inferiores, como na coluna vertebral. A luxação ou subluxação das ancas, os flexa dos joelhos, as alterações posturais dos pés e as escolioses são frequentes e exigem intervenções terapêuticas atempadas.

As luxações e subluxações das ancas têm indicação cirúrgica se forem dolorosas, caso a criança tenha potencialidades para a marcha (lesões abaixo de L3); ou se forem unilaterais (provocando assimetria da bacia e dificuldade em assumir a posição de se sentar).

As alterações dos joelhos e a sua repercussão funcional são habitualmente de menor importância. A prevenção dos seus flexa faz-se pelo posicionamento com talas de extensão.

As deformidades dos pés (talus, equinus, aductus, valgus, equino varus), quando rígidas, requerem correcção cirúrgica em tempos que devem ser discutidos entre especialistas que tratam o doente, como o ortopedista, o neurocirurgião e o fisiatra.

As escolioses, por serem progressivas, com graves consequências posturais e respiratórias, têm indicação cirúrgica desde que a curvatura torácica tenha angulação superior a 40 graus. Antes, logo que sejam detectados desvios estruturados da coluna vertebral, deve actuar-se através do uso de ortóteses do tronco (coletes). Estes não irão alterar a progressão da curvatura, mas permitem uma postura mais correcta do tronco, facilitando a posição de sentar e a funcionalidade dos membros superiores.

Para conseguir o ortostatismo e a marcha, a criança com SB necessita, regra geral, de algum tipo de ajuda técnica (abordada adiante). Caso não consiga uma marcha autónoma, poderá beneficiar de algum meio de deambulação adaptado, como a cadeira de rodas, de propulsão manual ou eléctrica.

Atendendo ao carácter de multideficiência de que a maioria das crianças com SB padece, são necessárias intervenções terapêuticas que englobem, quer técnicas de estimulação do neurodesenvolvimento, quer fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e outras.

Todas estas terapêuticas, sejam as preventivas e correctivas das alterações músculo-esqueléticas, com os esforços na obtenção da marcha, sejam as estimuladoras do desenvolvimento, utilizam algum tipo de ajudas técnicas, para compensar a deficiência ou incapacidade presentes.

As ajudas técnicas também denominadas apoios tecnológicos (AT), incluem um conjunto de equipamentos, produtos e serviços que têm como objectivo promover a independência das pessoas com deficiência e incapacidade, tendo como finalidade a igualdade de oportunidades e a inclusão social. As mesmas abrangem um vasto leque de aparelhos e mecanismos que vão, de simples talas, até equipamentos sofisticados de controlo remoto, passando por cadeiras de rodas manuais ou motorizadas, próteses para amputados, aparelhos auditivos, óculos e lentes de contacto, ventiladores mecânicos, e equipamentos de apoio às actividades de vida diária.

Em resumo, no conceito de AT é englobado qualquer aparelho ou mecanismo que auxilia o doente com deficiência, promovendo a normalização funcional e melhorando a sua qualidade de vida. Um dos subgrupos das AT é o das ortóteses atrás definidas.

As AT são necessárias à maioria das crianças com SB, não só pela necessidade de alinhamento do tronco e membros, com vista à verticalização e deambulação, mas também para estimular o desenvolvimento e facilitar a sua integração na família, na escola e na sociedade. O seu uso deve ser iniciado precocemente. É comum a indicação de ligaduras funcionais e de talas posteriores logo no período neonatal.

Também nos primeiros 3 meses, após a estabilização clínica, se introduzem as cunhas e os rolos para estimulação do controlo cefálico e do tronco. Posteriormente serão: o banco triangular – que facilita o equilíbrio do tronco e a função dos membros superiores; o plano inclinado com rodas – que promove a verticalização e permite à criança ter uma perspectiva diferente do ambiente que a rodeia e a deambulação assistida; o standing frame – para o ortostatismo, que possibilita actividades numa mesa de trabalho ou de refeições; e o andarilho, na preparação da marcha. Esta, em grande número de casos, só é possível com o uso de ortóteses para os membros inferiores e de auxiliares de marcha, que podem ser canadianas, pirâmides ou andarilhos.

Para conseguir o ortostatismo e eventual marcha, procede-se aos ajustes posturais e correcções de deformidades através do uso de ortóteses do tronco (coletes e assentos moldados) e dos membros inferiores (talas de posicionamento). Todas as ortóteses devem ter protecção das zonas de pressão, devido ao défice sensitivo.

De salientar que é possível estabelecer uma relação entre o nível da lesão, as ortóteses necessárias e o prognóstico de marcha.

Na realidade, devido a múltiplos factores (excesso de peso, deformações adquiridas, medula ancorada, défice cognitivo, alterações emocionais, problemas familiares e outros) nem todas as crianças atingem a capacidade de deambulação prevista para um determinado nível de lesão.

Há AT ligadas às novas tecnologias que podem aplicar-se à (re)-habilitação de crianças com deficiências específicas. O uso de computador na escola justifica-se quando o ritmo de execução da criança é lento, não conseguindo acompanhar os outros alunos. Embora a motricidade fina possa estar afectada, a maioria das crianças com SB consegue ter um grafismo e escrita aceitáveis, sendo o computador apenas um auxiliar e não um substituto destas funções.

Nos casos raros em que existem alterações da linguagem e da fala, recorre-se aos meios aumentativos e alternativos de comunicação que, através de tecnologia informática, com software e acessos adaptados, favorecem o desenvolvimento dos conceitos linguísticos e promovem a comunicação e a socialização das crianças com estas deficiências.

GLOSSÁRIO

Flexum > termo considerado por alguns especialistas como “gíria”, e não completamente correcto, para significar rigidez articular em flexão ou contractura articular em flexão.

Ortóteses > aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de um membro, ou a deficiência de uma função.

Prótese > aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, membro ou parte de um membro destruído ou gravemente afectado.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: Mac Keith Press, 2009

Forsyth R, Newton R. Pediatric Neurology. Oxford: Oxford University Press, 2007

Guralnick MJ (ed). The Developmental Systems Approach to Early Intervention. Baltimore: Paul Brookes, 2005

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatrics Hospital Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007

DEFEITOS DO TUBO NEURAL

Introdução às anomalias congénitas do SNC

Os defeitos congénitos do SNC no RN, com uma frequência oscilando entre 0,5 e 5%, e representando cerca de 10% a 20% do total dos referidos defeitos, são responsáveis por 70% das mortes fetais e 40% das mortes durante o primeiro ano de vida.

Tais afecções integram um conjunto de entidades clínicas que podem ser sintetizadas do seguinte modo:

  • Defeitos do tubo neural ou disrafismo
  • Defeitos da migração, proliferação e diferenciação neuronais
  • Anomalias da segmentação e da divisão cerebrais
  • Hidranencefalia, porencefalia e quistos intracerebrais
  • Defeitos congénitos do cerebelo
  • Hidrocefalias
  • Craniossinostoses ou craniostenoses
  • Síndroma de Klippel-Feil

Neste capítulo é dada especial ênfase às situações que integram a alínea 1).

Noutros capítulos, são abordados temas referentes às restantes alíneas.

Sistematização e importância do problema

Os defeitos do tubo neural (DTN) (ou disrafismo) incluem anomalias congénitas da coluna e do cérebro; os mais frequentes são a spina bifida (SB) e a anencefalia (esta incompatível com a vida).

A spina bifida (SB) consiste no não encerramento do arco posterior de algumas vértebras, com possibilidade de herniação do tecido neural. (Figura 1).

FIGURA 1. Imagens axiais de RM da coluna que mostram o não encerramento posterior das vértebras e a existência de hidro-siringomielia (seta). (ver adiante)

O espectro clínico dos DTN inclui ainda o encefalocele, a craniorraquisquise (anencefalia associada a raquisquise ou fissura congénita da coluna vertebral com exposição do tecido neural) e a iniencefalia (disrafismo na região occipital, acompanhado por retroflexão acentuada do pescoço e tronco).

Tais defeitos devem-se a um desenvolvimento anómalo do neuroporo durante a embriogénese, com disrupção do osso e das estruturas mesenquimatosas. A lesão primária neurológica vai afectar outros sistemas além do sistema nervoso, o que torna os DTN as anomalias de desenvolvimento mais complexas.

Tratando-se de multideficiências (coexistência de duas ou mais perturbações nas áreas motora, sensorial e cognitiva) de baixa incidência e prevalência que entram no âmbito das doenças raras, as mesmas obrigam ao recurso a cuidados de saúde de nível terciário dada a multiplicidade, especificidade e complexidade dos problemas habitualmente associados.

A SB constitui o paradigma de problema complexo implicando enorme consumo em recursos de saúde, com múltiplas consultas, tratamentos, internamentos e intervenções cirúrgicas não só neurológicas mas também ortopédicas e nefro-urológicas. A possibilidade de prevenção de muitas complicações, com melhoria significativa da qualidade de vida e redução substancial dos custos, passa necessariamente pelo ensino e crescente corresponsabilização do doente e família na prestação de cuidados.

Os doentes com SB têm compromisso motor e sensitivo, malformações ortopédicas, ausência de controlo de esfíncteres, e complicações renais secundárias à bexiga neurogénica.

Existem também complicações da hidrocefalia consequente, traduzidas frequentemente por dificuldades de aprendizagem, atraso mental, perturbações do equilíbrio, da marcha e problemas oftalmológicos. (ver adiante)

Devido à multiplicidade e complexidade dos problemas destes doentes, foi sentida a necessidade de se constituirem equipas multidisciplinares que pudessem prestar cuidados de saúde abrangentes e coordenados. No Hospital Dona Estefânia funciona desde 1985 um Núcleo de Spina Bífida onde são seguidas regularmente cerca de 220 crianças e adolescentes.

FIGURA 2. RN com uma forma fechada de SB (lipomielomeningocele). Nota-se tumefacção lombar, angioma cutâneo e fosseta mediana horizontal

Na prática utiliza-se o termo de spina bifida (SB) ou espinha bífida como sinónimo de DTN, atendendo a que as crianças com os outros tipos de DTN raramente sobrevivem. Esta anomalia localiza-se mais frequentemente na região lombo-sagrada, embora possa aparecer ao longo de toda a coluna. Compreende as formas fechadas e as formas abertas, consoante o tecido neural se encontra ou não coberto pela pele normal.

As formas fechadas podem incluir uma massa subcutânea (lipomielomeningocele, lipomeningocele, mielocistocele), que faz saliência na região lombo-sagrada (Figura 2).

As formas fechadas sem massa subcutânea compreendem o filum terminal ancorado, o lipoma intradural, o sinus dérmico ou mesmo disrafismos mais complexos como o quisto neuroentérico, a diastematomielia ou a agenésia caudal.

A chamada spina bifida oculta, que se encontra em 5% da população, diz respeito em sentido estrito apenas ao defeito ósseo do não encerramento de uma ou duas vértebras na transição lombo-sagrada (L5 e/ou S1), demonstrada nas radiografias desta zona, com completa integridade da medula e meninges; de referir que isoladamente não tem repercussão clínica.

As formas fechadas associam-se, por vezes, a alterações cutâneas (hipertricose, hemangiomas capilares, fossetas) na linha média da região lombo-sagrada (Figura 2 e 3).

FIGURA 3. SB oculta com um tufo de pêlos sinalizando o encerramento incompleto do arco posterior da vértebra. A medula e as meninges estão intactas

FIGURA 4. Meningocele com herniação das meninges através do defeito ósseo. Medula íntegra

FIGURA 5. Mielomeningocele. A medula e as meninges herniam através da abertura óssea

Das formas abertas faz parte o meningocele (Figura 4), em que já existe herniação das meninges através do defeito ósseo e que implica correcção neurocirúrgica; em geral, não se acompanha de qualquer sintomatologia motora. No mielomeningocele (Figura 5), a forma mais grave de SB (e aquela que habitualmente se subentende quando se faz referência a SB), existe procidência da medula espinal ou das raízes nervosas através do defeito ósseo, com lesões neurológicas mais ou menos importantes. Usa-se frequentemente o termo de SB quística para denominar o mielomeningocele e o meningocele. Em cerca de 80% dos casos a SB (na sua forma de mielomeningocele) acompanha-se de hidrocefalia (Figura 6) por malformação cerebral associada (malformação de Arnold Chiari II e/ou estenose do aqueduto de Sylvius).

Recordam-se, a propósito, as seguintes definições complementares:

  • Hidrocefalia (ou hidrencefalia): dilatação das cavidades ventriculares e dos espaços subaracnoideus da cavidade craniana por pressão excessiva do LCR, (produzido pelos plexos coroideus nos ventrículos laterais) podendo determinar aumento do perímetro cefálico.
  • Malformação de Arnold-Chiari: defeito congénito que consiste na descida do cerebelo e tronco cerebral para o canal vertebral e penetração das amígdalas cerebelosas no canal cervical com consequente hidrocefalia.
  • Siringomielia: afecção crónica caracterizada pelo desenvolvimento progressivo, na medula cervical e cérvico-dorsal, de uma cavidade na substância cinzenta, atrás do canal ependimário, por obstrução da normal circulação de LCR ao nível do foramen magnum. Como consequência, surge atrofia muscular, sobretudo nos membros superiores com hipotonia, atrofia dos tegumentos e abolição da sensibilidade dolorosa e térmica. (Figura 7)

FIGURA 6. TAC evidenciando hidrocefalia com DVP em criança com mielomeningocele ao nível D12, siringomielia extensa, atrofia significativa do manto cortical, e atraso cognitivo grave

FIGURA 7. Siringomielia “septada” a nível cérvico-dorsal (com aspecto quístico), numa criança de três anos com mielomeningocele nível S1 e Arnold-Chiari II concomitantes

Aspectos epidemiológicos

A prevalência da SB tem vindo a descrescer nos países desenvolvidos, sendo actualmente cerca de 0,1/1000 nados-vivos. Isto deve-se, em parte, às possibilidades de diagnóstico pré-natal possibilitando a interrupção da gravidez nos casos mais graves; as ecografias pré-natais de alta resolução (ecografias morfológicas) permitem a visualização do defeito neural entre a 16ª e a 20ª semana de gestação em cerca de 99% dos casos. Reportando-nos ao estado nutricional, cabe referir que a ingestão de ácido fólico (4mg/dia) durante 3 meses antes da concepção e no 1ºtrimestre de gravidez em mulheres com antecedentes gravidez com DTN, diminui em cerca de 70% a recorrência de DTN (ver adiante).

Até à década de sessenta era escasso o número de doentes com SB que sobrevivia, pois não havia possibilidade de proceder a derivação da hidrocefalia. Logo que tiveram início as intervenções de derivação ventriculoperitoneal (DVP) a sobrevida foi aumentando e, actualmente, nos países ocidentais, cerca de 90% dos doentes atinge a idade adulta.

Etiopatogénese

A falência do encerramento do tubo neural ocorre nos estádios embrionários precoces da gastrulação e da neurulação (primeiras 6 semanas de gestação).

O defeito básico consiste no não encerramento primário do tubo neural, embora a reabertura secundária também seja considerada nalguns casos.

Os factores etiológicos podem ser exógenos (víricos, tóxicos, radioactivos, nutricionais, químicos, etc.) e endógenos (anomalias cromossómicas, ou génicas).

O momento da actuação da noxa sobre o feto é mais importante do que a própria natureza da noxa.

Nesta perspectiva cabe salientar o importante o papel desempenhado pela privação vitamínica na mãe, na data da fecundação, sobretudo de ácido fólico. Este aspecto explica o aumento de incidência da SB nas classes mais desfavorecidas e em situações de guerra ou de catástrofe, caracterizadas por carências nutricionais.

Relativamente aos factores genéticos, eles relacionam-se essencialmente com os genes, ainda não completamente identificados, que regulam o metabolismo do complexo folato-homocisteína, principal responsável pelo controlo dos mecanismos celulares de encerramento do tubo neural. O risco de uma mulher com um filho portador de SB vir a ter outro filho afectado é 20 vezes superior ao da população geral. No Núcleo de SB do HDE, houve 4 recorrências de fetos com SB em 165 mães de crianças afectadas, seguidas ao longo de 20 anos. O valproato de sódio e a carbamazepina, medicamentos antiepilépticos, aumentam a incidência de DTN quando tomados durante a gravidez, por muito provável interferência no metabolismo do ácido fólico. Na impossibilidade de mudar a terapêutica, estas mulheres devem obrigatoriamente receber suplementos de ácido fólico e, ao engravidarem, ser seguidas em consulta de alto risco, com ecografias obstétricas morfológicas de elevada resolução. Nas 136 crianças actualmente seguidas no Núcleo de SB do HDE, duas mães tinham tomado carbamazepina e uma valproato de sódio, durante a gravidez.

A solução de continuidade ao nível do tubo neural permite a excreção de substâncias produzidas no feto (alfa-feto-proteína [AFP], acetilcolinesterase) para o líquido amniótico, servindo de marcadores bioquímicos do defeito em causa. Por outro lado, o rastreio no soro materno de AFP entre as 16-18 semanas de gestação permite identificar fetos de risco.

A hidrocefalia, que surge na grande maioria dos casos de DTN, explica-se fundamentalmente por 3 mecanismos gerais:

  • insuficiência de reabsorção do LCR pelas vilosidades aracnoideias de Pacchioni, sendo o mesmo segregado pelos plexos coroideus nos ventrículos laterais (por ex. trombose dos seios venosos);
  • hipersecreção de LCR (raramente), por exemplo, por papiloma dos plexos coroideus;
  • obstrução mecânica (98% dos casos) impedindo a circulação do LCR; para além de processos inflamatórios, cabe referir fundamentalmente tumores e anomalias congénitas já citadas antes, associadas a DTN, acrescentando a anomalia de Dandy-Walker (dilatação quística do IVº ventrículo por ausência congénita dos respectivos orifícios de evacuação – buracos de Magendie e Lushka) e atrésia do aqueduto de Sylvius.

A circulação do LCR depende dum gradiente de pressões; em situação normal a pressão intraventricular é ~ 180 mm H2O e a do seio longitudinal superior ~ 90 mm H2O.

A hidrocefalia que resulta de obstrução ao nível do sistema ventricular é chamada obstrutiva ou não comunicante; a que resulta de obliteração ao nível das cisternas subaracnoideias, ou de disfunção das vilosidades aracnoideias é chamada não obstrutiva ou comunicante.

Manifestações clínicas

Em termos de sistematização, os doentes com SB dividem-se em 3 grupos, de acordo com o nível da lesão: nível superior (L2 ou acima), nível médio (L3 a L5), e nível inferior (S1 ou abaixo). Quanto mais elevado for o nível da lesão (Figura 8) maior a probabilidade de ocorrência de hidrocefalia e maior o grau de incapacidade motora e de complicações secundárias.

FIGURA 8. A: Mielomeningocele de nível superior (D10), com exposição do tecido neural. B: Criança vinda de África com um mês de vida. Mielomeningocele íntegro e hidrocefalia sintomática (vómitos e letargia)

Cerca de 40% dos doentes com SB desloca-se em cadeira de rodas. A lesão medular e/ou das raízes nervosas é responsável pela paraplegia mais ou menos grave, pelo compromisso da sensibilidade com risco de úlceras de pressão e queimaduras, pelas malformações e deformações ortopédicas, pela ausência de controlo dos esfíncteres vesical e anal, e pelas complicações nefro-urológicas.

A hidrocefalia que, como foi referido, ocorre na grande maioria dos casos de mielomeningocele, é a causa dos problemas cognitivos, visuais e de equilíbrio que alguns doentes com SB apresentam.

Nos doentes com SB sem hidrocefalia, a função cognitiva é habitualmente sobreponível à da população geral.

A epilepsia, presente num número restrito destes doentes (3% – na casuística do Núcleo do HDE), é habitualmente secundária a complicações da hidrocefalia.

Apneia, alteração de deglutição e estridor podem surgir nalguns doentes com SB, sobretudo lactentes, devido à malformação de Arnold-Chiari e a conflito de espaço a nível do foramen magnum, com disfunção dos pares cranianos inferiores.

Mais de metade dos doentes com malformação de Arnold-Chiari II apresenta siringo-hidromielia, logo nos primeiros anos de vida. Localizando-se habitualmente nas regiões cervical ou dorsal, traduz-se por compromisso das sensibilidades dolorosa e térmica nos dermátomos correspondentes, e diminuição de força e atrofia dos músculos da mão ou mesmo de todo o membro superior (Figura 7).

Praticamente todos os portadores de SB têm incontinência de esfíncteres urinário e anal, por compromisso do sistema nervoso autónomo. São frequentes as infecções urinárias, e cerca de um terço evoluirá para insuficiência renal se não houver um correcto acompanhamento tendo em conta as particularidades da bexiga neurogénica.

Com o crescimento existem sérias possibilidades de deterioração da marcha nas formas inicialmente ambulatórias, devido à baixa terminação da medula (L5-S1 em vez de L1 como nos indivíduos normais), e à sua fixação às estruturas envolventes (medula ancorada), com o consequente estiramento. Esta situação também é responsável pela deterioração nefro-urológica secundária ao agravamento da bexiga neurogénica, com pressão intravesical elevada, o que facilita o aparecimento de refluxo vesico-ureteral e de cicatrizes renais secundárias a infecção. Este problema neurocirúrgico deve ser atempadamente resolvido, logo que surjam os primeiros sinais neurológicos “de novo” (pés cavus, hiperreflexia, espasticidade distal com encurtamento do tendão de Aquiles, diminuição de força, atrofia dum dos membros inferiores ou síndromas álgicas) e/ou agravamento dos exames urodinâmicos, com repercussão clínica.

As deformações ortopédicas também são frequentes e determinadas pelo nível da lesão e complicações da medula ancorada. O pé equinovaro, a luxação da anca e a cifoscoliose são as alterações que motivam maior número de intervenções ortopédicas nesta população. As fracturas espontâneas nos membros inferiores ocorrem com frequência nas SB com nível mais elevado e maior compromisso motor; atendendo à ausência de sensibilidade nestes doentes, o diagnóstico pode ser tardio (Figura 9).

De salientar que cerca de 50% da população com SB tem hipersensibilidade ao látex.

FIGURA 9. Fractura espontânea do colo do fémur esquerdo em criança com mielomeningocele nível L1

Diagnóstico

O diagnóstico do disrafismo espinhal pode ser feito a partir da 14ª semana de gestação através da ecografia pré-natal morfológica. A hidrocefalia na SB tem início, na maioria dos casos, no período pré-natal, a partir das 20 semanas de gestação. A RM fetal veio tornar possível uma melhor identificação dos DTN; o recurso a este exame é indispensável para fundamentar a decisão relativamente ao prosseguimento ou interrupção duma gravidez cursando com DTN.

Após o nascimento é ainda a RM o exame de escolha para uma adequada avaliação destas situações; sempre que possível deve ser realizada à totalidade do SNC antes do encerramento do DTN, para estudo evolutivo mais apurado.

A inexistência de pregas radiárias perianais ou a sua escassez apontam para o quadro de intestino neurogénico com maior probalidade de incontinência anal.

Nas formas fechadas deve ser sempre realizado o estudo imagiológico por RM da coluna, sobretudo se houver a associação de 2 ou mais sinais cutâneos.

A medula ancorada é uma complicação frequente das formas abertas e fechadas de disrafismo; pode tornar-se sintomática em qualquer idade, mas mais frequentemente na criança ou jovem adulto: desenvolvimento de sinais piramidais nos membros inferiores, deterioração da marcha, aumento da frequência de infecções urinárias, maiores dificuldades na continência, e desenvolvimento de escoliose.

Tratamento

O tratamento da SB já é possível iniciar-se durante a gravidez, com a cirurgia fetal. O encerramento do mielomeningocele (MM) in utero diminui a probabilidade de desenvolvimento de hidrocefalia, mas parece não melhorar muito a funcionalidade dos membros inferiores.

Trata-se duma área da cirurgia fetal, ainda em investigação, e restrita a alguns centros neurocirúrgicos; é, por isso, necessário avaliar mais estudos prospectivos comparando os resultados do encerramento no período pré-natal com os do encerramento no período pós-natal.

Após a criança nascer, o encerramento do mielo ou do meningocele deve realizar-se nas primeiras 24 a 72 horas de vida num bloco operatório isento de látex, medida que deverá ser sempre seguida em ulteriores intervenções cirúrgicas. Se houver rotura da membrana envolvente, a cirurgia deverá realizar-se logo nas primeiras horas de vida de modo a evitar a infecção e, assim, diminuir o risco de agravamento da lesão motora e o compromisso cognitivo. Quanto aos lipomeningoceles, a intervenção pode ser adiada vários meses ou mesmo anos, desde que não sejam muito volumosos e não apareçam sinais associados à medula ancorada.

A hidrocefalia pode estar presente desde o nascimento (em cerca de 15% dos mielomeningoceles) e a DVP pode realizar-se em simultâneo com o encerramento do MM. Na maioria dos casos a hidrocefalia torna-se aparente 2 a 3 semanas depois do encerramento do DTN. Daí a necessidade da derivação, colocando um tubo flexível no sistema ventricular cerebral (geralmente no ventrículo lateral direito) para drenar o excesso de LCR para o peritoneu. Nos raros casos em que não existe possibilidade de absorção pelo peritoneu, esta derivação deverá ser feita para uma das aurículas.

O “desancoramento” da medula melhora a disfunção da bexiga e evita a progressão de sinais piramidais nos membros inferiores. Uma vez estes instalados, já é problemática a sua regressão, embora se possa evitar a sua progressão.

A maioria das crianças com SB necessita de apoios para a sua mobilidade – talas, canadianas e/ou cadeiras de rodas. A obesidade é um dos problemas frequentes nesta população, a qual não só compromete ainda mais a sua deambulação, como aumenta o risco de doenças cardiovasculares.

A ausência de sensibilidade favorece o aparecimento de escaras, feridas ou queimaduras nas zonas afectadas devido à inexistência de dor. A sua cicatrização é lenta e obriga muitas vezes à imobilização prolongada e a longos internamentos hospitalares.

Outros factores condicionantes do prognóstico da SB, e causas frequentes de mortalidade, são as complicações (obstrução, infecção) das DVP para resolução da hidrocefalia. Mesmo as hidrocefalias sem válvula necessitam de vigilância periódica, pois existe sempre a possibilidade da sua descompensação, com repercussões a nível cognitivo visual e motor. No Quadro 1 figuram os sinais mais frequentes de disfunção duma DVP.

QUADRO 1 – Sinais de disfunção de DVP

Agudos
    • Cefaleia, vómitos, estrabismo, letargia
Insidiosos
    • Dificuldade de concentração
    • Aparecimento/agravamento de dificuldades escolares
    • Alterações do humor
    • Cefaleia intermitente
    • Sonolência

Grande parte das crianças e jovens com SB tem alterações vesicais e intestinais (bexiga e intestino neurogénicos), implicando necessidade de aprendizagem do seu controlo e de tratamento de modo a obter, sempre que possível, uma continência social.

Para evitar lesões renais, os pais e mais tarde as próprias crianças (de preferência antes de entrarem na escola primária), devem aprender a fazer algaliações para esvaziar a bexiga de 4 em 4 horas, com pausa nocturna de 8 horas. A cateterização intermitente deve ser instituída logo nos primeiros meses de vida sempre que os resíduos urinários sejam superiores a 10% da capacidade vesical calculada para a idade da criança.

Prognóstico

São necessários exames complementares de diagnóstico seriados (urinoculturas, ecografias e cintigrafias renais, cistografias, estudos urodinâmicos, RM, TAC) e múltiplos tratamentos médicos e/ou cirúrgicos para prevenir e tratar as complicações ao longo da vida do doente com SB. A inexistência de equipas multidisciplinares que assegurem uma adequada vigilância do doente com SB reflecte-se habitualmente em deterioração da qualidade de vida.

Há menos de três décadas, poucos bebés com SB sobreviviam ao seu primeiro ano de vida. Hoje, graças a um melhor tratamento que passa, não só por uma sofisticação das técnicas actualmente disponíveis, mas também por um forte investimento na prevenção das complicações secundárias, em 90% dos casos é atingida a idade adulta.

Prevenção

O tubo neural desenvolve-se nas primeiras 4 semanas da gravidez, quando a maioria das mulheres ainda desconhece que está grávida. Reitera-se o que foi dito a propósito da importância do suplemento oral de ácido fólico na dose de 4 mg/dia (nos casos de antecedentes de SB em filho anterior), desde 1 mês antes da data planeada para a concepção e, pelo menos, ao longo do primeiro trimestre da gravidez, enquanto durar a neurulação; não se verificando antecedentes de risco, em idêntico período é recomendada a dose menor (0,4 mg).

As mulheres com epilepsia e que queiram engravidar devem evitar tomar o valproato de sódio ou a carbamazepina; caso não seja possível substituir esta medicação antiepiléptica, são imprescindíveis os suplementos pré e periconcepcionais com ácido fólico e a sua orientação para uma consulta de alto risco.

BIBLIOGRAFIA

Adzick NS, et al. Prenatal repair of myelomeningocele versus postnatal repair. N Engl J Med 2011; 364: 993 – 1004

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: Mac Keith Press, 2009

Aslan AR, Kogan BA. Conservative management in neurogenic bladder dysfunction. Curr Opin Urol 2002; 12: 473-477

Blencowe H, Kancherla V, Moorthie S, et al. Estimates of global and regional prevalence of neural tube defects for 2015: a systematic analysis. Ann NY Acad Sci 2018; 1414:31-46. Doi: 10. 1111/nyas. 13548

Calado E, Loff C. The failures of spina bifida transdisciplinary care. Eur J Pediatr Surg 2002; 12: S51-52

Campagnoni AT, el al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Dias L. Orthopedic care in spina bifida: past, present and future. Dev Med Child Neurol 2004; 46: 579

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Guggisberg D, Hadj-Rabia S, Viney C, et al. Skin markers of occult spinal dysraphism in children. Arch Dermatol 2004; 140: 1109-1115

Kaufman BA. Neural tube defects. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 389-419

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

McLone DG. Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 2001

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Van Dyke DC, Stumbo PJ, Berg MJ, Niebyl JR. Folic acid and prevention of birth defects. Dev Med Child Neurol 2002; 44: 426-429

Walsh DS, Adzick NS. Foetal surgery for spina bifida. Semin Neonatol 2003; 8: 197-205

PARALISIA CEREBRAL

Definições e importância do problema

De acordo com a definição de consenso da SCPE (Surveillance of Cerebral Palsy in Europe, rede europeia de centros de registo de PC, de que Portugal faz parte) paralisia cerebral é um termo diagnóstico que designa um “conjunto amplo de situações permanentes, mas não imutáveis, envolvendo uma alteração do movimento e/ou postura e da função motora e devidas a interferência/ lesão/ anomalia não progressiva do desenvolvimento do cérebro imaturo.”

Trata-se duma designação de conveniência, baseada na avaliação clínica constando da combinação de sinais e sintomas englobando situações neurológicas heterogéneas com múltiplas etiologias, de origem cerebral.

Devem ser excluídas todas as situações progressivas resultando de perda de competências adquiridas, as doenças da medula espinhal e os casos em que a hipotonia constitui o único sinal neurológico. Depois da insuficiência intelectual, é a causa de incapacidade neurológica mais frequente na criança.

Na PC a deficiência motora é habitualmente a mais evidente, com realce para a presença de sinais piramidais ou extrapiramidais; contudo, é frequente a ocorrência simultânea de perturbações sensoriais sobretudo visuais e auditivas, compromisso da linguagem e fala, atraso cognitivo, dificuldades na aprendizagem, epilepsia e alterações comportamentais.

Aspectos epidemiológicos

Apesar da melhoria dos cuidados perinatais nos países desenvolvidos, com uma enorme redução da mortalidade perinatal nos últimos 30 anos, a prevalência de paralisia cerebral tem-se mantido com valores oscilando nos centros europeus entre 1,5-3/1.000 nados-vivos. Tal deve-se essencialmente à sofisticação crescente dos cuidados intensivos neonatais que permitem, cada vez mais, a sobrevivência dos recém-nascidos (RN) pré-termo e de muito baixo peso (< 1.500 gramas). Actualmente, nos países desenvolvidos os RN pré-termo e de termo contribuem com percentagens muito semelhantes para as casuísticas de PC (cerca de 20-40% dos casos). Habitualmente existe um predomínio do sexo masculino numa proporção de 2/1.

De acordo com a SPCE, a idade mínima para confirmar o diagnóstico e recolher os dados deve ser os 3 anos, e a idade ideal os 5 anos, sendo que, ao registar os dados, podem ser incluídas crianças com quadro clínico de PC e que faleceram entre os 1 e 5 anos.

Num estudo multicêntrico recente, de âmbito internacional (Estudo Europeu sobre a Etiologia da Paralisia Cerebral – EEEPC), abrangendo um total de 432 casos nascidos entre 1996 e 1998, entre os quais um grupo de 100 crianças com PC da área metropolitana de Lisboa, confirmou-se a incidência atrás referida. A casuística do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia engloba 45% de casos com antecedentes de prematuridade (22% com 32-36 semanas, 14% com 28-31 semanas, e 9% com menos de 28 semanas).

Etiopatogénese

As causas de PC, múltiplas, podem ser genéticas ou o resultado de noxas pré, peri ou pós-natais (Quadro 1). Por vezes estes factores actuam em simultâneo, o que torna difícil determinar a etiologia específica e realizar uma prevenção eficaz. Diferentes formas clínicas de PC podem ter a mesma patologia cerebral, enquanto etiologias diferentes podem originar quadros clínicos semelhantes. A Figura 1 mostra em esquema as principais áreas motoras afectadas na PC, e a Figura 2 a relação entre vias, estruturas e tipos de PC.

QUADRO 1 – Causas de paralisia cerebral

Pré-nataisPerinataisPós-natais
Infecções congénitas
(Herpes, Toxoplasma, Rubéola,
Citomegalovírus, Sífilis)
Complicações placentares
(abrupta, ruptura prematura
das membranas, corioamnionite)
Traumatismo cranioencefálico
Doenças genéticasPrematuridadeInfecções do sistema nervoso central
(meningite, encefalite)
Agentes teratogénicos
(chumbo, mercúrio)
Drogas maternas ou álcool
Complicações do trabalho de parto
(asfixia perinatal, trauma)
Acidente vascular cerebral
Vasculares
(hipóxia, isquémia, trombose,
hemorragia, embolia)
Infecção do sistema nervoso central
(Enterobacteriáceas, Streptococcus
do grupo B, Listeria)
Convulsões neonatais
Perturbações do
desenvolvimento cerebral
(disgenésias cerebrais)
Alterações metabólicas
(hipoglicémia, desequilíbrios
hidroelectrolíticos)
Afogamento e asfixia
Metabólicas
(deficiência de iodo)
Hiperbilirrubinémia
(Kernicterus)
 
Incompetência cervical ou
hemorragia do 3º trimestre
  
Gravidez gemelar  

FIGURA 1. Principais áreas motoras afectadas na PC (ver Figura 2)

FIGURA 2. Vias e estruturas atingidas nos diferentes tipos de paralisia cerebral. (Cerebelo assinalado a cor na figura do meio)

A asfixia perinatal, (considerada no passado uma das causas mais frequentes de PC), admite-se hoje que em certas circunstâncias seja, sim, o epifenómeno de outros problemas que, na vida pré-natal, afectam o desenvolvimento das estruturas cerebrais.

O nascimento pré-termo e o baixo peso de nascimento são factores de risco de grande importância e com tendência para aumentar, pelo que se torna essencial o investimento na prevenção destas situações, melhorando os cuidados de saúde às grávidas. Igualmente, as gravidezes multigemelares têm um risco 4 vezes superior de ocorrência de PC (prematuridade, restrição de crescimento intra-uterino, morte dum dos fetos in utero). A fertilização in vitro (FIV), pela sua contribuição para o aumento do número de gravidezes gemelares, habitualmente em mulheres de idade superior aos 35 anos, tem-se vindo a revelar nos últimos anos uma causa importante de PC nos países desenvolvidos.

O tipo clínico mais frequente no RN pré-termo é a diplegia, devido ao mecanismo das lesões por ruptura dos vasos da matriz germinal e leucomalácia periventricular. Recém-nascidos de termo também podem apresentar um quadro de diplegia se a lesão pré-natal tiver ocorrido no último trimestre. No entanto, a forma clínica de PC mais frequente nos RN de termo com asfixia perinatal é a tetraparésia espástica. A hemiplegia, habitualmente, é consequência de um acidente vascular cerebral (AVC) ocorrido no período pré ou perinatal. (ver adiante)

Actualmente o estudo imagiológico pela ressonância magnética (RM) permite caracterizar as lesões cerebrais e precisar o momento em que ocorreram, bem como relacioná-las com as manifestações clínicas e sua gravidade. Este exame tornou-se, assim, um instrumento indispensável na determinação da etiologia e do prognóstico da PC.

Os padrões de lesão da RM traduzem a vulnerabilidade selectiva em determinadas idades pré-natais de certas áreas do cérebro, de acordo com o desenvolvimento e maturação das estruturas cerebrais. É o conceito de “períodos críticos”; assim as anomalias congénitas correspondem a noxas ocorrendo antes da 20ª semana de gestação; a lesão da substância branca periventricular entre a 24ª e 34ª semana, e a lesão da substância cinzenta, já no cérebro mais maturo, após a 34ª semana.

Nos casos de hipóxia-isquémia grave e abrupta, são afectados, sobretudo, os núcleos da base; e, se for prolongada, são afectadas as estruturas cortico-subcorticais.

As causas pré-natais são as que mais contribuem para a etiologia da PC. A RM veio demonstrar que um terço das PC em RN de termo se deve a disgenésias corticais, secundárias a alterações da migração neuronal. Alguns destes casos são cromossomopatias que, com frequência, se associam a perturbações da migração; se forem suspeitadas, devem ser investigadas com cariótipos de bandas de alta resolução e/ou técnicas moleculares.

Na PC pós-natal (< 5% total das PC) as causas mais frequentes são a infecção (50%), as lesões vasculares (20%) e os traumatismos cranioencefálicos (18%). A casuística do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia até 2007, num total de 100 crianças, engloba 4 casos com etiologia pós-natal (1 com meningite pneumocócica aos 18 meses, 1 por paragem cardiorrespiratória ao 28º dia de vida, 1 com anomalia vascular cerebral com hemorragia aos 20 meses e 1 com encefalite pós-vacinal).

Estima-se que 2% das PC são devidas a causas genéticas. Trata-se habitualmente de formas clínicas espásticas e simétricas, tendo-se identificado nalgumas famílias afectadas um gene em 2q24-q25, (marcadores D2S124 e D2S148). Este gene codifica um grupo de proteínas que são essenciais nos estádios precoces do desenvolvimento.

Manifestações clínicas

De acordo com o tipo de distúrbio motor predominante, são considerados os seguintes tipos clínicos:

  • tipo espástico (hemiplegia, diplegia, tetraplegia);
  • tipo atáxico;
  • tipo discinético (atetose, coreoatetose, distonia).

Na diplegia há envolvimento dos quatro membros, com franco predomínio dos inferiores. Na hemiplegia estão afectados os membros superiores e inferior do mesmo lado. Na tetraplegia, os quatro membros são igualmente afectados. A escala de Ashworth, com uma graduação entre 1 e 4, é a mais usada para avaliar o grau de espasticidade. (Figuras 3 e 4)

FIGURA 3. Envolvimento anatómico nas paralisias cerebrais espástica e discinética

FIGURA 4. Paralisia cerebral espástica diplégica em criança com antecedentes de prematuridade (postura dos membros inferiores em “tesoura”)

Nos 100 casos portugueses do EEEPC os tipos mais frequentemente identificados foram a diplegia (31%), seguindo-se a tetraparésia em 24%, a discinésia em 17%, a hemiparésia em 14% e a ataxia em 6%. Os movimentos involuntários eram predominantemente do tipo atetósico, sendo os menos frequentes os coreoatetósicos.

A classificação da PC pelo tipo e topografia da lesão é útil em termos clínicos e epidemiológicos, mas tem muitas limitações como indicador de mobilidade, o qual é contemplado em escalas de avaliação das incapacidades, que estão numa fase de uniformização internacional.*

*Actualmente o problema da deficiência em geral é encarado numa perspectiva biopsicossocial na tentativa de valorizar de modo estruturado as potencialidades remanescentes, ou seja , os aspectos positivos da interacção entre o indivíduo com limitações e o contexto ambiental e pessoal. Assim, em diversos centros estão a ser cada vez mais aplicados diversos instrumentos tais como: curvas de referência para a funcionalidade, curvas de desenvolvimento motor específicas para a PC, escalas de medida da função de motricidade grosseira, etc.. Sugere-se, a propósito, a consulta do Glossário Geral para a terminologia: Funcionalidade e Incapacidade (Disability).

A mais frequentemente utilizada é a GMFM (Gross Motor Function Measure). A utilização deste tipo de escalas permitirá avaliar e comparar os resultados de diversas abordagens terapêuticas nas múltiplas casuísticas. Em relação ao grau de deficiência neuromotora, no grupo acima referido, 38% apresentava défice ligeiro, 35% moderado e 27% grave.

A disfunção pseudobulbar e oromotora, com compromisso da articulação verbal e dificuldades alimentares, são frequentes na PC. Problemas de comunicação verbal foram observados em 62% dos casos do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia (SNPHDE) incluídos no EEEPC. Encontrou-se disartria em 41% e dificuldade de deglutição da saliva em 36%. De facto, este fenómeno na PC não é devido a hipersecreção salivar.

Os problemas visuais são frequentes na PC, sobretudo o estrabismo que aparece em cerca de metade dos casos. A hemianópsia deve ser sempre avaliada, sobretudo nos casos de hemiparésia. O défice auditivo também é um problema frequente, tendo ocorrido em 6 casos do SNPHDE.

O atraso cognitivo está presente em 60 a 70% da população com PC. No grupo das 100 crianças acima mencionado, avaliadas entre os 4-5 anos (Escala de Griffiths e/ou Escala de Minnesota, classificados de acordo com os critérios do “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” (DSM-IV) só 37% apresentava quociente de inteligência (QI) > 70 e 44% tinha um atraso grave ou profundo (QI < 40). De referir que são as tetraparésias que se acompanham mais frequentemente de atraso grave/profundo (75%).

Cerca de um terço dos casos de PC acompanha-se de epilepsia, sendo mais frequente nas tetraparésias e hemiparésias (58% e 21% respectivamente no EEEPC). Trata-se habitualmente de epilepsias parciais sintomáticas, com crises parciais motoras, frequentemente com generalização secundária. As crises associadas às hemiparésias podem ser refractárias à terapêutica antiepiléptica, o que estabelece indicação para intervenção cirúrgica.

As formas mais graves de PC (tetraplegias) apresentam, ainda hoje, um atraso importante do crescimento estaturo-ponderal (< percentil 5 em 47% da casuística atrás referida).

A osteoporose é um problema comum, consequência da imobilização, de terapêutica crónica com antiepilépticos (sobretudo o valproato de sódio) e de défices nutricionais; daí o risco elevado de fracturas ósseas.

Diagnóstico diferencial

Várias doenças genéticas e metabólicas, com início na infância e de curso lentamente progressivo, podem confundir-se com PC, dado partilharem sinais e sintomas comuns.**

**Contudo, reportando-nos ao fluxograma elaborado pela SCPE (consultar Bibliografia no fim do Capítulo: G Andrada et al), determinada situação com síndroma genética ou com anomalia cromossómica, se evidenciar perturbação do movimento e postura de origem central, hipotonia generalizada e sinais de ataxia corresponderá a PC atáxica.

O diagnóstico correcto e precoce destas situações é fundamental, o que permite instituir um tratamento quando este é possível, informar a família do prognóstico da situação e proceder a aconselhamento genético. Em muitos casos já é possível o diagnóstico pré-natal.

Uma investigação mais aprofundada numa criança com clínica sugestiva de PC justifica-se nas seguintes situações:

  • ausência de história de lesão perinatal;
  • outros casos semelhantes na família;
  • regressão no desenvolvimento;
  • presença de anomalias oculomotoras, movimentos involuntários, ataxia, alterações da sensibilidade.

Quadro 2 discrimina de modo prático os quadros clínicos de não PC, mas com sintomatologia compatível com PC. Sugere-se, a propósito, a consulta do Glossário Geral.

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial da paralisia cerebral

Com hipotonia

    • Doenças neuromusculares
    • Distrofia neuroaxonal
    • Citopatias mitocondriais

Com distonia/movimentos involuntários

    • Distonia dopa-sensível
    • Acidúria glutárica tipo I
    • Síndroma de Lesch – Nyhan
    • Doença de Pelizaeus – Merzbacher
    • Deficiência de piruvato desidrogenase
    • Síndroma de Rett
    • Acidúria 3 – metilglutacónica

Com diplegia/tetraplegia

    • Argininémia
    • Paraparésia espástica progressiva hereditária
    • Leucodistrofia metacromática (forma infantil

Com ataxia

    • Síndroma de Angelman
    • Ataxia telangiectasia
    • Atrofia/hipoplasia pontocerebelosa
    • Ataxia espinocerebelosa ligada ao X
    • Doença de Niemann – Pick tipo C

Exames complementares

Face aos conhecimentos actuais, em toda a criança com clínica de PC deve proceder-se a RM encefálica, de preferência pelos 2-3 anos de vida, para uma melhor avaliação da mielinização cerebral. Em muitos casos este exame é feito antes, numa tentativa de descobrir a etiologia (sobretudo quando está em causa um eventual insulto perinatal) e estabelecer o prognóstico. Nesta última circunstância justifica-se a repetição da RM em data a definir em função do contexto clínico.

Mesmo que exista história de complicações perinatais, a criança deve ser igualmente investigada, pois uma doença neurológica (ou uma doença metabólica) subjacente poderá ter contribuído para maior vulnerabilidade ao processo do parto. Se não for encontrada uma causa que explique o quadro clínico sugestivo de PC, ou se houver suspeita de perda de aquisições, a criança deve ser obrigatoriamente orientada para uma consulta de Neurologia Pediátrica com o objectivo de investigação mais detalhada.

Tratamento

O tratamento da PC tem por objectivo essencial rendibilizar as potencialidades remanescentes da criança e prevenir as complicações secundárias, as quais contribuem para um agravamento da incapacidade pré-existente.

Logicamente o tratamento deve ser multidisciplinar, com elaboração dum plano de cuidados, tornando-se fundamental que a família, desde o início, se envolva em todas as acções que promovam a reabilitação.

O diagnóstico e intervenção precoces são fundamentais de modo a rendibilizar também a plasticidade cerebral dos primeiros anos de vida, ou seja, a reorganização cerebral pós-lesional através do estabelecimento de novas conexões sinápticas e circuitos neuronais. Tal como é referido no capítulo 10, a recuperação da função é tanto mais eficaz quanto mais precoce, intensiva e continuada for a estimulação com técnicas de neurodesenvolvimento realizadas por profissionais especializados, com colaboração dos pais e as ajudas técnicas necessárias.

Nos últimos anos, o uso da toxina botulínica veio diminuir significativamente o número de intervenções ortopédicas. No grupo do EEEPC receberam toxina botulínica 41% dos casos de diplegia, 23% de tetraparésias e 13% de discinésias, num total de 20 casos, até 2006. Ainda num número significativo de doentes é necessário actuar cirurgicamente, quer nas regiões tendinosas, quer ósseas. Quando existem já contracturas, a cirurgia ortopédica aplicada criteriosamente será a única solução.

O recurso à cirurgia da cifoscoliose tem vindo a aumentar nas formas graves de PC, no sentido de melhorar a postura em doentes não ambulantes e preservar a função respiratória.

A terapêutica farmacológica oral antiespástica tem a vantagem de ser de fácil administração, mas habitualmente à custa de efeitos secundários importantes. As mais usadas são o baclofeno, o diazepam e o dantroleno.

A rizotomia dorsal selectiva, que envolve a secção de cerca de 50% das raízes dorsais, diminui a espasticidade dos membros inferiores, melhorando a posição de sentado e a marcha; é uma opção terapêutica, sobretudo nas diplegias espásticas graves.

A perfusão contínua intratecal de baclofeno está indicada, sobretudo nos doentes com espasticidade dos membros inferiores, sendo de referir que já foram descritos benefícios quanto à espasticidade dos membros superiores e às formas distónicas.

A gastrostomia nos casos graves de PC (como as tetraparésias com componente pseudobulbar) melhora significativamente o estado nutricional e a qualidade de vida destas crianças.

Prognóstico

O prognóstico é variável em função do tipo de paralisia cerebral, grau de compromisso funcional e dos problemas associados. Alguns pacientes têm uma expectativa de vida curta, enquanto noutros a tal expectativa é igual à da população geral, conquanto a proporção de problemas cognitivos seja mais significativa naqueles.

Em cerca de 25% dos casos há impossibilidade da marcha, sobretudo nas tetraparésias e hemiplegias. Em idêntica proporção de casos, relacionados com lesões cerebrais ligeiras, verificam-se alterações na linguagem e aprendizagem.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: Mac Keith Press, 2009

Alberman E, Peckam C. Cerebral palsy and perinatal exposure to neurotropic viruses. BMJ 2006; 332: 63-64

Amirmudin NALavelle GTheologis T, et al. Multilevel surgery for children with cerebral palsy: a meta-analysis. Pediatrics 2019; 143(4). pii: e20183390. doi: 10.1542/peds.2018-3390.

Andrada MG, Loff C, Gaia T, Batalha I, Duarte J, Calado E, Folha T, Nunes F, Ferreira C, Carvalhão. Estudo Europeu sobre Etiologia da Paralisia Cerebral – Região de Lisboa. Lisboa: Edição APPC, 2005

Andrada MG, Folha T, Calado E, Gouveia R, Virella D. Paralisia Cerebral aos 5 Anos de Idade (Crianças com PC nascidas em 2001). Lisboa: Unidade de Vigilância Pediátrica/UVP da Sociedade Portuguesa de Pediatria, 2009

Ashwal S; Russman BS, Blasco PA, Miller G, Sandler A, Shevell M, Stevenson R. Practice Parameter: Diagnostic assessment of the child with cerebral palsy – Report of the Quality Standards Subcommittee of the American Academy of Neurology and the Practice Committee of the Child Neurology Society. Neurology 2004; 62: 851-863

Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Cans C, McManus V, Crowley M, Guillem P, Platt MJ, Johnson A, Arnaud C. Cerebral palsy of post-neonatal origin: characteristics and risk factors. Surveillance of Cerebral Palsy in Europe Collaborative Group. Paediatr Perinat Epidemiol. 2004; 18: 214-220

Ferrari A, Tersi L, Ferrari A, et al. Functional reaching discloses perceptive impairment in diplegic children with cerebral palsy. Gait Posture 2010; 32: 253 – 258

Gupta R, Appleton RE. Cerebral palsy: not always what it seems. Arch Dis Child 2001; 85:356-360

Hagberg H, Mallard C. Effect of inflammation on central nervous system development and vulnerability. Curr Opin Neurol 2005; 18: 117-123

Himmelmann K. Putting prevention into practice for the benefit of children and young people with cerebral palsy. Arch Dis Child 2018; 103:1100

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lumsden DE, Crowe B, Basu A, et al. Pharmacological management of abnormal tone and movement in cerebral palsy. Arch Dis Child 2019. doi:10.1136/archdischild-2018-316309

McLone DG. Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 2001

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Murphy KP, Boutin SA, Ide KR. Cerebral palsy, neurogenic bladder, and outcomes of lifetime care. Dev Med Child Neurol 2012; 54: 945 – 950.

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Senner JE, Logemann J, Zecker S, Gaebler-Spira D. Drooling, saliva production, and swallowing in cerebral palsy. Dev Med Child Neurol. 2004; 46: 801-806

Sie LTL, van der Knaap MS, Oosting J, de Vries LS, Lafeber HN, Valk J. MR patterns of hypoxic isquemic brain damage after prenatal, perinatal or postnatal asphyxia. Neuropediatrics 2000; 31: 128-136

Sullivan PB, Juszczak E, Bachlet AM, Thomas AG, Lambert B, Vernon-Roberts A, Grant HW, Eltumi M, Alder N, Jenkinson C. Impact of gastrostomy tube feeding on the quality of life of children with cerebral palsy. Dev Med Child Neurol. 2004; 46: 796-800

Swaiman KF, Ashwal S, Ferriero DM, Schor NF. Swaiman’s Pediatric Neurology. Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2012

Vale MC. Classificação internacional de funcionalidade:conceitos, preconceitos e paradigmas. Acta Pediatr Port 2009; 40:229-236

Virella D, Andrada MG, Folha T, Calado E, Gouveia R, Cadete A, Alvarelhão J, . Paralisia Cerebral aos 5 Anos de Idade (Crianças com PC nascidas entre 2001 e 2007). Lisboa: Unidade de Vigilância Pediátrica/UVP da Sociedade Portuguesa de Pediatria, 2016

Walter SD, Raina P, Galuppi BE, Wood E. Limb distribution, motor impairment, and functional classification of cerebral palsy. Dev Med Child Neurol 2004; 46: 461-467

Willoughby KL, Toovey T, Hodgson JM, et al. Health professionals’ experiences and barriers encountered when implementing hip surveillance for children with cerebral palsy. J Paediatr Child Health 2019; 55: 26-31

Zonta MB, Ramalho-Júnior, Santos LHC. Avaliação funcional na Paralisia Cerebral. Acta Pediatr Port 2011; 42: 27-32

ACIDENTES VASCULARES CEREBRAIS

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Nas últimas duas décadas, a incidência de acidentes vasculares cerebrais (AVC) em idade pediátrica tem aumentado, sendo referidas actualmente frequências entre 2 e 8 por 100.000 habitantes em idade pediátrica por ano. Essencialmente, duas circunstâncias poderão explicar este aumento: a utilização dos métodos de neuroimagem mais sensíveis e específicos – tomografia axial computadorizada (TAC), ressonância magnética (RM), angiorressonância (ARM) e estudos ecográficos cranianos – permitindo o diagnóstico de pequenas lesões anteriormente indetectáveis; por outro lado, tratamentos mais eficazes têm permitido maior sobrevivência de doentes em risco de complicações vasculares, incluindo prematuridade, cardiopatia congénita, doença de células falciformes e leucemia.

Diferenças importantes entre os AVC de adultos e crianças colocam, por vezes, dificuldade no reconhecimento e tratamento desta situação. Estas diferenças incluem: 1) a relativa raridade desta patologia nas crianças, aliada a apresentações clínicas subtis e inespecíficas nas mais jovens; 2) a multiplicidade de factores de risco que muitas vezes se sobrepõem; 3) diferenças de desenvolvimento nos sistemas neurológico, cerebrovascular e da coagulação. Estas diferenças limitam muitas vezes a extrapolação dos resultados dos estudos de investigação em adultos sobre AVC para a idade pediátrica.

A importância deste problema pode sintetizar-se do seguinte modo:

  • afecção cada vez mais reconhecida como causa de morte (uma das dez principais), e de incapacidade, na criança e jovem;
  • frequência semelhante à dos tumores do SNC, e incidência aumentando com a idade: de cerca de 2 a 8 casos por 100.000 habitantes, dos 5 aos 14 anos por ano;
  • no período neonatal surge em cerca de 1 para 2.300 partos de termo, com uma frequência 17 vezes superior à verificada noutras idades pediátricas.

Classificação e etiopatogénese

Os AVC podem ser de tipo isquémico ou hemorrágico. Os AVC isquémicos, mais frequentes, dão por vezes origem a hemorragia secundária, tornando necessário considerar muitas situações de trombose no diagnóstico diferencial de hemorragia.

Os AVC isquémicos podem ser de origem arterial ou venosa, com uma relação arterial/venosa de 3/1 no período pós-neonatal, e de 2/1 no RN. Alguns factores etiológicos são comuns aos vários tipos de AVC, diferindo muitas vezes consoante o grupo etário e o tipo de associação de vários factores de risco.

Os factores etiológicos de AVC em idade pediátrica são numerosos e diferem grandemente dos verificados nos adultos. Estão relacionados com a idade e são frequentemente múltiplos (Quadro 1).

QUADRO 1 – Factores etiológicos de doença cerebrovascular na idade pediátrica

Factores etiológicos de doença cerebrovascular na idade pediátrica

Cardiopatias congénitas

    • Cardiopatias complexas
    • Estenose aórtica
    • Comunicação interauricular
    • Comunicação interventricular
    • Coarctação da aorta
    • Estenose mitral
    • Prolapso da válvula mitral
    • Canal arterial patente

Cardiopatias adquiridas

    • Doença cardíaca reumática
    • Próteses valvulares
    • Endocardite bacteriana
    • Cardiomiopatia
    • Miocardite
    • Mixoma auricular
    • Rabdomioma cardíaco
    • Arritmia

Malformações cerebrovasculares congénitas

    • Malformação arteriovenosa
    • Aneurisma intracraniano
    • Malformação cavernomatosa
    • Telangiectasia hemorrágica hereditária
    • Síndroma de Sturge-Weber

Traumatismo

    • Traumatismos intra-orais
    • Dissecção arterial
    • Embolia gasosa ou gorda
    • Embolia de corpo estranho

Iatrogenia

    • Anticoagulação
    • Arteriografia
    • Cateterismo cardíaco
    • Cirurgia cardíaca
    • Laqueação da carótida (ex. ECMO)
    • Cateter na artéria umbilical
    • Terapêutica com L-asparaginase
    • Pós-irradiação

Vasculites

    • Meningite
    • Lúpus eritematoso sistémico
    • Poliarterite nodosa
    • Angeíte granulomatosa
    • Angeíte cerebral primária
    • Arterite de Takayasu
    • Artrite reumatóide juvenil
    • Dermatomiosite
    • Doença de Behçet
    • Doença inflamatória intestinal
    • Doença de Kawasaki
    • Abuso de drogas (cocaína, anfetaminas)
    • SIDA

Arteriopatias

    • Arteriopatia cerebral transitória da infância
    • Angiopatia pós-varicela
    • Displasia fibromuscular
    • Síndroma moyamoya
    • Vasculopatia pós-irradiação
    • Doenças vasculares sistémicas
    • Aterosclerose precoce
    • Diabetes
    • Hipercolesterolémia familiar
    • HTA sistémica
    • Hipernatrémia
    • Síndroma da veia cava superior

Doenças vasospásticas

    • Hemiplegia alternante
    • Enxaqueca
    • HTA
    • Vasospasmo secundário a hemorragia

Doenças hematológicas

    • Hemoglobinopatias (Hb SS, SC)
    • Trombocitose
    • Policitémia
    • Leucemia e outras neoplasias hematológicas
    • Púrpura trombocitopénica imune/trombótica

Coagulopatias adquiridas

    • Medicações protrombóticas
    • Gravidez/período pós-parto
    • Anticorpos antifosfolípidos
    • Anticoagulante lúpico
    • Anticorpos anticardiolipina
    • Anomalia das lipoproteínas
    • Disfunção hepática com défice da coagulação

Coagulopatias congénitas

    • Défice de antitrombina III
    • Défice de proteína S
    • Défice de proteína C
    • Factor V de Leiden
    • Défice de plasminogénio
    • Mutação do gene da protrombina

Doenças metabólicas

    • Homocistinúria
    • Dislipoproteinémias
    • MELAS
    • Acidúrias metilmalónica e propiónica

A verificação de AVC intra-uterino tem sido associada a múltiplos factores etiológicos, sendo que nalguns casos a evidência é apenas marginal: trauma, pré-eclampsia, diabetes materna, uso de drogas pela mãe (ex. cocaína), infecção fetal (em particular por citomegalovírus), várias doenças fetais que causam hidropisia fetal. Admite-se também que algumas trombofilias (nomeadamente relacionada com a mutação de Leiden do Factor V) desempenham também um papel na etiologia de enfartes cerebrais na vida intra-uterina.

Nos recém-nascidos a etiologia do AVC na maioria dos casos é desconhecida. Os dados da literatura apontam para uma prevalência de enfarte arterial neonatal de cerca de 1/4.000; poderá ser superior, dado que se presume que nem todos sejam sintomáticos inicialmente. É mais provável enfarte embólico (de origem placentar ou cardíaca) do que enfarte trombótico. É possível que situações de trombofilia (congénita, ou adquirida como anticorpos maternos com transmissão transplacentar – anticorpos antifosfolípidos) desempenhem papel importante. Estão ainda descritos como prováveis factores etiológicos: trauma, sépsis e asfixia.

Deve salientar-se que um enfarte cerebral neonatal é uma importante causa de convulsões neonatais (12 a 17,5% segundo várias séries).

Nalguns lactentes em que se diagnostica hemiplegia, verifica-se lesão cerebral vascular exibindo padrão compatível com ocorrência na vida fetal tardia ou pós-natal.

Nalgumas crianças (com cardiopatia estrutural conhecida ou com doença de células falciformes) a causa do AVC é óbvia. Em crianças com doenças crónicas que predispõem para AVC, uma intercorrência aguda, como desidratação, sépsis e outras, podem precipitar um AVC. No entanto, em cerca de 50% dos casos o AVC ocorre em crianças sem doença prévia conhecida.

Num estudo com documentação angiográfica cerca de 50% dos enfartes cerebrais em crianças eram devidos a uma arteriopatia (a uma anomalia primariamente vascular). Neste grupo o diagnóstico etiológico mais frequente foi dissecção arterial e síndroma moya-moya.

Estudos recentes concentraram-se de novo no papel de varicela como causador de vasculopatia cerebral: num destes verificou-se que tal infecção (no período de 12 meses antecedendo o AVC) tinha sido três vezes mais frequente que a incidência num grupo controlo.

Para além dos factores de risco adquiridos (como os anticorpos antifosfolípidos) e do risco protrombótico, estão descritas várias anomalias genéticas que podem influenciar o risco de tromboembolismo (em muitos casos arterial e venoso) associadas a factores ambientais, como trauma, imobilização, septicémia, etc..

O papel de alguns dos factores de risco tradicionais na população adulta como dislipoproteinémia ou hipertensão arterial pode ser também relevante em idade pediátrica.

O AVC pode ainda ser a manifestação inicial de uma doença sistémica como lúpus eritematoso disseminado, diabetes ou neoplasia.

A identificação de factores de risco de doença cerebrovascular é, pois, extremamente importante dado que a recorrência e o prognóstico estão fortemente relacionados com o número e o tipo de factores de risco. Por outro lado, o tratamento de um episódio agudo e a prevenção das recorrências dependem da causa subjacente.

Manifestações clínicas

Nesta alínea é realçado o papel dos factores de risco.

1. Acidente isquémico arterial (AIA)

A presença de vasculopatia constitui factor de risco de AIA e de recorrência; daí a importância de a caracterizar.

Existe um grande espectro de vasculopatias, algumas reversíveis, outras progressivas.

A chamada arteriopatia cerebral transitória monofásica da infância pode corresponder ao tipo mais comum de arteriopatia em crianças com AIA. A etiologia desta situação não é conhecida e o respectivo diagnóstico baseia-se apenas no quadro clínico e imagiológico (incluindo a aparência em angiografia).

A angiopatia pós-varicela (uma arteriopatia transitória) que ocorre semanas a meses após episódio de varicela não complicada, tem sido cada vez mais reconhecida como causa de enfarte isquémico. Com uma incidência de 1/15.000 crianças com varicela, associa-se a enfarte dos gânglios da base e estenose da carótida interna distal, artérias cerebrais anterior, média e posterior proximal.

O enfarte isquémico pós-herpes zóster oftálmico (vários dias ou semanas após a erupção cutânea) pode ocorrer por trombose no território da artéria cerebral média ipsilateral, provavelmente resultante da invasão da artéria através do nervo trigémio.

A meningite pode causar inflamação dos vasos cerebrais que atravessam o espaço subaracnoideu infectado e promover oclusão venosa ou arterial.

A vasculite cerebral associada a vasculites sistémicas ou outras doenças é uma causa relativamente rara de AVC em crianças (sendo o lúpus eritematoso disseminado a causa mais importante neste grupo).

A dissecção das artérias carótida ou vertebral pode ocorrer em associação com traumatismo craniano, cervical ou intra-oral, ou espontaneamente. A dissecção é diagnosticada em 9-20% de crianças com AIA. O défice neurológico pode surgir imediatamente após a lesão ou tardiamente. As descrições iniciais referem casos de dissecção usualmente traumática das artérias carótidas e vertebrais, mas provou-se que pode ocorrer também dissecção no território vascular intracraniano.

FIGURA 1. AVC e RM; A: Múltiplas lesões isquémicas assinaladas, com localização frontal, bilaterais, num doente com 7 anos, portador de drepanocitose homozigótica, em regime hipertransfusional. B: Angio-RM revelando sinais de grave estenose da artéria cerebral média à direita (seta).

A síndroma moyamoya é uma vasculopatia cerebral da infância, progressiva e grave, que consiste na oclusão gradual das artérias intracranianas, com subsequente desenvolvimento de uma rede de pequenos vasos colaterais que dá o aspecto angiográfico característico (“puff of smoke”). Pode ser idiopática (maioria dos casos) ou estar relacionada a síndromas genéticas (neurofibromatose, trissomia 21), ou ainda a lesões adquiridas das artérias cerebrais como a vasculopatia da radiação ou anemia de células falciformes.

A vasculopatia pós-irradiação apresenta-se como uma estenose progressiva dos grandes vasos, com acidentes isquémicos transitórios ou AVC vários meses a anos após irradiação de gliomas do quiasma óptico ou outros tumores da região selar ou supra-selar.

A doença de células falciformes é a causa mais frequente de AVC em crianças, em determinadas áreas geográficas (Figura 1)

Com a idade de 20 anos, em cerca de 11% dos doentes homozigóticos (HbSS) verifica-se o problema. Os enfartes isquémicos podem resultar dos episódios vasoclusivos cerebrais múltiplos, ou de uma arteriopatia progressiva característica que envolve predominantemente a artéria carótida interna distal e a artéria cerebral média proximal; pode surgir mais tarde um quadro do tipo moyamoya nos casos graves.

A incidência global das doenças protrombóticas em crianças com AVC é referida entre 10 e 50%. As anomalias protrombóticas associadas a AVC nas crianças podem ser congénitas ou adquiridas e incluem: défices de proteína C, de proteína S, de antitrombina III, de plasminogénio; presença de resistência à proteína C activada (Factor V de Leiden); mutação do gene 20210 da protrombina; anticorpo anticardiolipina, anticoagulante lúpico, e valores séricos elevados de homocisteína e de lipoproteína (a) [Lp(a)].

A presença do anticorpo anticardiolipina é a doença adquirida mais comum, enquanto a situação associada ao factor V de Leiden, a situação congénita mais comum.

Vários defeitos podem ocorrer simultaneamente, sobretudo nos défices adquiridos.

Outros factores de risco como a desidratação e infecção podem aumentar o risco de trombose.

Em 25% das crianças com AVC de tipo embólico, as cardiopatias congénitas são a causa subjacente. O AVC pode ocorrer espontaneamente ou estar associado a procedimentos cardíacos (cateterismo ou cirurgia). As cardiopatias cianóticas aumentam o risco de tromboembolismo devido à policitémia. Se existir um shunt intracardíaco direito-esquerdo, pode ocorrer uma embolia paradoxal (proveniente do território venoso).

O prolapso da válvula mitral é uma anomalia relativamente frequente e habitualmente assintomática. Não são actualmente identificáveis os doentes em risco de AVC embólico, havendo contudo a estimativa de que 1 em 6.000 casos por ano irá ter uma complicação deste tipo. Os AVC cardioembólicos de origem mitral podem afectar a circulação carotídea ou vertebrobasilar. A apresentação inicial é mais frequentemente a de um acidente isquémico transitório.

A situação de foramen ovale patente também se pode associar a AVC, de acordo com publicações recentes. Efectivamente, como resultado de esforços ou manobras de Valsalva foram demonstrados enfartes múltiplos bilaterais.

A apresentação clínica depende da idade, do tipo de AVC e do mecanismo fisiopatológico da lesão cerebral subjacente.

Um AIA pré-natal é geralmente diagnosticado quando se torna evidente hemiparésia entre os 4 e os 8 meses de idade.

No recém-nascido, um AIA tipicamente manifesta-se por letargia ou convulsões focais e hemiparésia transitória. Os sinais focais persistentes são raros.

Nos lactentes mais velhos e nas crianças em idade pré-escolar frequentemente verifica-se um início abrupto de hemiplegia. As crianças em idade escolar e adolescentes podem apresentar sinais mais subtis, como afasia, alterações visuais, cefaleia ou défices sensitivos focais, para além da hemiparésia.

Na síndroma moyamoya os doentes apresentam-se com enfarte cerebral agudo. Têm sido descritos também acidentes isquémicos transitórios, hemiplegia alternante, coreia ou outras doenças do movimento. Pode ocorrer disfunção clínica insidiosa, com deterioração intelectual, cefaleia crónica ou alterações da linguagem. A frequência dos acidentes isquémicos é maior nos primeiros 4 anos após o início dos sintomas.

Nos doentes mais velhos há um risco de hemorragia subaracnoideia.

As convulsões podem acompanhar o AVC em cerca de 50% das crianças.

2. Trombose sinovenosa

A trombose dos seios venosos (TSV) pode resultar de uma combinação de factores intravasculares e vasculares.

Os recém-nascidos são o grupo etário com maior incidência de TSV. Os factores de risco associados com AVC no período neonatal são: estados de hipercoagulabilidade maternos, hematócrito elevado, shunt intracardíaco direito-esquerdo transitório, asfixia, sépsis e desidratação.

As infecções localizadas da cabeça e pescoço, como mastoidite, meningite, sinusite e otite média existem em cerca de 23% das crianças com TSV, predominando no grupo etário pré-escolar.

Doenças sistémicas crónicas, incluindo lúpus eritematoso sistémico, síndroma nefrótica, doença inflamatória intestinal, doenças hematológicas, doenças cardíacas e outras, são factores de risco subjacentes, presentes em 60% dos casos e nas crianças mais velhas.

Os estados pró-trombóticos são factor de risco de trombose venosa ou arterial.

Nas TSV podem ocorrer enfartes do parênquima cerebral (cerca de 40% dos casos).

A TSV em recém-nascidos manifesta-se mais frequentemente com convulsões e letargia. Os lactentes com oclusão sinovenosa extensa podem apresentar dilatação das veias da cabeça, fontanela anterior procidente e diastase das suturas cranianas.

Em crianças mais velhas a apresentação mais frequente é a de um quadro clínico de “pseudotumor cerebri”, com cefaleias, papiledema e, ocasionalmente, parésia do VI° par uni ou bilateral. Estão presentes alterações visuais em 18% dos casos; hemiparésia e outros sinais focais surgem em 35-45% dos casos e relacionam-se com a presença de enfarte venoso. As convulsões podem ocorrer como primeira manifestação em 70% dos recém-nascidos e em 48% de crianças com TSV.

3. Hemorragia cerebral

As malformações vasculares (malformações e fístulas arteriovenosas) são a principal causa de hemorragia intraparenquimatosa e subaracnoideia não traumática em crianças. De salientar o predomínio da localização intraparenquimatosa sobre a subaracnoideia (relação de 2,5/1).

Os aneurismas arteriais ocorrem menos frequentemente em crianças e adolescentes que nos adultos. As malformações cavernomatosas também podem originar AVC hemorrágico na idade pediátrica.

A hemorragia cerebral pode ocorrer em situações de trombocitopénia com valores inferiores a 20.000/mmc embora raramente; quando surge, está associada a trauma.

Várias coagulopatias hereditárias ou adquiridas têm sido associadas a hemorragia intracraniana: a hemofilia A e B, outros défices congénitos de factores da coagulação (ex. factor VII, XIII), o défice da vitamina K em recém-nascidos (actualmente raro devido à administração de vitamina K após o parto), a coagulopatia secundária a doença hepática ou a coagulação intravascular disseminada. Embora o risco individual relativamente a cada uma destas doenças não seja elevado, o seu risco colectivo é considerável.

Nas crianças com doença de células falciformes a hemorragia é menos comum que o enfarte, podendo ocorrer hemorragia subaracnoideia e intraparenquimatosa, particularmente em doentes mais velhos.

De referir a possibilidade de transformação hemorrágica de um enfarte isquémico, venoso ou arterial, o que amplia o diagnóstico diferencial das hemorragias intraparenquimatosas. O enfarte hemorrágico é provavelmente mais comum após embolia do que após trombose, sendo importante considerar o risco de hemorragia em crianças com embolismo, que requerem anticoagulação.

A hemorragia no interior de um tumor intracerebral é relativamente comum. É mais frequente em tumores de alta malignidade, como os meduloblastomas ou os tumores neuroectodérmicos primitivos.

A encefalopatia hemorrágica pode constituir complicação da hipernatrémia grave. Os achados patológicos característicos são: múltiplas hemorragias pericapilares ou tromboses capilares, hemorragias subaracnoideia e subdural, e trombose dos seios venosos.

A hipertensão arterial sistémica é uma causa rara de enfarte e hemorragia cerebral em crianças, ao contrário do que acontece em adultos. Pode ser um factor de risco cumulativo em crianças com outra patologia, como doença de células falciformes ou arterite.

Diagnóstico

Exames imagiológicos

  • Tomografia axial computadorizada (TAC). É geralmente o estudo inicial; de referir que a TAC poderá não revelar alterações nas primeiras 24 a 48 horas após um acidente isquémico.
  • Ressonância magnética (RM). É mais sensível que a TAC na detecção precoce e em enfartes pequenos, particularmente na fossa posterior. É mais sensível para detectar conversão hemorrágica dos enfartes. Técnicas mais recentes em RM (difusão, perfusão, espectroscopia) melhoraram ainda a detecção precoce e a especificidade. Nos recém-nascidos, um enfarte isquémico poderá somente ser detectado em imagens de difusão porque a RM tradicional é menos sensível para este diagnóstico num cérebro não mielinizado. A RM com venografia permite o diagnóstico de trombose dos seios venosos.
  • Angiorressonância. É um exame não invasivo que permite a avaliação das principais artérias cerebrais ao nível do polígono de Willis. No entanto, por vezes subestima o grau de estenose e a presença de oclusão, não permitindo identificar anomalias nas artérias de médio e pequeno calibre. Também tem limitações quanto à detecção de sinais específicos de vasculite e dissecção.
  • Angiografia convencional. Quando é necessário um diagnóstico vascular mais específico realiza-se este exame.
  • Doppler das carótidas e doppler transcraniano. É útil para detecção de vasculopatia nos grandes vasos (ex. na anemia de células falciformes)
  • Ecocardiograma.

Outros exames complementares

Em função do contexto clínico haverá que proceder a determinados exames complementares no sangue, urina e ou LCR, a seleccionar:

  • Hemograma com plaquetas;
  • Tempo de protrombina e PTTa;
  • Electroforese de hemoglobinas;
  • Proteína S (total e livre), proteína C, antitrombina III;
  • Factor V de Leiden (resistência à proteína C activada);
  • Plasminogénio, factor de von Willebrand, factor VIII, factor XII;
  • Anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina;
  • Mutação 20210 do gene da protrombina;
  • Homocisteína total, metileno-tetra-hidrofolato-redutase, folato, vitamina B6 e vitamina B12, amónia, aminoacidémia, lactato no plasma e LCR;
  • Ácidos orgânicos na urina;
  • Colesterol total, das HDL, das LDL, triglicéridos, Lipoproteína (a), Apo A, Apo B;
  • Anticorpos antivaricela-zóster séricos e no líquido cefalo-raquidiano;
  • Estudo toxicológico.

Tratamento

O tratamento dos AVC em crianças é dirigido primariamente para os factores de risco subjacentes e para a prevenção de episódios isquémicos cerebrais recorrentes.

Importa referir que as normas de orientação terapêutica para os AVC pediátricos, baseadas em consensos e opiniões de peritos e sociedades científicas, variam de país para país, o que reflecte a necessidade de continuação de estudos prospectivos em larga escala.

Seguidamente procede-se à sistematização de acordo com a experiência dos autores.

Antiagregantes plaquetares
(ácido acetilsalicílico – AAS)

Não existem estudos controlados com o uso de AAS ou qualquer outro antiagregante plaquetar em crianças. No entanto, o AAS tem sido usado cada vez mais na prática clínica em crianças com AVC isquémicos arteriais, como forma de prevenir um episódio recorrente.

Apesar do risco teórico de síndroma de Reye (ver Glossário Geral) em crianças submetidas a terapêutica prolongada com AAS, os dados da literatura são escassos.

A dose diária recomendada é 3 a 5 mg/Kg/dia (dose antiagregante plaquetar).

Nota: Em determinados centros utiliza-se o clopidogrel como antiagregante plaquetar.

Anticoagulantes

a) Heparina e heparina de baixo peso molecular

Embora não existam ensaios clínicos de grande escala utilizando heparina em crianças com AVC, a experiência acumulada sugere que as crianças podem ser tratadas com as mesmas linhas orientadoras dos adultos, com segurança razoável.

A anticoagulação como primeira escolha é usada em determinados centros em crianças com embolia cerebral de origem cardíaca, dissecção arterial, trombose dos seios venosos, doenças da coagulação, trombose recorrente ou elevado risco de embolismo (ex. coágulo intracardíaco).

b) Varfarina

A utilização de varfarina constitui o meio de anticoagulação prolongada mais eficaz. A experiência clínica sugere que pode ser usada em crianças e adolescentes com razoável segurança. As crianças afectadas deverão evitar actividades com risco de lesão traumática tais como desportos de contacto.

As principais indicações incluem: cardiopatia congénita ou adquirida, estados de hipercoagulabilidade, dissecção arterial e trombose dos seios venosos.

Nota: Este fármaco não é citado nas normas de alguns centros.

Fibrinolíticos

Os fibrinolíticos actualmente não estão indicados nos AVC em crianças, devido ao risco elevado de complicações hemorrágicas e à falta de estudos de eficácia/segurança.

Em adultos, os benefícios do activador do plasminogénio tecidual (r-tPA) parecem sobrepor-se bastante aos riscos se o mesmo for usado nas primeiras 3 horas após o início dos sintomas de AVC. Dado haver frequentemente atraso no diagnóstico de AVC em crianças, esta terapêutica raramente poderá estar indicada.

Transfusão

Nos casos de doença de células falciformes a prevenção de recorrência faz-se com transfusões regulares (cada 4-6 semanas). O estudo por ecodoppler transcraniano permite identificar crianças em risco que devem ser submetidas a um tratamento hipertransfusional profiláctico com o objectivo de prevenir a progressão da doença vascular cerebral em tal situação.

As complicações graves desta terapêutica (sobrecarga crónica de ferro, com toxicidade cardíaca e endócrina) têm levado a considerar alternativas terapêuticas como a perfusão de hidroxiureia (que aumenta os níveis de Hemoglobina F) e mesmo o transplante de medula óssea.

Tratamento na fase aguda/Neuroprotecção

  • Manter posição da cabeça a 30º, pressão arterial e oxigenação adequadas.
  • Hipotermia controlada (em centros diferenciados).
  • Manter o suprimento de fluidos e o equilíbrio hidroelectrolítico.
  • Manter a normalidade da glicémia.
  • Manter Hb > 6,2 mmol/L.
  • Tratamento agressivo da febre e das convulsões (situações que aumentam as necessidades metabólicas, podendo aumentar a área cerebral com isquémia).

Tratamento neurocirúrgico

  • Drenagem nos AVC hemorrágicos.
  • Descompressão cirúrgica de grandes enfartes – hemicraniectomia.
  • Derivação ventriculoperitoneal.
  • Procedimentos de revascularização (ex. na síndroma moyamoya), trombectomia, etc..

Prognóstico

O prognóstico difere consoante as séries. No registo canadiano os principais dados apontam para probalidade de morte ~10% nas formas isquémicas, ~30% nas formas hemorrágicas, e para défice neurológico em 50% dos casos.

A recorrência nas formas isquémicas pós-neonatais é ~20-30% (sobretudo da doença de moyamoya e estados protrombóticos) e nas formas hemorrágicas ~11%.

A sequela neurológica mais frequente é a hemiparésia, mas também ocorrem défices residuais menos óbvios (compromisso da linguagem e outros défices corticais, problemas na aprendizagem e comportamento, etc.).

A epilepsia surge em 10 a 15% das crianças afectadas com AVC. A recorrência estimada de AVC isquémico é inferior a 5% em recém-nascidos, e 20 a 30% em lactentes e crianças mais velhas.

Nas TSV os enfartes venosos e a ocorrência de convulsões na apresentação são factores preditivos de pior prognóstico.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: MacKeith Press, 2009

Askalan R, Laughlin S, Mayank S, Chan A, et al. Chickenpox and stroke in childhood: a study of frequency and causation. Stroke 2001; 32: 1257-1262

Baumer JH. Childhood arterial stroke. Arch Dis Child 2004; 89: ep 50 – ep 53

Biller J. Stroke in Children and Young Adults. Philadelphia: Saunders, 2009

deVeber G, Andrew M. Canadian Pediatric Ischemic Stroke Study Group. Cerebral sinovenous thrombosis in children. NEJM 2001;345: 417-423

deVeber G, Roach AS, Riela A, Wiznitzer M. Stroke in children: recognition, treatment and future directions. Semin Pediatr Neurol 2000; 7: 301-308

Ferriero DMFullerton HJBernard TJ, et al. Management of stroke in neonates and children: a scientific statement from the American Heart Association/American Stroke Association. Stroke 2019; 50: e51-e96. doi: 10.1161/STR.0000000000000183

Fitzsimons BT, Fitzsimons LL, Sun LR. Laney’s Story: The problem of delayed diagnosis of pediatric stroke. Pediatrics Apr 2019, 143 (4) e20183458;

DOI: 10.1542/peds.2018-3458

Ganesan V, Prengler M, Mcshane MA, Wade AM, Kirkham FJ. Investigation of risk factors in children with arterial ischemic stroke. Ann Neurol 2003; 53: 167-173

Jordan L, Hillis A. Hemorrhagic stroke in children. Pediatric Neurol 2007; 36: 73 – 80

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Laino D, Mencaroni E, Esposito S. Management of pediatric febrile seizures. Int J Environ Res Public Health 2018; 15: 2232.doi: 10.3390/ijerph15102232

Lo WD. Childhood hemorrhagic stroke: an important but unstudied problem. J Child Neurol 2011; 26: 1174 – 1185

Moro M, Málaga S, Madero L. Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nowak-Gottl U, Gunther G, Kurnik K, et al. Arterial ischemic stroke in neonates, infants and children: an overview of underlying conditions, imaging methods and treatment modalities. Semin Thromb Hemost 2003; 29: 405-414

Roach ES (ed). Pediatric Neurology. Philadelphia: Elsevier, 2019

Rosenblum L. Management of stroke in childhood. BMJ 2005; 330: 1161-1162

Schechter T, Kirton A, Laughlin S, et al. Safety of anticoagulants in children with arterial ischemic stroke. Blood 2012; 119: 949 – 956

Simma B, Holiner I, Luetschg. Therapy in pediatric stroke. Eur J Pediatr 2013; 172: 867-875

Stam J, Bruijn S, deVeber G. Anticoagulation for cerebral sinus thrombosis. Stroke 2003; 34: 1054-1056

Stam J. Thrombosis of the cerebral veins and sinuses. NEJM 2005; 352: 1791-1798. London: John Libbey, 2002

EPILEPSIA E CONVULSÕES

Definições e importância do problema

A epilepsia define-se como doença neurológica estrutural ou funcional e crónica do SNC, caracterizada pela ocorrência de episódios de distúrbios motores, somato-sensitivos, sensoriais, psíquicos e/ou da consciência, originados por uma descarga eléctrica súbita/anomalia eléctrica cerebral, inapropriada e excessiva na substância cinzenta cerebral. Tais episódios, que são denominados crises, superam em frequência todas as outras afecções do SNC.

Importa referir que a crise é um sintoma e não um processo patológico em si; com efeito, pode constituir a tradução clínica de variadíssimas situações de etiologia muito diversa, para além da epilepsia, sendo a duração e a gravidade da doença determinadas pela causa subjacente. Ou seja, existem crises epilépticas e não epilépticas (ver adiante).

A convulsão, definida como episódio de contracções musculares involuntárias associadas ou não a perda de consciência, constitui um dos tipos de distúrbio ou fenómeno motor atrás referido. Tais fenómenos motores podem ser mantidos (tipo tónico), ou interrompidos por momentos de relaxamento de duração variável (tipo clónico).

Salienta-se que em cerca de 2/3 dos casos, tais manifestações ou fenómenos paroxísticos, não sendo de tipo epiléptico, não resultam, portanto, de alteração estrutural ou funcional do SNC. Efectivamente, as mesmas poderão surgir como resultado de alterações somáticas extra-SNC, como febre, infecção, síncope, traumatismo craniano, hipóxia, toxinas, arritmia cardíaca, pausa expiratória após choro no contexto de refluxo gastresofágico (os chamados “espasmos do choro ou do soluço”, etc.).

Por sua vez, cabe referir a este propósito que os episódios de fenómenos motores desencadeados pela febre na idade pediátrica (crises febris) são a causa mais frequente de convulsões em crianças com menos de 60 meses.

Aspectos epidemiológicos

A incidência anual de epilepsia nos países do hemisfério norte, traduzida em cerca de 50-70 casos por 100.000 habitantes, varia grandemente com a idade. Os valores mais elevados são encontrados na infância e adolescência, diminuindo no adulto jovem e voltando a aumentar no idoso. A frequência na população em geral é aproximadamente de 1%. Estima-se que em Portugal existam actualmente cerca de 5 doentes com tal patologia por 1.000 habitantes.

A morte súbita inesperada, relacionável com a doença, ocorre em cerca de 1 a 5 doentes por 1.000 habitantes/ano, particularmente naqueles com crises não controladas. A proporção de casos refractários ao tratamento é cerca de 10-20%.

Etiopatogénese e semiologia

Como já foi referido, para afirmar um diagnóstico de epilepsia é geralmente pressuposta a existência de duas ou mais crises; nalguns casos, no entanto, poderá ocorrer uma única crise isolada ao longo da vida.

Antes de se iniciar terapêutica anti-epiléptica e escolher qual a medicação mais adequada, importa confirmar se determinado paroxismo constitui realmente um evento de natureza epiléptica e quais as suas características; por isso, é fundamental uma completa anamnese para correcta descrição do tipo de crise e diagnóstico diferencial com fenómenos paroxísticos não epilépticos.

Assim, interessa indagar todos os pormenores, como as circunstâncias em que ocorreu a crise (no sono, na vigília, associada a que tipo de actividade, existência de estímulos luminosos ou outros possíveis factores precipitantes); sintomas iniciais (aura); sinais de focalização e lateralização, desvio dos olhos, movimentos predominantes de uma parte do corpo; se foi generalizada de início ou no final; qual o tipo de movimentos; se havia hipo ou hipertonia; se existiu ou não alteração da consciência; duração; existência de um período pós-crítico; se existe mais de um tipo de crises. Importa obter, se possível, a descrição do próprio doente, mas geralmente são imprescindíveis as informações de alguém que presenciou a crise.

É fundamental conhecer os antecentes pessoais: gravidez, parto e período perinatal, existência de traumatismos ou doenças (nomeadamente infecciosas, vasculares) podendo originar lesão do sistema nervoso central. É importante também saber se existe história familiar de epilepsia ou outras doenças neurológicas.

Foram identificados cerca de 20 genes implicados na função neuronal e relacionados com determinadas síndromas epilépticas. São citados alguns exemplos: o CLCN2 relacionado com o efluxo neuronal do cloro; o CHRNB2 relacionado com um dos receptores da acetilcolina; o SCN2A com o canal do sódio, o início do influxo rápido do sódio e propagação do potencial de acção; o KCNQ3 relacionado com o canal do potássio, etc..

O exame objectivo contribui para caracterizar a situação, destacando-se a importância de um exame neurológico completo, da medição do perímetro cefálico, da pesquisa de organomegálias no caso das doenças neurometabólicas, de manchas na pele nas doenças neurocutâneas, de sinais dismórficos nas situações geneticamente determinadas.

Dadas as implicações terapêuticas e de prognóstico, é fundamental esclarecer qual o tipo de epilepsia, nomeadamente se se trata de uma epilepsia idiopática generalizada (sem lesões cerebrais identificadas e muitas vezes familiar), ou sintomática e focal (i.e., com um local de início e uma causa potencialmente identificável); por isso torna-se necessário por vezes recorrer a técnicas de neurofisiologia, nomeadamente ao electroencefalograma, e aos exames imagiológicos, sobretudo à ressonância magnética encefálica.

Os factores etiológicos da epilepsia e das síndromas epilépticas variam muito com a idade. De um modo geral pode considerar-se que:

  • no período neonatal as principais causas de convulsões são os traumatismos de nascimento, a hipóxia, as hemorragias intracranianas, a hipoglicémia e os desequilíbrios iónicos, nomeadamente a hipocalcémia;
  • as anomalias congénitas, a esclerose tuberosa e as doenças metabólicas constituem as etiologias mais frequentes nos 4 ou 5 primeiros anos de vida;
  • as infecções intracranianas (meningites, encefalites) são proeminentes na idade escolar;
  • as “epilepsias genéticas” iniciam-se mais frequentemente pelos 5-6 anos ou na adolescência;
  • na juventude e início da idade adulta uma das causas mais frequentes de crises epilépticas são os traumatismos cranianos e situações relacionadas com o consumo de drogas e álcool;
  • entre a terceira e a quinta década de vida têm especial incidência os tumores cerebrais e, a partir daí, as doenças degenerativas cerebrovasculares.

No âmbito das afecções não epilépticas da infância, as crises ou convulsões febris – que adiante se abordam – ocorrem predominantemente entre os 3 meses e os 5 anos.

Classificação

Tendo em mente a definição acima descrita, ao clínico cabe caracterizar o tipo de crise, pois daí decorrem importantes implicações para a escolha dos antiepilépticos mais adequados, a possibilidade de existência de uma lesão cerebral subjacente, o prognóstico e a eventualidade de base genética.

De acordo com a Classificação da Liga Internacional Contra a Epilepsia (ILAE), as crises podem ser divididas em dois grupos: parciais e generalizadas. Por sua vez, as crises parciais podem ser simples, complexas ou secundariamente generalizadas. As crises generalizadas subdividem-se em ausências, crises mioclónicas, tónicas, tónico-clónicas e atónicas (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das crises epilépticas (Liga Internacional contra a Epilepsia)

1. Crises parciais

1.1 – Crises parciais simples

1.1.1 – Com sinais motores

a) Parciais motoras sem marcha
b) Parciais motoras com marcha jacksoniana
c) Versivas
d) Posturais
e) Fonatórias

1.1.2 – Com sintomas somatossensitivos ou sensoriais

a) Somatossensitivas
b) Visuais
c) Auditivas
d) Olfactivas
e) Gustativas
f) Vertiginosas

1.1.3 – Com sintomas ou sinais autonómicos

1.1.4 – Com sintomas psíquicos

a) Disfásicas
b) Dismnésicas
c) Cognitivas
d) Afectivas
e) Ilusões
f) Alucinações

1.2 – Crises parciais complexas

1.2.1 – Com início parcial simples
1.2.2 – Com perturbação da consciência desde o início

1.3 – Crises parciais evoluindo para generalizadas secundariamente

1.3.1 – Crises parciais simples evoluindo para generalizadas
1.3.2 – Crises parciais complexas evoluindo para generalizadas
1.3.3 – Crises parciais simples evoluindo para parciais complexas, e depois para generalizadas

2 – Crises generalizadas

2.1 – Ausências
2.2 – Ausências atípicas
2.3 – Mioclónicas
2.4 – Clónicas
2.5 – Tónicas
2.6 – Tónico-clónicas
2.7 – Atónicas

3 – Crises não classificadas

As crises parciais ou focais são devidas a uma descarga numa determinada região do córtex cerebral e denominam-se: simples, se a consciência estiver preservada; ou complexas se houver perturbação da consciência. Em ambos os tipos pode ocorrer propagação da descarga a outras áreas corticais, originando uma crise secundariamente generalizada.

Os sintomas e sinais das crises parciais simples dependem da região do córtex onde se origina a descarga anómala. Se esta ocorrer na área motora, surgirão clonias contralaterais dos membros e da hemiface; se em regiões sensoriais, responsáveis pela memória ou emoções, poderá haver, por exemplo, sensações de “déjà vu” ou de medo, alucinações olfactivas, visuais ou auditivas. De um modo genérico pode dizer-se que “tudo o que o cérebro faz, a epilepsia pode fazer”.

As crises parciais complexas podem ser precedidas de uma “aura” (que é, no fundo, uma crise parcial simples), percebida pelo doente, seguida de perturbação da consciência. Têm mais frequentemente origem nos lobos temporais, mas podem partir de outras regiões corticais. O doente perde o contacto com o meio, com olhar fixo ou vago e não responde com lógica a perguntas ou ordens; fica parado ou executa movimentos sem propósito e pode ter automatismos e alterações do tono. Existe amnésia para o episódio e segue-se um estado pós-crítico de confusão ou sonolência que pode durar minutos ou horas e, muitas vezes, cefaleias.

As crises generalizadas são a tradução, logo de início, de um envolvimento difuso e simultâneo do córtex de ambos os hemisférios com perda da consciência. Como já foi referido, podem ser ausências, crises mioclónicas, tónicas, clónicas, tónico-clónicas e atónicas.

As crises tónico-clónicas são muitas vezes precedidas de um grito, podendo ocorrer queda mais ou menos súbita; há uma fase tónica inicial seguida de movimentos convulsantes, eventualmente com rotação dos globos oculares, mordedura da língua, sialorreia ou perda de controlo de esfíncteres. A duração é variável, seguindo-se um período pós-crítico com confusão e/ou sonolência, e cefaleias.

Nas ausências há interrupção abrupta da consciência, geralmente breve (segundos), muitas vezes em salvas. Tipicamente o doente fica com o olhar parado, interrompe a actividade que estava a executar, pode ter movimentos de pestanejo ou de mastigação, logo retomando a actividade sem se aperceber do ocorrido.

As crises mioclónicas consistem em contracções musculares, súbitas e breves, isoladas ou em salvas, que podem envolver qualquer grupo muscular.

As crises tónicas traduzem-se por hipertonia súbita dos músculos extensores, acompanhada de perda da consciência.

Nas crises clónicas há contracções musculares mais ou menos rítmicas, envolvendo mais frequentemente as extremidades superiores, o pescoço ou a face.

Nas crises atónicas há perda súbita do tono muscular com queda brusca para o chão (também chamados “drop attacks”), o que pode originar lesões.

Síndromas epilépticas

Além da classificação das crises epilépticas, a ILAE aprovou também a Classificação Internacional das Epilepsias, Síndromas Epilépticas e Perturbações Relacionadas (Quadro 2), entrando em conta com um conjunto de características tais como a idade de início, história familiar de epilepsia, tipo(s) de crise, e sinais e sintomas neurológicos associados. É muito importante tentar o enquadramento da situação de um determinado doente naquela classificação, o que permitirá definir o prognóstico, a escolha mais acertada da terapêutica e, eventualmente, o aconselhamento genético.

QUADRO 2 – Classificação Internacional das Epilepsias, Síndromas Epilépticas e Perturbações Relacionadas (Liga Internacional contra a Epilepsia)

1 – Epilepsias parciais

1.1 – Idiopáticas

1.1.1 – Epilepsia benigna da infância com pontas centro-temporais (rolândica benigna)
1.1.2 – Epilepsia da infância com paroxismos occipitais
1.1.3 – Epilepsia primária da leitura

1.2 – Sintomáticas

1.2.1 – Epilepsia do lobo temporal
1.2.2 – Epilepsia do lobo frontal
1.2.3 – Epilepsia do lobo parietal
1.2.4 – Epilepsia do lobo occipital

1.3 – Criptogénicas

2 – Epilepsias generalizadas

2.1 – Idiopáticas

2.1.1 – Convulsões neonatais familiares benignas
2.1.2 – Convulsões neonatais benignas
2.1.3 – Epilepsia mioclónica benigna do lactente
2.1.4 – Epilepsia de ausências da criança
2.1.5 – Epilepsia de ausências juvenil
2.1.6 – Epilepsia mioclónica juvenil
2.1.7 – Epilepsia com crises tónico-clónicas generalizadas do acordar
2.1.8 – Outras epilepsias generalizadas idiopáticas, não definidas acima
2.1.9 – Epilepsias com crises caracterizadas por modos específicos de precipitação

2.2 – Criptogénicas e/ou sintomáticas

2.2.1 – Síndroma de West (espasmos infantis)
2.2.2 – Síndroma de Lennox-Gastaut
2.2.3 – Epilepsia com crises mioclónico-asiáticas
2.2.4 – Epilepsia com ausências mioclónicas

2.3 – Sintomáticas

2.3.1 – Etiologia não específica

2.3.1.a – Encefalopatia mioclónica precoce
2.3.1.b – Encefalopatia epiléptica infantil precoce com padrão de surto-supressão no EEG (Síndroma de Ohtahra)
2.3.1.c – Outras epilepsias sintomáticas generalizadas

2.3.2 – Síndromas específicas

2.3.2.a – Malformações
2.3.2.b – Doenças hereditárias do metabolismo

3 – Epilepsias indeterminadas quanto a serem parciais ou generalizadas

3.1 – Com crises parciais e crises generalizadas

3.1.1 – Crises neonatais
3.1.2 – Epilepsia mioclónica grave do lactente
3.1.3 – Epilepsia com ponta-onda contínua durante o sono de ondas lentas
3.1.4 – Afasia epiléptica adquirida (síndroma de Landau-Kleffner)
3.1.5 – Outras epilepsias indeterminadas não definidas anteriormente

3.2 – Sem características inequívocas de serem parciais ou generalizadas

 

4 – Síndromas especiais

4.1 – Convulsões febris
4.2 – Crises isoladas ou estados de mal epiléptico isolados
4.3 – Crises ocorrendo apenas quando há um acontecimento tóxico ou metabólico agudo

As epilepsias e as síndromas epilépticas podem ser generalizadas (i.e. com crises generalizadas) ou focais (i.e. com crises de início focal ou parcial). São consideradas sintomáticas ou secundárias quando existir uma causa conhecida (por exemplo uma lesão cerebral); e idiopáticas ou criptogénicas se não estiver identificada etiologia.

Tendo como base a classificação que integra o Quadro 2, seleccionámos algumas destas síndromas epilépticas que, pela sua frequência e/ou gravidade, têm maior relevância na prática clínica: epilepsia rolândica benigna, epilepsia de ausências, epilepsia mioclónica juvenil, espasmos infantis/síndroma de West, síndroma de Lennox-Gastaut.

No que respeita a crises não epilépticas, é dada ênfase às convulsões febris, fazendo parte no mesmo quadro da alínea “Perturbações relacionadas”, o que está em sintonia com as noções descritas anteriormente, na alínea “definições e importância do problema”.

O tema “Estado de mal epiléptico”, descrito neste capítulo de modo muito sucinto, é explanado com mais pormenor na Parte XXVIII, sobre Urgências e Emergências.

Já existem actualmente estudos conclusivos acerca da origem genética de algumas destas síndromas e, cada vez mais, o conhecimento das epilepsias se baseará na sua caracterização genética.

Epilepsia rolândica benigna

Nesta forma de epilepsia benigna também designada por epilepsia benigna da infância com pontas centro-temporais, existe grande incidência familiar; as crises surgem entre os 3 e os 12 anos em indivíduos com capacidades cognitivas e exame neurológico normais, sem lesão estrutural subjacente. É das epilepsias mais frequentes na criança. As crises ocorrem quase sempre durante o sono, têm início focal, cursando com clonias da região peribucal ou da hemiface, parestesias da língua, impossibilidade de falar, salivação, inicialmente com consciência preservada, podendo generalizar-se.

O electroencefalograma (EEG) é característico, com pontas na região centro-temporal, muito exacerbadas pelo sono. As crises são geralmente fáceis de controlar com os antiepilépticos e, se forem raras e bem toleradas pelos doentes e seus pais, muitas vezes decide-se pela não medicação. O prognóstico é excelente, com remissão pelos 13-16 anos.

Epilepsia de ausências

Trata-se duma forma de epilepsia generalizada idiopática ou primária, com forte carga genética; inicia-se entre os 4 e os 12 anos, com interrupção súbita da actividade e da consciência, durando 5-20 segundos, com olhar parado, por vezes pestanejo e/ou mastigação. Geralmente as crises ocorrem em salvas, inúmeras vezes por dia. O EEG tipicamente mostra breves descargas de pontas-ondas a 3 Hz. A maioria dos casos de ausências típicas cede bem à terapêutica, havendo remissão na adolescência.

Epilepsia mioclónica juvenil

É também uma epilepsia generalizada idiopática, com incidência familiar; começa na adolescência em jovens neurologicamente normais, com abalos mioclónicos, repetidos ou isolados, geralmente pouco após o acordar, sem perda de consciência. Pode haver também ausências, crises tónico-clónicas generalizadas (sobretudo ao acordar) ou fotossensibilidade. A privação de sono ou o álcool podem precipitar uma crise. A terapêutica com valproato de sódio é muito eficaz mas, se o tratamento for interrompido, é habitual a recaída. Daí a importância do diagnóstico correcto e da adesão do doente a uma terapêutica para toda a vida.

Espasmos infantis/Síndroma de West

Os espasmos infantis são uma forma de epilepsia, fundamentalmente dos lactentes; consistem em crises muito breves, tónicas, tipicamente em flexão, (podendo ser em extensão), envolvendo o tronco, o pescoço e as extremidades. Podem ocorrer isoladamente, mas quase sempre fazem parte da síndroma de West, que se define pela existência de espasmos, regressão do desenvolvimento psicomotor e padrão de hipsarritmia no electroencefalograma (electrogénese de base desorganizada a que se sobrepoem pontas-ondas amplas, difusas e ondas lentas irregulares).

Os espasmos iniciam-se antes do primeiro ano de vida, mais frequentemente entre os 4 e os 6 meses, podendo ocorrer dezenas ou centenas por dia, por vezes em salvas.

A síndroma de West pode ser idiopática, (quando não é conhecida a sua causa e o desenvolvimento prévio da criança era normal) ou ser sintomática, i.e., causada por uma situação subjacente. Existem inúmeras possíveis etiologias, nomeadamente anomalias do sistema nervoso central, lesão do sistema nervoso central perinatal ou pós-natal, doenças neurometabólicas ou outras geneticamente determinadas, como por exemplo a esclerose tuberosa, situação que evolui para síndroma de West em quase metade dos doentes.

Esta síndroma dificilmente cede aos antiepilépticos usuais, sendo muitas vezes necessário recorrer à terapêutica com corticóides, nomeadamente com ACTH.

O prognóstico é reservado, sobretudo nas formas sintomáticas: a mortalidade atinge 10-20% e, dos casos que sobrevivem, em cerca de 75% virá a desenvolver-se atraso importante do desenvolvimento psicomotor e, em metade destes, epilepsia. Poderá haver igualmente evolução para síndroma de Lennox-Gastaut (SLG) abordada a seguir.

Síndroma de Lennox-Gastaut

A síndroma de Lennox-Gastaut (SLG) é uma das formas mais graves e de pior prognóstico – entre as epilepsias da criança; caracteriza-se pela existência de vários tipos de crises, atraso e/ou deterioração progressiva do desenvolvimento global, problemas de comportamento e anomalias no EEG que incluem electrogénese de base lenta e mal diferenciada, sobrepondo-se actividade de ponta-onda lenta anterior, a 2-2,5 Hz.

Muitas doenças do sistema nervoso central podem cursar com SLG, verificando-se geralmente um exame neurológico alterado. As crises são muito frequentes e refractárias à terapêutica, coexistindo ausências atípicas, crises tónico-clónicas, mioclónicas, atónicas (com quedas muitas vezes violentas), tónicas (estas ocorrendo tipicamente durante o sono).

Convulsões febris

Definições, etiopatogénese e importância do problema

As chamadas convulsões febris, fortemente influenciadas por factores genéticos, constituem um grupo especial dentro dos fenómenos motores paroxísticos: convulsões (atrás definidas) associadas a febre, geralmente durante a subida térmica e sem evidência de outra causa precipitante (pressupondo nomeadamente, que não existe infecção do sistema nervoso central). Por vezes é após a crise que se nota a febre.

Nos casos de convulsões recorrentes sem febre (relacionáveis com epilepsia) há maior probabilidade de a febre desencadear uma crise; neste caso não se trata da chamada convulsão febril, mas de convulsão com febre.

As convulsões febris surgem em cerca de 3-4% das crianças entre 18 meses e 3 anos com um “pico” entre 14 e 18 meses. São raras antes dos 3 meses e após os 5 anos.

As infecções víricas são as que mais frequentemente originam a febre nestas circunstâncias. Outras situações habituais são as otites e as infecções respiratórias. Pode existir história familiar de convulsões febris (15-30%) e/ou de epilepsia (3-4%). Nalgumas famílias verificou-se hereditariedade autossómica dominante e genes associados nos cromossomas 19p e 8q 13-21. Alguns estudos têm revelado maior probalidade de convulsões febris nos casos de carência em ferro (ferritina baixa).

Manifestações clínicas e diagnóstico

As convulsões febris integram dois grandes grupos: as simples e as complicadas ou complexas. As convulsões simples (a maioria) são breves (< 15 minutos) e do tipo tónico-clónico, generalizadas.

As convulsões complexas ou complicadas duram > 15 minutos, são focais ou lateralizadas, poderão repetir-se dentro de 24 horas, e/ou acompanhando-se de sinais focais (por ex. hemiplegia) no período pós-crise.

Só em 1 de cada 3 crianças se verifica recorrência de convulsões febris simples. Contudo, podem constituir a primeira manifestação de uma epilepsia, de que a febre é apenas um factor desencadeante. Na verdade, cerca de 5% destas crianças terão epilepsia mais tarde, sendo maior esse risco: se as convulsões febris forem complicadas ou complexas, se existir história familiar de epilepsia, se a convulsão se repetir dentro de 24 horas e se esta se desencadear com o aparecimento de febre “não muito alta” (37,5-38°C).

Prevenção e tratamento

A base essencial da prevenção consiste no arrefecimento externo aquando dos primeiros sinais de febre e na administração de antipiréticos (paracetamol oral: 15 mg/kg; ou ibuprofeno: 8-10 mg/kg oral).

Somente se houver antecedentes de crises muito frequentes ou prolongadas se justifica terapêutica preventiva com diazepam oral (1 mg/kg/dia enquanto durar a febre); ou, mais raramente, com terapêutica prolongada, por exemplo com valproato de sódio e apenas nas crianças com > 2 anos, tendo em conta a hepatotoxicidade (dose inicial: 10 mg/kg/dia aumentado semanalmente 5-10 mg/kg até 30-60 mg/kg/dia). Esta estratégia implica esclarecimento dos pais e disponibilidade do clínico e equipa assistencial responsáveis para eventual apoio à distância.

A actuação prática nos casos em que surge convulsão febril de duração superior a cinco minutos é esquematizada na Figura 1.

CONVULSÃO FEBRIL

Arrefecimento, Antipirético
Aspiração de secreções, permeabilidade das vias aéreas,
Oxigenoterapia, Manobras de ressuscitação
Ventilação artificial se necessário

Diazepam*
(0,2-0,5 mg/Kg por via rectal ou 0,1-0,3 mg/Kg iv – 2 mg/minuto
(IV directo)

Na ausência da resposta em 5 minutos 

Diazepam (idem até 3 doses)

Na ausência da resposta: hospitalização

 Determinação da glicémia
(se glicémia < 45 mg/dL administrar glucose iv (0,5 g/kg) e
reavaliação da glicémia

FIGURA 1. Actuação sequencial nos casos de convulsão febril, complicada evoluindo para status epilepticus

*O Midazolam nasal (0,5 mg/Kg) ou o Lorazepan sublingual (0,05-0,1 mg/kg) são alternativas

Na hipótese de se tratar do primeiro episódio, reiterando-se a prioridade do tratamento sintomático descrito, antes do diagnóstico etiológico há, no entanto, que excluir infecção do SNC (ver adiante).

A ausência de resposta ao cabo de quinze minutos, legitimando o diagnóstico de convulsão febril complexa e a possibilidade de evolução para estado de mal epiléptico (status epilepticus) implica hospitalização.

A convulsão prolongada (associada por vezes a hipóxia variável e implicando maior consumo de glucose com risco de hipoglicémia e de sequelas do SNC) obriga à determinação da glicémia (para além doutros exames laboratoriais) e à aplicação de linha endovenosa para administração de glucose (0,5 g/kg se glicémia < 45 mg/dL).

Quando surge a primeira convulsão acompanhada de febre, se a causa da febre não for evidente, especialmente no primeiro ano de vida e em caso de convulsão complexa, não podendo excluir-se meningite ou encefalite, está indicada punção lombar para exame do LCR.

Estado de mal epiléptico

O status epilepticus coresponde à situação em que a convulsão dura mais de 30 minutos ou em que não se verifica recuperação do estado de consciência entre as crises; tal se deve, na maior parte das vezes, a infecção do SNC (por ex. meningite bacteriana ou vírica) o que, como foi dito, não corresponde à entidade “convulsão febril”.

Nos casos em que o status epilepticus se segue a episódio de convulsões associadas a febre, há que admitir a hipótese de encefalite.

Diagnóstico diferencial

Muitas situações podem, numa primeira abordagem, ser confundidas com crises epilépticas; antes de se afirmar um diagnóstico de uma doença potencialmente grave ou de se iniciar uma terapêutica, é fundamental colocar a pergunta: é realmente epilepsia? Aqui, revela-se particularmente importante a anamnese que, quando correcta e completa, permite na maioria das situações estabelecer o diagnóstico; só nalguns casos será necessário recorrer a exames complementares (designadamente vídeo-EEG) ou a consultas de especialidade.

Eis alguns exemplos de episódios paroxísticos não epilépticos:

  • os espasmos do choro – os episódios paroxísticos não epilépticos mais frequentes na idade pediátrica – ocorrem em relação com o choro; são desencadeados por uma dor ou uma contrariedade, em crianças saudáveis, entre os 6 e 18 meses. Após a perda de consciência pode haver um breve período de hipertonia e mesmo clonias, mas a recuperação é rápida e nunca existem sequelas.
    Descrevem-se duas formas: 1) a pálida, basicamente uma síncope vasovagal produzida por um mecanismo cardio – inibitório neurologicamente mediado, regredindo com a idade ou evoluindo para síncopes vasovagais; impõe-se o diagnóstico diferencial com doença cardíaca; curiosamente surge por vezes associado a anemia ferropénica; 2) a cianótica, também neurologicamente mediada, mas com mecanismo de produção desconhecido;
  • os períodos de distracção, frequentemente denominados de “ausências”, são facilmente interrompidos por um estímulo externo;
  • as crises histéricas ou pseudocrises ocorrem muitas vezes em simultâneo no mesmo doente ou em familiares que servem como “modelo”. Raramente resultam em traumatismo; não se acompanham de perda de controlo de esfíncteres e são geralmente mais aparatosas. Contudo, é por vezes necessário recorrer à realização de um vídeo-EEG para permitir a distinção com as verdadeiras crises de epilepsia;
  • a síndroma de Sandifer no lactente pequeno surge em geral entre os 18 e 36 meses. Os episódios, ocorrendo poucos minutos após refeição, associando-se ou não a regurgitações, traduzem-se por posturas anómalas do pescoço, tronco e extremidades, como consequência de refluxo gastresofágico (RGE), hérnia do hiato ou disfunção esofágica. O quadro cede com o tratamento do RGE;
  • algumas perturbações do sono, nomeadamente, terrores nocturnos, despertares nocturnos incompletos, pesadelos ou sonambulismo;
  • os tiques e algumas doenças extrapiramidais são outros exemplos de situações em que a epilepsia pode fazer parte do diagnóstico diferencial;
  • o torcicolo paroxístico inicia-se no primeiro ano de vida, regredindo antes dos 5 anos. Consiste em movimentos oculares anormais seguidos de torcicolo doloroso, durando minutos, horas, ou até, dias. Suspeita-se de relação com enxaqueca;
  • as síncopes vasovagais são os episódios paroxísticos não epilépticos mais frequentes entre os 2 e 12 anos de idade, muitas vezes relacionados com situações de ortostatismo prolongado ou emoções.
    Sendo habitual a confusão com as crises epilépticas generalizadas, definem-se por perda de consciência e do tono postural (por vezes associados a palpitações, sudação, palidez e mioclonias das extremidades) de curta duração (10-30 segundos) por hipoperfusão/défice de oxigenação arterial cerebral ultrapassando a duração de 8-10 segundos. Nalguns casos há sintomas prodrómicos: vertigem, perda da audição, de visão ou visão “nebulosa”, e sensação de calor. A recuperação é espontânea; existe uma base familiar e os episódios podem repetir-se.
    Este quadro clínico surge por falência hemodinâmica, mais habitualmente neurologicamente mediada.
    Importa fazer o diagnóstico diferencial com síncope cardiogénica, menos frequente; situações raras com quadro clínico semelhante poderão ser explicadas por certas arritmias cardíacas e cardiopatias estruturais, algumas das quais se traduzem por síndroma de QT longo.
  • outras situações descritas na literatura: hemiplegia alternante da infância (ligada em 70% dos casos a mutação no gene ATP31A), Opsoclonus, Balanceamentos da cabeça e corpo, Vómitos cíclicos do lactente, etc..

Exames complementares

O electroencefalograma (EEG) é o exame complementar mais usado em epileptologia, sendo útil para confirmar o diagnóstico e para estabelecer a classificação (crises parciais ou generalizadas, síndromas). Contudo, em cerca de 50% dos casos dos doentes epilépticos os EEG – padrão intercríticos são normais, mesmo se for incluído registo de sono. Ao invés, indivíduos saudáveis podem ter alterações electroencefalográficas sem nunca virem e ter epilepsia. As técnicas de activação (hiperpneia e estimulação luminosa intermitente), poderão ajudar a desencadear alterações epileptiformes no traçado.

Na neurofisiologia actual são imprescindíveis as técnicas de monitorização prolongada (vídeo-EEG e “Holter-EEG”) com vista a obter um registo ictal e uma correcta caracterização de muitos dos casos de epilepsia, nomeadamente nos doentes candidatos a cirurgia da epilepsia.

De mencionar a utilidade do EEG no diagnóstico do estado de mal não convulsivo e no diagnóstico diferencial com pseudocrises e outros fenómenos paroxísticos não epilépticos.

Destaca-se a importância de os clínicos conhecerem as indicações e os limites do EEG e a necessidade de ser fornecida ao electroencefalografista uma informação clínica o mais completa possível para uma correcta interpretação.

Na maioria dos casos de epilepsia é essencial a realização de exames de imagem cerebral para uma correcta caracterização, sobretudo nas epilepsias parciais. Com as técnicas actualmente disponíveis é possível encontrar sinais de lesão estrutural em cerca de 50% dos doentes com crises de início focal.

 A ressonância magnética (RM) cerebral tem maior sensibilidade e, salvo raras excepções, pode afirmar-se que em epileptologia a tomografia axial computadorizada (TAC) só deverá ser realizada se a RM não estiver disponível, ou nos doentes em que esta última esteja contra-indicada. Variando com o grupo etário, são exemplos de lesões detectáveis pela RM: displasias corticais e anomalias artério-venosas nas crianças; esclerose mesial, sequelas de traumatismo craniano, tumores cerebrais, lesões vasculares no jovem; acidentes vasculares, doenças degenerativas cerebrais, neoplasias primárias e secundárias.

Embora não indicadas em avaliações de rotina, técnicas de neuroimagem como a RM funcional, a tomografia com emissão de positrões (PET) ou a RM com espectroscopia têm especial interesse nos doentes candidatos a cirurgia da epilepsia.

Tratamento

Atendendo a que a epilepsia é uma doença crónica e considerando as suas particularidades (por exemplo o aparecimento inesperado das crises, o estigma social, a terapêutica diária e prolongada), deve dar-se especial atenção ao acompanhamento psicossocial e familiar destes doentes, além do tratamento medicamentoso.

Apesar de as drogas antiepilépticas (DAE) serem parcialmente eficazes na eliminação ou redução do número de crises, não são dirigidas à origem das doenças ou lesões neurológicas subjacentes. Contudo, constituem a pedra angular do tratamento destes doentes, actuando como estabilizadores da neurotransmissão, quer inibindo a excitabilidade neuronal, quer aumentando o efeito polarizante do ácido gama-amino-hidroxi-butírico (GABA) (neurotransmissor inibitório). Os mecanismos da epileptogénese, a farmacodinâmica das DAE e o seguimento de epilepsias refractárias estão fora do âmbito deste livro, pelo que apenas se abordam as regras gerais do tratamento dos doentes com a patologia em análise.

Salienta-se desde já, aliás como em todas as doenças crónicas, a necessidade da estreita colaboração entre o especialista, neste caso o neuropediatra, e o pediatra ou médico de família. No caso de epilepsias estáveis (por exemplo epilepsia rolândica benigna, epilepsia de ausências), as consultas de neuropediatria poderão ser bastante espaçadas e os pequenos reajustamentos terapêuticos, ou exames analíticos ser realizados pelo médico assistente.

Só deve iniciar-se uma terapêutica com DAE quando o diagnóstico de epilepsia for seguro, o que nem sempre é fácil; daí a importância da anamnese e dos outros aspectos descritos anteriormente. O início do tratamento deve ser guiado pela epidemiologia e por factores individuais, e os riscos e benefícios discutidos amplamente com o doente e/ou familiares. Como já foi referido, é fundamental tentar um diagnóstico sindrómico pois, considerando os diferentes mecanismos de acção das várias DAE, sabe-se que existem medicamentos mais eficazes e outros contra-indicados em certas circunstâncias. Por exemplo o valproato de sódio é de primeira escolha nas epilepsias generalizadas enquanto a carbamazepina está indicada nas crises parciais, podendo agravar uma epilepsia generalizada.

Do Quadro 3, que discrimina algumas das regras gerais da terapêutica antiepiléptica, salienta-se a preferência, sempre que possível, pela monoterapia e a introdução das DAE em doses crescentes. Salienta-se ainda a variabilidade individual na eficácia e na tolerância a estes medicamentos; daí a necessidade de medicação adaptada a cada doente e, no mesmo doente, ao longo do tempo. Em relação aos doseamentos das DAE disponíveis na prática clínica diária (valproato de sódio, carbamazepina, fenitoína e fenobarbital), importa referir que, estando o doente sem crises e não sendo observados efeitos secundários, não deverão ser alteradas as doses das DAE independentemente dos níveis séricos.

Apesar da introdução mais ou menos recente de novos medicamentos antiepilépticos, a maioria dos doentes encontra-se bem controlada com as DAE já estabelecidas, como o valproato de sódio, a carbamazepina, a difenil-hidantoína, o fenobarbital, a primidona, o clobazam, o clonazepam ou a etossuximida. São exemplos de novos antiepilépticos, quase todos usados como medicamentos de segunda linha e em terapia de associação: lamotrigina, topiramato, vigabatrim, oxcarbazepina, gabapentina, tiagabina, felbamato, zonizamida. Estes são usados para as epilepsias de mais difícil controlo. Tal acontece também em situações de terapêuticas invasivas para algumas situações mais refractárias, como implantação de um estimulador do vago (medida paliativa) e cirurgia potencialmente curativa (ressecção cortical focal, hemisferectomia, etc.) ou paliativa (por ex. corpo calosotomia). Os candidatos a estas intervenções devem reunir indicações muito precisas e ser exaustivamente estudados em centros diferenciados.

QUADRO 3 – Regras gerais da terapêutica antiepiléptica

Notas:
1 – as situações de epilepsia deverão ser seguidas em centros especializados.
2 – as terapêuticas prolongadas implicam o doseamento sérico de determinados fármacos
(por exemplo fenobarbital, fenitoína, etc.) na perspectiva da eficácia e/ou da toxicidade.
    • Início se houver um diagnóstico seguro de epilepsia
    • Os doentes (ou os pais) devem compreender as razões do tratamento e estar motivados para os benefícios da terapêutica. A má adesão é causa frequente de insucesso
    • Usar os antiepilépticos mais apropriados para o tipo de crise (caracterização clínica – EEG)
    • Iniciar em monoterapia (sempre preferível), em doses crescentes
    • Aumentar as doses até ao controlo das crises ou até aparecimento de efeitos secundários
    • Usar durante tempo suficiente para avaliar a eficácia
    • Se for necessário, substituir gradualmente um antiepiléptico por outro
    • Somente se deve passar a politerapia se se verificar insucesso em monoterapia
    • O doente deve elaborar um “calendário de crises”
    • Usar o menor número possível de tomas diárias (para facilitar a adesão)
    • Verificar a adesão
    • Evitar outros medicamentos não indispensáveis (verificar interacções)
    • Vida “regrada”: ritmo regular de sono/vigília/álcool…
    • Após 1 a 3 anos sem crises: suspensão gradual das DAE
    • Os antiepilépticos têm muitos efeitos colaterais (pesquisar sistematicamente)

Prognóstico

Nas últimas décadas ocorreram grandes progressos no conhecimento da fisiopatologia da epileptogénese, na caracterização clínica e classificação das crises e das síndromas epilépticas, e igualmente no âmbito da imagiologia cerebral, da neurofisiologia e de novos medicamentos anti-epilépticos.

Mais recentemente, abrindo-se o capítulo da cirurgia da epilepsia, com indicação nalguns casos refractários, surgiu uma modalidade terapêutica mais eficaz e menos dispendiosa do que politerapia durante toda vida.

Salienta-se que, embora a epilepsia possa ser considerada uma doença crónica extremamente grave, interferindo grandemente com o quotidiano, nalguns casos verifica-se remissão espontânea, sendo actualmente tratável na grande maioria dos doentes, o que é compatível com uma vida praticamente sem limitações.

Em suma, a maioria das pessoas com epilepsia pode actualmente ter uma vida normal ou quase normal. Contudo, para aquelas em que o controlo das crises se revela mais difícil, algumas esperanças existem face aos grandes avanços a decorrer em epileptologia, quer no âmbito da fisiopatologia, genética e da investigação diagnóstica (neuroimagiologia e neurofisiologia), quer ainda no âmbito da terapêutica médica e cirúrgica.

BIBLIOGRAFIA

Aicardi J. Diseases of the Nervous Central System. London: Mac Keith Press, 2009

Aicardi J, Arzimanoglou A, Guerrini R. Epilepsy in Children. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004

Allen JE, Ferrie CD, Livingston JH, Feltbower RG. Recovery of consciousness after epileptic seizures in children. Arch Dis Child 2007; 91: 39-41

American Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline. Febrile sizures: guideline for the neurodiagnostic evaluation of the child with a simple febrile seizure. Pediatrics 2011; 127: 389 – 394

Bartolini LLibbey JERavizza T, et al. Triggers and inflammatory mechanisms in pediatric epilepsy. Mol Neurobiol 2019; 56:1897-1907. doi: 10.1007/s12035-018-1215-5

Baumann RJ, Duffner PK. Treatment of children with simple febrile seizures: The AAP practice parameter. Pediatr Neurol 2000; 23: 11-17

Campagnoni AT, el al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Campistol J (ed). Neurologia para Pediatras. Madrid: Panamericana, 2011

Chang BS, Lowenstein DH. Epilepsy. NEJM 2003; 349: 1257-1266

Cheek WR. Atlas of Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 1996

Deonna T. Management of epilepsy. Arch Dis Child 2005; 90: 5-9

French JA. First-choice drug for newly diagnosed epilepsy. Lancet 2007; 369: 970-971

Guerrini R. Epilepsy in children. Lancet 2006; 367: 499-524

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Ko AKim SH, Park EK, et al. Epilepsy surgery for children with low-grade epilepsy-associated tumors: factors associated with seizure recurrence and cognitive function. Pediatr Neurol 2019 Feb;91:50-56. doi: 10.1016/j.pediatrneurol.2018.10.008

Laino D, Mencaroni E, Esposito S. Management of pediatric febrile seizures. Int J Environ Res Public Health 2018 Oct 12;15(10). pii: E2232. doi: 10.3390/ijerph15102232. 

Lee JYK, Adelson PD. Neurosurgical management of pediatric epilepsy. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 441-465

McLone DG. Pediatric Neurosurgery. Philadelphia: Saunders, 2001

Minardi C, Minacapelli R, Valastro P, Vasile F, et al. Epilepsy in children: from diagnosis to treatment with focus on emergency. J Clin Med. 2019 Jan 2; 8(1). pii: E39 doi: 10.3390/jcm8010039

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Panayiotopulos CP. A Clinical Guide to Epileptic Syndromes and their Tratment. London: Springer, 2007

Vasquez AFarias-Moeller RTatum W. Pediatric refractory and super-refractory status epilepticus. Seizure 2018. pii: S1059-1311(18)30025-6. doi: 10.1016/j.seizure.2018.05.012.

Wolf P, Genton P, Roger J. Epileptic Syndromes in Infancy, Childhood and Adolescence. London: John Libbey, 2002

ATAXIA

Definições e importância do problema

A ataxia define-se como perturbação da coordenação dos movimentos voluntários. Pode manifestar-se na posição de pé (estática), durante a marcha (locomotora), ou durante a execução de um movimento (cinética). Trata-se de um problema relativamente comum em idade pediátrica; na sua forma de manifestação aguda não é raro que necessite de uma abordagem diagnóstica, pelo menos inicial, pelo pediatra ou pelo clínico geral no serviço de urgência.

Tratando-se dum tipo de alteração dos movimentos, importa, por razões didácticas, definir sucintamente outros tipos não abordados em capítulos específicos, mas integrando diversos problemas clínicos:

  • coreia, como situação caracterizada por movimentos involuntários e irregulares, umas vezes rápidos, outras vezes lentos, acompanhada por hipotonia muscular e perturbação da coordenação (por exemplo coreia de Sydenham, coreia de Huntington);
  • atetose, como movimentos involuntários, lentos e ondulantes, predominantes nas extremidades; tais movimentos são amplificados por emoções ou excitações, atenuados com o repouso e desaparecem com o sono;
  • tremor, como sucessão de oscilações rítmicas involuntárias que agitam uma parte do corpo ou o corpo inteiro; podem ser contínuas ou intermitentes, rápidas ou lentas, discretas ou acentuadas;
  • tique, como movimento anormal intermitente, súbito e involuntário, que resulta da contracção de um ou mais músculos; desaparece durante o sono e pode ser controlado temporariamente pela vontade; o blefarotique ou tique localizado nas pálpebras constitui um exemplo.

Aspectos semiológicos e nosológicos

A ataxia resulta duma disfunção do cerebelo ou das suas conexões. Com efeito, o cerebelo coordena os movimentos e os mecanismos de ajustamento postural e da marcha.

Para a compreensão dos problemas clínicos nas disfunções cerebelosas a analisar neste capítulo, será importante uma abordagem prévia de aspectos essenciais da fisiologia e da semiologia.

As lesões cerebelosas produzem um quadro clínico característico:

  1. incoordenação e tremor chamado intencional ou cinético; os movimentos de aproximação, por exemplo nas provas dedo-nariz e calcanhar-joelho, são afectados por um tremor (ou perturbação da amplitude dos movimentos) que se torna mais amplo com a aproximação do alvo (dismetria); os movimentos de perseguição ocular são afectados por oscilações lentas e oscilações rápidas em vez de se realizarem de uma maneira gradual e uniforme, impedindo a manutenção dos olhos numa posição excêntrica (nistagmo); o discurso é perturbado por uma perda de nitidez na articulação e por uma entoação variável que decompõe as palavras nos seus componentes silábicos: disartria cerebelosa que traduz perturbação motora dos órgãos de fonação;
  2. desequilíbrio, sem direcção predominante; o encerramento dos olhos pode agravá-lo ligeiramente, mas não se observa um verdadeiro sinal de Romberg como nas lesões vestibulares ou cordonais posteriores; a marcha tem uma base larga e os passos são irregulares na direcção e na amplitude;
  3. hipotonia, mais notória nas lesões agudas, estando os reflexos osteotendinosos preservados; nas lesões crónicas (degenerativas ou outras), a hipotonia é menor ou pode não se verificar.

Ou seja, a ataxia apresenta diversas expressões semiológicas tais como, disartria, dismetria, tremor intencional, nistagmo e ainda a diadococinésia (esta última traduzindo impossibilidade de execução rápida de movimentos alternantes como pronação-supinação). De acentuar que as marchas peculiares das miopatias, neuropatias e doenças vestibulares não constituem ataxias.

As ataxias integram um tópico muito extenso e complexo, sendo de referir os constantes avanços nos aspectos genéticos moleculares e terapêuticos, os quais têm dado origem a múltiplas classificações ao longo do tempo. Tal circunstância é, pois, susceptível de tornar as actualizações obsoletas a curto prazo.

Sob o ponto de vista genético existem formas com padrão autossómico dominante, autossómico recessivo, ligadas ao cromossoma X e de hereditariedade mitocondrial, salientando-se a quantidade cada vez maior de genes reconhecidos.

Existem grupos em que ao compromisso neurológico se somam sinais extraneurológicos ou sistémicos. Coadjuvando a clínica, a este respeito, salienta-se o papel orientador da RM na identificação de alterações anatómicas como aplasia, hipoplasia, atrofia cerebelosa, ou outras alterações da substância branca e cinzenta.

No que respeita às ataxias hereditárias, são considerados três grande grupos: congénitas, em geral não evolutivas, com início ou maior expressão na infância; degenerativas que são evolutivas; e ataxias intermitentes.

Neste capítulo são considerados, numa perspectiva clínica, três tipos de ataxia: aguda, recorrente e crónica.

Ataxia aguda

A ataxia aguda pode, por vezes, constituir um problema complexo de diagnóstico diferencial, o que releva a importância da história clínica. De facto, numa situação aguda é fundamental definir se se trata do primeiro episódio de afecção com antecentes familiares do mesmo foro, ou se existe a possibilidade de, entre outros aspectos, efeito tóxico.

Nesta alínea são abordadas as situações de ataxia aguda mais frequentes, devendo salientar-se as infecções e as intoxicações.

Ataxia aguda para ou pós-infecciosa

O quadro de uma criança com uma história de varicela recente, provavelmente ainda com um exantema característico desta situação que, ao acordar, recusa a posição de pé, manifesta um claro desequilíbrio e tem tremor, constitui um dos exemplos mais frequentes de ataxia aguda observados pelo médico no serviço de urgência.

A ataxia aguda pós-infecciosa por cerebelite é uma situação que parece ser devida a invasão directa de um agente infeccioso ou a uma resposta inflamatória mediada imunologicamente após uma infecção.

Agentes microbianos mais frequentemente implicados são: vírus varicela-zoster, Mycoplasma, o vírus de Epstein-Barr, o citomegalovirus e enterovirus. Deve ter-se em conta que em cerca de 30-50% dos casos não é identificável uma infecção associada ao quadro de ataxia, ou antecedendo-o.

O quadro clínico típico é o de uma criança entre os 2 e os 7 anos, que no decurso de uma doença exantemática ou outra doença infecciosa, ou cerca de 1 a 2 semanas depois, acorda, verificando-se ataxia que é habitualmente mais notória de início. A ataxia pode ser tão marcada que não permite a posição sentada e determina um tremor cefálico. Podem também coexistir nistagmo, disartria (existem raras descrições de mutismo), tremor intencional e dismetria nos 4 membros, simetricamente, com reflexos mantidos e com uma hipotonia ligeira global. Não se verifica depressão do estado de consciência, nem alteração major de comportamento. A recuperação começa habitualmente após 1 semana e é em geral completa, embora possa ser prolongada.

Uma história de ataxia aguda, com as características descritas, deve determinar, após a avaliação inicial, um período de observação em centro especializado e quase sempre (possivelmente com a excepção da ataxia associada a varicela, em que o diagnóstico é óbvio) a realização de um exame de imagem: pela ressonância magnética podem, por vezes, observar-se sinais de lesões cerebelosas hiperintensas.

A literatura não é consensual sobre a necessidade de realizar, face a um quadro de cerebelite aguda, um exame do LCR (pode encontrar-se neste contexto uma ligeira pleocitose linfocítica, sem outras alterações). A indicação para realizar punção lombar é essencialmente a de suspeita de um diagnóstico alternativo, como encefalite (depressão do estado de consciência, alteração de comportamento ou sinais neurológicos focais).

Intoxicação

É bastante frequente, entre crianças dos 1 a 5 anos, a intoxicação acidental. Muitos casos envolvem a ingestão de fármacos com um efeito sedativo que também causam ataxia e nistagmo (tranquilizantes, antidepressivos, antiepilépticos, anti-histamínicos, antitússicos). A ingestão intencional (mas oculta) de medicamentos deste tipo, ou das chamadas drogas de uso recreativo ou de álcool, são uma possibilidade a considerar em adolescentes. Nem sempre o rastreio laboratorial é positivo e, nestes casos, o diagnóstico poderá depender da evolução clínica ou da exclusão de diagnósticos alternativos.

FIGURA 1. Exame de imagem (TAC) – Glioma da protuberância. Uma volumosa lesão assinalada na figura causa hidrocefalia por obstrução do IVº ventrículo. A história incluía cefaleias, vómitos, ataxia com um envolvimento do tronco e dos membros, e diplopia (por parésia do VIº par)

Tumores da fossa posterior

Uma criança com um tumor cerebral da fossa posterior pode recorrer ao serviço de urgência com uma história recente de ataxia (mais prolongada, semanas ou mesmo meses, eventualmente associada a cefaleias e/ou a vómitos). A ataxia não tem o carácter agudo descrito para a cerebelite e a história terá os elementos sugestivos de hipertensão intracraniana (cefaleias nocturnas que acordam o doente e no despertar, vómitos matinais que aliviam a cefaleia). O exame pode revelar uma ataxia de predomínio axial ou hemiataxia, eventualmente com sinais de compromisso de pares cranianos (mais frequentemente o VIº e o VIIº pares); e, na fundoscopia observar-se-á estase papilar. Mais frequentes neste contexto são o astrocitoma, o meduloblastoma, o ependimoma e o glioma da protuberância.

Os exames de imagem (TAC ou RM) permitem confirmar o diagnóstico (Figura 1).

Ataxia como sintoma de conversão

Perturbações do equilíbrio e da marcha, não raramente, podem surgir como sintomas de conversão em adolescentes. Nestes casos a marcha não tem uma base larga. A posição de “sentado” não causa qualquer dificuldade, mas a “de pé” manifesta-se por desequilíbrio, frequentemente espectacular; não se observam outras anomalias no exame neurológico.

Pseudo-ataxia epiléptica

Raramente uma criança com epilepsia de ausências ainda não diagnosticada, ou com certos tipos de epilepsia parcial refractária, ou ainda com epilepsia criptogénica, como a síndroma de Lennox-Gastaut, pode apresentar-se com um quadro clínico de status epiléptico não convulsivo: flutuação do estado de consciência, períodos sem contacto visual ou auditivo. Existe, contudo, possibilidade de realizar tarefas motoras de modo automático e, eventualmente, andar com algum desequilíbrio. Poderão também surgir mioclonias palpebrais e discretas clonias dos membros, multifocais, ou ainda episódios breves de nistagmo, sugerindo o diagnóstico de epilepsia.

O diagnóstico é confirmado pelo EEG. Estas situações exigem uma terapêutica antiepiléptica urgente, a decidir pelo neurologista pediátrico.

Enxaqueca da artéria basilar

A enxaqueca da artéria basilar, uma forma chamada «complicada» de enxaqueca, frequente na adolescência e no sexo feminino, pode incluir, como sintomas iniciais, de «aura», ataxia, nistagmo, vertigem, alterações visuais, parestesias e mesmo tetraparésia, que regridem já após o início de cefaleia occipital pulsátil (ver capítulo anterior).

O exame neurológico é normal após a recuperação e pode haver uma história precedente típica de enxaqueca (assim como antecedentes familiares de enxaqueca). Na abordagem inicial e na ausência dos referidos dados da história clínica, poderá ser necessário realizar um exame de imagem (para excluir lesão estrutural da fossa posterior), e EEG para excluir epilepsia occipital.

Ataxia pós-traumática

Em crianças, o sintoma pós-traumático mais frequente é a ataxia. A ataxia pós-traumática é habitualmente só axial, determinando um desequilíbrio. Provavelmente deve-se a uma perturbação transitória de funcionamento do tronco cerebral, o qual é submetido a trauma durante fenómenos de rotação e desaceleração contra a tenda do cerebelo.

Na fase aguda, após um traumatismo, uma criança com ataxia deve ser submetida a exame de imagem para excluir hemorragia na fossa posterior. É importante considerar também no diagnóstico diferencial a chamada concussão vestibular em que o desequilíbrio não é atáxico: em geral a criança recusa-se a mobilizar a cabeça, descreve uma sensação de vertigem e pode ter vómitos.

Opsoclónus-mioclónus

Trata-se duma situação rara em que uma criança com ataxia aguda, em geral com um importante componente mioclónico, tem associada uma considerável irritabilidade e uma anomalia oculomotora de tipo opsoclónus (movimentos conjugados, bruscos e amplos, involuntários dos olhos).

Este quadro clínico de opsoclónus-mioclónus pode ser pós-infeccioso ou paraneoplásico (neuroblastoma); dados recentes identificam-no como uma patologia autoimune do cerebelo.

Existe uma evolução crónica, frequentemente com flutuações; nos casos em que a etiopatogenia é paraneoplásica, persiste após o tratamento do tumor. Corticoterapia, gamaglobulina endovenosa e benzodiazepinas são as terapêuticas utilizadas.

Ataxia recorrente

A ataxia recorrente é menos frequente que a ataxia aguda, sendo o diagnóstico etiológico daquela muito diferente do anteriormente exposto para esta última.

Embora enxaqueca e epilepsia sejam doenças recorrentes, a ataxia como manifestação predominante daquelas não é comum, excepto nos já referidos status epiléptico não convulsante e na enxaqueca da artéria basilar.

A intoxicação acidental pode também ser recorrente, importando salientar que a síndroma de Munchausen «por procuração» é também, em função do contexto clínico e do ambiente em que vive a criança, uma causa a considerar.

No âmbito das ataxias recorrentes (as quais se devem, sobretudo, a doenças metabólicas e genéticas, faz-se referência apenas às seguintes situações:

  • ataxia episódica (tipo 1 e 2)
  • doença de Hartnup
  • deficiência de PDHC
  • leucinose (forma aguda intermitente)

A chamada doença vanishing white matter é uma encefalopatia relacionada com mutação no gene EIFB2A , localizado no cromossoma 3. Caracterizando-se por episódios recorrentes de alteração do estado de consciência, frequentemente após traumatismos cranianos minor ou doenças febris, evolui progressivamente para um défice neurológico de tipo atáxico e espástico, com uma relativa preservação das funções mentais. O estudo imagiológico pela RM cerebral permite identificar lesões da substância branca com a formação de quistos relacionáveis com hipomielinização.

Ataxia crónica

No diagnóstico de ataxia crónica devem ser consideradas separadamente: ataxia não progressiva e ataxia progressiva.

Ataxia congénita não progressiva

Neste grupo estão englobadas as ataxias congénitas devidas a defeitos congénitos do sistema nervoso. Existe discordância entre os achados de imagem e o quadro clínico: em geral, prevalece o défice cognitivo (como sintomatologia associada a um grave defeito de desenvolvimento do cerebelo) sobre os sinais clássicos de ataxia. Muitas destas crianças são hipotónicas mantendo reflexos osteotendinosos; algumas têm nistagmo ou estrabismo.

A situação mais caracterizada na literatura é a síndroma de Joubert (agenésia vermiana associada a um defeito de desenvolvimento do mesencéfalo, com atraso psicomotor, anormal controlo respiratório central com episódios de hiperventilação, nistagmo e displasia quística renal).

A hipoplasia congénita do cerebelo pode ser uni ou bilateral. Não são conhecidas as causas de hipoplasia unilateral, sendo de admitir que nalguns casos se trate de sequela atrófica de lesão pré-natal (provavelmente vascular ou infecciosa).

De salientar que o quadro de cerebelo hipoplásico associado a defeitos de migração neuronal de tipo polimicrogiria pode encontrar-se na infecção congénita por citomegalovírus e pode ocorrer associado a lissencefalia em mutações de genes da tubulina (TUBA1A).

Uma situação de ataxia com evolução subaguda implica a procura imediata de uma causa eventualmente tratável, como tumor da fossa posterior.

Ataxia crónica progressiva

Perante uma ataxia crónica progressiva é necessário pesquisar dados de história familiar (casos semelhantes na família sugerindo uma ataxia de tipo dominante e/ou consanguinidade, e irmãos afectados sugerindo uma doença recessiva).

Faz-se referência às seguintes entidades clínicas:

Abetalipoproteinémia

Uma história de ataxia com início na idade pré-escolar, arreflexia, nistagmo, precedida de atraso estaturoponderal e de síndroma de má absorção com esteatorreia, sugere abetalipoproteinémia. O diagnóstico é confirmado pelo achado laboratorial de níveis de colesterol e triglicéridos baixos, anemia de causa nutricional, e pela ausência de apolipoproteína B no plasma. O locus genético foi identificado no cromossoma 4 (gene MTTP: microsomal triglyceride transfer protein).

A terapêutica parentérica com vitamina E corrige as anomalias neurológicas na abetalipoproteinémia.

Ataxia-telangiectasia

A ataxia-telangiectasia é uma doença recessiva determinada por mutação no gene ATM (11q23.3), do que resulta uma proteína truncada não funcionante com efeitos diversos como hipersensibilidade a radiações ionizantes, atingimento do processo de reparação do ADN, inibição da sua síntese, incremento de rupturas cromossómicas, com consequentes anomalias imunológicas e incremento da apoptose.

Os sinais clínicos precoces são as infecções sinopulmonares recorrentes (frequentemente há défice de imunoglobulinas, mais frequentemente IgA associada a subclasses de IgG) e, por vezes, uma anomalia de movimento do tipo coreoatetose verificável nos primeiros dois anos de vida.

A ataxia surge subsequentemente e é progressiva. Na maioria dos doentes vem a desenvolver-se uma anomalia dos movimentos oculares chamada apraxia oculomotora (incapacidade de execução de movimentos voluntários coordenados apesar de se conservarem as funções musculares e sensoriais).

As telangiectasias (mais frequentes nas conjuntivas e nos pavilhões auriculares) observam-se após os dois anos. Na adolescência é frequente a perda da marcha autónoma pelo agravamento da ataxia e por neuropatia axonal progressiva.

Há um risco muito significativo de neoplasia, sobretudo linfoma e leucemia.

Quase todos os doentes têm níveis elevados de alfafetoproteína no soro e, em cerca de 80% dos casos, verifica-se deficiência de imunoglobulinas.

A RM-CE em fases avançadas evidencia atrofia cerebelosa.

O tratamento, que não é específico, baseia-se essencialmente na administração de imunoglobulina nos casos de infecções recorrentes, na fisioterapia e na terapia ocupacional. Salienta-se que é importante o diagnóstico precoce, a vigilância clínica atendendo à detecção de eventual surgimento de tumores, o conselho genético e o diagnóstico pré-natal com estudos moleculares.

Ataxia sem telangiectasia

Um fenótipo de «ataxia sem telangiectasia e sem imunodeficiência» foi descrito ao longo de vários anos, actualmente com 4 genes conhecidos – AOA1-AOA2-AOA3 e AOA4, destacando-se duas entidades: ataxia-telangiectasia-like disorder” e ataxia and oculomotor apraxia.

Ataxia de Friedreich

A ataxia de Friedreich é uma ataxia transmitida de modo recessivo; é explicada por uma mutação com expansão do gene denominado frataxina, no cromossoma 9. Está actualmente demostrado que a frataxina é uma proteína mitocondrial e que as mutações envolvidas nesta doença causam um défice desta proteína nas mitocôndrias e acumulação tóxica de ferro.

O quadro neurológico é o de ataxia progressiva que pode ter início entre os 2 e os 16 anos. A disartria é frequente e precoce. São típicos arreflexia e pés cavus, respostas plantares extensoras e hipostesia postural e vibratória. A perda da marcha autónoma ocorre cerca de 15 anos após o início dos sintomas.

Diabetes mellitus, cardiomiopatia hipertrófica e escoliose são as complicações não neurológicas mais frequentes.

Não há ainda um tratamento curativo para esta situação. O tratamento com antioxidantes como vitamina E e coenzima Q10 poderá retardar a progressão da doença.

Doenças mitocondriais

Um grupo importante de doenças, com expressão neurológica e sistémica que podem manifestar-se por ataxia progressiva, é constituído pelas doenças mitocondriais.

Os tecidos que exprimem clinicamente com mais frequência um defeito de função mitocondrial são aqueles que têm um maior consumo energético, nomeadamente o cérebro e o músculo.

As anomalias de função mitocondrial podem ter repercussão no ADN mitocondrial ou nuclear e podem ocorrer “de novo” ou ser herdadas. Devido a um fenómeno chamado heteroplasmia, os vários tecidos podem ser portadores, no mesmo indivíduo, de maior ou menor número de mitocôndrias com mutante, o que condiciona variantes do quadro clínico, da gravidade e da expressão nos diferentes membros de uma família.

Em geral deve suspeitar-se de doença mitocondrial perante um quadro clínico de doença neurológica, de ataxia, demência, neuropatia, miopatia, surdez, baixa estatura, diabetes, cardiomiopatia, independentemente dos antecedentes familiares (Parte XXXII).

A ataxia progressiva mais bem caracterizada em doenças mitocondriais ocorre nas síndromas de Kearns-Sayre (ataxia, retinopatia pigmentar, surdez, cardiopatia com bloqueio aurículo-ventricular) e NARP (neuropatia, ataxia, retinopatia pigmentar e surdez).

Outras ataxia crónicas

Além das situações referidas que frequentemente combinam ataxia com sinais piramidais e demência, várias outras doenças genéticas raras necessitam de ser consideradas no diagnóstico diferencial de uma ataxia progressiva infantil. Citam-se a doença de Nieman-Pick, as gangliosidoses juvenis (incluindo a doença de Tay-Sachs), a leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe juvenil, a adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X, a doença de Refsum e a xantomatose cerebrotendinosa.

Ataxias de tipo dominante

Faz-se referência ainda a um grupo de ataxias com modo de transmissão dominante. O início dos sintomas é habitualmente na idade adulta; mas excepcionalmente pode ocorrer na infância ou na adolescência, por vezes com uma expressão clínica diferente. É o caso da doença de Machado-Joseph (SCA3: spinocerebellar ataxia type 3) e da SCA1 (spinocerebellar ataxia type 1).

AGRADECIMENTOS

À Dra. Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologista do Hospital de Dona Estefânia) pela cedência da foto da Figura 1.

BIBLIOGRAFIA

Albin RL. Dominant ataxias and Friedreich ataxia: an update. Curr Opin Neurol 2003; 16: 507-514

Fenichel GM. Clinical Pediatric Neurology. Philadelphia: Saunders, 2001

Garone GReale AVanacore N, et al. Acute ataxia in paediatric emergency departments: a multicentre Italian study. Arch Dis Child 2019 Apr 4. pii: archdischild-2018-315487. doi: 10.1136/archdischild-2018-315487

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Jarman PR, Wood NW. Genetics of movement disorders and ataxia. J Neurol Neurosurg Psychiatry 2002; 73: 22-25

Jen JC, Graves TD, Hess EJ, et al. Primary episodic ataxias: diagnosis, pathogenesis and treatment. Brain 2007; 130; 2484 – 2493

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Luetje MKannikeswaran NArora R, et al. Utility of neuroimaging in children presenting to a pediatric emergency department with ataxia. Pediatr Emerg Care 2019 Mar 29. doi: 10.1097/PEC.0000000000001823.

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Ryan MM, Engle EC. Acute ataxia in childhood. J Child Neurol 2003; 18: 309-316

Ruggieri VL, Arberas CL. Ataxias hereditarias. Rev Neurol 2000; 31: 288 – 296

Salman MS. The cerebellum: it’s about time! But timing is not everything- new insights into the role of the cerebellum in timing motor and cognitive tasks. J Child Neurol 2002; 17: 1-9

Tarsy D, Simon DK. Dystonia. NEJM 2006; 355: 818-829

Vedolin L, Gonzalez G, Souza CF, et al. Inherited cerebellar ataxia in childhood: a pattern-recognition approach using brein MRI. AJNR 2013; 34: 925 – 934

CEFALEIAS

Importância do problema

As cefaleias são um problema frequente em idade pediátrica com repercussões no desempenho escolar, memória, personalidade, atenção e relação social em função da etiologia, frequência e intensidade.

Não é claro a que se deve o sub-reconhecimento deste facto; possivelmente (no caso dos profissionais de saúde) à escassez de literatura médica sobre este tema e (no caso dos familiares da criança) à ideia estabelecida de que as cefaleias primárias não existem em crianças.

As causas mais frequentes, abordadas neste capítulo, são a enxaqueca, factores psicogénicos ou estresse, e hipertensão intracraniana. Situações mais raras como erros de refracção, estrabismo, sinusite e má-oclusão dentária também podem explicar o problema (Partes XIII, XXVI, XXVII).

Etiopatogénese e semiologia

As estruturas intracranianas sensíveis à dor são: a pele, o tecido subcutâneo, os músculos e artérias extracranianas, o periósteo, os seios venosos durais, (sobretudo o seio cavernoso), as meninges da base do crânio, as artérias intracranianas proximais e a porção intracraniana da carótida interna; os seios perinasais e estruturas do olho, do ouvido; e ainda os nervos óptico, oculomotores, trigémeo, glossofaríngeo e primeiras três raízes cervicais.

A tenda do cerebelo demarca, em termos de enervação sensitiva, as estruturas com dor referida à região frontotemporal e orbitária (acima da tenda), e a dor referida à região occipital (abaixo da tenda).

É necessário ter em conta que a dor referida à região frontotemporal pode ter origem nasossinusal, orbitária, na carótida intra ou extracraniana, em estruturas extracranianas subcutâneas, ou ainda na articulação temporomaxilar e em múltiplas patologias intracranianas supratentoriais.

A dor referida à região occipital pode estar relacionada com patologia intracraniana na fossa posterior, ou ter origem na região cervical superior.

Os mecanismos pelos quais ocorre a dor podem ser a hipertensão intracraniana, por exemplo, por uma lesão ocupando espaço, ou uma anomalia na circulação, reabsorção ou, mais raramente na produção de líquido céfalo-raquidiano (LCR). A inflamação e distorção de artérias intracranianas por múltiplas patologias também podem originar dor. Igualmente, inflamação ou obstrução à drenagem dos seios perinasais são causa de cefaleias. O esforço visual associado a um erro de refracção pode causar uma cefaleia frontal, moderada em relação com um esforço continuado dos músculos oculares extrínsecos; e a uveíte e o glaucoma são causas importantes de dor retro-ocular.

O agravamento com a tosse ou com a mudança de posição da cabeça (por exemplo quando a criança se baixa para apanhar um objecto do chão) sugerem hipertensão intracraniana (HIC).

A hipoventilação que acompanha o sono causa uma relativa retenção de CO2 e um aumento correspondente da pressão intracraniana, razão pela qual as cefaleias que ocorrem no sono ou estão presentes no despertar, aliviando subsequentemente, são também sugestivas de HIC.

É bem conhecido que a cefaleia de hipotensão intracraniana (mais frequentemente pós-punção lombar) se inicia na posição de pé e alivia em minutos com o decúbito.

Uma cefaleia unilateral pode dever-se a enxaqueca (tópico a analisar adiante); mas a presença de uma dor deste tipo com características progressivas ou outros sinais de HIC (presente no sono ou no despertar, associada a vómitos, ou a certos sintomas e sinais neurológicos como diplopia e estrabismo, ataxia ou sinais focais) devem fazer suspeitar de uma lesão intracraniana expansiva.

Na criança existem dificuldades particulares relacionadas com a informação anamnéstica, tendo em conta o estádio de desenvolvimento cognitivo e a sua capacidade de aquela se exprimir e de descrever os sintomas. A localização de uma cefaleia é provavelmente mais vaga, nem sempre sendo possível localizar a dor, nem avaliar a sua intensidade e tipo com precisão.

Enxaqueca

Aspectos da epidemiologia e genética

Embora a literatura sobre cefaleias em crianças e adolescentes seja escassa, o consenso actual é de que enxaqueca constitui o tipo de cefaleia mais frequente (cerca de 75% dos casos).

Estudos epidemiológicos apontam uma prevalência de enxaqueca na população de 13 a 18% na idade adulta, de 5 a 10% entre os 6 anos e a adolescência, e de 2,5% na idade pré-escolar. Na criança, a frequência é igual em ambos os sexos, mas após a adolescência é maior no sexo feminino (3/2).

Nalgumas famílias a enxaqueca segue o padrão mendeliano de transmissão autossómica dominante («enxaqueca hemiplégica familiar») com um locus genético identificado (mutações dos genes PRRT2, CACNA1A, ATP1A2, SLC1A3, SLC2A1 e SCN1A). 

Com efeito, existe um componente hereditário nítido que se traduz pela comprovação de antecedentes familiares de tal patologia em cerca de 80% das pessoas com enxaqueca.

Fisiopatologia

Não há uma compreensão completa dos mecanismos que entram em acção na enxaqueca para produzir uma constelação de sintomas e sinais, neurológicos (a aura)*, autonómicos (náuseas e vómitos, palidez) e a própria cefaleia; desconhece-se também o mecanismo das peculiares relações que a enxaqueca tem com o sono e os factores ambientais (luz, ruído, estímulos olfactivos).

Muitas pessoas com enxaqueca relatam, mesmo fora dos períodos de crise, uma sensibilidade exagerada para uma ou várias modalidades de estimulação sensitiva ou sensorial.

As observações clínicas e vários estudos de imagem suportam a noção de que há na fase inicial de aura uma vasoconstrição das artérias intracranianas e hipoperfusão cerebral, seguida de uma fase de vasodilatação e possivelmente, de uma pulsatilidade excessiva que corresponde à sensação de “martelar”. Outros estudos sugerem que a anomalia primária é, não vascular, mas uma depressão da actividade cortical com início nas regiões occipitais e progressão póstero-anterior, sendo as anomalias de perfusão mais provavelmente secundárias. De acordo com uma teoria mais recente admite-se que o nervo trigémeo tem um conjunto de pequenas fibras não mielinizadas que enervam as artérias intracranianas, e que a estimulação destas fibras liberta na parede vascular vários péptidos vasodilatadores que iniciam uma resposta inflamatória na parede vascular. Tem sido sugerido que este sistema trigeminovascular está num estado de excitabilidade persistente nas pessoas com enxaqueca com períodos de maior activação relacionados com influxos** sensoriais ou de origem hipotalâmica.

Manifestações clínicas

Com as limitações relacionadas com a capacidade de a criança descrever os sintomas e, talvez, com as características clínicas intrínsecas da enxaqueca infantil, os respectivos sintomas são muito semelhantes aos dos adultos. Trata-se de uma cefaleia intermitente, não progressiva, diurna, habitualmente frontal, frontotemporal e retro-ocular, de intensidade crescente, pulsátil, precedida ou não de aura* habitualmente visual (por exemplo escotomas ou hemianópsia), acompanhada de náuseas e, por vezes, de vómitos, palidez e sensação subjectiva de «frio». Habitualmente interrompe a actividade, dura mais de uma hora (geralmente não mais de 24 horas), agrava-se com o ruído e a exposição à luz, e melhora com o repouso e o sono. Algumas crianças reportam uma sensação de desequilíbrio.

O exame neurológico é normal fora das crises.

A cefaleia tende frequentemente a ocorrer por «surtos» separados por intervalos livres que podem ser bastante prolongados.

Em geral verifica-se remissão completa até aos 25 anos em 20-30% dos casos.

*Recordam-se as definições de aura: conjunto de sintomas motores, sensitivo-sensoriais, vegetativos ou psíquicos que marcam o início de determinado evento (do latim: aura = sopro); **e de influxo: modificação físico-química fisiológica que se propaga ao longo de um nervo

Diagnóstico

Se o quadro clínico for típico (incluindo a comprovação de antecedentes familiares) e o exame neurológico normal, não estão indicados exames complementares. Deve realizar-se, contudo, um exame de imagem se a história clínica tiver características atípicas, incluindo a presença de aura persistente ou de cefaleia unilateral sempre do mesmo lado, ou de qualquer anomalia no exame neurológico.

Tratamento

O tratamento da enxaqueca (que implica um esclarecimento dos pais e crianças sobre o carácter benigno da situação) resume-se, muitas vezes, a aconselhar o repouso e, ocasionalmente, o uso de analgésicos (paracetamol, ibuprofeno, naproxeno).

Actualmente têm sido publicados estudos sobre a avaliação do papel da hipnoterapia no contexto de enxaquecas.

A terapêutica oral necessita de ser precoce para ser eficaz; tem, contudo, grandes limitações se a criança tiver náusea ou se vomitar. É nestes casos raramente necessário recorrer a terapêutica rectal com analgésicos e, mais raramente, analgésicos e anti-eméticos (como ondansetron) pela via intravenosa, num contexto hospitalar.

No adolescente põem-se problemas terapêuticos por vezes mais complexos; com efeito, há que considerar ocasionalmente o uso excessivo de analgésicos como um factor de agravamento e até de cronicidade; por outro lado, a cefaleia pode ser mais intensa e frequente ou prolongada. Em geral podem ser usados os mesmos recursos terapêuticos (analgésicos, anti-eméticos) ou, se a resposta for inadequada, tentar o uso de triptanos, nomeadamente sumatriptano ou zolmitriptano nasal, almotriptano ou rizatriptano oral. Os triptanos são agonistas dos receptores da serotonina, os receptores 5HT1B e 5HT1D.

Esta terapêutica deve ser reservada para casos especiais e no contexto de seguimento em centro especializado.

A terapêutica profiláctica poderá ser necessária quando a cefaleia é excessivamente frequente (mais de 2 ou 3 episódios por mês). É muito importante fazer um “diário” durante um período de, pelo menos, 1 a 2 meses para se ter uma ideia correcta da frequência das cefaleias, já que é muito subjectiva a resposta à pergunta sobre a sua frequência numa primeira consulta. Os pais tendem nitidamente a exagerar ou minimizar a frequência das crises. Os medicamentos profilácticos de enxaqueca mais frequentemente usados em Pediatria são a flunarizina e o propranolol. É necessário ter a garantia de que a criança não apresenta uma das contra-indicações para o uso de propranolol (asma, diabetes, insuficiência cardíaca, bloqueio auriculo-ventricular ou outra disritmia).

O CGRP (péptido relacionado com o gene da calcitonina) é um neuropéptido implicado na fisiopatologia das crises de enxaqueca; o tratamento da crise reverte a actividade do CGRP. Uma inovação recente é a dos antagonistas do CGRP ou dos seus receptores (gepants).  Estão em curso estudos sobre a sua utilização em adolescentes.

Enxaqueca complicada

Além da aura típica de enxaqueca, podem ocorrer auras neurológicas mais complexas nas síndromas designadas por enxaqueca complicada; a enxaqueca hemiplégica e a enxaqueca da artéria basilar são as mais reconhecidas neste grupo.

A hemiparésia, geralmente associada a sintomatologia sensitiva proeminente, consistindo em parestesias ou hipostesia, e afectando unilateralmente os membros e a face, segue-se a uma cefaleia pulsátil habitualmente contralateral.

Por vezes a hemiparésia prolonga-se para além da cefaleia, mas regride sempre completamente. Esta situação, embora benigna, necessita sempre duma avaliação complementar nomeadamente por RM para excluir diagnósticos alternativos como doença cardiovascular embolígena, encefalopatia mitocondrial, malformação arteriovenosa ou vasculite cerebral.

Na enxaqueca da artéria basilar, a aura é atribuível a disfunção neurológica no território da artéria basilar (defeitos bilaterais dos campos visuais, vertigem, diplopia, hemi ou teraparésia, hemi ou tetra parestesias e ataxia). A estes sintomas segue-se uma cefaleia occipital com náuseas e vómitos. Pode ainda ocorrer estado confusional, e mesmo coma, com características de reversibilidade.

O diagnóstico diferencial inclui epilepsia occipital, doença desmielinizante e trauma com dissecção da artéria vertebral. Raramente pode ocorrer estado confusional. É sempre necessário neste contexto clínico uma avaliação por RMN e estudos adicionais de acordo com o quadro clínico, nomeadamente EEG se houver suspeita clínica de epilepsia. Trata-se, pois, de situações que, pela sintomatologia, têm indicação para envio a centros especializados.

Equivalentes de enxaqueca

Algumas situações mal definidas são chamadas «equivalentes de enxaqueca»: vertigem paroxística benigna, vómitos cíclicos e o torcicolo paroxístico benigno. São abordadas as duas primeiras alterações.

Vertigem paroxística benigna

A chamada vertigem paroxística benigna é uma situação recorrente em crianças dos 2 aos 6 anos, traduzida habitualmente pelo seguinte quadro: num período breve, de alguns segundos a poucos minutos, a criança refere subitamente desequilíbrio e, quando tem capacidade verbal para descrever, refere uma sensação vertiginosa que ocorre na ausência de qualquer alteração do estado de consciência, podendo acompanhar-se de sinais autonómicos como palidez ou vómitos. Desconhece-se a etiopatogénese deste quadro clínico, sendo que o exame neurológico é normal e os episódios são habitualmente raros e finalmente extinguem-se. É comum haver uma história familiar de enxaqueca e, mais tarde, estas crianças terem um verdadeiro quadro de enxaqueca.

Se os episódios forem frequentes, a terapêutica com difenidramina pode ser eficaz.

Vómitos cíclicos

É bem conhecida em Pediatria a situação denominada “vómitos cíclicos”. Crianças saudáveis, por vezes com uma periodicidade de 2 a 4 semanas, têm durante algumas horas (habitualmente até 1 a 2 dias) vómitos incoercíveis com uma vaga dor abdominal periumbilical (embora a dor abdominal não seja proeminente e possa mesmo estar ausente).

Algumas crianças permanecem deitadas, com alguma prostração e fotofobia; outras referem também uma situação mal definida de vertigem. O quadro regride espontaneamente para se repetir algumas semanas mais tarde. Nos intervalos livres a criança está assintomática. Não há uma psicopatologia significativa associada.

Nalguns casos pode verificar-se tendência para evolução para uma situação, também recorrente, sugestiva de enxaqueca no contexto de história familiar com idêntico quadro.

A situação clínica caracterizada por vómitos que surgem “ciclicamente” obriga a uma cuidadosa observação implicando o diagnóstico diferencial com quadros clínicos específicos tais como volvo gástrico, má-rotação intestinal e, raramente, doença metabólica com expressão intermitente (por exemplo defeito da beta-oxidação dos ácidos gordos, acidúria orgânica ou doença do ciclo da ureia).

Cefaleias de tensão

Definição

Considera-se cefaleia de tensão a que surge associada a situações de conflito ou estresse emocional.

Manifestações clínicas

A literatura mais recente reconhece que a chamada cefaleia de tensão, quer de tipo episódico, quer crónica, existe, de facto, em crianças e adolescentes com uma frequência que não é conhecida.

Pode tratar-se de uma dor, de tipo aperto, bilateral difusa, com intensidade moderada, diurna, vespertina, não interrompendo habitualmente a actividade. Pode acompanhar-se de mialgia cervical posterior. Está em geral associada a uma personalidade patológica onde predominam traços ansiosos, fóbicos, obsessivos ou de tipo depressivo. Em mais de 50% dos doentes verifica-se a ocorrência simultânea de enxaqueca.

Diagnóstico

A normalidade do exame neurológico e a história do tipo de cefaleias associada às características psicopatológicas permitem em geral o diagnóstico; contudo, não é raro que seja necessário realizar exames de imagem devido à marcada tendência para a cefaleia se tornar recorrente ou mesmo crónica. Excluídas, com tais exames, causas orgânicas torna-se, por vezes, necessário estabelecer um plano terapêutico que pode passar por intervenção psiquiátrica.

Cefaleias de hipertensão intracraniana

As cefaleias de hipertensão intracraniana podem ser devidas a uma multiplicidade de lesões que ocupam espaço. Na criança, a situação mais frequente é a dos tumores (a neoplasia mais frequente em crianças após as leucemias). Os tumores cerebrais nas crianças são mais frequentes na fossa posterior que em localização supratentorial. Os tumores da fossa posterior mais frequentes são o astrocitoma do cerebelo (Figura 1), o meduloblastoma, o ependimoma e o glioma da protuberância.

FIGURA 1. TAC – Astrocitoma do cerebelo: criança de 9 anos com cefaleias com algumas semanas de evolução; as cefaleias tinham um carácter progressivo e ocorriam no despertar, com vómitos ocasionais (o nódulo mural com captação de contraste, assinalado por uma seta, sugere este diagnóstico)

Manifestações clínicas

Os tumores, independentemente do grau de malignidade e da rapidez de crescimento, produzem uma cefaleia progressiva que tende a ser diária. Nas crianças, não estando as suturas cranianas completamente encerradas, uma situação de hipertensão intracraniana pode levar a diastase das referidas suturas capaz de transitoriamente aliviar os sintomas. A cefaleia tem por vezes um agravamento nocturno, acorda a criança ou está presente no despertar, aliviando ao longo da manhã ou com um episódio de vómitos. Com efeito, como foi já referido, durante o sono a hipoventilação aumenta a pressão de CO2, a qual conduz a vasodilatação e a aumento da volémia intracraniana. Quando a criança vomita de manhã, e/ou se verifica hiperventilação, há consequente diminuição da pressão de CO2, aliviando a cefaleia.

Algumas crianças manifestam irritabilidade ou mesmo anomalias de comportamento mais complexas. Mais tarde, poderão surgir diplopia, estrabismo e ataxia do tronco ou hemiataxia.

Nos casos de cefaleia occipital, o risco de tumor é muito significativo.

O exame neurológico pode mostrar, além das alterações referidas, estase papilar, um dos componentes da tríade clássica apontando para hipertensão intracraniana (cefaleia, vómitos e a referida estase papilar).

Diagnóstico

A suspeita de hipertensão intracraniana implica o encaminhamento atempado da criança para um centro especializado de neurocirurgia.

O diagnóstico é facilmente acessível aos exames de imagem (TAC e RM). Para tumores como o meduloblastoma, com grau de malignidade maior e tendência para disseminação meníngea, é necessário proceder, na avaliação inicial, ao estudo imagiológico por RM de todo o neuroeixo (cerebral e medular).

Tratamento

A terapêutica destas lesões passa, em geral, por intervenção cirúrgica inicial. A terapêutica cirúrgica pode incluir, além da ressecção da lesão tumoral, um procedimento terapêutico para a hidrocefalia secundária (por exemplo uma drenagem ventricular externa). O prognóstico depende, entre outros factores, de se ter obtido, ou não, ressecção completa da lesão.

Hipertensão intracraniana idiopática

Definição

A hipertensão intracraniana idiopática (ou benigna/pseudo-tumor cerebri) é devida a um desequilíbrio entre os mecanismos de formação e de reabsorção do LCR, estando provavelmente implicado um defeito na reabsorção.

Manifestações clínicas

O quadro clínico típico é o de uma adolescente habitualmente obesa com um quadro mais ou menos arrastado de cefaleias com características clínicas de HIC. Muitos doentes referem que a cefaleia é occipital, irradia para a nuca e ouvem um ruído intracraniano. O exame neurológico pode mostrar somente estase papilar ou, adicionalmente, paralisia do VIº par uni ou bilateral.

Diagnóstico diferencial

Só se pode afirmar o diagnóstico de HIC idiopática mediante a realização de punção lombar com medição, em condições adequadas, da pressão intracraniana e após a exclusão de trombose venosa intracraniana, por RM e angio-RM (Figura 2). As causas secundárias, que deverão ser excluídas, são sintetizadas no Quadro 1.

FIGURA 2. Angio-RM – Trombose séptica do seio lateral direito (na imagem de angio-RM a seta branca assinala a ausência de visualização do seio lateral direito, sendo visíveis os seios longitudinal superior e o seio lateral direito; na imagem à direita estão assinaladas a veia jugular com «vazio» de sinal indicativo de fluxo, à esquerda, e um hipersinal devido a trombose à direita). Esta criança tinha uma mastoidite crónica e a trombose do seio lateral é uma complicação desta situação (trombose séptica): o quadro clínico consistiu em cefaleias progressivas no decurso de 2 a 3 semanas seguido de diplopia por paralisia do VIº par (uma complicação de hipertensão intracraniana).

QUADRO 1 – Causas de hipertensão intracraniana benigna secundária

1. Endocrinopatias
    • Doença de Addison
    • Doença de Cushing
    • Hipoparatiroidismo
2. Outras doenças sistémicas
    • Insuficiência renal crónica
    • Anemia carencial
3. Medicamentos
    • Vitamina A
    • Vitamina D
    • Corticosteróides
    • Tetraciclinas
    • Nitrofurantoína
    • Ácido nalidíxico
    • Tamoxifeno
    • Retinóides
    • Carbonato de lítio
    • Ciclosporina

Tratamento

O tratamento baseia-se inicialmente na realização de punções lombares, acompanhadas da administração de acetazolamida. Eventualmente pode ser necessária corticoterapia havendo que ter em conta, com esta última terapêutica, a maior probabilidade de recidiva. É necessário ter presente que a perda de visão pode ocorrer rapidamente numa situação de HIC crónica; por isso é conveniente encarar a cirurgia nos casos em que não há uma resposta pronta às terapêuticas referidas. A cirurgia mais recomendada actualmente é a fenestração da baínha dos nervos ópticos, embora esteja também a ser usada a derivação lomboperitoneal.

AGRADECIMENTOS

À Dr.ª Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologia – Hospital de Dona Estefânia) pela cedência das fotos das Figuras 1 e 2.

BIBLIOGRAFIA

Bigal ME, Arruda MA. Migraine in the pediatric population – evolving concepts. Headache 2010; 50: 1130 – 1143

Brandes JL, Kudrow D, Stark SR, et al. Sumatriptan-naproxen for acute treatment of migraine. JAMA 2007; 297: 1443-1454

Connelly MSekhon S. Current perspectives on the development and treatment of chronic daily headache in children and adolescents. Pain Manag 2019; 9:175-189. doi: 10.2217/pmt-2018-0057

Dooley JM, Pearlman EM. The clinical spectrum of migraine in children. Pediatr Ann 2010; 39: 408-415

Fenichel GM (ed). Clinical Pediatric Neurology. Philadelphia: Saunders, 2001

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hershey AD. Recent developments in pediatric headhache. Curr Opin Neurol 2010; 23: 249-253

Jong MC, Boers I, van Wietmarschen HA, et al. Hypnotherapy or transcendental meditation versus progressive muscle relaxation exercises in the treatment of children with primary headaches: a multi-centre, pragmatic, randomised clinical study. Eur J Pediatr 2019; 178: 147-154 

Kelly M, Strelzik J, Langdon R, DiSabella M. Pediatric headache: overview. Curr Opin Pediatr 2018; 30: 748-754

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lewis DW. Practice parameter: pharmacological treatment of migraine headache in children and adolescents. Neurology 2004; 63: 2215-2224

Lewis DW. Toward the definition of childhood migraine. Curr Opin Pediatr 2004; 16: 628-636

Li BUK. Cyclic vomiting syndrome: age-old syndrome and new insights. Semin Pediatr Neurol 2001; 8: 13-21

Meckler GD, Sheridan DC, Charlesworth CJ. Opioid prescribing practices for pediatric headache. J Pediatr 2019; 204: 240-244

Moro M, Málaga S, Madero L. Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Orr SL, Turner A, Kabbouche MA, et al. Predictors of short-term prognosis while in pediatric headache care: an observational study. Headache 2019; 59: 543-555. doi: 10.1111/head.13477

Rho YI, Chung HJ, Suh ES, et al. The role of neuroimaging in children and adolescents with recurrent headaches – multicenter study. Headache 2011; 51: 403 -408

Rothner AD. Complicated migraine and migraine variants. Semin Pediatr Neurol 2001; 8: 7-12

Sliberstein SD. Migraine. Lancet 2004; 363: 381-391

White CP Managing headache Paediatrics and Child Health 2019; 29:321-322

Winner P. Pediatric headache. Curr Opin Neurol 2008; 21: 316-322