Hipoglicémia na criança não diabética, após o período neonatal

Definição

A glicose é, por excelência, o substrato metabólico dos tecidos, representando o pilar da produção energética celular. Durante a gestação, ela é fornecida por via placentária, pelo que o seu limite sérico inferior ronda os 55 mg/dL. Contudo, nas primeiras horas após o nascimento, no recém-nascido saudável e com peso adequado à idade gestacional, a glicémia pode variar entre 25 mg/dL e 110 mg/dL. Pelas 72 horas de vida, os valores normais em jejum são já sobreponíveis aos do lactente, da criança e do adulto, ou seja, entre 60 mg/dL e 99 mg/dL. Uma vez concluída esta fase de transição, os mecanismos de homeostasia da glicose passam a ser semelhantes ao longo da vida, sendo as únicas diferenças a sua maior taxa de utilização por parte do organismo em crescimento, e um maior risco de sequelas neurocognitivas secundárias à hipoglicémia num sistema nervoso em desenvolvimento.

O intervalo de normoglicémia é mantido por factores que controlam, quer a produção de glicose, quer a sua utilização, pelo que qualquer estado patológico que comprometa este equilíbrio pode desencadear hipoglicémia. As hormonas responsáveis por esta estreita regulação incluem a insulina, o glucagom, a adrenalina, a noradrenalina, o cortisol e a hormona de crescimento.

Apesar de a hipoglicémia ser um fenómeno frequente, em rigor, não é possível definir um valor de corte abaixo do qual esta possa ser estipulada. Na verdade, a hipoglicémia é definida como a concentração plasmática abaixo da qual o indivíduo apresenta sintomas resultantes do fornecimento inadequado deste substrato aos tecidos-alvo, nomeadamente ao sistema nervoso central (SNC). Desta forma, deve ser considerada como um contínuo e os valores plasmáticos devem ser interpretados no contexto clínico e tendo em conta a activação das respostas hormonais de contrarregulação e os respectivos metabólitos intermediários. Classicamente, é caracterizada pela tríade de Whipple: 1. sinais e sintomas consistentes com hipoglicémia; 2. baixa concentração plasmática de glicose; 3. resolução clínica após aumento da glicémia.

As respostas de defesa autonómica e hormonal são desencadeadas quando a glicémia atinge valores entre 69 mg/dL e 55 mg/dL, ocorrendo manifestações major de neuroglicopénia abaixo de 50 mg/dL. Assim, glicémias inferiores a 55 mg/dL constituem uma emergência médica e requerem reversão imediata, sendo comummente aceite um objectivo terapêutico entre 70 mg/dL e 110 mg/dL. No caso de não ser reconhecida e tratada atempadamente, a hipoglicémia pode ter consequências neurológicas graves, particularmente no lactente e na criança pequena. É ainda de extrema importância diagnosticar a etiologia subjacente, de forma a prevenir episódios recorrentes, diminuindo o risco de morbimortalidade associado.

Homeostase

Apesar dos ciclos frequentes de estado pré e pós-prandial, no lactente, na criança e no adulto, os valores de glicémia em jejum normais são mantidos entre 60 mg/dL e 99 mg/dL.

A insulina tem um papel central na regulação da produção e utilização da glicose durante todo este ciclo. A glicémia plasmática começa a aumentar cerca de 15 minutos após a refeição. Este incremento, associado ao estímulo dos eixos neurogénico e êntero-insular (através do peptídeo inibidor gástrico – GIP – e do peptídeo semelhante ao glucagom 1 – GLP1), estimula a produção de insulina pelas células ß pancreáticas. A glicémia atinge um pico 30 a 60 minutos após a ingestão, iniciando a sua descida até um nadir cerca de 4 a 6 horas depois, e seguindo um padrão temporal sobreponível ao da concentração plasmática de insulina.

 Após a refeição, as respostas da insulina e do glucagom vão determinar a magnitude da supressão da produção hepática de glicose. Esta produção endógena pode ser reduzida até 50 a 60%, traduzindo-se pela libertação de cerca de menos 25 g de glicose na corrente sanguínea. Por outro lado, durante este período, também a glicogenólise, a gliconeogénese, a lipólise e a cetogénese estão suprimidas. Os principais tecidos responsáveis pela remoção da glicose da corrente sanguínea são o fígado, o SNC, os músculos, o intestino delgado e o tecido adiposo. A concentração de insulina plasmática determina a extensão da utilização da glicose por parte dos tecidos, com a excepção do SNC. Neste, a utilização depende exclusivamente da sua concentração plasmática.

O estado de pós-absorção contempla o intervalo de 4 a 6 horas após a ingestão. Durante este período é atingido um equilíbrio em que a glicémia é mantida num intervalo normal, uma vez que a produção de glicose iguala o seu consumo, estimando-se que este turnover seja de aproximadamente 4 a 6 mg/kg/min. Neste estado, 80% da utilização de glicose é insulino-independente, especialmente por parte do SNC (50% do total), do rim, do intestino e dos eritrócitos. No decurso desta fase, a interacção entre a insulina e as hormonas da contrarregulação mantém estável a concentração de glicose.

A libertação de glicogénio hepático é controlada pelo glucagom, enquanto a insulina limita os efeitos desta hormona, ao prevenir a lipólise e a proteólise. Outras hormonas da contrarregulação, nomeadamente o cortisol e a hormona do crescimento, têm ainda um papel na sensibilidade dos tecidos periféricos ao glucagom e à insulina (Quadro 1).

QUADRO 1 – Resposta fisiológica à diminuição da glicémia

(Adaptado de Cryer PE, Williams Textbook of Endocrinology 2016)
Glicémia (mg/dL)RespostaGlicogenóliseGliconeogéneseLipóliseCetogénese
80 a 85↓ Insulina
65 a 70↑ Glucagom
↑ Adrenalina
↑ Cortisol  
↑ Hormona de Crescimento  
50 a 55Clínica neuroglicopénica 
< 50Diminuição do nível de consciência 

À medida que o período de jejum se prolonga, os tecidos diminuem a utilização da glicose, aumentando a de ácidos gordos livres e de corpos cetónicos. Nesta fase, há uma redução da libertação de glicose hepática, com inibição da glicogenólise e estímulo da gliconeogénese. Este aumento é explicado pela secreção de glucagom e de cortisol, aliado à redução da produção de insulina, os quais promovem a conversão dos depósitos lipídicos em glicerol e ácidos gordos livres, bem como a degradação das proteínas em aminoácidos. Os ácidos gordos são então transportados até ao fígado, local onde sofrem ß-oxidação mitocondrial, ou onde são re-esterificados em triacilgliceróis e fosfolípidos. A ß-oxidação gera acetil-coenzima A, que pode ser transformada em corpos cetónicos (acetoacetato e ß-hidroxibutirato), ou sofrer oxidação no ciclo de Krebs.

Após um período de jejum nocturno, os principais precursores gliconeogénicos são o lactato, o glicerol e a alanina. Na gliconeogénese, a primeira reacção converte o piruvato em oxaloacetato, e este, em fosfoenolpiruvato. O passo limitante de todo o processo consiste na conversão da frutose 1,6-bifosfato em frutose 6-fosfato. Por fim, esta é transformada em glicose livre, que pode ser então utilizada.

Ao contrário do que acontece nos adultos, nas crianças pequenas o glicogénio armazenado é suficiente apenas para as primeiras 8 a 12 horas de jejum, após as quais a gliconeogénese é a responsável pela manutenção de valores glicémicos normais. Este é o principal motivo pelo qual não toleram períodos prolongados sem comerem. Na criança pequena, proporcionalmente, o encéfalo é muito maior que o do adulto, pelo que a taxa de produção de glicose tem necessariamente que ser mais elevada de forma a responder a esta maior necessidade metabólica. Por outro lado, o adulto tem uma melhor capacidade de adaptação neurológica à utilização dos corpos cetónicos. Este é também o motivo pelo qual a criança é mais vulnerável à hipoglicémia e com consequências neurológicas mais graves.

À medida que o período de jejum se torna ainda mais prolongado, as necessidades energéticas musculares e dos restantes tecidos são progressivamente supridas pelos ácidos gordos livres e pelos corpos cetónicos. No fígado, a oxidação dos ácidos gordos gera corpos cetónicos, que são transportados para os tecidos periféricos como substrato energético alternativo. Para além da glicose e dos corpos cetónicos, o encéfalo não utiliza qualquer outro substrato. Assim, à medida que o jejum se prolonga, de forma a satisfazer as suas elevadas necessidades energéticas, estes metabólitos vão substituindo a glicose como combustível celular neuronal predominante.

Manifestações clínicas

Como explicado previamente, quando a glicémia atinge valores abaixo do limite fisiológico do indivíduo, é desencadeada uma resposta hormonal contrarreguladora. Porém, se esta for ineficaz e a glicémia continuar a diminuir, ocorre um estímulo simpático-adrenérgico (Quadro 1). Por este motivo, as primeiras manifestações clínicas são de natureza autonómica, nomeadamente: ansiedade, astenia, palidez, sudorese, tremor, taquicárdia, taquipneia, náuseas e/ou vómitos. Na criança mais velha e no adulto, ocorre concomitantemente uma resposta comportamental no sentido de procura de alimento. É importante salientar ainda que alguns fármacos, como os bloqueadores ß, e algumas substâncias, nomeadamente a cafeína e a teína, podem, respectivamente, diminuir ou amplificar estas respostas.

No caso de agravamento da hipoglicémia (< 50 mg/dL), surgem então sinais e sintomas de neuroglicopénia, designadamente: irritabilidade, hipotonia, cefaleias, confusão, discurso arrastado, alterações cognitivas e eventualmente, convulsão, coma ou mesmo morte. Nesta fase, os corpos cetónicos constituem o principal substrato energético neuronal, cruzando a barreira hematoencefálica através do transportador de monocarboxilatos 1 (MCT1). Este encontra-se sobre-expresso em indivíduos com cetonémia crónica, motivo pelo qual o jejum repetido e a dieta cetogénica se associam a menor intensidade de sintomas e sinais de neuroglicopénia.

O limiar de resposta neuroendócrina à hipoglicémia varia, não só com a idade e o sexo, mas também com o exercício, o sono e o estado nutricional. Contudo, as diferenças mais significativas decorrem da existência de episódios prévios de hipo ou hiperglicémia. De facto, hipoglicémias prolongadas ou recorrentes podem diminuir de tal forma o limiar de activação da resposta autonómica, que apenas a clínica neuroglicopénica se encontra presente perante uma situação grave, condição designada por insuficiência autonómica associada à hipoglicémia (HAAF). Esta situação preocupante é mais frequente, não só na diabetes insulinodependente, mas também nos doentes com hiperinsulinismo. No extremo oposto, na hiperglicémia crónica o limiar para a resposta contrarreguladora à hipoglicémia é mais elevado.

Diagnóstico diferencial

A hipoglicémia pode dever-se à diminuição da ingestão de glicose (ex. gastrenterite, anorexia), ao aumento da sua utilização (ex. sépsis, hipotermia, exercício intenso, hiperinsulinismo), à diminuição da sua produção endógena (ex.: erros inatos do metabolismo, insuficiência hepática, insuficiência adrenal, défice de hormona do crescimento), ou ser secundária a intoxicação ou a fármacos (ex.: álcool, sulfonilureias, insulina, bloqueadores-ß) (Quadro 2).

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial de hipoglicémia na criança não diabética

Hipoglicémia Cetótica Idiopática
    • Hipoglicémia Hiperinsulinémica
      • Hiperinsulinismo congénito
      • Insulinoma
      • Síndroma de Dumping
      • Síndroma de Beckwith-Wiedemann
      • Defeitos da glicosilação (CDG I-a, I-b, I-c)
    • Insuficiência Adrenal
      • Insuficiência adrenal primária
      • Supressão de corticóides exógenos
      • Hipopituitarismo
    • Défice ou Resistência à Hormona do Crescimento
      • Hipopituitarismo
      • Deficiência isolada de hormona do crescimento
      • Resistência à hormona do crescimento
    • Glicogenoses
      • Deficiência da síntese do glicogénio (GSD 0)
      • Doenças do armazenamento do glicogénio (GSD I, III, IV, VI, IX)
      • Síndroma de Fanconi-Bickel (GSD XI)
    • Defeitos da Gliconeogénese
      • Deficiência da piruvato carboxilase
      • Deficiência da fosfoenolpiruvato carboxicinase
      • Deficiência de frutose 1,6-bifosfatase
      • Deficiência de glucose 6-fosfatase (GSD I)
    • Intolerância Hereditária à Frutose
    • Defeitos da Oxidação dos Ácidos Gordos
      • Deficiência primária de carnitina
      • Defeitos do ciclo da carnitina
      • Deficiências das Acil-CoA desidrogenases
    • Defeitos da Cetogénese
      • Deficiências da HMG-CoA sintase ou da HMG-CoA liase
    • Defeitos do Metabolismo dos Aminoácidos ou dos Ácidos Orgânicos
    • Defeitos da Cadeia Respiratória Mitocondrial
    • Doença Hepática
    • Infecções (gastrenterite, septicémia, malária)
    • Tóxicos/Fármacos (álcool, insulina, sulfonilureias, bloqueadores-ß, paracetamol, salicilatos)

Hipoglicémia cetótica idiopática

A hipoglicémia cetótica idiopática é um diagnóstico de exclusão, constituindo a causa mais frequente de hipoglicémia no não diabético. Pensa-se que em tal situação as crianças representem a cauda inferior da distribuição gaussiana da tolerância ao jejum, podendo ter polimorfismos ou deficiências parciais das enzimas envolvidas na homeostasia da glicose. A produção hepática de glicose está diminuída, possivelmente pela diminuição do abastecimento de alanina, um dos principais precursores da gliconeogénese.

Tipicamente, ocorre entre os 18 meses e os 7 anos, sendo precipitada por um jejum prolongado no contexto de um episódio agudo intercorrente, por exemplo gastrenterite. Apesar de algumas crianças terem episódios de hipoglicémia suficientemente graves para desencadearem convulsões, nestes casos as sequelas neurológicas são muito raras e o neurodesenvolvimento habitualmente é normal. A hipoglicémia pode ser evitada por refeições regulares, assegurando que não ocorrem períodos de jejum superiores a 12 horas. Com o passar do tempo, verifica-se resolução espontânea, sendo rara após a puberdade.

Causas endócrinas

Hipoglicémia hiperinsulinémica

No decurso de um episódio de hipoglicémia, uma das primeiras respostas do organismo é a suspensão da produção de insulina, pelo que a sua detecção no plasma, mesmo que em pequena quantidade, é considerada anormal.

O hiperinsulinismo congénito é a causa mais frequente de hiperinsulinismo. A sua apresentação ocorre no período neonatal ou nos primeiros meses de vida, durante uma intercorrência que impõe um aumento da necessidade da glicose a que, por desregulação da produção de insulina, o organismo não consegue responder. A incidência global é de cerca de 1:30.000 a 1:50.000 nados-vivos, aumentando para aproximadamente 1:2.500 nados-vivos na Península Arábica. Na sua origem estão identificadas cinco mutações: no receptor 1 das sulfonilureias (SUR-1), no Kir6.2, na glucocinase, na desidrogenase do glutamato (GDH) e na desidrogenase da 3-hidroxiacil-CoA de cadeia curta (SCHAD). Estas mutações traduzem-se por fenótipos muito variáveis: enquanto uns indivíduos apresentam hipoglicémia ligeira durante o jejum e respondendo bem à medicação, outros apresentam hipoglicémia grave e refractária à terapêutica farmacológica.

Nas células ß pancreáticas, o SUR-1 e o Kir6.2 são essenciais para a actividade dos canais de potássio sensíveis ao ATP (KATP), sendo a perda da sua função a causa mais frequente de hiperinsulinismo congénito. Na sua origem estão mutações dos genes ABCC8 e KCNJ11 presentes no cromossoma 11p15. Geralmente são herdadas de forma autossómica recessiva, com aumento pancreático difuso das células ß. Esta é a forma mais grave da doença, que habitualmente não responde a terapêutica médica, necessitando de pancreatectomia. Estão ainda descritos casos esporádicos provocados por mutação homozigótica paterna, com perda dos alelos maternos. Nestas situações, a tomografia de emissão de positrões (PET) com 18F-fluro-L-di-hidroxifenilalanina (18F-DOPA) revela frequentemente uma lesão focal solitária.

Na mutação da SCHAD (também autossómica recessiva), a hipoglicémia hiperinsulinémica está associada a defeitos da oxidação dos ácidos gordos, pelo que estes doentes apresentam aumento dos níveis de 3-hidroxibutiril-carnitina plasmática e de 3-hidroxiglutarato urinário. A causa exacta desta desregulação ainda não está bem esclarecida, sendo a sua apresentação clínica variável e com boa resposta ao diazóxido.

Outras mutações mais frequentemente associadas a hiperglicémia (nomeadamente a Maturity Onset Diabetes of the Young – MODY) também podem provocar hiperinsulinismo transitório, como é o caso dos factores hepatocitários nucleares 4-alfa (HNF4α) e 1-alfa (HNF1α). Por outro lado, mutações activadoras da desidrogenase do glutamato provocam não só aumento da produção de insulina, mas também hiperamoniémia, cuja apresentação é mais tardia e com clínica ligeira.

 Necessidades de glicose intravenosas superiores a 8 mg/kg/minuto são muito sugestivas de hiperinsulinismo, podendo mesmo ser necessárias perfusões superiores a 20 mg/kg/min. Concomitantemente, deverá tirar-se partido da alimentação entérica, rica em hidratos de carbono. Uma vez estabilizada a glicémia, o tratamento farmacológico de primeira linha é o diazóxido oral (5 mg/kg/dia, em 3 doses; se necessário, com incrementos de 5 mg/kg/dia a cada 4 dias, até um máximo de 20 mg/kg/dia) em combinação com hidroclorotiazida oral (7-10 mg/kg/dia, em 2 doses). Doses de diazóxido mais elevadas, além da demonstração de não eficácia, provocam efeitos colaterais significativos, nomeadamente hipertensão arterial e hipertricose. Se este regime não for suficiente para manter a glicémia acima de 70 mg/dL, será necessário iniciar tratamento com octreótido (5 µg/Kg/dia em perfusão sc contínua; se necessário, com incrementos de 5 µg/Kg/dia a cada 3-4 dias, até um máximo de 35 µg/Kg/dia) e/ou glucagom (1-10 µg/Kg/h em perfusão iv contínua, ou 0,02 mg/kg/dose iv em SOS). Nos casos refractários à terapêutica farmacológica, a intervenção cirúrgica é inevitável, sendo curativa na remoção das situações focais. Porém, no hiperinsulinismo difuso a abordagem é mais complexa, podendo requerer uma pancreatectomia de cerca de 95% do órgão com subsequentes défices enzimáticos e desenvolvimento de diabetes mellitus insulinodependente.

Na criança mais velha com hipoglicémia hiperinsulinémica, deve ser considerada a possibilidade da presença de insulinoma. Este pode ser uma entidade isolada, ou parte integrante da síndroma neoplásica endócrina múltipla tipo I (MEN I).

A síndroma de dumping ocorre após gastrectomia que, ao condicionar uma rápida entrada de hidratos de carbono no intestino delgado, provoca uma secreção excessiva de insulina, quer directamente, quer de forma indirecta através da activação de incretinas. Nos doentes com resistência à insulina, antes do desenvolvimento de hiperglicémia franca, podem ser segregadas grandes quantidades desta hormona após refeições ricas em hidratos de carbono, condicionando também episódios de hipoglicémia pós-prandial.

Até 50% dos doentes com síndroma de Beckwith-Wiedemann, assim como alguns defeitos da glicosilação (I-a, I-b e I-c), apresentam excesso de produção de insulina. A fisiopatologia do hiperinsulinismo ainda não está bem esclarecida, sendo o grau de hipoglicémia muito variável. Esta pode responder ao tratamento conservador, mas nalguns casos pode ser necessária pancreatectomia.

A hipoglicémica hiperinsulinémica também pode ser provocada pela administração de insulina. Esta situação distingue-se do aumento da produção endógena através da determinação do péptido-C plasmático, o qual se encontra anormalmente baixo perante insulinémia elevada.

Insuficiência adrenal

Como explicado previamente, o cortisol tem um papel importante na normalização glicémica, em situações de jejum e de estresse, através da estimulação da gliconeogénese e da libertação de adrenalina pela medula suprarrenal. Por outro lado, a sua deficiência amplifica a sensibilidade à insulina, com risco acrescido de hipoglicémia. A insuficiência adrenal pode ocorrer em qualquer idade, podendo ser originada por uma patologia que condicione disfunção primária da suprarrenal, por supressão da glândula secundária a corticóides, ou por insuficiência pituitária.

A doença de Addison é um processo auto-imune no qual o córtex suprarrenal é destruído por autoanticorpos, conduzindo à deficiência de gluco e mineralocorticóides, pelo que os doentes afectados podem apresentar hipoglicémia no contexto de doenças agudas intercorrentes. Tal afecção caracteriza-se por hiperpigmentação cutânea secundária à hiperestimulação dos melanócitos pelos elevados níveis de hormona adrenocorticotrópica (ACTH), que é produzida pela hipófise numa tentativa de estimular a produção de cortisol. Frequentemente, existe também hiponatrémia associada a hipercaliémia, apesar de a primeira poder surgir de forma isolada numa fase inicial da doença. Pode ainda haver associação a outras doenças auto-imunes como a diabetes mellitus tipo 1, o hipotiroidismo auto-imune, a doença celíaca ou a síndroma de poliendocrinopatia – candidíase – distrofia ectodérmica auto-imune (APECED). Esta última, herdada de forma autossómica recessiva, deve ser suspeitada na presença de dois dos três componentes cardinais: insuficiência adrenal auto-imune, hipoparatiroidismo auto-imune e candidíase. O diagnóstico é confirmado pela mutação do gene AIRE.

Outra causa de insuficiência adrenal é a síndroma de Allgrove ou síndroma dos três “a”: alacrimia, acalásia e insuficiência adrenal. Esta entidade é secundária a resistência à ACTH, apresentando disfunção autonómica e clínica neurológica progressivas. Com origem na mutação do gene ALADIN localizado no cromossoma 12q, é transmitida de forma autossómica dominante.

Em rapazes com insuficiência adrenal torna-se obrigatório excluir adrenoleucodistrofia, uma condição recessiva ligada ao cromossoma X, associada a níveis elevados de ácidos gordos de cadeia muito longa na urina. A insuficiência adrenal pode ser a primeira manifestação desta patologia, seguida de leucodistrofia do SNC, com deterioração neurológica progressiva.

Existe ainda uma forma muito mais rara, autossómica recessiva, que surge em idade mais precoce e com apresentação mais grave. A adrenomieloneuropatia é outra variação desta condição, com insuficiência adrenal na segunda infância e adolescência, seguida de alterações neurológicas 10 a 15 anos mais tarde. O óleo de Lorenzo não se mostrou eficaz na alteração do curso da doença, sendo o transplante de medula óssea o único tratamento capaz de prevenir a progressão da deterioração neurológica.

Outras causas raras de insuficiência adrenal congénita, com apresentação após o período neonatal, incluem a deficiência familiar de glucocorticóides (por resistência à ACTH) e a síndroma de Wolman (por deficiência da lípase ácida lisossómica). A hipoplasia congénita da suprarrenal habitualmente tem apresentação no recém-nascido, apesar de em alguns casos se tornar aparente apenas alguns meses mais tarde.

A disrupção do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal é também causa de insuficiência adrenal. Este défice de ACTH pode ser secundário a hipopituitarismo congénito, ou adquirido após tumores (como o craniofaringeoma), irradiação, traumatismos, ou infecções do SNC. O uso continuado de corticóides (incluindo os inalados) pode estar também na origem da supressão da ACTH hipofisária.

Défice de hormona do crescimento

À semelhança do cortisol, também a acção da hormona do crescimento (HC ou GH) tem maior importância durante o período de jejum prolongado, diminuindo a sensibilidade à insulina e a utilização da glicose, e estimulando a lipólise.

Recém-nascidos e pequenos lactentes com défice de HC podem apresentar hipoglicémia recorrente, com predomínio no início da manhã. Porém, o crescimento não é afectado antes do 1 ano de vida. Características importantes a ter em consideração na história clínica incluem a presença de: defeitos da linha média, micropénis e icterícia neonatal. Paralelamente ao que acontece com o défice de ACTH, o défice de HC pode ser isolado ou em contexto de hipopituitarismo, bem como congénito ou decorrente de agressão do SNC. Os doentes apresentam níveis séricos de IGF-1 inferiores ao normal para a idade e, por vezes, alterações evidenciadas através de ressonância magnética da sela turca. O diagnóstico deve ser confirmado através de provas de estimulação da HC.

Doenças hereditárias do metabolismo
Glicogenoses

As glicogenoses (GSD) são um conjunto de afecções caracterizadas essencialmente por defeitos enzimáticos que comprometem a síntese ou a degradação do glicogénio, com subsequente incapacidade de fornecimento de glicose em caso de necessidade.

Algumas atingem o fígado, o músculo e o coração, enquanto outras são específicas de órgão. A hipoglicémia ocorre na maioria das glicogenoses hepáticas, frequentemente acompanhada de hepatomegália. O diagnóstico é confirmado por estudo genético ou por estudo enzimático através de biópsias. Na maioria dos casos, o tratamento consiste na prevenção da hipoglicémia através de alimentação entérica contínua/cíclica e de amido de milho cru. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Glicogenoses associadas a hipoglicémia

(Adaptado de Langdon DR et al, Pediatric Endocrinology 2014)
GSD TIPOSEnzimasGeneHerançaFrequência
da hipoglicémia
Gravidade da
hipoglicémia em jejum
0Glicogénio sintetaseGYS2 (12p12.2)

AR

Pouco frequenteLigeira
IaGlicose 6-fosfataseG6PC (17q21)FrequenteGrave
IbGlicose 6-fosfatase translocaseSLC37A4 (11q23)RaraGrave
IIIaAmilo-1,6-glucosidase hepática e muscular

AGL (1p21)

FrequenteLigeira a moderada
IIIbAmilo-1,6-glucosidase hepáticaRaraLigeira a moderada
IVEnzima ramificadoraGBE (3p12.2)Pouco frequenteNa insuficiência hepática avançada
VIGlicogénio fosforilasePYGL (14q22.2)Pouco frequenteLigeira
IXaSubunidade α da cinase da fosforilasePHKA2 (Xp22.13)Ligada ao XFrequenteLigeira a moderada
IXbSubunidade ß da cinase da fosforilasePHKB (16q12.1)

AR

RaraLigeira a moderada
IXcSubunidade γ da cinase da fosforilasePHKG2 (16p11.2)RaraLigeira
XITransportador 2 da glicoseGLUT2 (3q26.2)RaraLigeira

A GSD mais grave e com maior associação a hipoglicémia é a do tipo I ou doença de von Gierke. Sendo causada pela deficiência de glicose-6-fosfatase, impede a transformação da glicose-6-fosfato em glicose, a qual não pode ser libertada para a corrente sanguínea. Assim, o glicogénio acumula-se de forma contínua provocando hepatomegália maciça. Apesar de ser classificada como glicogenose, esta entidade é, primariamente, um defeito da gliconeogénese. Por este motivo, para além de hipoglicémia, estes doentes apresentam acidose láctica, hipertrigliceridémia e hiperuricémia.

A deficiência da amilo-1,6-glicosidase é responsável pela GSD tipo III ou doença de Cori-Forbes, com atingimento hepático e muscular secundariamente à incapacidade de desramificação do glicogénio. A sintomatologia traduz-se por hepatomegália franca (com aumento das transaminases) e baixa estatura, por vezes associadas a miopatia e cardiomiopatia graves. Contrariamente à GSD I, a hipoglicémia é menos frequente e menos grave, melhorando substancialmente após a puberdade. Por outro lado, uma vez que a gliconeogénese não é afectada, a acidose láctica, a hiperuricémia e a hipertrigliceridémia estão ausentes.

A GSD tipo IV ou doença de Andersen deve-se a uma deficiência da enzima ramificadora do glicogénio. Neste caso, a glicogenólise e a gliconeogénese não são afectadas, pelo que a hipoglicémia é rara na infância. Contudo, uma vez que ocorre lesão hepática progressiva, ela passa a ser mais frequente nos estádios avançados da doença.

A fosforilase é a enzima-chave da glicogenólise, necessitando de ser activada pela sua cinase, que é constituída por 4 subunidades. A deficiência da primeira enzima causa GSD tipo VI ou doença de Hers, enquanto a da segunda é responsável pela GSD tipo IX ou doença de Hug-Huijing. Ambas as condições têm manifestações semelhantes, com hepatomegália e aumento das transaminases secundárias à deposição de glicogénio. Existe ainda algum grau de restrição de crescimento, hipotonia e fraqueza muscular. A hipoglicémia é ligeira a moderada e associada a hipertrigliceridémia. A acidose láctica e a hiperuricémia estão ausentes. Em grande parte dos doentes, a clínica melhora após a puberdade, mas nalguns casos pode persistir miopatia, cardiomiopatia e acidose tubular renal.

A GSD tipo 0 é provocada pela deficiência de glicogénio-sintetase, pelo que não origina hepatomegália. Nestes casos, enquanto o jejum provoca hipoglicémia cetótica, após as refeições ocorre hiperglicémia com lactacidémia.

A síndroma de Fanconi-Bieckel ou GSD tipo XI é causada por mutações do gene GLUT2, que codifica o principal transportador de glicose da membrana celular do hepatócito. O movimento da glicose é essencial à sua homeostasia, pelo que defeitos do GLUT2 originam acumulação hepática de glicogénio com hepatomegália, bem como hiperglicémia pós-prandial e hipoglicémia de jejum. Esta última, acompanhada de cetose, resulta não só da diminuição do transporte do fígado para o sangue, mas também do excesso de perda urinária por diminuição da reabsorção no túbulo renal proximal. A fosfatúria que acompanha esta glicosúria pode ser suficientemente grave para provocar raquitismo hipofosfatémico, com subsequente hipocrescimento.

Defeitos da gliconeogénese

Com o prolongamento do jejum por mais de 12 a 16 horas, e já sem reservas de glicogénio hepático, a glicémia é reposta recorrendo à gliconeogénese. A alanina, o lactato e o glicerol são os principais substratos utilizados. A hipoglicémia recorrente e a acidose láctica são elementos comuns à deficiência das quatro enzimas da gliconeogénese, podendo ou não ser acompanhadas de cetose. Apenas o fígado e o rim possuem todas estas enzimas: o miocárdio e o tecido adiposo não apresentam frutose 1,6-bifosfatase, enquanto a glicose 6-fosfatase está ausente no músculo esquelético. A hipoglicémia grave e a hepatomegália são mais frequentes nos defeitos enzimáticos mais próximos da regeneração da glicose (frutose 1,6-bifosfatase e glicose 6-fosfatase), enquanto os que se encontram adjacentes ao ciclo de Krebs (piruvato carboxilase e fosfoenolpiruvato carboxicinase) estão mais associados a acidose láctica e a um processo neurodegenerativo progressivo. A apresentação, em regra, decorre no período neonatal.

Intolerância hereditária à frutose

Crianças com intolerância hereditária à frutose são assintomáticas até que esta seja introduzida na dieta. A deficiência de frutose-1,6 bifosfatase aldolase é herdada de forma autossómica recessiva, desencadeando hipoglicémia e dor abdominal sempre que é ingerida frutose. A sua evicção reverte automaticamente a situação, enquanto a sua persistência pode originar lesão hepática e renal, associadas a má evolução estaturoponderal.

Defeitos da oxidação dos ácidos gordos

A deficiência primária de carnitina é herdada de forma autossómica recessiva, provocando primariamente, como todos os defeitos da oxidação dos ácidos gordos e da cetogénese, hipoglicémia hipocetótica. Clinicamente, os doentes apresentam miopatia esquelética e/ou cardiomiopatia. A diminuição dos níveis plasmáticos de carnitina, particularmente durante episódios de hipoglicémia, deve levantar suspeita desta condição. Esta pode ser confirmada pela medição do transporte de carnitina nos fibroblastos (habitualmente inferior a 5% do normal).

O transporte da carnitina para a mitocôndria é realizado pelas carnitina palmitoiltransferase 1 (CPT1) e 2 (CPT2). A deficiência da primeira origina, não só hipoglicémia hipocetótica, mas também hepatomegália com aumento das transaminases, acidose tubular renal e miopatia, com elevação da creatinina-cinase. Existe ainda uma forma de apresentação mais grave, nos primeiros dias de vida, associada a convulsões e cardiomiopatia. O diagnóstico é confirmado pelo aumento dos ácidos dicarboxílicos de cadeia entre C6 e C10. A deficiência da CPT2 origina dois fenótipos:

– a forma benigna, na idade adulta, com início de rabdomiólise após exercício prolongado; – a forma grave, nos primeiros meses de vida, com envolvimento cardíaco e morte súbita antes do ano de idade. Tanto no défice primário como nas alterações do transporte, o tratamento consiste na evicção do jejum prolongado, tendo por base uma dieta pobre em gordura e enriquecida com triglicéridos de cadeia média e carnitina.

A deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia média, herdada de forma autossómica recessiva, é o defeito mais frequente da oxidação mitocondrial dos ácidos gordos. A clínica surge habitualmente entre os 3 meses e os 3 anos, com hipoglicémia hipocetótica durante episódios de doença. Em caso de hipoglicémia grave, podem ocorrer convulsões com morbilidade a longo-prazo ou mesmo morte súbita. Com o avançar da idade e o aumento da tolerância ao jejum, os episódios de hipoglicémia tendem a melhorar. O diagnóstico é feito pela detecção urinária de octanoilcarnitina, fenilpropionilglicina e haxanoilglicina.

A acumulação de acilcarnitinas secundária à deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia muito longa pode desencadear acidose láctica neonatal grave, cardiomiopatia e hepatopatia, de forma similar ao que acontece nos defeitos da cadeia respiratória mitocondrial. Variantes menos graves têm apresentação na adolescência, com atingimento dos músculos cardíaco e esquelético (com rabdomiólise, dor e fraqueza crónica).

Defeitos do metabolismo dos aminoácidos

A maioria das acidémias orgânicas que cursam com hipoglicémia (nomeadamente, a acidémia propiónica, e a doença urinária do xarope de ácer ou a acidúria 3-hidroxi-3-metilglutárica) tem apresentação no período neonatal. Contudo, nalgumas crianças com fenótipo menos grave, a clínica surge mais tarde, já com vários meses de vida. Ao contrário dos defeitos da oxidação dos ácidos gordos, estas alterações cursam com hipoglicémia hipercetótica, a qual se associa a outras manifestações como odores característicos, atraso de neurodesenvolvimento, hipotonia e acidose metabólica.

Exames complementares

Dada a enorme variedade de situações que podem desencadear hipoglicémia, tal circunstância gera habitualmente um verdadeiro desafio diagnóstico. Na verdade, em muitas crianças, mesmo após investigação clínica e laboratorial exaustiva, a etiologia não é identificada.

Uma necessidade de glicose superior a 8 mg/kg/min para manter a normoglicémia é, como foi referido antes, muito sugestiva de hiperinsulinismo. Outra informação valiosa a ter em consideração na anamnese é o tempo de jejum decorrido. Um episódio de hipoglicémia poucas horas após uma refeição aponta para excesso de insulina, apesar de tal facto também poder ocorrer em defeitos mitocondriais, ou após ingestão de frutose no doente com intolerância a esta pentose. Na glicogenose tipo I os episódios ocorrem após um breve período de jejum (1,5-4h), quando a glicose proveniente da dieta já foi consumida. Noutras doenças hereditárias do metabolismo, a hipoglicémia habitualmente tem lugar mais tardiamente: 4 a 12h noutras glicogenoses, 8 a 16h nos distúrbios da gliconeogénese, e após 10h nos defeitos da oxidação dos ácidos gordos.

Nalguns casos o exame objetivo leva à suspeita do diagnóstico: a hiperpigmentação pode ser sinal de insuficiência adrenal, enquanto a hepatomegália pode indicar glicogenose. Nos defeitos da oxidação dos ácidos gordos ou da gliconeogénese, o fígado está aumentado no episódio agudo, retornando ao normal posteriormente. A miopatia e a cardiomiopatia estão também presentes nalgumas DHM.

Todavia, na grande maioria dos doentes, o diagnóstico depende da investigação laboratorial (Quadro 4). As amostras de sangue, se possível, devem ser colhidas durante o episódio e antes da correcção da hipoglicémia (amostra crítica), mas sem atrasarem o tratamento. No caso de o volume de sangue ser limitado, deverão ser privilegiadas as determinações da glicose e da insulina. Por outro lado, os corpos cetónicos e os ácidos orgânicos deverão ser medidos na primeira urina após a correcção.

QUADRO 4 – Investigação laboratorial dos episódios de hipoglicémia

Se possível, deverá ser congelada parte da amostra de sangue e de urina para eventual investigação futura.
(Adaptado de Ghosh A et al, Arch Dis Child 2016)
    • Plasma (antes da correcção da hipoglicémia)
      • Glicose
      • Insulina e péptido-C
      • Gasometria com lactato
      • ß-hidroxibutirato
      • Ácidos gordos livres
      • Cortisol
      • Hormona de crescimento
    • Plasma (antes ou após correção da hipoglicémia)
      • Acilcarnitinas (plasma ou cartão)
      • Aminoácidos
      • Amónia
      • Ureia e electrólitos
      • Provas de função hepática
    • Urina (primeira amostra após o episódio de hipoglicémia)
      • Corpos cetónicos
      • Ácidos orgânicos

Os glucómetros portáteis, habitualmente utilizados no controlo da diabetes mellitus, servem como método de rastreio para a determinação da glicémia e da cetonémia. Contudo, uma vez que os dispositivos existentes no mercado não são suficientemente precisos no diagnóstico de valores de glicémia inferiores a 60 mg/dL, é sempre necessária confirmação laboratorial. A concentração da glicose no sangue total é 10-15% inferior à do plasma, pelo que, por uma questão de consistência com os valores descritos na literatura, esta deverá ser medida no plasma. Outro factor a ter em consideração é a necessidade de celeridade no processamento da amostra, uma vez que a glicólise levada a cabo pelos eritrócitos poderá induzir um valor falsamente baixo.

 

Como foi explicado anteriormente, a presença de insulina durante um episódio de hipoglicémia é consistente com hiperinsulinismo. Todavia, esta pode não ser detectada numa amostra única, uma vez que sofre rápida depuração (clearance) hepática. Factores adicionais que corroboram este diagnóstico incluem: a diminuição plasmática dos ácidos gordos livres e dos corpos cetónicos (Figura 1); o incremento glicémico (> 25 mg/dL) em resposta à administração de glucagom ou de octreótido. Uma insulinémia elevada sem que haja o aumento correspondente do péptido-C plasmático deve levantar a suspeita de administração exógena. Por outro lado, a redução dos corpos cetónicos acompanhada do aumento dos ácidos gordos livres sugere a presença de um distúrbio da cetogénese ou da oxidação dos ácidos gordos. Esta última deve ser confirmada pelo doseamento da acilcarnitina

FIGURA 1. Diagnóstico diferencial de hipoglicémia

(Adaptado de Langdon DR et al, Pediatric Endocrinology 2014)
Abreviaturas: ß-OHB – ß-Hidroxibutirato; AGL – Ácidos Gordos Livres; GSD – Glicogenoses; HC – Hormona do Crescimento; SR – Suprarrenal; AG – Ácidos Gordos.

A inclusão do doseamento da hormona de crescimento e do cortisol na amostra plasmática inicial é controversa. Frequentemente, nas crianças sujeitas a provas de jejum, os níveis destas hormonas encontram-se abaixo do intervalo considerado normal, além de não se correlacionarem necessariamente com o grau de hipoglicémia. Se a suspeita for de insuficiência adrenal, o diagnóstico deverá ser estabelecido por uma prova de ACTH. Por outro lado, se recair sobre o défice da hormona de crescimento, além da avaliação antropométrica e das provas de estimulação da produção desta hormona, deve proceder-se a ressonância magnética da sela turca para avaliar a possível existência de alterações anatómicas hipotálamo-hipofisárias.

Apesar da importância da colheita da amostra crítica durante o episódio de hipoglicémia, actualmente várias condições metabólicas podem ser diagnosticadas de outra forma. Este avanço diagnóstico, aliado aos riscos inerentes às provas de jejum e à necessidade de uma monitorização muito rigorosa por uma equipa experiente, levou a que estas sejam executadas agora muito mais esporadicamente. A maioria dos defeitos da oxidação dos ácidos gordos pode ser identificada pela análise das acilcarnitinas no sangue, obtidas posteriormente com o doente já estabilizado. Se a clínica for sugestiva de glicogenose ou de alteração da gliconeogénese, o diagnóstico poderá ser confirmado pela sequenciação do painel dos genes mais relevantes. Contudo, os resultados genéticos devem ser interpretados de forma cuidadosa, uma vez que, se por um lado as mutações nem sempre são identificadas, por outro, podem ser encontradas variantes de significado incerto.

Tratamento

O tratamento de emergência da hipoglicémia sintomática consiste na pronta administração intravenosa de 2 a 5 mL/kg/dose de glicose a 10% (Quadro 5). O uso de soluções com concentração superior a 10% deve ser evitado, uma vez que estão descritos relatos de hiperglicémia grave por excesso de correcção. A glicémia deverá ser reavaliada 15 minutos depois, com repetição do bolus caso o valor não seja superior a 70 mg/dL. Deverá ser então iniciada uma perfusão de glicose a 10%, a um ritmo de 5 mL/kg/h (que providencia 8 mg/kg/minuto de glicose). Assim que a criança estiver consciente e com boa tolerância oral, a perfusão intravenosa poderá ser progressivamente descontinuada, mantendo a glicémia entre 70 mg/dL e 110 mg/dL.

QUADRO 5 – Tratamento de emergência da hipoglicémia

(Adaptado de Ghosh A et al, Arch Dis Child 2016)
Doente consciente e com tolerância oral
    1. 10 a 20 g de glicose oral
    2. Merenda com hidratos de carbono de absorção lenta
Doente inconsciente
    1. Bolus iv de 2 mL/kg de Glicose a 10% (repete 15 minutos depois se glicémia < 70 mg/dL)
    2. Perfusão iv de Glicose a 10%, a um ritmo de 5 mL/kg/h (ajustar para um objectivo glicémico de 70-110 mg/dL)
Doente inconsciente e sem acesso iv

Glucagom im: 0,5 mg se < 25 Kg; 1 mg se > 25 Kg

Doentes com glicémia inicial < 50 mg/dL e/ou alteração do estado de consciência deverão ser internados para monitorização (inicialmente horária) e investigação diagnóstica.

A abordagem a médio e longo-prazo, bem como a prevenção de recorrências dependem essencialmente do correcto diagnóstico etiológico e tratamento específico. Antes da alta, é necessário assegurar que a criança consegue manter uma normoglicémia durante um período de jejum seguro, ou seja, durante o tempo habitual de sono adequado à sua idade (cerca de 4-6h no lactente; 12-16h na criança). Deve ainda ser fornecido glucómetro portátil e ser realizado ensino à família no que respeita à periodicidade e composição das refeições.

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CETOACIDOSE DIABÉTICA

Definição e importância do problema

A cetoacidose diabética (CAD), frequentemente, a forma de apresentação inicial da diabetes tipo 1 na criança, é a sua complicação aguda mais grave. Constitui igualmente uma urgência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade da criança diabética, com um risco estimado de morte de 0,2 a 1%, essencialmente por edema cerebral.

Tal situação surge como consequência das alterações metabólicas e hidroelectrolíticas secundárias a diminuição da insulina circulante eficaz e, como consequência, à elevação das hormonas de contrarregulação (glucagom, catecolaminas, cortisol e hormona do crescimento) que, para além de contribuírem para a hiperglicémia, estimulam a cetogénese.

Os critérios bioquímicos para o diagnóstico de CAD são: hiperglicémia, (> 200 mg/dL), acidose metabólica (pH < 7,25 e/ou bicarbonato < 15 mEq/L), cetonúria e cetonémia. Considerando o parâmetro “hiato aniónico” [Na(Cl+HCO3)], indicador indirecto dos níveis de corpos cetónicos, o valor deste > 12  mEq/L é compatível com CAD.

A gravidade da CAD pode ser ordenada pelo grau de acidose, variando de grave (pH < 7,1 e bicarbonato < 5 mEq/L) a moderada (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato 5 a 10) e ligeira (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato > 10).

A terapêutica consiste na correcção das alterações hidroelectrolíticas (desidratação/choque), do equilíbrio ácido-base e da hiperglicémia, através da reposição hídrica e iónica, da correcção da acidose, e dos níveis de insulina (ver capítulo anterior).

De acordo com os peritos e investigadores no âmbito da CAD, no ano de 2019 ainda subsistem controvérsias. Baseando-se as normas de orientação clínica e as recomendações fundamentalmente em considerações teóricas, existe grande variabilidade dos protocolos adoptados, de instituição para instituição, sem diferenças significativas quanto aos resultados. As grandes questões investigadas têm sido as relacionadas com a velocidade de perfusão de solutos e o respectivo conteúdo em sódio (designadamente, utilização de NaCl a 0,9% ou a 0,45%).

Constituindo uma emergência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade na criança diabética, o risco estimado de morte (0,2 a 1%) relaciona-se  essencialmente com o surgimento de edema cerebral, o qual pode originar hipertensão intracraniana e lesão do sistema nervoso central.+

+A patologia de base “diabetes mellitus” é um continuum. Por razões didácticas a CAD foi considerada separadamente como complicação da primeira; por sua vez, o edema cerebral foi considerado uma das complicações da CAD.

ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS

A diabetes mellitus constitui uma das doenças crónicas mais comuns a nível mundial.

Referindo-nos aos EUA, um país com a publicação de estudos epidemiológicos em larga escala, foram apurados os seguintes dados:

  • 192.000 crianças com diagnóstico de diabetes e uma incidência de hospitalizações por CAD em 2014 de 188.965 (correspondendo 11% das admissões por CAD em doentes com menos de 17 anos);
  • cerca de 30% de crianças com novo/recente, anteriormente desconhecido diagnóstico de DM 1 têm como forma de apresentação a CAD;
  • cerca de 10% de crianças com novo/recente diagnóstico de DM 2 têm como forma de apresentação a CAD;
  • em crianças com o diagnóstico conhecido de DM 1, o risco de CAD oscila entre 1% e 10% de CAD/paciente/ano.
  • de acordo com estatísticas hospitalares, com progressos ao longo dos anos, estima-se uma letalidade actual de 0,33%.  

ETIOPATOGÉNESE

Como foi referido no capítulo anterior, a insulina é uma hormona polipeptídica segregada pelas células beta do pâncreas sob acção de estímulos beta-adrenérgicos e parassimpáticos. Tendo uma acção anabolizante, leva a um aumento da captação tecidual de glucose, sua entrada no meio intracelular, e a um estímulo da síntese do glicogénio hepático e muscular.

No fígado promove inibição da neoglicógenese e da glicogenólise; no músculo, estimula a síntese proteica e inibe a proteólise; e, no tecido gordo, promove a captação de glucose e lipoproteínas, estimula a lipogénese, e inibe a lipólise.

A CAD ocorre quando as concentrações de insulina sérica são inadequadas face a:

  • deficiência absoluta (tendo como base a falência progressiva das células beta pancreáticas por destruição autoimune na DM 1 não diagnosticada), ou
  • deficiência relativa (por estresse, infecção, administração inadequada de insulina) em relação com níveis elevados de hormonas de contrarregulação (catecolaminas, cortisol, glucagom e hormona de crescimento).

A combinação de:

  • deficiência de insulina e de
  • aumento dos níveis de hormonas de contrarregulação, levam a gluconeogénese e a glicogenólise, com aumento da produção de glucose e à  diminuição de utilização periférica da mesma glucose.

Como consequência, verifica-se hiperglicémia, hiperosmolalidade, hiperlipólise e cetogénese. Ou seja, a diminuição, ou ausência persistente de insulina condiciona a passagem de um estado anabólico a um estado catabólico, com neoglicogénese, glicogenólise, cetogénese e proteólise.

Quando o limiar de excreção renal para a glicose exceder ~9,1-11,1 mmol/L, a glicosúria e a hipercetonémia causam diurese osmótica, poliúria, desidratação, e perda de electrólitos (incluindo sódio, potássio, magnésio, cálcio e fosfato).

Consequentemente surge a estimulação da produção das hormonas de estresse e, no caso de não se verificar resposição de fluidos, electrólitos e insulina, a desidratação/hipovolémia e hipoperfusão agravam-se, originando acidose metabólica e láctica, podendo seguir-se desfecho fatal. (Figura 1 )

A patogénese do edema cerebral, a complicação mais grave da CAD, (sendo mais frequente na criança do que no adulto), não é totalmente compreendida. Têm sido sugeridos múltiplos mecanismos, persistindo ainda controvérsia sobre se terá maior importância a velocidade de administração dos fluidos ou a composição dos mesmos. Os primeiros estudos apontavam para o papel da administração de fluidos hipotónicos determinando desvio dos fluidos pelas diferenças da osmolalidade entre  os compartimentos extravascular e intravascular intracraniano (desvio espaço vascularà parênquima cerebral.)

As novas teorias, apoiadas em imagiologia funcional,  sugerem que o edema resulta de um fenómeno lesivo explicado por hipoperfusão seguida de reperfusão, neuroinflamação (edema vasogénico associado a aumento da permeabilidadede barreira hematoencefálica).

Com efeito, estudos imagiológicos recentes através de ressonância magnética, espectroscopia próxima dos infravermelhos e de ultrassonografia Doppler transcraniana demonstraram que o edema cerebral é de tipo vasogénico.

FIGURA 1. Fisiopatologia da CAD

Manifestações clínicas

Globalmente, o factor etiológico mais comum de CAD é a diabetes mellitus do tipo 1 (DM 1) de início recente. Tal patologia pode igualmente ser observada em crianças com DM 1 e infecção, DM 1 e outra doença intercorrente, ou administração  inadequada de insulina. De referir que a CAD poderá também surgir em crianças  com DM 2).

Determinadas situações – com o significado de factores de risco – tais como, administração de corticóides em altas doses, fármacos antipsicóticos, diazóxido e medicações com efeito imunossupressor, poderão precipitar CAD em pacientes na ausência de  conhecimento prévio do diagnóstico de DM 1.

As manifestações clínicas mais frequentes de CAD são:

  • polidipsia e poliúria por diurese osmótica devida à desidratação hiperosmolar por hiperglicémia;
  • náuseas, vómitos e hálito cetónico (pela cetose);
  • perda de peso e confusão mental/coma (a avaliar pela escala de Glasgow), existindo uma boa relação entre as manifestações neurológicas e o grau de hiperosmolaridade sérica.

Hiperpneia, taquipneia e dor abdominal são frequentes, podendo levar a dificuldades de diagnóstico diferencial com episódios de doença respiratória ou com situações de abodómen agudo.

A cetoacidose, evidenciada pelo hálito cetónico, estimulando os quimiorreceptores centrais e periféricos que regulam a respiração, leva ao tipo de respiração de Kussmaul (excursões respiratórias “rápidas e profundas”).

A dor abdominal e o quadro de íleo paralítico que se pode estabelecer resultam da deplecção de potássio, da acidose e da hipoperfusão esplânquica.

A desidratação é uma constante da CAD, mas a sua característica de hiperosmolaridade e predomínio intracelular, com possível ausência de prega cutânea nas fases iniciais, pode levar à subvalorização do diagnóstico.

Segundo a experiência de alguns centros, foram verificados aumentos dos teores de amilase e triglicéridos, assim como leucocitose.

Apesar da desidratação grave, numa fase inicial os pacientes evidenciam geralmente pressão arterial normal, admitindo-se que tal facto seja explicável pela acção do teor aumentado de catecolaminas e pela libertação de hormona antidiurética estimulada pela elevada osmolalidade sérica.

Assim, no contexto de CAD, a avaliação da pressão arterial não constitui um indicador suficientemente confiável na avaliação do estado cardiovascular. De acordo com diversos estudos, são mais confiáveis a frequência cardíaca e o tempo de recoloração capilar, correspondente ao grau de perfusão periférica.

Por fim, com a falência dos mecanismos compensatórios, surge hipotensão, choque e alteração do estado mental.

EXAMES  COMPLEMENTARES

Os valores laboratoriais que permitem o diagnóstico de CAD foram referidos anteriormente.

Em todos os doentes deve proceder-se à monitorização de diversos parâmetros:

  • electrónica contínua → dos parâmetros vitais clássicos (FC, FR, PA, SpO2, ECG, etc.);
  • bioquímica → da glicémia (hora/ hora); do pH e gasometria capilar (2/2 horas enquanto pH<7,2  e, de 4/4 horas, ulteriormente); da ureia e creatinina, ionograma (Na, K, Cl, Ca, P e Mg) glicosúria,  cetonémia e cetonúria (de 4/4 horas); e, em função do contexto clínico de cada caso: s osmolalidades sérica e urinária, amilasémia, perfil lipídico e beta-hidroxibutirato.

Como avaliação geral, citam-se também o hemograma completo e o doseamento da proteína C reactiva (PCR) ou de outros marcadores de inflamação como a procalcitonina.

Nos casos em que a CAD constitui a forma de apresentação de um novo caso de DM (diagnóstico de DM até então desconhecido) estão indicados determinados exames laboratoriais adicionais para avaliação da fisiopatologia de base: HbA1c, anticorpos antiperoxidase, TSH, tiroxina livre, transglutaminases teciduais, imunoglobulina A, anticorpos anti-células dos ilhéus, anticorpos anti-insulina, e anticorpo anti descarboxilase do  ácido glutâmico.

Sem prejuízo da prioridade estabelecida para a vigilância electrónica contínua e para os exames laboratoriais descritos, citam-se os exames de imagem TAC-CE e RM, com interesse na identificação de edema cerebral.

 O ECG deve ser realizado na data de admissão e, depois, em monitorização contínua para detecção de sinais de discaliémia, arritmias, etc., como foi referido.

Interpretação de alguns resultados laboratoriais

    1. Hiato aniónico: no contexto de DM e de CAD, importa salientar que o seu valor diz respeito `presença de corpos cetónicos e não de outras etiologias cursando com acidose metabólica como acidose láctica e intoxicação com salicilatos;
    2. No contexto de CAD chama-se a atenção para o surgimento de hiponatrémia de diluição devida a hiperglicémia, o que implica cálculo rigoroso do suprimento em sódio: → Natrémia do paciente + 2 ([glicose plasmática em mg/dL -100] /100) mg/dL;
    3. Hiperosmolalidade sérica e creatinina elevada são dados que sugerem CAD;
    4. A acidose hiperclorémica é mais frequente nos casos em que a perfusão endovenosa é mais rápida, o suprimento de cloro veiculado através do NaCl é mais elevado e se utiliza NaCl a 0,9%;
    5. Leucocitose, só por si, poderá não indiciar infecção;
    6. Para além da valorização dos dados clínicos, poderá haver suspeitas de edema cerebral perante a verificação de ureia e creatinina elevadas, acidose grave, hipocápnia acentuada e insucesso ou recidiva na correcção da hiponatrémia;
    7. Em situações de hipoperfusão circulatória periférica e acidose grave, os valores da glucose determinados em sangue capilar poderão não ser confiáveis – podendo ser mais elevados; por isso, haverá que recorrer a colheitas em sangue venoso.

ACTUAÇÃO PRÁTICA

Objectivos gerais

Os objectivos gerais do tratamento são:

  1. corrigir a desidratação e a acidose, restaurando a perfusão tecidual e a filtração glomerular;
  2. interromper a cetogénese, a proteólise e a lipólise (por acção da insulina), contribuindo para a normal captação de glucose ao nível tecidual, revertendo  hiperglicémia  e a hiperosmolalidade;
  3. repor as perdas em electrólitos;
  4. estar alerta para eventuais complicações do tratamento,
  5. a fluidoterapia inicial com soro fisiológico deve preceder sempre (não < 1-2 horas) a terapia com insulina.

As CAD moderadas e graves necessitam, pois, sempre de insulinoterapia e reidratação endovenosas (em vias diferentes). Nos casos de CAD grave, depressão do estado de consciência (Glasgow ≤ 12), vómitos persistentes e idade < 5 anos, está indicado internamento em cuidados intensivos ou em enfermaria pediátrica especializada.

Crianças sem sinais de desidratação significativa (< 3%) e sem cetoacidose toleram bem terapêutica com insulina subcutânea e reidratação oral.

Aspectos gerais da fluidoterapia intravenosa (IV)

a) Protocolo clássico

Verificando-se estado de choque, procede-se a expansão vascular com soro fisiológico (sf) ou lactato de Ringer: 10-20 mL/Kg em 30-60 minutos, a repetir se necessário.

Após correcção do choque, programa-se o cálculo da reposição hídrica para 48 horas, de forma a não gerar gradientes osmóticos intra-extracelulares potenciadores de edema cerebral (não ultrapassar 4 L/m2/dia ou 10-12 mL/kg/hora na primeira hora e 6 mL/kg/hora nas horas seguintes).

O cálculo das necessidades de fluidos pode ser feito pela soma do défice de fluidos (% da perda de peso corporal em kg) + manutenção (idades: < 1 ano, 1-5, 6-9, 10-14 e > 15 anos, necessitam de volumes de manutenção: 80, 70, 60, 50 e 35 mL/kg/dia, respectivamente).

Nos cálculos não devem ser considerados os volumes administrados na fase de expansão vascular, mas deve ter-se em atenção a contabilização de todas as perdas, com especial atenção para as perdas urinárias que poderão corresponder a 30-50% dos fluidos para a manutenção.

Tipo de solutos

Nas primeiras seis horas:

  • utilizar soro fisiológico (NaCl a 0,9%);
  • passar para glucose a 5% e soro fisiológico (2 vias com conexão em Y) quando se iniciar a perfusão de insulina;*
  • poderá ser necessário administrar solutos com maiores concentrações de glucose (7,5%, 10% glucose) para evitar a hipoglicémia.

Após as seis horas:

  • passar para NaCl a 0,45% com glucose a 5% (soluto a 1/2).

A  insulina em perfusão  é iniciada 1-2 horas após o início da reidratação IV.

Não se administra insulina em bolus inicial. Deve usar-se acesso IV exclusivo (conexão em Y) para perfusão de insulina de acção rápida, na dose inicial de 0,1 U/kg/hora (diluir 50 U de insulina em 500 cc de SF, sendo então 1cc <> 0,1 Unidades).**

Eis algumas particularidades:

  • nas crianças < 5 anos ou glicémia inicial > 1000 mg/dL (> 55 mmol/L) é prudente iniciar com 0,05 U/kg/h (0,5 mL/kg/h);
  • manter a perfusão até à melhoria da CAD (pH > 7,3 e bicarbonato > 15 mmol/L);
  • quando glicémia < 250 mg/dL (14 mmol/L), ou antes, se houver descida > 90 mg/dL/h (5 mmol/L/h), ajustar a concentração de glucose, mas não diminuir o ritmo de administração de insulina.

Se ao fim de 4 horas os parâmetros bioquímicos de CAD não melhorarem:

  • reavaliar o doente;
  • rever a insulinoterapia;
  • considerar outras causas de má resposta à terapêutica (infecção!).

Após estabilização*** é habitualmente possível iniciar insulina de acção rápida ou de acção ultra-rápida subcutânea (sc) de acordo com o esquema do Quadro 1.

Após as primeiras 24 horas pode ser possível:

  • interromper soluto IV;
  • iniciar insulina de acção intermédia sc; dose: 0,3 U/kg/dia em 2 injecções: antes do pequeno almoço – 2/3 do total; antes do jantar – 1/3 do total;
  • manter a insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas durante as 4 horas seguintes de acordo com os critérios do Quadro 1;
  • após 4 horas, e se não houver cetonúria, passar a insulina rápida antes das três refeições principais (pequeno almoço, almoço, jantar);
  • se houver cetonúria, manter a administração de insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas até ao seu desaparecimento, passando, depois, para antes das 3 principais refeições.
*Para prevenir o declínio rápido da glicémia e a hipoglicémia deve acrescentar-se glucose ao fluido IV (NaCl a 0,9%). Este objectivo pode ser conseguido na prática (respeitando os cálculos feitos quanto aos fluidos a administrar), utilizando conexão em Y com dois sistemas: um com dextrose e outro sem dextrose. Torna-se fundamental o acerto quanto ao ritmo de administração.
**A solução de insulina só é estável durante 6 horas, pelo que terá de ser novamente preparada se a perfusão se mantiver mais que este tempo.
***pH > 7,3; bicarbonato ≥ 18; hiato iónico 8-11; alimentação oral possível.

QUADRO 1 – Cálculo da dose de insulina na fase de estabilização

Introduzir os líquidos per os após a melhoria franca da CAD e quando o doente manifestar o desejo de comer.
Se houver boa tolerância oral, diminuir os soros IV (subtrair o volume ingerido ao volume calculado para administração IV) e tentar uma pequena refeição com hidratos de carbono de absorção lenta (leite, iogurte, bolachas, pão…).
Programar a passagem para insulina SC (subcutânea) quando a acidose tiver regredido (pH > 7,3 e bicarbonato ≥ 18 mEq/L) e os alimentos forem bem tolerados.
O melhor momento para iniciar insulina SC é antes de uma refeição.

Administrar a 1ª dose sc de insulina de acção rápida/ultra rápida de acordo com o peso, glicémia e alimentação: 

< 160 mg/dL – 0 U
160 – 200 mg/dL – 0,05 U/kg
> 200 – 300 mg/dL – 0,1 U/kg
> 300 mg/dL – 0,15 U/kg
+crianças < 20 kg – 0,5 U/equivalente de HC*
crianças > 20 kg – 1
U/equivalente de HC

*1 equivalente de HC: 1/2 pão, 3 bolachas Maria, 3 bolachas água e sal, 2 iogurtes 

Parar a perfusão de insulina 15 minutos depois de administrar a 1ª dose de insulina SC.
Manter insulina de acção rápida/ultra rápida SC de 2 em 2 horas de modo a manter glicémia ∼ 150 mg/dL.
b) Protocolo FLUID (Fluid Therapies Under Investigation in DKA)

Este esquema de fluidoterapia integra, de facto, 4 protocolos (designados respectivamente A1, A2, B1, B2 – Quadro 2) aplicáveis: – a duas situações de défice ponderal (5 e 10%); e – a duas outras situações utilizando concentração de NaCl 0,9% (soro fisiológico) e 0,45%.

QUADRO 2 – Diferentes protocolos para fluidooterapia na CAD

Componentes

Protocolo A1

Protocolo A2

Protocolo B1

Protocolo B2

Bolus de fluido inicial10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%
Bolus adicional IV10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%Não bolus adicionalNão bolus adicional
Défice ponderal estimado

10%

10%

5%

5%

Reposição do défice

Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h

 

Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h

 

Reposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 hReposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 h
Fluidos usados para reposição do déficeNaCl 0,45%NaCl 0,9%NaCl 0,45%NaCl 0,9%

Notas importantes:

    • O protocolo FLUID refere-se apenas ao suprimento de fluidos e NaCl. Os aspectos realacionados, designadamente com a insulinoterapia, reposição de potássio, correcção da acidose, etc., são descritos no âmbito do protocolo clássico.
    • Bolus inicial de fluidos pressupõe volume de 20 mL/kg.
    • Bolus de fluidos são repetidos em função do estado circulatório (frequência cardíaca e perfusão periférica após bolus inicial).
    • Reposição do défice:
      • tempo estimado entre 24 e 36 horas;
      • fluidos contendo NaCl entre 0,45% e 0,9% são aceitáveis.
    • Monitorização e ajustamento do regime de fluidoterapia:
      • é importante monitorizar a frequência cardíaca, a perfusão periférica, assim como o suprimento e eliminação de fluidos- balanço hídrico;
      • a pressão arterial não constitui um bom indicador do estado circulatório nos casos de CAD;
      • ritmo de perfusão de fluidos deve ser aumentado se durante o tratamento não se verificar melhoria, ou se se verificar agravamento.

Correcção da acidose

A correcção da desidratação e da hiperglicémia é habitualmente suficiente para a correcção da acidose. A administração de bicarbonato é cada vez mais contestada, não tendo sido demonstrado efeito benéfico na sua utilização; pelo contrário, pode levar a um agravamento da hiperosmolaridade e potenciar a acidose do SNC e o edema cerebral. Considera-se a administração de bicarbonato apenas quando pH < 7,0 e bicarbonato < 5, ou quando há necessidade de utilização de aminas vasoactivas, e só até pH de 7,1 (1 a 2 mEq/kg em perfusão de 2 horas).

Correcção das alterações iónicas

Os suprimentos em sódio, cloro, fósforo e cálcio são os necessários ao metabolismo basal. A utilização de solutos com níveis de sódio ≥ a 50 mEq/litro (soluto a 1/3) é habitualmente suficiente para manter o sódio em níveis adequados.

Mesmo nas situações de CAD associada a Na+ sérico > 150 mEq/L, há que não utilizar soluções hipotónicas.

Em relação ao potássio há que considerar a sua administração logo nas 2 primeiras horas se potassémia inicial < 4,5 mEq/L (2 a 4 mEq/kg/dia, não excedendo concentrações de 40 mEq/L de soluto em veia periférica).

Salienta-se que no momento do diagnóstico de CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado porque a acidose provoca saída de potássio do meio intracelular. Mesmo nesta eventualidade, há que referir que o potássio corporal total está diminuído.

O sódio sérico inicial, geralmente normal ou baixo, explica-se pelos efeitos de diluição osmolar da hiperglicémia e da fracção hipídica elevada não contendo sódio.

Assim, para o cálculo da correcção da natrémia nos casos de glicémia > 100 mg/dL (5,6 mmol/L) utiliza-se a seguinte fórmula, considerando a glicémia em mg/dL.

 [Na+] + [glucose – 100] x 1,6
100

O sódio deverá aumentar cerca de 1,6 mmol/L por declínio de 100 mg/dL de glicémia em concomitância com a reposição lenta dos fluidos. Se, pelo contrário a natrémia diminuir à medida que se proceder à reidratação, tal poderá significar acumulação de água livre e risco de edema cerebral.

Quando o fósforo for < 2,5 mg/dL (< 0,8 mmol/L), deve substituir-se  50% do KCl por fosfato monopotássico, até às 12 horas de tratamento.

Para a correcção doutras alterações iónicas sugere-se a consulta dos capítulos sobre reidratação IV.

Reitera-se que o início da alimentação é feito logo que a tolerância oral o permita, com preferência por líquidos ricos em potássio (sumos), iogurte e pequenas refeições (Quadro 1).

Tratamento do edema cerebral

Embora raro (0,4 a 1% das CAD) o edema cerebral é responsável por cerca de 50 a 80% de todas as mortes por CAD; comporta mortalidade de 20 a 25% e morbilidade de 10 a 26% nos sobreviventes.

É mais frequente nas primeiras 4 a 12 horas de terapêutica. São considerados sinais de alarme: cefaleias, alterações do estado de consciência, sinais focais, convulsões, hipertensão arterial e bradicardia.

A sua terapêutica é emergente, exigindo recurso a cuidados intensivos e medidas específicas (elevação da cabeceira, cabeça na linha média, sedação/analgesia, ventilação) associados a perfusão de manitol (0,5 a 1 g/kg em 20 minutos) concomitantemente com redução do suprimento dos fluidos programados, a metade e ajuste da dose de insulina. Como alternativa pode utilizar-se na NaCl hipertónico a 3%: 5-10 mL/kg a cada 30 minutos com manutenção de natrémia entre 150 e 160 mEq/L.

Havendo indicação de suporte ventilatório a pCO2 deve ser mantida > 35 mmHg (não hiperventilar). Relativamente a esta norma de “não hiperventilar”, há que acautelar a verificação do pH, evitando valores baixos, de acidose, designadamente de 7 ou < 7.

Complicações

Sucintamente são referidas as seguintes complicações: rabdomiólise, mucormicose, pancreatite aguda, e outras ao nível do SNC (edema cerebral, hemorragia subaracnoideia, trombose arterial basilar, meningoencefalite, etc.).

Em 2019, no estado actual dos conhecimentos e da investigação sobre o tratamento da CAD, e no que respeita ao impacte dos diferentes protocolos de administração de fluidos sobre o prognóstico neurológico, parece não haver grandes diferenças, o que obrigará à continuação de estudos.

AGRADECIMENTOS

À Colega Drª Rosa Pina (da Unidade de Endocrinologia do HDE), pelas sugestões e  revisão inicial do manuscrito em anteriores edições.

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DIABETES MELLITUS

Definição e importância do problema  

A diabetes mellitus (DM) engloba um grupo de afecções do metabolismo caracterizado pela presença de hiperglicémia resultante de defeitos da secreção e/ou da acção da insulina nos tecidos alvo com consequentes alterações do metabolismo dos hidratos de carbono, lípidos e proteínas. A longo prazo, a cronicidade da hiperglicémia complica-se com disfunção e falência de vários órgãos, em especial olhos, rins, nervos, coração e vasos. Trata-se da doença endocrino-metabólica mais comum da infância e adolescência, com consequências importantes no âmbito do desenvolvimento físico e emocional.

Distinguem-se vários tipos de diabetes mellitus, sendo mais frequentes as designadas de tipo 1 e tipo 2 abordadas respectivamente nas alíneas 1. e 2. deste capítulo. Na alínea 3. são analisadas as formas mais raras.

  • Diabetes mellitus tipo 1 (DM 1), anteriormente designada insulino-dependente, a mais frequente na criança, caracterizada por défice total e permanente de secreção de insulina por destruição auto-imune das células beta dos ilhéus de Langerhans pancreáticos em indivíduos geneticamente susceptíveis; as manifestações clínicas surgem quando já cerca de 90% das referidas células se encontram destruídas. Trata-se duma das doenças crónicas mais frequentes na criança (ligeiramente mais frequente que as neoplasias e quatro vezes mais frequente que a fibrose quística).
  • Diabetes mellitus tipo 2 (DM 2), anteriormente designada não insulino-dependente ou de início no adulto, caracterizada por resistência dos tecidos à acção da insulina (insulinorresistência) associada a graus variáveis de disfunção das células beta. Embora seja muito menos frequente que a DM 1, na idade pediátrica verifica-se incidência crescente relacionável com o aumento de prevalência da obesidade à qual está geralmente associada.

1. Diabetes mellitus tipo 1 (DM 1)

Aspectos epidemiológicos

A incidência da diabetes mellitus tipo 1 (DM1) até aos 15 anos de idade apresenta grande variabilidade entre áreas geográficas, e mesmo entre países (cerca de 50/100.000 na Finlândia e na Sardenha e de 20/100.000 nos restantes países da Europa.

Em Portugal, país que conta desde 2009 com um sistema de registo nacional de diabetes aplicado ao grupo etário 0-19 anos designado pelo acrónimo DOCE registou-se no ano de 2014 uma incidência no grupo etário dos 0-14 anos de 17,5/100.000 e no grupo etário dos 0-19 anos, 14,8/100.000.

De acordo com diversos estudos multicêntricos realizados na última década, existe uma franca tendência para o aumento da incidência (cerca de 90.000 novos casos por ano), mais acentuadamente no grupo etário abaixo dos 5 anos.

Classicamente descrevem-se dois picos de maior incidência de DM1 na criança: um entre os 5-7 anos, possivelmente relacionado com maior exposição a infecções víricas com a entrada para a escola; e um segundo pico na puberdade, possivelmente desencadeado pelas alterações hormonais que caracterizam esta fase de desenvolvimento.

O aumento de incidência no grupo dos 0-5 anos e o facto de neste período se verificar uma resposta autoimune mais agressiva levantam questões em relação à própria etiopatogénese da diabetes, admitindo-se a forte influência de factores ambientais.

Nesta perspectiva cabe salientar a realização dum estudo multicêntrico em curso a nível mundial – The Environment Determinants of Diabetes in the Young – (TEDDY) incidindo sobre cerca de 8.000 crianças identificadas como geneticamente susceptíveis para a DM1 que tem precisamente como um dos seus objectivos identificar possíveis determinantes ambientais, podendo exercer influência desde o período perinatal, o que tem implicações práticas na prevenção.

O diagnóstico em idades precoces coloca efectivamente desafios especiais no âmbito da organização dos serviços de saúde de modo a garantir cuidados de qualidade.

Etiopatogénese

A etiopatogénese da DM1 é multifactorial, sendo reconhecida a contribuição em grau variável, e ainda não completamente determinada, da susceptibilidade genética, e de factores ambientais e imunológicos.

Está comprovada a predisposição genética para a DM1 (por exemplo genes relacionados com susceptibilidade para DM1 no cromossoma 6 e no cromossoma 11), sendo de referir que o tipo de hereditariedade é complexo e provavelmente poligénico. A identificação de combinações específicas de alelos HLA –DR e DQ confere cerca de 50% do risco.

Como exemplo de haplótipo considerado de alto risco inclui-se genericamente o DR3/4-DQ2/8 e, dentro deste grupo, como exemplos de haplótipos específicos:
DRB1*0401-DQA1* 0301-DQB1*0302
DRB1*0401-DQA1* 0301-DQB1*0301

Citam-se como exemplos de outros haplótipos DR-DQ que, pelo contrário, conferem protecção:
DRB1*1501- DQA1*0102-DQB1*0602
DRB1*0701- DQA1*0201-DQB1*0303
DRB 1*1401- DQA1*0101-DQB1*0503

A ocorrência em familiares pode estar presente em cerca de 10% dos casos, não sendo, no entanto, possível estabelecer um padrão de transmissão hereditária.

Numa população geral com risco de DM1 de 0,5%, o risco num gémeo idêntico será de cerca de 36% e, num irmão, de 4-9%. O risco é cerca de 3 vezes maior quando é o pai (3,6-8,5%) a apresentar DM1 relativamente à mãe (1,3-3,6%).

O risco parece ser também maior quando o caso index é diagnosticado em idade mais jovem.

Alguns factores ambientais parecem estar implicados, tais como: alimentação com leite de vaca em natureza antes dos 2 anos de idade e infecções por vírus (rubéola, sarampo, coxsackie B, citomegalovírus, etc.).

Estes factores poderão actuar como desencadeantes do processo de destruição autoimune das células beta, mas também modificando a patogénese, actuando como agravantes (infecções perinatais, défice de vitamina D) ou como atenuantes (infecções durante o 1º ano de vida). Não está provada a relação entre vacinas antivíricas e DM1.

A DM1 é uma doença autoimune mediada por células T. Um processo inflamatório dos ilhéus ou “insulite”, com infiltração de macrófagos, células B e células T (CD8 +) precede o início dos sinais clínicos.

Reconhecem-se vários autoanticorpos e antigénios associados a DM1, os quais constituem marcadores serológicos da autoimunidade da célula beta:

  1. Anti-células beta dos ilhéus de Langerhans (ICA);
  2. Anti-descarboxilase do ácido glutâmico (GAD);
  3. Anti-insulina (IAA);
  4. Antigénio associado a insulinoma IA2, IA2 β;
  5. Antigénio transportador do zinco (ZnT8A). Em mais de 90% dos indivíduos recém-diagnosticados podem ser identificados um ou vários destes autoanticorpos.

A existência destes marcadores imunológicos, podendo ser detectados por vezes vários anos antes das manifestações clínicas, permite que nalguns indivíduos seja possível o diagnóstico na fase pré-clínica. Quanto maior a diversidade de anticorpos, maior o risco de progressão para DM1.

Num estudo recente englobando cerca de 600 crianças concluiu-se que nos casos com identificação de mais de dois autoanticorpos ocorreu progressão em 10 anos para DM1 em cerca de 70%, e em 15 anos para 84% em 15 anos.

Na história natural da DM1 podem descrever-se quatro fases:

  1. Fase pré-clínica de destruição autoimune com progressiva diminuição da secreção de insulina;
  2. Diabetes clínica;
  3. Fase de remissão transitória (“lua-de-mel”);
  4. Diabetes estabelecida com défice total e permanente de insulina associado a complicações agudas e crónicas.

A fase pré-clínica tende a ser de menor duração nas crianças mais jovens.

Estão em curso estudos prospectivos em parentes próximos de doentes com DM1 com autoanticorpos e genótipos no sistema HLA considerados predisponentes. O objectivo destes estudos é conceber o modo de prevenir ou atrasar o início das manifestações clínicas da doença.

A presença de anticorpos contra certos órgãos pode associar-se a DM1; os exemplos mais frequentes são:

  • Os anticorpos antitiroideia relacionados com a tiroidite autoimune;
  • Os anticorpos antitransglutaminase relacionados com a doença celíaca; e
  • Os anticorpos anti-suprarrenal (anti-CYP17 e CYP21A2) relacionados com a doença de Addison.

Critérios de diagnóstico

O diagnóstico de diabetes mellitus pode ser estabelecido de acordo com critérios baseados em valores no plasma:

  • Na glicose plasmática em jejum (pelos menos de 8 horas) ” = ou > 126 mg/dL; ou
  • Na glicose plasmática 2 horas após administração de glucose oral – prova de tolerância à glicose oral (PTGO) ” = ou > 200 mg/dL; ou
  • Na glicose plasmática determinada casual ou aleatoriamente (independentemente do tempo decorrido desde a última refeição) associada a quadro clínico sugestivo de diabetes (poliúria, polidipsia, perda de peso inexplicada, glicosúria e cetonúria); ou
  • No valor de hemoglobina glicada (HbA1c) = ou > 6,5% (a confirmar no pressuposto de repetição se na ausência de hiperglicémia inequívoca).

O diagnóstico de anomalia da glicémia em jejum/AGJ baseia-se no seguinte critério:

  • Glicose plasmática em jejum de 100-125 mg/dL (5,6-6,9 mmol/L).

O diagnóstico de tolerância diminuída à glucose/TDG baseia-se no seguinte critério:

  • Glicose plasmática 2 horas após administração de glucose oral – prova de tolerância à glicose oral (PTGO) ” 140 mg/dL – 199 mg/dL (7,8-11,1 mmol/L). (PTGO a realizar de acordo com as normas da OMS: – glicose anidra dissolvida em água na dose de 1,75 g/Kg de peso corporal; máximo = 75 g).

Assim, a realização de PTGO só está indicada para estabelecer, em casos assintomáticos, o diagnóstico de pré-diabetes (hiperglicémia intermédia) que inclui anomalia da glicémia de jejum (AGJ) e tolerância diminuída à glicose (TDG) representando um estádio intermédio entre a homeostase normal da glucose e a diabetes.

Notas importantes:
Hemoglobina glicada (HbA1c)

Não se valoriza como diagnóstico na presença de sintomas; no entanto a sua determinação inicial pode permitir ter uma noção sobre o tempo decorrido até à fase de apresentação aguda.
Este parâmetro reflecte o valor médio da glicémia nos 3 meses anteriores tendo em conta a vida média dos eritrócitos e o fenómeno de transferência da glucose para o eritrócito em função dos níveis glicémicos. Nalguns casos de hemoglobinopatias, e dependendo também dos métodos de determinação utilizados, não poderá ser valorizada.
Pode estabelecer-se a seguinte relação da HbA1c com valores de glicémia média:

  • > 10%: glicémia anterior média > 240 mg/dL;
  • 8-10%: glicémia anterior média 180-240 mg/dL;
  • 6-8%: glicémia anterior média 120-180 mg/dL.

Salienta-se, no entanto, que existem dificuldades com a padronização e a variação individual na relação entre HbA1c e glicémia, o que limita a conveniência deste exame laboratorial.

Marcadores de autoimunidade

Na avaliação inicial podem ser utilizados marcadores da autoimunidade da DM1:

→ anticorpos anti-célula beta e anti-insulina: GAD (GAD65), tirosino fosfatase IA
 2 e IA2 β e ZnT8.

  • Tipagem HLA
    Podem ser determinados os haplótipos de risco anteriormente descritos.
  • Péptido C
    A determinação do péptido C, a realizar apenas em centros especializados, poderá estar indicada perante situações duvidosas de classificação definitiva do tipo de diabetes com a seguinte fundamentação:
    → a biossíntese do polipéptido insulina (a partir das células beta dos ilhéus de Langerhans), ocorre com a libertação na corrente sanguínea de quantidades equimolares de insulina e de péptido C.
    O péptido C constitui um bom marcador da função das células beta e, por isso, da reserva e da produção endógena de insulina. Tem uma vida média cinco a dez vezes superior à da insulina endógena e a grande vantagem de não ser influenciado pela administração exógena de insulina, nem pela existência de anticorpos anti-insulina.

Na DM1 estabelecida os seus valores são baixos (< 0,6 ng/mL), não aumentando após refeição ou administração de glucose, contudo, em fases iniciais pode evidenciar valores dentro dos limites da normalidade.

Manifestações clínicas, laboratoriais e relação com a fisiopatologia

O modo de apresentação clínica clássica da DM1 – em regra de modo súbito e inesperado – é constituído por poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso.

A manifestação inicial resultante do défice de insulina é a hiperglicémia pós-prandial; à medida que o referido défice se vai acentuando, surgem sucessivamente as fases de hiperglicémia em jejum e, finalmente, hiperglicémia mantida e formação de corpos cetónicos (beta-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona) revelando um défice grave de insulina associado ao aumento de hormonas contrarreguladoras, em particular glucagom. A hiperglicémia e a cetogénese resultam da não supressão, quer da glicogenólise, quer da neoglucogénese e da oxidação de ácidos gordos quando o défice de insulina se agrava.

Consequentemente, os depósitos de proteínas no músculo, e de lípidos no tecido adiposo, são metabolizados como substractos para a neoglucogénese e oxidação de ácidos gordos.

Se a glicémia ultrapassar o valor de 180 mg/dL, que corresponde ao limiar de reabsorção tubular renal da glucose, verifica-se glicosúria que, por sua vez, origina diurese osmótica a qual pode levar a desidratação; refira-se que a perda renal de água “arrasta” electrólitos tais como sódio e potássio. Para compensar as perdas de líquidos em excesso por via urinária, verifica-se polidipsia.

O estado catabólico conduz a perda de peso face à perda calórica relacionada com a glicosúria e cetose.

A cetoacidose diabética (abordada no capítulo seguinte), apesar de precedida por sintomas de hiperglicémia nas 2-3 semanas anteriores, surge como reveladora de DM1 numa proporção ainda importante de casos, a qual pode ser minorada com a valorização dos sintomas de hiperglicémia, a confirmação imediata do diagnóstico e o início precoce de tratamento com insulina.

A poliúria pode ser difícil de detectar no lactente; o reaparecimento de enurese nocturna constitui importante pista diagnóstica e, como tal, deve ser sempre valorizado.

Na criança pequena poderá não ser fácil distinguir entre polidipsia e “hábito de pedir água”, sobretudo na fase de aprendizagem da utilização do copo.

Dada a irregularidade do comportamento da alimentação na criança pequena, a polifagia dificilmente poderá ser valorizada pelos pais.

Importa, por isso, na presença de clínica sugestiva, estar alertado para o diagnóstico e confirmá-lo de imediato. Saliente-se que atrasar desnecessariamente o diagnóstico e, por isso, o início do tratamento, agrava o risco de cetoacidose, situação grave com risco de mortalidade. A presença de hiperglicémia e de cetonémia podem ser imediatamente documentadas com tiras reagente, actualmente já disponíveis em muitos centros.

Comorbilidade

Em consonância com a etiopatogénese da DM1, podem surgir concomitantemente doenças por autoanticorpos, designadamente tiroidite autoimune e doença celíaca (mais frequentemente), assim como outras: doença de Addison, hepatite autoimune, gastrite autoimune, dermatomiosite e miastenia grave. Dando ênfase às mais frequentes, cumpre pormenorizar:

  • A tiroidite autoimune ocorre em 17 a 30% dos casos de DM1. Na fase inicial da DM1, a função tiroideia pode estar alterada devido à hiperglicémia e perda ponderal; pode também verificar-se a existência de anticorpos antitiroideus em 25% dos casos; o hipotiroidismo subclínico pode aumentar o risco de hipoglicémia e o hipertiroidismo pode determinar mau controlo glicémico;
  • A doença celíaca ocorre em 1,6-16,4% dos casos de DM 1; o rastreio sistemático permite detectar a maioria dos casos nos primeiros 5 anos de evolução da doença; em tal circunstância, para além dos sintomas intestinais, a oscilação glicémica e as necessidades de insulina inferiores ao esperado podem alertar para o diagnóstico.

Tratamento

Objectivos

O principal objectivo do tratamento da DM1 na criança consiste em conciliar a prevenção de complicações com a promoção de um crescimento e desenvolvimento psicoafectivo normais, compatíveis com um estilo de vida tanto quanto possível igual ao das outras crianças.

Vários factores contribuem para dificultar a obtenção de um bom controlo metabólico durante a infância, nomeadamente:

  • A influência de alterações hormonais e psicossociais inerentes ao processo de crescimento e desenvolvimento;
  • Padrão irregular da alimentação, do exercício e das actividades escolares;
  • A tendência para infecções frequentes; e ainda
  • A falta de auto-suficiência da criança para o seu tratamento.

Assim, a definição de objectivos de controlo metabólico, para ser realista, deve ser ajustada a cada grupo etário e à realidade de cada caso, o que implica atender a um conjunto de particularidades, a saber:

  • A hipoglicémia tem maior risco de lesão do cérebro em fase de desenvolvimento neuronal;
  • Além das possíveis alterações neurocognitivas atribuídas à hipoglicémia, são reconhecidas, também, repercussões da hiperglicémia, da oscilação entre valores extremos de glicémia e da cetoacidose.

Daí a importância da precocidade da intervenção e da qualidade dos cuidados a prestar ao paciente com diabetes mellitus.

Nesta perspectiva, organismos internacionais prestigiados devotados à diabetes na idade pediátrica (ISPAD, ADA) recomendam os seguintes valores laboratoriais como objectivos de controlo:

” HbA1c: < 7,5%; ” glicémia pré-prandial: 90-130 mg/dL (5,0-7,2 mmol/L); ” glicémia ao deitar/nocturna: 90-150 mg/dL (5,0-8,3 mmol/L).

Insulinoterapia

Actualmente considera-se que o regime de insulinoterapia intensivo é o ideal para o tratamento das crianças com diabetes. O objectivo é simular o mais fielmente possível as variações normais nos níveis plasmáticos de insulina que se produzem nas crianças e jovens não diabéticos, suprindo as necessidades basais ao longo das 24 horas, e as adicionais compensatórias da hiperglicémia prandial.

Em nenhum regime consegue atingir plenamente este objectivo. Contudo, a disponibilidade de insulinas permitindo perfis laboratoriais cada vez mais próximos dos fisiológicos, de sistemas de perfusão subcutânea contínua de insulina permitindo simultaneamente a monitorização da glicémia, assim como o regime de injecções múltiplas, têm contribuído para uma aproximação do referido objectivo. (ver adiante – Tipos de Insulina)

1. Doses

A insulinoterapia deve ser instituída imediatamente após o diagnóstico. Em presença de cetose, o início do tratamento nas primeiras 6 horas pode prevenir a evolução para um quadro de cetoacidose.

Neste último caso, o tratamento deverá ser iniciado em internamento segundo um protocolo específico de insulinoterapia em perfusão endovenosa, hidratação e reposição electrolítica.

Se na data do diagnóstico não se verificar ainda franca descompensação metabólica, sem significativa hiperglicémia, desidratação ou cetose, pode iniciar-se a administração de insulina por via subcutânea, idealmente em regime de múltiplas injecções.

A dose total inicial de insulina depende da idade, do peso corporal, do estádio pubertário e do quadro de apresentação.

Quando o diagnóstico é feito numa fase precoce, sem significativa descompensação metabólica, a dose inicial é 0,3-0,5 Unidades/kg de peso corporal.

Nos casos de cetose, sem acidose e sem desidratação, em geral, a dose inicial será de 0,5-1 Unidade/kg/dia.

Após recuperação de um quadro de cetoacidose, as necessidades diárias de insulina são maiores: 0,6-0,8 Unidade/kg/dia nas crianças pré-púberes, e de 0,8-1,0 Unidade/kg/dia nos adolescentes.

Na data do diagnóstico, a maioria das crianças apresenta ainda alguma secreção residual de insulina, podendo após alguns dias ou semanas, entrar num período de remissão (“lua-de-mel”) durante o qual é possível obter glicémias normais ou quase normais com pequenas doses de insulina (menos de 0,5 Unidade/kg/dia).

Após este período, as necessidades tendem a aumentar:

  • Na pré-puberdade: 0,7-1,0 Unidade/kg/dia;
  • Durante a puberdade: 1-1,5 Unidades/kg/dia; por vezes: 2 Unidades/kg/dia.
2. Regimes de insulinoterapia

Os regimes de insulina são classicamente classificados em dois grupos de acordo com o número diário de injecções: – convencional quando se aplicam < 4/dia; e – intensivo ou basal – bolus quando 4 ou > /dia.

2.1 – Regime convencional

Deve ficar reservado para situações em que barreiras à adesão terapêutica, socioeconómicas ou outras não permitam um regime intensivo.

Sendo objectivo da insulinoterapia suprir as necessidades basais ao longo das 24 horas e as adicionais para compensar a hiperglicémia prandial, os regimes convencionais fora do período de remissão não conseguem aproximar-se deste objectivo sem incorrer num maior risco de hipoglicémia, sobretudo nocturna.

As doses de insulina nestes regimes, fixas ou minimamente ajustadas às variações diárias, condicionam o horário e o teor em hidratos de carbono das refeições.

2.2 – Regime intensivo ou basal-bolus

Pode ser administrado através de múltiplas injecções diárias (MID) ou de sistema perfusão subcutânea contínua de insulina (PSCI) vulgarmente designada por “bomba de insulina”.

MID →
Considerando a dose diária total, 40-60% deverá ser de insulina basal (ver adiante – tipos de insulina), sendo a restante de insulina rápida a administrar pontualmente (bolus) às refeições, de acordo com a glicémia pré-prandial e a quantidade de hidratos de carbono a ingerir.
Para o cálculo inicial da dose de cada bolus podem ser utilizadas fórmulas baseadas na dose total diária de insulina. (Quadro 1)
Ao número de Unidades necessário para a quantidade de hidratos de carbono calculada em gramas (bolus de alimentação), deve adicionar-se o bolus de correcção, ou seja, número de Unidades necessárias para fazer baixar a glicémia medida até à glicémia definida como alvo (em geral 100, 120 ou 140 mg/dL).

QUADRO 1 – Fórmulas para cálculo de bolus

Bolus de alimentação

Quantidade de insulina necessária para os hidratos de carbono
500/Dose Diária Total = Gramas de Hidratos de Carbono que 1 Unidade de Insulina é Capaz de Metabolizar (Relação Insulina/HC)

Bolus de correcção:

Glicémia Medida – Glicémia Desejada (Alvo)
Factor de Sensibilidade à Insulina (FSI)*

*Cálculo do FSI
1800/Dose Diária Total = Glicémia em mg/dL que 1 Unidade de Insulina é Capaz de Baixar (Factor de Sensibilidade à Insulina)

Bolus da refeição = bolus de alimentação + bolus de correcção

Posteriores ajustes irão sendo feitos de acordo com o perfil glicémico diário resultante das determinações de glicémias em jejum, pré- e pós-prandiais e nocturnas ou de valores obtidos através de sistemas de monitorização contínua de glicose.

O bolus de correcção pode ser também utilizado para corrigir hiperglicémia fora do horário de refeições. Deve ter-se em atenção que a descida da glicémia não deve exceder 100 mg/dL/hora.

PSCI →

A administração de insulina através de sistemas de perfusão subcutânea contínua constitui o método que mais se aproxima do perfil fisiológico.

Baseia-se no conceito basal-bolus com semelhante cálculo de percentagem basal e em algoritmos baseados na relação insulina/hidratos de carbono e sensibilidade à insulina.

Os PSCI utilizam apenas insulina de acção rápida que é debitada continuamente a um ritmo programável em função do perfil glicémico previsto durante as 24 horas. A este ritmo basal sobrepõem-se libertações pontuais (bolus) para as refeições ou para correcção de hiperglicémia, em função dos dados obtidos pelo dispositivo (calculador de bolus) de acordo com os algoritmos programados.

Tais sistemas oferecem vantagens únicas:

  • Permitindo atingir melhor controlo com menor risco de hipoglicémias:
  • A possibilidade de administração de doses tão pequenas como 0,01 Unidades torna este método o mais adequado para a idade pediátrica (em Portugal são disponibilizados pelo SNS dispositivos para todas as crianças cujo diagnóstico ocorra antes dos 6 anos);
  • Permitindo ajustar o ritmo basal de acordo com o perfil nocturno de cada criança evitando hipo e hiperglicémia nocturnas;
  • Em relação aos bolus permitem seleccionar perfil de libertação do bolus prandial de acordo com o teor da refeição e o previsto tempo de absorção dos diferentes tipos de alimentos (bolus quadrado, ou bifásico).

Como desvantagem:

  • Podendo aumentar o risco de cetoacidose em caso de interrupção por não haver insulina basal “em depósito subcutâneo”, requer monitorização atenta e conhecimento de normas de actuação imediata em caso de falência do sistema.

Dispositivos mais recentes associam os sistemas integrados de monitorização contínua de glicose (MCG) em tempo real e de PSCI, sendo o mais evoluído um sistema preditivo com algoritmo integrado na própria bomba de insulina: em tal modalidade, a administração de insulina é automaticamente suspensa cerca de 30 minutos antes da ocorrência de hipoglicémia, sendo retomada apenas quando a glicémia atinge níveis seguros.

A tecnologia está a evoluir para sistemas de ansa fechada “padrão de ourocapazes de automaticamente libertar insulina (ou insulina/glucagon) em resposta aos valores verificados ou previstos de glicémia através de sensor de glicose com transmissão de dados à “bomba”; trata-se, pois de um sistema de pâncreas artificial.

Como nota importante importa referir que os sistemas actualmente utilizados não dispensam a intervenção activa e a decisão do clínico e utilizador, o que implica levar a cabo programas de educação estruturados dirigidos ao paciente e família com o apoio intensivo da equipa de saúde.

3. Tipos de insulina

Actualmente em Portugal todas as insulinas comercializadas são obtidas por técnica recombinante, apresentando a mais baixa antigenicidade, o que as torna mais apropriadas para crianças. Utilizam-se, de modo geral, insulinas de acção intermédia e rápida, e associações de ambas por via subcutânea.

Os análogos de acção ultra-rápida podem ser utilizados para evitar hiperglicémia pós-prandial; o seu início de acção mais rápida e a mais curta duração permitem que possam ser administrados no meio da refeição em vez de antes da mesma.

A insulina glargina é um análogo com a particularidade de não apresentar picos, podendo a sua acção prolongar-se por mais de 24 horas, mantendo um nível basal de insulina.

O Quadro 2 e a Figura 1 resumem o perfil de algumas insulinas habitualmente usadas.

As pré-misturas têm a vantagem da possibilidade de administração em “caneta-seringa”.

QUADRO 2 – Tipos de insulina

*1 – Lilly; 2 – Novo Nordisk; 3 – Sanofi (#) NPH = neutra protamina de Hagedorn, insulina de acção intermédia
 Tipos de insulinaLaboratórios*Indicações
BasalHumana
Acção intermédia
1 – Humulin NPH®
2 – Insulatard®
3 – Insuman® Basal
Utilizada nos regimes convencionais associada a insulina de acção curta, pode também ser utilizada como basal ao deitar, nos regimes basal bolus.
Maior variabilidade intra e interindividual e maior risco de hipoglicémia nocturna.
BasalAnálogo
de acção lenta ou prolongada
2 – Levemir®
Insulina detemir
3 – Lantus®
Insulina glargina
Dois análogos basais disponíveis sem diferenças significativas e efeito mais previsível e reprodutível e de menor variação dia-a-dia do que a insulina NPH.
A glargina não está formalmente indicada abaixo dos 2 anos de idade, administra-se uma vez por dia, sempre à mesma hora, mantendo-se o efeito 24 horas.
A detemir pode usar-se após o 1 ano de idade: podem ser necessárias doses maiores e em 2 injecções diárias. Efeito de redução ou de menor ganho ponderal.
BolusHumana
de acção curta
1 – Humulin® Regular
2 – Insulina Actrapid®
3 – Insuman® Rapid
Pode ser utilizada em regimes de 2 injecções diárias com insulina intermédia ou como bolus prandial em regimes basal-bolus utilizando como basal insulina intermédia ou análogo de açcão longa: dado o perfil de acção devem ser administradas 30 minutos antes da refeição.
BolusAnálogo
Acção ultra-rápida
1 – Humalog®
Insulina lispro
2 – Novorapid®
Insulina aspártico
3 – Apidra®
Insulina glulisina
Os três análogos têm perfis equivalentes.
Início de acção mais rápida e duração mais curta que as insulinas de acção curta. Melhor controlo da hiperglicémia prandial (menor risco de hiperglicémia inicial e de hipoglicémia tardia). Maior eficácia na correcção de hiperglicémia.
Administram-se 5-15 minutos antes da refeição (dependendo da glicémia pré-prandial).
Como excepção, em crianças pequenas, com apetite irregular ou doença, podem ser administradas imediatamente após a refeição.
Usam-se nos regimes basal-bolus (com análogos de acção lenta) e em perfusão contínua de insulina.
Pré-misturas Análogos
bifásicos
1 – Humalog® Mix 25 e Humalog® Mix 50 Humulin® M3
2 – Novomix® 30 e Mixtard® 30
3 – Insuman Comb 25
Em geral, não indicadas na idade pediátrica.
Misturas, em proporção fixa, de insulina basal e rápida.
As insulinas bifásicas combinam uma percentagem de análogo de acção rápida com análogo de acção rápida ligado a NPH. Podem ser administradas às 3 refeições principais, com NPH ao deitar. Podem ser úteis em adolescentes com má adesão a um regime basal-bolus, mas em regra com pior controlo metabólico, maior risco de hipoglicémia e sem possível flexibilidade de horário e de teor das refeições.(#)

FIGURA 1. Esquema insulinoterapia basal-bolus

Autovigilância e monitorização

Determinação da glicémia

Com o moderno equipamento portátil e prático e os métodos actualmente disponíveis, a autovigilância da glicémia tornou-se parte indispensável da rotina diária do tratamento.

A frequência da sua determinação traduz-se em qualidade do controlo metabólico. Deve ser adaptada à idade da criança, à motivação e capacidades da criança e família, bem como às condições especiais durante a evolução da diabetes.

Todos os dados relacionados com a autovigilância devem ser registados, sabendo-se que os adolescentes mostram resistência em manter registos detalhados em papel.

Actualmente estão disponíveis glucómetros que permitem a introdução, o registo e “descarga” dos dados para o computador ou telemóvel, o que facilita a respectiva análise.

Existem também glucómetros com calculador de bolus que propicia o aconselhamento de acordo com os algoritmos inseridos.

Após estabilização metabólica relativa, na maioria dos casos podem ser realizadas em média seis determinações diárias da glicémia, excepto durante doença intercorrente, ou sempre que seja necessária maior informação do perfil glicémico para ajuste terapêutico.

A determinação da glicémia nocturna é também necessária.

A análise dos resultados, tendo como objectivo tirar o máximo proveito do controlo, deve ser feita em consultas periódicas, pelo menos 4 vezes por ano, ou sempre que se proceda a qualquer revisão do esquema de tratamento.

A determinação da hemoglobina glicada (HbA1c) deve ser efectuada, no mínimo, quatro vezes por ano.

Monitorização contínua da glicose

Existem atualmente dispositivos minimamente invasivos que permitem a determinação contínua da glicose (MCG), isto é, a medição do teor da glicose no líquido intersticial durante as 24 horas através de um sensor enzimático de glicose inserido no tecido subcutâneo.

Alguns destes sistemas emitem um alarme para hipoglicémia ou quando a glicémia atinge valores abaixo de um valor pré-estabelecido de glicose, ou ainda quando se verifica uma queda rápida deste valor.

Esta monitorização permite de modo retrospectivo:

  • identificar períodos de tempo com tendência para hiperglicémia, ou períodos de maior risco de hipoglicémia; e
  • compreender o efeito das doses de insulina, da alimentação e do exercício físico.

O acesso ao valor de glicose em tempo real permite ainda correcções imediatas melhorando assim muito significativamente o controlo glicémico. Todavia, a utilização individual destes sistemas tem ainda algumas limitações de carácter económico e de adesão.

Muito recentemente foi introduzido no mercado um sistema mais acessível de monitorização de glicose fornecendo informação da glicémia em tempo real e das 8 horas anteriores. Apesar de não se tratar de monitorização contínua, permite, no entanto, reduzir ao mínimo a necessidade de punção capilar.

Determinação da cetonémia

É essencial a determinação de cetonémia quando a glicémia é elevada (> 250 mg/dL), designadamente:

  • quando surgem intercorrências infecciosas; e
  • no contexto de utilização de bombas de perfusão subcutânea de insulina em que qualquer interrupção acidental de débito poderá levar rapidamente a défice de insulina por ausência de insulina de efeito basal em acção.

As tiras reagentes determinam os níveis de beta-hidroxibutirato, que é o primeiro corpo cetónico a ser sintetizado em caso de cetose e também o primeiro a desaparecer de circulação com o início da correcção.

  • Níveis até 0,5 mm/L são considerados normais; superiores a este valor necessitam de medidas de correção.
  • Níveis > 1,5 mm/L correspondem já a um risco elevado de cetoacidose e acima de 3 mmol/l acompanham-se geralmente de acidose.

Regime alimentar

Preconiza-se actualmente que a alimentação da criança com diabetes se baseie nos princípios de alimentação saudável recomendados para todas as crianças com um suprimento energético e de nutrientes semelhante ao das outras crianças da mesma idade, adequado ao crescimento, actividade física e prevenção de excesso ponderal.

O próprio termo “dieta” e a ideia de restrições devem ser banidos sobretudo entre os profissionais de saúde.

Está provado que a aplicação dum plano alimentar individualizado com ajustes adequados de insulina pode melhorar o controlo metabólico. Nesta perspectiva, é desejável que o plano alimentar de cada criança seja elaborado por nutricionista da equipa assistencial e regularmente adaptado e actualizado de acordo com as fases de crescimento e as circunstâncias do quotidiano.

As necessidades calóricas diárias podem estimar-se de acordo com a idade como para qualquer criança. De acordo com recomendações internacionais aceita-se como norma geral que 50-55% do suprimento calórico diário seja feito através de hidratos de carbono, 15 a 20% de proteínas, e < 35% de gorduras (e < 10% de gorduras saturadas e ácidos gordos trans) (Quadro 3).

QUADRO 3 – Regime alimentar*

*De acordo com as normas da ISPAD (International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes), 2014
    • Suprimento energético para garantir crescimento e desenvolvimento óptimos, mantendo peso ideal, prevenindo a obesidade e as complicações agudas e crónicas.
    • Distribuição diária dos nutrientes em % do valor calórico total (VCT)
      • Hidratos de carbono (HC): 50-55%
         Maior consumo de HC complexos, com alto teor em fibras; consumo de sacarose < 10%
      • Gorduras: 25-35%
         < 10% gordura saturada + ácidos gordos trans
        < 10% gordura polinsaturada
        > 10% gordura monoinsaturada (até 20% do valor calórico total)
      • Proteínas: 15-20%

O consumo de fibras deve ser estimulado na criança acima dos 2 anos de idade, porém de forma gradual e cautelosa de modo a evitar distensão abdominal e cólicas.

Os frutos frescos, tal como os vegetais, devem fazer parte da alimentação diária da criança e jovem, suprindo as necessidades em fibras e vitamina C. Não está provada a necessidade de suplementação em vitaminas ou minerais em crianças com diabetes sem outras condições associadas. Em relação à vitamina D, em situação de insuficiência do metabólito monohidroxilado – 25, OH vitamina D3 -, deve proceder-se a suplemento de acordo com as recomendações para a população em geral. (ver capítulo sobre carências vitamínicas e minerais).

No que respeita ao consumo de gorduras, as gorduras saturadas e os ácidos gordos trans, principal determinante dos níveis de colesterol-LDL, não devem exceder 10% do suprimento energético total.

Quanto ao suprimento proteico, é necessário ter em conta que as respectivas necessidades diárias variam de acordo com o grupo etário; são maiores na primeira infância (1-2 g/kg/dia diminuindo progressivamente até 1 g/kg/dia aos 10 anos e 0,8-0,9 g/Kg/dia no final da adolescência).

A contabilização dos hidratos de carbono para o cálculo das doses de insulina nos regimes de múltiplas injecções diárias e de sistemas de perfusão (bombas de insulina) pode ser feita em gramas ou em porções de 10, 12 ou 15 gramas. De modo a obter melhor controlo da glicémia pós-prandial, tal contabilização deve ser rigorosa, com recurso a leitura de rótulos e a pesagem dos alimentos.

A possibilidade de ajustar a insulina à quantidade de hidratos de carbono ingerida nos regimes de múltiplas injeções diárias permite muito maior flexibilidade no suprimento e no horário das refeições. No entanto, é essencial estabelecer um plano de educação alimentar em que seja valorizado o equilíbrio nutricional. Para além da avaliação do risco de suprimento excessivo de gorduras e proteínas, é ainda necessário ter em conta que o teor da refeição em gorduras e proteínas influencia também a glicémia pos-prandial.

Para garantir a glicémia pós-prandial “fisiológica” é também importante ter a noção do chamado índice glicémico dos hidratos de carbono, tentando identificar os que provocam maiores subidas de glicémia. A este propósito, é fundamental que a sacarose, devidamente contabilizada, não ultrapasse 10% do VCT diário.

A regularidade das refeições, a existência de rotinas e as refeições em família são importantes contributos para a melhoria do controlo metabólico.

A composição das pequenas refeições intermédias e a sua distribuição ao longo do dia requerem particular atenção. Com efeito, múltiplos lanches durante o dia, muitas vezes sem prévia administração de insulina, podem ser um factor de mau controlo metabólico.

Em suma, a educação alimentar deve ser dirigida à criança, jovem e família, tendo em atenção que o comportamento alimentar, algo mais do que a simples ingestão de alimentos, é influenciado por factores culturais e psicossociais que devem ser respeitados.

Actividade física

As crianças e adolescentes com diabetes podem praticar todos os tipos de exercício físico, incluindo desportos de competição, necessitando, no entanto, de algumas regras práticas para ajuste do tratamento.

Os regimes de múltiplas injecções diárias e a bomba de insulina facilitam esta adaptação que depende principalmente da insulina em acção durante o exercício e do tipo e duração do mesmo.

Os efeitos do exercício físico sobre a glicémia são complexos e envolvem vários factores.

Em condições fisiológicas ditas normais, o exercício físico acompanha-se de diminuição da secreção de insulina e aumento da libertação de hormonas contrarreguladoras de modo a aumentar a produção hepática de glicose compensadora da sua maior captação pelo músculo.

Na diabetes tipo 1, os níveis de insulina circulante estão condicionados pela sua administração exógena; não sendo naturalmente suprimidos, inibem, no entanto, a produção de glicose pelo fígado. Em situação de normal controlo glicémico o principal risco será a ocorrência de hipoglicémia durante ou após o exercício.

O risco de hipoglicémia pode manter-se até 24 horas depois do exercício, inclusivamente durante a noite, e sobretudo se foi prolongado e intenso. Este facto deve-se ao efeito tardio do aumento de sensibilidade à insulina, acrescido duma reposição mais lenta dos depósitos de glicogénio hepático e muscular.

O aumento de absorção da insulina a partir do local de injecção, possível factor agravante, deve ser tido em consideração.

Quando a glicémia pré-exercício é elevada (> 250 mg/dL), os níveis de insulina circulante poderão não ser suficientes para compensar o efeito da libertação de hormonas contrarreguladoras incorrendo no risco de agravamento de hiperglicémia e formação de corpos cetónicos. De salientar que mesmo em indivíduos com bom controlo se verifica que a hiperglicémia na altura do exercício físico pode afectar a libertação de endorfinas e comprometer o rendimento.

Para ajustar o tratamento à prática do exercício físico, algumas regras práticas individualizadas para cada criança devem ser cumpridas:

  • na presença de glicémia > 250 mg/dL com cetonémia > 0,5 mmol/L, esta deve ser corrigida e o início da actividade adiado;
  • quando o exercício vai ocorrer durante um pico de acção de insulina, a dose desta deve ser significativamente reduzida; o grau de redução deve ser individualizado e estabelecido também de acordo com o tipo de exercício e com o efeito previsto baseado em determinações de glicémia;
  • a bomba de insulina deve ser desconectada ou programada para um ritmo basal temporário, pelo menos 90 minutos antes, de modo a reduzir o nível de insulina em acção durante o exercício;
  • no caso de exercício mais intenso no final da tarde ou noite, a insulina basal da noite (ou a programar na bomba) deve ser reduzida pelo menos em 10-20%;
  • o local de injecção deve ser seleccionado de modo a poupar a zona mais envolvida na actividade muscular;
  • quando o exercício não é programado, ou quando a sua intensidade é superior ao habitual, poderá ser necessário suprimento extra de hidratos de carbono calculado também de acordo com a duração, o tipo de exercício e a insulina em acção;
  • como regra geral recomenda-se ingestão de 10-15 gramas de hidratos de carbono de fácil digestão por cada 30-60 minutos de desporto (existem publicadas regras para este cálculo de acordo com os vários tipos de desporto e o peso corporal da criança);
  • todas as crianças com diabetes devem estar identificadas como tal, com informação pormenorizada ao treinador ou professor de educação física de modo a serem tomadas todas as medidas de prevenção e eventual tratamento da hipoglicémia;
  • a criança deve ser integrada nas classes normais para o seu grupo etário, sem restrições.

Como nota final, importa relevar que tão importante como a prática desportiva é a aquisição de hábitos que promovem uma vida activa; nesta perspectiva, há que estimular a tendência natural da criança e jovem para os jogos e actividades de grupo, tentando reduzir o tempo de passividade e sedentarismo, como o passado em frente do televisor e/ou com jogos electrónicos.

Educação e aspectos psicossociais

A actual prática quase generalizada de esquemas de insulina com múltiplas injecções diárias doseadas de acordo com vários parâmetros (glicémia, quantidade de hidratos de carbono da refeição e grau de actividade física), assim como a disponibilidade de sistemas cada vez mais sofisticados de perfusão subcutânea contínua de insulina e de monitorização da glicose, vieram melhorar o controlo metabólico e as perspectivas de futuro com maior qualidade de vida.

No entanto, o preço desta evolução tem sido o aumento diário das solicitações e exigências para os pais, crianças e adolescentes para tarefas não intuitivas, muitas vezes dificilmente conciliáveis com as suas rotinas anteriores comporta certo risco de não adesão.

De facto, está provado que qualquer regime (no contexto da afeção em causa) só resultará se as crianças/jovens e famílias forem envolvidos, capacitados e motivados para levar a cabo rotinas de vida diferentes.

Para que tal seja conseguido é fundamental a existência de:

  • plano estruturado de educação terapêutica dirigido à criança/jovem e família, adaptado às várias etapas do neurodesenvolvimento;
  • objectivos individualizados e claros de controlo, tentando detectar possíveis obstáculos à sua prossecução.

Assim, a equipa multidisciplinar devotada à prestação de cuidados à criança e jovem com diabetes, deve:

  • estar atenta e ser proactiva em relação às alterações da dinâmica familiar, às exigências das várias etapas do desenvolvimento e às situações de conflito susceptíveis de constituir barreiras à adesão terapêutica;
  • estar disponível para contacto e para providenciar apoio emocional.

Actuação em situações especiais

Criança com diabetes na escola

A informação aos professores e a colaboração destes permitirão alcançar a adequada integração escolar da criança com diabetes, contribuindo para melhorar os cuidados assistenciais quotidianos. O professor de educação física deve ter informação especial contemplando os aspetos relacionados com o exercício físico.

Os cuidados a prestar no âmbito da escola estão previstos numa Orientação da DGS 003/2012, integrando o Programa Nacional de Saúde Escolar e o Programa Nacional para a Diabetes.

Infecções intercorrentes

Durante as infecções intercorrentes é necessário adaptar o tratamento de modo a prevenir hiperglicémia, cetose ou hipoglicémia.

As necessidades de insulina aumentam logo no período de incubação das infecções e mantêm-se elevadas até depois da cura clínica da doença.

A criança pode, em tais situações, apresentar diminuição do apetite ou mesmo recusa alimentar, mas a dose diária nunca deve ser suspensa, necessitando mesmo, na maioria dos casos, ser aumentada. Pelo contrário, nos casos de gastrenterite, em geral a insulina basal necessita de ser diminuída.

A determinação de glicémia e cetonémia deve ser frequente, em cada 1-3 horas, mesmo durante a noite. Devem ser administradas doses suplementares de insulina de acção rápida em função, quer da glicémia capilar, quer do suprimento em hidratos de carbono. Refira-se, a propósito, que a pesquisa sistemática de cetonémia poderá alertar precocemente para a presença de infecção, mesmo antes de detectada febre ou outras manifestações.

Como se compreende, a sacarose eventualmente veiculada em xaropes ou suspensões orais não inviabiliza o controlo metabólico desde que o ajuste de insulina seja adequado.

A verificação de vómitos ou cetonémia persistentes obrigará ao recurso a centro hospitalar especializado para eventual fluidoterapia endovenosa de modo a prevenir a desidratação e a cetoacidose.

Intervenção cirúrgica

A cirurgia, sempre que possível, deve ter lugar em centros com apoio especializado e protocolos de actuação claros. Tratando-se de intervenção programada, a mesma deverá ter lugar no primeiro período matinal. Em presença de mau controlo metabólico, fora de situações emergentes, deverá ser protelada.

As doses habituais de insulina do doente devem ser reavaliadas no dia anterior, sendo necessário manter a insulinoterapia mesmo durante o jejum pré-operatório para evitar cetose e cetoacidose.

Em caso de cirurgia major (duração > 2 horas) é necessário iniciar pré-operatoriamente a perfusão endovenosa de insulina com ritmo ajustável de acordo com determinações muito frequentes de glicémia (em geral, de hora a hora) tendo como objectivo manter valores de glicémia entre 90 e 180 mg /dL.

Complicações agudas
Cetoacidose

A cetoacidose diabética (CAD), a emergência hiperglicémica mais frequente em doentes diabéticos, é mais comum nos casos inaugurais, na proporção estimada variando entre 15-80%; esta heterogeneidade não está completamente esclarecida.

Constituindo a causa mais frequente de morte relacionada com a diabetes (0,7 a 1%), a respectiva patogénese relaciona-se na maioria dos casos com edema cerebral. O maior risco ocorre aquando do primeiro episódio, nas primeiras 24 horas, e na idade inferior a 5 anos.

A CAD resulta de uma cascata de alterações desencadeadas por um défice grave de insulina associado ao excesso de hormonas contrarreguladoras (Figura 2).

Assim:

  1. a hiperglicémia (aumento da produção de glicose e diminuição da sua utilização periférica) leva a diurese osmótica, desidratação, activação do sistema renina-angiotensina e perda de electrólitos. A intensidade e duração deste quadro aumenta o risco de edema cerebral;
  2. aumento de ácidos gordos livres (AGL) em circulação fornece substracto para a produção e acumulação de corpos cetónicos, do que resulta acidose metabólica.

O tratamento deve atender às múltiplas vertentes da descompensação (factor desencadeante, insulinopenia e alterações fisiopatológicas decorrentes).

Durante a fase de correcção são várias as complicações possíveis, constituindo o edema cerebral a mais grave.

Este pode estar relacionado com correcção excessiva ou demasiadamente rápida do desequilíbrio hidro-electrolítico e da acidose, pelo que importa seguir um protocolo de actuação especializado em unidade de cuidados intensivos (ver capítulo seguinte).

FIGURA 2. Fisiopatologia da CAD

Hipoglicémia

Trata-se da complicação aguda mais frequente da DM1, definida como valor de glicémia inferior a 70 mg/dL independentemente de haver ou não sinais e sintomas associados.

A hipoglicémia nos doentes com DM1 pode ocorrer numa proporção significativa mesmo em indivíduos correctamente controlados. A incidência de episódios ligeiros ou moderados é mal conhecida, estando em regra apenas registados os casos de hipoglicémia grave.

Podendo resultar de diversas circunstâncias, de um modo geral surge por excesso relativo de insulina em relação à glicémia (por ex. em presença de:

  • alteração da dose ou do horário de administração;
  • variações na absorção da insulina ou da sensibilidade à mesma;
  • exercício físico;
  • cálculo de dose excessivo para o suprimento de hidratos de carbono).

Dado que, após um primeiro episódio de hipoglicémia, as respostas autonómicas a subsequentes episódios ficam reduzidas, a probabilidade de detecção dos respectivos sinais pelo próprio doente vai-se também reduzindo com o tempo.

Os sintomas clássicos de hipoglicémia são: tremores, taquicárdia, diaforese, dores abdominais, e ansiedade (em relação com libertação de catecolaminas), cefaleia, irritabilidade, estado confusional, alterações do comportamento, “birras”, convulsões focais ou generalizadas, e coma (em relação com neuroglicopénia de grau variável).

A preocupação com as medidas de prevenção deve ser tanto maior quanto menor a idade da criança (sobretudo até aos 6 anos). No caso de episódios ligeiros a moderados, a actuação inclui administração oral de açúcares de absorção rápida (glucose, sacarose) 0,3 g/kg de glucose (9-15 gramas de glucose).

A glicémia deve ser reavaliada após 10-15 minutos, repetindo se necessário a administração oral de glucose. Atingida a melhoria de sintomas ou normoglicémia, a criança deve ingerir hidratos de carbono complexos para prevenir a recorrência de hipoglicémia (refeição ligeira composta por pão, bolachas, fruta ou a refeição prevista no caso de o episódio ocorrer imediatamente antes desta).

 Em situações mais graves que levam ao coma ou a convulsões, a actuação de emergência inclui a administração de glucagom injectável por via subcutânea ou intramuscular na dose de 0,5-1 mg (1/2 ampola a 1 ampola, respectivamente antes e depois dos 12 anos de idade, ou 10-30 mcg/kg de peso corporal). O efeito verifica-se em 10-15 minutos.

Em meio hospitalar, pressupondo-se vigilância rigorosa contínua da glicémia, procede-se a perfusão endovenosa de glucose durante alguns minutos na dose total de 200-500 mg de glicose/kg de peso corporal, sendo que glicose a 10% fornece 100 mg/mL). Salienta-se que a administração demasiadamente rápida ou em concentração excessiva pode levar a alteração brusca de osmolaridade com risco de edema cerebral.

Complicações tardias

As complicações tardias da diabetes incluem retinopatia, nefropatia, neuropatia e doença macrovascular.

Embora um controlo metabólico correcto diminua significativamente as complicações da DM1 e estas sejam raras antes da puberdade, torna-se obrigatório realizar de modo sistemático o respectivo rastreio.

O rastreio de retinopatia deve ter início a partir dos 10 anos de idade e após 2 anos de evolução da diabetes.

O exame oftalmológico inicial permite excluir alterações prévias, nomeadamente congénitas. O rastreio deve ser feito anualmente por fundoscopia.

O rastreio de microalbuminúria indicado a partir dos 10 anos de idade permite detectar disfunção renal e risco de progressão para nefropatia; o tratamento com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) pode prevenir a progressão para proteinúria.

A vigilância frequente da pressão arterial em cada consulta, ou sempre que os sinais clínicos o indiquem, tem como objectivo a detecção da hipertensão arterial e início de tratamento. O tratamento farmacológico com IECA é recomendado sempre que os valores atinjam ou ultrapassem o percentil 95.

O rastreio de dislipoproteinémia é recomendado a partir dos 10 anos de idade, ou dos 2 anos se houver antecedentes de tal alteração ou de doença cardiovascular.

O rastreio da neuropatia periférica e autonómica, rara na idade pediátrica, deve ser realizado a partir dos 10 anos de idade evolução da diabetes.

2. Diabetes mellitus tipo 2 (DM2)

Definição e importância do problema

A diabetes tipo 2 (DM2) é uma perturbação do metabolismo dos hidratos de carbono que cursa com hiperglicémia e secundário a alterações do mecanismo de acção periférica da insulina e da capacidade funcional das células beta. Tratando-se duma forma de diabetes anteriormente considerada como própria do adulto, importa salientar que na actualidade a sua prevalência é crescente na idade pediátrica, manifestando-se em idades cada vez mais baixas designadamente em associação a obesidade cuja incidência tem aumentado.

Etiopatogénese

Esta forma de diabetes é comparticipada pela influência de factores genéticos, epigenéticos e ambientais.

Classicamente considera-se que a perturbação metabólica mais precoce nos indivíduos que desenvolvem DM2 é a resistência à acção da insulina, em geral associada a obesidade como foi referido. Em tal fase evolutiva, a resistência à insulina (IR) implica que, para exercer os mesmos efeitos biológicos, é necessária secreção aumentada de compensação, levando a hiperinsulinémia (sem hiperglicémia) – 1ª fase.

A diabetes aparece mais tarde quando a capacidade funcional do pâncreas se esgota, sendo incapaz de produzir a quantidade de insulina necessária para fazer frente às necessidades aumentadas (deficiência relativa de insulina) – 2ª fase.

Contudo, admite-se na actualidade que ambas as fases (1ª + 2ª) poderão coexistir desde os primeiros estádios da doença. Nos casos de obesidade verifica-se o seguinte fenómeno: para que a DM2 ocorra é necessária a coexistência de IR e de inadequada secreção compensatória de insulina; todos os indivíduos obesos terão IR, mas só naqueles em que não ocorre aumento compensatório da secreção de insulina verificará DM2.

Nos casos de obesidade, concomitantemente com a resistência à insulina, verifica-se aumento de produção de glucose hepática que, secundariamente, leva à diminuição da capacidade de secreção de insulina (em condições normais induzida pela glucose).

Ao longo do tempo verifica-se fenómeno de glucotoxicidade (pela hiperglicémia crónica) e de lipotoxicidade (pela hiperlipémia crónica) sobre as células b dos ilhéus, do qual resulta diminuição da expressão do gene da insulina.

A resistência à insulina faz parte da síndroma metabólica, típica na DM2, a qual inclui também obesidade abdominal, desregulação do metabolismo da glucose, dislipidémia e HTA.

Embora seja admitido que na DM2 não existe destruição autoimune das células b, em certos casos têm sido identificados alguns marcadores autoimunes (autoanticorpos) que também surgem na DM1, tais como GAD 65, ICA 512 e IAA.

Em adultos verifica-se já uma redução de 50% da secreção de insulina na altura do diagnóstico de DM2. Dados do estudo TODAY (Treatment Options for DM2 in Adolescents and Young) sugerem que esta perda é mais rápida nos adolescentes.

Tendo sido referido o papel de factores genéticos, epigenéticos e ambientais na génese e evolução a médio e longo prazo da DM2, importa salientar a comparticipação do baixo peso de nascimento, da RCIU e da obesidade.

O baixo peso de nascimento e a RCIU estão associados a risco elevado de DM2; admite-se um fenómeno de programação in utero (hipótese do fenótipo da poupança): o feto adapta-se à má nutrição, poupando os nutrientes e maximizando o seu armazenamento deficiente. Neste contexto, o risco parece ser maior nas crianças com ganhos de peso mais rápidos nos primeiros meses de vida por suprimento elevado de energia e proteínas.

A obesidade, relacionada com factores etiopatogénicos nutricionais, está associada ao desenvolvimento de DM2, o que se relaciona fundamentalmente com resistência à insulina. A gordura visceral, sendo metabolicamente activa, produz adipocinas que contribuem para a referida IR e igualmente para a disfunção endotelial com consequente risco cardiovascular. Efectivamente, cerca de 90% de indivíduos com DM2 são obesos. No entanto, a dieta hipercalórica pode constituir factor de risco independente.

Admite-se actualmente também a intervenção de factores epigenéticos; com efeito, alguns poluentes ambientais poderão intervir na etiopatogénese e progressão da DM2, encontrando-se ainda a sua identificação em fase de investigação.

Aspectos epidemiológicos

A DM2, anteriormente considerada de baixa prevalência em idade pediátrica, evidencia hoje prevalência crescente em relação com o aumento da obesidade.

O pico de incidência situa-se na segunda década de vida coincidindo com o pico de aumento fisiológico de IR da puberdade. A prevalência é variável com a etnia.

Nos EUA e Europa quase todos os casos se associam a um índice de massa corporal (IMC) acima do percentil 85, registando-se maior frequência em populações com níveis socioeconómicos e educacionais mais baixos.

Outros exames diagnósticos (a realizar apenas em centros especializados de diabetologia pediátrica e perante situações duvidosas ou necessidade de classificação definitiva do tipo de diabetes) são a determinação da insulinémia e do péptido C em jejum.*

Utilizando-se o péptido C na DM1 estabelecida, os seus valores são baixos (< 0,6 ng/mL), não aumentando após refeição ou administração de glucose; contudo, em fases iniciais tal marcador pode evidenciar valores dentro dos limites da normalidade. Com as limitações atrás referidas, podem ser detectados anticorpos ICA, GADA e IAA.

*Recorda-se que a biossíntese do polipéptido designado por insulina (a partir das células beta dos ilhéus de Langerhans), ocorre com a libertação na corrente sanguínea de quantidades equimolares de insulina e do chamado péptido C.

O péptido C constitui um bom marcador da função das células beta e, por isso, da reserva e da produção endógena de insulina; por outro lado, o seu valor sanguíneo (normal ~1,1-5,0 ng/mL), com uma vida média cinco a dez vezes superior à da insulina endógena, não é influenciado pela administração exógena de insulina, nem pela existência de anticorpos anti-insulina. Em determinadas situações o valor de péptido C está elevado; por ex. insuficiência renal, hipopotassémia, síndroma de Cushing e gravidez.

Manifestações clínicas

Apesar de poder descrever-se um quadro clínico típico de DM2 devido à actual prevalência de obesidade a distinção entre DM1 e DM2 poderá ser difícil dado que numa percentagem significativa das crianças e adolescentes com DM1 se verifica obesidade. Por outro lado, a DM2 pode manifestar-se com um quadro de descompensação metabólica com cetose ou mesmo, ainda que mais raramente, com cetoacidose.

Na DM2 aplicam-se idênticos critérios de diagnóstico de DM1, já referidos na alínea 1.; pode ser confirmada pela determinação da insulinémia e do péptido C em jejum.

A HbA1c tende a ser de valor mais elevado.

A pesquisa de autoanticorpos contra células b é negativa (excepção para ICA512 -ver atrás).

Os casos de obesidade, de alterações metabólicas associadas e de antecedentes familiares de DM2 comportam risco de desenvolvimento do mesmo tipo de DM.

A verificação de acanthosis nigricans (manifestação dermatológica de hiperinsulinismo sob a forma de pigmentação com hiperqueratose notória na nuca e nas pregas de flexão, verificada em 90% dos casos), de obesidade (em 80-90% dos casos), de síndroma do ovário poliquístico na rapariga obesa, de história familiar de DM2, e a ausência de anticorpos contra os antigénios das células b dos ilhéus de Langerhans, apontam para a forte possibilidade de DM2 no doente em estudo.

De salientar que a acanthosis nigricans pode ser considerada um marcador (e levar à suspeita) de resistência à insulina, de hiperinsulinémia e, eventualmente, de DM2.

A cetoacidose, embora menos frequente que na DM1, pode ocorrer, sobretudo em situações de estresse ou infecção intercorrente.

Tratamento

Sempre que o diagnóstico seja feito em cetose ou cetoacidose é necessário iniciar de imediato tratamento com insulina.

Os casos duvidosos, sem certeza de diagnóstico diferencial com DM1 ou quando apresentam glicémia ocasional ≥ 250 mg/dL ou HbA1c ≥ 9% têm também indicação para início de insulinoterapia.

Quando em presença de um quadro típico de DM2, sem dúvidas de diagnóstico, confirmando-se que não existe cetose, que a glicémia é inferior a 250 mg/dL e a HbA1c < 9%, é possível a abordagem terapêutica com modificação do estilo de vida (alimentação saudável e actividade física). No entanto, devido à baixa taxa de sucesso destas medidas, deve proceder-se desde o início à terapêutica farmacológica com hipoglicemiantes orais.

Hipoglicemiantes orais

Apesar de estarem disponíveis numerosos hipoglicemiantes orais, para o tratamento da criança e adolescente, apenas se encontra actualmente aprovado em Portugal, como na maioria dos países, a metformina.

A metformina actua a nível do músculo, tecido adiposo e predominantemente a nível hepático. Reduz a libertação de glicose pelo fígado, diminuindo a neoglicogénese e aumenta também a captação de glicose estimulada pela insulina a nível do músculo e do tecido adiposo. Tem ainda um efeito inicial de redução de apetite sem risco de hipoglicémia quando utilizada em monoterapia.

No início de tratamento poderão ocorrer sintomas gastrintestinais, nomeadamente diarreia, náuseas e dor abdominal transitórias, pelo que a dose diária inicial deve ser de 500 mg, aumentando-a gradualmente em 3-4 semanas (dose máxima de 2000 mg).

Em caso de doença gastrintestinal deve ser suspensa a medicação, bem como antes da realização de exame radiológico com contraste. Em situações normais o risco de acidose láctica é residual.

A metformina pode utilizar-se em associação com insulina.

Nos casos de diabetes tipo 2 medicados com metformina, esta medicação deve ser suspensa pelo menos 24 horas antes (em caso de cirurgia major deve também ser iniciada insulina em perfusão endovenosa) e nas 48 horas seguintes até estar confirmada a normalidade da função renal.

Considerando os fármacos com efeito estimulante da secreção de insulina cabe referir ainda o GLP-1 (glucagon like peptide 1) que igualmente suprime a resposta do glucagom, atrasa o esvaziamento gástrico e promove a saciedade. Este péptido é segregado em condições normais pelas células L do intestino delgado.

A sua utilização não está aprovada abaixo dos 18 anos de idade; no entanto, encontram-se actualmente em curso estudos em adolescentes.

Insulina

Excepto na fase de descompensação aguda, uma dose única de insulina basal (NPH ou análogo da acção lenta) na dose de 0,2-0,3 Unidades/kg pode ser suficiente, em associação com metformina. Quando o objectivo de controlo não é deste modo atingido, pode ser indicado acrescentar bolus prandiais de insulina de acção rápida.

3. Outros tipos de diabetes mellitus

De modo sucinto são discriminados outros tipos específicos de DM, mais raros, alguns dos quais partilham características, quer com a DM1, quer com a DM2.

Defeitos genéticos da função das células beta

Compreende as formas:

  • DM monogénica dita anteriormente MODY (sigla do inglês – maturity onset diabetes of youth); e
  • DM por defeitos mitocondriais; estes subtipos estão relacionados com defeitos hereditários de genes mitocondriais das células b dos ilhéus.
Defeitos genéticos influenciando a acção da insulina
  • Trata-se de situações muito raras relacionadas com mutações de genes do receptor da insulina: resistência à insulina tipo A, leprechaunismo, síndroma de Rabson-Mendenhall, diabetes lipoatrófica e síndroma stiff-man/ “homem rígido” (doença autoimune do SNC, caracterizada por espasmos dolorosos e rigidez progressiva, extremamente rara e títulos elevados de anticorpos anti-descarboxilase do ácido glutâmico) (ver Glossário Geral).
DM neonatal         

Inclui:

  1. a diabetes transitória do RN;
  2. a diabetes permanente do RN;
  3. a diabetes transitória do RN com recorrência 7-20 anos mais tarde; (ver adiante)
  4. a síndroma IPEX (sigla de Imunodesregulação, Poliendocrinopatia, Enteropatia e ligada ao cromossoma X) com quadro de diabetes autoimune, em > 90% dos casos desenvolvendo-se na 1ª semana de vida;
  5. defeitos do gene da insulina, situação rara.
Doenças do pâncreas exócrino

São referidas como mais representativas as seguintes situações: pancreatite, lesões traumáticas, pancreatectomia, neoplasia, fibrose quística, hemocromatose, pancreatopatia fibrocalculosa. Especial ênfase deve ser dada à entidade designada por diabetes relacionada com a fibrose quística (DRFC) com características, quer de DM1, quer de DM2 por destruição de ilhéus, substituídos por fibrose e tecido adiposo.

Doenças autoimunes
  • Tiroidite de Hashimoto (tiroidite linfocítica crónica) e a doença celíaca frequentemente associadas a DM1 como foi referido na alínea 1.
Endocrinopatias
  • Citam-se as seguintes: acromegália, síndroma de Cushing, glucagonoma, feocromocitoma, hipertiroidismo, somatostatinoma, etc..
Fármacos e agentes químicos
  • Como exemplos são referidos os seguintes: pentamidina, ácido nicotínico, glucocorticóides, hormona tiroideia, diazóxido, agonistas beta-adrenérgicos, alfa-interferão, etc.; em geral está em causa acção de toxicidade sobre as células beta.
Infecções
  • Já abordadas anteriormente, deste modo sistematizado cabe salientar: rubéola congénita e citomegalovírus.
Síndromas genéticas
  • Síndromas Down, Klinefelter, Turner, Wolfram, Prader-Willi, Laurence-Moon-Biedl, Ataxia de Friedreich, Coreia de Huntigton, Porfíria, Cockaine, Werner, etc.;
  • Muitas destas síndromas, embora raras, são modelos que permitem a compreensão das diversas perturbações do metabolismo dos hidratos de carbono.
Diabetes gestacional
  • Durante a gestação verifica-se intolerância anormal à glucose durante a gravidez (regredindo após o parto), que comporta risco significativo de DM, em geral do tipo MODY.

No âmbito da alínea 3., dois tipos de diabetes monogénica com especial relevância em idade pediátrica – MODY (maturity onset diabetes of the young – diabetes juvenil de início no adulto) e Diabetes neonatal – são referidos mais pormenorizadamente.

Na prática clínica importa fazer referência a certos aspectos semiológicos, traduzindo certas atipias que sugerem a probabilidade de diabetes monogénica, a saber:

  • em casos diagnosticados como DM1 – diagnóstico nos primeiros 6 meses de vida ou antecedentes familiares de diabetes num dos progenitores e noutros parentes em primeiro grau; – ausência de autoanticorpos na data do diagnóstico; – função das células beta relativamente preservada traduzindo-se por baixas necessidades de insulina e péptido C com valores normais;
  • em casos diagnosticados como DM2 – ausência de obesidade, de acantose e de outros marcadores de síndroma metabólica em indivíduos pertencentes a etnias com baixa incidência de DM2 e com história familiar de diabetes, mas não de obesidade.

1. DM monogénica dita anteriormente MODY (sigla do inglês – maturity onset diabetes of youth)
Compreende um grupo de formas relativamente ligeiras de diabetes associadas a defeito primário na secreção de insulina, sem cetose nem acidose, com péptido C baixo, HbA1c ligeiramente elevada, têm em comum a hereditariedade dominante e o início antes dos 25 anos de idade.
Como critérios estritos do diagnóstico de MODY, incluem-se: diabetes em pelo menos três gerações com pelo menos um indivíduo afectado.
Entre as mutações identificadas em pelo menos 10 genes, na sua maioria em heterozigotia, são mais frequentes (90%) as dos seguintes genes: GCK/gene da enzima glucocinase (MODY 2), e de genes de vários factores de transcrição – HNF4-alfa/gene do factor de transcrição (MODY 1), HNF1-alfa/gene do factor de transcrição (MODY 3), e HNF1-beta/gene do factor de transcrição (MODY 5). A forma MODY 1 é mais frequente em adultos.
A importância da realização do diagnóstico molecular radica nas implicações quanto ao tratamento: por ex. o subtipo MODY 2 não requer qualquer tratamento, enquanto nos restantes está indicada a utilização de hipoglicemiantes (sulfonilureias) em doses baixas.

2. Diabetes mellitus neonatal
Esta forma rara tem início nos primeiros 6 meses de vida, em geral associada a RCIU, o que reflecte défice pré-natal de insulina, hormona que promove o crescimento intrauterino.

Distinguem-se duas formas clínicas:

  1. Diabetes neonatal transitória
    Esta forma em geral dura em média 3-4 meses, tendendo a reaparecer na idade escolar ou adolescência numa proporção ~50%.
    A alteração genética mais frequente consiste numa alteração de imprinting dos genes ZAC e HYAM1 [Cr 6q24] que codificam reguladores da apoptose.
    Está indicado o tratamento com insulina regular (1-2 Unidades/kg/dia) em duas doses, com redução progressiva dependendo da evolução.
  2. Diabetes neonatal permanente
    A alteração genética mais frequente é uma mutação nos genes KCNJ11 e ABCC8 que codificam subunidades do canal de K+ ATP-dependente da célula β pancreáticas ou no gene da própria insulina, traduzindo-se em anomalias no processo secretório ao nível das células β.
    De referir que ambos os genes do canal de potássio também se têm relacionado com alguns casos de diabetes neonatal transitória.
    Na maioria dos casos (~90%) com mutações nos genes KCNJ11 e ABCC8 está indicado o tratamento com sulfonilureia, por vezes na sequência de tempo de tratamento com insulina.

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www.ISPAD.guidelines2019.org

www.ADA.guidelines2019.org (acesso em Abril, 2019)

PUBERDADE NORMAL E PATOLÓGICA

Definições

A puberdade é o período de transição entre a infância e a idade adulta, caracterizado pela maturação da gametogénese, secreção de hormonas gonadais, desenvolvimento de características sexuais secundárias, aquisição de capacidade reprodutiva e aumento da massa óssea e da estatura.

Por outro lado, a adolescência, muitas vezes usada erradamente como sinónimo de puberdade, reflecte as alterações cognitivas, psicossociais e emocionais inerentes a este período de mudança e readaptação.

A gonadarca diz respeito ao início da função pubertária gonadal, com a produção da maioria das hormonas subjacentes às alterações sexuais secundárias que caracterizam cada um dos géneros.

No sexo feminino, a telarca traduz o início do desenvolvimento mamário, enquanto a menarca indica o início dos ciclos menstruais.

No sexo masculino, a espermarca refere-se ao aparecimento de espermatozóides no líquido seminal.

A adrenarca consiste no início da produção de androgénios pela suprarrenal.

A pubarca denota o início do crescimento do pelo púbico secundário ao aumento androgénico de origem suprarrenal e/ou gonadal.

1. Desenvolvimento pubertário normal

Gonadarca

A puberdade resulta da maturação da atividade do eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal (HHG). A hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH) é produzida no hipotálamo de forma pulsátil, levando à secreção intermitente, pela hipófise anterior, de duas outras hormonas: a hormona luteinizante (LH) e a hormona folículo-estimulante (FSH).

O aumento gradual da pulsatilidade da GnRH, decorrente da maturação neurológica central que controla a estimulação e a inibição dos neurónios hipotalâmicos, desencadeia o início da puberdade. Na verdade, esta decorre da alteração da sensibilidade do sistema neuroendócrino ao efeito retroactivo negativo produzido pelas hormonas gonadais. Assim, enquanto na infância a inibição central da produção de GnRH acontece apenas com uma quantidade residual de esteróides sexuais, na puberdade são necessárias concentrações sobreponíveis às existentes na idade adulta para que ocorra efeito retroactivo negativo a nível hipotâmico. Os principais inibidores da GnRH são o ácido gama-amino-butírico (GABA) e os opióides, enquanto os estimulantes incluem o glutamato e o kisspeptin, sendo as células da glia facilitadoras desta secreção.

Sabe-se actualmente que grande parte da variabilidade relativa ao momento de início da puberdade é determinada geneticamente, sendo a etnia o principal factor subjacente. O processo pubertário é ainda influenciado pelo estado geral de saúde do indivíduo, pela nutrição, pela hormona de crescimento, pela função tiroideia e por disruptores endócrinos ambientais.

A maturação pubertária e a esquelética têm determinantes somáticos comuns. Na verdade, as crianças geralmente entram na puberdade quando atingem uma determinada idade óssea (IO), estando os estádios pubertários mais correlacionados com esta do que com a cronológica. Assim, por exemplo, a telarca ocorre geralmente aos 10 anos de IO, enquanto a menarca tem lugar, em média, aos 12,5 anos de IO. Por outro lado, é fundamental um estado nutricional adequado para o início e manutenção de uma função reprodutiva normal. Desta forma, a menarca também se correlaciona mais com o peso e a massa gorda do que com a idade cronológica ou a estatura. Esta ligação pode ser a explicação para o atraso pubertário em populações subnutridas e para o aparecimento mais precoce naquelas com excesso ponderal. A leptina, uma hormona produzida pelos adipócitos que sinaliza o armazenamento energético, parece ser o elo de ligação entre o estado nutricional e o início e manutenção da capacidade reprodutiva. Esta hormona actua no hipotálamo, reduzindo o apetite e estimulando a secreção de gonadotrofinas. A sua concentração aumenta ao longo da infância e da puberdade, atingindo níveis mais elevados no sexo feminino.

O eixo HHG encontra-se activo durante os períodos fetal e neonatal, sendo que o padrão de secreção hormonal sexual nesta fase parece ter um papel importante na programação sexual dimórfica adulta a nível neuroendócrino, metabólico e comportamental. O eixo HHG é formado no primeiro trimestre gestacional, passando a contribuir no trimestre seguinte para o crescimento peniano e para a fase de descida inguinoescrotal dos testículos, no rapaz. No final da segunda metade da gravidez, a sua actividade é suprimida pela grande quantidade de estrogénios sintetizados pela unidade fetoplacentar.

No período neonatal, e na ausência dos estrogénios maternos, o eixo funciona a um nível semelhante ao pubertário. Esta “mini-puberdade do recém-nascido”, apesar de subclínica, pode contribuir para o crescimento genital externo, para a presença de acne e para uma telarca transitória. Posteriormente e durante toda a infância, por acção inibitória do sistema nervoso central, o eixo HHG passa a uma fase de latência.

No final do período pré-pubertário, esta inibição diminui progressivamente, com aumento gradual da atividade do eixo, até finalmente ser atingida a fase pubertária.

A primeira alteração hormonal que ocorre na puberdade é o aumento nocturno da libertação pulsátil de LH hipofisária. A FSH é segregada em paralelo, mas com um aumento relativo bastante inferior. No início da puberdade ocorre uma variação hormonal circadiana única, com um aumento pulsátil significativo de LH durante o sono, ao qual se opõe uma secreção mínima durante o período diurno. A resposta gonadal a este padrão de secreção de LH difere entre os dois sexos: o pico de secreção ovárica de estradiol tem lugar por volta do meio-dia, enquanto a testosterona testicular é libertada também durante o sono e com pico cerca de 2 horas após o de LH. Além disso, na rapariga desde o início da puberdade, existe uma secreção hormonal cíclica subclínica.

À medida que a puberdade progride, a secreção de LH prolonga-se pelo período diurno e, depois da menarca, esta variação circadiana desaparece. Contudo, a concentração adulta de esteróides sexuais apresenta uma ligeira variação diurna, sendo mais elevada ao acordar. Cada uma das gonadotrofinas exerce a sua acção em células gonadais específicas: a LH estimula as células intersticiais ováricas (células da teca) a produzir androgénios precursores do estradiol e as células intersticiais testiculares (células de Leydig) a segregar testosterona; a FSH estimula o crescimento gonadal e a gametogénese, actuando nas células da granulosa ováricas promovendo o crescimento folicular, e nas de Sertoli testiculares. Estimulando a espermatogénese na granulosa, a FSH estimula ainda a aromatase, que transforma os androgénios produzidos pela teca, em estradiol.

À medida que as gónadas se tornam mais sensíveis ao efeito estimulante das gonadotrofinas, o seu volume e secreção hormonal aumentam progressivamente. Nos primeiros 3 anos após o início da puberdade, o estradiol aumenta anualmente cerca de 20 pg/mL, enquanto o da testosterona é de aproximadamente 10 ng/dL. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Hormonas pubertárias: intervalos séricos basais normais, no início da manhã

Adaptado de Bordini B, Rosenfield RL. Pediatr Rev, 2011
* Dos 6 aos 9 anos, as crianças pré-púberes podem ter valores de DHEA-S até 70 µg/dL.
# Os valores apresentados são relativos ao início da fase folicular. A meio do ciclo menstrual os valores são mais elevados: LH até 85 UI/L, FSH até 19 UI/L, Estradiol até 350 pg/mL.
Os níveis hormonais do rapaz púbere encontram-se entre os apresentados pelo pré-púbere e o homem adulto.

 LH
(UI/L)
FSH
(UI/L)
Estradiol
(pg/mL)
Testosterona total
(ng/dL)
DHEA-S
(µg/dL)
Pré-púbere (1-5 anos)< 0,2< 4< 10< 205 – 40*
Rapariga PúberePré-menarca≤ 121 – 12< 5013 – 4435 – 130
Pós-menarca#2 – 111 – 1220 – 8515 – 5975 – 255
Homem adulto1,4 – 91 – 9,2< 60300 – 950100 – 460

Na rapariga, este aumento hormonal culmina num efeito retroactivo positivo, levando a que o sistema neuroendócrino passe a ser capaz de segregar o pico de LH a meio do ciclo menstrual, quando o ovário assinala que se encontra preparado para a ovulação, através da secreção de um nível crítico e mantido de estrogénios. Por seu turno, estes vão estimular o desenvolvimento mamário, o crescimento do endométrio e a secreção de muco cervical. Paralelamente, os androgénios vão estimular o pêlo púbico e axilar e as glândulas sebáceas. A função gonadal é responsável por mais de 90% da produção de estradiol na mulher adulta (50% no homem) e por mais de 90% da síntese de testosterona no homem adulto (50% na mulher).

 

As hormonas gonadais desencadeiam o impulso e a função sexual, bem como o surto de crescimento pubertário. Se por um lado ambos os esteróides sexuais estimulam directamente o crescimento e a maturação epifisária, por outro diferem em alguns efeitos sobre o crescimento esquelético: enquanto os androgénios promovem o alargamento ósseo, os estrogénios são necessários à fusão epifisária e os maiores inibidores da reabsorção óssea.

Estas hormonas afectam ainda o crescimento de uma variedade de outros tecidos somáticos: os estrogénios promovem a lipogénese e a distribuição de tecido adiposo caracteristicamente ginóide; pelo contrário, os androgénios são lipolíticos (apesar de favorecerem a adiposidade visceral) e promotores do desenvolvimento muscular. Assim, apesar de ocorrer um aumento do índice de massa corporal, tanto na rapariga como no rapaz, a proporção relativa de massa magra (maior no rapaz) e gorda (superior na rapariga) difere bastante.

O surto de crescimento pubertário também é induzido de forma indirecta pelas hormonas sexuais ao potenciarem a secreção hipofisária de hormona de crescimento (HC), e com isso um aumento acentuado de factor de crescimento semelhante à insulina tipo 1 (IGF-I). Por outro lado, a HC é também essencial para que possa ocorrer o potencial efeito gonadotrófico máximo sobre o crescimento e função gonadais. Desta forma, será fácil compreender que o défice ou a resistência à HC, além de conduzirem à ausência do estirão de crescimento pubertário, sejam acompanhados de hipogonadismo, micropénis e desenvolvimento mamário escasso.

O início do ciclo menstrual provém da maturação cíclica dos folículos ováricos, da qual resulta uma variação periódica nos níveis de estradiol e progesterona que, por sua vez, induzem variações na concentração das gonadotrofinas. O objectivo biológico desta variação mensal é a selecção e maturação de um folículo dominante capaz de ser libertado e potencialmente fecundado.

Um ciclo menstrual (interlúnio) tem em média 28 dias, sendo composto por duas metades: a fase folicular (desde o primeiro dia menstrual até ao pico de LH indutor da ovulação) e a fase lútea (desde a formação do corpo lúteo até à menstruação seguinte). Nesta segunda fase (que tem lugar apenas nos ciclos ovulatórios), o corpo lúteo produz uma grande quantidade de progesterona e uma mais discreta de estradiol, de forma a manter a camada endometrial do útero, em preparação para uma potencial nidação. Se a fecundação (e com ela o aumento da gonadotrofina coriónica humana – hCG) não ocorrer, o corpo lúteo involui, com subsequente decréscimo hormonal seguido de fluxo menstrual (cataménio).

O doseamento sérico das várias hormonas mencionadas anteriormente requer que seja tida em consideração a sensibilidade e especificidade da metodologia utilizada pelo laboratório. Por outro lado, como referido previamente, os níveis estão sujeitos, não só a variações circadianas, mas também, no caso feminino, a alterações cíclicas (Quadro 1). Por estes motivos, é frequentemente necessário realizar uma prova de estimulação com GnRH (ou um agonista da GnRH) para diagnóstico de distúrbios pubertários: um pico de LH superior a 4.0 UI/L é sugestivo de início da puberdade.

Adrenarca

Durante a gestação, a zona fetal do córtex da suprarrenal produz grandes quantidades de sulfato de de-hidroepiandrosterona (DHEA-S), o principal substrato da síntese placentar de estrogénio. No primeiro ano de vida, esta zona vai sofrendo regressão progressiva. A adrenarca tem início na segunda infância, à medida que a zona reticularis do córtex suprarrenal se desenvolve.

O hipotálamo produz hormona libertadora de corticotrofina (CRH) que, ao estimular a hipófise anterior, leva à libertação de hormona adrenocorticotrófica (ACTH). Na infância, em resposta à ACTH, a zona reticularis tem a capacidade de sintetizar DHEA-S, mas não cortisol. Por este motivo, enquanto a cortisolémia não sofre grande alteração até à idade adulta, a concentração sérica de DHEA-S aumenta gradualmente a partir da segunda infância (Quadro 1). Apesar de este período coincidir aproximadamente com a produção de androgénios gonadais, a adrenarca é independente da maturação pubertária do eixo HHG, ou seja, da gonadarca. A suprarrenal produz mais de 90% de DHEA-S na criança e na mulher, e mais de 70% no homem. Por outro lado, esta glândula sintetiza 50% da testosterona na mulher adulta, e menos de 10% no homem adulto. A partir da idade escolar, o aumento da concentração de androgénios é responsável pelo estímulo apócrino e respectivo odor corporal, levando, aproximadamente a partir dos 10 anos, ao crescimento do pêlo púbico.

Estadiamento

Actualmente, na população geral, a idade de início da puberdade considerada normal é entre 8 e 13 anos na rapariga e entre 9 e 14 anos no rapaz. Contudo, nas raparigas de origem africana ou hispânica é habitual que a telarca ocorra um ano antes. Por outro lado, nos dois sexos, quando há excesso de peso e por ação da leptina, a puberdade tende a ter início cerca de 6 meses mais cedo.

Em 1969, Marshall e Tanner, com base numa amostra branca da população britânica e de forma a documentarem a progressão da maturação sexual em cada um dos géneros, desenvolveram uma escala utilizada até aos dias de hoje e mais conhecida como Estádios de Tanner. Através da palpação mamária feminina (M) e genital masculina (G), bem como da avaliação dos pêlos púbicos em ambos os sexos (P), os indivíduos são classificados em 5 estádios: 1- pré-púbere; 2- início da puberdade; 3 e 4- progressão da maturação; 5- morfologia adulta. (Figuras 1 e 2)

FIGURA 1. Desenvolvimento pubertário feminino: critérios de Tanner

FIGURA 2. Desenvolvimento pubertário masculino: critérios de Tanner

A puberdade feminina tem início com a telarca (M2), podendo o desenvolvimento mamário pode ser assimétrico, ou seja, existir 1 estádio de diferença entre as mamas. Tipicamente precede a pubarca em 1 a 1,5 anos, apesar de esta poder ocorrer em simultâneo ou um pouco antes. A menarca tem lugar cerca de 2,5 (0,5 a 3) anos após a telarca, em média aos 12,6 anos na população normoponderal branca e aos 12,1 anos na negra. O surto de crescimento pubertário começa em M2P2, com atingimento do pico de velocidade (8,25 cm/ano) em P3, cerca de um ano antes da menarca. Posteriormente, apesar de ocorrer uma desaceleração, há ainda um ganho de cerca de 7 cm, sendo que 99% do crescimento está concluído quando a idade óssea atinge 15 anos.

A puberdade masculina tem início quando o volume testicular atinge 4 mL (G2). Paralelamente ao que acontece na rapariga, pode ocorrer também assimetria testicular de 1 estádio. O estádio P3 ocorre cerca de 1 a 1,5 anos depois. Habitualmente, a espermarca tem início em G3, enquanto a barba e a alteração vocal ocorrem em G4. O pico de crescimento pubertário tem lugar durante os estádios G3 e G4 (9,5 cm/ano), em média 2 anos mais tarde que nas raparigas. Quando a idade óssea atinge 17 anos, 99% do crescimento está completo. Um período de crescimento mais longo e um pico de velocidade superior explicam a discrepância de estatura final entre os dois sexos.

2. Variantes do desenvolvimento pubertário normal

Adrenarca prematura

A adrenarca prematura diz respeito à presença de pêlo púbico antes dos 8 anos na rapariga e dos 9 anos no rapaz, sendo rara antes dos 6 anos. Pode ser acompanhada de pêlo axilar, odor corporal e acne ligeira. No seguimento do que foi dito, além de ser mais frequente na rapariga e nos indivíduos com excesso ponderal, tem ainda maior incidência quando a origem é africana ou hispânica.

Como explicado previamente, a adrenarca é independente do eixo HHG, ocorrendo como consequência do aumento de DHEA e DHEA-S androgénico produzidas pelo córtex da suprarrenal. O fenótipo da adrenarca prematura varia consideravelmente entre populações, podendo estar associado a baixo peso ao nascer, a resistência à insulina, a síndroma de ovário poliquístico e a risco cardiometabólico. Esta condição é considerada uma variante benigna, na ausência de outros sinais de puberdade, nomeadamente: surto de crescimento linear, clitoromegália, aumento fálico ou acne grave. A sua progressão pode ocorrer, mas associada a uma velocidade de crescimento normal.

A avaliação inclui a determinação da idade óssea que, podendo estar ligeiramente avançada, não deverá exceder 2 desvios-padrão relativamente à idade cronológica. Na presença de sinais sugestivos de excesso de androgénios, e para exclusão de hiperplasia congénita da suprarrenal e de tumor produtor de androgénios, deverá ser feito o doseamento de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP), DHEA-S e testosterona. Na adrenarca prematura a DHEA-S geralmente está elevada, sendo, contudo, consistente com o estádio de Tanner púbico. (Quadro 1)

Telarca prematura

A telarca prematura é definida como o desenvolvimento mamário na rapariga com menos de 8 anos e na ausência de outros sinais pubertários. Podendo estar presente desde o nascimento, é frequente nos primeiros dois anos de vida, após os quais tende a regredir. A causa exacta do aparecimento prematuro isolado da telarca continua desconhecida; admite-se que possa ser provocada pelo aumento da sensibilidade do tecido glandular, apesar da existência de níveis muito baixos de estrogénios. Paralelamente, há estudos que sugerem a associação a disruptores endócrinos, nomeadamente, a soja.

Uma vez que o desenvolvimento mamário é a primeira manifestação pubertária na rapariga, é essencial distinguir a telarca prematura da puberdade precoce de causa central. Assim, se a velocidade de crescimento for normal e o desenvolvimento mamário for mínimo, não é necessário proceder a qualquer investigação, devendo ser realizada apenas vigilância rigorosa da evolução. Contrariamente, se ocorrer aceleração do crescimento linear ou progressão do desenvolvimento pubertário, a exclusão de puberdade precoce torna-se obrigatória, e mais ainda pelo facto de numa pequena percentagem de raparigas com telarca prematura se poder vir a desenvolver ulteriormente puberdade precoce central.

Atraso constitucional do crescimento e da puberdade

O atraso constitucional do crescimento e da puberdade traduz uma demora exagerada no início do surto pubertário e da maturação em crianças saudáveis: ambos ocorrem de forma normal, mas numa idade mais tardia. Em 50-70% dos casos existe uma história familiar sobreponível. Nestes indivíduos, a estatura e o estádio pubertário são concordantes com a idade óssea, também ela atrasada. A estatura adulta final está de acordo com a estatura-alvo familiar.

O atraso constitucional do crescimento e da puberdade é um diagnóstico de exclusão, sendo por vezes difícil de distinguir do hipogonadismo hipogonadotrófico.

Actualmente, não são recomendados exames de rotina para distinguir estas duas entidades, pelo que os indivíduos deverão ser seguidos de perto até ao aparecimento de características pubertárias ou, na sua ausência, até ao limite superior do intervalo de normalidade para o início da puberdade, data em que se deverá proceder a investigação. (ver adiante)

Ginecomastia

A ginecomastia pubertária pode ocorrer em 50-60% dos rapazes, de forma fisiológica e geralmente entre os estádios 3 e 4 de Tanner, devendo-se essencialmente ao desequilíbrio entre as concentrações séricas de estrogénios e androgénios. Com duração de cerca de um ano, tem autorresolução no final da puberdade, não requerendo tratamento.

A ginecomastia pode ser uni ou bilateral, sendo frequentemente assimétrica. O diagnóstico é clínico, através da palpação mamária, sendo perceptível tecido glandular sob a região areolar. Esta entidade deve ser distinguida da pseudoginecomastia, provocada pelo aumento do tecido adipocitário (adipomastia). Por outro lado, no adolescente, as causas patológicas de ginecomastia são raras e incluem o hipogonadismo, o uso de drogas recreativas, a doença hepática crónica, a doença renal crónica e tumores secretores de hCG.

3. Puberdade precoce

Como explicado previamente, a puberdade é definida como precoce quando as características sexuais secundárias ocorrem antes dos 8 anos na rapariga ou dos 9 anos no rapaz. A sua causa pode ser dependente das gonadotrofinas (central) ou independente (periférica). (Quadro 2)

QUADRO 2 – Causas de puberdade precoce

Adaptado de Williams Textbook of Endocrinology, 13th Ed. 2016

Central ou Dependente de Gonadotrofinas

    • Idiopática
    • Tumores do SNC
      • Hamartoma hipotalâmico
      • Glioma óptico associado a neurofibromatose tipo 1
      • Astrocitoma hipotalâmico
    • Outras alterações do SNC
      • Hidrocefalia, mielomeningocele, quisto aracnoideu
      • Encefalite, encefalopatia
      • Abcesso, granuloma
      • Lesão vascular
      • Traumatismo craniano
      • Irradiação craniana
    • Mutações com ganho de função (KISS1R/GRP54)

Periférica ou Independente de Gonadotrofinas

    • Isossexual
      • No Rapaz
        • Tumores secretores de gonadotropinas
          • Germinoma, teratoma, coriocarcinoma, hepatoblastoma, etc.
        • Aumento da secreção de androgénios
          • Hiperplasia congénita da suprarrenal, neoplasia adrenal virilizante, adenoma das células de Leydig, testotoxicose familiar, síndroma de resistência ao cortisol
      • Na Rapariga
        • Quisto ovárico
        • Neoplasia ovárica secretora de estrogénios
        • Síndroma de Peutz-Jaghers
      • Em ambos os sexos
        • Síndroma de McCune-Albright
        • Hipotiroidismo
        • Exposição a disruptores endócrinos
    • Contrassexual
      • Feminização no Rapaz
        • Neoplasia adrenal
        • Corioepitelioma
        • Deficiência de CYP11B1
        • Hiperplasia adrenal tardia
        • Síndroma de Peutz-Jaghers
        • Aumento da conversão dos androgénios adrenais circulantes em estrogénios
        • Exposição a estrogénios
      • Virilização na Rapariga
        • Hiperplasia adrenal congénita (deficiências de: YP21, CYP11B1, 3ß-HSD)
        • Síndroma de Cushing
        • Síndroma de resistência ao cortisol
        • Deficiência de aromatase
        • Neoplasia ovárica virilizante
        • Exposição a androgénios

A história clínica deverá ser detalhada, precisando o momento e a ordem de aparecimento das várias alterações pubertárias e do surto de crescimento. Deverá ainda ser questionada a presença de cefaleia ou outros sintomas neurológicos centrais, bem como de antecedentes de traumatismo craniano, infecção do SNC e corticoterapia.

No rapaz, deverá proceder-se à medição do volume testicular com o auxílio do orquidómetro de Prader e ao estadiamento do pêlo púbico. Quando a causa for central haverá aumento do tamanho testicular, contrariamente à origem periférica em que este permanece pré-púbico (< 4 mL).

Na rapariga, deverá ser determinado o estádio de Tanner da mama e do pêlo púbico. O aumento mamário é indicador de puberdade precoce de origem central. O exame vaginal externo permitirá verificar se existe estrogenização da mucosa (baça e rosa), ou não (luzidia).

A estrogenização é também sugestiva de causa central. Uma vez que os esteroides sexuais estimulam o crescimento linear e a maturação epifisária, as crianças com puberdade precoce apesar de poderem ser mais altas que os seus pares durante esta fase, sofrerão encerramento precoce das epífises e, por conseguinte, no caso de não serem tratadas, serão mais baixas na idade adulta. Uma idade óssea superior a 2 anos em relação à cronológica ou de +2 desvios-padrão para a idade é sugestiva deste processo.

Puberdade precoce central

A puberdade precoce central (PPC) deve-se a uma activação prematura do eixo HHG, com secreção de gonadotrofinas hipofisárias, motivo pelo qual também é designada por puberdade precoce dependente de gonadotrofinas. A mesma ocorre mais frequentemente nas raparigas, sendo na maioria das vezes idiopática. Pelo contrário, nos rapazes, além de mais rara, geralmente identifica-se factor etiológico, nomeadamente massas ou lesões do SNC, sendo o hamartoma hipotalâmico o mais frequente.

O diagnóstico de PPC deve ser considerado quando há desenvolvimento prematuro do botão mamário ou aumento simétrico dos testículos, acompanhados por surto de crescimento. Nestes casos, o exame objectivo deverá incluir também a fundoscopia.

A investigação laboratorial pode revelar valores pubertários de gonadotrofinas e de esteróides sexuais (Quadro 1). Uma razão LH/FSH < 1, com um predomínio de FSH, é indicativa de um estado pré-pubertário, com um eixo HHG inactivo. Quando são utilizados métodos ultrassensíveis, um valor basal de LH ≥ 0,2 UI/L é suficiente para estabelecer o diagnóstico de PPC. Contudo, uma vez que as gonadotrofinas são segregadas de forma pulsátil, inicialmente os níveis basais podem ser baixos. Por este motivo, nos casos em que o índice de suspeita é elevado, deverá ser realizado um teste de estimulação com GnRH, o que confirmará a presença de PPC quando a LH ≥ 8,0 UI/L. Nestas situações, é obrigatório proceder a estudo imagiológico através de ressonância magnética para avaliação hipotálamo-hipofisária.

O tratamento tem por objectivo suprimir a produção de gonadotrofinas e, consequentemente, de esteróides sexuais. Nos casos com identificação de patologia subjacente, deverá ser tratada a condição de base, tendo, porém em consideração que na maioria dos casos de hamartomas hipotalâmicos não está indicada intervenção cirúrgica.

Por outro lado, o tratamento da PPC idiopática inclui a utilização de análogos da GnRH de longa ação: leuprorrelina e triptorrelina (injecção intramuscular ou subcutânea; 3,75 mg/mês ou 11,25 mg trimestrais); goserrelina e buserrelina (implante subcutâneo; 3,6 mg/mês ou 10,8 mg trimestrais); histrelina (implante subcutâneo; 50 mg/ano).

Estes fármacos, quando administrados de forma contínua, suprimem de forma paradoxal a libertação de gonadotrofinas e de esteróides sexuais, levando à frenação do aparecimento das características sexuais secundárias, do surto de crescimento pubertário e da maturação óssea, bem como da menarca na rapariga. A duração do tratamento, não sendo inferior a 2 anos, é determinada, caso a caso, tendo em mente os objectivos enumerados.

No que concerne à estatura final, existe maior benefício terapêutico se o tratamento for iniciado mal a PPC seja detectada (geralmente antes dos 6 anos), sendo menos eficaz quando introduzido mais tardiamente. O tratamento com análogos da GnRH é seguro e sem efeitos nefastos na futura função reprodutora, permitindo uma progressão pubertária normal após a sua interrupção. A menarca ocorre tipicamente 12 a 18 meses após a suspensão. Esta é baseada na idade cronológica (aproximadamente 11 anos), na idade óssea (cerca de 12 anos) e na velocidade de crescimento, tendo ainda em consideração os aspetos psicológicos do jovem e a vontade dos pais.

Puberdade precoce periférica

A puberdade precoce periférica (PPP), relativamente rara e contrariamente à central, independente do eixo HHG, é causada pela exposição exógena ou pela secreção endógena de hormonas gonadais e suprarrenais. Caracteriza-se pelo aparecimento prematuro de características sexuais secundárias juntamente com aumento da velocidade de crescimento na presença de valores normais ou baixos de LH e FSH, os quais não aumentam após teste de estimulação com GnRH.

Crianças com virilização isolada e rapidamente progressiva, acompanhada de surto pubertário, devem ser avaliadas para patologias que resultam em excesso de androgénios, nomeadamente: hiperplasia congénita da suprarrenal (HCSR), tumores adrenais produtores de androgénios, tumores ováricos produtores de androgénios (rapariga), tumores das células de Leydig (rapaz).

A HCSR tardia frequentemente é provocada pela deficiência da enzima 21-hidroxilase, levando ao aumento de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) a montante. Raparigas com excesso de androgénios circulantes podem apresentar clitoromegália.

Paralelamente, os rapazes terão crescimento peniano que, contudo, não é acompanhado de aumento do volume testicular; este facto permite distinguir o excesso de androgénios circulante da PPC. Uma assimetria testicular marcada associada a sinais de androgenização e a surto de crescimento é sugestiva de tumor das células de Leydig produtor de testosterona.

Raramente, a síndroma de Cushing pode também apresentar-se como virilização isolada, embora na ausência de surto de crescimento pubertário acompanhante. A avaliação dos casos em que existe virilização inclui a determinação da idade óssea e da velocidade de crescimento, bem como de 17-OHP, DHEA-S e testosterona. A determinação dos esteróides adrenais antes e depois da prova de estimulação com ACTH permite identificar os casos de HCSR.

A testitoxicose é uma forma de PPP familiar masculina, autossómica dominante, que geralmente surge aos 2-3 anos de idade, com valores de testosterona semelhantes aos do adulto, e gonadotrofinas suprimidas. Os doentes apresentam virilização excessiva, com aumento fálico, acne e comportamento mais agressivo, mas com testículos desproporcionalmente pequenos para o grau de virilização. Esta alteração genética rara é causada pela activação do receptor de LH, com hiperplasia das células de Leydig.

Também no sexo masculino, a produção ectópica de hCG por tumores de células germinativas ou por hepatoblastoma pode também estimular a produção de testosterona pelas células de Leydig testiculares. Nestes casos, os testículos podem estar aumentados de forma simétrica, apesar de também desproporcionalmente pequenos face ao grau de virilização. O diagnóstico é confirmado pela determinação da hCG sérica.

Nas raparigas, o desenvolvimento mamário rapidamente progressivo, quando associado a aceleração da estatura e a níveis significativamente elevados de estradiol com gonadotrofinas suprimidas, deve alertar para a possibilidade da existência de um tumor ovárico produtor de estrogénios ou de síndroma de McCune-Albright. Deverá ser realizada ecografia pélvica para avaliar a presença de quistos ou massas ováricas. Os quistos foliculares ováricos benignos podem apresentar-se como episódio isolado de hemorragia vaginal, regredindo espontaneamente. Porém, quistos de dimensões maiores podem predispor a torção ovárica, requerendo intervenção.

A síndroma de McCune-Albright (SMA) é definida pela tríada de: 1- PPP; 2- manchas café-com-leite unilaterais e que não cruzam a linha média; 3- displasia óssea fibrosa. Apesar de também poder ser observada no sexo masculino, é mais frequente nas raparigas. Estas, frequentemente, apresentam episódios recorrentes de hemorragia vaginal associados à formação de quistos foliculares que podem ser identificados ecograficamente.

Por outro lado, os rapazes apresentam sinais de excesso de androgénios, com crescimento peniano. Além da observação minuciosa do tegumento cutâneo, deverão ser realizadas radiografias de todo o esqueleto no intuito de identificar lesões ósseas de displasia fibrosa poliostótica. Esta síndroma é causada pela activação do gene GNAS1, provocando a estimulação continuada desta proteína em vários tecidos endócrinos (tiróide, suprarrenal, gónadas, hipófise), levando ao aumento da sua função.

Também o hipotiroidismo primário grave pode causar PPP em ambos os sexos. Na rapariga, cursa com aumento mamário, hemorragia vaginal e quistos ováricos; no rapaz leva a aumento testicular.

O objectivo do tratamento da PPP sobrepõe-se ao da PPC: retardar o aparecimento de características sexuais secundárias e diminuir o surto pubertário e a maturação óssea de forma a preservar a estatura adulta final. É importante ter em consideração que a PPP, sendo independente do eixo HHG, não responde aos análogos da GnRH, pelo que o tratamento deverá ser dirigido à patologia subjacente.

No caso da HCSR tardia, as crianças são tratadas com glucocorticóides no intuito de suprimir a produção androgénica. Nestes casos, a deficiência de 21-hidroxilase resulta de uma mutação mais ligeira, sem perda de sal, pelo que geralmente não é necessária a substituição com mineralocorticóides.

Nos tumores adrenais ou gonadais o tratamento é cirúrgico, enquanto os tumores produtores de hCG podem requerer ainda radioterapia.

O tratamento das raparigas com SMA inclui anti-estrogénios: anastazol ou letrozol (inibidores da aromatase), e tamoxifeno (modulador do receptor selectivo de estrogénios). Os rapazes com testitoxicose são tratados com uma combinação de espironolactona (bloqueante de receptor de androgénios), testolactona (inibidor da aromatase) e cetoconazol (inibidor da produção de androgénios testiculares e adrenais).

Nas crianças com exposição externa a hormonas, a sua remoção geralmente é suficiente para a regressão do processo.

4. Puberdade tardia

A puberdade tardia é definida pela inexistência de características sexuais secundárias após os 13 anos na rapariga, ou após os 14 anos no rapaz. A ausência de menarca (amenorreia primária) após os 16 anos é também considerada atraso pubertário. A puberdade tardia pode ter causa gonadal ou primária (hipogonadismo hipergonadotrófico), ou causa central ou secundária (hipogonadismo hipogonadotrófico). (Quadro 3)

QUADRO 3 – Causas de puberdade tardia

Hipogonadismo Hipergonadotrófico ou Primário

    • No Rapaz
      • Síndroma de Klinefelter (47XXY, 48 XXXY, etc.)
      • Defeitos na síntese de esteróides testiculares
      • Síndroma de Sertoli
      • Anorquia bilateral congénita
      • Criptorquidia
      • Traumatismo testicular ou remoção cirúrgica
    • Na Rapariga
      • Síndroma de Turner (45 X0)
      • Defeitos na síntese de esteróides ováricos
      • Deficiência de aromatase
      • Insuficiência ovárica autoimune
      • Síndroma de ovário poliquístico
      • Galactosémia
    • Em Ambos os Sexos
      • Síndroma de Noonan
      • Disgenésia gonadal
      • Mutações dos receptores de gonadotrofinas
      • Quimioterapia, radioterapia
      • Infecção (parotidite, varicela, malária, vírus Coxsackie, Shigella)

Hipogonadismo Hipogonadotrófico ou Secundário

    • Alterações do SNC
      • Hipopituitarismo por anomalias estruturais congénitas (ex: displasia septo-óptica)
      • Causas vasculares
      • Tumores: craniofaringeoma, germinoma, glioma hipotalâmico ou óptico, astrocitoma, tumor pituitário (ex: prolactinoma)
      • Doenças infiltrativas (hemocromatose, histiocitose)
      • Traumatismo craniano
      • Infecções
    • Deficiência Isolada de Gonadotrofinas
      • Síndroma de Kallman
      • Mutação do receptor de GnRH
      • Deficiência isolada de LH ou de FSH
    • Outras Causas
      • Síndroma de Prader-Willi
      • Síndroma de Bardet-Biedl
      • Síndroma de Laurence-Moon-Biedl
      • Doença crónica, má-nutrição, anorexia

É muito importante ter em consideração que estas entidades são referentes ao atraso da gonadarca e relativas ao eixo HHG. Assim, o pêlo púbico e axilar, bem como o odor corporal, relacionados com a presença de androgénios suprarrenais (adrenarca), podem estar presentes.

A história clínica deverá ter em consideração, não só a história familiar da idade pubertária, mas também antecedentes pessoais de condições sistémicas (por ex. anorexia, má-absorção, parotidite, malária, autoimunidade, hipopituitarismo) ou gonadais (radio/quimioterapia, traumatismo, cirurgia) que possam estar na origem deste atraso.

Também nesta situação, a avaliação da estatura, da velocidade de crescimento e da idade óssea são muito importantes: em regra, quando a causa é central, ocorre diminuição da velocidade de crescimento e atraso da idade óssea. A investigação laboratorial é a chave etiológica, sendo mandatória a determinação da LH e da FSH, bem como da testosterona total no rapaz ou do estradiol na rapariga.

Nos jovens com baixa estatura, deverá ser excluído hipopituitarismo, com determinação do IGF-1, da TSH e da ACTH. Caso o mesmo se confirme, deverá ser realizada ressonância magnética para avaliação da sela turca.

O tratamento das causas permanentes de hipogonadismo, seja ele primário ou secundário, são as mesmas, ou seja, a substituição hormonal com estrogénio na rapariga ou com testosterona no rapaz.

Em ambos os sexos, a dose inicial deve ser pequena e gradualmente aumentada ao longo dos 2-3 anos seguintes, de forma a mimetizar a puberdade normal. Na rapariga, o 17ß-estradiol é preferível ao etinilestradiol sintético, podendo ser administrado por via oral (inicialmente 5 µg/kg/dia, com incrementos de 5 µg/kg/dia a cada 6-12 meses, até à dose de adulto de 1-2 mg/dia), ou por via transdérmica (3,1-6,2 µg/dia, ou seja, ⅛–¼ do adesivo de 25 µg; incrementos de 3,1-6,2 µg/dia a cada 6-12 meses, até à dose de adulto de 50-100 µg/dia). Ao evitar o efeito de primeira passagem pelo fígado e minorando o risco protrombótico, a segunda via é preferível.

A adição de progesterona 10 dias por mês, geralmente sob a forma de acetato de medroxiprogesterona (5-10 mg/dia), deverá ser iniciada 1-2 anos após o início da terapêutica com estrogénio ou após a menarca. No rapaz, apesar de existirem várias formas de suplementação com testosterona, a mais utilizada é a intramuscular (enantato, cipionato ou propionato de testosterona) administrada a cada 28 dias. A dose inicial é de 50 mg, a qual é aumentada em 50 mg a cada 6-12 meses; após ser alcançada a dose de 100-150 mg/mês, o intervalo entre as administrações deverá ser reduzido para 2 semanas; a dose do adulto é de 200 mg a cada 2 semanas. As formulações em gel ou em penso transdérmico não são tão fáceis de manipular na criança; por outro lado, as orais comportam risco de toxicidade hepática, pelo que não são aconselhadas.

Hipogonadismo hipergonadotrófico ou primário

O hipogonadismo hipergonadotrófico refere-se à falência gonadal primária (ovárica ou testicular) na produção de esteróides sexuais. Esta carência, pela ausência de efeito retroactivo negativo sobre o eixo hipotálamo-hipofisário, leva a um aumento marcado da produção de gonadotrofinas, característica desta entidade.

A síndroma de Turner (45 X0) é a causa mais frequente de falência ovárica primária. As jovens apresentam baixa estatura associada a alterações características, nomeadamente: implantação capilar e auricular baixas, pescoço alado, tórax em escudo com aumento da distância intermamilar, cardiopatia direita.

Em todos os indivíduos do sexo feminino com baixa estatura, atraso do desenvolvimento mamário ou amenorreia primária, deve proceder-se obrigatoriamente a cariótipo. A fertilidade encontra-se comprometida por atrésia gonadal, pelo que as raparigas necessitam de terapia hormonal de substituição com estrogénios, a iniciar por volta dos 12 anos de idade, de forma a permitirem um desenvolvimento adequado das características sexuais secundárias, do útero e da massa mineral óssea.

A síndroma de Klinefelter (47 XXY, 48 XXXY, etc.) é a causa mais frequente de hipogonadismo primário no rapaz. As características clínicas incluem estatura elevada, ginecomastia, testículos pequenos e baixo QI. Em todos os indivíduos com estas características deve ser realizado cariótipo. Apesar de estes rapazes poderem apresentar adrenarca e início espontâneo da virilização, não ocorre desenvolvimento genital adequado e a fertilidade encontra-se comprometida por falência das células de Sertoli.

A terapêutica de substituição com testosterona deve ser iniciada quando a FSH e a LH começam a aumentar, de forma a promover o aparecimento das características sexuais secundárias e o aumento da densidade mineral óssea.

A falência ovárica autoimune é uma causa importante de hipogonadismo primário na rapariga, a qual pode estar associada a outras patologias autoimunes, incluindo: hipotiroidismo, insuficiência adrenal, diabetes mellitus tipo 1 ou hipoparatiroidismo.

A anorquia bilateral congénita (síndroma dos testículos desaparecidos) refere-se à regressão testicular que ocorre ainda in utero. A propósito da causa, ainda não bem estabelecida, admite-se que esta entidade possa resultar de trombose vascular ou de torção testicular, provavelmente após as 20 semanas de gestação, tendo em conta o desenvolvimento sexual dos genitais externos adequado, o que traduz função testicular normal durante o início da gestação.

Os agentes quimioterapêuticos (especialmente os alquilantes), assim como a radioterapia local podem desencadear insuficiência gonadal em ambos os sexos. Por outro lado, infecções como malária, parotidite, varicela, por vírus Coxsackie ou por Shigella podem desencadear ooforite ou orquite, levando a hipogonadismo. Por fim, o traumatismo pode também ser uma causa importante de falência testicular.

Hipogonadismo hipogonadotrófico ou secundário

O hipogonadismo hipogonadotrófico diz respeito à falência do eixo hipotálamo-hipofisário em segregar GnRH e/ou gonadotrofinas, com consequente ausência de estimulação gonadal, o que culmina na ausência de produção de esteróides sexuais. Os adolescentes com esta condição têm níveis basais baixos de LH e de FSH, não apresentando aumento das gonadotrofinas ou dos esteróides sexuais após prova de estimulação com GnRH.

A síndroma de Kallman, condição genética que pode afectar tanto rapazes como raparigas, caracteriza-se por hipogonadismo central associado a infertilidade e a anosmia. A sua origem está na falência da migração para o hipotálamo dos neurónios responsáveis pela produção de GnRH durante o desenvolvimento embrionário.

O hipopituitarismo, como referido anteriormente, está associado a sinais e sintomas relativos a outras deficiências hipofisárias. O exame objectivo pode ainda evidenciar defeitos da linha média associados a displasia septo-óptica ou a agenésia do septo pelúcido.

Doenças crónicas que envolvam o coração, o aparelho gastrintestinal, o fígado, o rim ou outras glândulas endócrinas, assim como neoplasias ou infecções crónicas, podem também estar na origem de atraso pubertário hipogonadotrófico.

Apesar de o tratamento de substituição com esteróides sexuais ser a base da intervenção para aquisição das características sexuais secundárias, no rapaz com hipogonadismo hipogonadotrófico a testosterona não induz crescimento testicular ou espermatogénese, que são dependentes do estímulo da LH nas células de Leydig e da FSH nas de Sertoli. Assim, a indução da fertilidade requer a administração de GnRH de forma pulsátil ou de hCG + FSH exógenas.

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DOENÇAS DAS PARATIROIDEIAS E METABOLISMO FOSFOCÁLCICO

Noções fundamentais sobre o metabolismo do cálcio e fósforo. Importância do problema

As glândulas paratiroideias, em número de quatro, segregando a hormona paratiroideia ou paratormona (PTH), localizam-se na face anterior do pescoço, ao nível da zona média da glândula tiroideia; sob o ponto de vista embriológico, provêm dos 3º e 4º arcos branquiais, estando o seu desenvolvimento associado ao do timo.

As referidas glândulas e o metabolismo fosfocálcico estão intimamente ligados, pelo que não é possível discutir a patologia das paratiroideias e o seu tratamento, sem abordar, ainda que de forma sucinta, o metabolismo fosfocálcico.

Os níveis séricos de cálcio são regulados de forma muito estrita a fim de se obterem valores entre 8,8 e 10,4 mg/dL; se exceptuarmos o período neonatal, estes níveis mantêm-se constantes ao longo da vida. Esta regulação é muito complexa envolvendo o calcium-sensing receptor (CaSR), a hormona paratiroideia (PTH) e a vitamina D na sua forma activa [1,25-di-hidroxi-vitamina D (1,25(OH)2D)]. Importa referir que a PTH e a vitamina D são os principais reguladores da homeostase do cálcio (Ca).

Os níveis de fosfato estão sujeitos a uma regulação menos estrita que a da calcémia; a fosfatémia varia ao longo da vida, sendo mais elevada nas fases de crescimento rápido. Na sua regulação intervém não só a PTH e 1,25(OH)2 D3, mas também outras hormonas e co-reguladores descritos recentemente como o Fibroblast Growth Factor (FGF) 23 e Klotho.

Relativamente à PTH, importa salientar dois aspectos, de grande importância no período fetal:

  • Chamado péptido relacionado com a PTH (PTHrP), segregado por diferentes estirpes celulares e com afinidades estruturais com a PTH partilha com esta idêntica actividade biológica;
  • A sua presença no tecido mamário, paratiroideias e placenta traduz papel importante no metabolismo fosfocálcico durante a gravidez e lactação;
  • A calcitonina, péptido segregado, como resposta à hipercalcémia, pelas células C da tiroideia, tem efeito contrário à PTH.

Este capítulo aborda um tópico algo complexo, mas de grande relevância pela multiplicidade de quadros clínicos que integra, o que por sua vez constitui um exercício para o estudo e revisão da fisiopatologia.

Fisiopatologia

Cerca de 90% do cálcio total do organismo localiza-se no esqueleto ósseo; só 1% do total se encontra nos líquidos extracelulares; deste, 50% circula sob a forma livre ionizada, 40% encontra-se ligado a proteínas (albumina, sobretudo) e 10% a aniões (citrato). É a fracção livre e ionizada que é biologicamente activa.

O fosfato total do organismo reparte-se por 3 compartimentos: 85% encontra-se nos ossos; 14% no interior das células ligado a várias moléculas como fosfato orgânico, e menos de 1% no líquido extracelular principalmente como fosfato inorgânico, em constante equilíbrio com os outros compartimentos.

A mineralização óssea depende de um produto [cálcio]x[fosfato] séricos correcto e quer a diminuição quer o aumento da concentração de um dos iões pode conduzir a deficiente mineralização óssea ou calcificações ectópicas.

O CaSR é um receptor da membrana celular existente nas células das glândulas paratiroideias, tubo renal, osso e cartilagem; funciona como um “sensor” da calcémia: a ligação do cálcio ao CaSR inibe a libertação de PTH e a reabsorção renal de cálcio; quando a calcémia diminui, o CaSR desencadeia a produção de PTH. O magnésio liga-se também ao CaSR influenciando a secreção de PTH. O referido receptor é membro da superfamília de receptores ligados à proteína G. O CaSR é codificado por um gene com 6 exões, localizado no cromossoma 3q21.1.

Estão descritas mutações, quer activadoras associadas a hipocalcémia, quer mutações inactivadoras levando a hipercalcémia.

A PTH é um polipéptido constituído por 84 aminoácidos, dos quais apenas os 34 últimos são necessários para a sua actividade e funções. É codificada por um gene localizado no cromossoma 11. A sua semivida em circulação é muito curta (1-2 minutos). Actua sobre o osso promovendo a sua reabsorção, e sobre o rim aumentando a reabsorção de cálcio, a excreção de fosfato e a síntese renal de 1,25(OH)2D; por sua vez, este metabolito da vitamina D aumenta a absorção intestinal de cálcio. Todos estes mecanismos irão promover o restabelecimento da calcémia.

Estas acções, ao nível de órgãos-alvo implicam:

  • Ligação ao seu receptor;
  • Mecanismos de tradução deste sinal, tendo como segundo mensageiro a proteína G, em particular a subunidade a que estimula depois a adenilciclase com aumento do AMP cíclico intracelular.

A subunidade Gsa é codificada pelo gene GNAS1 que actua como segundo mensageiro de várias hormonas. De salientar que estão descritas mutações activadores e inactivadoras deste gene.

A vitamina D é uma vitamina lipossolúvel, existindo sob 2 formas: colecalciferol ou vitamina D3 produzido na pele por acção da luz ultravioleta sobre o 7-dehidrocolesterol.

Tendo o seu metabolismo sido descrito noutro capítulo, na parte sobre Nutrição, neste capítulo caberá apenas reforçar o papel do FGF23, um polipéptido produzido pelos osteócitos e osteoblastos, o qual regula a concentração sérica de fosfato, diminuindo-a.

Os níveis séricos de FGF23 aumentam em resposta à 1,25(OH)2D3, à ingestão de fósforo e à PTH por mecanismos ainda mal conhecidos e em que parece estar também envolvido o ferro.

O FGF23 actua a 2 níveis: por um lado, no tubo proximal renal, suprimindo a expressão dos cotransportadores sódio-fosfato levando à diminuição da reabsorção tubular do fosfato com aumento das perdas renais de fosfato e, por outro, a nível da 1,25(OH)2D suprimindo a expressão da 1a-hidroxilase e aumentando a expressão da 24-hidroxilase com aumento da degradação da 1,25(OH)2D e diminuição dos seus níveis séricos. Estas acções do FGF23 implicam a sua ligação a um complexo da membrana celular constituído pelo seu receptor e Klotho, uma proteína da membrana.

A absorção intestinal de cálcio acompanha-se de absorção de fósforo, o que poderia causar hiperfosfatémia e calcificações ectópicas. Contudo, a vitamina D parece ter uma dupla acção para evitar esta situação: inibe a produção de PTH com diminuição da reabsorção óssea e estimula a produção de FGF23 com aumento da fosfatúria.

O excesso de FGF23 está associado, directa ou indirectamente, a diversas formas de raquitismo hipofosfatémico; contudo, nalguns casos desconhece-se ainda o mecanismo exacto, admitindo-se que a alteração verificada se relacione com o excesso de FGF23.

 Semiologia clínica e laboratorial

Face à grande diversidade de factores envolvidos, a suspeita de alteração do metabolismo fosfocálcico, na sequência de anamnese e exame objectivo rigorosos, deverá levar à determinação de um painel alargado de exames de sangue e urina e à realização de alguns exames imagiológicos (Quadro 1) de forma a orientar o diagnóstico diferencial (Quadro 2). Salienta-se a importância da recolha e conservação de uma amostra de sangue e de urina para eventual realização de outras determinações.

O Quadro 3 resume os fármacos utilizados no âmbito de determinadas alterações do metabolismo fosfocálcico

QUADRO 1 – Semiologia das alterações do metabolismo fosfocálcico

Sangue (Valores de referência)UrinaImagiologia
Nota: Guardar uma amostra de sangue em EDTA, outra em tubo seco e também uma amostra de urina para outras determinações ou estudos moleculares que venham a ser necessários.
Adaptado de Perry & Allgrove, 2011
    • Cálcio total (8,4-10,6 mg/dL)
    • Cálcio ionizado (1,1-1,3 mmol/L)
    • Fosfato (lactente: 5-8; criança: 4,1-5,9; adulto: 2-4,6 mg/dL)
    • Magnésio (1,7-2,9 mg/dL)
    • Fosfatase alcalina (criança: 200-600; adulto: 60-170 UI/L)
    • Creatinina
    • Albumina
    • pH e gases
    • PTH (10-55 pg/mL)
    • 25 OH-D (20-60 ng/mL)
    • 1,25 (OH)2 D

Fórmula para a correcção da calcémia de acordo com a albuminémia:
Ca corrig = Ca total (mg/dL) + [(41-alb (g/L)x 0,068]

Calcémia:
4 mg/dl = 1 mmol/L

Fosfatémia:
3,1 mg/dl = 1 mmol/L

Magnesiémia:
2,4 mg/dl = 1 mmol/L

    • Creatinina   \
                             |-> Amostra
    • Cálcio          /

Valor normal da relação cálcio/creatinina nas crianças: 0,25 mg/mg

    • Creatinina (Cr)  \
      de Cálcio (Ca)    |-> Urina 24h
    • Fosfato (P)        /

Valor normal da excreção de cálcio:
 4 mg/kg/24h

Taxa de reabsorção de fosfato:
1- Taxa de excreção fraccionada de fosfato x100

Valor normal:
nas crianças: 85-97%
nos adultos: 80-95%

Fórmula de cálculo excreção fraccionada de fosfato:
[P]u x [Cr]p / ([P]p x [Cr]u); todas as determinações nas mesmas unidades

    • Radiografia do punho e joelho para pesquisa de raquitismo
    • Ecografia renal para pesquisa de nefrocalcinose
    • TAC craniana para pesquisa de calcificações intracranianas
    • Cintigrafia de subtracção com sestamibi para detecção de tumores das paratiroideias

QUADRO 2 – Diagnóstico laboratorial simplificado das situações associadas a alterações do metabolismo fosfocálcico

*VDDR2: Raquitismo vitamina D dependente tipo 2 causado por mutação do receptor da vitamina D (VDR) e associado a níveis ­­­ de 1,25(OH)2D3

Abreviaturas:
AIRE: autoimmune regulator type 1; APECED: autoimmune polyendocrinopathy-candidiasis-ectodermal dystrophy; CaSR: Calcium-sensing receptor; CHARGE: Coloboma, Heart anomaly, Choanal Atresia, Retardation, Genital and Ear anomalies; CHD7: Chromodomain helicase DNA binding protein 7; GATA3:Gats binding protein 3; GCMB: glial cells missing B; GNAS1: Guanine nucleotide-binding protein, a-stimulating activity polypeptide 1; HRD: Hypoparathyroidism-retardation- dysmorphism ; HDR: Hypoparathyroidism -deafness-renal dysplasia; MELAS: Mitochondrial encephalopathy, lactic acidosis and stroke- like episodes syndrome ; MTPDS: Mitochondrial trifunctional protein deficiency syndrome; PTH: Parathormona; SEMA3: Semaphorin 3E; SOX3: SRY(sex-determining region of Y)-related HMG (high mobility group)-box gene 3; TBCE: tubulin specific chaperone.

Nota: Guardar uma amostra de sangue em EDTA, outra em tubo seco e também uma amostra de urina para outras determinações ou estudos moleculares que venham a ser necessários.

Adaptado de Perry & Allgrove, 2011.

 CálcioFosfatoFosfatase AlcalinaPTH25OH-D1,25(OH)2D
HIPOCALCÉMIA
HipoparatiroidismoN ou ↓NN
Pseudo- hipoparatiroidismoN ou ↓N
Alterações da Vitamina D↓ ou N↓ ou ­­ ou N↓↓ nos raquitismos nutricionais
N nas outras formas
N ou ↓
excepto VDDR2*
HIPERCALCÉMIA
Hiperparatiroidismo primário N ou ↓N ou ­↑NN ou ­↑
Outras causas de hipercalcémia  N ou ↓

QUADRO 3 – Fármacos utilizados no tratamento de determinadas alterações do metabolismo fosfocálcico

Princípio activoNome comercialDose
CálcioVárias apresentaçõesVárias formulações, algumas com vitamina D associada
FosfatoPhosphore Sandoz® Comprimidos efervescentes750 mg de fósforo elementar/comprimido
CalcitriolRocaltrol® cápsulas0,25 µg
AlfacalcidiolEtalpha® gotas
Cápsulas
2 µg/ml, 0,1 µg/gota
0,25 µg; 0,5 µg; 1 µg
ColecalciferolVigantol® gotas0,5 mg/ml
667 UI (16,7 µg)/gota

No âmbito da patologia em estudo (título deste capítulo), foram sistematizadas as seguintes nosologias*:

  • Hipoparatiroidismo;
  • Pseudo-hipoparatiroidismo
  • Hiperparatiroidismo
  • Raquitismo não carencial
* Abreviaturas
CLCN5: Chloride channel, voltage-sensitive 5; DMP1: Dentin matrix protein; ENPP1: Ectonucleotide pyrophosphatase/phosphodiesterase; FGF23: Fibroblast growth factor 23; FGFR1: Fibroblast growth factor receptor; GNAS1: Guanine nucleotide-binding protein, a-stimulating activity polypeptide 1; PHEX: Phosphate-regulating gene with homologies to endopeptidases on the X chromosome; PTH1R: Parathyroid hormone 1 receptor; OCRL1: Oculocerebrorenal syndrome of Lowe; NPT2: Type II sodium/phosphate cotransporter

1. HIPOPARATIROIDISMO

Definição e importância do problema

O hipoparatiroidismo ou insuficiência paratiroideia é o resultado de uma alteração (congénita ou adquirida) da síntese e secreção da PTH, ou da acção periférica da mesma. Em ambas as circunstâncias, verifica-se hipocalcémia e hiperfosfatémia.

Na idade pediátrica tal estado de hipofunção é mais frequente que o de hiperfunção.

Dados laboratoriais

Independentemente da etiologia, os achados bioquímicos resultantes da diminuição da acção da PTH são:

  • Hipocalcémia (< 8,6 mg/dL);
  • Hiperfosfatémia (7-12 mg/dL);
  • i1,25(OH)2D3;
  • Calciúria relativamente elevada em relação à calcémia.

No pseudo-hipoparatiroidismo ou nas formas de PTH biologicamente inactiva, verifica-se elevação dos níveis plasmáticos de PTH.

Uma vez que a ausência do efeito da PTH conduz a maior reabsorção renal de bicarbonato, poderão ser detectados valores sanguíneos elevados de bicarbonato e pH.

Classificação

A classificação etiológica do hipoparatiroidismo é difícil e complexa, tendo em conta os critérios adoptados para tal. De facto, diversos aspectos poderão ser considerados, por exemplo: etiologia (orgânica ou funcional), forma de apresentação (esporádica ou familiar), início (precoce ou tardio), associação a outras anomalias, e evolução (forma transitória ou permanente).

O Quadro 4 sintetiza as situações caracterizadas por deficiência em PTH (nível sérico de PTH diminuído).

QUADRO 4 – Hipoparatiroidismo por deficiência em PTH (PTH diminuído)

Neonatal

    • Transitória
    • Permanente (síndromas CATCH 22, de DiGeorge, etc.)

Não neonatal

    • Familiar
      • Autossómica dominante (CaSR)
      • Autossómica recessiva (GCM2)
      • Recessiva ligada ao cromossoma X (Xq26-27)
    • Autoimune
      • Isolada
      • Síndroma pluriglandular autoimune (APECED)
    • Adquirida
      • Pós-cirurgia (tiroideia ou paratiroideia)
      • Pós-radioterapia cervical
      • Infecções (sépsis, SIDA)
      • Infiltrativa (tumoral, amiloidose, hemossiderose, depósitos de ferro/terapia nas talassémias, de cobre/doença de Wilson)
    • Hipomagnesiémia
    • Associada a doenças mitocondriais
    • Idiopática

No Quadro 5 são sistematizadas as formas de disfunção paratiroideia em que a PTH é biologicamente inactiva ou se observa resistência periférica à sua acção. Nestas situações, o nível sérico da PTH está aumentado.

QUADRO 5 – Hipoparatiroidismo por PTH biologicamente inactiva ou por resistência periférica à sua acção (PTH aumentada)

    • PTH biologicamente inactiva
    • Resistência periférica à PTH
      • Pseudo-hipoparatiroidismo de tipo Ia
      • Pseudo-hipoparatiroidismo de tipo Ib
      • Pseudo-hipoparatiroidismo de tipo II
      • Pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo de tipo Ib
      • Pseudo-hipoparatiroidismo com osteíte fibroquística

Formas clínicas de hipoparatiroidismo

É dada ênfase às seguintes:

Hipoparatiroidismo neonatal transitório

Esta forma clínica é abordada na Parte “Perinatologia/Neonatologia” sobre alterações do metabolismo do cálcio e fósforo no RN.

Hipoparatiroidismo neonatal permanente

A falta de desenvolvimento das glândulas paratiroideias pode apresentar-se como defeito isolado ou associado a outros defeitos do desenvolvimento, como ocorre na deleção 22q11; esta situação é conhecida como CATCH22, sigla do inglês significando “defeito cardíaco, fácies anormal, hipoplasia do timo, palato ogival e hipocalcémia”.

Inclui várias síndromas:

  • Síndroma de DiGeorge: fácies peculiar (hipertelorismo, implantação anormal das orelhas, micrognatia, boca “de peixe”), cardiopatia congénita afectando em geral o arco aórtico, ausência de timo e imunodeficiência. Apesar de o prognóstico depender mais dos defeitos associados do que da hipocalcémia, em toda a cardiopatia que envolva anomalias do arco aórtico ou perante tetralogia de Fallot atípica deverá avaliar-se o metabolismo fosfocálcico. O gene que parece ser responsável por muitas das alterações fenotípicas, em particular pela cardiopatia congénita, é o gene TBX1 (T-box 1);
  • Síndroma velocardiofacial: fenda palatina, defeito cardíaco, fácies peculiar e dificuldades na aprendizagem;
  • Síndroma cono-troncofacial: defeito cardíaco, anomalias faciais e hipoplasia do timo.

Outras síndromas se associam para além do período neonatal. Destacam-se, sem pormenorizar: síndroma de Kenny-Caffey, síndroma de Sanjad-Sakati, síndroma de Yumita, síndroma de Kallman, síndroma de Barakat e síndroma de Silver-Russell.

Hipoparatiroidismo familiar

Esta forma clínica, surgindo de modo isolado, integra um grupo heterogéneo de situações. Em geral transmite-se do modo autossómico dominante (AD), embora em certas famílias se tenha demonstrado o modo autossómico recessivo (AR) ligado ao cromossoma X.

Acompanhadas por sintomas neuromusculares, tais situações estão associadas a mutações activadoras no gene do CaSR, localizado em 3q13-3q21, com transmissão AD.

Outras formas:

  • Ausência hereditária das paratiroideias secundária a mutação do gene responsável pelo factor de transcrição GCMB (região 6p23, hereditariedade AR, ou ligada a sexo-Xq27);
  • Hipomagnesiémia hereditária com hipocalcémia dependente do magnésio (AR);
  • Raquitismo pseudocarencial hereditário.
Hipoparatiroidismo autoimune

Habitualmente transmite-se de modo AR e apresenta-se associado a outras alterações, constituindo a doença poliglandular do tipo I (PGA1) também chamada síndroma de poliendocrinopatia autoimune-candidíase-displasia ectodérmica (APECED).

Nalguns casos de PGA1 foram identificadas mutações no gene AIRE (gene para a regulação autoimune), em número superior a 60.

A tríade hipoparatiroidismo, doença de Addison e candidíase somente se verifica em 50% dos pacientes.

 Hipoparatiroidismo adquirido

O Quadro 4 é elucidativo.

 Hipoparatiroidismo associado a doenças mitocondriais

Estão descritas mutações no ADN mitocondrial em casos de síndroma de Kearns-Sayre, MELAS (miopatia, encefalopatia, acidose láctica e episódios, acidente vascular cerebral), por sua vez associados a hipoparatiroidismo.

Com efeito, o diagnóstico de citopatia mitocondrial deve ser suspeitado em doentes com sintomas inexplicados como oftalmoplegia, hipoacusia neurossensorial, alterações da condução cardíaca e tetania.

Hipoparatiroidismo idiopático

Esta forma clínica, isolada e tardia ou crónica, cujo mecanismo fisiopatológico na actualidade ainda se desconhece, poderá estar relacionada com mutações do gene da PTH.

Outras situações relacionadas com hipoparatiroidismo

Citam-se resumidamente a síndroma de Fhar, cursando com calcificações nos núcleos basais; a síndroma de Gardner (polipose intestinal com osteomas); e a síndroma de nevus de células basais.

Manifestações clínicas

No hipoparatiroidismo pode existir um largo espectro de manifestações, desde a sua “ausência”, até sinais e sintomas exuberantes. Nas formas mais ligeiras poderá acontecer que a identificação de tal nosologia somente se consiga por exames laboratoriais.

Dum modo geral pode afirmar-se que a sintomatologia depende, não só do grau de défice em PTH e da calcémia absoluta, como também da velocidade da sua instalação; outros factores importantes para o desenvolvimento de sintomas são a existência de hipomagnesiémia, hiponatrémia, hipocaliémia ou acidose associadas.

A hipocalcémia de longa duração e de instalação lenta pode ser assintomática sendo detectada por uma “análise de rotina”. Os sintomas aparecem habitualmente quando a calcémia é inferior a 7,2 mg/dL. Reitera-se que hipocalcémia é, por definição, a calcémia inferior a 8,6 mg/dL.

Os sinais mais precoces de hipocalcémia são a sensação de formigueiro ou “adormecimento” nos dedos das mãos e pés e região perioral. Aparecem depois as dores abdominais e sinais de hiperexcitabilidade nervosa, mialgias, cãibras, especialmente com o exercício, contracção muscular espontânea (tetania e espasmo carpopedal) ou convulsões com frequência variável, laringospasmo, alteração do estado de consciência e, nos recém-nascidos, insuficiência cardíaca. É frequente catalogar os pacientes hipoparatiroideus como epilépticos.

O exame objectivo pode evidenciar, hiperextensão cérvico-cefálica, hiperreflexia, positividade dos sinais de Chvostek (contractura dos músculos faciais desencadeda pela percussão do nervo facial à frente do pavilhão auricular) e de Trousseau (espasmo carpopedal desencadeado pela hipóxia obtida por insuflação da braçadeira do esfigmomanómetro acima da pressão arterial sistólica durante 3 a 5 minutos), cabelo fino, pele seca, unhas friáveis com estrias horizontais, atraso na erupção dentária, fragilidade do esmalte dos dentes e atraso na sua erupção. Nos lactentes, pode ainda existir hipotonia, taquicardia e fontanela procidente.

A hipocalcémia mantida e de longa duração pode levar a calcificações dos gânglios da base, a edema da papila e a cataratas subcapsulares.

As manifestações associadas podem fornecer pistas para o diagnóstico etiológico da hipocalcémia e/ou de hipoparatiroidismo: alteração do crescimento e raquitismo (défice de vitamina D), atraso do neurodesenvolvimento e/ou da linguagem, cardiopatia congénita ou imunodeficiência (síndroma de DiGeorge), candidíase mucocutânea (APECED), etc..

Exames complementares

O cálcio sérico está diminuído (5-7 mg/dL) e o fósforo elevado (7-12 mg/dL). O cálcio ionizado (~45% do total) também está diminuído; a avaliação do cálcio total deverá ter em atenção o valor da albuminémia. A magnesiémia, que deve ser sempre determinada quando existe hipocalcémia, está normal. A fosfatase alcalina está normal ou baixa e o nível do metabolito 1,25(OH)2D3 está geralmente baixo, embora possa estar elevado em situações de hipocalcémia acentuada.

O valor sérico da PTH está diminuído no hipoparatiroidismo, e elevado no pseudo-hipoparatiroidismo.*

A radiografia dos ossos longos evidenciando aumento da densidade nas metáfises sugere intoxicação por metais pesados. A TAC cranioencefálica pode revelar sinais de calcificação dos gânglios basais.

*Por vezes os valores basais de PTH não são esclarecedores quanto a esta destrinça. Por isso, torna-se necessário recorrer ao estímulo com PTH exógena (Prova de Ellsworth -Howard).

O ECG mostra um aumento do intervalo QT e, por vezes, alterações da onda T, do ritmo e da condução.

O EEG evidencia actividade lenta, a qual pode normalizar após tratamento da hipocalcémia.

Salienta-se que quando o hipoparatiroidismo surge associado a doença de Addison, a calcémia poderá estar normal; contudo, com o tratamento da insuficiência adrenal a hipocalcémia aparece.

Diagnóstico diferencial

  1. A deficiência em magnésio deve ser admitida em pacientes com hipocalcémia inexplicada. Concentrações de Mg < 1,5 mg/dL (1,2 mEq/L) são geralmente anormais.
    Não está esclarecido o mecanismo pelo qual baixos níveis de Mg levam a hipocalcémia. Admite-se, contudo, que a hipomagnesiémia impeça a libertação de PTH, induzindo resistência a esta hormona.
  1. A intoxicação com fosfato inorgânico conduz a hipocalcémia e tetania cujo mecanismo também não é claro. Na prática clínica, a administração de laxantes ou enemas baseados em fosfato inorgânico pode ser responsável por tal quadro tóxico.
  2. A hipocalcémia associada a hiperfosfatémia pode ocorrer no contexto de tratamento da leucemia linfoblástica aguda em que se verifica destruição de linfoblastos.

Independentemente do quadro clínico, importa conhecer as entidades clínicas que, para além da disfunção paratiroideia (hipoparatiroidismo e pseudo-hipoparatiroidismo), também cursam com hipocalcémia. (Quadros 6 e 7)

QUADRO 6 – Causas de hipocalcémia (excluindo disfunção paratiroideia)

      1. Carência e alterações do metabolismo da vitamina D – Raquitismos calciopénicos*
      2. Alterações dos órgãos-alvo
        Rim (IRA, acidose tubular renal, hipercalciúria)
        Má-absorção intestinal do cálcio
        Esqueleto
      3. Outras causas
        Sobrecarga de fosfato (síndroma de lise tumoral, leite com concentração elevada de fosfato, rabdomiólise)
        Doenças agudas (pancreatite aguda, acidémias orgânicas, síndroma de choque tóxico)
        Drogas (furosemido, calcitonina, fenobarbital, fenitoína, flúor, pentamidina, cetoconazol, bifosfonatos, antineoplásicos, transfusão-permuta).

      * (ver volume 1 – Quadro 4 e Capítulos sobre Carências vitamínicas e minerais).

QUADRO 7 – Carência e alterações do metabolismo da vitamina D – raquitismos calciopénicos

  Raquitismos calciopénicos

    • Défice de vitamina D
      • Prematuridade
      • Défice nutricional por ingestão insuficiente de nutrientes
      • Exposição solar inadequada
      • Má-absorção intestinal associada a doença celíaca, fibrose quística, pancreatite ou outras causas de esteatorreia
      • Doença hepática levando a alteração da produção de 25-hidroxi-vitamina D
      • Medicamentos (corticóides, anticonvulsantes)
    • Alterações do metabolismo da vitamina D
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1B associado a défice de 25OHD (mutação do gene da 25-hidroxilase)
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1A associado a défice de 1,25(OH)2D (mutação do gene da 1a-hidroxilase)
    • Resistência periférica à vitamina D
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR (mutação do gene VDR)
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B com VDR sem alterações
    • Ingestão insuficiente de cálcio
      • Dieta vegetariana
      • Ingestão insuficiente de nutrientes

(ver adiante Quadro 9)

Tratamento

O tratamento de emergência da tetania, nomeadamente no período neonatal, em internamento hospitalar, consiste na injecção IV de gluconato de cálcio a 10% (cálcio elementar <> 9,3 mg/mL) na dose de 5-10 mL ou 1-3 mg/kg ao ritmo de 0,5-1 mL/minuto monitorizando a frequência cardíaca, sem exceder a dose de 20 mg/kg de cálcio elementar. A via IV dose deve ser mantida até calcémia ~8,8 mg/dL e reajustada ulteriormente em função do valor desta, a determinar de 12-12 horas. As situações associadas a calcémia < 8 mg/dL também devem ser tratadas em hospital. A normalização da calcémia poderá surgir entre 2-10 dias após início do tratamento.

O tratamento com cálcio per os deve ser iniciado antes da interrupção IV, e mantido. A dose inicial per os (gluconato ou glucobionato) recomendada é ~500-1.000 mg de cálcio elementar/dia.

Ulteriormente, dada a necessidade de manutenção da terapêutica com cálcio há que reajustar a dose administrada de acordo com a determinação da calcémia 1-3 vezes por semana nos primeiros 3 meses e, depois, de 3-3 meses; para além do objectivo de normalização da calcémia, a calciúria deverá ser mantida entre 4-6 mg/kg/dia.

Poderá haver necessidade de corrigir eventual alcalose e hipomagnesiémia.

Dado que o défice de PTH acarreta uma deficiente produção de 1,25(OH)2D, concomitantemente com o tratamento de emergência, deve ser iniciada a administração de calcitriol oral (1,25- di-hidroxicolecalciferol na dose inicial de 0,25 mcg/24 horas), seguindo-se a dose de manutenção de 0,01-0,10 mcg/24h até o máximo de 1-2 mcg/24h, em duas tomas.

A dose deverá ser reajustada de acordo com a evolução da calcémia. Quando a calcémia for superior a 8,8 mg/dL, dever-se-á reduzir para metade a dose de vitamina D.

Como notas importantes, há que ter em conta as possíveis complicações da terapêutica com vitamina D e metabolitos (hipercalcémia e hipercalciúria, com risco de nefrocalcinose), obrigando a eventuais reajustamentos de doses.

Se surgir hipercalcémia, o tratamento com vitamina D deve ser interrompido durante 3-5 dias, e retomado após normalização daquela.

Nos casos em que se verifiquem valores elevados de fósforo, importa limitar o consumo de alimentos com elevado conteúdo do referido elemento, como o leite, ovos, queijo, amêndoas, etc..

Admite-se que no futuro o tratamento do hipoparatiroidismo seja a administração de PTH biossintética.

2. PSEUDO-HIPOPARATIROIDISMO (OSTEODISTROFIA HEREDITÁRIA de ALBRIGHT)

Definição

No pseudo-hipoparatiroidismo (PHP), ao contrário do hipoparatiroidismo, as glândulas paratiroideias são normais ou hiperplásicas, sintetizando e segregando a PTH. Contudo, verificando-se resistência do túbulo renal à acção da PTH, os níveis séricos desta estão elevados, associando-se hipocalcémia, hiperfosfatémia e défice de calcitriol.#

#De salientar que no conceito lato de PHP se engloba também a situação de PTH biologicamente inactiva. (Quadro 4)

Neste contexto, nem a PTH endógena nem a PTH administrada artificialmente elevam a calcémia ou diminuem a fosforemia.

O termo de PHP surgiu pela primeira vez com Albright ao descrever a osteodistrofia hereditária (caracterizada essencialmente por obesidade, hipocrescimento, anomalias ósseas nas mãos, insuficiência cognitiva), observando que a hipocalcémia e hiperfosfatémia associadas não respondiam à perfusão de PTH.

Aspectos epidemiológicos

Os PHP constituem grupo heterogéneo de doenças caracterizadas pela resistência periférica à acção da PTH (ou pela verificação de PTH inactiva). Tratando-se de afecções muito raras, a fim de se poder avaliar a baixa prevalência, virá a propósito, para comparação, referir a prevalência da doença histórica descrita por Albright (dentro da raridade, a mais frequente): ~0,72 casos/100.000, com inexplicada maior incidência no sexo feminino apesar do modo de transmissão hereditária autossómica. Uma das formas adiante descrita (Ia) ainda é mais rara: incidência de 3,4 casos/milhão/ano, com dupla prevalência no sexo feminino.

 Etiopatogénese

Verificando-se resistência ou insensibilidade do túbulo renal à acção da PTH, surge elevação da PTH.

O receptor da PTH e de outras hormonas necessitam da proteína G estimuladora (Gs) na sua forma heterotrimérica como proteína de ligação intermediária para a transdução transmembranária do sinal, levando à estimulação da produção de cAMP.

O gene GNAS, com 13 exões, localiza-se no cromossoma 20 e codifica a subunidade a da proteína Gs. O referido gene apresenta imprinting nalguns tecidos; nestes, a alteração da proteína Gs conduz a resistência periférica à acção das hormonas que utilizam esta via [PTH, TSH, hormonas hipotalâmicas estimuladoras das gonadotrofinas (GnRH) e da hormona de crescimento (GHRH)]. Noutros casos, e apesar de ser utilizada a mesma via, a resposta hormonal encontra-se mantida (ACTH, CRH, vasopressina).

Existem 2 subtipos principais com características genéticas e clínicas diferentes ainda que com sobreposições entre ambas as formas: pseudo-hipoparatiroidismo Ia e I b.

O pseudo-hipoparatiroidismo tipo Ic é muito semelhante ao Ia.

Os pseudo-hipoparatiroidismos de tipos Ia e Ic devem-se, na maioria dos casos, a mutação inactivadora em heterizigotia no alelo materno do gene GNAS; em 30% dos casos não se detectam mutações. No do tipo Ib não se verifica mutação de gene GNAS; estão em causa, sim, defeitos de metilação ou imprinting bloqueando o alelo materno.

A forma designada por pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo deve-se a mutação do alelo paterno. Na mesma família podem coexistir elementos com pseudo-hipoparatiroidismo Ia e pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo mas não na mesma fratria.

Formas clínicas e exames complementares

Pseudo-hipoparatiroidismos Ia e Ic

Os pseudo-hipoparatiroidismos Ia e Ic associam as alterações fenotípicas características designadas por osteodistrofia hereditária de Albright (OHA) e a resistência a diversas hormonas.

As manifestações clínicas incluem baixa estatura, insuficiência intelectual, alteração do neuro-desenvolvimento de grau variável, obesidade, fácies arredondada, lesões ósseas únicas ou múltiplas, braquidactilia com encurtamento dos 3º, 4º e 5º metacárpicos, 1ª falange distal e/ou 4º e 5º metatársicos, calcificações ectópicas subcutâneas ou na derme, hipoplasia do esmalte dentário, deformações articulares com genu valgum, coxa vara ou cubitus valgus.

A hipocalcémia traduz-se por convulsões ou tetania; ocorre em geral depois dos 3 anos de idade, podendo, no entanto, ser assintomática. O hipotiroidismo concomitante pode preceder a hipocalcémia ou mesmo ser diagnosticado pelo rastreio neonatal. O hipogonadismo é mais frequente no sexo feminino traduzindo-se por atraso pubertário, alterações menstruais ou infertilidade. A velocidade de crescimento deve ser avaliada cuidadosamente a fim de permitir o diagnóstico atempado de défice de GH. A hiperfosfatémia associada à resistência à PTH pode causar alteração da síntese renal de 1,25(OH)2D, com agravamento da hipocalcémia.

Quanto a exames complementares, salientam-se os seguintes resultados: hipocalcémia e hiperfosfatémia associadas a níveis séricos aumentados de PTH e 25(OH)2D normal. Não existe tendência para a hipercalciúria.

A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário e fosfatúria encontra-se abolida, traduzindo a resistência do túbulo proximal à acção da PTH.

Podem existir ainda: hipotiroidismo subclínico (TSH aumentada e FT4 normal) ou franco (TSH aumentada e FT4 diminuída), e sinais laboratoriais de resistência a outras hormonas.

A determinação do cAMP sérico e urinário e da fosfatúria pós-administração subcutânea de PTH permite estabelecer o diagnóstico diferencial das várias formas de pseudo-hipoparatiroidismo.

Por sua vez, o diagnóstico diferencial deste grupo de doenças deve fazer-se com o hiperparatiroidismo secundário, hipomagnesiémia e défice de vitamina D; nestas duas últimas entidades clínicas também se verifica diminuição da capacidade de resposta renal à PTH.

O tratamento é semelhante ao descrito para o hipoparatiroidismo; tendo como objectivo a normalização da calcémia utiliza-se cálcio per os e calcitriol. Nestas formas referidas não existe o risco de nefrocalcinose, pois a resistência renal à PTH limita-se ao túbulo proximal.

Pseudo-hipoparatiroidismo Ib

Nesta forma clínica o aspecto fenotípico é normal, salientando-se apenas braquidactilia moderada. Os níveis séricos de cálcio, fósforo e PTH são sobreponíveis aos verificados no tipo Ia. O nível sérico da proteína G é normal. A resistência periférica está limitada à PTH e TSH, pelo que o quadro clínico é sobreponível ao do hipoparatiroidismo e do hipotiroidismo subclínico. A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário e fosfatúria é nula ou está diminuída.

Pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo

Deve-se a mutação inactivadora em heterozigotia do alelo paterno do gene GNAS. Os doentes apresentam alterações fenotípicas semelhantes às verificadas na OHA, mas sem obesidade. Os níveis séricos de cálcio e fósforo são normais (apesar da actividade reduzida da proteína Gs). Os níveis séricos de PTH podem estar ligeiramente elevados. A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário é normal.

Pseudo-hipoparatiroidismo II

Nesta forma clínica verifica-se associação de hipocalcémia a resistência à PTH e a défice de vitamina D. A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário encontra-se mantida, não existindo, no entanto, fosfatúria; tais factos sugerem que a resistência à PTH se deve a um defeito a jusante do cAMP. Desconhece-se a causa.

Sobre o tratamento das três últimas formas clínicas, havendo hipocalcémia, aplicam-se as normas definidas para as formas de tipos Ia, Ic e.

3. HIPERPARATIROIDISMO

Definição e importância do problema

O hiperparatiroidismo é uma endocrinopatia em que se verifica excessiva secreção/nível sérico elevado de PTH (valor normal ~14-72 pg/mL), quer por patologia primária das glândulas paratiroideias (adenoma ou hiperplasia <> 50-70% dos casos) – hiperparatiroidismo primário -, quer por mecanismo compensatório para corrigir situações de hipocalcémia crónica – hiperparatiroidismo secundário -, mais frequente.

A verdadeira incidência desta patologia na idade pediátrica é desconhecida, estimando-se na sua forma primária o valor de 1-2 casos/100.000. Considerando-se baixa incidência do hiperparatiroidismo, esta entidade clínica é abordada de modo resumido.

Quando se diagnostica deve admitir-se a hipótese de neoplasia endócrina múltipla (MEN).

Etiopatogénese

O mecanismo pelo qual surge hiperparatiroidismo primário não está completamente esclarecido. Nalguns casos encontram-se alterações genéticas ou moleculares. Em determinadas células paratiroideias foi verificada perda de sensibilidade à concentração normal de cálcio extracelular.

O receptor sensível ao cálcio ligado à proteína G da superfície das ditas células diminui para metade nas células de adenoma em comparação com controlos normais.

A redução do número de receptores pode ser explicada por mutações do gene que faz a codificação. A mutação do gene Ciclin D1/Prad1 leva a uma produção excessiva da proteína ciclina D1, o que determina o surgimento de hiperplasia ou adenoma da paratiroideia. Esta mutação é responsável por 20-40% dos adenomas esporádicos não familiares.

Outras mutações de genes estão implicadas neste processo como as do MEN1, HRPT2, do proto-oncogene RET.

Classificação

O Quadro 8 estabelece uma classificação etiopatogénica das diversas formas clínicas do hiperparatiroidismo na idade pediátrica.

O hiperparatiroidismo secundário surge como resposta a situações caracterizadas inicialmente por hipocalcémia ou hiperfosfatémias de longa duração. (Quadro 8)

QUADRO 8 – Classificação etiopatogénica das formas clínicas do hiperparatiroidismo na idade pediátrica

  Hiperparatiroidismo primário esporádico não familiar

    • Adenoma único
    • Adenomas múltiplos
    • Hiperplasia esporádica
    • Carcinoma
    • Síndromas paraneoplásicos (tumores não paratiroideus secretores de PTH)

Hiperparatiroidismo familiar primário

    • Defeitos funcionais do receptor sensível ao cálcio
      • Hipercalcémia hipocalciúrica familiar
      • Hiperparatiroidismo neonatal grave
    • Anomalias funcionais do receptor da PTH
      • Síndroma de Jansen
    • Mutações de proto-oncogenes
      • Hiperparatiroidismo familiar isolado
      • Hiperparatiroidismo com tumor mandibular
      • Neoplasias endócrinas múltiplas (MEN)

=MEN 1 (Síndroma de Werner)
=MEN 2a (Síndroma de Sipple)

 Hiperparatiroidismo secundário

    • Perda renal de cálcio (tubulopatias, diuréticos)
    • Insuficiência renal
    • Tubulopatias
    • Fármacos (fenobarbital, hidantoínas, tratamento com lítio, furosemida)
    • Défice e alterações do metabolismo da vitamina D
    • Défice de ingestão de cálcio (hepatopatia, celiaquia, má-absorção de cálcio, doença pancreática)
    • Síndroma de má absorção intestinal

Manifestações clínicas e exames complementares

Hiperparatiroidismo primário

A sintomatologia mais comum engloba: fadiga, letargia, cefaleia,

nefrolitíase, poliúria, polidipsia (diabetes insípida nefrogénica), desidratação, hipotonia, anorexia, emagrecimento, má progressão ponderal, náuseas, vómitos, obstipação ou diarreia, dores abdominais (podendo associar-se a pancreatite aguda), dores ósseas, etc..

O diagnóstico estabelece-se habitualmente detectando um nível de PTH elevado num paciente com hipercalcémia assintomática ou intermitente em cerca de 20% dos casos.

Outros achados laboratoriais incluem fosfato sérico baixo, incremento da fosfatase alcalina e do metabolito 1,25-(OH)2 – D3; é frequente uma acidose metabólica hiperclorémica.

Relativamente aos exames radiográficos ósseos convencionais no contexto de hiperparatiroidismo importa referir que se detectam alterações em ~5% dos casos; erosões ósseas subperiósticas nas falanges e quistos na osteíte fibrosa; na abóbada craniana são frequentes focos de rarefação com aspecto granuloso, do tipo “sal e pimenta”.

A absorciometria com raios X/DEXA terá importância para valorizar o grau de compromisso ósseo e a eficácia do tratamento.

A valorização anatómica das glândulas pode ser feita com outros exames imagiológicos: ecografia Doppler e cintigrafia, TAC, RM, PET.

Hiperparatiroidismo secundário

Esta forma clínica encontra-se presente em todas as situações que cursam com hipocalcémia crónica, como insuficiência renal, raquitismos carencial e não carencial, síndromas de má absorção, doenças hepatobiliares, acidose tubular ou síndroma de Fanconi.

Tratamento

A base essencial do tratamento a curto prazo, quer nas formas primárias, quer secundárias, é a correcção efectiva da hipercalcémia.

Nos casos ligeiros, poderá apenas ser necessário diminuir a ingestão de cálcio e vitamina D. Nos casos associados a imobilização, dever-se-á promover, desde que possível, o reinício de mobilização.

Nos casos graves, deverá ser iniciada terapêutica IV com:

Hiper-hidratação com soro fisiológico (expansão do compartimento líquido extracelular com soro fisiológico IV na dose de 10-20 mL/kg, seguindo-se administração de diurético para aumentar a natriurese e a calciúria); em geral está indicada furosemida IV na dose de 1-2 mg/kg cada 6-8 horas, salientando-se que a terapêutica com diurético deverá ser realizada de forma muito cautelosa e em regime de curta duração pelo risco de agravamento da nefrocalcinose.

Em casos seleccionados pode ainda ser necessário administrar:

  • Pamidronato
    Dose: 0,5-1 mg/kg IV em 4-6h.
    O pamidronato pertence ao grupo dos bifosfonatos, fármacos que actuam a nível ósseo inibindo a reabsorção; sendo relativamente recentes, não há ainda grande experiência da sua utilização na idade pediátrica. A diminuição da calcémia ocorre em 12-24h, mantendo-se os seus efeitos durante 2-4 semanas.
  • Corticóides
    Os corticóides inibem a síntese de 1,25(OH)2D3 sendo utilizados nos casos de doença granulomatosa cursando com hipercalcémia. O mais utilizado é a prednisolona.
  • Calcitonina
    A calcitonina na dose de 4-8 UI/kg cada 6-12 horas por via SC ou IM, associada ou não à prednisolona, deverá ser reservada para situações mais graves.
  • Hemodiálise ou diálise peritoneal
    Este procedimento é indicado nos casos extremamente graves com hipercalcémia resistente à terapêutica, condicionando o prognóstico vital.
  • Paratiroidectomia
    Esta intervenção cirúrgica (paratiroidectomia de uma só glândula) está indicada na quase totalidade de casos de hiperparatiroidismo primário. A paratiroidectomia subtotal ou total com autotransplante está indicada nos casos de hiperplasia ou doença glandular múltipla.

4. RAQUITISMO NÃO CARENCIAL

Definições

Classicamente considera-se que a designação de raquitismo resistente à vitamina D inclui um conjunto de afecções observadas na criança que, tendo recebido profilaxia antirraquítica, evidenciam sinais clínicos e radiológicos de raquitismo carencial e não respondem a doses terapêuticas.

Outras designações têm sido adoptadas por diversos autores para caracterizar genericamente tal situação clínica tais como raquitismo primário, raquitismo dependente da vitamina D ou pseudocarencial, utilizados muitas vezes impropriamente como sinónimos.

O termo pseudocarencial compreende os raquitismos que respondem somente ao cálcio ou a altas doses de vitamina D; o termo dependente refere-se às situações clínicas que respondem a doses suprafisiológicas de vitamina D.

Na continuidade do capítulo sobre “Carências vitamínicas e minerais” – Parte XI, integrando os chamados raquitismos carenciais, procede-se neste a uma abordagem sucinta dos raquitismos não carenciais (a maioria).

Etiopatogénese e classificação

O Quadro 9, já explanado na totalidade ou parcialmente em capítulos anteriores, diz respeito a uma classificação dos raquitismos com base etiopatogénica, permitindo de modo integrado a compreensão e a ordenação das formas carenciais (de raquitismo calciopénico associado a défice de vitamina D) e não carenciais (as restantes: calciopénico, associado a alterações do metabolismo da vitamina D, resistência periférica à vitamina D, e ingestão insuficiente de cálcio; e fosfopénico, associado a ingestão insuficiente de fosfato, a perda renal de fosfato associado a aumento de FGF23 e a perda renal de fosfato associado a hipercalciúria).

QUADRO 9 – Classificação etiopatogénica dos raquitismos

A – Raquitismo calciopénico

Défice de vitamina D

    • Prematuridade
    • Défice nutricional por ingestão insuficiente de nutrientes
    • Exposição solar inadequada
    • Má-absorção intestinal associada a doença celíaca, fibrose quística, pancreatite ou outras causas de esteatorreia
    • Doença hepática levando a alteração da produção de 25-hidroxi-vitamina D
    • Medicamentos (corticóides, anticonvulsantes)

Alterações do metabolismo da vitamina D

    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1B associado a défice de 25OHD (mutação do gene da 25-hidroxilase)
    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1A associado a défice de 1,25(OH)2D (mutação do gene da 1a-hidroxilase)

Resistência periférica à vitamina D

    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR (mutação do gene VDR)
    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B com VDR sem alterações

Ingestão insuficiente de cálcio

    • Dieta vegetariana
    • Ingestão insuficiente de nutrientes

B – Raquitismo fosfopénico

Ingestão insuficiente de fosfato

    • Baixo peso de nascimento
    • Má absorção intestinal
    • Ingestão prolongada de antiácidos

 Perda renal de fosfato associada a aumento de FGF23

    • Raquitismo hipofosfatémico autossómico dominante (mutação do gene FGF23)
    • Raquitismo hipofosfatémico autossómico recessivo 1 (mutação do gene DMP1)
    • Raquitismo hipofosfatémico autossómico recessivo 2 (mutação do gene ENPP1)
    • Raquitismo hipofosfatémico dominante ligado ao X (mutação do gene PHEX)
    • Síndroma de McCune-Albright (mutação do gene GNAS)
    • Displasia osteoglofónica (mutação do gene FGFR1)
    • Condrodisplasia metafisária de Jansen (mutação do gene PTH1R)
    • Raquitismo tumoral
    • Síndroma do nevus sebáceo linear

Perda renal de fosfato associada a hipercalciúria

    • Raquitismo hipofosfatémico hereditário com hipercalciúria (mutação do gene SLC34A3)
    • Acidose tubular renal de tipo distal
    • Doença de Dent (mutação do gene CLCN5)
    • Síndroma oculocerebrorrenal de Lowe (mutação do gene OCRL1)
    • Síndroma de Fanconi primário ou secundário (cistinose, galactosémia, etc.) com perdas renais de glucose, fosfato, aminoácidos

Formas clínicas

Do Quadro 9 foram seleccionadas as seguintes formas clínicas:

Raquitismos calciopénicos
Raquitismo vitamina D dependente tipo 1β associado a défice de 25, OHD3.

É causado por mutação do gene CYP2R1 localizado no cromossoma 11, codificando a 25-hidroxilase hepática. As manifestações clínicas são semelhantes às do raquitismo carencial comum. A calcémia está no limite inferior do normal e a fosfatémia e o 25OHD têm valores séricos baixos. O tratamento consiste em administrar vitamina D em altas doses.

Raquitismo vitamina D dependente tipo 1α associado a défice de 1,25(OH)2D3.

Surge por mutação autossómica recessiva do gene CYP27B1 localizado no cromossoma 12, codificando a 1α-hidroxilase renal.

A gravidade clínica é muito variável; pode manifestar-se muito precocemente em lactentes com hipocalcémia, convulsões, fracturas, hipotonia e miopatia marcadas, hipocrescimento ou dor e deformidades articulares e ósseas.

O padrão laboratorial é: ↓ calcémia e fosfatémia; fosfatase alcalina ↑­; PTH ­­­↑­↑­↑­; 25OHD normal; 1,25(OH)2D3 ↓↓↓.

Se for instituída terapêutica com altas doses de vitamina D, os níveis séricos de 1,25(OH)2D podem ser “normais”, mas desadequados face à hipocalcémia, hipofosfatémia e aumento de PTH. Os sinais radiológicos ósseos são semelhantes aos do raquitismo carencial comum. O tratamento inclui: calcitriol na dose de 1-3 μg/dia ou α-calcidiol 4-6 μg/dia até à correcção das alterações bioquímicas e radiológicas, passando depois a 0,5-1 μg/dia (calcitriol) ou 1-2 μg/dia (1α-calcidiol).

A calcémia normaliza habitualmente em poucos dias e os primeiros sinais de cura radiológica, ao fim de 2-3 semanas, sendo esta completa ao fim de 9-10 meses.

Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR.

De transmissão AR, é causado por mutação autossómica recessiva do gene do receptor da vitamina D (VDR) localizado no cromossoma 12. Esta forma, muito grave durante os primeiros meses de vida, está associada a convulsões por hipocalcémia, hipotonia, diminuição da força muscular, dores ósseas, cárie dentária grave ou hipoplasia do esmalte e hipocrescimento; em muitos casos, associa-se a diminuição da pilosidade, havendo mesmo em alguns doentes alopécia total. Os exames laboratoriais evidenciam: calcémia e fosfatémia baixas; fosfatase alcalina aumentada e PTH muito elevada; 25(OH)D normal e 1,25(OH)2D muito elevada. O tratamento faz-se com doses farmacológicas de vitamina D:

  • vitamina D3: 5.000-40.000 UI/dia;
  • 1α- calcidiol: 6-90 μg/dia;
  • calcitriol: 17-20 μg/dia.

Se não houver resposta, dever-se-á administrar altas doses de cálcio per os a fim de promover a sua absorção passiva (que não necessita de vitamina D), podendo mesmo ser necessária a administração IV de cálcio para se conseguir repor a calcémia.

Com a normalização da calcémia são revertidas todas as alterações associadas ao raquitismo, à excepção da alopécia.

Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B sem alterações do gene VDR.       

É causado por ribonucleoproteína nuclear que interfere com a interacção entre o VDR e o DNA nuclear. A sintomatologia e os resultados dos exames complementares são semelhantes aos da forma anterior

Raquitismos hipofosfatémicos

Estes raquitismos englobam um largo espectro de doenças, congénitas ou adquiridas, com um efeito directo sobre a homeostase do metabolismo do fosfato. Estão descritas várias formas de raquitismo hipofosfatémico: AR, AD, ou dominantes ligados ao X; a sua fisiopatologia não se encontra ainda completamente esclarecida. Constitui o grupo etiológico mais frequente depois do raquitismo carencial.

As manifestações clínicas são as do raquitismo por défice nutricional. O diagnóstico pode ser difícil, pois muitas vezes só é sugerido quando a terapêutica com vitamina D é ineficaz.

O quadro laboratorial dos raquitismos hipofosfatémicos associa calcémia normal, hipofosfatémia, PTH normal ou alta, fosfatase alcalina elevada e fosfatúria aumentada com diminuição da taxa de reabsorção renal de fosfato.

Forma dominante ligada ao cromossoma X

É a forma mais frequente de raquitismo hereditário, ocorrendo em 1:20.000 indivíduos.

Causada por mutação inactivadora do gene PHEX (Phosphate-regulating gene with homologies to endopeptidases on the X chromosome) e que causa, por mecanismo ainda desconhecido, aumento de FGF23.

A gravidade da doença não se correlaciona com a gravidade da mutação causadora e é também variável dentro da mesma família. Em 30% dos casos podem existir mutações esporádicas.

O perfil laboratorial inclui:

    • Hipofosfatémia instalada precocemente, na maioria dos casos durante o primeiro mês de vida;
    • Níveis baixos de 1,25(OH)2D3 ou “em discordância” com a hipofosfatémia; e
    • Fosfatase alcalina elevada.

Clinicamente traduz-se por baixa estatura com encurtamento desproporcionado dos membros inferiores e lesões ósseas (genu varum, coxa vara); marcha oscilante, abcessos dentários espontâneos sem cáries e queda de peças dentárias, fusão precoce das suturas cranianas causando alteração da forma do crânio. Não existe habitualmente tetania, hipotonia, miopatia ou diminuição da força muscular.

Nos adultos podem existir entesopatia (calcificação de tendões, ligamentos e cápsulas articulares), pseudofracturas, dores articulares, osteoartrite e hipoacúsia neurossensorial.

O tratamento desta forma dominante ligada ao cromossoma X inclui:

  • Sais de fosfato: início com 30 mg/kg/dia ou 1000 mg/dia de fósforo elementar, em 4 tomas, a última das quais antes de deitar, aumentando progressivamente as doses até 50 mg/kg/dia ou 2000 mg/dia U (doses superiores comportam risco de hiperfosfatémia mantida com risco de hiperparatiroidismo secundário e terciário e hipertensão arterial.

Não se deve ingerir leite simultaneamente pela interferência com a absorção do fosfato.

  • Calcitriol: 30-70 ng/kg/dia ou 0,5-1,0 μg/dia de 1,25(OH)2D em 2 tomas;
  • 1α-calcidiol: início com 0,3 μg/dia em 2 tomas, aumentando progressivamente até se chegar à dose terapêutica de 1 μg/dia; esta dose poderá, se necessário, ser aumentada até 1,5-2,5 μg/dia; na puberdade poderá ser necessário administrar doses ainda maiores (3-4 μg/dia).

O tratamento deverá ser mantido até ao fim do crescimento estatural.

Dado o risco acrescido de nefrocalcinose, a vigilância da terapêutica deverá ser rigorosa, assim:

  • Trimestralmente – determinar os níveis séricos de creatinina, cálcio, fosfato, fosfatase alcalina, e urinários de creatinina e cálcio em urina de 24 horas;
  • Semestralmente – determinar os níveis séricos de PTH e realizar ecografia renal para pesquisa de nefrocalcinose.

Objectivos terapêuticos:

  • Fosfatémia em jejum 1 mmol/L;
  • Calcémia < 2,6 mmol/L;
  • Calciúria < 0,1 mmol/kg/dia;
  • Níveis séricos de fosfatase alcalina no limite superior do normal.

A PTH elevada sugere hipertratamento com fosfato ou dose insuficiente de vitamina D; tal implica aumento da dose de calcitriol e/ou diminuição da dose de fosfato. Se existir hipercalciúria dever-se-á diminuir a dose de calcitriol.

Forma de raquitismo hipofosfatémico associada a aumento do FGF23

O quadro clínico clássico é o de tumor segregando FGF23 levando a raquitismo (e osteomalácia no adulto). O fenótipo clínico e laboratorial é sobreponível ao da forma dominante ligada ao cromossoma X: níveis baixos de 1,25(OH)2D3 ou “em discordância” com a hipofosfatémia e fosfatase alcalina elevada.

O tratamento curativo é a excisão do tumor. Se tal não for possível, procede-se à administração de sais de fosfato aplicando o esquema descrito na forma ligada ao X.

Raquitismo hipofosfatémico hereditário com hipercalciúria

Deve-se a mutação do gene SLC34A3 localizado no cromossoma 9 o qual codifica o cotransportador renal de sódio-fosfato. Os sinais clínicos de raquitismo podem ser graves e precoces.

O perfil laboratorial caracteriza-se por normocalcémia, hipofosfatémia, fosfatase alcalina aumentada, PTH normal, 1,25(OH)2D3 aumentada e hipercalciúria sem quaisquer outras perdas renais.

O tratamento inclui a administração de sais de fosfato, aplicando o esquema descrito na forma ligada ao X. Os análogos da vitamina D não estão indicados dado o risco de nefrolitíase.

Síndroma de McCune-Albright/Displasia fibrosa

Esta síndroma resulta de mutação activadora pós-zigótica com mosaicismo, do gene GNAS1 localizado no cromossoma 20, o qual codifica a subunidade a da Proteína G.

As alterações verificadas em cada caso são muito variáveis dependendo dos tecidos afectados pelo mosaicismo e do grau do seu atingimento. Admite-se que, quanto mais precoce no desenvolvimento embrionário for a mutação, tanto mais grave será o quadro clínico associado.

A displasia fibrosa deve-se à proliferação e diferenciação anormal das células do estroma da medula óssea; estas células pré-osteoblásticas anormais produzem tecido fibroso (tecido ósseo anormal) e interleucina 6 que, por sua vez, estimula os osteoclastos e a reabsorção óssea levando à substituição do osso normal por tecido conjuntivo fibroso. Estas lesões quísticas provenientes da medula expandem-se para o córtex ósseo que se torna esclerótico e circundado de osso cortical fino.

As manifestações clínicas na forma clássica integram a tríade de displasia fibrosa poliostótica, máculas hiperpigmentadas tipo “café com leite” e poliendocrinopatia (hipertiroidismo, síndroma de Cushing, gigantismo/acromegália, etc.). As manifestações iniciais podem ser dores ósseas, deformações ósseas ou fracturas patológicas; são também frequentes as pseudoartroses.

Existe, pois, um largo espectro clínico variando entre formas mais ligeiras, com atingimento de um único osso (displasia fibrosa monostótica, por vezes assintomática), e formas mais graves atingindo, não só vários ossos, em geral ossos longos e tendência para compromisso predominante num dos lados do corpo originando assimetrias (displasia fibrosa poliostótica), mas também estando associadas a puberdade precoce. O atingimento dos ossos do crânio e face pode levar a cegueira ou surdez por compressão nervosa e também a assimetria craniofacial.

As máculas pigmentadas localizam-se, muitas vezes, na face posterior do pescoço, sendo classicamente descritas na literatura norte-americana como “coast of Maine” por apresentarem bordos irregulares, por oposição às da neurofibromatose que apresentam bordos regulares, do tipo “coast of California”.

O perfil laboratorial inclui:

  • Hipofosfatémia instalada precocemente, na maioria dos casos durante o primeiro mês de vida;
  • Níveis baixos de 1,25(OH)2D3 ou “em discordância” com a hipofosfatémia;
  • Fosfatase alcalina elevada.

Em 50% dos casos, há produção de FGF23.

As imagens radiológicas ósseas evidenciam padrão “quístico” e aspecto símile “vidro martelado”.

O tratamento é semelhante ao descrito para a forma ligada ao X (ver atrás). O tratamento com bifosfonato diminui a dor e o risco de fractura.

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DOENÇAS DA TIROIDEIA

Importância do problema

A tiroideia (ou tiróide) e as hormonas tiroideias (HT) têm um papel crucial no metabolismo energético, na mielinização do sistema nervoso central (SNC), na regulação do crescimento e na função de múltiplos órgãos. Importa recordar, a propósito, o papel da hormona segregada pelo lobo anterior da hipófise estimulando a produção de hormonas tiroideias; trata-se da TSH hipofisária (thyroid stimulating hormone/tirotrofina, tirotropina ou tirostimulina).*

As crianças, em especial o recém-nascido (RN) e o lactente, são extremamente vulneráveis às alterações da função tiroideia. O diagnóstico e tratamento precoces são, nestas idades, essenciais para prevenir consequências irreversíveis tais como a lesão permanente do SNC com impacte negativo no neurodesenvolvimento.

As doenças da tiroideia representam, sem dúvida, as afecções endócrinas mais frequentes na idade pediátrica, sendo a sua etiologia e apresentação clínica muito diferentes das do adulto, o que implica idealmente uma abordagem, pelo pediatra com experiência em endocrinologia.

*Para facilitar a compreensão deste processo de interacção bidireccional SNC-tiróide, recorda-se igualmente o significado de certas siglas: GH (growth hormone), hormona de crescimento ou somatotrópica, somatotrofina, ou somatotropina; GH-RIH (growth hormon release inhibiting hormone), hormona inibidora da libertação da GH ou somatostatina; SRH (somatotropin releasing hormone), hormona de estimulação da libertação da somatotropina; SRIF (somatotropin release inhibiting hormone), somatostatina ou factor de inibição da libertação da somatotropina).

Anatomia e histologia

A tiroideia é uma das glândulas endócrinas de maiores dimensões, pesando cerca de 15 gramas no adulto. É constituída por dois lobos com cerca de 2,5 cm de maior diâmetro e 4 cm de comprimento, unidos por uma fina banda, o istmo. Ocasionalmente e especialmente se a glândula se encontrar aumentada de volume, um terceiro lobo piramidal surge, em forma de “dedo” projectado para cima a partir do istmo.

A glândula é constituída por unidades esféricas justapostas, denominadas folículos, envolvidas por uma rede capilar densa. O interior dos folículos está preenchido por um colóide proteico claro que é o maior constituinte da glândula. A tiróide contém também as células parafoliculares ou células C, produtoras de calcitonina que se diferenciam das células foliculares por nunca se situarem no bordo do lume folicular.

Ontogénese e fisiologia

O tecido tiroideu confina-se e está presente em todos os vertebrados. A associação filogenética com o tracto gastrintestinal é evidente numa série de funções, nomeadamente na capacidade de metabolizar o iodo e incorporá-lo em diferentes compostos orgânicos.

No ser humano, o primeiro esboço embrionário da glândula tiroideia surge pelo vigésimo dia de gestação como um espessamento endodérmico da linha média. A partir desta fase, a glândula vai progredindo por migração caudal até à sua posição final, pré-traqueal.

Simultaneamente, enquanto a migração da glândula tiroideia embrionária ocorre, as células foliculares e parafoliculares vão-se diferenciando. A síntese de HT requer a correcta expressão de genes relacionados com proteínas específicas da célula tiroideia. Para além da tiroglobulina (Tg) e tiroperoxidase (TPO), o receptor da TSH (TSHR) é também fundamental para a transdução do efeito extracelular da tirotrofina (TSH), necessário para uma síntese hormonal eficaz. Para além da TSH, existem factores de transcrição, incluindo NKX2-1 (TTF-1), PAX8, FOXE1 (TTF-2) e FOXM1 (HNF-3) essenciais para conseguir a normal diferenciação das células foliculares tiroideias e dar início à hormonogénese. O iodo é um elemento fundamental para a síntese de HT, sendo o sódio utilizado como instrumento para as bombas de sódio geradoras de energia que é necessária para a entrada do iodo. Este processo de importação simultânea de iodo e sódio do meio extracelular (sangue) para o meio intracelular, é realizado por uma proteína de membrana das células foliculares, a natriumiodine symporter – NIS, codificada pelo gene SLC5A5.

Eis algumas etapas fundamentais do desenvolvimento tiroideu:

  • – pela 8ª semana, inicia-se a síntese de Tg;
  • – a captação de iodo e formação de colóide e tiroxina (T4) verifica-se pela 12ª semana de gestação, traduzindo maturação e funcionamento da tiroide fetal a partir 2º trimestre.

A normal morfogénese e migração da glândula tiroideia são TSH-independentes, uma vez que o eixo hipotálamo-hipofisário só inicia a produção de TSH fetal pelas 14 semanas. Provavelmente como resultado da maturação hipotalâmica e aumento da secreção da tyrotropin-releasing hormone (TRH), cerca das 20 semanas, os valores de TSH elevam-se na circulação fetal e mantêm-se superiores aos níveis de TSH materna. Estes níveis mais elevados parecem reflectir um “set-point” mais elevado do feed-back negativo durante a vida fetal.

Devido à elevada actividade da tiroxina-deionidase tipo III (D3) na unidade útero-feto-placentária, a T3 e T4 são inactivadas, levando a níveis de rT3 fetal elevados nos 1º e 2º trimestre, mantendo-se os níveis de T4 e T3 fetais adequados. Por outro lado, durante o 1º trimestre, as HT maternas são transferidas de forma maciça para o feto, assegurando os níveis de HT necessárias ao desenvolvimento fetal, diminuindo progressivamente até ao final da gravidez.

Assim se compreende que na gravidez a síntese de HT maternas aumente entre 20-40%. Este aumento deve-se ao aumento do volume plasmático, ao aumento de thyroxine-binding globulin (TBG) provocado pelo aumento dos estrogénios, com diminuição relativa das fracções livres e à elevada actividade da D3. Como resultado, as necessidades de iodo também aumentam associadas ao facto de surgir uma elevação da taxa de filtração glomerular renal com aumento da depuração urinária de iodo durante este período. Por esta razão, é obrigatório proceder a suplementação de iodo na gravidez. A não suplementação pode induzir hipotiroidismo na grávida e no feto, como se verificou em áreas de défice de iodo endémico ou com suplementação insuficiente.

Após o nascimento, observa-se a seguinte evolução: A TSH sobe 2-4 horas após o parto (resultado do estresse e arrefecimento) até valores de 60-80 mU/mL. Esta elevação de TSH é seguida por um marcado aumento da T3 e T4, as quais atingem valores de hipertiroidismo às 24 horas de vida (T4 : 15-19 mcg/dL) – “Hipertiroidismo fisiológico”. Como consequência, e através de mecanismo de retrocontrolo negativo, a TSH diminui ao fim de aproximadamente 48 horas para valores de 8 mU/mL.

No pré-termo, o eixo hipotálamo-hipófise-tiróide está imaturo, o que se traduz por TSH, T4 e T3 diminuídas. Os níveis de TBG, T4 total e T4 livre correlacionam-se com a idade gestacional. Também no parto, a subida de TSH não é tão evidente como nos RN de termo, e em caso de estresse respiratório ou défice nutricional, a TSH está ainda mais reduzida, podendo a T4 e especialmente a T3 caírem para níveis inferiores ao normal.

É pois fundamental ter em consideração estas variações hormonais perinatais na avaliação da função tiroideia, tanto em RN de termo como pré-termo. Uma interpretação errada dos valores pode induzir falsos diagnósticos de hipertiroidismo ou falha na detecção do hipotiroidismo. Os valores de referência para as HT estabelecidos de acordo com a idade e sexo, são valiosos instrumentos na abordagem clínica da função tiroideia da criança e adolescente.

Neste capítulo são abordadas sucintamente as afecções tiroideias com as quais o pediatra e o clínico geral mais frequentemente se defrontam.

1. HIPOTIROIDISMO

Definição e etiopatogénese

O hipotiroidismo é uma entidade clínica resultante da síntese ou acção inadequadas de HT para as necessidades dos tecidos e sistemas orgânicos.

A síntese de HT requer uma glândula tiroideia com desenvolvimento normal, um eixo hipotálamo-hipofisário funcionante e uma captação de iodo adequada.

A TRH e a somatostatina* hipotalâmicas controlam a libertação de tirotrofina hipofisária (TSH). Esta, ligando-se ao receptor da TSH na glândula tiroideia, estimula a produção e libertação de L-tiroxina (T4) e em menor quantidade de tri-iodotironina (T3). A T4 é convertida perifericamente em T3, sendo esta a forma mais activa e a responsável pela maioria dos efeitos fisiológicos. Níveis séricos elevados de HT, inibem a secreção de TRH e TSH e, consequentemente, de HT através do sistema de retrocontrolo negativo.

Dependendo da localização da lesão, o hipotiroidismo pode ser primário (causa tiroideia) ou secundário (causa central), podendo também ser congénito ou adquirido; e transitório ou permanente (Quadro 1). A causa mais frequente de hipotiroidismo congénito é a agenésia da glândula. A causa mais comum de hipotiroidismo adquirido é a doença auto-imune da tiroideia designada por “tiroidite de Hashimoto”. A resistência periférica às HT é rara, correspondendo, na maior parte das vezes, a mutações nos genes dos receptores periféricos da T3. Neste caso, o eixo está intacto (provas de TRH e TSH estão normais), e os valores de HT estão muitas vezes normais.

* A somatostatina ou SRIF – Somatotropin release inhibiting factor – diminui a concentração plasmática da hormona do crescimento (GH) ou somatotrofina, e suprime a libertação de TSH.

Relativamente ao hipotiroidismo primário, de causa congénita, em 90% dos casos deve-se a disgenésias da tiroide (agenésia, hemiagenésia ou ectopia) que correspondem a situações esporádicas. As restantes causas são raras e incluem: – os erros da síntese hormonal (disormonogénese); – as formas transitórias que ocorrem durante a gravidez, devido a anti-corpos maternos ou a fármacos que atravessam a placenta. Está demonstrado que alguns casos de disgenésia da tiroideia estão associados a mutações em genes envolvidos no desenvolvimento da tiroideia (TTF1, TTF2, PAX 8 e o gene do receptor da TSH). O modo de transmissão pode ser autossómico dominante ou autossómico recessivo; ou ainda tratar-se de haploinsuficiência.

Os defeitos da hormonogénese são situações de transmissão hereditária autossómica recessiva. A causa mais frequente deve-se a uma mutação no gene da tiroide-peroxidase, responsável pela oxidação do iodo necessária para a síntese de HT. A síndroma de Pendred (surdez congénita e bócio por defeito da organificação do iodo), uma das situações associadas a defeito da hormonogénese mais estudadas, está associada a uma mutação do gene SLC26A4, codificador da pendrina, proteína transportadora de aniões.

 O hipotiroidismo primário, de causa adquirida, surge mais tarde ao longo da infância e adolescência. A sua etiologia é variada, sendo as causas mais importantes o défice de ingestão de iodo, e nas regiões do globo em que o iodo na dieta é suficiente, a tiroidite crónica auto-imune ou doença de Hashimoto (Quadro 1). Esta última surge habitualmente durante a adolescência podendo, no entanto, ter início aos 6-9 meses de idade com sintomas mais subtis.

QUADRO 1 – Classificação e alterações bioquímicas do hipotiroidismo em idade pediátrica

HIPOTIROIDISMOT4 LT3 LTSHCAUSAS
Primário congénito
DisgenésiaTotal ou parcial ausência da glândula
DisormonogéneseDefeito na síntese da HT
TransitórioFactores maternos
Primário adquirido
Tiroidite de HashimotoTiroidite crónica auto-imune
Anticorpos receptor TSHAnticorpos receptor da TSH
Défice de iodoDiminuição da síntese de T4 e T3
Drogas/NInibição da libertação/síntese de TRH, TSH, T4 e T3
AblaçãoTiroidectomia, I131
Secundário/central congénito
Hipopituitarismo/NAlterações no desenvolvimento do hipotálamo/hipófise
Défice isolado de TSHMutação da subunidade β da TSH ou do receptor TRH
Secundário/central adquirido
Hipopituitarismo/NLOE, traumatismos, infecção, doenças infiltrativas

É mais frequente no sexo feminino e em crianças com outras doenças auto-imunes, nomeadamente diabetes mellitus, síndroma poliglandular auto-imune, cromossomopatias (síndroma de Down, síndroma de Klinfelter, síndroma de Turner) e doenças metabólicas. Está demonstrado que os indivíduos portadores dos genótipos do human leucocyte antigen (HLA) DR3, 4 e 5 apresentam uma maior susceptibilidade para a doença. A patogénese da tiroidite de Hashimoto está associada à destruição de células da tiroideia mediada por células linfocitárias T citotóxicas e libertação de citocinas inflamatórias. A imunidade humoral, mediada por auto-anticorpos antiroideus tem um papel secundário na patogénese, sendo insuficiente para causar alterações clínicas. Os sintomas de hipotiroidismo só surgem quando 90% da glândula se encontra destruída. O défice de ingestão de iodo é muito frequente nas regiões montanhosas do globo (Alpes, Andes, Himalaias etc.), onde o solo é muito pobre em iodo.

O termo bócio endémico está reservado para o bócio causado por défice de iodo que afecte 10% da população. O défice de ingestão de iodo raramente causa hipotiroidismo, sendo o bócio a única manifestação clínica da doença. Determinadas drogas podem causar hipotiroidismo por inibição da TRH, TSH ou da síntese de HT. Os glucocorticóides e a dopamina inibem a TRH, e o lítio bloqueia a síntese de HT. A amiodarona interefere com a função tiroideia a diferentes níveis: pode actuar como agonista dos receptores da TSH na glândula tiroideia diminuindo a síntese de T3 e T4 e pode ter efeito nos tecidos periféricos inibindo a entrada de T4 e T3.

O hipotiroidismo secundário (ou central) de causa congénita ocorre por défice de TSH ou TRH, na maioria das vezes, num contexto de hipopituitarismo, em que outras hormonas hipofisárias estão deficitárias (ex: hormona do crescimento e gonadotrofinas). O défice isolado de TSH ou TRH é muito raro e resulta de mutações no gene da TRH, do seu receptor, ou no gene codificafor da subunidade β da TSH. As mutações do gene PIT1 e PROP1 levam a defeitos na organogénese da hipófise e consequente pan-hipopituitarismo. O hipotiroidismo central isolado pode observar-se em RN prematuros com hipotiroxinemia transitória por imaturidade do eixo HH-tiroideu.

O hipotiroidismo secundário (ou central) de causa adquirida, resulta habitualmente de doenças hipotalâmicas e/ou hipofisárias. Associam-se a outros défices hormonais causados por tumores cranianos, enfarte, irradiação, trauma, infecção ou inflamação. Uma vez que a glândula tiroideia tem capacidade para sintetizar HT na ausência de TSH, o hipotiroidismo central não é tão grave como o hipotiroidismo de causa primária.

Aspectos epidemiológicos

O hipotiroidismo congénito tem uma incidência variável de acordo com a área geográfica, estimando-se em média 1/3.500, sendo 2 vezes mais frequente no sexo feminino. As causas de hipotiroidismo congénito são na grande maioria primárias: disgenésia da tiroideia na proporção de 1/4.000; disormonogénese ~1/30.000 e hipotiroidismo transitório ~1/40.000. Apenas 5-10% dos casos de hipotiroidismo congénito são secundários a uma causa central. A tiroidite de Hashimoto é mais frequente no sexo feminino, numa proporção de 4/1. Quanto ao défice de iodo, estima-se que esta situação afecte cerca de 200 milhões de pessoas ao nível do globo.

Manifestações clínicas

O hipotiroidismo pode afectar todos os órgãos e sistemas. As manifestações clínicas são independentes da causa subjacente mas dependentes da idade de aparecimento e do grau do défice hormonal. A existência ou não de história familiar de doença tiroideia ou da hipófise é importante para o diagnóstico. Os sinais e sintomas podem ser subtis (estão descritos casos assintomáticos) nos primeiros 2 meses de vida e incluem a má progressão estaturo-ponderal, dificuldades alimentares, icterícia, hipotonia, macroglossia, fácies grosseiro, hernia umbilical e defeitos cardíacos congénitos. Se não tratado nos primeiros 3 anos de vida, o hipotiroidismo deixa marcas irreversíveis no desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) – com défices cognitivos graves. Por isso o rastreio do hipotiroidismo congénito faz parte dos programas de rastreio no período neonatal em quase todo o mundo, sendo fundamental para o diagnóstico precoce (identificação da doença antes do início de qualquer sintomatologia) desta doença.

Em Portugal, o diagnóstico precoce do hipotiroidismo congénito neonatal, associado ao rastreio da fenilcetonúria e doutras doenças hereditárias metabólicas, é o único programa de rastreio de doenças infantis realmente eficaz. Também conhecido pelo teste do “pézinho”, é realizado entre o 3º e o 6º dia de vida e consiste no doseamento de TSH (análise de sangue capilar feita actualmente no Instituto Nacioinal de Saúde Doutor Ricardo Jorge-Porto). Em caso de dúvida ou suspeita, doseia-se a T4. É importante referir que mesmo em RN com TSH e T4 normais, poderá vir a desenvolver-se hipotiroidismo nas primeiras semanas ou nos primeiros meses de vida. Assim, um segundo teste de diagnóstico precoce deve ser realizado nos seguintes casos: quando a colheita ocorre antes do 3º dia de vida, nos RN pré-termo com < 37 semanas, nos RN de baixo peso, em gémeos, em RN em estado crítico, e nos submetidos a transfusões e/ou medicados com agentes tópicos com iodo ou com fármacos com interferência na função tiroideia (dopamina, glucocorticóides, etc.). A Figura 1 exibe fácies de lactente com quadro clínico hipotiroidismo na era pré-rastreio neonatal no nosso país.

FIGURA 1. Fácies inexpressiva de lactente com hipotiroidismo congénito

Na criança mais velha, os sinais predominantes podem ser atraso do desenvolvimento psicomotor, baixa estatura, atraso na maturação óssea e na dentição, miopatia e hipertrofia muscular, cansaço, hipotonia, pele seca e atraso pubertário. O bócio, é um sinal frequente na tiroidite de Hashimoto.

Em casos raros, o hipotiroidismo primário grave pode levar a aumento da glândula mamária na rapariga e a aumento do volume testicular no rapaz. O mecanismo exacto é ainda desconhecido mas uma das teorias é a de que a TSH em excesso estimula o receptor da follicle stimulating hormone (FSH) a nível das gónadas. Estas crianças, apresentam desaceleração do crescimento e atraso da maturação óssea, contrariamente ao tipicamente encontrado na puberdade precoce. A estimulação das células produtoras de prolactina pela TSH em excesso leva por vezes ao aparecimento de galactorreia. A presença de prolactina em circulação vai inibir por retrocontrolo negativo a LH, mas não a FSH.

No pré-termo é frequente encontrar hipotiroxinémia com valores de TSH normais. Trata-se de uma alteração transitória que desaparece aos 2 meses de vida. O cretinismo é um termo histórico, que se refere à constelação de défices cognitivos e físicos consequentes do hipotiroidismo não tratado na criança. Devem fazer parte do diagnóstico diferencial de hipotiroidismo neonatal com a glândula tiroideia “in situ”, a síndroma de Down, a síndroma de Pendred com ou sem bócio, e o pseudo-hipoparatiroidismo.

Exames complementares

O diagnóstico de hipotiroidismo baseia-se na clínica e, sobretudo, na avaliação laboratorial da função tiroideia: determinação de TSH, T3 e T4 livres (L) ou totais, e detecção de anticorpos antitiroideus.

O doseamento de Tg, a proteína da matriz hormonal tiroideia cuja síntese depende da TSH, reflecte a síntese hormonal intratiroideia e permite avaliar a adequação terapêutica, bem como erros de síntese hormonal.

O hipotiroidismo primário confirma-se pelo aumento de TSH com diminuição de T4L, independentemente da T3. O doseamento de TSH é sem dúvida o parâmetro diagnóstico mais sensível, pelo que o seu doseamento é muitas vezes utilizado para detecção de doença tiroideia.

Quando se observa uma elevação da TSH isolada, sem alterações da T4 ou T3, trata-se de um hipotiroidismo subclínico que não está associado a alterações clínicas habitualmente. A tiroidite de Hashimoto caracteriza-se pela elevação da TSH, diminuição da T4L e anticorpos antitiroideus positivos. Em 90% dos casos, é o anticorpo contra a tireoperoxidase (TPO) que está elevado, associado ou não ao aumento do anticorpo anti-tiroglobulina (anti-Tg). Este último, encontra-se elevado em 15% da população saudável, e isoladamente não é considerado patológico.

O hipotiroidismo secundário, devido a défice de TRH ou de TSH, caracteriza-se pela diminuição de T4L com TSH normal ou diminuída.

Na resistência periférica às HT, todos os valores, HT e TSH encontram-se normais ou elevados.

A síndroma da doença eutiroideia ou síndroma da T3 baixa é uma disfunção transitória da tiroideia que surge em doença grave ou após intervenções cirúrgicas complexas, muito frequente em contexto de cuidados intensivos. O perfil laboratorial assemelha-se ao do hipotiroidismo secundário em que a TSH está normal ou diminuída, e a T3 diminuída; no entanto, a T4 está normal e a rT3 está normal ou elevada.

A ecografia é um exame bastante sensível para a localização e avaliação da glândula, mesmo em lactentes.

A cintigrafia com I123 ou Tc99 é importante para o diagnóstico das disgenésias da tiroideia (agenésia, hemiagenésia, ectopia), mas não deve ser utilizada como exame de rotina no hipotiroidismo congénito.

Tratamento

O tratamento do hipotiroidismo requere a substituição de HT, independentemente da causa. A levotiroxina, forma sintética da tiroxina (T4) é a droga de eleição no tratamento do hipotiroidismo da criança e adolescente.

No hipotiroidismo congénito o tratamento deve ser iniciado o mais cedo possível, antes das 2 semanas de vida com 10-15 µg/kg via oral (aprox. 50 µg no RN de termo). Os valores de TSH vão descendo até aos 15 dias, sendo desejável manter os valores de T3 e T4 nos limites superiores do normal para a idade. O comprimido, em toma única e diária, deve ser dado em jejum (30 minutos antes da refeição). No dia do controlo, a colheita de sangue deve ser feita pelo menos 4 horas após a última toma. Em RN com hipotiroidismo grave, deve iniciar-se a terapêutica com dose máxima, uma vez que os efeitos adversos na criança são mínimos e o risco de lesões irreversíveis por hipotiroidismo grave deve ser diminuído o mais rapidamente possível. O seguimento inicial deve ser quinzenal até à normalização da TSH, depois de 3 em 3 meses até aos 3 anos e, a partir daí, semestralmente até terminar o crescimento. Com a idade, a dose de L-tiroxina vai diminuindo, “por kg de peso”, sendo de 1-3 mcg/ kg/dia a partir dos 12 anos ou de 100 mcg/m2.

Nas crianças com hipotiroidismo primário, a dose é ajustada pela TSH. No hipotiroidismo secundário a dose é ajustada pela T4, sendo o objectivo obter valores de T4 inferiores aos valores alvo no hipotiroidismo primário. Nos casos em que não tenha sido possível confirmar o diagnóstico e em que se tenha iniciado a terapêutica, esta deve ser mantida até aos 2 anos de idade, quando a maturação do SNC está praticamente completa. A interrupção terapêutica deve ser feita 4 semanas antes da avaliação da função tiroideia.

No seguimento do hipotiroidismo congénito são aconselháveis testes de audição e avaliação do neurodesenvolvimento. A administração de T3 tem efeitos benéficos em casos de doença não tiroideia grave, designadamente no que respeita à função miocárdica.

2. HIPERTIROIDISMO/TIREOTOXICOSE

Definição e etiopatogénese

Tireotoxicose é o termo que designa o conjunto de manifestações clínicas resultantes do excesso de HT nos tecidos periféricos. O termo hipertiroidismo refere-se ao estado de tireotoxicose em que a causa é a hiperprodução de HT pela glândula tiroideia. A causa mais frequente de hipertiroidismo é a doença de Graves (ou doença de von Basedow) também denominada por hipertiroidismo auto-imune. Na criança, a tireotoxicose é rara, sendo a doença de Graves a causa mais frequente (95% dos casos). (ver Glossário)

A doença de Graves resulta da produção anormal de autoanticorpos estimulantes do receptor da TSH (Thyrotropin Receptor Antibodies ou TRAbs). Os TRAbs ligam-se ao domínio extracelular do receptor da TSH, estimulando a função e crescimento da célula folicular da tiroideia e a secreção excessiva de HT. Para além de anticorpos (Ac) estimulantes (os TRAbs), são detectáveis outros Ac no hipertiroidismo auto-imune, tais como Ac bloqueantes do receptor TSH (TRAbs bloqueadores), Ac antitiroperoxidase (TPO) e antitiroglobulina. A doença de Graves é uma doença com forte componente hereditário, evidenciado pelo aumento de incidência de doenças auto-imunes em familiares tais como, a doença de Hashimoto, diabetes mellitus tipo 1, doença celíaca e doenças reumatológicas.

Em 60% dos doentes com doença de Graves existe história familiar de doença auto-imune da tiroideia. A tendência para anticorpos antitiroideus parece ser um traço autossómico dominante associado ao gene do cytotoxic T-lymphocyte antigen 4 (CTLA4), codificador da modulação do 2º sinal das células T. No entanto, estudos genéticos comprovaram tratar-se de uma doença poligenética, em que a maioria dos genes implicados é ainda desconhecida.

A maior frequência dos haplótipos HLA DR3 e DQA10501 da região do HLA (Human Leucocyte Antigen), contribui apenas para 5% da susceptibilidade genética para a doença de Graves. Para além dos genes do HLA e CTLA4, outros genes relacionados com a imuno-regulação contribuem para a susceptibilidade para esta doença, nomeadamente o gene da lymphoid tyrosine phosphatase (PTPN22), o gene da molécula sinalizadora CD40, e do receptor da IL-2. A doença de Graves é mais prevalente no sexo feminino, após a puberdade. O estresse nos 12 meses precedentes, bem como o contacto com substâncias iodadas ou drogas contendo iodo (ex: amiodarona) podem ser factores precipitantes.

A tireotoxicose neonatal é também de causa auto-imune (doença de Graves neonatal). Surge em 5% dos RN de mães com doença de Graves quando o valor dos TRAbs é muito elevado. Consequência da passagem de TRAbs maternos através da placenta, o hipertiroidismo neonatal regride espontaneamente ao fim de 3 semanas a 5 meses de vida, uma vez que os anticorpos (Ac) maternos têm uma semi-vida de 3 meses.

Outras causas de tireotoxicose por hipertiroidismo são: o nódulo autónomo funcionante da tiroideia que, sendo independente do controlo normal do eixo hipotálamo-hipofisário, leva à produção excessiva de HT circulantes. Na criança pode tratar-se de um adenoma tóxico cuja patogénese tem por base mutações somáticas “com ganho de função” na via de sinalização do receptor da TSH.

A síndroma de McCune Albright pode ocorrer com hipertiroidismo, associado a um ou vários nódulos funcionantes. Na sua base está uma mutação activadora não hereditária do gene GNAS1. O carcinoma folicular ou papilar funcionante é raro. O bócio multinodular tóxico é uma causa de hipertiroidismo mais frequente em adultos.

O hipertiroidismo por excesso de TSH é habitualmente devido a adenoma hipofisário ou, muito raramente, à resistência hipofisária às HT. Surge igualmente no sexo feminino e masculino e em ambos os casos pode ocorrer de forma esporádica ou familiar.

A tireotoxicose pode surgir numa fase inicial da tiroidite de Hashimoto, resultante da inflamação da glândula e da destruição maciça auto-imune de folículos tiroideus, levando à libertação de HT armazenadas. Também os processos de tiroidite subaguda pós-infecção vírica, ou tiroidites infecciosas, podem causar tireotoxicose, devido à inflamação glandular com destruição folicular e consequente libertação de HT. A ingestão de iodo em excesso e de HT iatrogénica, são também causas raras de tireotoxicose transitória.

Pelo facto de a hormona gonadotrópica coriónica humana ou human chorionic gonadotropin (hCG ou gonadotrofina) apresentar também afinidade para o receptor da TSH (estimulando a glândula tiroideia, mas com menor intensidade do que a TSH), em raríssimos casos de tumores do trofoblasto pode surgir hipertiroidismo. São exemplos a mola hidatiforme e o coriocarcinoma que, obviamente, só ocorrem em adolescentes ou jovens em idade fértil (Quadro 2).

QUADRO 2 – Classificação e alterações bioquímicas da tireotoxicose na criança e adolescente

TIREOTOXICOSET4 LT3 LTSHCAUSAS
Hipertiroidismo    
Doença de Graves juvenilAnticorpos estimulantes do receptor de TSH (TRAbs)
Doença de Graves neonatalPassagem transplacentária de TRAbs
Adenoma tóxicoMutação activadora do receptor da TSH
Síndroma de McCune Albright Mutação activadora da proteína Gα
Adenoma hipofisárioAumento da secreção de TSH
Tumores do trofoblasto
(mola hidatiforme; coriocarcinoma)

Tumor placentário produtor de hCG

(agonista do receptor da TSH)

Tiroidite   Inflamação da glândula
HashimotoN ↑/NAuto-imune, exacerbação aguda inicial
Pós-infecção vírica – subaguda (de Quervain)↓/NViral
Infecciosa↓/NBacteriana
Por drogas (lítio, amiodarona e interferão)↓/N/↑Estimulação da libertação/síntese de T4 e T3
Drogas (ex. amiodarona)
Ingestão de iodo
↓/N/↑Estimulação da libertação/síntese de T4 e T3
HT exógenasIngestão de levotiroxina

Aspectos epidemiológicos

Em áreas com abundância de iodo, a doença de Graves, uma das doenças mais frequentes da tiroideia, corresponde a cerca de 50-80% dos casos de tireotoxicose. Na criança, a incidência da doença de Graves é muito inferior à do adulto, mas continua a ser a causa mais frequente de tireotoxicose na criança (96% dos casos). A prevalência desta doença é de 0,02 por cento (1:5000), na maioria entre os 11-15 anos de idade. As raparigas são mais afectadas que os rapazes (5:1), e a prevalência vai aumentando com a idade atingindo um pico na adolescência, sugerindo a existência de uma influência dos estrogénios na ocorrência da doença de Graves.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da tireotoxicose são comuns a todos os estados tireotóxicos, independentemente da etiologia. Os sinais e sintomas estão relacionados com as quatro funções nucleares das HT a nível dos órgãos e sistemas: aumento do metabolismo basal, alterações cardiovasculares, estimulação do sistema nervoso simpático e alteração do crescimento e maturação dos tecidos (Quadro 3).

QUADRO 3 – Clínica de tireotoxicose na criança e adolescente

GERAIS
Ansiedade
Hipersudorese
Intolerância ao calor
Irritabilidade
Insónia
Perda de peso
CARDIOVASCULARES
Taquicárdia
Hipertensão arterial
Arritmias
HEMATOLÓGICA
Anemia normocítica
NEUROLÓGICAS
Hiperreflexia osteotendinosa
Tremores das extremidades
OFTALMOLÓGICAS
Protusão do globo ocular (proptose/exoftalmia)
Atraso no movimento das pálpebras
Olhar extasiado
APARELHO REPRODUTOR
Irregularidades menstruais

Do quadro clínico da doença de Graves, fazem parte os sinais e sintomas clássicos de tireotoxicose e as manifestações específicas da doença. É característico o aumento difuso e simétrico da glândula (2-3 vezes o normal), com consistência firme e elástica que pode ser acompanhada por um sopro arterial ou frémito. Para além do “olhar extasiado” e atraso no movimento das pálpebras, característicos da tireotoxicose, a proptose ou exoftalmia são manifestações oculares únicas da doença de Graves. Resulta do crescimento dos tecidos retro-orbitários secundário a inflamação, deposição de glicosaminoglicanos e fibrose, com deslocamento anterior da órbita. Acompanha-se muitas vezes de edema periorbitário e hiperémia conjuntival, e mais raramente de quemose, diplopia e dor ocular.

A evolução clínica da doença é bastante insidiosa (meses). Na criança, os primeiros sintomas são frequentemente alterações do comportamento e diminuição do rendimento escolar, seguidos de irritabilidade, hiperactividade e insónia. Por outro lado, pode surgir fadiga, letargia e nictúria.

A oftalmopatia surge em apenas 50% das crianças com doença de Graves e é habitualmente uma forma ligeira (Figura 2). A dermopatia ou mixedema pré-tibial é extremamente rara na criança e está associada a oftalmopatia severa.

FIGURA 2. Fácies de hipertiroidismo: protusão dos globos oculares

O RN com tireotoxicose congénita apresenta características específicas salientando-se: prematuridade ou baixo peso, irritabilidade, má progressão ponderal ou excessiva perda de peso (apesar do apetite muitas vezes voraz), e dificuldade em adormecer. Existe também taquicárdia, febrícula, e hipersudorese. O aumento de volume da glândula tiroideia é visível, provocando muitas vezes dificuldade respiratória por compressão traqueal. Se a causa for a doença de Graves neonatal, pode existir protusão ocular. Quando o diagnóstico não é feito atempadamente na primeira infância, pode surgir craniossinostose prematura, situação grave que obriga a intervenção cirúrgica correctiva.

Exames complementares

Na presença de manifestações clínicas de tireotoxicose, tipicamente, a concentração de TSH é < 0,1mU/L (indoseável) e de T4L está elevada. Se a causa da tireotoxicose for o hipertiroidismo de Graves, a T3L está mais elevada do que a T4L. Numa fase inicial, após excluir a ingestão iatrogénica de HT ou de outras substâncias tireomiméticas, é importante distinguir se a tireotoxicose é devida a hipertiroidismo ou tiroidite. Nesta última, observa-se um aumento da velocidade de sedimentação. A associação de TSH elevada, com T3L e T4L também elevadas, é rara e sugere a existência de um adenoma da hipófise, produtor de TSH.

A quantificação de TRAbs, permitindo confirmar o diagnóstico clínico de doença de Graves, é utilizada como indicador prognóstico da doença. Nos doentes tratados com antitiroideus, a persistência de níveis elevados de TRAbs é preditiva de recidivas após ter cessado o tratamento. Por outro lado, a não detecção de TRAbs não exclui a doença de Graves.

 

Os Ac antitiroideus (anti-TPO e anti-Tg) são característicos da tiroidite de Hashimoto, mas podem encontrar-se também na doença de Graves.

Suspeitando-se de doença de Graves neonatal aquando do nascimento, os doseamentos das HT, TSH e Ac devem ser feitos a partir de sangue do cordão umbilical.

No hipertiroidismo, a ecografia revela um aumento difuso da glândula com ecogenecidade não homogénea e sinais de perfusão aumentada na modalidade de Doppler.

A cintigrafia da tiroideia com I123 ou Tc99m deve realizar-se em doentes com nódulos detectados através da ecografia, para detecção de nódulos funcionantes. É também considerada o exame mais fidedigno para o diagnóstico diferencial entre a tireotoxicose devida a hipertiroidismo ou tiroidite. Na primeira, a captação de I123 ou Tc99m encontra-se difusamente aumentada, e na segunda está diminuída.

Tratamento

O tratamento da doença de Graves é obrigatório uma vez que esta doença raramente regride espontaneamente. As opções terapêuticas incluem o tratamento médico com antitiroideus de síntese (AT), a ablação por iodo radioactivo e a excisão cirúrgica. Qualquer destas modalidades não é dirigida à fisiopatologia da doença e acarreta riscos e benefícios que devem ser considerados em qualquer idade, e principalmente no tratamento de crianças.

Os antitiroideus, utilizados na abordagem inicial do hipertiroidismo, incluem 3 tipos de tionamidas- o propiltiuracilo, o carbimazol e o seu metabólito, o metimazol. Todos actuam a nível da síntese de HT, inibindo a enzima tireoperoxidase, responsável pela iodinização da tirosina e tiroglobulina. O propiltiuracilo é o único que actua também perifericamente, inibindo a conversão de T4 em T3, mas é 10-20 vezes menos potente do que o carbimazol ou metimazol, e tem uma semi-vida mais curta. Habitualmente, são necessárias 6-8 semanas para resolver a tireotoxicose e normalizar a função tiroideia. Uma vantagem das tionamidas é a monitorização do seu efeito por simples colheita de sangue. Todos os AT podem provocar efeitos secundários ligeiros, nomeadamente exantema, urticária, artralgias e síndroma simile lúpus.

A granulocitopénia e a hepatite são efeitos mais raros. Actualmente, apenas o metimazol ou carbimazol estão indicados para o tratamento médico do hipertiroidismo abaixo dos 18 anos. Isto deve-se à elevada hepatotoxicidade do propiltiuracilo, revelada por casos de hepatite fulminante com falência hepática irreversível, obrigando em geral a transplante hepático.

A dose de metimazol e carbimazol varia entre 0,5 a 1 mg/kg/dia e pode ser prescrito em toma única.

As soluções contendo iodo (ex. solução de Lugol) inibem a libertação de HT de forma muito rápida, sendo a opção ideal para o tratamento inicial da tirotoxicose grave, frequente na doença de Graves neonatal.

Os beta-bloqueantes – propranolol (1 mg/kg/dia), bem como a dexametasona, podem ser utilizados no início da terapêutica, para alívio dos sintomas do sistema nervoso autónomo e para promover o bloqueio periférico da conversão de T4 em T3, enquanto os antitiroideus ainda não tenham originado efeito.

Nas crianças tratadas com AT ocorre remissão ao fim de 2 anos de tratamento em apenas 25% dos casos, sendo a frequência de recidivas em rapazes e raparigas de 30%. Estudos recentes concluíram que o tratamento mais prolongado (máximo 10 anos), aumenta para 50% a frequência de remissões. A puberdade é um factor que influencia a possibilidade de remissão; crianças pubertárias entram mais facilmente em remissão do que crianças pré-pubertárias. Glândulas de maiores dimensões e níveis de TRAbs mais elevados, são preditivos de taxas de remissão mais reduzidas.

Para um tratamento definitivo, a ablação com iodo radioactivo ou excisão cirúrgica são os procedimentos mais indicados. O tratamento com I131 é largamente utilizado nos Estados Unidos, mesmo em crianças. O seu índice de cura é ~ 90%, sendo o menos dispendioso para o tratamento da doença de Graves. O tecido tiroideu da criança é mais sensível à ablação com o iodo do que o do adulto. No entanto, glândulas de grandes dimensões, apresentam menores taxas de sucesso terapêutico com I131. Cada vez mais utilizada, esta opção terapêutica deve ser evitada em crianças pequenas, e deve ser ponderada em caso de oftalmopatia grave por risco de agravamento desta última. Trata-se de uma boa opção terapêutica em casos de tireotoxicose por nódulo funcionante da tiroideia. Apesar dos conhecidos efeitos adversos a longo prazo do iodo radioactivo, estudos de seguimento prolongados não comprovaram o potencial risco carcinogénico (tiroideu e extratiroideu) em crianças tratadas com doses de I131 > 150 uCi por gm. Por outro lado, não se observou maior número de defeitos genéticos em filhos de indivíduos tratados com I131 durante a infância ou adolescência.

A tiroidectomia total permite níveis de cura de cerca de 90%, levando ao hipotiroidismo na quase totalidade dos casos. Implica um processo cirúrgico complexo que pode resultar em hipoparatiroidismo ou disfonia devido à lesão do nervo recorrente. Está indicada em crianças com menos de 5 anos, sempre que se pretende um tratamento definitivo, em crianças pequenas com recidivas ou complicações importantes do tratamento médico, nódulos funcionantes, e em RN com hipertiroidismo congénito não familiar, grave.

3. BÓCIO

Definição e etiopatogénese

O bócio ou tiromegália define-se como o aumento de volume da glândula tiroideia para além dos limites normais para a idade, independentemente da etiologia e da função tiroideia. Pode ser difuso ou nodular e a síntese de HT estar normal, diminuída ou aumentada.

As causas de bócio na criança e no adulto são semelhantes, variando de forma significativa a suas frequências relativas: nos EUA, a tiroidite crónica auto-imune é a causa de bócio mais frequente na criança, sendo o bócio nodular não tóxico a causa predominante no adulto. A nível mundial, o bócio endémico (por défice de iodo) é o mais frequente, afectando 200 milhões de pessoas, sendo as regiões montanhosas da América do Sul e Ásia Central, as de maior prevalência.

Os factores etiológicos de bócio na infância são múltiplos (Quadro 4). O bócio pode estar presente ao nascer- congénito, ou detectar-se mais tarde, em qualquer idade- adquirido. Os erros genéticos da hormonogénese estão descritos em qualquer passo da síntese de HT, são de transmissão autossómica recessiva e correspondem a 15% dos hipotiroidismos congénitos, podendo ou não causar bócio. A passagem transplacentária de Ac maternos em filhos de mãe com tiroidite auto-imune crónica ou doença de Graves podem alterar a função tiroideia com aparecimento de bócio fetal e neonatal.

O aumento da glândula pode ocorrer como consequência de mecanismos de estimulação, de inflamação ou infiltração.

QUADRO 4 – Causas de bócio

Bócio congénitoBócio adquirido
Passagem transplacentar de Acs maternosTiroidite de Hashimoto (Tiroidite crónica auto-imune)
Ingestão de drogas bociogénicas ou hormonas tiroideias (raramente causa bócio)Bócio colóide
Erros de hormonogéneseBócio por défice de iodo
Mutação activadora do receptor de TSHIngestão de substâncias bociogénicas
Mutação activadora da subunidade alfa da proteína G (S. McCune Albright)

Bócio por tiroidite não auto-imune

    • Infecciosa
    • Subaguda granulomatosa (T de Quervain)
HemiagenésiaDoença infiltrativa
Tumor

Bócios por hipertiroidismo

    • Doença de Graves
    • Adenoma tóxico
 Quisto do canal tireoglosso, quisto tiroideu
 Adenomas e carcinomas da tiroide

A estimulação ocorre no início como resultado do excesso de TSH – por défice de iodo ou hipotiroidismo, ou devida a Ac anti-receptor da TSH, na doença de Graves. Os bociogénicos são substâncias químicas, drogas ou alimentos que ao interferirem com a síntese de HT, aumentam a estimulação da glândula pela TSH, podendo levar ao aparecimento de bócio.

Os bociogénicos mais comuns incluem os antitiroideus, os iodetos e o lítio. Certos alimentos contendo tiocianatos tais como as couves, couve-flor, couves de Bruxelas, batata doce, mandioca e soja, contêm substâncias bociogénicas, mas quando consumidos isoladamente raramente tal acontece. Nas crianças, os bociogénicos mais comummente ingeridos são os expectorantes contendo iodo e o lítio.

Mais raramente, o bócio por excesso de TSH é resultado de secreção hipotalâmica ou hipofisária aumentadas (ex. adenoma da hipófise ou resistência hipofisária às HT).

A inflamação por agentes infecciosos (bactérias, vírus ou fungos) pode causar tiroidite aguda ou subaguda granulomatosa, com bócio. Esta última, causada por vírus é também conhecida por doença dede Quervain”. No entanto, a infecção da glândula tiroideia é uma situação extremamente rara na criança. A causa mais frequente de inflamação é a tiroidite crónica auto-imune, ou tiroidite de Hashimoto. Esta endocrinopatia é considerada a mais frequente causa de bócio na criança fora das regiões de bócio endémico. O aumento de volume da tiroideia é causado pela infiltração linfocítica (que pode ser difusa e posteriormente nodular) levando, neste último caso, a dificuldades no diagnóstico diferencial com tumores da tiroideia.

O bócio por infiltração deve-se a doenças como a histiocitose X ou cistinose, responsáveis por infiltração histiocítica ou deposição de cristais de cistina respectivamente; nas formas mais severas poderá daí resultar hipotiroidismo.

Outros processos que podem ser causa de bócio, são as neoplasias (adenoma ou carcinoma) ou processos não neoplásicos (quisto, adenopatia ou quisto do canal tireoglosso). Na criança e adolescente, a neoplasia da tiroideia surge como nódulo único isolado.

Manifestações clínicas

O bócio cursa habitualmente com eutiroidismo e, raramente, com hipotiroidismo. Em regra, o bócio começa por ser difuso, evoluindo posteriormente para nodular. Pode haver complicações quando comprime estruturas adjacentes, nomeadamente: as vias respiratórias, causando dificuldade respiratória; o nervo recorrente levando a rouquidão; ou o esófago, provocando disfagia.

O bócio colóide simples, é de etiologia desconhecida. Podendo ser familiar, de transmissão autossómica dominante, ocorre sobretudo em raparigas adolescentes. Nestas doentes não há história de ingestão de bociogénicos ou de défice de iodo; verifica-se aumento difuso da tiróide, que muitas vezes se torna nodular e assimétrica. O bócio não é doloroso à palpação e apresenta uma consistência firme, lisa ou discretamente nodular. Por vezes, podem estar presentes gânglios linfáticos regionais, não dolorosos (Figura 3). O bócio colóide é assintomático e não causa alterações da função tiroideia. Pode diminuir de dimensões com a idade (bócio da puberdade), e o tratamento com T4 não altera o curso da doença.

FIGURA 3. Bócio observado de perfil

Sempre que surge bócio doloroso à deglutição ou palpação, deve suspeitar-se de tiroidite infecciosa aguda ou subaguda. Inicialmente pode existir febre e sintomatologia de tireotoxicose por libertação maciça de HT. Segue-se uma fase de eutiroidismo, depois de hipotiroidismo, com posterior recuperação.

A maioria das crianças e adolescentes com tiroidite de Hashimoto apresenta-se com bócio assintomático, referindo por vezes dor ou “sensação de preenchimento” nesta região. Na maioria das vezes, são detectados num exame de rotina ou por existência de um nódulo notado pelos pais. Encontram-se geralmente em eutiroidismo, mas podem apresentar hipotiroidismo subclínico ou hipotiroidismo franco. Neste último caso, manifesta-se por restrição de crescimento, diminuição da velocidade de crescimento e atraso pubertário. Ocasionalmente, ocorre uma fase inicial tireotóxica, como resultado da libertação maciça de HT, devido à inflamação e consequente destruição das células foliculares da tiroideia. Nestes casos, deve fazer-se o diagnóstico diferencial com a doença de Graves; podem raramente coexistir ambas as doenças no mesmo paciente (Hashitoxicose). Nalguns casos de tiroidite de Hashimoto, em vez de bócio, pode surgir atrofia da glândula (tiroidite atrófica).

A tiroidite de Hashimoto, surgindo frequentemente em crianças com síndroma de Turner, trissomia 21 e síndroma de Klinefelter, é parte integrante de síndromas poliglandulares auto-imunes.

Exames complementares

Na suspeita de bócio por carência de iodo, a excreção urinária de iodo (IU) é o exame de eleição para o diagnóstico (que só tem interesse a nível populacional). Valores de excreção de IU < 100 mcg/L revelam deficiência moderada de iodo; IU < 50 mcg/L, uma deficiência acentuada; e IU < 20 mcg/L, uma deficiência severa. No bócio por défice de iodo, a ecografia da tiroideia revela aumento de volume da glândula com ecogenicidade heterogénea.

Na presença de um bócio, o doseamento de Ac (TPO e Tg) para a detecção de doença auto-imune da tiroideia é uma regra. No bócio colóide simples, o doseamento de Ac anti-TPO é negativo. Cerca de 40% a 70% destes pacientes apresentam Ac anti-Tg positivos, cujo significado não está ainda esclarecido.

O diagnóstico de tiroidite crónica auto-imune é feito pela detecção de níveis elevados de Ac anti-tiroglobulina (Tg) e/ou Ac anti-tiroperoxidase (TPO), e pela avaliação funcional da tiroideia. A ecografia da tiroideia revela sinais de glândula aumentada de volume com zonas de ecogenicidade heterogénea. Tem indicação em pacientes com Ac negativos ou com um nódulo palpável, mas raramente é necessária.

Tratamento

As necessidades diárias de iodo são cerca de 100 a 150 µg. O tratamento do défice de iodo faz-se com suplemento de iodo. Nas crianças até aos 5 anos: cerca de 90 µg/dia; nas crianças dos 6-12 anos: cerca de 120 µg/dia; e nos adolescentes: 150 µg/dia. Sempre que o volume da glândula não se reduz com o suplemento em iodo, em bócios pequenos, difusos e recentes, deve iniciar-se o tratamento com L-tiroxina.

O tratamento da tiroidite auto-imune depende da função tiroideia. Na maioria dos casos, crianças e adolescentes encontram-se em eutiroidismo. Em casos de hipotiroidismo franco (TSH > 10 mU/L e T4 e T3 livres diminuídas) deve iniciar-se L-tiroxina, em dose variável (50-100 µg/dia), de modo a que o valor da TSH volte ao normal. Se o hipotiroidismo é severo e prolongado, a correcção com L-tiroxina deve ser gradual para evitar efeitos adversos.

O tratamento do hipotiroidismo subclínico é controverso. No entanto, sempre que as T4 e T3 livres evidenciam valores normais, mas TSH > 10 mU/L, deve iniciar-se L-tiroxina. Se a tiroidite decorrer com elevação de HT, não está indicada a terapêutica com antitiroideus, uma vez que a glândula habitualmente retorna ao estado de eutiroidismo ao fim de 1 a 2 meses, podendo mesmo surgir hipotiroidismo. O propranolol pode aliviar os sintomas na fase de hipertiroidismo por bloqueio do sistema simpático.

Evolução

O seguimento destas crianças faz-se com doseamentos de HT e TSH trimestral ou semestralmente. Nos doentes em tratamento com L-tiroxina, alguns autores preconizam a sua suspensão na puberdade, uma vez que num número significativo de casos se observa remissão completa da tiroidite de Hashimoto. De referir que cerca de 10% dos doentes com tiroidite auto-imune em eutiroidismo evoluem secundariamente para hipotiroidismo, razão pela qual anualmente se deve proceder a uma avaliação funcional da tiroideia. Nestes casos a doença tem um carácter permanente e não transitório.

4. NÓDULOS ISOLADOS DA TIROIDEIA

Importância do problema

Os nódulos isolados da tiroideia são raros na criança. No entanto, são mais frequentemente malignos na criança do que no adulto. Estima-se que em ~25% dos casos de nódulos isolados tiroideus na criança exista malignidade, em comparação com o que se passa no adulto (~ 5%). Portanto, sempre que os mesmos sejam detectados, devem ser cuidadosamente sujeitos a exames que permitam o diagnóstico diferencial entre nódulos do bócio, quistos, tumores benignos ou malignos.

Aspectos epidemiológicos

Os carcinomas da tiroideia na criança são raros, constituindo 0,5-3% de todos os tumores malignos em crianças com idade inferior a quinze anos, com uma frequência ligeiramente superior no sexo feminino. Na população pediátrica, os tumores da tiroideia são geralmente bem diferenciados, sendo os carcinomas papilares os mais frequentes (80-95%), seguindo-se os foliculares, e raramente os medulares. Os tumores benignos correspondem a 10% do total dos tumores da tiroideia, sendo os quistos e o adenoma tóxico (também designado de doença de Plummer), os mais frequentemente encontrados. Doenças benignas, tal como a tiroidite crónica auto-imune, podem também cursar com nódulos (habitualmente benignos).

Factores de risco e patogénese

A incidência e o risco de carcinoma aumentam: – com a exposição a radiações localizadas à cabeça e pescoço, sobretudo antes dos cinco anos de idade; – quando existe história anterior de doença da tiroideia (ex. hipotiroidismo congénito devido a erros de hormonogénese, quistos do canal tireoglosso, ectopias); e – história familiar de carcinoma da tiroideia.

Outros factores considerados de risco são: – o défice marcado de iodo; e – a presença de nódulos de dimensões superiores a 1 cm em contexto de tiroidite crónica auto-imune (tiroidite de Hashimoto). O risco de carcinoma da tiroideia está aumentado até 20 anos após radioterapia em baixas doses (< 30 Gy) utilizada para o tratamento de outras malignidades na criança.

Radiação em doses elevadas, devida à destruição celular, comporta um risco menor. A quimioterapia realizada na infância é actualmente considerada um factor de risco para carcinoma papilar.

Estudos moleculares revelaram que os carcinomas papilares da tiroideia na criança estão associados a alterações genéticas (mutações e rearranjos) no proto-oncogene RET/TRK. As mutações do BRAF são menos frequentes na criança. Os tumores foliculares estão relacionados com translocações no PAX8- PPAR gama ou mutações no gene RAS. Ambos estes carcinomas têm origem nas células foliculares da tiroideia e são secretores de tiroglobulina (Tg).

Os tumores medulares da tiroideia têm origem nas células parafoliculares da tiroideia e são secretores de calcitonina. Apresentam uma ocorrência familiar aumentada (25% dos casos) e podem surgir isoladamente ou fazer parte de síndromas neoplásicas multiendócrinas – multiple endocrine neoplasia (MEN) associadas a feocromocitomas (MEN2). Em 95% dos casos famililares, detecta-se uma mutação activadora do proto-oncogene RET. Outras doenças com maior risco para o aparecimento de neoplasias da tiroideia são as poliposes intestinais, nomeadamente a síndroma de Peutz- Jäghers e a síndroma de Gardner; a síndroma de McCune Albright caracteriza-se por múltiplas neoplasias endócrinas e não endócrinas; deve-se a uma mutação pós-zigótica activadora no gene GNAS.

Manifestações clínicas

Os nódulos tiroideus na criança são mais facilmente palpáveis do que no adulto. Na sua maioria, são assintomáticos e benignos. Sempre que o nódulo é de consistência dura e está fixo, deve suspeitar-se de malignidade. Neste caso, o exame clínico deve ser orientado no sentido de detectar adenomegálias, sinais e sintomas de tireotoxicose, ou sintomas locais de compressão, nomeadamente, disfagia, disfonia, rouquidão ou dispneia. Na criança, a detecção de adenomegálias de consistência dura é fundamental, pois estão presentes em 79% dos casos, mais frequentemente do que em adultos. A avaliação auxológica é importante, bem como a detecção de sinais de dismorfias típicas de síndromas ou de outras doenças associadas a neoplasias da tiroideia, particularmente a síndroma de McCune Albright e MEN2.

Exames complementares

A ecografia confirma a presença de nódulo da tiroideia. Apesar de não permitir distinguir um nódulo benigno de maligno, pode dar indicações valiosas no sentido de suspeição de malignidade: hipoecogenicidade, microcalcificações, zonas de hipervascularização intranodular e características do nódulo linfático alteradas. A elastografia, recentemente introduzida no estudo da tiroideia, tem como objectivo distinguir nódulos malignos, com menor elasticidade, de nódulos benignos. Esta técnica é largamente utilizada no estudo de neoplasias da mama e do fígado.

O doseamento da TSH, T4L e T3L permitem determinar o estado funcional (do nódulo) da tiroide.

A TSH diminuída indica um estado de tireotoxicose. Nestes casos, a cintigrafia com Tc99 ou I123 são o próximo passo diagnóstico, revelando um nódulo quente (hiperfuncionante) que corresponde a um adenoma funcionante (adenoma tóxico). São raros nas crianças e, apenas ~1,5% dos casos são malignos. A situação mais frequentemente encontrada perante um nódulo é o eutiroidismo, com doseamentos de TSH, T4L e T3L normais, e por vezes o hipotiroidismo subclínico (TSH elevada e T4L normal). Ambas obrigam a realização de citologia aspirativa com agulha fina (CAF) sempre que o nódulo apresente dimensões ≥ 1 cm ou apresentar características suspeitas de malignidade, ou existam antecedentes de doença tiroideia ou exposição a rádio ou quimioterapia. Este exame é de importância-chave para determinação do tipo histológico do tumor (adenoma, carcinoma) e da necessidade de excisão cirúrgica. A CAF apresenta uma confiabilidade diagnóstica de 90%.

O doseamento da calcitonina, um marcador dos carcinomas medulares, deve ser realizado antes da tiroidectomia. A Tg plasmática, por sua vez, é um marcador importante dos tumores de origem folicular, e o seu doseamento é utilizado no estudo de seguimento destes tumores após tiroidectomia.

Marcadores histológicos como a galectina-3, HBME-1 e a cytokeratina-19 têm sido utilizados em adultos para discriminação de neoplasias da tiroideia em situações em que a CAF revela apenas uma citologia “suspeita” (20% dos casos). Não existem, no entanto, estudos de confiabilidade destes marcadores em crianças. (Figura 4)

FIGURA 4. Quisto do canal tiroglosso associado a bócio nodular. (NIHDE)

Tratamento

O tratamento dos nódulos é distinto consoante se trate de nódulo quente, ou frio (hipofuncionante). Nos nódulos quentes, principalmente se decorrerem com hipertiroidismo, está indicada a excisão cirúrgica. Quanto aos nódulos frios, a abordagem terapêutica depende da citologia. Se o resultado citológico for o de nódulo de bócio, de tiroidite linfocítica, ou de hiperplasia folicular, deve adoptar-se uma atitude de vigilância. Se o resultado apontar para malignidade, nomeadamente carcinoma, está indicada a tiroidectomia total, eventualmente seguida de administração de I131, no caso de neoplasias de origem folicular (carcinomas papilares ou foliculares), com factores de risco que o justifiquem.

A sobrevivência nos casos de carcinoma diferenciado é superior a 90% aos 20 anos. As metástases, nomeadamente pulmonares, são mais frequentes nas idades mais jovens. Contrariamente à evolução no adulto, a cura é quase invariável com a administração de I131.

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FEOCROMOCITOMA

Definição e importância do problema

Os feocromocitomas e os paragangliomas são tumores neuroendócrinos que têm a sua origem nos paragânglios, pequenos órgãos na sua maioria microscópicos, formados por acumulações ganglionares de células derivadas da crista neural que se distribuem simetricamente ao longo do sistema nervosos autónomo, desde a pelve à base do crânio, seguindo o eixo longitudinal do corpo.

Os paragangliomas podem ser funcionantes e segregar catecolaminas que, ao oxidar-se com os sais de crómio, adquirem uma cor castanha escura (tumores cromafins).

Segundo a terminologia actual, o termo feocromocitoma refere-se unicamente aos paragangliomas derivados das células cromafins da medula suprarrenal (intra-adrenais), os quais explicam cerca de 90% dos casos deste tipo de patologia; por outro lado, o termo paraganglioma reserva-se para os tumores extra-adrenais que, por sua vez, se classificam em simpáticos e parassimpáticos (em cerca de 10% dos casos).

Dando ênfase neste capítulo ao feocromocitoma, reiteram-se as seguintes noções: as células cromafins são elementos constituintes: – da medula suprarrenal; e de outras estruturas secretoras de catecolaminas: – cadeia simpática abdominal juxta – aórtica, ao nível da artéria mesentérica inferior ou sua bifurcação, área peri-suprarrenal, bexiga, uréteres, região torácica, cervical, etc.; e – cadeia parassimpática, ao longo dos ramos cranianos e torácicos dos nervos glossofaríngeo e vago localizando-se na cabeça, pescoço e mediastino superior.

As referidas neoplasias são raras na idade pediátrica, sendo responsáveis por cerca de 0,5 a 2% dos casos de hipertensão arterial neste período da vida. Com maior incidência entre os 9 e 12 anos e predomínio no sexo masculino, estão descritos casos familiares associados por vezes às síndromas de neoplasias endócrinas múltiplas familiares (sigla corrente em inglês – síndromas MEN ou multiple endocrine neoplasia) com um tipo de hereditariedade autossómica dominante e penetrância incompleta; estes quadros relacionam-se com mutações do proto-oncogene RET no cromossoma 10 (10q11.2).

As neoplasias classicamente englobadas na síndroma MEN são: tumores do lobo anterior da hipófise, tumores dos ilhéus pancreáticos, hiperplasia paratiroideia, tumores neurais, e carcinoma da medular tiroideia; tais entidades deverão ser, pois, pesquisadas em situações de feocromocitoma confirmado.

O feocromocitoma pode estar igualmente associado a neurofibromatose e a doença de Von Hippel-Lindau, situações também familiares.*

*A doença de von Hippel-Lindau (VHL) é uma doença autossómica dominante afectando cerca de 1/36.000 indivíduos, iniciando-se em geral após a adolescência. O gene VHL resulta duma mutação no braço curto do cromossoma 3. A verificação de, pelo menos, um dos seguintes critérios, permite o diagnóstico: 1- mais de um hemangioblastoma do SNC ou retina; 2- um só hemangioblastoma da retina ou SNC + complicações viscerais, incluindo designadamente feocromocitoma; 3- qualquer das manifestações referidas em 1- e 2- , associada a história familiar.

Manifestações clínicas

Em cerca de 90% dos casos, o feocromocitoma é considerado uma situação benigna.

A maioria dos doentes apresenta a tríade clássica associada a crise de hipertensão arterial: cefaleia, sudação profusa e palpitações.

Especificando, pode afirmar-se que os sinais e sintomas deste tumor surgem em paroxismos como resultado do excesso de catecolaminas: hipertensão arterial (em geral a manifestação que se mantém constante), sudação, rubor, palpitações, taquicárdia, cefaleias, labilidade emocional, dores abdominais, náuseas, vómitos, obstipação, poliúria, polidipsia, etc.. Nas situações em que a criança é submetida a anestesia poderá surgir crise de encefalopatia hipertensiva. Estão descritos casos em que é identificável, pela palpação, tumor abdominal.

A malignidade (~10% dos feocromocitomas e paragangliomas) estabelece-se pela presença de metástases à distância (gânglios, fígado, pulmão e osso).

Exames complementares

Os exames complementares de diagnóstico podem ser sistematizados essencialmente em bioquímicos, de localização; e, no estado actual dos conhecimentos sobre a patologia em análise, pode afirmar-se que na idade pediátrica está também indicado o diagnóstico molecular (considerando-se como mais relevantes respectivamente, os genes: – VHL associado ao feocromocitoma; e SDHB associados a tumores malignos.

Segregando a medula suprarrenal epinefrina e nor-epinefrina cujos metabolitos podem ser doseados, o diagnóstico de feocromocitoma baseia-se classicamente na demonstração do aumento de catecolaminas plasmáticas e urinárias e seus metabolitos na urina de 24 horas.

As substâncias habitualmente doseadas na urina têm os seguintes valores de referência:

  • epinefrina urinária (< 273 nmol/24 horas ou < 50 µg/24 horas);
  • nor-epinefrina urinária (< 887 nmol/24h ou < 150 µg/24h); na criança predomina em relação à epinefrina;
  • ácido vanilmandélico (VMA) (419 ± 131 nmol/kg/24h ou 83 ± 26 µg/kg/dia);
  • os valores das catecolaminas podem estar falsamente aumentados se houver administração simultânea de ácido acetilsalicílico, penicilina, sulfamidas ou alimentos;
  • ácido homovanílico – 16,5-87,8 nmol/mg de creatinina (3-16 mg/mg creatinina).

Nos casos de neuroblastoma excretam-se igualmente metabolitos das catecolaminas, (sobretudo dopamina e ácido homovanílico) mas não se verifica hipertensão.

Para a localização do tumor estão indicados diversos estudos imagiológicos a seleccionar em função do contexto clínico: ecografia, tomografia computadorizada com emissão de positrões (PET), ressonância magnética, pielografia intravenosa, cintilografia com MIBG (meta-iodo-benzil-guanidina), etc..

Diagnóstico diferencial

A hipertensão obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com outras situações tais como: doença renovascular, coarctação da aorta, hipertiroidismo, défice de 11-b hidroxilase, de 17-a hidroxilase, de desidrogenase de 11-b hidroxisteróide, aldosteronismo primário, tumores adrenocorticais, porfiria, disautonomia familiar, etc..

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, sendo a técnica laparoscópica actualmente a primeira escolha; em casos bilaterais obrigando a suprarrenalectomia bilateral, deve providenciar-se, após a intervenção, o tratamento imediato da insuficiência suprarrenal primária.

Como actuação pré-operatória, a fim de bloquear a libertação intraoperatória de catecolaminas, utiliza-se nalguns centros a fenoxibenzamina (dibenzilina), bloqueante de alfa-adreno-receptores.

Havendo a possibilidade de recorrência do tumor, no período pós-operatório a curto e médio prazo torna-se obrigatório proceder à vigilância seriada da pressão arterial e do valor das catecolaminas.

Os tumores malignos, embora de evolução lenta, são resistentes à quimioterapia e à radioterapia.

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TUMORES DO CÓRTEX SUPRARRENAL

Importância do problema

Os tumores do córtex suprarrenal são raros, constituindo 0,2%-0,5% dos tumores na idade pediátrica. A sua incidência é cerca de 0,3/1.000.000 crianças com menos de 15 anos; a taxa mais elevada verifica-se na região sul do Brasil (3-4/1.000.000 de crianças com menos de 15 anos). Estes tumores são mais frequentes no sexo feminino, em crianças com menos de 5 anos e associados às seguintes situações: hemi-hipertrofia isolada, síndromas de Beckwith-Wiedemann, complexo de Carney, Li-Fraumeni*, neoplasias endocrinológicas múltiplas, defeitos congénitos das vias urinárias, hamartomas, hiperplasia congénita da suprarrenal e tumores cerebrais.

Têm sido encontradas mutações no gene supressor tumoral TP53 (ao nível do cromossoma 17p13.1) em doentes com carcinoma adrenocortical.

Os casos identificados no Brasil estão associados à presença em cerca de 90% dos casos de mutação germinal específica do gene TP53 (Arg337His) que codifica uma proteína supressora da oncogénese. A maioria dos casos (70%) associados a síndroma de Li-Fraumeni estão também associados a mutações germinais no gene TP53.

*A síndroma de Li-Fraumeni integra situações de cancro familiar compreendendo largo espectro de neoplasias malignas em familiares do 1º grau, incluindo cancro da mama, tumor cerebral, sarcoma dos tecidos moles, carcinoma adrenocortical, etc..

Manifestações clínicas

Os tumores do córtex da suprarrenal podem produzir diversas hormonas, o que condiciona formas de apresentação clínica muito heterogéneas.

Na maioria dos casos existem sinais exuberantes de virilização, de aparecimento recente: voz grave, aumento de volume do clítoris ou do pénis com testículos pequenos, pilosidade púbica e axilar, acne, odor corporal, hirsutismo explosivo, aumento das massas musculares e aceleração da velocidade de crescimento. Os níveis elevados de testosterona podem causar alterações do comportamento com irritabilidade, hiperactividade, jogos e brincadeiras violentas. Podem também manifestar-se como síndroma de Cushing, cujos sinais e sintomas podem aparecer isolados (5 a 8% dos casos, consoante as séries), ou associados a virilização (30% dos casos). A presença de massa abdominal ou pélvica palpável pode ser o único achado. A hipertensão arterial é frequente mesmo sem sintomas de síndroma de Cushing; pode ser grave, sob a forma de crises hipertensivas com convulsões.

Excepcionalmente, o tumor produz estrogénios (tumor feminizante), manifestando-se neste caso, como puberdade precoce periférica no sexo feminino, e ginecomastia no sexo masculino. Em cerca de 10% dos casos, não há quaisquer sintomas de hiperprodução hormonal. Por vezes a doença passa imperceptível, tendo a criança um aspecto saudável apesar dos sintomas de virilização.

Assim, qualquer criança com menos de 4 anos e pubarca precoce, ou lactente com acne, deverá ser estudado no sentido de excluir a presença de tumor da suprarrenal.

Exames complementares

Os níveis das hormonas produzidas podem também ser muito variados; os resultados dos doseamentos hormonais podem situar-se no limite superior para a idade. Face à suspeita clínica, é aconselhável proceder a doseamentos múltiplos e exames imagiológicos no sentido de esclarecer a situação:

  • O aumento nítido dos níveis plasmáticos de DHEA-S (> 600 µg/dL) e de 17-cetoesteróides urinários é muito sugestivo de tumor da suprarrenal. No entanto, o aumento da DHEA-S pode não ser tão exuberante;
  • Aumento do cortisol urinário e plasmático, perda do ritmo circadiano do cortisol, ↑ testosterona, ↑ Δ 4-androstenediona, ↑ estradiol e ↓ ACTH nos casos com sintomas de síndroma de Cushing;
  • Nos casos de virilização: ↑↑ testosterona (> 350 ng/mL no sexo feminino), ↑ Δ 4-androstenediona e ↑ 17-hidroxiprogesterona;
  • Se houver feminização: ↑↑ estrona e ↑↑ estradiol.

A não supressão do cortisol e outros metabolitos com a dexametasona é constante e diagnóstica: testosterona livre > 8 pg/mL, DHEA-S > 70 µg/dL e cortisol > 3 µg/dL.

  • Avanço da idade óssea em relação à idade cronológica.

Os exames de imagem (TAC/RM abdominal, ecografia, e por vezes PET) permitem a confirmação da localização do tumor e a definição do tumor em relação às estruturas vizinhas visando a programação da cirurgia.

Tratamento

O tratamento é cirúrgico: ablação seguida eventualmente de quimioterapia.

Prognóstico

O principal factor de bom prognóstico é a verificação de tumor pequeno (< 200 g), completamente ressecado.

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SÍNDROMA DE CUSHING

Definição e etiopatogénese

A designação de síndroma de Cushing aplica-se às situações clínicas causadas por concentração excessiva de glucocorticóides em circulação, resultante de administração exógena, ou de secreção endógena.

Apesar de se tratar dum quadro clínico raro na criança, coloca algumas vezes problemas de diagnóstico diferencial em casos de obesidade.

As causas da síndroma de Cushing estão descritas no Quadro 1, sendo mais frequente a relacionada com administração de corticóides para tratamento de várias doenças.

QUADRO 1 – Causas de síndroma de Cushing

1. Dependente de ACTH
    1. Iatrogénica
    2. Adenoma hipofisário produtor de ACTH (doença de Cushing)
    3. Secreção ectópica de ACTH
    4. Secreção ectópica de CRH
2. Independente de ACTH
    1. Iatrogénica
    2. Tumor adrenocortical (adenoma ou carcinoma)
    3. Hiperplasia adrenocortical primária
      – doença adrenocortical nodular pigmentada primária ou doença adrenal
      micronodular associada ou não ao complexo de Carney
      – hiperplasia adrenal macronodular
    4. Síndroma de McCune-Albright

Nas crianças com menos de 7 anos as causas adrenais são as mais frequentemente implicadas na etiologia da síndroma de Cushing.

Manifestações clínicas

Os sintomas mais frequentes na criança são aumento de peso e obesidade, associados a baixa estatura e atraso da idade óssea, ao contrário do que habitualmente acontece na obesidade exógena. (Figura 1)

FIGURA 1. Obesidade no contexto de síndroma de Cushing

Podem também existir: fácies peculiar designada habitualmente cushingóide, acne, hirsutismo/hipertricose, alterações menstruais ou atraso de progressão da puberdade, cefaleias, hipertensão arterial, hiperpigmentação, fadiga ou astenia, pele fina, estrias purpúreas e equimoses. A diminuição das massas musculares dos membros não é habitualmente muito marcada nas crianças. Mais raramente, verificam-se ainda: alterações psíquicas tais como depressão, irritabilidade e alterações do sono, osteopénia, cálculos renais, edema, necrose avascular da cabeça do fémur ou deslizamento da epífise da cabeça do fémur. Este quadro instala-se, em geral, de forma insidiosa, decorrendo em média 3 anos desde o início dos primeiros sintomas até ao diagnóstico; esta progressão lenta é evidente quando existem fotografias do doente ao longo dos anos.

A hiperplasia nodular associada ou não à síndroma de Carney (mixomas cardíacos e cutâneos, hiperactividade endócrina, lesões cutâneas lentiginosas, nevus azuis da pele e mucosas) caracteriza-se por obesidade, grande diminuição das massas musculares, osteoporose e hiperprodução cíclica de corticóides.

Exames complementares

O diagnóstico da síndroma, bem como da sua etiologia, pode ser muito difícil; com efeito, apesar de protocolos de diagnóstico muito elaborados, não há exame 100% sensível ou específico. O diagnóstico etiológico obriga a estudos endocrinológicos e de imagiologia para esclarecimento. A maioria destes exames só está disponível nalguns centros especializados. Assim, e face à suspeita clínica apoiada em determinados exames auxiliares, a criança deverá ser enviada para esclarecimento a uma consulta de Endocrinologia Pediátrica.

Os exames laboratoriais podem revelar:

  • Hemoglobina, hematócrito e eritrócitos no limite superior do normal;
  • Leucopénia e eosinopénia;
  • [Na+] dentro dos limites dos limites normais e ↓ [K+];
  • Hiperglicémia ou alteração da prova de tolerância à glucose;
  • Elevação do valor das lipoproteínas (VLDL, HDL, LDL);
  • Hipercalcémia e hipercalciúria.

As determinações endocrinológicas que permitem a confirmação ou a exclusão da síndroma de Cushing são:

  • Determinação da excreção de cortisol livre em urina de 24 horas, em 3 dias;
  • Estudo do ritmo circadiano do cortisol [9h, 18h, meia-noite (a dormir)]; o valor normal do cortisol à meia-noite a dormir é < 1,8 ug/dl;
  • Teste de supressão com dexametasona em dose baixa [0,5 mg (doentes com peso > 40 Kg) ou 30 ug/kg/d (doentes com peso < 40 kg)] de 6/6h (9, 15, 21, 3h) durante 48h com determinação do cortisol sérico no tempo 0 e 6h depois da última administração; o cortisol sérico deverá ser indetectável às 48h (< 1,8 ug/dl) nos casos normais.

Em caso de resultados negativos, face a forte suspeita clínica, dever-se-ão repetir os doseamentos, pois poderá existir apenas hipercortisolismo cíclico.

Tratamento

A terapêutica é variável consoante a etiologia, devendo ser individualizada consoante o doente. Na doença de Cushing está indicada a remoção do adenoma hipofisário por cirurgia transesfenoidal. Esta técnica neurocirúrgica é especialmente difícil nas crianças, e mesmo com neurocirurgiões experientes pode haver 50% de recidivas que obrigam a radioterapia. Pelo contrário, há também o risco de a remoção originar defeitos múltiplos da secreção hipofisária, obrigando a terapêutica de substituição.

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INSUFICIÊNCIA SUPRARRENAL

Definição e etiopatogénese

A insuficiência suprarrenal deve-se, como o nome indica, às consequências da incapacidade de produção de glucocorticóides (cortisol) e mineralocorticóides (aldosterona).

Pode ser provocada por grande número de situações (congénitas ou adquiridas) as quais podem ser divididas em dois grandes grupos: primárias quando a causa reside na suprarrenal; e secundárias quando se deve a insuficiente estimulação do córtex suprarrenal pela hipófise anterior (ACTH) ou hipotálamo (CRH). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de insuficiência suprarrenal

Adaptado de Pombo M, et al, 1997

A – Insuficiência suprarrenal primária ( Cortisol, ACTH / CRH)

Congénita

    • Hiperplasia suprarrenal congénita:
      • Défice de 21-OHase e 11β-OHase
      • Défice da proteína StAR (hiperplasia lipóide)
    • Hipoplasia suprarrenal congénita:
      • Esporádica
      • Miniatura
      • Citomegálica (mutação do gene AX-1)
      • Ligada a deleção de genes contíguos
      • (DAX-1, glicerol-cinase e Duchenne)
    • Alteração do gene SF-1
    • Adrenoleucodistrofia
    • Síndroma de Smith-Lemli-Opitz
    • Doença de Wolman
    • Doença de Refsum
    • Ausência de resposta à ACTH:
      • Isolada
      • Associada a alacrimia e acalasia
    • Défice de aldosterona:
      • Hipoaldosteronismo
      • Pseudo-hipoaldosteronismo

Adquirida

    • Auto-imune:
      • Isolada
      • Síndromas poliglandulares auto-imunes de tipo I ou APECED e tipo II
    • Infecciosa:
      • Tuberculose, coccidiomicose, histoplasmose
      • Meningococémia (síndroma de Waterhouse-Friderichsen)
    • Doenças infiltrativas:
      • Hemocromatose, amiloidose, sarcoidose
      • Metástases
    • Traumatismo:
      • Hemorragia neonatal
      • Cirurgia
    • Tumores
    • Fármacos:
      • Alteração da síntese de esteróides: cetoconazol
      • Aumento do metabolismo dos esteróides: rifamicina, fenobarbital, fenitoína
B – Insuficiência suprarrenal secundária ( Cortisol, ACTH / CRH)

Congénita

    • Défice de ACTH / CRH:
      • Isolado
      • Associado a outros défices hormonais
      • Associado a defeitos anatómicos (anencefalia)
      • Idiopático

Adquirida

    • Idiopática:
      • Défice isolado ou múltiplo
    • Auto-imune (hipofisite)
    • Tumores (craniofaringeoma)
    • Fármacos (esteróides exógenos)

Sob o ponto de vista etiopatogénico, a insuficiência suprarrenal primária pode dividir-se em 3 grandes grupos: disgenésia/hipoplasia da suprarrenal que inclui as alterações dos genes SF-1, DAX-1/NR0B1 e receptor de ACTH; destruição da suprarrenal por mecanismos auto-imune, infeccioso, hemorrágico ou adrenoleucodistrofia; alterações da esteroidogénese por anomalias da síntese de colesterol (abetalipoproteinémia e síndroma de Smith-Lemli-Opitz); ou por anomalias da síntese de esteróides (hiperplasia congénita da suprarrenal).

Na criança, se excluirmos a insuficiência iatrogénica pós-corticoterapia local ou sistémica, a causa mais frequente é a hiperplasia suprarrenal congénita, já descrita. Por isso serão abordadas as outras causas de insuficiência. A idade e o sexo da criança são importantes para o diagnóstico etiológico. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Causas de insuficiência suprarrenal de acordo com idade e sexo

Adaptado Ten S, et al, 2001
Sexo0-2 anos> 2-14 anos> 14 anos
Masculino
    • Hiperplasia congénita da suprarrenal
    • Hipoplasia congénita da suprarrenal (DAX-1 e deleção de genes contíguos)
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo I
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo II
    • Adrenoleucodistrofia
    • Hipoplasia congénita da suprarrenal
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo II
Feminino
    • Hiperplasia congénita da suprarrenal
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poli-glandular auto-imune
      • Tipo I
    • Síndroma poli-glandular auto-imune
      • Tipo II
    • Adrenalite auto-imune
    • Síndroma poliglandular auto-imune
      • Tipo II

Manifestações clínicas

A carência em glucocorticóides traduz-se clinicamente por: astenia (díficil de valorizar nas crianças), anorexia, cansaço fácil, perda de peso ou má progressão ponderal, infecções recorrentes, sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, dor abdominal, diarreia) e hipoglicémia.

A carência em mineralocorticóides traduz-se por hipovolémia, hipotensão postural, taquicárdia e, por vezes, choque.

Inicialmente pode apenas existir sintomatologia de uma das duas linhas, aparecendo depois os sintomas de insuficiência da outra.

Os sinais e sintomas de insuficiência suprarrenal podem instalar-se de forma lenta e progressiva, ou de forma aguda (1/3 dos casos). Os sintomas da crise aguda são: dor abdominal intensa, febre, obnubilação, alteração do estado de consciência, desidratação desproporcionada para a perda de líquidos calculada, e colapso cardiocirculatório. A crise aguda pode ser precipitada por vómitos, infecção intercorrente banal, traumatismo, intervenção cirúrgica, estadia em país quente, paragem de corticoterapia prolongada ou não aumento da dose de substituição em situação de estresse. Habitualmente a evolução é lenta (4 anos, em média); os seus sintomas são vagos e inespecíficos, o que dificulta o diagnóstico; muitas vezes, o défice crónico só diagnosticado aquando da descompensação aguda, pode mesmo confundir-se com doença psiquiátrica.

A clínica é também diferente se se tratar de lesão da própria glândula com eixo hipotálamo-hipofisário funcionante, ou se a insuficiência for secundária.

Assim, se a insuficiência for de causa suprarrenal a produção de glucocorticóides e a de mineralocorticóides encontra-se afectada; se a causa se localizar ao nível do eixo hipotálamo-hipofisário apenas a via glucocorticóide está alterada, pois a secreção de mineralocorticóides depende, sobretudo, do sistema renina-angiotensina-aldosterona.

No primeiro caso, a elevação da ACTH por falta de retrocontrolo produz hiperpigmentação da pele e mucosas, que é mais marcada na palma das mãos, pregas de flexão, cicatrizes, mucosa oral, mamilos, escroto e grandes lábios.

No segundo caso descreve-se uma pele “de alabastro” por ausência de estimulação melanocítica.

Exames complementares

A suspeita clínica obrigará à realização de um conjunto de exames complementares em centro especializado cujos resultados são orientadores.

1. Exames auxiliares gerais

Exames de sangue e outros:
    • ↓[Na+], ↑[K+], ↓[Cl] plasmáticos, podendo ser normais fora da crise aguda
    • ↑Ureia e creatinina
    • Anemia normocítica moderada
    • ↑Hematócrito
    • ↑Proteínas plasmáticas
    • Neutropénia com linfocitose relativa
    • Eosinofilia
    • Hipoglicémia
    • Acidose metabólica moderada
    • Cetonémia
    • Radiografia de tórax PA: coração “pequeno”
    • ECG: diminuição da voltagem, QRS vertical e amplo, segmento QT alterado, ondas T aplanadas
Exame de urina:
  • [Na+] urina ↑ ou normal apesar de [Na+] no plasma↓

2. Exames endocrinológicos

Na insuficiência suprarrenal aguda só é geralmente possível colher uma única amostra de sangue para os doseamentos endocrinológicos, dada a urgência do início da terapêutica.

Determinações basais
  • Cortisol plasmático (entre as 8.00 – 9.00 horas): < 10 µg/dL
  • 17OH-progesterona, Δ4-androstenediona, testosterona, 17OH-pregnenolona, DHEA, DHEA-S, desoxicortisol: normais
  • ACTH ↑ na insuficiência primária; ACTH normal, ou pouco elevada para os níveis de cortisol plasmático na insuficiência secundária
  • PRA ou renina activa normal ou ↑
Testes dinâmicos
  • Prova de estimulação pela ACTH (Synacthen®) por via endovenosa:
    • Cortisol aos 60 minutos depois da administração de ACTH: < 18 µg/dL ou inferior a 2 vezes o valor basal
    • Aldosterona aos 60 minutos depois da administração de ACTH: < 80 ng/dL ou inferior a 3 vezes o valor basal
  • Prova de estimulação pelo glucagom ou pela hipoglicémia insulínica para avaliação da reserva funcional da suprarrenal:
    • < 18 µg/dL ou subida < 8 µg/dL em relação ao valor basal

Nota: Estas provas permitem determinar também a resposta da hormona de crescimento (GH), importante no hipopituitarismo.

FORMAS CLÍNICAS

1. Insuficiência suprarrenal primária

Doença de Addison

É o paradigma da insuficiência suprarrenal primária descrita acima. Muitas vezes idiopática, deve-se à destruição progressiva do córtex suprarrenal por mecanismo autoimune, infeccioso, infiltrativo, hemorrágico ou traumático. Associa-se à presença de autoanticorpos e, por vezes, a doença de outros órgãos no quadro das várias síndromas poliglandulares autoimunes.

A história natural desta afecção é muito lenta, sendo diagnosticada após anos de evolução, uma vez que os sintomas são muito inespecíficos.

Nos doentes com doenças autoimunes a pesquisa de autoanticorpos em presença de sinais mínimos de insuficiência suprarrenal (por exemplo, hipoglicémias graves ou frequentes em doentes com diabetes mellitus tipo 1) ou nas famílias com casos de síndromas poliglandulares autoimunes, o rastreio sistemático da presença poderá permitir o diagnóstico em fase inicial, ou mesmo subclinical, da doença. (Quadro 1)

Síndroma poliglandular autoimune de tipo I (APECED)

O seu acrónimo tem como significado a associação de candidíase mucocutânea crónica, poliendocrinopatia (hipoparatiroidismo e insuficiência suprarrenal) e distrofia ectodérmica (Autoimmune PolyEndocrinopathy, Candidiasis, Ectodermal Dystrophy). É uma doença esporádica, por vezes familiar, com uma incidência variável. Associa-se a mutação do gene AIRE, localizado no cromossoma 21q22.3.

As manifestações clínicas são múltiplas, surgindo ao longo da vida do doente; quanto mais precoce é a primeira manifestação, tanto mais componentes irão, provavelmente, aparecer.

São manifestações major as seguintes: candidíase mucocutânea crónica, hipoparatiroidismo, insuficiência suprarrenal; como manifestações minor citam-se: hipogonadismo hipergonadotrófico, doença auto-imune da tiroideia, diabetes mellitus tipo 1, hipofisite.

Outras manifestações incluem: alopécia, vitíligo, ceratopatia, anemia perniciosa, gastrite atrófica, má-absorção e/ou esteatorreia, hepatite crónica activa, colelitíase, vasculite, asplenia, distrofia ectodérmica e síndroma de Sjögren*

*A síndroma de Sjögren constitui um problema inflamatório crónico autoimune em que se verifica infiltração progressiva de linfócitos e plasmócitos nas glândulas salivares, lacrimais e parótida. Daí os sintomas oculares (boca e olhos “secos” /xeroftalmia, xerostomia), e parotídeos.

A primeira manifestação clínica da doença é, em geral, a candidíase que aparece, habitualmente, durante o primeiro ano de vida. Trata-se de lesões da mucosa oral por Candida albicans, os vulgares “sapinhos” dos lactentes, que se tornam crónicas ou recorrentes; pode também existir candidíase cutânea, ungueal ou vulvovaginal. Em 3/4 dos casos, a primeira doença endócrina é o hipoparatiroidismo, a que se segue a insuficiência suprarrenal; inicialmente a tetania por hipocalcémia poderá só ocorrer em jejum, ou ser tão vaga que o doente parece ser só “desajeitado”. O hipogonadismo é mais frequente no sexo feminino (60%). A distrofia ectodérmica traduz-se por hipoplasia do esmalte dentário, perfurações punctiformes das unhas e atrofia da membrana do tímpano. (Figura 1)

FIGURA 1. Síndroma poliglandular auto-imune do tipo I. Hipoplasia do esmalte dentário e pigmentação da mucosa bucal.

Síndroma poliglandular auto-imune de tipo II

É mais frequente que a síndroma de tipo I descrita. Em 50% dos casos trata-se de uma situação familiar (autossómica dominante com penetrância incompleta), sendo mais frequente no sexo feminino. Está associada a determinados fenótipos do complexo major de histocompatibilidade (HLA).

Caracteriza-se pela associação de doença de Addison ou evidência serológica de anticorpos anti-suprarrenal, doença autoimune da tiroideia (em geral hipotiroidismo nas crianças), diabetes mellitus do tipo 1 e outras doenças auto-imunes como vitíligo, gastrite atrófica e doença celíaca.

Adrenoleucodistrofia
Definição e importância do problema

É uma doença metabólica, recessiva ligada ao cromossoma X (Xq28) causada pela mutação do gene ABCD1 que codifica a proteína ALDP ou ABCD1, uma proteína da membrana do peroxissoma pertencente à superfamília de transportadores ATP-binding cassette e que promove o transporte dos ácidos gordos de cadeia muito longa (AGCML) do citosol para o interior do peroxissoma.

Etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

Caracteriza-se bioquimicamente pela acumulação de ácidos gordos de cadeia média e longa (AGCML) nos tecidos levando a lesão desmielinizante da substância branca do sistema nervoso central e periférico e lesão do córtex suprarrenal. Desconhecem-se actualmente os mecanismos fisiopatológicos que ligam o excesso de AGCML à degenerescência axonal e à inflamação e desmielinização.

A sua incidência é de 1/17.000 recém-nascidos e a sua prevalência 1/20.000 a 1/50.000 indivíduos; trata-se da doença peroxissomal mais frequente.

Formas clínicas

Existem duas formas fenotípicas principais da doença: a adrenoleucodistrofia cerebral e a adrenomieloneuropatia, não existindo qualquer correlação genótipo/fenótipo.
A adrenomieloneuropatia é a forma mais frequente. Manifesta-se, em geral, na idade adulta, envolve predominantemente a medula e nervos periféricos e a sua progressão é lenta. No entanto, cerca de 20% dos doentes do sexo masculino acabam por desenvolver a forma cerebral da doença.
A adrenoleucodistrofia cerebral tem início na criança (sempre depois dos 2,5 anos), adolescente ou mesmo, no adulto. Inicialmente existe uma fase de desmielinizante lenta que é clinicamente assintomática ou apenas se traduz por ligeiras alterações cognitivas. Depois, e de forma imprevisível, inicia-se uma fase inflamatória intensa com desmielinização rápida e progressiva afectando primariamente os hemisférios cerebrais; quanto mais precoce o início desta fase, tanto mais rápida a progressão da doença, a qual se torna rapidamente progressiva e devastadora. Clinicamente traduz-se por perturbações do comportamento, insucesso escolar, disartria, cegueira, surdez e demência progressiva, até à morte, 2 a 5 anos depois. A realização de RM cranioencefálicas semestrais nas crianças entre os 3-12 anos permite detectar as alterações características da substância branca cerca de 6 meses antes da disfunção cognitiva. Cerca de 10% dos doentes com adrenoleucodistrofia cerebral não chegam a desenvolver a fase aguda da doença.
A insuficiência suprarrenal ocorre em cerca de 2/3 dos doentes do sexo masculino afectados. Os sintomas da insuficiência suprarrenal podem, em especial quando se iniciam antes dos 15 anos, preceder os sintomas neurológicos, podendo, também, coexistir ou desenvolver-se após a disfunção neurológica. Por outro lado, a insuficiência suprarrenal pode ser assintomática, diagnosticada por doseamentos hormonais. O défice da linha mineralocorticóide acaba por ocorrrer ao longo da vida em 50% dos doentes.
A partir da adolescência pode existir cabelo fino e esparso e, nos homens adultos, insuficiência testicular.
Cerca de 65% das mulheres portadores podem vir a apresentar sintomas neurológicos que são menos graves tais como paraparésia espástica.
Na mesma família podem coexistir formas diferentes da doença; podendo existir formas assintomáticas, é importante proceder ao rastreio de toda a família quando se diagnostica um caso index.

Diagnóstico

O diagnóstico faz-se através do doseamento dos ácidos gordos de cadeia muito longa no sangue periférico; nos heterozigóticos poderão ser obtidos resultados falsamente negativos.
A confirmação do diagnóstico pode ser feita por estudo molecular para identificação da mutação do gene; há mais de 1500 mutações diferentes identificadas, 8 delas em famílias portuguesas.
O estudo por imagem (RM cranioencefálica semestral) permite avaliar e seguir ao longo do tempo as alterações da substância branca determinando a indicação do transplante. (ver adiante)
O diagnóstico pré-natal pode ser feito pela pesquisa de mutação.

Tratamento

A única medida com resultados positivos na progressão da desmielinização se realizada precocemente é o transplante de células estaminais hematopoiéticas. Estão também descritos 2 casos de terapêutica génica utilizando como vector um vírus lento com resultados sobreponíveis ao transplante.

Hipoplasia congénita da suprarrenal

A hipoplasia congénita da suprarrenal é clinicamente muito semelhante à hiperplasia congénita da suprarrenal: má progressão ponderal, perda de sal e convulsões causadas por hipoglicémia. Distinguem-se quatro formas: esporádica, miniatura, citomegálica e citomegálica associada a deleção de genes contíguos.
A chamada hipoplasia citomegálica é uma doença recessiva ligada ao cromossoma X. O gene (DAX-1), cuja mutação provoca a doença, tem uma localização próxima dos genes que codificam o défice de glicerolcinase e a distrofia muscular de Duchenne, pelo que estas patologias podem associar-se à hipoplasia citomegálica.
A insuficiência suprarrenal inicia-se, em geral, nas primeiras semanas de vida, com má progressão ponderal e perda de sal; pode ocorrer deterioração súbita e rápida da função suprarrenal, pondo em risco a vida do lactente se a perda de sal não for reconhecida. Acompanha-se de hipogonadismo hipogonadotrófico, traduzido clinicamente por criptorquidia e atraso pubertário.
A forma com deleção de genes contíguos tem pior prognóstico que a forma associada a deleção do gene DAX-1.
A hipoplasia miniatura é uma doença recessiva que se acompanha, por vezes, de puberdade precoce.

Doença de Wolman

É uma doença metabólica recessiva do metabolismo do colesterol que se deve ao défice da lipase ácida lisossómica, enzima que permite a formação de colesterol livre utilizável pelas células do organismo. É progressiva e fatal. A sintomatologia inicia-se na infância e traduz-se por sintomas de perda de sal, de défice glucocorticóide, esteatorreia e hepatosplenomegália.

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz

Trata-se duma afecção transmitida de modo autossómico recessivo causada pela mutação do gene da enzima 7-dehidrocolesterol redutase, localizado no cromossoma 11q13.4; esta proteína cataboliza o passo final da síntese de colesterol levando à acumulação de 7-dehidrocolesterol e diminuição dos níveis séricos de colesterol. As manifestações fenotípicas podem ter gravidade variável. Os sinais físicos da doença relacionam-se com o grau das alterações bioquímicas; de salientar que as alterações do comportamento podem ocorrer em doentes com dismorfias discretas.
Como manifestações clínicas há a salientar: atraso do desenvolvimento psicomotor, alterações do comportamento e cognitivas, microcefalia, fácies característica com aspecto “em pera” (andar superior < andar inferior da face), fenda palatina, sindactilia em Y do 2º e 3º dedos dos pés, polegares de implantação externa, cardiopatia congénita, defeitos congénitos gastrintestinais e renais, masculinização variável do doente do sexo masculino (desde genitais externos normais, micropénis, hipospadia e criptorquidia até fenótipo feminino, neste último caso em 25% dos pacientes) e fotossensibilidade.

Nos casos mais graves pode existir insuficiência suprarrenal.

Hipoaldosteronismo

Existem dois tipos de défice exclusivo da linha mineralocorticóide: a) por défice enzimático de corticosteronametiloxidase II que leva a incapacidade de síntese de aldosterona e, consequentemente, com aldosterona baixa e aumento da PRA; b) por alteração do receptor da aldosterona (pseudo-hipoaldosteronismo) que cursa com valores elevados de aldosterona. Ambos se traduzem clinicamente por perda de sal.

Resistência familiar à ACTH ou défice familiar de glucocorticóides

Os sinais e sintomas aparecem precocemente e caracterizam-se por episódios recorrentes de convulsões e hipoglicémia acompanhados por hiperpigmentação exuberante. Existem duas formas: a) défice isolado; b) défice associado a outras manifestações da síndroma de Allgrove (o qual é abordado a seguir).

Síndroma de Allgrove ou Síndroma dos 3/4A

É uma doença recessiva causada pela mutação de um gene localizado no cromossoma 12. É caracterizada pela associação: insuficiência suprarrenal, acalasia, alacrimia e alterações neurológicas, em especial do sistema nervoso autónomo [Adrenalcortical insufficiency associated with Achalasia, Alacrima (3A), Autonomic and other neurologic abnormalities (4A)].

Há grande variabilidade na idade e na forma de apresentação. A insuficiência suprarrenal é progressiva e deve-se à insensibilidade à ACTH; traduz-se por perda de sal, hipoglicémia e convulsões. As manifestações neurológicas são habitualmente precoces e traduzem-se por hiperreflexia, diminuição da força muscular, disartria, ataxia, défice de inteligência, diminuição da variabilidade cardíaca, hipotensão postural, diminuição do diâmetro e da velocidade de constrição pupilar, e diminuição da velocidade de condução nervosa. Os doentes apresentam fácies característica, hiperqueratose e também cicatrização difícil.

2. Insuficiência suprarrenal secundária

A insuficiência suprarrenal secundária, mais frequente que a primária, é geralmente iatrogénica e causada por tratamento com corticóides. Está descrita supressão do eixo-hipotálamo-hipófise-suprarrenal, quer com a administração por via sistémica, quer por via cutânea ou inalatória, (por exemplo com fluticasona ou budesonido, utilizados no tratamento preventivo da asma, mesmo com pequenas doses) não implicando também administrações muito prolongadas (2 semanas ou menos, de tratamento sistémico, por exemplo).
Se a causa não for iatrogénica, a insuficiência suprarrenal associa-se geralmente a outros défices hipofisários nomeadamente hormona de crescimento (GH) e TSH. Em tal circunstância a insuficiência é, em geral moderada, afectando apenas a linha glucocorticóide; por vezes, só é demonstrável pela prova de estimulação da suprarrenal.
Os achados laboratoriais são semelhantes aos descritos para a insuficiência primária, não existindo alteração da PRA/renina activa, pois a linha mineralocorticóide não se encontra afectada. No entanto, poderá existir hiponatrémia causada por secreção inapropriada de hormona antidiurética associada ao défice de cortisol.
A terapêutica de substituição e da crise aguda é igual à anteriormente pormenorizada para os casos de formas clássicas de hiperplasia congénita da suprarrenal, exceptuando no que respeita à distribuição das doses de hidrocortisona (a dose maior deve ser administrada de manhã, a fim de imitar o ciclo de cortisol).
Nos casos de insuficiência suprarrenal secundária, a dose a administrar poderá ser menor que nas formas primárias. No entanto, em caso de estresse agudo, a dose preconizada é 40-60 mg/m2, não sendo suficiente duplicar ou triplicar a dose habitual. A adequação da terapêutica baseia-se em dados clínicos – melhoria da astenia, cansaço fácil, falta de forças, sensação de bem-estar – e não em doseamentos laboratoriais.
A educação do doente/família é fundamental a fim de evitar as descompensações agudas que podem ser muito graves ou mesmo fatais. Assim, quem presta os cuidados, deve ter instruções formais, por escrito das situações de estresse (febre alta > 38°C, vómitos, diarreia, letargia, intervenção cirúrgica, traumatismos, tratamentos dentários, etc.) em que a dose de hidrocortisona deve ser aumentada; esta dose deve ser actualizada pelo menos uma vez por ano. A criança deve ser sempre portadora de cartão de alerta médico descrevendo a sua situação clínica, a terapêutica realizada habitualmente e a dose prescrita para situações de estresse.

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HIPERPLASIA GONGÉNITA DA SUPRARRENAL

Etiopatogénese e generalidades

A hiperplasia congénita da suprarrenal (HCSR) é uma expressão que engloba um grupo de doenças autossómicas recessivas, causadas por défices enzimáticos da via de síntese de esteróides ou, muito raramente, por défice da proteína P450 oxirredutase (POR) interveniente em vários passos da síntese metabólica envolvendo transferência de electrões para o citocrómio P450 microssomal. (Figura 1 do capítulo anterior)

A perda do retrocontrolo negativo do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal e o défice de cortisol levam à secreção aumentada e estimulação permanente da ACTH, com consequente hiperplasia do córtex da SR e hiperprodução de metabolitos intermediários.

O défice mais frequente é o défice em 21-hidroxilase (destacada neste capítulo), responsável por 90 a 95% dos casos; todas as outras formas de hiperplasia são relativamente raras. Assim, é dada ênfase a esta forma, apresentando-se no Quadro 1 e de forma resumida, as principais características clínicas e laboratoriais de outros défices enzimáticos.

HCSR por DÉFICE de 21-HIDROXILASE

Etiopatogénese e epidemiologia

A incidência desta doença é variável consoante a população estudada: 1/280 no Alasca e 1/23.000 em França; considerando apenas as formas graves do recém-nascido e criança obtém-se valor de 1/14.000; incluindo as formas de apresentação tardia a taxa será ~1/1.000 nos indivíduos em geral e 1/27 nos judeus Ashkenazi.

Nos países da Europa e nos EUA, com programas de diagnóstico precoce, é possível identificar formas graves e algumas das formas mais ligeiras, sendo a respectiva incidência, também variável, oscilando entre 1/15 e 1/16.000.

Os 2 genes (CYP21P e CYP21) que codificam a 21-hidroxilase estão localizados no braço curto do cromossoma 6, muito perto dos locus dos HLA e C4; só um dos genes é activo, sendo o outro um pseudogene; a maioria dos doentes corresponde a duplos heterozigotos, tendo herdado duas mutações diferentes, sendo a gravidade do quadro clínico determinada pela mutação mais suave. A grande variedade de mutações associadas, determinando graus muito variáveis de função enzimática, origina formas clínicas de gravidade variável.

QUADRO 1 – Formas de hiperplasia congénita da suprarrenal**

Δ4A: Δ4-androstenediona; DHEA: de-hidroepiandrosterona; DHEA-S: sulfato de de-hidroepiandrosterona; DOC: desoxicorticosterona; F: feminino; HTA: hipertensão arterial; M:masculino PRA: actividade da renina plasmática; T: testosterona; PA: pressão arterial; * StAR é a designação da proteína de regulação aguda da esteroidogénese (Steroidogenesis Acute Regulatory protein), essencial para o transporte de colesterol do citoplasma da célula do córtex suprarrenal para a mitocôndria onde ocorrem alguns dos passos da síntese hormonal; ** Excluindo o défice de 21-hidroxilase, abordado no texto.
DéficeSíndroma (Frequência)Ambiguidade genitalVirilização pós-natal
Puberdade
Metabolismo
do sal
Crise aguda PAEsteróides ↑ ≠Esteróides ↓Localização do gene

Proteína P450
(oxirredutase (POR))

Fenótipo variável
por vezes associada a malformações semelhantes ao S. Antley-Bixler
Sim F e MNãoNãoNão17-OH-progesteronaDHEA, D4A e T7q
Proteína StAR*Hiperplasia lipóide (Rara)Marcada no sexo MNão
Ausência de puberdade no sexo F
Perda de sal de aparecimento tardio
↑ PRA
Frequente
PA ↓
NenhumTodos8p
3β OH
– Esteróide (Rara) desidrogenase
Clássica (Rara)Marcada no sexo M
Moderada no sexo F
Sim
Alterações da
puberdade
Perda de sal
­ ↑ PRA
Presente
PA ↓
DHEA, DHEA-S, 17OH – pregnenolonaAldosterona, T, cortisol1p
Não clássica (Frequente)NãoSim
Alterações da puberdade
NormalAusente
PA normal
DHEA, DHEA-S, 17OH – pregnenolona….?
17α – Hidroxilase(Rara)Sexo MNão
Ausência da
puberdade
no sexo F
↑ PRAAusente
HTA
DOC, corticosteronaCortisol, T,
DHEA, Δ4A,
17OHP, 17OH – pregnenolona
10q
11β – HidroxilaseClássica
(1 / 100.000)
Sexo FSim ↑ PRARara
HTA
11 – desoxicortisol
DOC, T, Δ4A
Cortisol± aldosterona 8q
Não clássica
(Frequente?)
Sexo FSim
Alterações da
puberdade
NormalAusente
PA normal
11 – desoxicortisol ±
DOC, T, Δ4A
 8q
Corticosterona
metiloxidase II
Perda de sal
(Rara)
NãoNãoPerda de salSó perda de sal18OH – corticosteronaAldosterona8q

FIGURA 1. Ambiguidade genital no contexto de HCSR

A actividade das suprarrenais inicia-se na vida intrauterina. Após o nascimento, a produção de cortisol e de aldosterona passa a ser de primordial importância para a sobrevivência.

Habitualmente, considera-se existirem duas formas de apresentação clínica e gravidade diferentes – a forma clássica virilizante com ou sem perda de sal, e a forma não clássica sem perda de sal; no entanto, esta classificação é artificial e arbitrária, considerando-se que existe um espectro contínuo de formas clínicas desde muito graves até assintomáticas.

1. Forma clássica virilizante, com ou sem perda de sal
Manifestações clínicas

Durante a gestação, a produção deficiente de cortisol e aldosterona não produz sintomas, mas a hiperestimulação mantida pela ACTH com produção excessiva de androgénios leva a virilização que pode ter graus variáveis: no sexo feminino poderá chegar à ambiguidade genital completa (genitais externos com aspecto “de rapaz” mas com criptorquidia bilateral e hipospadia); no sexo masculino poderá manifestar-se como macrogenitossomia e escroto hiperpigmentado, não chamando geralmente a atenção.

A Figura 1 mostra uma imagem de ambiguidade genital em criança de quatro anos.

No sexo masculino, a virilização poderá somente ser detectada mais tarde, geralmente entre os 3 e os 7 anos, por aceleração do crescimento e maturação óssea desencadeada pelos níveis elevados de androgénios suprarrenais (puberdade precoce periférica ou pseudopuberdade precoce). Tal situação pode mesmo desencadear uma puberdade precoce central após o início da terâpeutica. Em 75% dos casos de virilização existe perda concomitante de sal.

Os sintomas de insuficiência suprarrenal instalam-se lentamente durante as primeiras semanas de vida com má progressão ponderal, recusa alimentar, mau estado geral, desnutrição, vómitos, obstipação; os sintomas podem ainda instalar-se de forma aguda, gravíssima, com letargia, choro fraco, prostração, vómitos, diarreia, desidratação, hipotensão, acompanhados de hiponatrémia, hipercaliémia, hipoglicémia e acidose metabólica. Este quadro, se não for diagnosticado e tratado rapida e correctamente, pode mesmo conduzir ao colapso cardiocirculatório e morte. Esta é a forma de apresentação mais frequente no sexo masculino.

O diagnóstico diferencial da crise aguda de perda de sal faz-se com sépsis, gastrenterite e, sobretudo, com a estenose hipertrófica do piloro cujas manifestações clínicas são semelhantes. No entanto, nesta última situação surge hiponatrémia, hipocaliémia e alcalose metabólica.

Nas formas com virilização tardia, o exame objectivo mostra: estatura elevada com aceleração da velocidade de crescimento (haverá que comparar com a curva de crescimento da criança, se existirem dados anteriores), pilosidade púbica e/ou axilar (que se quantifica pelos estádios de Tanner), sudação com odor, e acne; no sexo masculino: pénis bem desenvolvido, testículos pequenos; no sexo feminino: clitoromegália e ausência de botão mamário. A presença de botão mamário e o aumento do volume testicular farão suspeitar puberdade precoce central desencadeada pelo avanço da idade óssea associado à hiperplasia congénita da suprarrenal. A hiperpigmentação é habitualmente mais marcada nas palmas das mãos, pregas de flexão, cicatrizes, mucosa oral, mamilos, escroto e grandes lábios.

Exames complementares

Os exames complementares de diagnóstico que apoiam a suspeita clínica de crise aguda com perda de sal são:

  • Ionograma plasmático: [diminuição de Na+], [elevação do K+];
  • pH e gases: acidose metabólica;
  • Glicémia: < 40 mg/dL;
  • Ureia: elevada;
  • Aumento dos níveis séricos de 17OH-progesterona, D4-androstenediona, testosterona, da actividade de renina plasmática (PRA) ou renina activa.

Nas formas graves os doseamentos basais são geralmente suficientes e os únicos que é possível obter face à emergência clínica do tratamento.

Para confirmação de forma virilizante não completamente esclarecida, pode ser necessário proceder à prova de estimulação com ACTH (Synacthen®) e determinação de 17OH-progesterona, D4-androstenediona, testosterona, DHEA, e 3-beta-desoxicortisol basais e 60 minutos após administração.

Os níveis séricos dos vários metabolitos variam de acordo com a idade e sexo da criança e, também, com os valores de referência de cada laboratório; por isso, devem utilizar-se para a interpretação dos resultados as tabelas locais de referência. A colheita de sangue para estes doseamentos deve ser efectuada entre as 8 e as 9 horas para evitar resultados falsamente negativos causados pela variação circadiana dos seus níveis plasmáticos.

Tratamento
1. De substituição

Glucocorticóide
O tratamento é, ainda hoje, uma das áreas que suscita mais discussão; tem por objectivo a administração de corticóide suficiente para frenar a produção de androgénios sem, no entanto, afectar o crescimento. Deve, assim, ser ajustada ao doente e alterada ao longo do tempo, de acordo com os dados clínicos (velocidade de crescimento, hiperpigmentação, pilosidade, genitais externos) e os níveis séricos dos metabolitos. Esta avaliação regular deverá ser trimestral nos 2 primeiros anos de vida podendo, depois, passar a semestral até à puberdade, altura em que os ajustamentos deverão voltar a ser trimestrais.

Nas crianças utiliza-se: hidrocortisona per os em doses de 10-15 mg/m2/dia dividida em 3 tomas, de preferência; nos recém-nascidos e lactentes administra-se 1,5 mg, 3 vezes por dia (papéis manipulados na farmácia).

Nas idades pós-fase de crescimento poder-se-á passar a dexametasona: 0,25-0,5 mg per os, à noite.

Mineralocorticóide

  • 9 alfa-fludrocortisona:
  • 50-300 µg/dia, per os, em 2 tomas nos lactentes;
  • 50-200 µg/dia, per os, em 2 tomas nas crianças.

NaCl: 1-3 g/dia per os nos lactentes

As crianças maiores não necessitam de doses tão elevadas de mineralocorticóides; após o período de lactente, os alimentos que as crianças recebem contêm maiores concentrações de sal e as mesmas desenvolvem também apetência por sal, pelo que não é necessário administrar já NaCl suplementar.

2. Em situações de estresse agudo

Os doentes com hiperplasia congénita da suprarrenal deverão ter sempre consigo uma informação acerca da sua situação clínica, terapêutica actualizada e indicações em caso de estresse.

A família deverá ser informada que em situações de estresse agudo (como febre alta > 38,5ºC, vómitos, diarreia, administração de vacinas nos lactentes), deverá duplicar-se ou triplicar-se a dose habitual de hidrocortisona, de acordo com a gravidade do caso. Este tratamento deverá ser mantido pelo menos durante 24 horas; os pais devem também estar instruídos sobre a importância de administrar à criança líquidos/alimentos açucarados em quantidade suficiente para evitar a hipoglicémia que pode acompanhar estas situações, em particular nos lactentes e crianças mais jovens.

Se a criança vomitar imediatamente após a administração da terapêutica, dever-se-á repetir a dose algum tempo depois; se não tolerar a terapêutica por via oral, deverá ser rapidamente encaminhada a um serviço de urgência.

3. Da crise aguda de perda de sal

Deverá ser instituída terapêutica com fluidos por via endovenosa. Deverá ser instituída imediatamente terapêutica com hidrocortisona em bólus IM ou IV (o que for mais fácil e rápido): < 1 ano ” 25 mg; 1-5 anos ” 50 mg; > 5 anos ” 100 mg mantendo-se depois estas doses IV de 6/6 horas até reversão do quadro clínico, continuando terapêutica com fluidos IV.

Dever-se-á colher sangue para a determinação de glicémia, ionograma, pH e gases.

Se existir choque: NaCl a 0,9% a administrar ao ritmo de 20 ml/kg/h.

Se ausência de choque: NaCl a 0,9% em dextrose a 5% a administrar de acordo com os cálculos para a manutenção + perdas calculadas.

Não é necessário administrar mineralocorticóides, pois as doses altas de hidrocortisona asseguram estas necessidades.

Há que manter a hidratação endovenosa enquanto necessário. Introduzir líquidos per os logo que possível. Passar a terapêutica oral com hidrocortisona em dose tripla e fludrocortisona o mais brevemente possível; manter estas doses altas enquanto se mantiver o estresse agudo.

4. Da ambiguidade sexual

A atitude de proceder à intervenção cirúrgica para correção do defeito, respeitando os princípios éticos e a opinião esclarecida dos pais/família, deverá ser realizada por cirurgião pediátrico e equipa cirúrgica com experiência nestas situações. Habitualmente opta-se pela feminização.

2. Forma não clássica sem perda de sal
Manifestações clínicas

Esta forma de apresentação corresponde, em geral, a formas menos graves de défice enzimático. A hiperestimulação da glândula pela ACTH permite manter níveis plasmáticos normais de cortisol, à custa do aumento dos níveis plasmáticos dos precursores.

Manifesta-se tardiamente por pubarca precoce (aparecimento de pilosidade púbica e/ou axilar antes dos 8 anos no sexo feminino e 9 anos no sexo masculino), virilização, hirsutismo peripubertário, acne quística, amenorreia ou alterações menstruais, e infertilidade na mulher adulta; pode mesmo não haver quaisquer sintomas, sendo esta forma clínica diagnosticada por investigação da família no âmbito do diagnóstico de um caso índice.

Esta forma não se acompanha de perda de sal clinicamente significativa.

Exames complementares
  • Radiografia da mão e punho esquerdos para avaliação da idade óssea:
  • Idade óssea avançada em relação à idade cronológica
  • Análises de sangue:
  • Ionograma normal
  • Níveis plasmáticos basais de 17OH-progesterona elevados. No sexo feminino e após a menarca, este doseamento deve ser realizado durante a fase folicular do ciclo
  • Testosterona, D4-androstenediona, DHEA e DHEA-S: valores variáveis e sobreponíveis a outras situações
  • PRA ou renina activa normais ou ligeiramente aumentadas
  • Prova de estimulação com ACTH* (Synacthen®) se os valores basais dos parâmetros hormonais atrás referidos não forem conclusivos
*Recorda-se a prova de ACTH sintética: medição do incremento do cortisol plasmático 30 minutos e 60 minutos após injecção IM de 0,25 mg de β1-24-corticotrofina.
Tratamento

Têm indicação para tratamento os casos em que existe: avanço da idade óssea com prognóstico estatural inferior à altura alvo da família; hirsutismo importante; acne grave; alterações menstruais; massas testiculares.

A terapêutica é semelhante à descrita atrás: hidrocortisona per os em doses de 10-15 mg/m2/dia, dividida em 3 tomas. Não é necessário habitualmente proceder a substituição mineralocorticóide.

Nos doentes em tratamento e em situação de estresse agudo dever-se-á também duplicar ou triplicar as doses.

Os casos assintomáticos, sem indicação para terapêutica continuada com hidrocortisona, deverão também ser submetidos a terapêutica em caso de estresse (40-60 mg/m2/dia) se a resposta do cortisol na prova de Synacthen for inferior a 18 ug/dl.

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DOENÇAS DA SUPRARRENAL – GENERALIDADES

Fisiologia do córtex suprarrenal

A suprarrenal é constituída por dois tecidos endócrinos distintos: o córtex e a medula.

O córtex da suprarrenal (SR) integra 3 zonas: externa (glomerular), intermédia (fasciculada), e interna (reticular). A zona glomerular sintetiza aldosterona, mineralocorticóide da espécie humana; a fasciculada sintetiza o cortisol, o mais potente glucocorticóide natural; e a reticular, os androgénios suprarrenais.

Sob o ponto de vista genético, para o desenvolvimento da SR são cruciais dois factores de transcrição esteroidogénicos (SF-1/NR5A1 no cromossoma 9q33, e DAX1/NEOB1 no cromossoma X).

A síntese de glucocorticóides, mineralocorticóides e androgénios verifica-se a partir do colesterol através de uma via metabólica complexa (Figura 1). A existência de bloqueios enzimáticos condiciona, não só a não produção das hormonas respectivas, como também a acumulação de metabolitos e a produção excessiva de outros metabolitos.

A síntese de cortisol é estimulada pela ACTH hipofisária, que tem também acção estimulante do melanócito. A ACTH é, por sua vez, influenciada pela CRH (corticotropin releasing hormone) hipotalâmica. O cortisol produzido irá depois inibir a produção de ACTH e CRH (Figura 2); os níveis de cortisol têm uma variação circadiana, com níveis máximos de manhã e mínimos durante a noite.

O cortisol actua em todo o organismo, permitindo a sobrevivência em caso de estresse; tem também uma acção anti-inflamatória e sobre o metabolismo intermediário com aumento da lipólise a nível do tecido adiposo, da proteólise muscular, e da neoglucogénese hepática levando a elevação da glicémia.

A aldosterona actua no rim promovendo a reabsorção de sódio e a excreção de potássio na urina. A produção de aldosterona é influenciada pelo sistema renina/angiotensina, pela concentração circulante de potássio, e pela ACTH. (Figura 3)

FIGURA 1. Síntese de glucocorticóides, mineralocorticóides, androgénios e estrogénios

FIGURA 2. Mecanismo de controlo da síntese de glucocorticóides

FIGURA 3. Mecanismo de regulação hidroelectrolítica e do metabolismo da aldosterona

Os androgénios suprarrenais têm uma acção que pode ser importante em ambos os sexos nos períodos fetal, neonatal, e na criança antes da puberdade; são também importantes no sexo feminino durante e após a puberdade em associação aos androgénios de origem ovárica. No sexo masculino, a partir da puberdade a acção dos androgénios suprarrenais é diminuta devido à preponderância da testosterona produzida pelo testículo. Os androgénios suprarrenais começam a ser produzidos entre os 6-8 anos nas raparigas, e entre os 7-9 anos nos rapazes. Estes períodos correspondem à chamada pubarca, em que se verifica aparecimento de pilosidade pública e/ou axilar. Esta deve-se à maturação da zona mais interna do córtex suprarrenal, a zona reticular, passando esta a produzir DHEA e o DHEA-S em resposta à ACTH. A produção de androgénios pelo ovário aumenta durante a puberdade. Os androgénios são necessários para a diferenciação do folículo piloso pré-pubertário em folículo piloso terminal e folículo sebáceo (unidade pilo-sebácea) nas áreas cutâneas sensíveis aos androgénios.

Os sinais e sintomas das doenças da suprarrenal devem-se à carência ou excesso das hormonas afectadas, o que poderá levar ao desenvolvimento precoce dos caracteres sexuais secundários. Alguns sintomas de doença suprarrenal podem estar associados a doença de outros órgãos, nomeadamente o ovário. Assim, as alterações da função suprarrenal podem causar um grande número de situações patológicas, com clínica, diagnóstico e terapêutica muito variados.

Fisiologia da medula SR

As principais hormonas segregadas pela medula SR são as catecolaminas fisiologicamente activas: dopamina, norepinefrina, e epinefrina. A síntese de catecolaminas também ocorre no cérebro, nas terminações dos nervos simpáticos e no tecido cromafim, extramedula SR.

Os metabólitos das catecolaminas são excretados na urina, destacando-se o ácido vanilmandélico (VMA ou ácido 3-metoxi-4-hidroximandélico).

Os efeitos das catecolaminas são mediados através de receptores adrenérgicos incorporando a chamadas proteínas G. Quer a epinefrina, quer a norepinefrina elevam a pressão arterial, mas somente a epinefrina aumenta o débito cardíaco. Relativamente ao efeito hiperglicémico, o mesmo é mais pronunciado no caso da epinefrina.

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