CARDIOMIOPATIAS

Definição e importância do problema

O termo Cardiomiopatias designa um grupo heterogéneo de doenças do miocárdio associadas a disfunção, mecânica ou eléctrica, cursando habitualmente com hipertrofia ou dilatação ventricular, na ausência de anomalias estruturais anatómicas.

De acordo com a classificação mais recente, dividem-se em dois grupos:

  1. cardiomiopatias primárias (com envolvimento confinado ao miocárdio, de causa genética, adquirida ou mista); e
  2. cardiomiopatias (resultantes de doença sistémica com envolvimento cardíaco) (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das cardiomiopatias

Cardiomiopatias primáriasGenéticasCardiomiopatia hipertrófica, displasia arritmogénica do ventrículo direito, não compactação do ventrículo esquerdo, doenças do tecido de condução, doenças dos canais celulares (canalopatias)
AdquiridasMiocardite
MistasCardiomiopatia dilatada, cardiomiopatia restritiva não hipertrófica
Cardiomiopatias secundáriasInfiltrativas, doenças metabólicas de armazenamento, toxicidade, endócrinas, neuromusculares, neurofaciais, carências nutricionais, doenças autoimunes, desequilíbrios hidroelectrolíticos, secundárias a neoplasias

De acordo com uma classificação funcional, as cardiomiopatias incluem as formas hipertrófica, dilatada e restritiva. Considera-se ainda um quarto grupo não classificável de cardiomiopatias, susceptível de enquadramento nos três grupos anteriores. De acordo com o Registo Nacional de Cardiomiopatias dos Estados Unidos da América, a forma dilatada é a mais frequente (58%), seguida da hipertrófica (25%). As formas restritiva e as não classificadas representam 3% e 4%, respetivamente.

A incidência anual é de 1,1 a 1,2 por 100.000 indivíduos em idade pediátrica; os internamentos por cardiomiopatia não ultrapassam 1% do total de internamentos por doença cardíaca em crianças e jovens. Tratando-se duma doença grave, cabe salientar que cerca de 40% das crianças atingidas morrem ou necessitam de transplante cardíaco nos primeiros dois anos após o início dos sintomas.

A apresentação é mais frequente no primeiro ano de vida, registando-se um segundo pico durante a adolescência. Os estudos genéticos confirmam etiopatogénese hereditária numa percentagem elevada de casos.

Seguidamente procede-se a breve descrição das miocardiopatias mais comuns e clinicamente mais relevantes.

1. Cardiomiopatia dilatada

A cardiomiopatia dilatada é uma doença do músculo cardíaco caracterizada por dilatação ventricular com diminuição da contractilidade (primariamente disfunção sistólica).

Aspectos epidemiológicos

A incidência anual é cerca de 0,58 a 0,73 por 100.000 crianças e jovens. Existem múltiplas causas identificadas, sendo a causa vírica responsável por 9% a 13% dos casos.

As doenças neuromusculares, em particular a distrofia muscular de Duchenne, representam cerca de 12% dos casos. Os casos familiares constituem cerca de 6% do total.

Outras causas incluem alterações isquémicas (anomalias das coronárias, disritmias prolongadas), doenças hereditárias do metabolismo (mucopolissacaridoses, doenças de armazenamento de glicogénio/glicogenoses, esfingolipidoses), lesões por tóxicos (destacando-se os antineoplásicos), alterações endócrinas (por exemplo da tiróide) ou carências nutricionais (beribéri, kwashiorkor).

Em cerca de 65% a 70% dos casos considerados idiopáticos foram demonstrados defeitos genéticos e antecedentes de miocardite vírica por estudo PCR (Polymerase Chain Reaction).

Manifestações clínicas

A cardiomiopatia dilatada apresenta-se como insuficiência cardíaca congestiva que, nos recém-nascidos e lactentes, se manifesta por cansaço durante a alimentação e má progressão estaturo-ponderal.

O exame objectivo revela polipneia, má perfusão periférica, hepatomegália e edema. A auscultação cardíaca revela taquicardia, diminuição da intensidade dos ruídos cardíacos e ritmo de galope. Notam-se sinais de congestão venosa e diminuição do murmúrio vesicular nas bases pulmonares. Os casos mais graves apresentam-se com falência circulatória por choque cardiogénico.

Exames complementares

No electrocardiograma observam-se sinais de taquicardia sinusal, alterações da repolarização, e hipertrofia ventricular. A presença de ondas Q profundas em derivações esquerdas deve alertar para a possibilidade de anomalia coronária. A radiografia do tórax revela cardiomegália e congestão venosa pulmonar.

O ecocardiograma permite identificar a dilatação ventricular, detectar anomalias, avaliar a função valvular e a presença de derrame pericárdico ou de trombos.

Os métodos de diagnóstico etiológico devem incluir biópsia endomiocárdica, doseamento de enzimas musculares, estudos metabólicos, genéticos, víricos por PCR e rastreio familiar.

Tratamento e prognóstico

O tratamento é sintomático. Nos casos ligeiros, o tratamento consiste em facilitar o débito sistémico através da vasodilatação periférica com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (captopril e outros) e beta-bloqueantes (propranolol e, mais recentemente, carvedilol).

O agravamento de sintomas requer uma actuação mais agressiva que inclui diuréticos e inotrópicos (digoxina, perfusão endovenosa de dopa e/ou dobutamina, milrinona). As arritmias devem ser controladas com medicação apropriada. Nos casos mais graves pode ser necessário recorrer a meios de suporte circulatório mecânico externo transitoriamente, ou a transplantação cardíaca.

O prognóstico é reservado: com os recursos atualmente disponíveis, cerca de um terço das crianças morre ou necessita de transplante cardíaco.

2. Cardiomiopatia hipertrófica

A cardiomiopatia hipertrófica consiste em hipertrofia ventricular assimétrica com função sistólica habitualmente conservada e disfunção diastólica.

Aspetos epidemiológicos

A incidência anual é cerca de 0,32 a 0,47 casos por 100.000 crianças e jovens. A cardiomiopatia hipertrófica pode ser primária ou secundária. A forma primária resulta de anomalias genéticas das proteínas contrácteis do sarcómero cardíaco.

Existem cerca de 200 anomalias identificadas na base de dados das mutações da Universidade de Harvard (USA) em cerca de 10 genes das proteínas do sarcómero. Destacam-se como mais frequentes e responsáveis pela maioria dos casos, as anomalias localizadas na cadeia pesada da miosina, na proteína C de ligação à miosina, e na troponina T.

Apesar de estar provada cientificamente a importância da genética para a clínica, não estão ainda generalizados os métodos de diagnóstico genético nesta área.

A cardiomiopatia hipertrófica pode ser secundária a múltiplas doenças ou síndromas de que se destacam: embriofetopatia diabética, síndroma de Noonan, défice de L-carnitina, doenças de armazenamento de glicogénio e da cadeia respiratória.

Manifestações clínicas

Do ponto de vista clínico, as cardiomiopatias hipertróficas são subdivididas em obstrutivas (gradiente de saída ventricular > 30 mmHg) e não obstrutivas. A presença e o grau de obstrução constituem um factor com influência no quadro clínico e no prognóstico.

As formas não obstrutivas são geralmente assintomáticas. Os sintomas na forma obstrutiva (diminuição da tolerância ao esforço, angina, dispneia, palpitações e síncope) resultam da combinação da disfunção diastólica e do obstáculo dinâmico. As manifestações clínicas da cardiomiopatia hipertrófica primária surgem habitualmente na adolescência (12-18 anos) sendo esta doença a causa mais frequente de morte súbita (por taquicardia ventricular e/ou isquémia aguda) em adolescentes.

Exames complementares

O electrocardiograma apresenta alterações como sinais de hipertrofia ventricular esquerda ou biventricular, alterações inespecíficas da repolarização ventricular e, mais raramente, prolongamento do intervalo QT e ondas Q anómalas.

A radiografia do tórax revela sinais de cardiomegália. O ecocardiograma permite identificar sinais de hipertrofia ventricular assimétrica (mais acentuada no septo interventricular), avaliar o grau de obstáculo da saída ventricular, a função miocárdica, e o grau de envolvimento da válvula mitral.

Os doentes devem ser seguidos com electrocardiograma (incluindo registos de Holter) e ecocardiogramas seriados.

Tratamento e prognóstico

A terapêutica está indicada nos casos sintomáticos ou quando existem factores de risco de morte súbita, tais como história familiar de morte súbita, evidência de taquicardia ventricular persistente e identificação de mutação de alto risco.

A terapêutica médica inclui o evitamento de esforços intensos e a utilização de beta-bloqueantes (com a finalidade de aliviar o obstáculo de saída do ventrículo esquerdo e melhorar a dinâmica diastólica ventricular esquerda).

A eficácia da utilização profiláctica de beta-bloqueantes em doentes assintomáticos, com a finalidade de alterar a progressão da doença, não está demonstrada. Nos casos de défice de L-carnitina, está indicada a administração oral deste nutriente. As indicações para colocação de dispositivos para cardioversão – desfibrilhadores implantáveis em crianças são controversas; justificam-se apenas como prevenção secundária nos doentes submetidos a ressuscitação após episódios de “morte aparente”, e como prevenção primária nos casos comportando múltiplos factores de risco de morte súbita.

Em casos refractários, está indicada a remoção cirúrgica do obstáculo subaórtico por miectomia. O transplante cardíaco é uma opção que deve ser cuidadosamente avaliada depois de excluídas causas extracardíacas da doença. A terapia génica dá, neste momento, os primeiros passos de um futuro promissor.

O prognóstico é variável devido à heterogeneidade genética e à variabilidade das causas secundárias. Estima-se, para a totalidade da população (crianças e adultos), um risco de morte súbita de 1% por ano. Nos doentes sintomáticos com menos de um ano de idade, o prognóstico é particularmente adverso e a causa de morte é habitualmente insuficiência cardíaca (90%).

3. Cardiomiopatia restritiva

As cardiomiopatias restritivas caracterizam-se por disfunção ventricular diastólica com função sistólica preservada, ausência de hipertrofia ou dilatação ventricular, e dilatação biauricular (primeiramente disfunção diastólica, muitas vezes combinada com disfunção sistólica).

Aspectos epidemiológicos

Constituem 2,5 a 5% dos casos de cardiomiopatia. Na maioria dos casos, não é possível identificar a causa (formas idiopáticas). Alguns casos são secundários a doenças infiltrativas miocárdicas, fibrose endomiocárdica ou miopatias familiares.

Manifestações clínicas

A restrição da drenagem venosa pulmonar (para a aurícula esquerda) e sistémica (para a aurícula direita) resulta em aumento das pressões de enchimento ventriculares (telediastólica) e hipertensão pulmonar.

A maioria dos doentes apresenta sinais discretos de compromisso cardíaco, sendo a doença detectada em exames “de rotina”. Alguns doentes referem intolerância e dispneia com o esforço e síncope. As manifestações da doença surgem habitualmente entre os cinco e oito anos de idade. Há uma incidência elevada de fenómenos tromboembólicos sistémicos e de perturbações do ritmo cardíaco (taquidisritmias e bloqueio auriculoventricular completo).

Exames complementares

O electrocardiograma apresenta sinais de dilatação biauricular. Na radiografia do tórax destacam-se sinais de cardiomegália e congestão pulmonar. A ecocardiografia mostra sinais de dilatação auricular sem alterações ventriculares evidentes. O cateterismo cardíaco revela pressões telediastólicas elevadas, hipertensão pulmonar e aumento da resistência vascular pulmonar.

Tratamento e prognóstico

A terapêutica médica anticongestiva (vasodilatadores sistémicos, diuréticos, inotrópicos) não altera o curso desta doença, considerando-se que o único tratamento adequado é o transplante cardíaco. A utilização de vasodilatadores pulmonares antes do transplante pode contribuir para melhorar o pós-operatório destes doentes.

O prognóstico dos doentes não transplantados é reservado, com sobrevida de 20 a 30% aos 10 anos. O tempo médio entre o diagnóstico e o transplante é ~ 2 a 3 anos. Como a história natural da doença é heterogénea, é difícil estabelecer momento ideal para o transplante cardíaco. No entanto, a descompensação hemodinâmica condiciona negativamente o prognóstico da cirurgia.

4. Outras cardiomiopatias

Ventrículo esquerdo não compactado

O ventrículo esquerdo não compactado é uma cardiomiopatia secundária a provável paragem na morfogénese endomiocárdica fetal, a qual resulta em múltiplas trabeculações ventriculares proeminentes e recessos intraventriculares profundos.

Aspectos epidemiológicos

Embora estejam descritas apenas algumas centenas de casos em idade pediátrica, publicações recentes sugerem que a doença corresponde a cerca de 10% do total das cardiomiopatias.

Regista-se uma incidência familiar de 20 a 50% e uma associação a malformações cardíacas simples, como comunicações interventriculares em cerca de 40% dos casos. Estudos referentes a populações adultas referem coexistência de doenças neuromusculares em 80% dos casos.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica é variável. Cerca de dois terços dos doentes apresentam insuficiência cardíaca no primeiro ano de vida; nos restantes, a doença é detectada em ecocardiogramas efectuados por sopro cardíaco ou por alterações electrocardiográficas minor. Estão descritos casos de embolias e arritmias ventriculares.

Exames complementares

As alterações electrocardiográficas, presentes em 75% dos doentes, consistem em hipertrofia ventricular, alterações da repolarização, vias de condução acessórias e extrassistolia.

O ecocardiograma identifica a anatomia característica, que inclui o aspecto “espongiforme” do ventrículo esquerdo, habitualmente no septo e parede posterior. A função ventricular sistólica está geralmente afectada. Os critérios ecocardiográficos quantitativos, propostos para doentes adultos, não são consensuais para a população pediátrica.

Tratamento e prognóstico

O tratamento é sintomático. A transplantação cardíaca é a única opção nos casos refractários. A evolução da doença é variável, registando-se melhoria da função ventricular nalguns casos. A mortalidade é ~ 25% aos 10 anos de seguimento.

Displasia arritmogénica do ventrículo direito

A displasia arritmogénica do ventrículo direito é uma cardiomiopatia geneticamente determinada que consiste na substituição do miocárdio do ventrículo direito por tecido fibroso e adiposo.

Aspectos epidemiológicos e genéticos

Verifica-se em geral hereditariedade autossómica dominante com penetrância variável. Descrita há três décadas, tem sido progressivamente reconhecida como causa importante de morte súbita em adultos.

Manifestações clínicas

As arritmias ventriculares são a forma predominante de apresentação da doença, habitualmente na idade adulta. A doença é rara em crianças, estando, no entanto, descrita em adolescentes. Os casos avançados apresentam-se com insuficiência cardíaca direita.

Exames complementares

O diagnóstico resulta da combinação de dados relativos à história familiar, alterações electrocardiográficas (ondas T invertidas nas derivações pré-cordiais direitas, taquicardia ventricular com bloqueio de ramo esquerdo, potenciais tardios, entre outros), detecção de arritmias (em registos de Holter ou provas de esforço) e alterações macro ou microscópicas do ventrículo direito. A RM tem sido recentemente sugerida como meio de diagnóstico morfológico não invasivo ideal.

Tratamento e prognóstico

O tratamento médico consiste na utilização de antiarrítmicos, estando a utilização de cardioversores-desfibrilhadores implantáveis reservada para casos refractários ou com história de síncope.

GLOSSÁRIO

Gradiente de saída ventricular > Gradiente de saída é o valor da diferença de pressão entre a cavidade ventricular, neste caso a esquerda e a aorta, avaliada por ecocardiografia ou invasivamente por cateterismo cardíaco.

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PERICARDITE

Definição, etiopatogénese e importância do problema

O pericárdio engloba duas membranas (visceral e parietal), separadas por uma pequena quantidade de fluido. A pericardite (inflamação do pericárdio) pode ser aguda ou crónica (constritiva).

A pericardite aguda é geralmente devida a causas infecciosas e coexiste frequentemente com miocardite (miopericardite). Outras causas (menos frequentes) incluem doenças do colagénio, cirurgia cardíaca, drogas, traumatismos e insuficiência renal crónica.

Cerca de um terço dos casos de pericardite infecciosa é de etiologia vírica, nomeadamente por vírus Cocksackie e Adenovírus. A infecção por vírus da imunodeficiência humana provoca pericardite em 25% dos doentes afectados. As pericardites bacterianas ou purulentas resultam de infecções por Staphylococcus aureus e Haemophilus influenza. Em 10% dos casos de febre reumática pode haver envolvimento pericárdio.

No âmbito das doenças de colagénio, destacam-se a artrite reumatóide juvenil e o lúpus eritematoso sistémico, as quais podem cursar com pericardite em 50% dos casos.

A pericardite pós-cirurgia cardíaca (síndroma pós-pericardiotomia) é relativamente frequente e surge, em geral, quatro a cinco dias após a intervenção. A doença de Kawasaki provoca pericardite discreta em cerca de um terço dos casos. Fármacos como anticoagulantes, hidralazina e procainamida podem também provocar a doença. A frequência da pericardite na insuficiência renal crónica tem vindo a diminuir com a utilização generalizada da diálise. O hipotiroidismo e a radioterapia podem ser também causa.

A pericardite constritiva, cuja causa mais importante continua a ser a tuberculose, resulta de um espessamento do pericárdio; com efeito, a perda de elasticidade restringe o enchimento diastólico cardíaco.

Manifestações clínicas

A pericardite vírica existe num pródromo de doença respiratória ou gastrenterológica autolimitada, seguindo-se precordialgia, habitualmente acompanhada de febre. A precordialgia é de início súbito, agravando-se com a tosse, inspiração profunda e os movimentos, e aliviando com a flexão anterior do tronco.

Na auscultação cardíaca destaca-se apagamento dos tons cardíacos e a presença de sinais de atrito pericárdico. A intensidade do choque da ponta está diminuída. Nos casos associados a tamponamento cardíaco (por derrame pericárdico significativo), verifica-se a presença de pulso paradoxal (resultante do exagero da variação fisiológica da amplitude dos pulsos: maior na expiração e menor na inspiração).

Nos casos de maior gravidade, incluindo as pericardites constritivas, os doentes apresentam sinais e sintomas de congestão a montante (edema, hepatomegália, distensão venosa jugular) e baixo débito cardíaco. A tríade de Beck, patognomónica de tamponamento cardíaco, consiste em ingurgitamento jugular, hipotensão e apagamento dos tons cardíacos.

O diagnóstico de pericardite é feito pela existência de 2 ou mais dos seguintes critérios:

  1. Dor torácica típica;
  2. Atrito pericárdico na auscultação cardíaca;
  3. Alterações características do ECG;
  4. Presença de derrame pericárdico no ecocardiograma.

Exames complementares

Como se referiu relativamente às miocardites, existem várias técnicas laboratoriais de identificação vírica (no sangue, secreções ou líquido pericárdico).

A etiologia tuberculosa (mais frequente nos imunodeprimidos) deve ser cuidadosamente investigada. Nos casos em que seja necessária a drenagem cirúrgica, deve ser feito estudo por anatomia patológica.

O electrocardiograma apresenta alterações da repolarização: elevação do segmento ST, com ondas T altas e pontiagudas, em várias derivações; aplanamento ou inversão da onda T localizada nas derivações direitas ou generalizada. (Figura 1 e 2) 

FIGURA 1. Alterações electrocardiográficas típicas na pericardite

A radiografia do tórax, nos casos agudos, não apresenta alterações. Nos casos com derrame pericárdico significativo, existem sinais de cardiomegália. (Figura 3)

FIGURA 2. Alterações electrocardiográficas no derrame pericárdico

FIGURA 3. Cardiomegália (por pericardite de etiologia tuberculosa) evidenciada em radiografia do tórax

O ecocardiograma é importante para a detecção e quantificação dos derrames pericárdicos e para avaliação das suas consequências hemodinâmicas. Outros meios complementares de diagnóstico como a RM e a TAC raramente têm interesse. O cateterismo cardíaco não tem indicação na avaliação da pericardite.

São indicação para observação em Cardiologia Pediátrica:

  • Clínica sugestiva, ECG (alterações de repolarização) ou elevação de enzimas cardíacas;
  • Suspeita de tamponamento cardíaco;
  • Suspeita de pericardite recorrente ou patologia predisponente (por ex. doenças inflamatórias).

Tratamento e prognóstico

O tratamento médico das pericardites consiste no alívio sintomático e na utilização de anti-inflamatórios não esteróides. Em casos refractários, utiliza-se a colchicina. A corticoterapia, muito eficaz na resolução dos processos inflamatórios pericárdicos, deve ser utilizada com precaução nos casos de etiologia infecciosa. Os casos de etiologia tuberculosa devem merecer tratamento com fármacos anti-BK. A drenagem pericárdica (pericardiocentese) tem indicação em situações de tamponamento e nas pericardites purulentas. Ocasionalmente poderá ser necessário criar uma “janela pericárdica” para facilitar a drenagem, em especial nas pericardites constritivas.

O prognóstico é mais reservado nas pericardites purulentas (mortalidade ~20%) e nas pericardites tuberculosas constritivas (mortalidade ~10%). Nos outros casos, o prognóstico é geralmente favorável.

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MIOCARDITE

Definição, etiopatogénese e importância do problema

A miocardite é uma doença inflamatória do músculo cardíaco caracterizada por infiltrado leucocitário associado a degenerescência e/ou necrose não isquémica dos miócitos.

Sendo a miocardite uma causa importante de morte súbita, regista-se uma diferença significativa entre a sua incidência em estudos clínicos (0,01 a 0,3%) e necrópsicos (1 a 4%).

Sob o ponto de vista etiológico, as miocardites consideram-se de causa infecciosa (representam mais de 2/3 dos casos), autoimune, tóxica, e de causa desconhecida. Os agentes infecciosos incluem bactérias, riquétsias, parasitas, fungos e vírus Cocksackie B, adenovírus, citomegalovírus e herpes vírus. Nas causas autoimunes incluem-se febre reumática, lúpus e artrite reumatóide, entre outras. Alguns fármacos (como penicilina, adriamicina e anfotericina B) e substâncias tóxicas (como álcool e metais pesados), podem ser responsáveis por miocardite. Descrevem-se ainda miocardites secundárias no contexto de esclerodermia e de sarcoidose.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da miocardite tem um espectro variável, secundário ao grau de lesão miocárdica e resposta autoimune subsequente. A doença inicia-se por um pródromo “simile gripal” incaracterístico que antecede os sintomas e sinais por um período de dias a semanas.

Nos casos mais ligeiros, a sintomatologia inclui principalmente precordialgia, a qual se intensifica com o esforço físico; nos casos mais graves, a apresentação clínica inclui queixas gástricas (secundárias a baixo débito intestinal) e cansaço fácil ou de instalação súbita, associados a outros sintomas e sinais de insuficiência cardíaca (má perfusão, pulso alternante, polipneia, edema, taquicardia, ritmo de galope ou choque cardiogénico). A miocardite pode apresentar-se ainda como arritmia ou morte súbita.

Exames complementares

Existem várias técnicas laboratoriais de identificação vírica (no sangue, secreções ou músculo cardíaco) sendo o diagnóstico definitivo de miocardite obtido por análise histopatológica de fragmentos miocárdicos. Se a biópsia for feita nos dois meses após o início do quadro clínico, a percentagem de doentes com alterações histológicas que cumprem os chamados critérios de Dallas pode atingir 40%.

A radiografia do tórax mostra sinais de congestão pulmonar e cardiomegália (que pode estar ausente nos casos de evolução aguda). O electrocardiograma está alterado em quase todos os doentes; os achados mais típicos são alterações da repolarização, baixa voltagem dos complexos QRS, podendo estar presentes hipertrofia ventricular, extrassistolia ventricular, arritmias, bloqueios de condução auriculoventriculares e padrões sugestivos de enfarte.

O ecocardiograma mostra sinais de dilatação ventricular esquerda com má função global ou alterações da mobilidade segmentar, insuficiência mitral e, por vezes, derrame pericárdico.

A ressonância magnética (RM) tem-se revelado recentemente um importante instrumento diagnóstico não invasivo, com as sequências de realce tardio a mostrarem áreas de inflamação miocárdica. A sensibilidade e especificidade da RM para o diagnóstico da miocardite são 100% e 90%, respectivamente.

Tratamento e prognóstico

O tratamento sintomático consiste em suporte inotrópico endovenoso, redução da pós-carga (com vasodilatadores), diuréticos e anticoagulação. Recentemente, têm sido propostas várias modalidades que interferindo nos mecanismos fisiopatológicos da doença, em particular na modulação da resposta autoimunitária do doente. Entre estas abordagens, que continuam controversas, destacam-se a administração endovenosa de gamaglobulina na fase aguda, na dose de 2 g/kg, e a terapêutica imunossupressora na fase aguda da doença (corticóides, ciclosporina). De salientar que se considera prudente a não utilização desta última na fase aguda da doença, por risco de agravamento da disseminação vírica.

A utilidade da terapêutica imunossupressora, passada a fase aguda, é apoiada em vários ensaios clínicos não controlados. A terapêutica específica antivírica tem sido aplicada nalguns centros (aciclovir para o VEB e pleconaril para os enterovírus). O desenvolvimento de uma vacina anti-enterovírus e adenovírus poderá contribuir decisivamente para o combate à miocardite vírica.

A sobrevida dos doentes com miocardite, hospitalizados, pode atingir 89%, graças à utilização de dispositivos externos de assistência ventricular, ou transplante. A idade mais jovem e a gravidade do quadro clínico são factores de mau prognóstico. Estima-se que um terço dos sobreviventes venha a necessitar de transplante cardíaco.

GLOSSÁRIO

Pulso alternante > Pulso em que há alternadamente uma sístole com onda de pulso de amplitude normal, e outra sístole com diminuição da referida amplitude.

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ENDOCARDITE INFECCIOSA

Definição e importância do problema

A endocardite infecciosa é uma doença infecciosa do endocárdio, atingindo válvulas e/ou estruturas relacionadas. Rara na idade pediátrica, representa globalmente cerca de 0,08% dos internamentos hospitalares.

Até 1970, a endocardite estabelecia-se em lesões de cardite reumática prévia; actualmente, devido ao aumento considerável da sobrevida dos doentes com cardiopatia congénita e à diminuição de casos de febre reumática nos países desenvolvidos, a maioria dos doentes com endocardite tem anomalias cardíacas congénitas e, em cerca de 50% dos casos, antecedentes de cirurgia cardíaca (em particular, implantação de material protésico quer por via cirúrgica ou de cateterismo de intervenção).

A proporção de endocardite em doentes com permanência prolongada em unidades de cuidados intensivos, associada a linhas endovenosas, tem igualmente aumentado, o que se relaciona com tromboembolismo venoso. Em cerca de 8% não são identificados factores de risco nem anomalias cardíacas estruturais.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Os agentes envolvidos na infecção nidificam no endotélio anormal, geralmente danificado por diversas razões: malformações cardíacas; cicatrizes de correcções cirúrgicas; implantação de material exógeno (próteses ou remendos); intervenções cirúrgicas; cateterismo de intervenção e tromboembolismo venoso; e traumatismo provocado por cateteres endovenosos centrais.

Dos mecanismos descritos têm particular importância as lesões do endocárdio causadas pela implantação de heteroenxertos (condutos valvulados de tecido biológico não humano), e de próteses metálicas expansíveis (stents) em estruturas danificadas pela proliferação tecidual e calcificação. No que se refere aos homoenxertos a relevância é menor.

A apresentação clínica é geralmente insidiosa, com febre prolongada e manifestações sistémicas variadas como consequência da bacteriémia (ou fungémia), valvulite, resposta imunológica e embolias. A bacteriémia (ou fungémia) é responsável pela disseminação do agente e pela febre. As lesões valvulares manifestam-se pela alteração nos achados auscultatórios e desenvolvimento de sintomas e sinais de insuficiência cardíaca. As manifestações extracardíacas de endocardite (petéquias, hemorragias, manchas de Roth, lesões de Janeway, nódulos de Osler ou esplenomegália) são mais raras em crianças do que em adultos, e não descritas no período neonatal.

As alterações renais (glomerulonefrite) podem ser secundárias a fenómenos autoimunes ou embólicos. Podem registar-se embolias para outros órgãos, nomeadamente sistema nervoso central, onde podem provocar aneurismas micóticos cuja ruptura pode ser catastrófica (ver Glossário Geral).

Exames complementares

O diagnóstico é feito pela presença de vários parâmetros descritos por Duke – critérios de Duke (Quadro 1). Consideram-se critérios major: o isolamento em hemocultura de microrganismo típico e a demonstração ecocardiográfica de lesões (vegetações) características de endocardite; e são critérios minor: a existência de lesões predisponentes, febre, fenómenos vasculares derivados de lesão imunológica ou embólica, e a identificação de alterações microbiológicas e ecocardiográficas sugestivas, mas indirectas, de endocardite.

O diagnóstico pressupõe necessariamente a verificação de dois critérios major; ou um major e dois minor; ou, ainda, cinco minor.

As bactérias mais frequentemente implicadas são cocos Gram (+), com destaque para estreptococos viridans, estafilococos, enterococos e, mais raramente, bactérias Gram (-) do grupo HACEK (acrónimo de: Haemophilus aphrophilus, Actino-bacillus, Cardiobacterium, Eikenella e Kingella. A endocardite fúngica, habitualmente por Candida, tem sido mais frequente nas últimas décadas. Ocasionalmente, registam-se endocardites “estéreis”, em que não é possível isolar o agente.

A ecocardiografia é o método padrão dourado/gold standard para o diagnóstico; evidencia uma sensibilidade elevada e pode demonstrar, além das vegetações (típicas da endocardite), alterações indirectas como, perfuração valvular, ruptura de cordas tendinosas, formação de abcessos perivalvulares ou fístulas miocárdicas, e deiscência de material protésico. Em idade pediátrica a ecocardiografia transtorácica é geralmente esclarecedora e tem acuidade para a identificação destas lesões. No entanto, é por vezes necessário recorrer à ecocardiografia transesofágica para o diagnóstico, em particular nos doentes com cardiopatia operada e material protésico implantado.

QUADRO 1 – Critérios de Duke

Major
    • Isolamento em cultura de microrganismo típico
    • Evidência ecocardiográfica de endocardite
Minor
    • Predisposição (lesão cardíaca, cateteres endovenosos, utilização de drogas endovenosas)
    • Febre
    • Fenómenos vasculares (embolias, enfartes sépticos, aneurismas micóticos, hemorragias conjuntivais, lesões de Janeway)
    • Evidência microbiológica (que não cumpra as especificidades para critério major)
    • Achados ecocardiográficos (consistentes com endocardite, mas que não cumpram as especificidades para critério major)

Profilaxia, tratamento e prognóstico

A profilaxia da endocardite bacteriana está indicada pontualmente nas situações de potencial bacteriémia em doentes com anomalias cardíacas susceptíveis de endocardite. A mesma obedece a recomendações internacionais, recentemente revistas. (Quadros 2 e 3)

As últimas recomendações limitam a profilaxia da endocardite bacteriana aos doentes de alto risco, excluindo outras formas de cardiopatia, como a comunicação interauricular isolada, prolapso da válvula mitral ou válvula aórtica bicúspide não complicadas.

Além da profilaxia medicamentosa em doentes de risco, é fundamental promover medidas gerais, como higiene oral adequada, higiene e integridade das mucosas e pele, e precauções especiais no caso de doentes aderindo a certos hábitos e modas, como o piercing e a tatuagem.

Nesta perspectiva, torna-se fundamental o esclarecimento por parte dos clínicos assistentes.

QUADRO 2 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – I

Intervenções envolvendo a boca/orofaringe/aparelho respiratório superior
Esquema padrão
Amoxicilina* 50 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

Se alergia à penicilina
Clindamicina** 20 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

* Não exceder a dose máxima de 2 g
** Não exceder a dose máxima de 600 mg

Intervenções envolvendo o aparelho digestivo/tracto urogenital
Esquema padrão
Ampicilina 50 mg/kg* IM ou IV + Gentamicina 3 mg/kg IM ou IV 30-60 minutos antes do procedimento e Ampicilina 50 mg/kg* IM ou IV 6 horas depois

Se alergia à Penicilina
Vancomicina 10 mg/kg IV** 30-60 minutos antes + Gentamicina 3 mg/kg IV ou IM 1-2 horas antes (perfusão)

* Não exceder a dose máxima de 2 g de Ampicilina
** Não exceder a dose máxima de 1 g de Vancomicina

Intervenções envolvendo o tecido cutâneo infectado (abcesso/furúnculos)
Esquema padrão
Flucloxacilina 50 mg/kg* PO/IV/IM 30 minutos antes, repetir 6 horas depois

Se alergia à penicilina
Clindamicina 20 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

* Não exceder a dose de 2 g de Fluocloxacilina

QUADRO 3 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – II

Cuidados gerais e recomendações
    1. Higiene oral cuidada.
    2. Vigilância regular em consulta de Estomatologia.
    3. Tratar amigdalites, otites e todas as infecções purulentas com antibióticos durante dez dias.
    4. Deve ser feita profilaxia sempre que haja:
      1. Intervenções estomatológicas: extracções dentárias; brocagens; limpeza profissional; todos os procedimentos que envolvam sangramento gengival.
      2. Luxações traumáticas ou avulsões dentárias.
      3. Cirurgia ORL, excepto timpanostomia.
      4. Cirurgia digestiva ou urológica.
      5. Intervenções envolvendo tecido cutâneo infectado.
Cardiopatias de alto risco de endocardite bacteriana
    1. Prótese valvular ou material protésico utilizado na reparação valvular.
    2. Endocardite prévia.
    3. Cardiopatia congénita:
      1. cardiopatia cianótica não operada, operada com lesões residuais ou paliada com shunt ou conduto.
      2. cardiopatia corrigida com material protésico, colocado por cirurgia ou por intervenção percutânea, durante os primeiros 6 meses após o procedimento.
      3. cardiopatia operada com lesões residuais adjacentes ao material protésico

O tratamento, variando de acordo com o agente identificado, tem uma duração habitual de quatro a seis semanas. As indicações cirúrgicas são empíricas e incluem insuficiência cardíaca por disfunção valvular, persistência de vegetações após fenómenos embólicos (particularmente se aumentarem de dimensão apesar do tratamento), embolias recorrentes e extensão perivalvular da infecção (formação de abcesso, fístula, deiscência protésica).

A terapêutica médica é habitualmente ineficaz na endocardite fúngica, sendo necessária cirurgia, na maioria dos casos.

A mortalidade, variando entre 20% e 30%, é mais elevada na endocardite fúngica e nos casos que atingem material protésico.

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CARDITE REUMÁTICA

Definição e importância do problema

A febre reumática (FR) é uma doença que resulta da reacção autoimune tardia provocada por infecção prévia das vias aéreas superiores por Streptococcus beta hemolítico do grupo A. Atingindo o tecido conjuntivo, igualmente afecta múltiplos órgãos e sistemas, nomeadamente coração e vasos, articulações, pele, tecido subcutâneo e o sistema nervoso central.

A faixa etária mais susceptível situa-se entre os 5 e os 15 anos de idade e, na maioria das populações, a incidência da doença é 1,5 a 2 vezes superior em raparigas.

As lesões cardíacas residuais provocadas pela inflamação aguda – doença cardíaca reumática – são responsáveis pela maior parte da morbilidade e mortalidade atribuída à doença.

Este capítulo, versando fundamentalmente uma das componentes da febre reumática – a cardite – não pode ser desligado da doença base, tópico abordado na perspectiva do reumatologista pediátrico (Parte XXIII).

Aspectos epidemiológicos

Esta patologia é a principal causa de doença cardíaca adquirida em crianças e jovens nos países em desenvolvimento.

Nos países industrializados verificou-se, a partir dos anos 50, uma redução drástica da sua incidência, explicável pela introdução da penicilina no tratamento e pela melhoria dos cuidados de saúde e das condições socioeconómicas das populações.

Em Portugal, a febre reumática aguda é actualmente inexistente; no entanto há que atender ao facto de o nosso país acolher, para tratamento, doentes em idade pediátrica provenientes dos países africanos de língua portuguesa onde a prevalência da cardite é relevante.

As mais recentes recomendações internacionais para o diagnóstico da febre reumática definem como população de baixo risco aquela em que a incidência de febre reumática aguda é < 2/100.000 crianças em idade escolar por ano ou a prevalência de doença cardíaca reumática ≤ 1/1.000 habitantes e por ano.

Etiopatogénese e relação com a clínica

A patogénese, multifactorial, tem como ponto de partida uma infecção amígdalo-faríngea causada por Streptococcus β-hemolítico do grupo A de Lancefield. A via de infecção cutânea (geralmente associada a lesões renais) raramente provoca febre reumática.

As estirpes reumatogénicas induzem reacções imunológicas cruzadas entre certos componentes do estreptococo e do organismo humano e, num hospedeiro geneticamente susceptível, lesam tecidos-alvo.

O período que medeia a infecção e a expressão da doença (período de latência) dura, em geral, entre 1 e 5 semanas, podendo ser mais longo (2-6 meses).

A prevalência de Streptococcus do grupo A na orofaringe de crianças saudáveis é ~ 10 a 30%. As infecções estreptocócicas recorrentes constituem o factor predisponente mais importante da ocorrência e recorrência de FR; esta última poderá surgir em cerca de 0,3 a 3% das referidas infecções. Nesta perspectiva, e não existindo vacina, os marcos importantes da prevenção primária são o diagnóstico e tratamento correctos da amigdalite estreptocócica.

Abaixo dos três anos de idade, apenas 10% das amigdalites são de origem estreptocócica; por outro lado, somente 0,5% dos primeiros surtos de febre reumática ocorrem nesta faixa etária. A amigdalite estreptocócica manifesta-se geralmente com início súbito, febre alta, mal-estar, odinofagia, cefaleias, vómitos e dor abdominal. A orofaringe evidencia eritema, muitas vezes com exsudado, e petéquias no palato mole; este quadro acompanha-se de adenomegálias submaxilares dolorosas.

A terapêutica antibiótica, quando iniciada precocemente, reduz a morbilidade e o tempo de evicção escolar.

Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações da febre reumática são variáveis, baseando-se o diagnóstico nos critérios de Duckett Jones, divulgados em 1944. Ao longo dos anos estes critérios têm sido revistos em função do contexto epidemiológico da doença.

Assim, devido à heterogeneidade geográfica da prevalência de febre reumática, as mais recentes recomendações da American Heart Association (AHA) definem critérios de diagnóstico específicos para as populações em que a doença é endémica. Estes critérios incluem sinais clínicos e resultados dos exames complementares de diagnóstico, os quais são seguidamente descritos de modo integrado.

1. Critérios de Duckett Jones

As manifestações major de FR aguda são, por ordem de frequência, a cardite (50%-70%), a poliartrite (35%-65%), a coreia (10%-30%), os nódulos subcutâneos (3%-10%) e o eritema marginado (< 6%).

As manifestações minor são a febre (muito frequente, em particular no primeiro surto), a elevação da velocidade de sedimentação e/ou da proteína C reactiva, e as alterações do ECG. (Quadro 1)

A presença de dois critérios major ou de um major associado a dois minor, tendo como base de prova uma infecção prévia por estreptococo do grupo A, indica uma alta probabilidade de febre reumática.

Em face de antecedentes pessoais de febre reumática ou doença cardíaca reumática estabelecida, o diagnóstico de recorrência apoia-se na evidência de infecção estreptocócica associada a 2 critérios major; 1 critério major e 2 minor ou 3 minor.

QUADRO 1 – Critérios de Jones Revistos (AHA)

Populações de baixo risco*Populações de alto risco

PCR – Proteína C reactiva; VS – Velocidade de sedimentação
*Considerando os seguintes parâmetros: Incidência de febre reumática aguda é < 2/100.000 crianças em idade escolar por ano; ou Prevalência de doença cardíaca reumática ≤ 1/1.000 habitantes e por ano

Critérios Major
CarditeCardite
PoliartriteMono/poliartrite
Poliartralgia
CoreiaCoreia
Eritema marginadoEritema marginado
Nódulos subcutâneosNódulos subcutâneos
Critérios Minor
PoliartralgiaMonoartralgia
Febre (≥ 38,5ºC)Febre (≥ 38ºC)
VS ≥ 60 mm na 1ª hora e/ou PCR ≥ 3,0 mg/dLVS ≥ 60 mm na 1ª hora e/ou PCR ≥ 3,0 mg/dL
Prolongamento do intervalo PR no ECGProlongamento do intervalo PR no ECG
Cardite

Surgindo precocemente, pode atingir em graus variáveis o pericárdio, miocárdio e endocárdio, sendo a manifestação predominante a valvulite. Na criança, o diagnóstico etiológico da regurgitação mitral pode ser difícil. Em idade pediátrica a probabilidade de uma lesão valvular ser de origem reumatismal é ~ 13% para a regurgitação aórtica isolada, ~ 76% para a regurgitação mitral isolada e ~ 97% para a associação das duas lesões. A cardite tem como sinais clínicos típicos a taquicardia e o sopro de regurgitação mitral, suave, holossistólico, mais audível na ponta e com irradiação para a axila. Na fase aguda, pode auscultar-se o rodado de Carey Coombs, um sopro diastólico suave, curto e de tonalidade grave, mais audível na ponta e axila. A avaliação clínica da cardite permite o diagnóstico em 75% dos casos; denomina-se cardite subclínica aquela em que os estudos de imagem revelam valvulite mitral ou aórtica, na ausência de semiologia compatível.

Nos casos suspeitos, o ecocardiograma com Döppler codificado por cor aumenta a acuidade diagnóstica para cerca de 90%. As alterações morfológicas da fase aguda relacionam-se com o edema da válvula mitral e do aparelho tensor e manifestam-se como alongamento ou rotura de cordas tendinosas, e prolapso ou evidência de nódulos dos folhetos valvulares.

A regurgitação mitral apresenta-se tipicamente como um jacto póstero-lateral verificado por Döppler codificado com cor. Na fase crónica de doença, podem evidenciar-se calcificações valvulares, engrossamento de folhetos e fusão das comissuras da válvula ou das cordas tendinosas, cursando com limitação da sua abertura. (Figuras 1 e 2)

Além do apoio no diagnóstico, o Doppler é importante no seguimento dos doentes com cardite, mediante a avaliação seriada das dimensões das estruturas cardíacas e da sua função.

O ecocardiograma transesofágico é útil no estudo pré-operatório da válvula mitral ou em situações de diagnóstico diferencial menos claro, como a demonstração de rotura de corda tendinosa ou de vegetações.

A lesão miocárdica pode levar a disfunção cardíaca importante, pelas alterações da contractilidade ventricular esquerda e pela regurgitação valvular que se agravam nos casos de surtos repetidos. A insuficiência cardíaca manifesta-se por ortopneia, tosse, edema pulmonar, hepatomegalia e estase venosa. Nas crianças mais novas estas manifestações podem ser subtis. A cardiomegalia é constante, podendo ser comparticipada por derrame pericárdico, frequente nos casos graves. Em 5-10% dos casos há apresentação com cardite grave que pode requerer cirurgia cardíaca urgente ou culminar na morte do doente.

FIGURA 1. Imagens ecocardiográficas de doença mitral reumática. É evidente a dilatação da aurícula esquerda, a limitação da abertura da válvula mitral e a turbulência do fluxo de entrada por Döppler codificado em cor

FIGURA 2. Imagens ecocardiográficas de regurgitação mitral de etiologia reumática. Verifica-se dilatação da aurícula esquerda, a incompleta coaptação dos folhetos da mitral e, por Döppler codificado em cor, o fluxo de regurgitação mitral grave

Artrite

Na sua forma mais característica, atinge várias articulações (poliartrite); rara antes dos cinco anos, é migratória, não supurativa, assimétrica e atinge as grandes articulações, nomeadamente joelhos, tornozelos, cotovelos e punhos. Geralmente autolimitada, com uma duração de cerca de 4 semanas, mesmo sem terapêutica, não provoca deformação sequelar das articulações. A resposta sintomática à administração de salicilatos e anti-inflamatórios não-esteróides é característica.

Coreia de Sydenham

Indica compromisso do sistema nervoso central e caracteriza-se por movimentos involuntários despropositados, e exacerbados pelo esforço e stress. É mais frequente no sexo feminino e tem um período de latência longo (1 a 6 meses), tornando difícil a documentação de infecção estreptocócica prévia. É autolimitada, e com recuperação em cerca de 6 meses, mesmo sem terapêutica.

Nódulos subcutâneos

Associam-se a cardite activa, são indolores, pequenos, duros e móveis; surgem na superfície extensora das articulações, ao longo da coluna e na região occipital.

Eritema marginado

É um exantema macular, confluente, não pruriginoso, de cor rosada e bordo serpiginoso, surgindo em geral no tronco e dorso, região proximal dos membros e nádegas mas nunca na face.

Febre

Geralmente presente na fase aguda, cede à terapêutica com salicilatos.

VS e/ou PCR

Muito elevadas na fase aguda, diminuem progressivamente com a melhoria clínica ou em presença de insuficiência cardíaca, voltando a aumentar com a melhoria da função miocárdica. Na coreia, a velocidade de sedimentação é normal. De salientar que o valor da proteína C reativa não sofre flutuações com a insuficiência cardíaca.

ECG

Evidencia intervalo PR aumentado, o qual normaliza com a melhoria clínica (cerca de 6-8 semanas após o início dos sintomas). Alterações inespecíficas do segmento ST e inversão da onda T significam, em geral, miocardite. As arritmias são raras e autolimitadas.

2. Evidência laboratorial

A análise antigénica rápida e o exame cultural do exsudado (faríngeos), se realizados na fase aguda da amigdalite, podem confirmar a etiologia estreptocócica. No entanto, a cultura do exsudado faríngeo é positiva em apenas 2/3 dos casos e não permite a distinção entre a infecção aguda e o estado de portador crónico.

A prova serológica constitui o “padrão de ouro”/gold standard do diagnóstico de infecção por Streptococcus do grupo A: pode ser negativa quando realizada precocemente no decurso da doença e necessita de repetição após 10 a 14 dias. As provas mais utilizadas são a determinação dos títulos de anti-estreptolisina O (TASO) e anti-DNAse B, com “picos” respectivos às 3-6 e às 6-8 semanas de doença.

O doseamento do título de TASO é positivo em mais de 85% dos casos. A associação do TASO à determinação do título de anti-DNAse B eleva a percentagem de detecção de infecção pelo Streptococcus do grupo A para quase 100%. O aumento do título dos anticorpos ao longo do tempo é mais específico que um único doseamento elevado.

Diagnóstico diferencial

Na fase aguda, sendo a febre reumática uma doença febril e inflamatória, essencialmente, há que fazer o diagnóstico diferencial com patologias como a miocardite e pericardite víricas, a doença de Kawasaki e a endocardite infecciosa.

Os casos em que predomina o componente articular, devem distinguir-se da artrite reumatóide juvenil. O modo assimétrico e migratório das lesões das grandes articulações e a rápida resolução da sintomatologia com doses baixas de ácido acetilsalicílico são a favor da febre reumática. Deve ainda fazer-se diagnóstico diferencial com outras artrites como as associadas a lúpus eritematoso sistémico, artrites infecciosas, doença do soro, doença de Lyme, hemoglobinopatias e leucemias.

A endocardite bacteriana que atinja uma válvula mitral com anomalia congénita é uma doença febril que pode simular febre reumática. A presença de baço palpável, petéquias e hematúria microscópica, são dados a favor de endocardite. A velocidade de sedimentação está aumentada nas duas situações, mas as flutuações descritas para a febre reumática em consequência da insuficiência cardíaca não se verificam na endocardite. As hemoculturas positivas são a chave do diagnóstico.

A análise detalhada da morfologia e função da válvula mitral pelo ecocardiograma é importante para o diagnóstico da febre reumática e para a detecção de vegetações em casos de endocardite.

A situação que mais dúvidas oferece é a presença de apenas um critério major, geralmente a artrite. Nestes casos poder-se-á manter o doente em vigilância sob profilaxia antibiótica secundária; se se verificar recorrência da artrite, sem evidência de infecção estreptocócica, fica excluída a etiologia reumatismal.

Prevenção primária

O tratamento mais seguro e eficaz da infecção aguda (ou prevenção primária) faz-se com penicilina benzatínica administrada por via intramuscular em dose única (600.000 UI nas crianças com peso inferior a 20 kg, e 1.200.000 UI nas crianças com peso igual ou superior a 20 kg). Nos raros casos de alergia à penicilina, utiliza-se eritromicina (40 mg/kg/dia) por via oral, administrada durante 10 dias.

Tratamento

Na fase precoce da febre reumática, os anti-inflamatórios, se iniciados intempestivamente, podem mascarar os sinais de inflamação, modificar a velocidade de sedimentação e os aspectos clínicos e ecocardiográficos. Por este motivo, deve privilegiar-se nesta fase o uso de paracetamol como analgésico.

Após o diagnóstico de febre reumática deve iniciar-se terapêutica com ácido acetilsalicílico (80-100 mg/kg/dia), cuja dose deverá ser reduzida lentamente (ao longo de 4-6 semanas), à medida que se verifique melhoria clínica e diminuição da velocidade de sedimentação.

A corticoterapia é indicada nos casos de cardite grave com insuficiência cardíaca, resistente à terapêutica. Utiliza-se a prednisolona na dose de 1-2 mg/kg/dia durante duas a quatro semanas, reduzindo-se durante as duas semanas seguintes (25% por semana). No período de desmame, deverá reiniciar-se ácido acetilsalicílico para evitar recaídas.

Continua a ser preconizado o repouso absoluto no leito, como medida de redução do trabalho cardíaco.

O tratamento cirúrgico, raramente necessário na fase aguda, está indicado nos casos com lesões valvulares importantes. No entanto, a reparação valvular nesta fase pode ser tecnicamente difícil e está associada a necessidade frequente de reoperação tardia.

O Quadro 2 sintetiza o esquema de tratamento da cardite de acordo com as manifestações clínicas.

QUADRO 2 – Tratamento de acordo com as manifestações clínicas

 ArtriteCardite ligeiraCardite moderadaCardite graveCoreia
ICC – Insuficiência cardíaca congestiva
Repouso no leito1 – 2 semanas3 – 4 semanas4 – 6 semanasEnquanto ICCRedução de stress físico e emocional
Penicilina G benzatínica< 20 kg – 600.000 U
≥ 20 kg – 1.200.000 U
Ácido acetilsalicílicoInício com 50 – 60 mg/kg/dia 4id, aumentando até 80 – 100 mg/kg/dia 4id
1 – 2 semanas3 – 4 semanas6 – 8 semanas2 – 4 meses0
Prednisolona1 – 2 mg/kg/dia 4id (max. 80 mg)
0002 – 4 semanas0
Carbamazepina6 – 20 mg/kg/dia 3id (max. 1500 mg/dia)
0000Continuar 2 – 4 semanas após cessação de sintomas

Prevenção secundária

A prevenção secundária é tão importante quanto a prevenção primária. Na ausência de novos surtos, a maioria das alterações cardíacas resultantes da febre reumática melhora, e a função cardíaca pode normalizar. Por outro lado, as sequelas dos surtos subsequentes, sempre mais graves do que as do primeiro surto, produzem lesões quase sempre irreversíveis. Por estas razões, a prevenção secundária, importante no prognóstico da doença, é feita com penicilina benzatínica administrada por via intramuscular nas mesmas doses que para a prevenção primária, com intervalos de quatro semanas.

Na presença de sequelas, a profilaxia deverá durar toda a vida (mesmo após eventual cirurgia). Nos casos sem sequelas, nomeadamente doença valvular persistente, a profilaxia é feita até à idade adulta. Nos doentes com lesões valvulares, está indicada profilaxia da endocardite bacteriana mesmo após cirurgia. (Quadro 3)

Nos países endémicos (como os de África, América do Sul, Índia, Filipinas) o intervalo deve ser encurtado para três semanas. Nos raros casos de alergia à penicilina, está indicada a profilaxia por via oral (eritromicina ou sulfonamidas – sulfadiazina ou sulfisoxazol), em que a adesão e a eficácia são menores. A penicilina V (oral) não está comercializada em Portugal.

QUADRO 3 – Duração da profilaxia secundária preconizada pela OMS

OMS – Organização Mundial de Saúde
Categoria do doenteDuração da profilaxia
Ausência de cardite comprovada5 anos após o último surto de doença ou até aos 18 anos (o que for mais longo)
Cardite ligeira (regurgitação mitral/aórtica ligeiras)10 anos após o último surto de doença ou até pelo menos aos 25 anos
Doença valvular graveVitalício
Após cirurgia valvularVitalício

BIBLIOGRAFIA

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DOENÇA DE KAWASAKI E DOENÇA CARDÍACA – ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR

DEFINIÇÃO E IMPORTÂNCIA DO PROBLEMA

A doença de Kawasaki (DK), também anteriormente denominada síndroma linfomucocutânea, foi descrita pela primeira vez no Japão por Tomikasu Kawasaki, em 1967. Define-se como uma vasculite necrosante sistémica aguda, afectando predominantemente vasos de médio calibre, mas também, arteríolas, vénulas e capilares, com predilecção para as artérias coronárias. Tal nosologia comporta, pois, risco elevado de isquémia e de enfarte do miocárdio.

Constitui a vasculite aguda sistémica mais frequente na criança e a principal causa de cardiopatia adquirida nos países desenvolvidos.

ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS

Na grande maioria dos casos (cerca de 80%) ocorre abaixo dos 5 anos de idade, sendo rara antes dos 6 meses, e muito rara depois dos 5 anos. A explicação provável para esta distribuição assenta na imunidade passiva antes dos 6 meses (anticorpos maternos transplacentares) e na imunidade adquirida depois dos 5 anos; contudo há casos descritos no recém-nascido.

O sexo masculino é mais frequentemente afectado na proporção aproximada de 2/1.

De acordo com estudos epidemiológicos parece tratar-se duma doença sazonal com “pico” de incidência no Inverno e Primavera. A incidência, máxima na Ásia e, designadamente, no Japão, (90/100.000) tem vindo a aumentar, situando-se actualmente entre 3-5/100.000 no Reino Unido e 6-11/100.000 nos EUA, Canadá e em Portugal. É provável que tal aumento se relacione com uma maior possibilidade diagnóstica, decorrente do melhor conhecimento da doença. Parece existir predisposição genética (nomeadamente em relação com a existência de genes determinantes dos seguintes tipos no sistema HLA: B5, B44, Bw51, DR3 e DRB3*0301). A recorrência é rara. Estudos genéticos identificaram casos com elevada susceptibilidade de receptores de citocinas relacionados com genes CCL3 e CCL3L1, e em portadores de variantes de certos genes tais como o CCR5.

ETIOPATOGÉNESE

A etiopatogénese da DK é ainda desconhecida. Todavia, admite-se a hipótese de comparticipação muito provável de germes microbianos tendo em conta, nomeadamente: a semelhança das manifestações clínicas com certas doenças infecciosas como a escarlatina e a síndroma de choque tóxico, a sazonalidade em muitas áreas geográficas, a ocorrência de surtos, o risco aumentado de doença após contacto com outros casos, a maior frequência entre os 6 meses e os 5 anos, e a eficácia terapêutica da imunoglobulina. Contudo, não se conseguiu, até hoje, o isolamento de qualquer microrganismo responsável por esta entidade nosológica.

Determinados estudos identificaram, em casos fatais, antigénio associado à DK em corpos de inclusão de células epiteliais ciliadas brônquicas, admitindo-se: 1) que tais corpos de inclusão correspondem a agregados de proteínas víricas; e 2) que a porta de entrada do “possível agente causal” seja a via respiratória.

Noutros estudos é sugerido que as profundas anomalias imunorreguladoras encontradas na DK se devem a toxinas bacterianas (e/ou víricas) proteicas, capazes de se ligarem simultaneamente aos receptores das células T e às moléculas do MHC* de classe II, em zona deslocada ou fora do habitual sulco peptídico de união. Desta forma, este “desvio”, à margem do “sistema chave-fechadura”, permite que as referidas toxinas actuem de forma inespecífica em zonas mais amplas e em grande escala, sendo, por isso, designadas por superantigénios.

Tais superantigénios diferem dos antigénios convencionais em vários aspectos importantes: 1) activação policlonal das células B; 2) estimulação de um número maciço de linfócitos T circulantes capazes de se ligarem a um receptor de superfície celular específico; e 3) produção intensiva de citocinas pró-inflamatórias.

*A propósito do chamado CMH (ou MHC) – sigla em português de Complexo Major de Histocompatibilidade – recorda-se que existe um locus no braço curto do cromossoma 6 compreendendo múltiplos genes que determinam os antigénios (glicoproteínas de superfície) de histocompatibilidade (HLA ou human leucocyte antigens) de diversas características ou classes designadas por I, II e III, os quais desempenham papel importante nas interacções entre células do sistema imunitário; os antigénios de classe II são reconhecidos por células CD4.

Apenas um número limitado de linfócitos responde a um antigénio convencional (tipicamente < 1 célula em cada 10.000 linfócitos). Pelo contrário, os superantigénios podem activar até 20 a 30% dos linfócitos T circulantes, com subsequente libertação de quantidades extremamente elevadas de citocinas; estas últimas posteriormente dão origem a uma cascata de eventos traduzindo activação imunológica de grau extremo, a qual pode ser tipificada pela elevação sérica de todas as imunoglobulinas.

A febre alta e elevação dos reagentes de fase aguda podem ser secundárias ao aumento de IL-1, IL-6 e de TNF-α. O processo adenopático cervical pode reflectir a activação marcada das células B e T.

A lesão vascular em geral, assim como a lesão do endotélio das coronárias pode resultar: 1) da activação de células endoteliais e de moléculas de adesão leucocitária; 2) da infiltração de células CD4+ e CD8+, assim como de macrófagos; 3) da resposta pró-inflamatória e pró-trombótica exagerada produzida pelo excesso de citocinas; e 4) da acção de neoantigénios sobre o referido endotélio coronário.

Todos estes mecanismos possíveis ocorrem seguramente em indivíduos geneticamente predispostos, esta contribuição importante é suportada pela manutenção do elevado grau de incidência em indivíduos asiáticos mesmo que habitem em países com menor incidência. Também estudos recentes de identificação fenotípica demonstraram polimorfismos de genes que se associam a aumento da incidência de lesão coronária, da sua gravidade, recorrência da doença e até resistência ao tratamento com imunoglobulinas.**

**Foram recentemente identificados genes que determinam maior susceptibilidade para a DK e maior risco de complicações: o gene Inositol 1,4,5-triphosphate 3-kinase C – ITPKC ITPKC, é um regulador negativo da activação dos linfócitos T, os pacientes com DK teriam redução da actividade do ITPKC com consequente resposta inflamatória exagerada mediada por células T; polimorfismos do cluster de genes CCR3-CCR2-CCR5 determinam a resistência ao tratamento com IGIV e dessa forma maior gravidade da doença; na presença dos alelos HH e HR (Taniuchi et al – Genotipos de Fcg RIIIb-NA(1,2), Fcg RIIa-H/R131, and Fcg RIIIa-F/V158) existe maior propensão para o desenvolvimento de aneurismas coronários.

É plausível o seguinte mecanismo fisiopatológico, descrito por fases: 1) num indivíduo geneticamente predisposto; 2) determinado germe microbiano produtor de superantigénios coloniza as membranas mucosas do tracto gastrintestinal; 3) a toxina é absorvida através da mucosa inflamada, estimulando as células mononucleares locais e/ou circulantes a produzir citocinas pró-inflamatórias que, por sua vez, provocam a febre e as restantes alterações clínicas observadas na DK; 4) em resposta à estimulação induzida por estes mediadores químicos, neoantigénios actuando no endotélio, tornam este especialmente susceptível à agressão por anticorpos citotóxicos e por células T activadas; 5) verifica-se, então, edema endotelial e do músculo liso vascular, do que resulta extensão do infiltrado inflamatório às restantes camadas da parede vascular e área perivascular, destruição da lâmina elástica interna (vasculite), assim como inflamação do miocárdio e do pericárdio; 6) a disrupção da lâmina elástica interna dos vasos pode condicionar ectasia ou mesmo formação de aneurisma arterial, também apenas em indivíduos com susceptibilidade genética para tal. Após a fase aguda, segue-se a recuperação e regeneração vasculares com processo de aglomeração plaquetária e celular que, a nível vascular, podem levar a trombose e obstrução, com possibilidade de ulterior proliferação da íntima, e de oclusão estenótica.

Segundo os estudos de diversos investigadores, incluindo os da autora (FFP), verifica-se disfunção do endotélio vascular, demonstrada pela redução da produção de óxido nítrico; este fenómeno prolonga-se para além da fase aguda, desconhecendo-se por quanto tempo, ou se existe recuperação completa.

A suspeita de maior predisposição para o desenvolvimento de lesões ateroscleróticas nos doentes que tiveram doença de Kawasaki não foi provada cientificamente, existindo, mesmo, dados que apontam para a ausência de tal associação. Foi, entretanto, demonstrado que em adolescentes e jovens adultos com antecedentes de DK a espessura da íntima-médica das carótidas (parâmetro associado a doença aterosclerótica pré-clínica) é normal.

As ectasias coronárias a longo prazo podem persistir, desenvolver estenoses, calcificar, induzir neoformação de novos aneurismas, ou condicionar oclusão aguda, e até, ruptura coronária.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

A febre alta (> 38,4ºC) é característica fundamental (em 100% dos casos), podendo ser remitente e refractária aos antipiréticos. Sem tratamento, em geral dura 1-2 semanas, mas pode manifestar-se durante período curto de 5 dias ou persistir durante 3-4 semanas (ver adiante).

Para além da febre, foram descritos cinco critérios clínicos designados principais, mais frequentes (oscilando em cerca de 50-90% dos casos), e que poderão não ocorrer concomitantemente.

Assim, não existindo exame laboratorial específico para DK, o seu diagnóstico é baseado numa constelação de sinais e sintomas.

Segundo as normas actualizadas (2017) da American Heart Association, o diagnóstico de DK (DK clássica) requer o reconhecimento de febre persistente inexplicada durante um período mínimo de cinco dias*, associada à presença de, pelo menos, quatro dos cinco sinais clínicos seguintes: 

  1. Alterações das extremidades, que evoluem com eritema e edema duro das mãos e dos pés na fase inicial e, posteriormente, descamação em placas (rebatimento de retalhos no sentido distal – proximal dos dedos), uma a três semanas após o início do quadro febril;
  2. Exantema multiforme envolvendo o tronco e as extremidades, com aspecto variável – urticariforme, simile psoríase, micropustular, morbiliforme ou escarlatiniforme – na primeira semana de doença;
  3. Hiperémia conjuntival bilateral, indolor, não exsudativa, afectando predominantemente a conjuntiva bulbar e poupando a região límbica;
  4. Alterações dos lábios e da cavidade oral designadamente: lábios vermelhos e fissurados, língua em framboesa e hiperémia da mucosa orofaríngea;
  5. Adenomegalias cervicais, mais frequentemente unilaterais, duras e dolorosas e, pelo menos, um gânglio com diâmetro > 1,5 cm.
    De acordo com as referidas normas, e valorizando especialmente o achado semiológico de febre:
    A DK deve ainda ser considerada se a febre regredir após 7 dias sem tratamento; A DK deve também ser considerada em:
    • Crianças com < 6 meses, febre prolongada e irritabilidade;
    • Lactentes com febre prolongada e meningite asséptica;
    • Lactentes ou crianças com febre prolongada associada a linfadenite inexplicada, abcesso ou fleimão retrofaríngeo, ou choque.

FIGURA 1. Doença de Kawasaki: 1 – hiperémia conjuntival; 2 – lábios vermelhos e fissurados; 3 – língua em framboesa; 4 – adenomegália cervical. (NIHDE)

Na valorização das manifestações clínicas, importa considerar, para além dos critérios principais anteriormente descritos, outros achados menos frequentes, associados a DK (~5-40%), tais como: vómitos, diarreia, artralgia, artrite, parotidite, erupção pustular, dor abdominal, paralisia do nervo facial, hepatite, uretrite, leucocitúria estéril, uveíte anterior, iridociclite, hiperémia perianal, hiperémia da cicatriz de BCG, hidropisia vesicular por vezes traduzida por massa palpável no hipocôndrio direito (Figura 2. A-D)

FIGURA 2. DK – Aspectos imagiológicos de aneurisma da artéria coronária direita (ACD): A -arteriografia; B e C – ecografia. D – sinal ecográfico de hydrops da vesícula biliar. (ACD – artéria coronária direita; AN – aneurisma)

Importa relevar que o envolvimento cardíaco constitui a manifestação mais importante da DK. Arritmias, ritmo de galope ou taquicardia desproporcionada para a febre podem ser uma manifestação de miocardite. Sinais de regurgitação mitral, derrame pericárdico e de choque cardiogénico poderão surgir na fase aguda.

Efectivamente, as lesões cardíacas são as mais preocupantes por constituírem o principal factor de risco de mortalidade e morbilidade, podendo verificar-se, em proporção variável até 25% dos doentes não tratados, a ocorrência de anomalias das artérias coronárias (grandes aneurismas).

Por outro lado, a presença de determinados achados poderá excluir a hipótese de DK: conjuntivite e faringite exsudativas, linfadenopatia generalizada, lesões ulcerosas bucais ligeiras, esplenomegalia e exantema petequial ou vesicular.

INVESTIGAÇÃO LABORATORIAL E IMAGIOLÓGICA – ASPECTOS FUNDAMENTAIS

Apesar de não existir um padrão específico de achados de exames complementares, a conjugação de determinados dados laboratoriais, electrocardiográficos e imagiológicos (ecocardiográficos e radiológicos torácicos) pode sugerir o diagnóstico de DK. (Quadro 1)

QUADRO 1. Critérios de diagnóstico de doença de Kawasaki (DK)

Nota: Na presença de febre e de alterações cardíacas detectadas pelo ecocardiograma, são aceites menos de 4 dos 5 critérios descritos. (entre parênteses a percentagem média de aparecimento das manifestações clínicas).
Febre inexplicada durante 5 dias (critério essencial), mais 4 das seguintes manifestações:
1. Conjuntivite (hiperémia conjuntival bulbar bilateral, não supurada) (80-90%)
2. Linfadenomegália cervical anterior, aguda, não supurada, > 1,5 cm (50-70%)
3. Exantema polimorfo generalizado, não vesicular, principalmente no tronco (> 90%)
4. Alterações nos lábios e/ou mucosas (80-90%)
5. Alterações das extremidades ou na região perineal (80%)
6. Elevação do péptido natriurético BNP ou da sua porção N-terminal (NT-pro-BNP), alteração que traduz permeabilidade vascular aumentada; trata-se, pois, dum marcador útil na identificação de formas clínicas refractárias à administração de IGIV (ver adiante)
7. Elevação da Troponina I (Tn I), somente numa minoria de doentes com miocardite
8. Elevação da Endotelina I ou IL-17

Nota: As alterações electrocardiográficas podem não existir ou ser inespecíficas (redução da voltagem da onda R, depressão do segmento ST com aplanamento ou inversão da onda T, prolongamento do intervalo PQ e/ou do intervalo QT corrigido).

Alguns factores podem estar relacionados com maior risco de aparecimento de aneurismas. O Quadro 2 é elucidativo.

QUADRO 2. Alterações laboratoriais frequentes na DK

• Anemia normocrómica e normocítica ligeira• Hipoalbuminémia
• Leucocitose com neutrofilia• Elevação dos triglicéridos e do colesterol-LDL; diminuição do colesterol-HDL
• Trombocitose reactiva• Hiponatrémia
• Elevação dos reagentes de fase aguda (VS, PCR e a1-AT)• Piúria estéril
• Elevação da ALT, AST e GGT• LCR: pleiocitose mononuclear, sem alteração da glicorráquia ou da proteinorráquia
• Icterícia obstrutiva (hidropisia vesicular)• Resultados negativos de exames de culturas e de serologias para agentes infecciosos

 

Notas importantes sobre os exames complementares:

    • Os exames laboratoriais, sendo inespecíficos, podem, no entanto, indicar processo de inflamação sistémica;
    • É pouco provável o diagnóstico de DK se a velocidade de sedimentação (VS), a proteína C reactiva (PCR) e o valor de plaquetas evidenciarem resultados normais após 7 dias de febre;
    • A eventual identificação de vírus respiratório ou de Streptococcus do grupo A não exclui DK;
    • A VS não deve ser usada para avaliar a eficácia da terapêutica, pois tal parâmetro não é susceptível de interpretação após terapia com imunoglobulina IV (IGIV) a qual provoca agregação eritrocitária;
    • A ecocardiografia não constitui um exame diagnóstico para DK. Recomendada perante a suspeita de DK, o tratamento não deverá ser protelado nos casos de inviabilidade da realização daquela;
    • As anomalias das artérias coronárias, em geral não detectáveis por ecocardiografia na primeira semana da doença, afectam cerca de 15 a 25% dos doentes não tratados. Variam, desde ligeira ectasia difusa ou pequeno aneurisma único, até aneurismas gigantes, múltiplos, afectando várias artérias. Quanto maiores forem os aneurismas, mais reservado será o prognóstico pelo risco de complicações, designadamente trombose, estenose coronária e/ou enfarte do miocárdio. Ao contrário dos aneurismas pequenos, que regridem em 50% dos doentes nos primeiros 18 meses de evolução, os aneurismas gigantes podem persistir; (Figura 2. A, B, C)
    • Através do ecocardiograma, podem ser verificados sinais de dilatação ventricular esquerda, com diminuição da função e regurgitação mitral por dilatação do anel, assim como derrame pericárdico em 30% dos doentes (o qual regride espontaneamente);
    • Importa referir que ectasia coronária pode surgir no âmbito de outras situações cursando com febre, para além da DK; contudo, a verificação de um diâmetro arterial interno com z-score igual ou superior a 2,5 é altamente específico de DK;
    • Perante a suspeita diagnóstica de DK, deve realizar-se ecocardiograma dentro do período de 1-2 semanas e, mais tarde, cerca de 4-6 semanas após tratamento inicial. Se, pelas 6 semanas, o ecocardiograma não evidenciar alterações, não se justifica ulterior exame de imagem.

FORMAS CLÍNICAS

Para além da forma DK Clássica/Típica descrita anteriormente, descrevem-se ainda duas variantes da DK: Incompleta ou Atípica e Resistente

Doença de Kawasaki (DK) Incompleta ou Atípica

Deve ser considerado o diagnóstico de DK incompleta nas seguintes situações:

  • Lactentes (especialmente abaixo dos 6 meses), crianças mais velhas e adolescentes com febre inexplicável durante 7 ou mais dias;
  • Crianças com febre durante 5 ou mais dias associada a duas ou três das principais características clínicas anteriormente descritas;
  • Pode concluir-se que se torna necessário um elevado índice de suspeita para o diagnóstico destes casos, pois o risco de complicações cardíacas aumenta com o atraso do início do tratamento.

Doença de Kawasaki (DK) Resistente

Para a caracterização desta forma clínica, importa considerar aspectos da terapêutica, a abordar adiante).

  • Dado que a definição de resistência varia largamente na literatura médica, optou-se por adoptar a definição da AHA: febre persistente ou com recrudescimento durante pelo menos 36 horas após a primeira administração de IGIV;
  • Os doentes com DK resistente comportam maior risco de anomalias das coronárias;
  • De acordo com a AHA é recomendada uma das seguintes atitudes terapêuticas:
  • segunda dose de IGIV
  • pulso único de metilprednisolona em alta dose (30 mg/kg) com ou sem seguimento em redução gradual de prednisolona oral
  • curso longo de prednisolona oral (durante 2-3 semanas) associado a segunda dose de IGIV
  • infliximab
  • O regime ideal quanto a dose e duração de corticosteroides no contexto de DK resistente é incerto;
  • Outros agentes que têm sido usados na DK resistente incluem: etanercept, anakinra, ciclosporina, e agentes citotóxicos tais como a ciclofosfamida;
  • Relativamente à resistência à IGIV, admite-se a existência de genes de maior susceptibilidade para a resistência e para maior risco de lesões coronárias.

EVOLUÇÃO

A DK típica evolui em três fases distintas:

Fase aguda febril (~10 dias): temperatura elevada, irritabilidade, conjuntivite bilateral, exantema, eritema e edema palmar e plantar, orofaringite e queilite. Podem ocorrer disfunção hepática e complicações cardíacas (miocardite e pericardite). O quadro laboratorial clássico, compatível com situação inflamatória aguda, evidencia hipoalbuminémia, trombocitopénia, leucocitose, aumento da velocidade de sedimentação eritrocitária e da PCR (proteína C reactiva).

Fase subaguda (~2-4 semanas): persistência da irritabilidade, anorexia e conjuntivite. A febre tende a desaparecer nesta fase, mas, se persistir, aumenta o risco de complicações cardíacas permanentes. Inicia-se a descamação dos dedos das mãos e dos pés (Figura 3), bem como a formação de aneurismas das artérias coronárias. É a fase de maior risco de morte súbita. Nesta fase, o quadro laboratorial evidencia trombocitose crescente que pode atingir 1.000.000/mm3.

FIGURA 3. Doença de Kawasaki na fase subaguda: descamação periungueal dos dedos dos pés originando o destacamento da epiderme, em lâminas, como que “esfolada”. (NIHDE)

Fase de convalescença ou crónica (~ 6-12 semanas): todos os sinais da doença desaparecem e os marcadores laboratoriais de fase aguda normalizam. Nesta fase, podem persistir, quer os sinais de disfunção endotelial, quer os aneurismas das artérias coronárias. Nos doentes com complicações cardíacas, podem surgir consequências tardias graves, tais como ruptura de aneurismas coronários. A mortalidade global é cerca de 2% nos casos não tratados, e de 0,1% nos tratados. Todavia, a morbilidade e a mortalidade secundárias a complicações cardiovasculares podem ser significativas: nesta perspectiva salienta-se que os aneurismas coronários ocorrem em 20 a 25% dos casos não tratados, o que contrasta com a taxa de 4% nos tratados. Por consequência, o grau de compromisso coronário dita a necessidade de seguimento a longo prazo, sendo a revascularização miocárdica uma prioridade nos casos graves, complicados com estenose ou oclusão coronária (ver adiante).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Como foi referido, a grande dificuldade no diagnóstico de DK reside na ausência de achados patognomónicos que a identifiquem, aliada ao aparecimento sequencial de alterações clínicas e laboratoriais e à possibilidade de quadro clínico incompleto. Por outro lado, a descamação periungueal, que constitui a característica mais facilmente reconhecida, surge apenas numa fase em que as complicações cardíacas já poderão ter ocorrido.

Inúmeras situações podem apresentar etiopatogénese com pontos comuns e evidenciar, por isso, manifestações clínicas sobreponíveis às da DK, nomeadamente de tipo infeccioso e autoimune.

Destacam-se, assim, as situações a ponderar quanto a diagnóstico diferencial:

  • Infecção estreptocócica ou estafilocócica (escarlatina, síndroma do choque tóxico, síndroma da pele escaldada);
  • Sarampo, rubéola, exantema súbito, infecção por vírus de Epstein Barr, citomegalovírus, enterovírus, influenza A e B e adenovírus; infecção por Mycoplasma pneumoniae; riquetsioses e leptospirose;
  • Síndroma de Stevens-Johnson, doença do soro; artrite crónica juvenil, poliarterite nodosa, doença de Reiter (artrite reactiva com manifestações extra-articulares, designadamente conjuntivite).

Muitas destas entidades nosológicas podem ser excluídas clinicamente, uma vez que apenas algumas evidenciam febre que persiste durante mais de 5 dias.

Nos casos de DK verifica-se, por outro lado, grande irritabilidade, o que pode ser explicado pela presença de meningite asséptica. Contudo, esta alteração pode ser observada noutras infecções, nomeadamente no sarampo.

Outro sinal clínico é a presença de eritema e endurecimento no local de inoculação da BCG, provocados pela reacção cruzada entre as proteínas de fase aguda (heat shock proteins) e as células T.

O exantema e as alterações orais e periféricas observados na escarlatina são, por vezes, similares aos da DK, mas naquela não existe conjuntivite. O exantema surge habitualmente no 2º-3º dia de doença, tendo início nas regiões inguinal e axilar, com rápida extensão ao tronco e membros. A descamação ocorre 7 a 10 dias mais tarde. A resposta ao tratamento com antibiótico adequado é habitualmente rápida.

A síndroma do choque tóxico associa-se a situações com mau estado geral, eritema das mãos e pés, exantema difuso e inespecífico da face, descamação do tronco e dos membros, mucosite com compromisso oral, e conjuntivite não exsudativa. Contrariamente, a apresentação inicial da DK não inclui a instabilidade hemodinâmica.

A síndroma de Stevens-Johnson é caracterizada por um eritema multiforme associado a lesões erosivas nas mucosas, nomeadamente, conjuntivas e cavidade oral. O exantema geralmente cede após 10 dias. Se presente, a sobreinfecção bacteriana pode provocar adenomegálias generalizadas.

A doença do soro é uma reacção de hipersensibilidade de tipo III, mediada pela deposição de complexos imunes, com subsequente activação do complemento. Classicamente é provocada por fármacos que, ao actuarem como haptenos, se ligam à albumina plasmática, funcionando como antigénios. Destes, destacam-se: proteínas séricas heterólogas (antitoxinas, gamaglobulina, anticorpos monoclonais), antibióticos (penicilinas, cefalosporinas, sulfonamidas, ciprofloxacina, tetraciclinas, metronidazol), agentes biológicos (estreptoquinase) e outros fármacos (captopril, indometacina, fenilbutazona, procainamida, quinidina, tiouracilo, alopurinol e barbitúricos). Aproximadamente 7 a 10 dias após a administração da substância (coincidindo com o “pico” de complexos imunes circulantes) ocorre febre elevada, mal-estar generalizado e cefaleias. De seguida surge exantema pruriginoso, que tem início no local do inóculo ou, se a via tiver sido oral, com difusão a partir do abdómen. Tal como na DK, é polimorfo (urticariforme, escarlatiniforme, morbiliforme). Dois terços dos doentes apresentam artralgia ou artrite, com predomínio das articulações dos joelhos, tornozelos, ombros e punhos.

A presença de adenomegálias coincide com o início da restante clínica; as cadeias mais afectadas correspondem aos gânglios de drenagem do local de administração do fármaco. Outras alterações clínicas incluem: sinais de compromisso renal (albuminúria, hematúria microscópica, diminuição transitória da depuração da creatinina), edema, sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, dor abdominal), hepatoesplenomegalia, derrame pericárdico e dificuldade respiratória.

A forma sistémica da artrite idiopática juvenil pode apresentar-se com febre prolongada, sinais sistémicos e artrite.

Para exclusão de algumas das situações descritas, e paralelamente à cuidadosa caracterização clínica, a realização de determinados exames complementares poderá ser equacionada em função de cada caso específico.

TRATAMENTO

Tratamento da doença propriamente dita

Não sendo conhecido nenhum agente etiológico, o tratamento da DK é dirigido para o controlo dos fenómenos inflamatórios, de forma a evitar aparecimento de anomalias das artérias coronárias e as consequentes lesões miocárdicas.

O plano terapêutico consiste na administração de:

1. Imunoglobulina intravenosa (IGIV): (preferencialmente nos primeiros 10 dias de doença), na dose única de 2 g/kg, por via endovenosa, em perfusão de 10-12 horas. Embora o mecanismo exacto de acção seja desconhecido, está comprovado o seu efeito benéfico na rapidez de resolução da fase inflamatória e na prevenção de aneurismas coronários. Em cerca de 15% dos casos verifica-se ausência de resposta/resistência à IGIV (persistência de febre ou recrudescimento do quadro clínico após 36 horas), aspecto que também parece ter predisposição genética. Em tais circunstâncias está indicada a repetição da dose de 2 g/kg.

2. Ácido acetilsalicílico (AAS): em dose anti-inflamatória# (80-100 mg/kg/dia por via oral, em quatro tomas). Esta dose é mantida até ao 3º dia de apirexia, sendo então reduzida para dose antiagregante plaquetária (3-5 mg/kg/dia). Este tratamento pode ser interrompido entre a 6ª e 8ª semanas de evolução nos casos em que não se evidenciem anomalias das artérias coronárias por ecocardiografia. Nos doentes com alterações das artérias coronárias, a antiagregação plaquetária deve manter-se indefinidamente com a finalidade de prevenir trombose coronária.
Os efeitos colaterais do AAS, bem definidos, incluem o aumento das transaminases séricas, hipoacúsia transitória e, raramente, síndroma de Reye. Deve ser interrompido caso se verifique exposição a varicela ou influenza. Em alternativa poderá utilizar-se clopidogrel na dose de 1 mg/kg/dia, até dose máxima de 75 mg/dia.

#De acordo com as normas da AHA-2017, não estando provado que a dose inicial anti-inflamatória de AAS reduza o risco de aneurismas coronários, tal procedimento não é recomendado; por isso, os peritos recomendam apenas AAS em dose antitrombótica.

3. Outras terapias

3.1 – Têm sido usadas a metilprednisolona IV, ciclofosfamida e plasmaférese em casos de resistência à IGIV, embora sem resultados consistentes.
3.2 – Nos casos em que se verifica resistência à 2ª dose de IGIV e gravidade clínica, nomeadamente com febre alta persistente ou perante ineficácia dos corticóides, utilizam-se inibidores do receptor do TNF-alfa, infliximab e etarnecep. Quanto a estes agentes, estudos recentes não conclusivos demonstraram, contudo, efeito modesto de dilatação das artérias coronárias.
3.3 – Nalguns centros de cardiologia pediátrica utiliza-se baixa dose de uroquinase endovenosa nos casos complicados, verificando-se sinais de trombose coronária.

Tratamento das complicações cardíacas

O enfarte agudo do miocárdio é a complicação mais temida e a principal causa de mortalidade. Embora possa ocorrer na fase aguda, é mais habitual na fase subaguda e crónica, quando as lesões coronárias sofrem remodelação. Pode inclusivamente ocorrer mais tardiamente em consequência destas lesões. A experiência da angioplastia coronária por via percutânea é muito limitada em crianças, pelo que nos casos mais graves está indicada cirurgia de revascularização coronária ou transplantação cardíaca.

SEGUIMENTO E PROGNÓSTICO

A actuação a longo prazo deve ser adequada ao grau de compromisso coronário. Existem critérios de estratificação de risco que determinam recomendações relativas a terapêutica antiagregante e hipocoagulante, actividade física e vigilância cardiológica.

Salienta-se que o ecocardiograma deve ser realizado precocemente na fase aguda da doença, e 6 a 8 semanas, após o seu início com o intuito de verificar a eficácia da terapêutica. Na presença de alterações ecocardiográficas, a periodicidade deste exame complementar deverá ser mais estreita. No caso de recorrência (novo episódio com início 3 meses após o inaugural e após normalização da velocidade de sedimentação), o tratamento deve ser semelhante ao inicial.

O paciente deverá ser observado periodicamente para detecção precoce de arritmias, miocardite, regurgitação valvular e insuficiência cardíaca.

A actividade física é limitada pelo próprio doente no período de recuperação, podendo durar algumas semanas. Outras restrições deverão ser impostas apenas nas crianças com risco aumentado de trombose e, particularmente, na presença de aneurismas.

A administração de vacinas vivas atenuadas (como a VASPR e a vacina antivaricela) deve ser adiada, uma vez que os anticorpos adquiridos passivamente através da IGIV persistem até 11 meses, podendo interferir na imunogenicidade. A vacina antivaricela não deverá também ser administrada enquanto durar a terapêutica com salicilatos pelo risco teórico associado de síndroma de Reye. Para diminuição do risco desta síndroma, salienta-se ainda a importância da vacinação antigripe nas crianças submetidas a terapêutica crónica com AAS.

Na presença de um surto de sarampo e caso a criança não esteja imune, a respectiva vacina deve ser administrada e repetida 11 meses mais tarde. O restante calendário vacinal deverá ser cumprido em obediência ao Programa Nacional de Vacinação.

O prognóstico a longo prazo, designadamente quanto à probabilidade de doença aterosclerótica futura, ainda não está bem estabelecido, uma vez que o seguimento destes doentes está actualmente limitado a cerca de 45 anos. Por outro lado, mesmo naqueles em que não se desenvolvem alterações coronárias macroscópicas, nem se verificam alterações ecocardiográficas, são desconhecidas as possíveis consequências da lesão celular endotelial.

Têm sido relatados casos de adultos com enfarte agudo do miocárdio ou outra patologia cardíaca e antecedentes de situação compatível com DK na infância.

É aconselhável proceder a estudo do perfil lipídico cerca de 1 ano após início da sintomatologia de DK, recomendando concomitantemente estilos de vida saudáveis, designadamente alimentação adequada, exercício físico regular e evicção de tabagismo.

AGRADECIMENTOS

O editor e os autores agradecem à Dra. Catarina Gouveia a cedência de uma imagem de ecografia referente a hidropisia vesicular.

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TRANSPOSIÇÃO COMPLETA DAS GRANDES ARTÉRIAS

Definição e importância do problema

Na transposição completa das grandes artérias (TGA) a aurícula direita (AD) comunica com o ventrículo direito (VD) e este com a aorta (AO); e a aurícula esquerda (AE) está conectada ao ventrículo esquerdo (VE) que comunica com a artéria pulmonar (AP).

Este arranjo segmentar designa-se por concordância auriculoventricular (AD>VD e AE>VE) e discordância ventrículo arterial (VD>AO e VE>AP): desta forma, as circulações sistémica e a pulmonar encontram-se em circuitos paralelos (AD>VD>AO>AD… e AE>VE>AP>AE…), em vez da circulação em série normal. Esta anomalia anatómica coloca o primeiro grande problema: como fazer chegar sangue oxigenado aos tecidos. (Figura 1)

Apesar da baixa prevalência (5 a 10% das cardiopatias congénitas), a TGA é a mais frequente das cardiopatias cianóticas com manifestações clínicas no período neonatal. Predomina no sexo masculino; nas famílias destes doentes podem existir irmãos com tetralogia de Fallot e, raramente, com TGA. A etiologia é multifactorial havendo forte associação com delecção do cromossoma 22q11.

Esta cardiopatia, se não tratada, tem elevada mortalidade no período neonatal, sendo fatal na quase totalidade dos doentes até ao primeiro ano de vida.

Anatomia

Na TGA as câmaras de saída ventriculares são paralelas. Na ausência de anomalias associadas, a espessura do ventrículo direito (que à nascença é semelhante à do ventrículo esquerdo) aumenta rapidamente tornando-se muito maior que a do ventrículo esquerdo. A relação entre as grandes artérias está alterada, colocando-se o orifício aórtico adiante e à direita do orifício pulmonar. As anomalias de origem e divisão das artérias coronárias são frequentes. Cerca de metade dos doentes com TGA não tem qualquer outra anomalia associada excepto a manutenção da permeabilidade do foramen ovale e/ou do canal arterial.

FIGURA 1. Circulação na transposição completa das grandes artérias. AD: aurícula direita; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo; AP: artéria pulmonar; 1 – comunicação interauricular; 2 – comunicação interventricular; 3 – canal arterial. (adaptado de Neches, 1998)

Podendo associar-se outros defeitos, surge, nesta circunstância, a designação de transposição complexa das grandes artérias. Em cerca de 25% dos casos existe comunicação interventricular (CIV) e, mais raramente, coarctação da aorta ou interrupção do arco aórtico. Nos casos acompanhados de CIV podem existir obstáculos na câmara de saída do ventrículo esquerdo.

Fisiopatologia

Existindo circulações sistémica e pulmonar em paralelo, acontece que o retorno venoso sistémico é dirigido para a circulação arterial sistémica e o retorno venoso pulmonar é novamente dirigido para a circulação arterial pulmonar.

Desta forma, a característica fisiopatológica mais relevante desta anomalia é a presença de saturação em O2 – Hb (SpO2) de valor mais elevado no sangue da artéria pulmonar do que no da aorta. A sobrevivência depende, pois, da existência de comunicações entre as circulações sistémica e pulmonar (canal arterial, foramen ovale e septos interauricular ou interventricular).

A presença de CIV grande melhora a cianose, mas agrava a insuficiência cardíaca congestiva à medida que, nas primeiras semanas de vida, as resistências vasculares pulmonares diminuem. A persistência do canal arterial ou a associação de coarctação da aorta podem também ser causa de insuficiência cardíaca.

Na TGA com CIV ocorre frequentemente (80% dos casos) evolução para doença vascular pulmonar até aos 12 meses de vida se a anomalia não for tratada precocemente.

Mas, também pode ocorrer esta alteração vascular pulmonar em cerca de 20% das crianças com TGA e septo interventricular íntegro; tal evolução, acompanhada de cianose mais acentuada e evolução irreversível, associa-se raramente à presença de artérias colaterais sistémico-pulmonares, embora em geral a etiologia seja mal conhecida e provavelmente geneticamente determinada.

Por outro lado, se existir estenose pulmonar (subvalvular ou valvular) grave, o fluxo pulmonar diminui com agravamento da cianose e acidose metabólica.

Manifestações clínicas

Existem dois modos de apresentação predominantes: 1) cianose acentuada precoce nos casos com septo interventricular intacto ou quando existe CIV associada a estenose pulmonar importante; 2) insuficiência cardíaca nos casos com shunts importantes, sendo que a cianose pode ser muito ligeira e detectar-se apenas no fim do primeiro mês de vida.

Realça-se que, perante um recém-nascido com cianose, depois de excluída a causa pulmonar, deve sempre admitir-se a possibilidade de se tratar de transposição das grandes artérias, principalmente na ausência de sopros e de outros sinais de doença cardíaca.

A auscultação cardíaca evidencia aumento da intensidade do primeiro ruído, e o segundo ruído parecendo único. Na forma isolada não se auscultam sopros. Caso tal aconteça, os referidos sopros são representativos das lesões associadas.

Exames complementares

Gasometria

Perante um recém-nascido com cianose é fundamental excluir todas as causas não cardíacas desta situação, em particular, a patologia pulmonar, mais frequente, que condiciona sintomatologia idêntica à de causa cardíaca. A realização de gasometria arterial ou capilar pode ser esclarecedora: na TGA a pressão arterial do oxigénio (PaO2) raramente excede 40 a 50 mmHg. A administração de oxigénio (prova de hiperóxia – administração de O2 a 100% durante 10 minutos) não provoca alteração da SpO2 no sangue arterial, o que permite o diagnóstico diferencial com doenças pulmonares (nestas, a administração de O2 melhora a referida saturação). Também é importante notar que na TGA a hipoxemia se acompanha de pressão arterial do dióxido de carbono (PaCO2) normal ou diminuída, enquanto nos casos de cianose, causada por patologia pulmonar, existe habitualmente aumento da PaCO2.

Radiografia do tórax

Na radiografia do tórax em projecção póstero-anterior o índice cardiotorácico e a vascularização pulmonar são normais; a largura do mediastino superior está diminuída (devido à posição relativa da aorta e da artéria pulmonar, e à redução das dimensões do timo) apresentando a imagem cardíaca a forma de “ovo deitado”. (Figura 1)

Na presença de TGA com CIV geralmente existe cardiomegalia com silhueta cardíaca típica e aumento da vascularização pulmonar; nas situações com obstáculo pulmonar associado, a silhueta cardíaca é de dimensões normais, ovóide, e existe diminuição da vascularização pulmonar (oligoémia).

FIGURA 2. Radiografia do tórax de recém-nascido com TGA simples (imagem da esquerda), e com CIV (imagem da direita). Evidenciando-se na primeira a forma ovóide da silhueta cardíaca e a vascularização pulmonar normal, na segunda existe cardiomegalia, ainda com silhueta ovóide e aumento da vascularização pulmonar

Electrocardiograma

O electrocardiograma pode ser normal, apresentando o predomínio direito típico dos recém-nascidos nos primeiros dias, e evoluindo, depois, para hipertrofia ventricular direita. As perturbações da condução são frequentes e existem sinais de hipertrofia ventricular direita. Também pode ocorrer hipertrofia ventricular esquerda se houver obstrução da câmara de saída do ventrículo esquerdo e hipertrofia biventricular na presença de comunicação interventricular grande.

Ecocardiograma

O ecocardiograma permite estabelecer o diagnóstico e planear a terapêutica, nomeadamente esclarecendo a patologia associada e a morfologia dos shunts funcionais fundamentais (foramen ovale e canal arterial). Actualmente as capacidades de definição da imagem dos aparelhos de ecocardiografia permitem a identificação morfológica, localização e função das artérias coronárias, elementos fundamentais para o planeamento terapêutico. (Figura 3)

A ecocardiografia é ainda fundamental para a realização de atriosseptostomia de Rashkind. Este procedimento deve ser realizado em todos os recém-nascidos com transposição das grandes artérias, mesmo na presença de comunicação interventricular; exceptuam-se os casos em que coexiste comunicação interauricular grande, porque o shunt interauricular assegura melhor mistura dos fluxos durante todo o ciclo cardíaco, em comparação com o que acontece se existir interventricular. Esta manobra é realizada com apoio de ecocardiografia, na sala de hemodinâmica, ou, em caso de emergência, à cabeceira do doente, apenas com visualização por ecocardiografia.

FIGURA 3. Ecocardiograma em caso de TGA, demonstrando em eixo curto (imagem da esquerda) a relação ântero-posterior da aorta (AO) e artéria pulmonar (PA) e, em eixo longo (imagem da direita), a saída paralela dos vasos, com a PA comunicando com o ventrículo esquerdo, posterior, e AO ao ventrículo direito, anterior

Cateterismo cardíaco

Este método diagnóstico não é imprescindível para o diagnóstico uma vez que, através da ecocardiografia, se consegue actualmente efectuar o diagnóstico morfológico e funcional com acuidade.

Contudo, utiliza-se para a realização de determinados procedimentos como a atriosseptostomia com balão de Rashkind e Miller, a qual pode ser necessária para a sobrevivência da criança nos primeiros dias de vida. Recorda-se que esta técnica consiste na passagem brusca, através do septo interauricular, dum cateter munido de um balão com soro, permitindo criar uma comunicação entre as duas aurículas.

Tratamento

Tratamento de suporte

Consiste na correcção da acidose metabólica e da hipoglicemia, administração de oxigénio e de prostaglandina E1 com o objetivo de manter a permeabilidade do canal arterial.

Qualquer recém-nascido com cianose e suspeita diagnóstica de TGA deve ser transportado em ambulância devidamente medicalizada do INEM para um centro médico-cirúrgico de cardiologia pediátrica.

A atriosseptostomia de Rashkind é também considerada uma manobra de suporte, pois permite estabilizar e melhorar as saturações do recém-nascido.

Tratamento cirúrgico

O tratamento da TGA é a correcção cirúrgica para restabelecimento da anatomia e funcionalidade normal das circulações.

A correcção anatómica (operação de Jaténe ou switch arterial) é a técnica utilizada. Consiste na secção da aorta e da artéria pulmonar acima do orifício valvular, sutura da aorta com o orifício valvular da pulmonar, e da pulmonar com o orifício valvular da aorta, e também transferência das artérias coronárias para a “nova” aorta. Deve ser realizada nas primeiras semanas de vida enquanto o ventrículo esquerdo mantém a capacidade de adaptação a pressões sistémicas.

Nos casos de apresentação tardia (idade superior a um mês), pode ser necessário fazer previamente banding da artéria pulmonar de modo a provocar hipertrofia do ventrículo esquerdo, e a preparar este para gerar pressões sistémicas após a correcção anatómica.

 Nos casos acompanhados de doença vascular pulmonar irreversível, opta-se por fazer a correção anatómica mantendo a CIV aberta (ou criando uma CIV “de novo”).

Os resultados finais da técnica cirúrgica referida, comportando mortalidade inferior a 5%, dependem fundamentalmente da presença de lesões associadas, ou de anomalias das artérias coronárias, em particular na presença de coronária única.

Os problemas detectados no seguimento dos doentes operados de correcção anatómica (oclusão/estenose das artérias coronárias, estenose supravalvular e dos ramos das artérias pulmonares, e regurgitação da “nova” válvula aórtica) têm vindo a diminuir de incidência com o aperfeiçoamento da técnica cirúrgica. Contudo, requerem observações seriadas e planeamento de exames complementares para detecção de alterações e eventual tratamento ulterior.

Prognóstico

A mortalidade das crianças não tratadas atingia, em décadas anteriores, cerca de 90% no primeiro ano de vida. Actualmente, graças aos progressos das terapêuticas médica e cirúrgica, consegue-se uma sobrevivência superior a 90% até à idade adulta, com uma boa qualidade de vida.

Nota importante: Nos casos de TGA deve proceder-se a profilaxia da endocardite bacteriana.

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TETRALOGIA DE FALLOT

Definição e importância do problema

As principais anomalias que definem a tetralogia de Fallot são: obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito (por desvio anterior do septo infundibular) e comunicação interventricular (grande, localizada na porção perimembranosa subaórtica do septo).

Classicamente descrevem-se mais duas alterações – hipertrofia do ventrículo direito (secundária ao obstáculo direito) e “cavalgamento aorto-septal” de grau variável (relacionado com o grau de desvio anterior do septo infundibular).

Descrita pela primeira vez em 1888 por Étienne-Louis Arthur Fallot, a tetralogia de Fallot é a cardiopatia congénita cianótica mais frequente após o primeiro ano de vida.

Esta cardiopatia tem uma prevalência de aproximadamente 4-5 em cada 10.000 nados-vivos, correspondendo a cerca de 7-10% de todas as cardiopatias congénitas, sem predomínio de género.

Anatomia

A anomalia embriológica exacta responsável pela tetralogia de Fallot é ainda desconhecida, admitindo-se, contudo, que o achado fisiopatológico patognomónico desta doença seja o desvio anterior e cefálico do septo infundibular. Deste desvio resulta obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito e uma comunicação interventricular (CIV) grande, mal-alinhada, localizada à região perimembranosa do septo interventricular, com dextroposição e cavalgamento da raiz da aorta sobre a CIV. A hipertrofia ventricular direita associada a esta doença é secundária à CIV grande e ao obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito, resultando em pressões ventriculares direitas sistémicas.

O obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito verifica-se habitualmente a múltiplos níveis:

  • infundibular, secundário a desvio anterior e cefálico do septo infundibular, associando-se a hipertrofia de bandas musculares;
  • valvular pulmonar, por hipoplasia do anel valvular pulmonar e por malformação da válvula pulmonar propriamente dita, frequentemente, bicúspide e estenótica;
  • supravalvular pulmonar, a nível do tronco e/ou ramos da artéria pulmonar. O predomínio é infundibular em 45% dos casos, valvular em 10%, infundibular e valvular em 30%.

Podem coexistir outras anomalias anatómicas cardíacas e extracardíacas, que ocorrem em até 40% dos doentes com tetralogia de Fallot. Em 25% dos casos o arco aórtico é direito, e em 9% há alterações das artérias coronárias. O tronco e os ramos da artéria pulmonar são, na maioria dos casos, hipoplásicos. Nalguns casos um dos ramos, habitualmente o esquerdo, não tem continuidade com o tronco pulmonar, sendo irrigado pelo canal arterial e/ou por colaterais aorto-pulmonares.

Comunicações interauriculares, comunicações interventriculares múltiplas, defeito do septo aurículo-ventricular e anomalias de conexão venosa são outras malformações encontradas.

Apesar de estarem descritos diversos genótipos associados a tetralogia de Fallot, na maioria dos casos (~75-80%) a cardiopatia em análise ocorre não associada. De salientar no entanto algumas das situações em que se verifica associação: microdeleção- del 22q11.2 (a mais comum), síndroma de Di George, síndroma de Down (trissomia 21), e síndroma de Alagille (mutação JAG1).

Fisiopatologia

A gravidade do obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito, que determina a direcção e magnitude do fluxo sanguíneo através da comunicação interventricular, condiciona o quadro clínico. Quando o obstáculo é ligeiro, predomina o shunt esquerdo-direito, pelo que não há cianose. Nos obstáculos moderados, a resistência à ejecção do ventrículo direito é semelhante à resistência vascular sistémica, pelo que o shunt é bidireccional e não há cianose em repouso. Com o exercício, diminui a resistência vascular sistémica e predomina o shunt direito-esquerdo, com a consequente cianose. Quando o obstáculo é grave, o débito pulmonar está muito reduzido e há shunt direito-esquerdo, com cianose grave.

As crises de hipóxia e a necessidade de o doente adoptar posição de cócoras (squatting) são manifestações importantes da gravidade da doença. As crises de hipóxia ou crises de cianose, mais frequentes entre os seis meses e os dois anos de idade, manifestam-se por episódios paroxísticos de cianose intensa com palidez, hiperpneia, irritabilidade e choro prolongado. Acompanham-se de hipotonia, sonolência ou perda da consciência, e podem provocar convulsões, acidente vascular cerebral ou mesmo morte. Durante as crises, diminuem a intensidade e duração do sopro de expulsão pré-existente (que pode mesmo desaparecer), reaparecendo quando a criança recupera. Em geral, são de curta duração (menos de 15 minutos), ocorrem de manhã ao acordar, e podem ser precipitadas pelo esforço, ambiente quente, ou poderá não haver factor desencadeante. Surgem, tanto nas crianças com cianose persistente, como nas crianças acianóticas.

As referidas crises constituem uma emergência e exigem internamento hospitalar para tratamento imediato. A diminuição da pressão parcial de oxigénio (PaO2) arterial, a acidose e hipercapnia resultantes, além de desencadearem as manifestações neurológicas, facilitam o metabolismo anaeróbio e consequente agravamento da acidémia. Esta, actuando sobre o centro respiratório, agrava a hiperpneia com consequente aumento da resistência vascular pulmonar e perpetuação do círculo vicioso.

A posição de “cócoras” (ou outra) é adoptada por crianças mais velhas com a finalidade de aliviar a cianose, dispneia ou lipotímia induzidas pelo esforço. Admite-se, pois, que a angulação e compressão das artérias femorais provocadas por esta manobra excluem da circulação o sangue insaturado dos membros inferiores e aumenta a resistência vascular periférica. Assim, com a referida postura, promove-se o incremento do fluxo pulmonar e a diminuição da hipoxémia, o que leva a que os doentes se sintam mais confortáveis.

A evolução habitual é a de agravamento do obstáculo de saída do ventrículo direito. Nas crianças não tratadas a cianose aumenta e as crises de hipoxémia tornam-se mais frequentes, mais graves e mais prolongadas, podendo ser fatais. A hipóxia crónica estimula a medula óssea a aumentar a produção de eritrócitos (através da libertação de eritropoietina renal). A policitémia compensatória é útil até que o hematócrito atinja valores perto de 70%. A partir deste valor, o aumento da viscosidade do sangue e a diminuição da capacidade de extracção de O2 aumentam o risco de tromboses arteriais (principalmente pulmonares e cerebrais). Por outro lado, as alterações da coagulação secundárias à hipóxia aumentam o risco de acidente vascular cerebral e de abcesso cerebral, sobretudo se associadas a anemia ferropénica.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica do doente com tetralogia de Fallot está dependente do grau de obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito.

Se o obstáculo for ligeiro, as manifestações ocorrem entre as quatro e as seis semanas de vida com clínica de insuficiência cardíaca por hiperfluxo pulmonar, com taquipneia, recusa alimentar e má progressão ponderal, e sem cianose. Assemelha-se ao quadro clínico de uma comunicação interventricular de grandes dimensões.

Nos casos com obstáculo moderado, os recém-nascidos estão acianóticos e a doença é diagnosticada no decurso da investigação de sopro sistólico detectado nas primeiras semanas de vida. A cianose surge normalmente entre os seis e dezoito meses de idade, à medida que aumenta o obstáculo. Inicialmente intermitente, manifestando-se apenas durante o choro, mamadas ou outra actividade física, torna-se persistente e associada a cansaço e/ou lipotímia.

Os recém-nascidos com obstáculo grave apresentam, logo nos primeiros dias de vida, cianose que se agrava com o encerramento do canal arterial; por vezes esta forma é canal dependente e requer infusão de prostaglandinas, para manter a permeabilidade do canal arterial.

Dependendo da gravidade da doença, pode haver: cianose, atraso da progressão estaturo-ponderal, hipocratismo digital ou taquipneia. A cianose pode ser evidente apenas nas mucosas, ou estar ausente (“mascarada”) pela existência de anemia. O hipocratismo digital – que consiste no alargamento e aumento de espessura das extremidades dos dedos (dedos em “baqueta de tambor”), acompanhado do aumento da convexidade das unhas (unhas em “vidro de relógio”) – só é evidente quando há hipoxémia significativa e mantida; é raro o seu aparecimento antes dos seis meses de idade.

Na auscultação cardíaca o primeiro ruído é normal, e o segundo ruído é geralmente único. Pode auscultar-se estalido de expulsão aórtica (por dilatação da aorta ascendente). Geralmente ausculta-se sopro de ejecção, crescendo – decrescendo, tonalidade rude, mais audível no terceiro espaço intercostal junto do bordo esquerdo do esterno, com irradiação posterior, para o dorso. O sopro tem origem na zona de estenose infundibular (não na comunicação interventricular), e a sua intensidade e duração são inversamente proporcionais ao grau de estenose. Nas formas ligeiras o sopro é intenso e longo; nas estenoses moderadas é em crescendo – decrescendo; e, nas formas graves, é menos intenso e curto, podendo mesmo desaparecer durante episódios de hipóxia. Os sopros contínuos são audíveis na presença de persistência do canal arterial ou colaterais sistémico-pulmonares.

Exames complementares

Radiografia do tórax

A silhueta cardíaca evidencia as seguintes características: dimensões normais, concavidade do arco pulmonar, ponta levantada (coração em forma de bota), e diminuição da vascularização pulmonar. (Figura 1)

Nas crianças acianóticas a radiografia pode ser normal. Um arco aórtico direito pode ser visualizado em 25% dos doentes.

FIGURA 1. Radiografia de tórax (póstero-anterior) evidenciando: silhueta cardíaca com ponta levantada, compatível com hipertrofia ventricular direita, reentrância do arco pulmonar, e diminuição da vascularização pulmonar (tetralogia de Fallot)

Electrocardiograma

Os achados mais comuns são o desvio direito do eixo de QRS (entre +90º e +150º) e hipertrofia ventricular direita, com ondas R dominantes em V4R e V1, transição brusca de V1 para V2 e ondas S dominantes em V6. (Figura 2)

Nos casos de obstrução grave infundibular verifica-se uma transição brusca mais precoce, de V3R para V4R ou V4R para V1

Ecocardiograma

O ecocardiograma bidimensional é, actualmente, o método diagnóstico de eleição para avaliação de doentes com tetralogia de Fallot, permitindo avaliar as características anatómicas e funcionais (comunicação interventricular, câmara de saída do ventrículo direito, válvula pulmonar, tronco e ramos da artéria pulmonar) e, também, identificar lesões associadas. O estudo com Döppler quantifica o gradiente de pressão na zona do obstáculo pulmonar. (Figura 3)

FIGURA 2. Electrocardiograma na tetralogia de Fallot: ritmo sinusal, eixo QRS no quadrante inferior direito e sinais de hipertrofia ventricular direita com transição brusca dos complexos ventriculares em V1-V2

FIGURA 3. Ecocardiografia de tetralogia de Fallot em incidência parasternal; eixo longo: comunicação interventricular (CIV) com cavalgamento da aorta (AO) sobre o septo interventricular de 40%. (AE: aurícula esquerda; VE: ventrículo esquerdo; VD: ventrículo direito)

Cateterismo cardíaco

O cateterismo cardíaco diagnóstico encontra-se reservado para casos específicos: – nos quais o estudo ecocardiográfico não permita obter dados definitivos ou; – nos quais exista discrepância entre a anatomia e a evolução clínica encontrada. É sobretudo útil para uma caracterização pré-operatória detalhada da árvore pulmonar arterial, das anomalias das artérias coronárias e das colaterais sistémico-pulmonares. (Figura 4)

O cateterismo de intervenção é utilizado em recém-nascidos e lactentes com obstáculo pulmonar a múltiplos níveis (infundibular e valvular pulmonar) e cianose. Nestes doentes, a dilatação percutânea paliativa da válvula pulmonar permite melhorar o fluxo pulmonar, com a finalidade de evitar a realização de anastomose sistémico-pulmonar cirúrgica e promover o crescimento do anel e dos ramos da artéria pulmonar, diminuindo, assim, a necessidade de alargamento cirúrgico do anel com remendo transanular.

Ressonância magnética

A ressonância magnética cardíaca é actualmente um método fundamental no seguimento a longo prazo de doentes com tetralogia de Fallot corrigida cirurgicamente, especialmente em adolescentes e adultos. Permite uma avaliação anatómica e funcional detalhada destes doentes, nomeadamente quantificação das dimensões e função biventricular, detecção de regiões aneurismáticas ou acinéticas do ventrículo direito e sua função contráctil, avaliação dos ramos da artéria pulmonar, documentação de lesões residuais, nomeadamente estenoses e CIV residuais, e quantificação do grau de regurgitação pulmonar pós-operatório, de dilatação da raiz da aorta e do grau de fibrose.

FIGURA 4. Ventriculografia direita em tetralogia de Fallot – visualiza-se em simultâneo: aorta (AO), artéria pulmonar (AP), obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito (infundibular – seta). Boa anatomia dos ramos da artéria pulmonar

Tratamento

O tratamento dos doentes com tetralogia de Fallot (TOF) engloba o tratamento médico inicial, procedimentos cirúrgicos paliativos e de reparação intracardíaca, e o tratamento das complicações pós-operatórias.

Tratamento médico

A maioria dos doentes não necessita de tratamento no período neonatal. A excepção é constituída pelos casos com obstáculo pulmonar grave e oligoémia, e que se apresentam com cianose grave no período neonatal, após encerramento do canal arterial. Em tais circunstâncias, é necessária a utilização de prostagladinas de modo a promover a permeabilidade do canal arterial e a assegurar fluxo pulmonar, até realização de cirurgia precoce.

Em lactentes assintomáticos, acianóticos ou com cianose ligeira está recomendada a medicação com propranolol oral (dose 1-4 mg/kg/dia de 6/6h), com início aos três meses de idade, ou antes se agravamento do obstáculo pulmonar, com vista a prevenir o espasmo infundibular e o desenvolvimento de crises de hipóxia. É ainda recomendada a suplementação com ferro e multivitaminas, de modo a prevenir anemia, nomeadamente ferropénica. Os valores hematológicos devem ser avaliados periodicamente e a anemia ferropénica tratada. Valores normais de hemoglobina ou hematócrito numa criança cianótica indicam anemia.

As crises de hipóxia devem ser encaradas, como foi referido, como emergências. A criança deve ser colocada na posição genupeitoral com a cabeça mais baixa que os membros inferiores, e mantida em ambiente pouco aquecido. Estas medidas têm como objectivo aumentar a resistência vascular sistémica, o que diminuirá o shunt direito-esquerdo.

Deve ser administrado oxigénio, pelo seu efeito vasodilatador pulmonar e vasoconstritor sistémico. Na falência das medidas anteriores, deve ser administrado sulfato de morfina (0,1 mg/kg/dose por via subcutânea, intramuscular ou endovenosa) e expansão com volume (10-20 ml/kg, com soro fisiológico). O mecanismo de acção da morfina, desconhecido, resulta provavelmente da sua acção inotrópica e cronotrópica negativas, pelo seu efeito depressor do centro respiratório, e por quebrar o ciclo de hipóxia e agitação. O bolus de volume melhora o fluxo pulmonar anterógrado por aumento da pré-carga do ventrículo direito.

Deve ainda ser feita correcção da acidose metabólica com bicarbonato de sódio (1 mEq/kg).

A administração de propranolol (0,01 mg/kg por via intramuscular ou endovenosa) deve ser efectuada em unidades de cuidados intensivos. O propranolol exerce a sua acção através de um mecanismo cronotrópico e inotrópico negativos, com relaxamento da câmara de saída do ventrículo direito e melhoria do fluxo sanguíneo pulmonar. Se esta acção for insuficiente, a pós-carga sistémica pode ser aumentada através da administração de fenilefrina por via intravenosa (5 a 20 mcg/kg por dose). O propranolol por via oral (1-5 mg/kg/dia de 6/6 h) deve ser utilizado para profilaxia de novas crises. Depois de se tratar a crise de hipóxia e de se estabilizar o doente, deve promover-se o seu tratamento cirúrgico urgente tendo em atenção que, quando todas as medidas anteriores falham, o doente deve ser proposto para cirurgia cardíaca correctiva ou paliativa emergentes.

Todos os doentes (operados com lesões residuais ou não operados) devem ser submetidos a profilaxia da endocardite infecciosa.

Tratamento cirúrgico

O tratamento da tetralogia de Fallot é cirúrgico electivo, devendo ser realizado no primeiro ano de vida, preferencialmente nos primeiros seis meses de vida. Em função das capacidades técnicas dos centros, o tratamento tem-se realizado cada vez mais precocemente. A policitemia e as crises de hipóxia são indicações para tratamento cirúrgico mais precoce.

Classicamente os doentes eram submetidos primariamente a cirurgia paliativa, com o objectivo de aumentar o fluxo pulmonar e diminuir o grau de cianose.

Actualmente, a cirurgia paliativa está indicada apenas nos casos: – graves de tetralogia de Fallot, com hipoplasia dos ramos da artéria pulmonar; – que apresentem contraindicação para cirurgia cardíaca correctiva sob circulação extracorporal, nomeadamente por prematuridade, baixo peso; – que apresentem anatomia desfavorável. Constitui uma emergência nos lactentes com crises de hipóxia não controláveis com terapêutica médica.

Utiliza-se a anastomose de Blalock-Taussig, modificada, entre a artéria subclávia e os ramos da artéria pulmonar com interposição de um tubo de Gore-Tex®. Mais recentemente tem-se optado pela construção de um shunt central com interposição de tubo de Gore-Tex 3,5 mm, que apresenta como vantagens evitar distorções dos ramos das artérias pulmonares e complicações ortopédicas das toracotomias.

A cirurgia de correcção anatómica tem como objectivos: – desobstruir a câmara de saída do ventrículo direito; – separar a circulação sistémica da pulmonar; – preservar a função ventricular direita; – minorar o grau de regurgitação pulmonar pós-operatória.

Consiste no encerramento da comunicação interventricular com remendo, separando, assim, as circulações sistémica e pulmonar, e alargamento da câmara de saída do ventrículo direito, desobstruindo assim o fluxo pulmonar. O alargamento da câmara de saída do ventrículo direito é realizado através de valvulotomia pulmonar, ressecção de bandas musculares infundibulares e septo-parietais e, se necessário, alargamento do anel pulmonar com colocação de remendo de homoenxerto com válvula pulmonar mono cusp.*

*Válvula mono cusp significa que a substituição da válvula do doente é feita utilizando um enxerto valvular em que existe uma cúspide valvular com a finalidade de evitar insuficiência valvular.

Prognóstico

O prognóstico a curto-médio prazo é excelente para lactentes e recém-nascidos submetidos a cirurgia cardíaca correctiva, com uma taxa de mortalidade perioperatória de 0 a 3%. As lesões residuais (obstrução da câmara de saída do ventrículo direito e/ou regurgitação pulmonar) de grau ligeiro são bem toleradas. Numa pequena percentagem de doentes poderá haver necessidade de reoperação para corrigir comunicações interventriculares residuais ou obstáculo pulmonar evolutivo.

O prognóstico a médio prazo dos doentes com tetralogia de Fallot é igualmente favorável, com uma taxa de sobrevivência de 90% aos 30 anos. É, contudo, expectável a necessidade de múltiplas intervenções terapêuticas ao longo da vida, e uma esperança média de vida inferior à da população geral. Os doentes com tal patologia devem manter seguimento regular pelo risco de complicações tardias, presentes em 15% dos doentes aos 20 anos de seguimento. No que respeita a complicações, as mais frequentes incluem: – o desenvolvimento progressivo de regurgitação pulmonar associada a dilatação e disfunção ventricular direita; – obstáculos residuais da câmara de saída do ventrículo direito, com necessidade de reintervenção cirúrgica ou percutânea; – dilatação da raiz da aorta; e – arritmias e morte súbita cardíaca.

As alterações do ritmo cardíaco são as complicações tardias mais frequentes após a cirurgia; na maioria das vezes correspondem a bloqueio de ramo direito, taquicardias auriculares e ventriculares, com risco aumentado de morte súbita cardíaca.

A maioria dos doentes fica assintomática, sem necessidade de terapêutica e com razoável tolerância ao exercício. Na ausência de lesões residuais significativas a gravidez é bem tolerada.

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ESTENOSE PULMONAR

Definição e anatomia

Entende-se por estenose pulmonar qualquer obstrução à saída do ventrículo direito, a qual pode ocorrer a vários níveis: valvular, subvalvular e supravalvular.

Neste capítulo é abordada apenas a estenose pulmonar valvular isolada, ou seja, estenose pulmonar com septo interventricular intacto e sem patologia associada.

Os dois tipos anatómicos mais frequentes são: a) válvula pulmonar em cúpula (dome) que corresponde a 42% dos casos e apresenta fusão das comissuras; b) válvula pulmonar displásica, presente em 19% dos casos, caracterizada por folhetos espessados e redundantes, sem fusão das comissuras. Em ambas pode haver espessamento variável dos folhetos valvulares e redução do orifício de abertura valvular. Na presença de displasia, o obstáculo é produzido essencialmente pelo excesso de tecido valvular associado a uma reduzida dimensão do anel.

A estenose valvular pulmonar é uma das cardiopatias congénitas mais frequentes, representando cerca de 7 a 12% dos casos em idade pediátrica e 15% na idade adulta. Ocorre associada a outras cardiopatias congénitas em cerca de 50%. Não existe predomínio por sexos (distribuição ~1/1).

Fisiopatologia

A principal consequência da estenose pulmonar é a elevação da pressão ventricular direita. Esta elevação da pressão é proporcional à gravidade da estenose e destina-se a manter o débito cardíaco. O aumento da pressão provoca hipertrofia ventricular direita, também proporcional à gravidade do obstáculo. Quando é excedida a capacidade de o ventrículo direito gerar a pressão necessária para ultrapassar o obstáculo, surge insuficiência ventricular direita, e a hipertrofia dá lugar à dilatação. Trata-se duma situação extrema, observada em dois grupos de doentes: os recém-nascidos que têm uma reserva cardíaca muito limitada; e, mais raramente, nos casos de estenose pulmonar grave diagnosticada tardiamente.

Manifestações clínicas

A estenose pulmonar classifica-se de acordo com a gravidade do obstáculo. Esta gravidade é estimada em termos de gradiente de pressão sistólica entre o ventrículo direito e artéria pulmonar, e da relação entre as pressões sistólicas dos ventrículos direito e esquerdo (ou pressão sistémica). Não existe unanimidade entre os autores quanto aos valores limite das pressões e dos gradientes para quantificar a gravidade, mas geralmente considera-se que a estenose é ligeira quando o gradiente de pressão transvalvular pulmonar é igual ou inferior a 30 mmHg, e a pressão no ventrículo direito é igual ou inferior a metade da pressão sistémica.

A estenose pulmonar é moderada quando o gradiente transvalvular se situa entre 30 mmHg e 50 mmHg, ou a pressão no ventrículo direito é superior a metade da pressão sistémica.

A estenose é grave quando o gradiente transvalvular é superior a 60 mm Hg, ou a pressão do ventrículo direito é igual ou superior à pressão sistémica. Os doentes estão geralmente assintomáticos e a curva de crescimento é normal. Ausculta-se sopro de expulsão (em crescendo – decrescendo), audível sobre o bordo esquerdo do esterno, com irradiação para o lado direito do pescoço, de duração variável; o pico de intensidade é tanto mais tardio quanto mais grave for a estenose. O sopro é antecedido por um estalido protossistólico de abertura da válvula pulmonar, mais audível no segundo ou terceiro espaço intercostal esquerdo; a sua intensidade varia com a respiração, aumentando na expiração. O primeiro ruído é normal e o segundo ruído tem desdobramento largo, mas variável com a respiração.

Na estenose valvular muito grave o estalido é inaudível e o componente aórtico do segundo ruído poderá estar englobado no sopro. Este grupo de doentes, particularmente no período neonatal, pode apresentar-se com cianose devido a shunt direito-esquerdo através do foramen ovale patente, devido à reduzida distensibilidade ventricular direita. A estenose pulmonar crítica do recém-nascido pode apresentar ventrículo direito de cavidade pequena e hipertrofia muito acentuada; neste caso o débito pulmonar pode estar dependente do shunt esquerdo-direito do canal arterial.

Nos casos de válvula pulmonar displásica a auscultação cardíaca é atípica, não se ouvindo estalido de abertura, independentemente da gravidade do obstáculo.

Na estenose pulmonar subvalvular ou infundibular também não se ouve estalido de abertura, há diminuição da intensidade do componente pulmonar do segundo ruído e o sopro de expulsão tem duração inversamente proporcional à gravidade do obstáculo.

A estenose supravalvular e a estenose dos ramos da artéria pulmonar são raras e ocorrem associadas a síndromas como de rubéola congénita, Noonan, Williams, Alagille, e a cardiopatias congénitas complexas. Nestes casos o sopro de expulsão irradia amplamente, sendo audível também na face posterior do tórax.

Exames complementares

Electrocardiograma

O electrocardiograma (ECG) é bastante confiável para estimar a gravidade do obstáculo pulmonar. Nas estenoses ligeiras, o ECG é normal ou apresenta apenas ligeiro desvio direito do eixo do QRS no plano frontal. A amplitude das ondas R nas derivações pré-cordiais direitas é inferior a 15 mm.

Na estenose pulmonar moderada há sinais de hipertrofia ventricular direita: desvio direito do eixo do QRS e inversão da relação R/S em V1; a amplitude de R é, em regra, inferior a 20 mm, e a relação R/S igual ou superior a 4/1. A onda T pode ser positiva em V1.

Na estenose pulmonar grave observam-se sinais de hipertrofia ventricular direita acentuada, com desvio direito do eixo de QRS (superior a +150º) e padrão “qR” ou “Rs” nas derivações pré-cordiais direitas ou onda “R pura”, de amplitude superior a 20 mm. A relação R/S em V1 está invertida. Nos casos mais graves, a onda P tem uma amplitude superior a 2,5 mm, sugestiva de dilatação da aurícula direita, podendo surgir alterações de ST-T de isquemia, por sobrecarga de pressão. (Figura 1)

FIGURA 1. ECG sugestivo de hipertrofia ventricular direita em criança com estenose valvular pulmonar

Radiografia do tórax

A procidência do arco pulmonar na silhueta cardíaca, correspondente à dilatação pós-estenótica do tronco da artéria pulmonar e da porção proximal do ramo esquerdo, está presente em 90% dos casos, mas não tem relação com a gravidade da estenose. A sua existência é rara nos recém-nascidos e nos doentes com válvula pulmonar displásica. Nos casos com estenose ligeira ou moderada, as dimensões da silhueta cardíaca e a vascularização pulmonar são normais.

Nos casos graves, como o da estenose pulmonar crítica do recém-nascido, poder-se-á observar cardiomegália por dilatação da aurícula direita, e redução da vascularização pulmonar por diminuição significativa do volume de ejecção, tendo em conta o shunt direito-esquerdo através do foramen ovale patente.

Ecocardiografia

A ecocardiografia bidimensional permite a visualização das anomalias morfológicas da válvula pulmonar, a dilatação pós-estenótica, a hipertrofia ventricular direita e outros defeitos cardíacos eventualmente associados. Como método de Döppler estima-se o gradiente transvalvular pulmonar que se correlaciona bastante bem com a medição directa obtida por cateterismo cardíaco, o que permite quantificar a gravidade do obstáculo.

Cateterismo cardíaco

Está indicado apenas nos doentes que vão ser submetidos a intervenção terapêutica. Permite determinar a pressão no ventrículo direito (e compará-la com a pressão sistémica) e o gradiente através do obstáculo. A cineangiocardiografia evidencia a localização do obstáculo e a sua gravidade, de forma a orientar a valvuloplastia.

Tratamento

O tratamento de eleição é a valvuloplastia pulmonar por via percutânea que consiste na dilatação da válvula com um cateter de balão apropriado (Figura 2). Tal procedimento é eficaz e seguro, particularmente nos casos de válvulas pulmonares não displásicas.

FIGURA 2. Angiografia do ventrículo direito em perfil, visualizando-se a válvula pulmonar espessada e abrindo em cúpula (seta). À direita pode observar-se a valvuloplastia, neste caso efectuada com dois balões

A angioplastia percutânea das artérias pulmonares é igualmente o tratamento de primeira escolha para a estenose pulmonar supravalvular sendo, no entanto, menos eficaz que na variante valvular. O tratamento definitivo consegue-se associando a implantação de stent. Actualmente a cirurgia cardíaca está limitada aos casos de insucesso das plastias percutâneas e à estenose pulmonar subvalvular. Após tratamento bem sucedido, os doentes podem ter um estilo de vida sem restrições, incluindo actividade desportiva.

Nota Importante: De acordo com os conceitos actuais só têm indicação para profilaxia da endocardite bacteriana, os doentes submetidos a tratamento cirúrgico com utilização de remendos, os submetidos a tratamento percutâneo com implantação de stent, e naqueles que têm outras anomalias associadas.

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SÍNDROMA DO CORAÇÃO ESQUERDO HIPOPLÁSICO

Definição e importância do problema

Por síndroma do coração esquerdo hipoplásico (SCEH) entende-se um conjunto de anomalias caracterizadas por hipodesenvolvimento do ventrículo esquerdo, válvulas mitral e aórtica, e da aorta. Este defeito representa cerca de 1% de todas as cardiopatias congénitas e 9% das cardiopatias do recém-nascido. Predomina no sexo masculino (cerca de 67% dos doentes) e, em mais de 10% dos doentes, existem anomalias extracardíacas associadas. Trata-se da cardiopatia com mais elevada mortalidade durante o primeiro mês de vida (95%) na ausência de tratamento.

Além das anomalias já referidas, a aurícula esquerda na SCEH é pequena; em 15% dos casos existe comunicação interauricular e em 10% o foramen ovale está permeável. Em cerca de 10% dos doentes com septo interauricular intacto e nos casos em que o foramen ovale permeável é restritivo, a mortalidade é elevada, mesmo depois da descompressão auricular esquerda.

Fisiopatologia

Durante a vida fetal, as resistências vasculares pulmonares são superiores às resistências sistémicas, e o ventrículo direito, (dominante), mantém uma pressão de perfusão normal na aorta descendente e placenta através do canal arterial. A aorta proximal, as coronárias e as artérias cerebrais são perfundidas por via retrógrada, razão pela qual o feto com SCEH tolera bem esta grave patologia cardíaca. Após o nascimento, verifica-se:

  1. inversão das resistências vasculares (resistência sistémica > resistência pulmonar), aumento da pressão na aurícula esquerda e consequente encerramento do foramen ovale;
  2. encerramento do canal arterial, por aumento da saturação de Hb-oxigénio (SpO2) e diminuição das prostaglandinas.

Provoca-se, assim, uma acentuada redução do débito cardíaco sistémico e da pressão na aorta, desencadeando um quadro de choque circulatório e acidose metabólica. A manutenção de débito sistémico adequado depende: da permeabilidade do canal arterial com dimensões adequadas de modo a permitir ao ventrículo direito ejectar sangue para a aorta; e da existência de uma comunicação interauricular que possa descomprimir a aurícula esquerda. Se a comunicação interauricular for grande, o shunt esquerdo-direito não será restritivo e a SpO2 poderá aproximar-se de 80%. Nos casos com septo interauricular intacto ou com comunicação interauricular restritiva, haverá edema pulmonar e a SpO2 será baixa. Sem tratamento, o recém-nascido poderá morrer em pouco tempo.

Devido ao baixo débito cardíaco, existe acidose metabólica e a PaCO2 está habitualmente normal, ou até, diminuída. A hipoxémia é ligeira a moderada e os lactatos estão elevados.

O diagnóstico pré-natal desta cardiopatia tem importância fundamental, dado que nos casos com septo interauricular restritivo, poderá fazer-se septostomia ou dilatação com balão in utero (entre 26 e 34 semanas de idade gestacional).

Quando ocorre um encerramento precoce in utero do foramen ovale, a obstrução à drenagem das veias pulmonares é tão significativa que se desenvolvem linfangiectasias pulmonares que funcionam como via de descompressão do grave edema pulmonar que se instala. Tal situação comporta mortalidade de 100%, mesmo com descompressão da aurícula esquerda.

Dada a gravidade da doença e a inexistência de tratamento definitivo, em determinados centros pondera-se a interrupção da gravidez.

O diagnóstico neonatal precoce destes doentes poderá permitir a descompressão da aurícula esquerda por atriosseptostomia.

Manifestações clínicas

A SCEH manifesta-se logo nas primeiras horas de vida com o quadro típico dos obstáculos esquerdos graves: insuficiência cardíaca de baixo débito (choque), que se manifesta por dificuldade respiratória, hipoxémia, acidose, vasoconstrição das extremidades, pulsos débeis e taquicardia. Existe sempre certo grau de cianose, variável, em função do volume de shunt a nível auricular. Também coexistem os sinais típicos de aumento de débito pulmonar, traduzidos por polipneia, gemido, taquicardia e hepatomegalia. Como foi referido antes, quanto maior o débito pulmonar, menor o grau de cianose e sintomatologia mais exuberante de insuficiência cardíaca.

Na auscultação cardíaca, o segundo ruído é único e de intensidade aumentada; habitualmente não existem sopros, auscultando-se quase sempre um terceiro ruído e, frequentemente, ritmo de galope.

O baixo débito deixa os recém-nascidos prostrados e debilitados, por vezes com recusa alimentar. O quadro clínico agrava-se durante a primeira semana de vida; na ausência de terapêutica, surge desfecho fatal em poucos dias.

Exames complementares

Radiografia do tórax

Revela sinais de cardiomegalia com evidente hipertrofia do ventrículo direito e a ponta supradiafragmática. Pode ainda ocorrer dilatação da aurícula direita e sinais de congestão venosa pulmonar e de edema (por comunicação interauricular muito pequena ou ausente). Os campos pulmonares, em relação com o edema, revelam sinais de hipotransparência generalizada “tipo microgranitado/granular” ou “pulmão branco” semelhantes aos sinais habituais nos casos de infecção por Streptococcus do grupo B, ou da doença da membrana hialina no recém-nascido. (Figura 1)

FIGURA 1. Radiografia do tórax de recém-nascido com SCEH: note-se o aumento da silhueta cardíaca à custa do ventrículo direito (ponta supradiafragmática) e da artéria pulmonar; plétora e edema pulmonar

Electrocardiograma

Revela sinais de taquicardia sinusal e hipertrofia ventricular direita com padrão qR ou R exclusivo nas derivações pré-cordiais direitas e inferiores; monotonia na progressão R/S nas derivações pré-cordiais, consequente à diminuição da massa ventricular esquerda. Podem registar-se ondas R amplas nas derivações precordiais V5 e V6, as quais recolhem potenciais do ventrículo direito dilatado e hipertrofiado. Geralmente observam-se também alterações generalizadas da repolarização ventricular com T negativos; nas derivações direitas a onda T é geralmente positiva reflectindo a hipertrofia ventricular direita.

Ecocardiograma

O ecocardiograma é suficiente para fazer o diagnóstico morfológico, avaliar a gravidade da situação, estabelecer a emergência da terapêutica, avaliar a função ventricular direita, detectar regurgitação tricúspide, e identificar cardiopatias associadas. Existe, frequentemente, coarctação da aorta associada e, raramente, defeito completo do septo aurículo-ventricular e comunicação interventricular.

Na avaliação inicial do doente assume também um papel fundamental a observação da função neurológica e da perfusão cerebral através da ecografia transfontanelar, sendo sempre de mau prognóstico qualquer alteração deste sistema.

FIGURA 2. Electrocardiograma do mesmo recém-nascido da Figura 1: podem observar-se os achados típicos descritos no texto

Cateterismo cardíaco

Esta técnica está apenas indicada para intervenção em situação de emergência para realizar atriosseptostomia com cateter de balão, ou para perfuração septal e angioplastia com colocação de stent no septo interauricolar.

Tratamento

O tratamento do SCEH envolve geralmente quatro opções: (1) correcção cirúrgica, (2) paliação híbrida com banding cirúrgico das artérias pulmonares e implantação de stent no canal arterial, (3) transplante cardíaco ou (4) conduta expectante e conforto.

Tratamento médico

O tratamento médico tem como finalidade essencial a estabilização hemodinâmica através da permeabilidade do canal arterial; para tal deve iniciar-se tão cedo quanto possível a perfusão de prostaglandina E1 (dose inicial de 0,5-1 μg/Kg/min). Simultaneamente convém corrigir todas as alterações que potenciem o agravamento clínico: correcção da acidose metabólica ou outras alterações iónicas; corrigir a anemia; em casos extremos pode ser necessário proceder a ventilação mecânica e/ou suporte inotrópico, para melhorar temporariamente o quadro de baixo débito.

Tratamento cirúrgico

Na última década verificaram-se avanços consideráveis na abordagem pré, peri e pós-operatória dos doentes com SCEH.

A correcção cirúrgica prevê uma reconstrução por fases, sendo necessárias três intervenções: a primeira realizada de preferência nas duas primeiras semanas de vida; a segunda por volta dos 5-6 meses de vida; e a terceira, cerca dos 3-4 anos.

O objectivo final é criar uma separação entre as circulações pulmonar e sistémica, resultando em alívio da cianose, redução da sobrecarga de volume sobre o ventrículo direito e permitindo manter um débito cardíaco adequado, sem aumento significativo da pressão venosa central.

O risco das intervenções cirúrgicas é, contudo, ainda significativo. Um estudo multicêntrico utilizando dados colectados pela Congenital Heart Surgeons Society, descreveu os desfechos da correcção cirúrgica para SCEH. Este estudo mostrou que a sobrevida imediata após a cirurgia é de 72%. A probabilidade de sobrevida aos 5 anos é de apenas 60 a 70%.

Os objectivos da chamada abordagem híbrida, efectuada pela primeira vez em Portugal no Hospital de Santa Marta, são os de assegurar um débito sistémico não restritivo através do canal arterial (implantando um stent); facilitar o retorno venoso pulmonar através de uma ampla comunicação interauricular (angioplastia e implantação de stent); reduzir as pressões da artéria pulmonar; e, balancear os fluxos sistémico e pulmonar através da limitação do último (pela colocação de bandings em ambos os ramos principais). Tem particular indicação em doentes de alto risco (peso <3 kg; prematuridade e aortas muito hipoplásicas).

O sucesso do transplante cardíaco depende da disponibilidade de órgãos para transplante. No período neonatal, a disponibilidade de corações para transplante é reconhecidamente pequena, resultando em elevada mortalidade na lista de espera.

A atitude de prestar apenas cuidados de suporte, sem intervenção cirúrgica, é sempre questionável e tem vindo a ter cada vez menos adeptos.

Prognóstico

Os sobreviventes têm limitações de esforço físico necessitando de acompanhamento para toda a vida, exames cardiovasculares e internamentos, assim como de terapêutica médica. São frequentes várias complicações, das quais as arritmias (taquicardias auriculares ou bradiarritmias) são as mais prevalentes, a cianose de agravamento progressivo, o risco aumentado de fenómenos trombo-embólicos, a enteropatia exsudativa com perda de proteínas, bronquite, disfunção hepática com evolução para cirrose e, por fim, insuficiência cardíaca. A esperança média de vida encontra-se muitíssimo reduzida tal como referido antes, mesmo nos doentes que foram submetidos a tratamento “correcto e bem sucedido”.

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ESTENOSE AÓRTICA

Definição e importância do problema

A designação estenose aórtica abrange um conjunto de defeitos situados na região da válvula aórtica conduzindo a obstrução, à saída, do fluxo sanguíneo do ventrículo esquerdo; constitui uma forma de lesão obstrutiva esquerda. A estenose aórtica congénita, relacionada com deficiente desenvolvimento embrionário da válvula, tem na sua base etiológica multifactorial. Existe predisposição genética e corresponde a cerca de 5% das anomalias cardíacas. Até há cerca de três décadas a febre reumática era uma causa que explicava as formas adquiridas.

São conhecidos três grandes grupos de lesões com a referida localização: valvular, subvalvular e supravalvular. Pode também ocorrer em associação obstruções a diversos níveis, como na síndroma de Shone, em que se verifica geralmente obstáculo de entrada da válvula mitral, obstáculo subvalvular/valvular aórtico e coarctação da aorta.

1. ESTENOSE AÓRTICA VALVULAR

Epidemiologia e anatomia

Esta situação, na maioria congénita, abrange cerca de 75% dos casos de estenose aórtica e predomina no sexo masculino (relação 4:1). A válvula aórtica pode apresentar-se com uma, duas ou três (raramente quatro) cúspides. Cerca de três quartos dos doentes com estenose valvular possuem válvula bicúspide; esta pode ser funcionalmente normal ou apresentar estenose e regurgitação de grau variável. Com predisposição genética, decorre com doença da parede da aorta (aortopatia) caracterizada por disrupção das fibras elásticas e necrose quística da média.

A válvula aórtica bicúspide corresponde a uma situação evolutiva, evidenciando maior propensão para dilatação da raiz da aorta e da aorta ascendente, e ainda, para dissecção da aorta.

Em cerca de 15% dos doentes existe associação com outras anomalias cardíacas (canal arterial persistente, coarctação da aorta, comunicação interventricular).

Fisiopatologia

A principal consequência fisiopatológica da estenose aórtica é o aumento da pressão do ventrículo esquerdo de forma a manter-se o volume de ejecção, vencendo a sobrecarga de pressão causada pelo obstáculo. Como resposta à sobrecarga de pressão ocorre hipertrofia ventricular esquerda, com compromisso sistólico da função (e geralmente também diastólico) devido a compromisso da distensibilidade do ventrículo esquerdo, o que leva a aumento da pressão telediastólica. Pode, assim, ocorrer dificuldade da perfusão miocárdica, traduzida por isquémia comprometendo ainda mais a função ventricular, em particular em situações de esforço. Quando a hipertrofia e o aumento de pressão já não são suficientes para manter o débito cardíaco, ocorre insuficiência ventricular e surge dilatação ventricular esquerda.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas dependem da repercussão da lesão na redução débito sistémico, causando insuficiência cardíaca e, em casos extremos, síncope.

A forma de apresentação depende da gravidade da estenose e da idade em que se manifesta. A morte súbita é a manifestação clínica mais grave, com um risco estimado em 3 casos / 1.000 / ano.

A forma grave do recém-nascido não produz habitualmente manifestações clínicas de insuficiência cardíaca nos primeiros dias de vida; contudo, com o encerramento do canal arterial, pode estabelecer-se, como consequência do baixo débito cardíaco, um quadro de insuficiência cardíaca global com baixo débito sistémico e com tendência para agravamento progressivo. A intensidade deste quadro e a sua evolução variam com a estrutura e função do ventrículo esquerdo.

A forma mais grave (estenose valvular crítica) apresenta quadro precoce de baixo débito, dependente do canal arterial; as formas mais graves e de prognóstico mais reservado são aquelas em que o ventrículo esquerdo é de pequenas dimensões resultante de fibroelastose por má perfusão in utero. Nesta última situação existe elevado risco de mortalidade intrauterina.

A forma moderada a grave manifesta-se geralmente após o período neonatal com cansaço, taquipneia e hipersudorese durante a alimentação, associados a deficiente progressão ponderal. Na maioria dos casos a doença é oligossintomática, geralmente apenas suspeitada pela detecção de sopro sistólico numa avaliação clínica ocasional.

A forma ligeira é geralmente assintomática, com exame objectivo considerado normal. A doença poderá, por outro lado, ser detectada pela auscultação de sopro sistólico aórtico de ejecção, durante uma avaliação clínica de rotina. De salientar que a progressão da estenose é variável, registando-se casos em que é progressiva e se pode tornar sintomática grave.

De acordo com o que foi referido antes, os achados do exame objectivo poderão variar com a gravidade da estenose, sendo que aquele poderá ser normal. O pulso pode ser parvus (baixa amplitude) e tardus (subida lenta) e o impulso apical sustido. É frequente existir frémito suprasternal e nas carótidas. Na auscultação, o primeiro ruído é normal e o segundo ruído tem desdobramento estreito com intensidade diminuída do componente aórtico. Ausculta-se muitas vezes terceiro ruído. Frequentemente, existe estalido sistólico de abertura da válvula aórtica audível na ponta e bordo esquerdo do esterno. Ausculta-se sopro sistólico de expulsão na porção média do bordo esquerdo do esterno com irradiação para a porção superior do bordo direito e pescoço cuja intensidade é proporcional à gravidade da estenose, excepto se o débito através da válvula for extremamente reduzido.

Exames complementares

Electrocardiograma

As alterações mais frequentes e mais relacionadas com a gravidade da estenose são a hipertrofia e sobrecarga do ventrículo esquerdo: aumento da amplitude de ondas R e evolução progressiva para a inversão das ondas T, com depressão dos segmentos ST. No período neonatal e nos lactentes com formas graves existe frequentemente hipertrofia ventricular direita.

O electrocardiograma dinâmico de Holter deve fazer parte do seguimento dos doentes, pois as arritmias e as perturbações da condução ocorrem com frequência.

A prova de esforço poderá ser útil na avaliação das crianças com formas de estenose moderada, mas com sintomatologia discrepante. A ocorrência de alterações da repolarização, hipotensão, angor, arritmias graves ou síncope relaciona-se com a gravidade da estenose aórtica, podendo estabelecer a indicação para serem adoptadas atitudes interventivas.

Radiografia do tórax

Nas crianças com insuficiência cardíaca pode verificar-se aumento de dimensões da silhueta cardíaca. A cardiomegalia é, no entanto, um marcador pouco sensível da gravidade da estenose. Por vezes observa-se proeminência da aorta ascendente por dilatação pós-estenótica. É rara a calcificação da válvula nas idades pediátricas.

Ecocardiografia

Este exame complementar é actualmente o principal método de diagnóstico de estenose aórtica: permite avaliar a morfologia da válvula, determinar a localização da obstrução e quantificar a sua gravidade. O método Döppler contínuo permite calcular o gradiente de pressões na zona estenosada (inferior a 25 mmHg – estenose não significativa; entre 25 mmHg e 50 mmHg – estenose ligeira; entre 50 mmHg e 75 mmHg – estenose moderada; e superior a 75 mmHg – estenose grave).

É possível determinar a área da válvula aórtica que, por ser independente do débito cardíaco, representa de modo mais fidedigno a gravidade do obstáculo. Uma área efectiva inferior a 0,5 cm2/m2 de superfície corporal traduz estenose grave. (Figura 1)

A ecocardiografia permite ainda avaliar a existência de regurgitação aórtica e detectar a presença de outras anomalias cardíacas.

Em doentes com “má janela” acústica, ou se houver dúvidas sobre aspectos morfológicos da válvula ou da câmara de saída do ventrículo esquerdo, deve utilizar-se a ecocardiografia transesofágica. Para a quantificação da função ventricular e da fracção de regurgitação, quando presente, o melhor método é a angiorressonância magnética.

FIGURA 1. Ecocardiografia com avaliação por Döppler contínuo do gradiente através da válvula aórtica (gradiente de pico 79,7 mmHg e médio 42,2 mmHg), à esquerda e plano paraesternal longo mostrando a válvula aórtica espessada (Ao V) e a hipertrofia do septo (ISV) e do ventrículo esquerdo (LV) (MV – válvula mitral e LA – aurícula esquerda)

Tratamento

A actuação nos casos de estenose aórtica (designadamente nas formas de estenose grave e sintomática, ou com alterações electrocardiográficas evidenciando sinais de sobrecarga de pressão ventricular) tem por objectivo a prevenção da disfunção irreversível do ventrículo esquerdo e da morte súbita, assim como o alívio dos sintomas.

O tratamento consiste na eliminação ou diminuição mecânica do obstáculo por: – intervenção cirúrgica, método preferencial em recém-nascidos e lactentes, ou por: – valvuloplastia percutânea de balão, geralmente utilizada em crianças mais velhas e com estenose valvular isolada.

A valvuloplastia percutânea é realizada através da insuflação de um balão na válvula aórtica; a mesma comporta mortalidade média de cerca de 2,4%, mais elevada nos lactentes com menos de 3 meses. Este procedimento é eficaz, com redução de imediato do gradiente transvalvular, mas a longo prazo é grande a taxa de recorrência. A complicação mais frequente é o aparecimento ou o agravamento de insuficiência aórtica.

A vantagem principal da valvuloplastia por balão é adiar a cirurgia, que continuará a ser necessária em muitos doentes.

A cirurgia comporta mortalidade baixa (cerca de 2%), excepto nas formas neonatais graves. Na valvulotomia aumenta-se o orifício aórtico através da separação das comissuras; a mesma associa-se a risco de agravamento da insuficiência aórtica e a reestenose a longo prazo.

A obstrução moderada (gradiente entre 50 e 75 mm Hg) constitui uma “zona cinzenta” que poderá implicar tomar uma atitude interventiva.

Nas crianças em que ainda não haja indicação para intervenção é fundamental manter um seguimento rigoroso, tendo em conta o carácter progressivo da estenose. A actividade física deve ser restringida a esforços ligeiros nas estenoses graves.

Notas importantes:

  1. Todos os doentes e os portadores de válvula aórtica bicúspide devem ser submetidos a profilaxia da endocardite infecciosa, independentemente da gravidade da estenose, mesmo depois de tratados.
  2. Gradiente: define-se como diferença de pressões sistólicas entre duas cavidades ou entre duas porções dentro da mesma cavidade, ou vaso sanguíneo. No caso em análise (estenose aórtica), trata-se da diferença de pressões entre o ventrículo esquerdo (VE) e aorta (Ao). Quanto mais grave for a estenose, maior será o gradiente, ou seja, a diferença de pressões entre o VE e Ao.

2. ESTENOSE AÓRTICA SUBVALVULAR

Importância do problema e manifestações clínicas

Os obstáculos subaórticos podem ser provocados por grande variedade de lesões, constituindo os mesmos cerca de 20% das estenoses aórticas; associam-se muitas vezes a comunicação interventricular. O diafragma subaórtico (erradamente designado por “membrana” subaórtica) é o defeito que ocorre com maior frequência. Os doentes estão geralmente assintomáticos e o exame objectivo é semelhante ao da estenose valvular, não havendo, no entanto, estalido sistólico nem alterações do segundo ruído. O sopro sistólico é mais intenso no bordo esquerdo do esterno e, nalguns casos, pode auscultar-se sopro diastólico de insuficiência aórtica.

Exames complementares

A radiografia do tórax habitualmente não apresenta alterações. O electrocardiograma pode ser normal ou apresentar sinais de hipertrofia ventricular esquerda. A ecocardiografia é o melhor método de avaliação, sendo o gradiente de pressões, através do obstáculo, o melhor índice da gravidade da obstrução. (Figura 2)

Tratamento

A actuação é semelhante à descrita para a estenose valvular. Dado que a turbulência provocada pelo obstáculo subaórtico tem efeito lesivo progressivo sobre a válvula aórtica (lesões de “jacto”), a cirurgia está indicada mesmo em casos de estenose moderada desde que haja insuficiência aórtica. A técnica cirúrgica aplicada (ressecção completa do diafragma e miotomia de Morrow) parece diminuir a taxa de recorrência das lesões. Dado que apenas a cirurgia permite remover o diafragma de modo a evitar as lesões de “jacto”, o cateterismo terapêutico não tem tido grande aceitação neste tipo de patologia.

FIGURA 2. Ecocardiograma no plano paraesternal na estenose aórtica subvalvular visualizando-se o diafragma subaórtico

3. ESTENOSE AÓRTICA SUPRAVALVULAR

Importância do problema e manifestações clínicas

Trata-se da forma mais rara de estenose aórtica, representando cerca de 2% dos respectivos casos. Frequentemente associada a perturbações do metabolismo do cálcio, faz parte das alterações que constituem a síndroma de Williams a qual integra, fundamentalmente, fácies característica (de duende), atraso mental, personalidade extrovertida e amigável, hiperacúsia, lábios grossos, e atraso do crescimento. Podendo também ocorrer em crianças sem alterações metabólicas, estão descritas formas familiares. A associação a estenose da origem dos grandes vasos da crossa da aorta, coronárias, artérias subclávias, renais e pulmonares é frequente e deve ser diagnosticada antes da cirurgia. Atribui-se a microdeleções do gene da elastina do cromossoma 7.

Nos doentes sem síndroma de Williams os sintomas são raros. A dispneia e angina ocorrem nas fases avançadas da doença e a síncope é rara. A hipertensão arterial sistémica é comum. Frequentemente encontram-se frémitos nas carótidas, na região supraesternal ou no bordo direito do esterno. Os pulsos periféricos devem ser avaliados com atenção, sendo frequentes pulsações mais intensas na carótida direita e membro superior direito (pelo chamado efeito Coanda provocado pelo jacto de sangue na zona pós-estenótica). Não se ausculta estalido. O sopro sistólico é mais intenso no bordo direito do esterno, irradiando para as carótidas.

Exames complementares

As alterações electrocardiográficas são semelhantes às da estenose valvular. As alterações evidenciadas por radiografia do tórax são também semelhantes, não existindo, no entanto, dilatação pós-estenótica da aorta.

Na ecocardiografia, a visualização do obstáculo é por vezes difícil, sendo no entanto possível detectar a turbulência do fluxo na aorta ascendente e quantificar o gradiente de pressões por eco-Döppler.

A angiorressonância magnética é o método de imagem que melhor permite a identificação da morfologia da lesão, a sua localização, e a identificação de outras estenoses. Raramente poderá ser necessário efectuar cateterismo cardíaco diagnóstico. (Figura 3)

Tratamento

O tratamento é cirúrgico e está indicado se o gradiente for superior a 60 mmHg. A mortalidade é reduzida, estando descritos casos de recorrência da estenose.

FIGURA 3. Aortografia demonstrando estenose supravalvular aórtica

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COARCTAÇÃO DA AORTA

Definição e importância do problema

O termo coarctação da aorta (CoAo) deriva do latim coartatio, que significa estreitar; define-se como o estreitamento da aorta torácica, próximo da inserção do canal arterial. Ocorre em cerca de 6-8% dos doentes com cardiopatia congénita, encontrando-se presente em 17% dos recém-nascidos cuja causa de morte seja atribuível a cardiopatia congénita. É mais frequente no sexo masculino (1,7/1) e admite-se etiologia multifactorial com determinantes genéticos, facto que é corroborado pela sua elevada incidência na síndroma de Turner. Têm sido descritos casos com transmissão autossómica dominante.

Anatomia

A coarctação da aorta localiza-se habitualmente (98% dos casos) no istmo aórtico, entre a origem da artéria subclávia esquerda e a inserção do canal arterial; e, muito raramente, antes da origem do tronco arterial braquiocefálico, no arco aórtico, na aorta torácica descendente ou na aorta abdominal.

Anatomicamente, existe um espectro de características que vai desde a coarctação localizada, à hipoplasia tubular do istmo. A coarctação localizada é mais frequente e caracteriza-se pela existência de uma membrana focal e/ou indentação tipo “prateleira”, com o vaso peri-coartação relativamente normal. A hipoplasia do istmo caracteriza-se por um estreitamento uniforme do arco aórtico que se inicia habitualmente antes da origem da artéria subclávia esquerda e acompanha-se de um grau variável de hipoplasia do arco aórtico. (Figura 1)

A coarctação da aorta pode associar-se a outras anomalias cardíacas como válvula aórtica bicúspide (em cerca de 50% dos casos), comunicação interventricular, estenose aórtica e malformações da válvula mitral. A associação com múltiplos obstáculos esquerdos é designada por síndroma de Shone. Por vezes existe associação com anomalias extracardíacas como artéria subclávia direita com origem distal à inserção do canal arterial, e aneurismas do polígono de Willis.

FIGURA 1. Esquema de coarctação da aorta com e sem hipoplasia do arco

Embriologia

Não existe consenso quanto ao modo como surge a coarctação da aorta. A teoria mais invocada é a da existência de tecido muscular liso ductal anómalo na parede da aorta que, ao contrair-se no período pós-natal, origina um estreitamento do seu lume. Esta hipótese é apoiada na frequente confirmação histológica de tecido ductal na zona da junção ducto-aórtica e pela resolução transitória do estreitamento com a infusão de prostaglandina E1, a qual relaxa o tecido muscular do canal arterial. A teoria hemodinâmica atribui este defeito a alterações do fluxo sanguíneo no arco e istmo aórticos no período embrionário, e poderá explicar a associação com outras anomalias intracardíacas que favoreçam redução do fluxo através da aorta e a sua redistribuição para o sistema arterial pulmonar.

Fisiopatologia

Após o nascimento, o encerramento do canal arterial condiciona um estreitamento do lume da aorta. As alterações hemodinâmicas dependem da gravidade da obstrução e da presença de lesões associadas. O aumento da pós-carga condiciona hipertensão arterial a montante e hipoperfusão a jusante. Se a coarctação for grave ou de instalação rápida, desenvolve-se disfunção ventricular sistólica e diastólica aguda com insuficiência cardíaca e choque cardiogénico. Nos casos de obstrução menos significativa ou de instalação progressiva, a sobrecarga de pressão leva à hipertrofia do ventrículo esquerdo e hipertensão arterial na metade superior do corpo. A hipertensão arterial pode persistir mesmo após correcção da coarctação, possivelmente explicada por disfunção de barorreceptores e alterações irreversíveis da parede vascular.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica depende do grau e da localização da obstrução, presença de anomalias associadas, e idade do doente. Nos recém-nascidos e lactentes com coarctação grave, a forma de apresentação é insuficiência cardíaca de baixo débito com má perfusão periférica, palidez, hipersudorese, taquipneia e taquicardia. As crianças mais velhas e os adultos são frequentemente assintomáticos, sendo o diagnóstico suspeitado no exame de rotina (por auscultação de sopro discreto, ou diminuição, ou ausência de pulsos nos membros inferiores) ou no decurso da investigação de hipertensão arterial, com sintomas inespecíficos (cefaleias, epistaxe, claudicação intermitente entre outras complicações da doença hipertensiva).

 

Qualquer que seja a forma de apresentação, os pulsos femorais apresentam amplitude diminuída e existe gradiente tensional entre os membros superiores e inferiores (achados que podem estar ausentes se existir canal arterial de grande calibre com shunt direito-esquerdo persistente).

A auscultação cardíaca pode evidenciar os seguintes achados: – ser normal, ou apresentar um sopro de ejecção mais audível na região interescapular; ou ainda: – um sopro contínuo na parede anterior do tórax ou no dorso devido à presença de circulação colateral; – sopros provocados por lesões associadas, nomeadamente um estalido de abertura secundário a válvula aórtica bicúspide.

EXAMES COMPLEMENTARES

Radiografia do tórax

A radiografia do tórax pode ser normal nas formas ligeiras. Nas coarctações críticas do recém-nascido observa-se aumento do índice cardio-torácico; nos casos de apresentação tardia, são clássicos os achados de “ratamento” ou “erosão” do bordo inferior das costelas, devido à circulação colateral através das artérias intercostais e sinal do “3”, resultante da combinação das dilatações pré e pós-estenótica separadas pela zona coarctada. (Figura 2)

Electrocardiograma

No recém-nascido e no lactente o electrocardiograma apresenta sinais de hipertrofia ventricular direita. Em crianças mais velhas existe hipertrofia ventricular esquerda, muitas vezes com alterações da repolarização ventricular por sobrecarga miocárdica.

FIGURA 1. Esquema de coarctação da aorta com e sem hipoplasia do arco

Ecocardiografia

A ecocardiografia em modo bidimensional e Döppler é a técnica ideal para o diagnóstico da anatomia e da fisiologia. Além de definir a localização e o tipo da coarctação, permite avaliar a sua gravidade e diagnosticar lesões associadas. A presença de fluxo diastólico anterógrado no istmo aórtico é um sinal específico de coarctação da aorta, mesmo perante um gradiente sistólico baixo. A normal permeabilidade do canal arterial no período fetal torna difícil, mas não impossível, a suspeita de coarctação da aorta na ecocardiografia fetal: em tal circunstância poderá suspeitar-se a doença no caso de dilatação das cavidades direitas. (Figura 3)

Ressonância magnética

Este exame imagiológico permitindo um estudo morfológico detalhado com possibilidade de reconstrução tridimensional, está indicado nos casos com “má janela” ecocardiográfica (nomeadamente em crianças crescidas e adultos), e no seguimento de doentes submetidos a cirurgia ou a dilatação por cateterismo para detecção de eventuais complicações (distorções da aorta, dissecção ou aneurismas). Sob o ponto de vista fisiológico, esta modalidade fornece informações importantes e confiáveis, tais como o cálculo do gradiente trans-coarctação e a quantificação do fluxo colateral. Como limitações da técnica citam-se a necessidade de anestesia ou sedação nos doentes com idade habitualmente inferior a 8 anos.

FIGURA 3. Imagens de ecocardiografia mostrando o arco aórtico, coarctação muito acentuada (seta), e a turbulência do fluxo por Döppler (TBC – tronco braquicefálico; SCE – subclávia esquerda; COAO – coarctação da aorta)

Tomografia axial computadorizada

Esta técnica não invasiva fornece a melhor resolução espacial com reconstrução tridimensional. Raramente requer anestesia, excepto nas crianças mais pequenas. A principal limitação relaciona-se com os efeitos da radiação ionizante.

Cateterismo cardíaco

O cateterismo cardíaco tem apenas indicação no contexto da terapêutica percutânea da coarctação da aorta.

Tratamento

Na coarctação grave do recém-nascido, a utilização da prostaglandina E1 permite estabilizar o doente até à intervenção cirúrgica, que é urgente; assim, o transporte medicalizado para um centro cirúrgico deve ser imediato.

As lesões associadas significativas (por exemplo, CIV) são preferencialmente abordadas no mesmo tempo cirúrgico. Actualmente, somente em casos excepcionais de lesões associadas particularmente complexas se contempla a possibilidade de uma abordagem a dois tempos (primeiramente paliativa, com reparação da coarctação e banding da artéria pulmonar, seguindo-se de-banding e reparação das lesões associadas).

Nas situações de coarctação da aorta com diagnóstico em crianças e adolescentes, a existência de um gradiente tensional não invasivo superior a 20 mmHg constitui critério para ditar a intervenção.

Existem várias técnicas para a reparação da coarctação da aorta. Não existe consenso quanto à melhor abordagem terapêutica, não cabendo uma discussão detalhada do tema no âmbito desta obra. A selecção da referida abordagem depende essencialmente da idade do doente, da anatomia da obstrução, da experiência do centro, e das lesões associadas.

  1. Ressecção com anastomose topo-a-topo: foi a primeira técnica descrita em 1945. A incidência mais elevada de recoarctação em algumas séries levou ao desenvolvimento nas últimas duas décadas de várias técnicas de anastomose alargada ou termino-lateral.
  2. Aortoplastia com interposição de remendo: para fazer face à incidência elevada de recoarctação dos primeiros tempos, foi desenvolvida, em 1957, a técnica de interposição de um remendo losângico (pericárdio, Dacron® ou Goretex®) na anastomose da aorta. Contudo, a impossibilidade de crescimento do remendo e a incidência de aneurismas relegou esta técnica para os casos de hipoplasia tubular longa e em crianças mais velhas ou adolescentes com anatomia local complexa, a fim de evitar zonas de maior tensão na linha de sutura.
  3. Aortoplastia com retalho da artéria subclávia: nesta técnica, introduzida em 1966, a artéria subclávia esquerda é laqueada distalmente à origem da artéria vertebral e utilizada como remendo para encerramento da incisão longitudinal realizada na zona da coarctação. Tem a vantagem de utilizar tecido autólogo com potencial de crescimento e pode ser utilizada em situações de coarctação difusa e hipoplasia do istmo. É, nalgumas séries, associada a menor incidência de recoarctação. Tem como maior inconveniente o compromisso da circulação do membro superior esquerdo que, contudo, é relativamente bem tolerado se a cirurgia for efectuada no período neonatal; por este motivo, a referida técnica deve ser evitada nos doentes fora deste grupo etário.
  4. Angioplastia com balão e colocação de stent: nas últimas duas décadas assistiu-se a um progresso assinalável das técnicas percutâneas. Actualmente, estas utilizam-se consensualmente nas situações de recoarctação da aorta. A maioria dos centros advoga que devem também ser a primeira escolha nas crianças mais velhas e adolescentes. A angioplastia de balão simples parece estar associada a elevada taxa de aneurismas pós-dilatação e risco ligeiramente maior de ruptura da parede aórtica. A implantação de stents está associada a uma muito baixa taxa de recoarctação ou a risco de ruptura; contudo, de tal procedimento resulta um segmento que não cresce, pelo que a sua utilização está limitada às crianças mais velhas e adolescentes.
  5. Conduto extra-anatómico: em casos raros de hipoplasia extrema ou recoarctação refractária às modalidades anteriores, a única opção terapêutica é a implantação de um conduto extra-anatómico que faça o bypass da zona estenosada.

Prognóstico

A coarctação da aorta é uma patologia com excelente prognóstico a curto prazo, e mortalidade actual inferior a 2%, independente da técnica terapêutica. Considerando as várias técnicas, a incidência de morbilidade é sobreponível (entre 0 e 25%).

Apesar de uma reparação aparentemente adequada, verifica-se uma incidência importante de mortalidade tardia por complicações cardiovasculares, como hipertensão arterial e doença coronária; tal facto condiciona uma esperança média de vida significativamente inferior à da população em geral.

Em suma, esta doença não deve continuar a ser olhada como uma “simples” obstrução na aorta descendente, mas antes como uma síndroma cardiovascular complexa que engloba disfunção vascular (de etiopatogénese não totalmente esclarecida) requerendo seguimento atento após o tratamento.

GLOSSÁRIO

Banding > Aplicação de fita ou banda em torno de vaso (neste caso, da artéria pulmonar) provocando diminuição do calibre (sinónimo do termo francês “cerclage”). Destina-se a diminuir a quantidade de sangue que chega às artérias pulmonares e utiliza-se, em geral, em situações de grande shunt esquerdo-direito, quando não é possível fazer a correcção total do defeito por razões anatómicas.

Stent > Endoprótese vascular tubular de calibre muito pequeno que se introduz por cateterismo periférico na artéria (neste caso, aorta) após angioplastia, para impedir recidiva de CoAo.

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DEFEITOS DO SEPTO AURÍCULO-VENTRICULAR

Definição e importância do problema  

Os defeitos do septo aurículo-ventricular (DSAV) são anomalias complexas com dois componentes principais: defeito no meio do coração originado pela ausência do septo aurículo-ventricular, e anomalia das válvulas mitral e tricúspide que deixam de ser individualizadas e passam a ter anel e folhetos comuns formando uma única válvula.

Correspondem a menos de 3% das cardiopatias congénitas, sendo que em mais 50% dos casos se associam a anomalias cromossómicas, em particular trissomia 21. Com a prática crescente do diagnóstico pré-natal tem-se verificado uma redução da prevalência da anomalia, provavelmente relacionada com situações em que se procede à interrupção de gravidez nos casos de diagnóstico da referida cromossomopatia diagnosticados in utero.

Anatomia

No coração normal, o septo aurículo-ventricular resulta da diferença dos níveis de inserção das válvulas aurículo-ventriculares, ficando a válvula mitral inserida mais alta do que a válvula tricúspide. O septo aurículo-ventricular põe potencialmente em contacto o ventrículo esquerdo com a aurícula direita. A porção anterior deste septo é membranosa, constituída pela porção superior do septo membranoso; a porção posterior, muscular, contém o feixe de His e o nódulo aurículo-ventricular.

Estes defeitos, nas suas diferentes formas, têm quatro anomalias morfológicas comuns a todos eles. (Figuras 1 e 2)

  1. Anel comum para as válvulas mitral e tricúspide e folhetos comuns às duas válvulas. A anatomia desta válvula e as suas relações com os septos é determinante na definição das diferentes formas dos defeitos. Os músculos papilares, principalmente os esquerdos, sofrem uma rotação e aproximam-se entre si e da câmara de saída ventricular.
  2. Comunicação no meio do coração, no local onde existia o septo aurículo-ventricular. Este defeito cria uma comunicação aurículo-ventricular (do ventrículo esquerdo para a aurícula direita) e, estendendo-se aos septos interventricular e interauricular, cria uma comunicação interventricular e uma comunicação interauricular.
  3. Válvula aórtica mais anterior; esta fica encravada entre os dois anéis aurículo-ventriculares numa localização mais anterior, o que tem como consequência o alongamento da câmara de saída do ventrículo esquerdo.
  4. Aumento da relação entre as dimensões da câmara de entrada e da saída do ventrículo esquerdo. Devido ao rebaixamento da porção superior do septo interventricular e ao alongamento da câmara de saída do ventrículo esquerdo, esta relação que no coração normal é 1/1, está aumentada.

FIGURA 1. Tipos de DSAV. Representação esquemática

Num corte comum às aurículas (AD e AE) e aos ventrículos (VD e VE, separados pelo septo SIV) vêem-se as estruturas anómalas dum DSAV tipo completo: uma válvula AV comum (*) que separa as aurículas dos ventrículos, vendo-se acima dela uma CIA típica, na porção baixa do septo interauricular. Por baixo da válvula AV vê-se uma CIV.

FIGURA 2. DSAV. Representação anatómica

A válvula aurículo-ventricular comum tem cinco folhetos, dos quais os dois centrais são comuns aos componentes esquerdo e direito, fazendo ponte entre os dois ventrículos. A anatomia destes folhetos determina o tipo de defeito:

  1. Forma completa – os folhetos anterior e posterior estão separados entre si, do septo interventricular e do septo interauricular. A válvula abre-se por um orifício único para os dois ventrículos. Há uma comunicação interventricular e outra interauricular que, em diástole, formam uma comunicação única.
  2. Forma incompleta – os folhetos anterior e posterior estão ligados entre si formando-se dois orifícios na válvula aurículo-ventricular comum: um para o ventrículo esquerdo e outro para o ventrículo direito. Estes folhetos inserem-se à crista do septo interventricular de modo que não existe comunicação interventricular, mantendo-se a comunicação interauricular (ostium primum). A porção esquerda da válvula aurículo-ventricular é formada por três folhetos, com três comissuras. A comissura central, impropriamente chamada “fenda” da mitral, faz parte da anatomia habitual deste tipo de defeito.
  3. Aurícula única – forma rara de defeito incompleto com ausência de septo interauricular.
  4. Formas “desequilibradas” – formas em que existe um desequilíbrio entre as dimensões dos dois ventrículos, habitualmente com hipoplasia do esquerdo, de pior prognóstico e de abordagem difícil. Os defeitos do septo aurículo-ventricular podem surgir associados a outras cardiopatias, nomeadamente a tetralogia de Fallot, anomalias da conexão venosa pulmonar ou outras patologias complexas.

Fisiopatologia

A fisiopatologia é condicionada pela existência e dimensões de três elementos principais: comunicação interauricular, comunicação interventricular e função da válvula aurículo-ventricular. As patologias associadas têm influência importante na hemodinâmica.

Na grande maioria dos casos, o quadro fisiopatológico primordial é de insuficiência cardíaca dependente da magnitude do shunt esquerdo-direito a nível auricular e ventricular, e dos efeitos destes na circulação pulmonar.

Nos defeitos completos: a comunicação interventricular é, em geral, grande, permitindo uma igualdade de pressões entre os dois ventrículos. Quando as resistências vasculares pulmonares começam a baixar, aumenta o shunt esquerdo-direito e o retorno venoso pulmonar, o que condiciona dilatação da aurícula e do ventrículo esquerdos. O shunt esquerdo-direito a nível auricular origina sobrecarga de volume e dilatação do ventrículo direito. A regurgitação aumenta a pressão na aurícula esquerda e contribui para o aumento da pressão venosa pulmonar.  

Nos defeitos incompletos: há shunt esquerdo-direito a nível auricular pelo ostium primum e sobrecarga de volume do ventrículo direito cuja pressão está pouco aumentada. A regurgitação da válvula aurículo-ventricular esquerda raramente é grave e faz-se preferencialmente pela comissura mediana, para a aurícula direita.

Como em todos as cardiopatias com shunt esquerdo-direito, esta também pode evoluir para hipertensão pulmonar e doença vascular pulmonar, quando não tratada. A evolução é mais rápida nos defeitos completos do que nas comunicações interventriculares isoladas e ainda mais nos doentes com trissomia 21, por coexistirem nesta situação factores facilitadores desta evolução, como anomalias das vias respiratórias e infecções respiratórias muito frequentes, em particular por vírus sincicial respiratório (VSR).

Manifestações clínicas

Síndromas associadas

A maioria destes defeitos septais associa-se a anomalias cromossómicas. A trissomia 21 predomina, associando-se-lhe com maior frequência, formas completas sem outras anomalias associadas e, raramente tetralogia de Fallot e truncus arteriosus.

A síndroma de Ellis van Creveld associa-se a aurícula única. As anomalias do situs, em particular o isomerismo direito, acompanham-se frequentemente de defeitos do septo aurículo-ventricular.

Os defeitos completos, quando surgem em crianças não sindromáticas, apresentam maior deformação da válvula aurículo-ventricular e têm mais frequentemente anomalias cardíacas associadas.

Quadro clínico dos defeitos completos

No recém-nascido, o quadro clínico pode ser discreto com dificuldade respiratória ligeira e hepatomegalia discreta. Pode haver cianose durante o choro, por inversão do shunt com o esforço. A intensidade do componente pulmonar do segundo ruído está aumentada pela hipertensão pulmonar; por vezes não se auscultam sopros. Entre as duas e três semanas de vida começam a evidenciar-se sinais de insuficiência cardíaca condicionada por dois factores: regurgitação da válvula aurículo-ventricular e diminuição das resistências vasculares pulmonares. O quadro de insuficiência cardíaca é mais acentuado e mais precoce se associado a obstáculo esquerdo (coarctação da aorta), ou a regurgitação aurículo-ventricular grave.

No lactente predominam os sinais de insuficiência cardíaca, cansaço e diaforese durante as mamadas, deficiente aumento ponderal e infecções respiratórias de repetição. A ausência de sinais de insuficiência cardíaca pode representar hipertensão pulmonar grave. O segundo ruído pulmonar deve ser cuidadosamente analisado: a sua intensidade está sempre aumentada nos defeitos completos, existindo muitas vezes desdobramento fixo. A comunicação interauricular e a comunicação interventricular que, em geral, são grandes, não originam sopros; pode, no entanto, auscultar-se sopro sistólico suave de expulsão pulmonar. A regurgitação da válvula aurículo-ventricular gera um sopro holossistólico na ponta.

Quadro clínico dos defeitos incompletos

Os defeitos incompletos têm sinais discretos, pelo que o seu diagnóstico é mais tardio. O quadro clínico é semelhante ao das comunicações interauriculares, a não ser que a válvula aurículo-ventricular seja muito malformada. Os casos de grande shunt interauricular manifestam-se pela ausência da arritmia respiratória fisiológica; por auscultação cardíaca verifica-se aumento de intensidade do primeiro ruído, desdobramento fixo do segundo ruído com componente pulmonar aumentado de intensidade, e sopro sistólico suave de expulsão pulmonar.

Ausculta-se sopro de regurgitação na ponta, e o aumento de débito através da válvula “tricúspide” manifesta-se por rodado tricúspide no quarto espaço intercostal direito. (Consultar Glossário)

FIGURA 3. Telerradiografia do tórax de um lactente com defeito completo do septo AV. Verifica-se cardiomegalia e plétora. Dilatação dos dois ventrículos e da artéria pulmonar. ECG de uma criança com defeito incompleto do septo AV, apresenta desvio esquerdo do eixo do QRS e padrão de sobrecarga diastólica do ventrículo direito

Electrocardiograma

O electrocardiograma evidencia desvio esquerdo do eixo eléctrico do QRS (devido ao desvio posterior do nódulo aurículo-ventricular), que é tanto maior quanto maior for o defeito. Os defeitos incompletos têm o eixo de QRS entre (-40º) e (-60º) e os completos entre (-90º) e (-120º). Nos defeitos incompletos, nas derivações pré-cordiais direitas (V3R a V1) existe um padrão rSR’ com onda T negativa, sugestivo de sobrecarga diastólica do ventrículo direito (Figura 3). Nos defeitos completos existem sinais de sobrecarga de pressão no ventrículo direito com ondas R de amplitude aumentada, ondas T positivas em V1, sobrecarga de volume no ventrículo esquerdo com ondas Q profundas, e ondas R e T de amplitude aumentada em V5 e V6.

Ecocardiograma

É o método de diagnóstico por excelência. A incidência apical de quatro câmaras permite confirmar o diagnóstico. A ausência de septo aurículo-ventricular determina que os folhetos direitos e esquerdos fiquem “ao mesmo nível”. Nos defeitos completos identifica-se a comunicação interventricular no septo de entrada que, nos defeitos grandes, se estende até o septo de saída. A comunicação interauricular tipo ostium primum é, em geral, grande e bem visível. O exame permite avaliar as dimensões das cavidades cardíacas, os locais de inserção valvular, e funcionalidade das válvulas.

A forma completa é muitas vezes diagnosticada no período pré-natal. Nestes casos deve proceder-se ao estudo do cariótipo fetal, dada a frequente associação com trissomia 21. (Figuras 4 e 5)

FIGURA 4. Imagem ecocardiográfica em apical 4 câmaras de defeito completo do septo AV: pode verificar-se que as válvulas AV direita e esquerda estão ao mesmo nível, comunicação interauricular tipo ostium primum (seta) e comunicação interventricular de entrada (asterisco)

FIGURA 5. Imagem ecocardiográfica em apical 4 câmaras de defeito incompleto do septo AV: pode verificar-se: – válvulas AV direita e esquerda estão ao mesmo nível; – comunicação interauricular tipo ostium primum (seta)

Cateterismo cardíaco

O cateterismo está apenas indicado nos casos em que os achados fornecidos pelo ecocardiograma são insuficientes relativamente às pressões na artéria pulmonar e às resistências vasculares pulmonares; os referidos achados são determinantes para avaliar a possibilidade da terapêutica cirúrgica. Nos casos em que os respectivos valores estão elevados, pode testar-se a sua reversibilidade através de provas específicas com oxigénio ou com óxido nítrico.

Tratamento

O tratamento médico limita-se ao tratamento da insuficiência cardíaca congestiva. Utiliza-se, em geral, a associação de digitálico com diurético e de inibidores da enzima de conversão da angiotensina, como o captopril.

Nos defeitos incompletos, a cirurgia poderá ser retardada até à idade de dois ou mais anos porque o risco de hipertensão pulmonar é pequeno. A correcção cirúrgica consiste em encerrar a comunicação interauricular (ostium primum) com remendo de pericárdio autólogo. A comissura mediana do componente esquerdo da válvula aurículo-ventricular poderá necessitar de reparação. Nos defeitos completos é necessário encerrar a comunicação interventricular e a comunicação interauricular, e reparar os folhetos valvulares.

Nos defeitos completos isolados, a correcção cirúrgica está indicada antes dos quatro a cinco meses de idade para evitar o estabelecimento de doença vascular pulmonar irreversível.

Nota importante: A profilaxia da endocardite infecciosa está indicada, devendo manter-se por toda a vida, mesmo depois da cirurgia.

Evolução

A evolução está condicionada pela existência de defeitos residuais, principalmente no componente esquerdo da válvula aurículo-ventricular. Em geral, após a cirurgia, a criança aumenta de peso, deixa de ter infecções respiratórias de repetição e torna-se mais activa. Quando há lesões residuais significativas da válvula aurículo-ventricular poderá haver necessidade de terapêutica anticongestiva. Nos casos mais graves, poderá ser necessária nova reparação cirúrgica com eventual recurso a prótese mecânica em posição mitral.

GLOSSÁRIO

Dextrocardia > Deslocamento do coração para o hemitórax direito, por dextroposição, dextrorotação ou por situs inversus.

Isomerismo > Falta de assimetria visceral (afecta sobretudo aurículas, brônquios e pulmões). Por isomerismo entende-se que o corpo tem os dois lados iguais, isto é, são ambos de morfologia direita (isomerismo direito) ou são ambos de morfologia esquerda (isomerismo esquerdo), manifesta nos órgãos pares (pulmão; brônquios).

Isomerismo direito > Os dois pulmões têm morfologia de pulmão direito (com três lobos e com ambos os brônquios curtos e epiarteriais), e os dois apêndices auriculares têm morfologia direita. O baço está frequentemente ausente (asplenia). As veias pulmonares têm conexão anómala. Existem malformações de rotação mesentérica e o fígado é, em geral, central.

Isomerismo esquerdo > Os dois pulmões têm morfologia de pulmão esquerdo (com dois lobos e com ambos os brônquios longos e hipoarteriais), e os dois apêndices auriculares têm morfologia esquerda. Existe polisplenia (baços múltiplos). As veias pulmonares conectam com a aurícula. É frequente a ausência da porção supra-hepática da veia cava inferior, seguindo a drenagem venosa desta porção através das veias azygos ou hemiazygos até ao coração.

Situs > Palavra latina que significa posição ou situação.

Situs incertus ou ambiguus ou heterotaxia > Situação anormal das vísceras sem corresponder a posição bem definida; associada a defeitos cardíacos e do baço (asplenia/polisplenia).

Situs inversus > Anomalia em que um ou mais órgãos estão localizados no lado oposto ao que ocupariam normalmente. O coração normal aparece como imagem “em espelho” (espelho sagital). O arco aórtico, a aurícula esquerda e a câmara de ar do estômago estão localizados à direita. São descritos 2 padrões: 1) ponta cardíaca à direita correspondendo a imagem “em espelho” completa (situs inversus cardíaco ), geralmente sem anomalia cardíaca (ocorre em 3-5%); 2) ponta cardíaca à esquerda (situs inversus com levocárdia), associa-se sempre a defeito cardíaco. Por vezes está associado a anomalias como asplenia, polisplenia ou mesentério comum.

Situs sagitallis > Forma de anomalia da posição do coração cuja ponta está situada no hemitórax direito (ponta para diante) devido à rotação de ≥90° para a direita dos ventrículos em volta das grandes artérias da base (aorta e artéria pulmonar), mantendo estas a sua posição normal. Sinónimo de dextro-rotação. As vísceras estão em posição normal.

Situs solitus > Coração em posição “normal”, o que pressupõe posições à esquerda, do arco aórtico, aurícula esquerda e câmara de ar gástrica. O situs solitus engloba 2 padrões: 1) padrão dito normal com a ponta cardíaca à esquerda, geralmente sem defeitos cardíacos (presentes em 1%); 2) dextroversão em que a ponta do coração roda (em grau variável) para a direita, sempre associada a defeitos cardíacos.

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COMUNICAÇÃO INTERVENTRICULAR

Definição e importância do problema

A comunicação interventricular (CIV) consiste numa região de descontinuidade no septo interventricular, permitindo desta forma uma ligação entre o ventrículo direito e esquerdo.

Trata-se da cardiopatia congénita mais frequente: ocorrendo em 2-6 por cada 1.000 nascimentos, constitui 20% de todos os defeitos cardíacos, sem predomínio quanto aos géneros. Manifestando-se com gravidade variável, pode estar presente de forma isolada, ou constituir parte de uma associação de lesões, como na tetralogia de Fallot, na atrésia da pulmonar com CIV, e no truncus arteriosus, entre outras.

A CIV mais frequente é de pequenas dimensões e localizada à região perimembranosa do septo; nesta variante, a evolução é habitualmente benigna, podendo ocorrer o encerramento espontâneo. Por outro lado, se o defeito persistir, em geral não há necessidade de qualquer tratamento.

Anatomia e classificação

O defeito anatómico de comunicação interventricular pode ocorrer em qualquer região do septo interventricular. Pode ser classificada como: – perimembranosa, se localizada no septo membranoso (situação mais frequente, em cerca de 70% dos casos); – muscular de entrada, trabecular ou de saída (subarterial) quando se localiza no septo muscular (restantes casos).

Considerando o critério “dimensão” em comparação com a “dimensão da raiz da aorta” avaliada por ecocardiograma transtorácico, pode ser classificada: pequena, moderada ou grande. (Figura 1)

FIGURA 1. Diagrama ilustrando a classificação das CIV, adaptada de Soto et al.
1 – perimembranosa;
2 – subarterial, de saída ou duplamente relacionada;
3 – musculares trabeculares e apicais;
4 – musculares de entrada.

Fisiopatologia

A presença de uma CIV condiciona uma alteração ao percurso normal do sangue durante o ciclo cardíaco: um volume de sangue oxigenado do ventrículo esquerdo (VE) passa através da CIV para o ventrículo direito (VD) e, deste, para a artéria pulmonar, fazendo bypass à circulação sistémica (shunt esquerdo-direito). O volume do shunt depende das dimensões da CIV e da resistência vascular pulmonar.

Nos defeitos de pequenas dimensões, o tamanho do orifício é o principal factor que limita o shunt esquerdo-direito, que será sempre pequeno. Nas CIV grandes, as pressões são semelhantes nos VE e VD, e o factor que mais condiciona o shunt é a resistência vascular pulmonar. Quanto mais baixa for esta resistência, maior será a quantidade de sangue que passa do VE para a artéria pulmonar. Nesta situação as artérias pulmonares dilatam-se para acomodar o aumento de volume de sangue, o que condiciona aumento da pressão arterial pulmonar.

A evolução natural, se o defeito não for encerrado, será o desenvolvimento de doença vascular pulmonar, com espessamento da parede das arteríolas e consequente aumento da resistência, inicialmente com variabilidade dinâmica e depois de modo fixo. A hipertensão pulmonar fixa, pode ultrapassar o valor da pressão arterial sistémica, o que provoca inversão do shunt: tal corresponde ao chamado conceito de “fisiologia de Eisenmenger”.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas dependem da magnitude do shunt e, portanto, das dimensões da CIV e do estado da resistência vascular pulmonar:

  • CIV pequena e resistências vasculares pulmonares normais: situação assintomática, cursando apenas com sopro holossistólico de grau II-III/VI no bordo esquerdo do esterno, detectado em “observação de rotina”, a partir da 2ª semana de vida;
  • CIV moderada a grande com resistências pulmonares normais: manifestando-se a partir do 1º mês de vida e cursando com sinais clínicos de insuficiência cardíaca por aumento do débito pulmonar. Nestes casos, o exame objectivo cardiovascular evidencia: pré-córdio hiperdinâmico, sopro holossistólico com intensidade variável e, geralmente, rodado mitral de débito. Quando a insuficiência cardíaca é muito marcada pode ser auscultado ritmo de galope e terceiro ruído;
  • CIV moderada a grande com resistências pulmonares elevadas: com quadro de insuficiência cardíaca de menor intensidade por redução do shunt esquerdo-direito, salientando-se que o doente parece ter melhorado da sintomatologia inicial. O exame cardiovascular mostra: sopro holossistólico de menor intensidade, aumento significativo da intensidade do segundo ruído cardíaco, e ausência do ritmo de galope e do rodado.

Em geral, e na ausência de complicações, o quadro clínico de insuficiência cardíaca desenvolve-se depois das 3 semanas de vida. As suas manifestações estão relacionadas com o esforço respiratório para acomodar o aumento de débito pulmonar, apresentando polipneia, cansaço e diaforese durante o aleitamento, má progressão ponderal e infecções frequentes das vias respiratórias inferiores. É ainda habitual a hepatomegália.

Se o quadro de insuficiência cardíaca se desenvolver precocemente, ou seja na 1ª/2ª semanas de vida, deve investigar-se a associação de obstáculo esquerdo (geralmente coarctação da aorta) ou de regurgitação da válvula mitral. Neste contexto, pressupõe-se que já foram excluídas e corrigidas todas as situações extra-cardíacas que podem causar ou agravar a insuficiência cardíaca, designadamente, anemia, hipoglicémia, hipocalcémia, taquiarritmias, entre outras.

Tipicamente não existe má perfusão periférica: assim, o tempo de reperfusão capilar é normal, bem como a coloração da pele. Por outro lado, os pulsos periféricos podem, até, evidenciar aumento da amplitude. É importante referir que a presença de edema periférico não é sinal de insuficiência cardíaca na criança; em tal circunstância haverá que admitir a possibilidade de hipoalbuminémia de etiologia a esclarecer.

Em idade pediátrica, a insuficiência cardíaca pode ser quantificada e classificada de acordo com escalas que integram determinados parâmetros a ponderar. O Quadro 1 integra uma das escalas usadas – a escala de Ross, modificada. Recentemente desenvolveu-se a escala New York University Pediatric Heart Failure Index (PHFI) para crianças e adolescentes, a qual combina critérios fisiológicos e de terapêutica instituída.

QUADRO 1 – Escala de Ross modificada para classificação de insuficiência cardíaca

Classe de RossSintomas
IAssintomático
IITaquipneia ligeira ou diaforese acompanhando o acto da alimentação (em lactentes)
Dispneia de esforço (em crianças)
IIITaquipneia marcada ou diaforese acompanhando a alimentação em lactentes
Prolongamento dos tempos de alimentação, associado a má progressão ponderal
Dispneia marcada com o esforço
IVTaquipneia, retracções intercostais, gemido, diaforese em repouso

A presença de cianose num lactente com uma CIV pequena a moderada é sempre explicável por patologia associada (por exemplo: patologia pulmonar ou infecção respiratória com hipoxémia). A cianose também está presente nos casos de evolução a longo prazo de uma CIV grande não tratada, já com doença pulmonar vascular obstrutiva e shunt direito-esquerdo sobrepondo-se à patologia inicial, de base.

Evolução

A história natural da CIV é dinâmica, dependendo fundamentalmente das características da lesão (ver classificação).

As comunicações de pequenas dimensões têm grande probabilidade de encerramento espontâneo, sobretudo nas lesões localizadas à porção apical do septo interventricular. O encerramento espontâneo pode ser suspeitado pelo desaparecimento do sopro pré-existente, e corroborado pela ausência de sinais de shunt no ecocardiograma. Podem, no entanto, manter-se patentes durante vários anos e sem indicação para cuidados específicos.

Nas comunicações de grandes dimensões, e na ausência de tratamento, a evolução para doença vascular pulmonar é a regra, o que pode ocorrer a partir do primeiro ano de vida. A associação com síndromas (como a trissomia 21), e com infecção por vírus sincicial respiratório (VSR), frequente nos dois primeiros anos de vida, poderão antecipar tal evolução. Por este motivo, está recomendada a administração de imunoglobulina específica para VSR a estes doentes como profilaxia.

Se o tratamento cirúrgico for eficaz, os doentes têm uma capacidade funcional e de tolerância ao exercício físico semelhante aos seus pares. Dum modo geral, pode afirmar-se que o prognóstico a médio e longo prazo dependerá da presença de complicações cirúrgicas e/ou do número e gravidade das lesões residuais, designadamente, do não encerramento completo da comunicação.

Radiografia do tórax

Nos defeitos de pequenas dimensões, a radiografia do tórax é normal. Nos defeitos moderados já é visível a dilatação do tronco da artéria pulmonar e plétora, sobretudo na região hilar. Nos defeitos de grandes dimensões (Figura 2) existem sinais de plétora marcada, com índice cardiotorácico aumentado (cardiomegália), podendo verificar-se sinais de oligoémia periférica se coexistir doença vascular obstrutiva pulmonar (hipertensão pulmonar).

FIGURA 2. Radiografia do tórax de lactente com 6 meses de idade e CIV grande: é evidente o aumento do índice cardiotorácico com sinais de dilatação do ventrículo esquerdo e dilatação do tronco da artéria pulmonar (seta) e plétora bilateral

Electrocardiograma

Na CIV pequena o electrocardiograma (ECG) pode ser incaracterístico, atendendo às particularidades e critérios de normalidade em função da faixa etária. Na CIV moderada podem já existir critérios de hipertrofia ventricular esquerda ou biventricular nos casos de CIV grande.

Ecocardiograma transtorácico

Actualmente é aceite que a maior parte das lesões cardíacas congénitas pode ser diagnosticada de forma completa e detalhada por ecocardiograma transtorácico com modo 2D, modo M e Döppler codificado em cor.

Tal exame permite determinar a localização e a dimensão da CIV (e, eventualmente, identificar a presença de mais do que uma comunicação), avaliar função global (sístole e diástole) assim como eventuais lesões associadas. As dimensões da artéria pulmonar e aorta são importantes, permitindo com outros dados o cálculo de shunt intracardíaco. (Figura 3)

FIGURA 3. Imagens de ecocardiografia de CIV perimembranosa: pode observar-se a solução de descontinuidade do septo interventricular (seta); o shunt esquerdo-direito (fluxo laranja) e o cálculo do gradiente através da CIV por Döppler contínuo. (VD – ventrículo direito; VE – ventrículo esquerdo e Ao – aorta)

Ecocardiograma transesofágico (ETE)

Este exame é habitualmente reservado para crianças com “má janela” acústica e incapacidade para obter boa definição; ou se existirem dúvidas em relação à anatomia intracardíaca: por exemplo, para excluir alterações da válvula mitral ou tricúspide em determinados casos que possam eventualmente contraindicar a intervenção cirúrgica de correcção.

Cateterismo cardíaco

O cateterismo cardíaco diagnóstico não tem actualmente indicação para o diagnóstico funcional e morfológico de CIV. Poderá estar indicado para: – excluir doença vascular obstrutiva em crianças mais velhas com CIV e hipertensão pulmonar na ausência de sinais de insuficiência cardíaca; – avaliar a vasorreactividade das resistências vasculares pulmonares através duma prova de provocação consistindo na inalação de óxido nítrico ou oxigénio.

Exames laboratoriais

Do ponto de vista laboratorial importa salientar que o doseamento seriado do péptido natriurético (BNP) é actualmente utilizado como indicador importante para avaliar a insuficiência cardíaca. A análise dos doseamentos seriados permite avaliar a evolução e gravidade do quadro de insuficiência cardíaca, o seu agravamento (valores aumentados) e a resposta à terapêutica médica (redução progressiva).

Tratamento

Tratamento médico

A abordagem terapêutica médica das CIV somente está indicada nos casos de quadro clínico de hiperfluxo pulmonar com repercussão hemodinâmica levando a insuficiência cardíaca. A terapêutica consiste em restrição de líquidos (tendo em consideração a idade), suplementação calórica, diuréticos, inibidores da enzima de conversão da angiotensina, antagonistas dos receptores da aldosterona e digitálicos. (Partes XI e XXXI)

O tratamento definitivo destas lesões implica a realização de cirurgia cardíaca ou cateterismo cardíaco de intervenção (dependendo do número, dimensão e anatomia da comunicação interventricular).

 Tratamento cirúrgico

Têm indicação para cirurgia correctiva as comunicações interventriculares que evidenciem repercussões hemodinâmicas em qualquer idade de diagnóstico no pressuposto de que previamente se propiciaram ao doente condições aceitáveis de estado geral, assim como de estabilização e equilíbrio hemodinâmico e nutricional.

De referir que: – a idade e o peso do doente são aspectos relevantes e determinantes do grau de risco; – nos doentes com hipertensão pulmonar fixa e síndroma de Eisenmenger a situação clínica impede o tratamento cirúrgico definitivo.

A cirurgia implica esternotomia mediana, salientando-se que a técnica mais habitual é o encerramento da CIV com remendo de Dacron®, sob circulação extracorporal e em hipotermia.

Encerramento percutâneo

O cateterismo de intervenção, embora ainda não consensual, tem sido utilizado com bons resultados nas CIV musculares trabeculares. O procedimento, laborioso, pode substituir a técnica cirúrgica em doentes seleccionados. Por outro lado, nas CIV perimembranosas o encerramento percutâneo poderá comportar taxas significativas de complicações.

O cateterismo de intervenção associado à cirurgia cardíaca num mesmo acto – técnica híbrida está a ser utilizado mais recentemente para o encerramento de defeitos septais grandes, sem as complicações associadas à circulação extracorporal.

Nota: Os doentes submetidos a tratamento cirúrgico ou percutâneo têm sempre indicação para profilaxia da endocardite bacteriana.

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COMUNICAÇÃO INTERAURICULAR

Definição e importância do problema

Entende-se por comunicação interauricular (CIA) qualquer solução de continuidade no septo que separa as duas aurículas, com excepção do foramen ovale cuja permeabilidade é fundamental durante a vida fetal.

Após o nascimento, devido ao aumento de pressões na aurícula esquerda, dá-se o seu encerramento funcional e, durante o primeiro ano de vida, o encerramento anatómico. Em 25% a 30% dos casos, o encerramento anatómico não é completo; a situação remanescente corresponde ao chamado foramen ovale patente.

A comunicação interauricular aparece frequentemente isolada e classifica-se de acordo com a posição que ocupa no septo interauricular, a sua embriologia e o seu tamanho. (Figura 1)

  1. Comunicação interauricular tipo fossa ovalis – erradamente designada por CIA tipo ostium secundum, é a forma mais frequente representando 6% a 10% de todas as cardiopatias congénitas. Predominando no sexo masculino (2/1), ocorre de forma esporádica, embora estejam descritos casos de incidência familiar. Pela sua localização, deve fazer-se o diagnóstico diferencial com foramen ovale
  2. Comunicação interauricular tipo ostium primum – localiza-se numa posição caudal em relação à fossa ovalis. Embriologicamente, resulta de uma alteração do desenvolvimento do septo auriculoventricular, em particular do septum primum, devendo, por isso, ser classificada no grupo dos defeitos do septo aurículo-ventricular.
  3. Comunicação interauricular tipo sinus venosus – situa-se, posteriormente à fossa ovalis e acompanha-se geralmente de anomalias de conexão das veias pulmonares direitas.
  4. Comunicação interauricular tipo seio coronário – situa-se no local de abertura do seio coronário, que surge sem tecto (unroofed coronary sinus) e associa-se à persistência de veia cava superior esquerda que, em tal circunstância, drena no tecto da aurícula esquerda.

FIGURA 1. Tipos de CIA

Fisiopatologia  

As implicações fisiopatológicas e clínicas da presença de uma comunicação interauricular dependem do volume do shunt esquerdo-direito por ela condicionado. Nos casos com grande fluxo de sangue através da CIA, há dilatação da aurícula e do ventrículo direitos. As cavidades esquerdas, nos casos de comunicação interauricular isolada, têm dimensões normais ou ligeiramente diminuídas. O volume de shunt esquerdo-direito entre as aurículas é condicionado pela distensibilidade relativa dos dois ventrículos, e não pelas dimensões da lesão.

O ventrículo direito tem geralmente maior distensibilidade e pressões mais baixas, o que favorece fluxo da aurícula esquerda para a direita. Durante as primeiras semanas após o nascimento, a pressão no ventrículo direito ainda é elevada pelo que, na presença de uma comunicação interauricular, o shunt interauricular é pequeno. Este aumen ta gradualmente à medida que baixam as resistências pulmonares e aumenta a distensibilidade do ventrículo direito. O aumento da “carga volumétrica” é bem tolerado pelo ventrículo direito e não provoca insuficiência cardíaca. As resistências pulmonares são baixas porque as artérias pulmonares vão-se dilatando passivamente à medida que o fluxo sanguíneo aumenta, sendo que as alterações provocadas pela comunicação interauricular são, em geral, reversíveis com a correção do defeito. No entanto, podem desenvolver-se lesões vasculares secundárias ao aumento de débito pulmonar, as quais se podem tornar irreversíveis (doença vascular pulmonar).

A evolução destas lesões é lenta e varia de doente para doente, sendo rara a sua instalação antes da idade de 15 anos. Nos doentes em que se desenvolva doença vascular pulmonar, o volume do shunt esquerdo-direito diminui, podendo mesmo haver inversão com fluxo direito-esquerdo, o que se traduz pelo aparecimento de cianose. Contrariamente às comunicações interventriculares, o encerramento espontâneo das comunicações interauriculares é raro (cerca de 3% dos casos), sendo ainda mais raro após os dois anos de idade.

Manifestações clínicas

As comunicações interauriculares de pequena e média dimensão não originam sintomas durante a infância, sendo habitualmente diagnosticadas por auscultação de sopro cardíaco ou de desdobramento fixo do segundo ruído cardíaco. Nos defeitos de grandes dimensões, as manifestações clínicas podem ter início por volta das três a seis semanas de vida (quando baixam as resistências vasculares pulmonares); são consequência de insuficiência cardíaca ligeira, que se traduz por progressão lenta de peso, polipneia, taquicardia e hepatomegália.

O aumento do fluxo através do ventrículo direito provoca aumento da duração da sístole ventricular direita, responsável pelo desdobramento fixo do segundo ruído; isto é, deixa de haver a variação fisiológica dos dois componentes do segundo ruído durante a respiração uma vez que o débito sistólico do ventrículo direito não varia com os ciclos respiratórios, ao inverso do normal. Pode-se auscultar sopro de expulsão de grau 2 a 3/6 no segundo espaço intercostal esquerdo junto do bordo do esterno, como consequência do aumento do fluxo através da válvula pulmonar (estenose “relativa” – gradiente de débito).

Nos casos com doença vascular pulmonar poderá haver inversão do shunt interauricular com cianose e insuficiência cardíaca – reacção de Eisenmenger. Além disso, nos doentes que cheguem à vida adulta sem terem sido tratados, existe o risco de aparecimento de arritmias auriculares nomeadamente flutter ou fibrilhação e consequente dilatação da aurícula esquerda.

EXAMES COMPLEMENTARES

Radiografia do tórax

Nos casos em que exista grande shunt interauricular poderá haver dilatação do ventrículo direito e do tronco da artéria pulmonar. A dilatação da aurícula direita não é, em geral, visível na radiografia em posição póstero-anterior. A ausência da imagem da veia cava superior é um sinal pouco descrito, mas frequente nos defeitos grandes. Existe aumento da vascularização até à periferia dos campos pulmonares (plétora). ( Figura 2)

FIGURA 2. Radiografia do tórax de uma criança com CIA, mostrando o ingurgitamento hilar e dilatação da artéria pulmonar típicos, sem cardiomegália

Electrocardiograma

A maioria dos doentes evidencia ritmo sinusal. Nalguns casos, pode haver aumento do intervalo P-R, traduzindo atraso de condução aurículo-ventricular (bloqueio aurículo-ventricular de primeiro grau). Nas comunicações interauriculares grandes com shunt significativo não se verifica a arritmia respiratória fisiológica; tal facto tem tradução no ECG: perda da variabilidade respiratória da frequência cardíaca. O eixo do QRS no plano frontal é normal e em quase todos os casos existe padrão rSR’ (com R’>r) nas derivações pré-cordiais direitas, traduzindo dilatação do ventrículo direito. De notar que o padrão rSr’ existe numa percentagem importante de crianças (dizemos que este padrão é “normal” na criança). Não representando qualquer tipo de “bloqueio”, deve evitar-se a designação de “padrão de bloqueio incompleto de ramo direito”. Para se diagnosticar dilatação ventricular direita, a amplitude da onda R’ no complexo rSR’ deverá ser superior a 15 mm nas crianças com menos de um ano de idade, e superior a 10 mm nas crianças mais velhas.

Ecocardiograma

É o exame que permite fazer o diagnóstico. O ecocardiograma modo M permite medir as dimensões das cavidades do coração e as características do movimento do septo interventricular que, na presença de dilatação do ventrículo direito por sobrecarga de volume, apresenta movimento paradoxal ou aplanado. O ecocardiograma (modo bidimensional) fornece dados relativos ao número, localização e dimensões das lesões; e o Döppler codificado em cor permite avaliar as características do fluxo interauricular e a relação entre os débitos pulmonar e sistémico. (Figura 3)

Nos doentes com “má janela” (por deformação torácica, obesidade, doentes adultos e outros) pode ser necessário recorrer ao ecocardiograma transesofágico, o qual permite melhor definição da morfologia e dimensões dos defeitos e sua relação com estruturas adjacentes.

Cateterismo cardíaco

Não está indicado o cateterismo cardíaco diagnóstico por rotina nesta patologia, uma vez que a ecocardiografia permite a demonstração de todos os aspectos fundamentais para o diagnóstico e orientação terapêutica. Esta técnica reserva-se para o tratamento por cateterismo de intervenção.

FIGURA 3. Imagens de ecocardiografia num plano quatro câmaras, mostrando CIA tipo fossa oval, central e shunt esquerdo-direito por Döppler codificado em cor (a vermelho)

Tratamento

O tratamento destina-se, em geral, à prevenção da evolução para doença vascular pulmonar e ao aparecimento de arritmias na idade adulta. Está também indicado em todos os casos em que possa existir risco de acidentes vasculares cerebrais por embolização através da comunicação interauricular. Os defeitos de grandes dimensões, quando responsáveis por sintomas e sinais de insuficiência cardíaca, podem necessitar de tratamento médico com diuréticos e digitálicos.

O encerramento (percutâneo ou cirúrgico) está indicado em todos os doentes com mais de dois anos de idade nos quais a relação entre débitos pulmonar e sistémico (Qp/Qs) seja superior a 1,5.

  1. Tratamento percutâneo – É actualmente a técnica de escolha para o encerramento da comunicação interauricular tipo fossa oval, em doentes bem seleccionados, através da colocação de dispositivos por via percutânea. É um procedimento seguro, eficaz, e com taxa de complicações baixa. O mesmo, implicando ser orientado por ecocardiografia transesofágica ou intravascular, exige tempo de internamento mais curto do que a cirurgia e não necessita de circulação extracorporal nem de toracotomia (pelo que não deixa cicatriz). Não está indicado nos restantes tipos de comunicação interauricular.
  2. Tratamento cirúrgico – tem indicação para os casos em que esteja contraindicado o cateterismo terapêutico pela idade e peso da criança, ou por anatomia desfavorável. Apresenta bons resultados e baixa taxa de complicações. A mais frequente é o derrame pericárdico pós-pericardiectomia, ocorrendo em cerca de 5% dos doentes e obrigando ao prolongamento do internamento e a terapêutica médica anti-inflamatória e diurética. O risco de mortalidade e morbilidade cirúrgicas é mínimo. Ao contrário do indicado para a maioria das lesões cardíacas, segundo a American Heart Association, a profilaxia da endocardite bacteriana não é necessária nas comunicações interauriculares isoladas (excepto nos defeitos de septo aurículo-ventricular incompletos – ostium primum).

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PERSISTÊNCIA DO CANAL ARTERIAL

Importância do problema

O canal arterial é uma estrutura vascular que, durante a vida fetal, faz comunicar a porção proximal do ramo esquerdo da artéria pulmonar com a aorta descendente, depois da emergência da artéria subclávia esquerda. Tem a sua origem embriológica na porção distal do sexto arco embrionário esquerdo, do qual tem igualmente origem a artéria pulmonar.

Na circulação fetal, a sua permeabilidade é determinante no desvio do sangue vindo do ventrículo direito para a circulação sistémica e de volta à placenta, contornando a circulação pulmonar de alta resistência.

A permeabilidade do canal arterial no feto é mantida pela reduzida PaO2 e pelos elevados níveis de óxido nítrico e prostaglandinas E2 produzidas pela placenta. Após o nascimento, com a subida dos níveis tensionais de oxigénio e a remoção da fonte de produção de prostaglandinas, ocorre o encerramento funcional do canal arterial ao fim de 10 a 18 horas (por contracção da camada muscular), e o anatómico pela segunda a terceira semana de vida (por disrupção da íntima e formação de fibrose). Pelas 8 semanas de vida, o canal arterial encontra-se encerrado em cerca de 88% dos recém-nascidos normais.

A persistência de canal arterial ocorre como lesão isolada em 5-10% de todas as cardiopatias congénitas. Mais frequente no sexo feminino (2/1), é uma anomalia comum nos recém-nascidos pré-termo, ocorrendo em 20-40% das crianças com peso de nascimento inferior a 1.000 gramas.

Etiopatogénese

O principal factor causal é a prematuridade, que condiciona: menor sensibilidade ao oxigénio das fibras musculares imaturas da camada média; incapacidade de metabolização das prostaglandinas pelo pulmão imaturo; e patologia pulmonar hipoxémica, frequente no recém-nascido pré-termo. Os factores genéticos parecem estar envolvidos, existindo um risco de recorrência de 2-4% em irmãos de um caso afectado, sendo que determinados genes têm sido associados a maior incidência (por ex. TRAF1, MYH11). Está documentada também a associação com a infecção por vírus da rubéola no primeiro trimestre de gravidez.

Com a diminuição da resistência vascular pulmonar após o nascimento, o sangue oxigenado da aorta descendente passa pelo canal arterial e mistura-se na artéria pulmonar com o sangue venoso proveniente do ventrículo direito (shunt esquerdo-direito). O aumento de volume de sangue através do pulmão, aurícula esquerda, ventrículo esquerdo e novamente aorta, é responsável pelo aumento das dimensões das câmaras cardíacas esquerdas e por hipertrofia ventricular esquerda.

A magnitude do shunt esquerdo-direito é determinada pela resistência oferecida pelo canal arterial (comprimento, diâmetro e trajecto) quando o canal é pequeno, e pela resistência vascular pulmonar quando o canal é grande. O aumento de volume de sangue ejectado pelo ventrículo esquerdo e o desvio de sangue da aorta para a artéria pulmonar são responsáveis pela elevada amplitude de pulso.

Manifestações clínicas

Nos casos de canal arterial de pequenas dimensões e shunt pequeno os doentes são assintomáticos e o diagnóstico é suspeitado pela detecção de sopro cardíaco em observação de rotina. Os casos com shunt grande manifestam-se por um quadro de insuficiência cardíaca, geralmente depois das 4 semanas de vida, traduzido por polipneia, diaforese, recusa alimentar e perda ponderal entre a terceira e a sexta semana de vida, por diminuição da resistência vascular pulmonar. A onda de pulso é geralmente ampla e o impulso apical está desviado para a esquerda. O componente pulmonar do segundo ruído cardíaco tem intensidade aumentada. Ausculta-se sopro contínuo, que é mais audível no segundo espaço intercostal esquerdo, e se inicia pouco depois do primeiro ruído, atingindo a máxima intensidade na região do segundo ruído (ruído de “maquinaria”). Por vezes pode auscultar-se um sopro diastólico apical devido ao aumento de débito através da válvula mitral (rodado de débito).

Nos recém-nascidos pré-termo, a permeabilidade do canal arterial de grande calibre pode apresentar-se com sinais de insuficiência cardíaca congestiva e edema pulmonar entre as 2 e as 4 semanas de vida. O sopro é habitualmente sistólico, rude e mais pronunciado no bordo esquerdo do esterno. Traduz-se clinicamente por taquicardia, deterioração respiratória com necessidade de ventilação mecânica para além do tempo esperado e aumento da amplitude dos pulsos periféricos. O grande shunt esquerdo-direito causa fuga significativa durante todo o ciclo cardíaco e baixo débito sistémico, que no grande prematuro concorre para aumentar o risco de isquémia mesentérica e insuficiência renal. Está documentada uma incidência aumentada de displasia broncopulmonar, hemorragia intraventricular e enterocolite necrosante, pelo défice de perfusão destes órgãos no contexto de shunt esquerdo-direito através do canal. (Parte Perinatologia/Neonatologia)

Em doentes com canal arterial moderado a grande, não diagnosticado, o aumento mantido do débito pulmonar pode gerar doença vascular pulmonar obstrutiva irreversível.

Exames complementares

O diagnóstico é fundamentado nos sinais clínicos e num conjunto de exames complementares descritos a seguir.

Radiografia do tórax

No canal arterial pequeno, a radiografia do tórax não apresenta sinais de alterações. Nos casos de canal moderado ou grande, observa-se proeminência dos arcos da artéria pulmonar, aumento do índice cardiotorácico (por dilatação da aurícula e ventrículo esquerdos), e aumento da vascularização pulmonar (Figura 1). Com a progressão para doença pulmonar vascular obstrutiva, as dimensões do coração normalizam, verificando-se dilatação do tronco e ramos hilares da artéria pulmonar juntamente com diminuição de calibre dos seus ramos periféricos (padrão em “árvore de inverno”).

Ecocardiograma

O ecocardiograma é fundamental no estudo da morfologia e dimensões do canal arterial, permitindo: aferir a necessidade terapêutica e a adequação de um eventual encerramento percutâneo; e excluir patologia associada.

As dimensões das cavidades esquerdas fornecem sinais indirectos sobre a magnitude do shunt e o estudo com Döppler pulsado e codificado em cor permite detectar e quantificar o shunt através do canal arterial. A relação entre as dimensões da aurícula esquerda e a raiz da aorta fornece importantes indicações quanto à dilatação auricular esquerda e magnitude do shunt: £ 1.2 é normal em crianças; > 1.2 denota dilatação da aurícula esquerda; e > 1.5 traduz shunt esquerdo-direito significativo. A presença de um fluxo por cor que atinge a válvula pulmonar e de largo diâmetro também indica a presença de canal hemodinamicamente significativo.

FIGURA 1. Radiografia do tórax de recém-nascido com canal arterial grande em ventilação artificial

FIGURA 2. Imagens de ecocardiografia de canal arterial persistente, visualizando-se à esquerda o fluxo a laranja do shunt esquerdo-direito entre a aorta e a artéria pulmonar e, à direita, o fluxo contínuo detectado pelo Döppler contínuo

Complicações

A insuficiência cardíaca congestiva ocorre principalmente nos lactentes com shunt significativo depois das primeiras semanas de vida (entre as 2 e as 4 semanas).

A doença pulmonar vascular obstrutiva, com resistência vascular pulmonar fixa e disfunção cardíaca direita, pode ocorrer como complicações tardias nos casos de canal arterial de grande débito não tratado.

A endarterite bacteriana e o aneurisma do canal arterial (ocorrendo após endarterite ou cirurgia) são raros. Por este motivo, as mais recentes recomendações internacionais não advogam a profilaxia antibiótica de endocardite bacteriana nos casos de canal arterial patente isolado.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se com situações que cursam com sopro contínuo e se podem apresentar com insuficiência cardíaca: não patológicas (como zumbido venoso) e patológicas (como “janela” aorto-pulmonar, fístula artério-venosa, truncus arteriosus com insuficiência da válvula truncal, fístula do seio de Valsava aórtico para o ventrículo direito, comunicação interventricular com regurgitação aórtica, e colaterais sistémico-pulmonares).

Lesões cardíacas associadas

A persistência de canal arterial associa-se mais frequentemente a comunicação interventricular e interauricular; no entanto, pode ocorrer em associação a muitas outras cardiopatias. Pode agravar a apresentação clínica de outros shunts esquerdo-direito (por exemplo, comunicação interventricular, comunicação interauricular) e de obstáculos à entrada ou saída do ventrículo esquerdo.

Existem anomalias cardíacas em que a persistência de canal arterial é necessária à sobrevivência (patologias canal-dependente) como: obstáculos graves à saída do ventrículo direito (por exemplo atrésia da pulmonar, atrésia da tricúspide) em que o fluxo pulmonar depende do canal arterial; e obstáculos graves à saída do ventrículo esquerdo (por exemplo coração esquerdo hipoplásico, coarctação da aorta) em que o fluxo sistémico depende do canal arterial. Nestes casos, no período neonatal recorre-se à administração de prostaglandina E1 ou E2 para a manutenção da permeabilidade do canal arterial enquanto se aguarda pelo tratamento cirúrgico.

Tratamento

Tratamento médico

As crianças que apresentam sinais de insuficiência cardíaca, geralmente têm uma boa resposta à terapêutica anticongestiva e podem ser mantidas neste regime até à idade conveniente para encerramento percutâneo.

Nos recém-nascidos pré-termo, o encerramento espontâneo é a regra, sendo muitas vezes necessário utilizar medidas terapêuticas como restrição hídrica, diuréticos, transfusão sanguínea e/ou ventilação assistida com pressão positiva. Nos casos em que não seja possível controlar a insuficiência cardíaca recorre-se à terapêutica médica com ibuprofeno. Este inibidor da cicloxigenase favorece o encerramento do canal arterial por redução da produção de prostaglandinas. É administrado durante 5 dias, na dose de 5 mg/Kg/dia. O ciclo pode ser repetido no caso de insucesso ou recorrência. Actualmente também se tem utilizado com bom resultado e menos efeitos secundários o paracetamol endovenoso. As contraindicações da utilização do ibuprofeno são: hipersensibilidade conhecida, sépsis, enterocolite necrosante, hemorragia gastrintestinal, coagulopatia, trombocitopénia < 50.000/mm3 e insuficiência renal. Nos doentes que apresentam contraindicação para tratamento médico deve avançar-se para cirurgia. Como complicações possíveis da terapêutica, estão descritas: hemorragia intraventricular, insuficiência renal, trombocitopénia, leucopénia e hiperbilirrubinémia.

Cateterismo cardíaco terapêutico

O encerramento do canal arterial está indicado em crianças sintomáticas e, na ausência de sintomas, no contexto de shunt esquerdo-direito significativo. O encerramento de um canal arterial pequeno, na ausência de semiologia auscultatória (“canal silencioso”) e de dilatação de cavidades esquerdas é controverso e, na opinião dos autores, não está indicado.

O encerramento do canal arterial por via percutânea é o tratamento de eleição nas crianças com peso > 5 Kg; em casos bem seleccionados (anatomia favorável) pode ser efectuado em crianças de peso inferior. Alguns autores têm utilizado esta técnica para encerramento em prematuros com anatomia favorável e peso superior a 1 kg.

O procedimento pode ser efectuado com filamentos helicoidais de libertação controlada (“detachable coils” e Nit-Occlud®) e dispositivos de malha metálica em forma cónica de Amplatzer®. As taxas de sucesso são próximas de 99% com eficácia muito elevada e taxa de complicações reduzida. As complicações potenciais são: persistência de shunt residual (5-10%), embolização do dispositivo, lesão vascular, hemólise e trombose das veias femorais. As vantagens relativamente ao tratamento cirúrgico são o menor tempo de hospitalização e de convalescença, e a evicção de cicatriz de toracotomia.

O encerramento do canal arterial está contraindicado em contexto de hipertensão pulmonar fixa.

Tratamento cirúrgico

As indicações para o tratamento cirúrgico estão restritas aos lactentes com peso inferior a 5 kg, portadores de canal arterial de grande calibre ou com morfologia incompatível com o encerramento percutâneo, e insuficiência cardíaca refractária à terapêutica médica. Nos recém-nascidos pré-termo recorre-se à cirurgia nos casos em que existe contraindicação ou falência da terapêutica médica.

Nos primeiros 5 dias de vida em RN pré-termo, a determinação sérica seriada do BNP (péptido natriurético do tipo B) constitui um biomarcador útil para definir a estratégia terapêutica nas situações de canal arterial hemodinamicamente significativo. Determinados centros utilizam os seguintes critérios – “picos” pelas 24-48 horas de vida: ~250 pg/mL <> tratamento médico; ~2.000 pg/mL <> laqueação cirúrgica.

As complicações (lesão dos nervos laríngeos recorrente ou frénico, lesão do canal torácico, hemorragia, atelectasia e derrame pleural) são raras. A taxa de persistência de shunt residual descrita na literatura situa-se entre 0,4-3%.

Seguimento

Os doentes com canal arterial não tratado devem ter seguimento permanente, para avaliar a evolução e as potenciais complicações que surjam.

Na ausência de hipertensão pulmonar ou complicações cirúrgicas, os doentes com canal arterial encerrado cirurgicamente apenas necessitam de seguimento durante seis meses após a terapêutica.

Nos casos em que foi efectuado encerramento percutâneo do canal arterial, o seguimento é mais prolongado para avaliar potenciais complicações da implantação dos dispositivos/coils utilizados. Estas, em geral, são pouco frequentes, sendo de referir a possibilidade de ocorrer estenose do ramo esquerdo da artéria pulmonar ou eventual restrição do lume aórtico. Na ausência de shunt residual não está indicada a profilaxia da endocardite bacteriana, para além de seis meses após a implantação dos dispositivos/coils.

 

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CARDIOLOGIA DE INTERVENÇÃO NAS CARDIOPATIAS CONGÉNITAS

Importância do problema

A cardiologia de intervenção em cardiologia pediátrica compreende um conjunto de técnicas terapêuticas que utilizam o cateterismo cardíaco para a execução de procedimentos terapêuticos com a finalidade de tratar anomalias estruturais cardíacas e vasculares. Estas técnicas envolvem procedimentos para dilatação de vasos ou válvulas estenóticas, oclusão de comunicações ou vasos anormais, abertura ou perfuração de septos ou válvulas atréticas ou implantação de válvulas artificiais.

Alguns procedimentos foram adaptados de técnicas efectuadas em adultos, como as angioplastias com cateter de balão, a implantação de stents ou a oclusão de vasos com dispositivos ou coils. Já outros, como as oclusões de defeitos septais ou a implantação de válvulas desenvolveram-se primeiro em crianças e foram posteriormente adaptados aos adultos.

São efectuados em salas próprias, o Laboratório de Hemodinâmica e Angiocardiografia, com ambiente esterilizado, e equipadas com mesas móveis e equipamento de radioscopia com capacidade para processar e registar imagem digital. São geralmente compartilhadas com a Cardiologia de Intervenção em adultos, o que permite sinergias, quer na utilização de material comum, quer na partilha de conhecimentos.

As anomalias passíveis de intervenção percutânea podem ser nativas, adquiridas ou residuais após os tratamentos cirúrgicos e percutâneos. Os procedimentos, mesmo os mais complexos, têm grande taxa de sucesso e taxas baixas de complicações, quando efectuados por equipas experientes. Os riscos nunca são negligenciáveis e há que ter em consideração a eventual necessidade de colaboração emergente da cirurgia cardíaca, quando ocorrem. A decisão de avançar com um tratamento percutâneo deve, por isso, ser discutida e assumida por uma equipa médico-cirúrgica, o que constitui o conceito de “Heart Team”.

A evolução das diversas técnicas de imagem, em particular da ecocardiografia, com definição de imagem e de acuidade cada vez maior, tornaram possível o quase abandono do cateterismo cardíaco diagnóstico, hoje reservado para situações clínicas, fisiopatológicas ou morfológicas não passíveis de esclarecimento por ecocardiografia, ou quando se justifica a exploração dos parâmetros hemodinâmicos ou a sua provocação com fármacos, como na hipertensão pulmonar. O cateterismo de diagnóstico cedeu a sua posição ao terapêutico, que constitui atualmente um volume superior a 60% dos exames efectuados.

Técnicas básicas

As técnicas de intervenção utilizadas em crianças seguem um método comum. São efectuadas sob anestesia geral ou sedação, e a maioria dos procedimentos começa com a colocação de acessos femorais, podendo, no entanto, ser utilizados outros. Durante o exame recolhem-se e registam-se parâmetros hemodinâmicos e realizam-se angiogramas com injecção intracavitária ou vascular de meios de contraste radiológico, compostos por moléculas de iodo. Os dados obtidos permitem as mais apuradas avaliação anatómica e da gravidade da lesão.

Identificado o problema, deve estabelecer-se um plano de intervenção que segue sempre características básicas comuns; a colocação de cateteres através da lesão a tratar, a introdução de um fio guia através desse cateter para dar suporte para a colocação de próteses terapêuticas, ou a introdução de cateteres com balão para angioplastia ou valvuloplastia. Os cateteres de balão podem ser posicionados directamente nas cavidades cardíacas ou vasos, enquanto os dispositivos, válvulas ou stents devem ser introduzidos de forma protegida, utilizando bainhas longas para a sua implantação.

Dilatações

Septostomia

A atriosseptostomia com cateter de balão, foi introduzida por William Rashkind e William Miller em 1966. Ambos desenvolveram um cateter de balão que é introduzido na aurícula esquerda, através do foramen ovale ou de uma comunicação interauricolar; depois de insuflado, é traccionado alargando a comunicação, o que permite melhor mistura de sangue a nível auricular. Este procedimento foi desenhado para melhorar a SpO2 de recém-nascidos com transposição das grandes artérias e é utilizado ainda hoje. Em Portugal foi efectuado pela primeira vez por Fernanda Sampayo em 1970, também numa criança com transposição. Este foi o primeiro cateterismo terapêutico e o precursor da cardiologia de intervenção. (Figura 1)

Em crianças mais velhas, em que o septo interauricolar é mais espesso e rígido, a criação de uma comunicação interauricular é efectuada por um cateter de lâmina ou um cateter de balão com lâminas (cutting balloon) e posteriormente alargada com cateter de balão.

Além de se utilizar para melhorar a SpO2 sistémica em crianças com transposição, é também utilizada para descomprimir cavidades auriculares com obstáculo de saída, como na atrésia da mitral ou da tricúspide, ou ainda, para fazer a descompressão da aurícula esquerda em doentes em ECMO.

FIGURA 1. Atriosseptostomia de Rashkind: aspecto do balão insuflado em radioscopia e ecocardiografia e resultado final com criação de comunicação interauricular

Valvuloplastia de balão

A utilização das técnicas de angioplastia e de valvuloplastia com cateter de balão foram progressivamente aceites como método não cirúrgico para dilatar artérias e válvulas estenosadas. Os princípios físicos desta técnica dependem da transmissão de uma força radial controlada através do balão rígido insuflado, contra a parede de um vaso ou os folhetos de uma válvula.

A valvuloplastia de balão foi descrita pela primeira vez em 1982, por Kan e tornou-se o tratamento de primeira linha para a estenose valvular pulmonar em qualquer idade. Utilizando técnica estandardizada de cateterismo cardíaco direito, o cateter de balão é posicionado na válvula pulmonar estenótica; ao ser insuflado, rasga as comissuras e alivia a estenose, por vezes à custa de regurgitação valvular, que quando tecnicamente bem efectuada é de grau ligeiro e bem tolerada.

Este procedimento inicialmente descrito para as válvulas pulmonares foi sendo adaptado e expandido para outras situações mais complexas e críticas e até outras válvulas e vasos estenóticos, utilizando sempre os mesmos conceitos técnicos.

A melhoria do material disponível e a sua miniaturização permitiram o seu uso em recém-nascidos com estenose pulmonar crítica e na atrésia da válvula pulmonar, para dilatação após a sua perfuração com um guia ou agulha de radiofrequência. (Figura 2)

Também pode ser efectuada, de forma paliativa, para reduzir a estenose valvular em recém-nascidos com tetralogia de Fallot, com a finalidade de melhorar a sua saturação e protelar a cirurgia.

A estenose valvular aórtica, na criança, também pode ser submetida a valvuloplastia. Este procedimento tem particularidades técnicas que devem ser respeitadas para obter um bom resultado, ou seja o alívio significativo da estenose sem regurgitação aórtica que, a surgir, é menos bem tolerada que à direita.

FIGURA 2. Valvuloplastia com cateter de balão em recém-nascido com estenose valvular pulmonar crítica. À esquerda visualiza-se ventriculografia direita evidenciando-se o pequeno orifíco da válvula pulmonar; no meio pode ver-se o cateter de balão insuflado; à direita o resultado final após dilatação com melhoria significativa do fluxo para a artéria pulmonar

Angioplastia de balão

A dilatação percutânea de vasos com cateteres de balão foi um dos primeiros tratamentos efectuados por cateterismo de intervenção. De salientar que foram os trabalhos pioneiros de Dotter e de Gruntzig que implementaram a sua utilização em artérias periféricas e em artérias coronárias para tratamento de lesões estenóticas ateroscleróticas. Esta técnica para tratamento ou paliação de estenoses vasculares congénitas, aplica-se na angioplastia da coarctação da aorta ou de estenoses de vasos arteriais, como as artérias pulmonares.

O procedimento foi descrito como substituto da cirurgia, inicialmente no tratamento da recoarctação da aorta após tratamento cirúrgico e, mais tarde, na coarctação nativa. Nesta, no entanto, está reservada a lactentes e crianças sem canal arterial e sem anomalias do arco aórtico, nomeadamente hipoplasia. (Figura 3)

FIGURA 3. Angioplastia com cateter de balão de coarctação da aorta. Observa-se à esquerda aortografia e a coarctação da aorta, e à direita o cateter de balão insuflado através da coarctação

Não é isenta de complicações, sendo a formação de aneurismas da parede do vaso e a sua ruptura as mais graves; portanto, a sua utilização deve ser judiciosa. Por outro lado a dilatação mais conservadora condiciona estenose residual. Por vezes as lesões são tão fixas que, mesmo após dilatação, regressam à forma inicial (recoil). Este problema pode ser solucionado com a implantação adicional de stents.

Stents

Os stents foram introduzidos para evitar e solucionar as complicações vasculares como a dissecção, aneurismas e recoil das lesões estenóticas, a nível arterial periférico e coronário. Em cardiologia pediátrica a sua utilização é particularmente importante nas estenoses dos ramos das artérias pulmonares, quer nativas, quer após correcção cirúrgica de cardiopatia complexa, em que uma nova cirurgia tem um peso significativo.

Os stents utilizados são, geralmente, expansíveis por cateter de balão, e podem ser ainda expandidos posteriormente de forma a acompanhar o crescimento da criança. Trata-se duma técnica complexa que apresenta resultados consistentes. Pode ter complicações graves, como ruptura dos vasos, trombose do in situ ou lesões vasculares, uma vez que para serem introduzidos no sistema vascular necessitam de cateteres e bainhas de maior calibre.

Actualmente são utilizados cada vez mais para tratar a coarctação nativa, em particular em crianças e adolescentes com mais de 30 Kg de peso.

A sua utilização é também possível, para manter patente o canal arterial no recém-nascido com cardiopatia canal-dependente, ou para dar estabilidade à câmara de saída do ventrículo direito, quando se pretende implantar uma válvula pulmonar.

Oclusões

A oclusão percutânea de defeitos septais e de vasos anómalos teve uma expansão extraordinária desde os anos 90, com a introdução de novos dispositivos de fácil utilização. Para estas técnicas é crucial que o dispositivo possa ser reposicionável, recuperável e ter uma estrutura biocompatível e suficientemente resistente para tolerar o estresse das contracções cardíacas ao longo da vida, sem fracturas. Estas características encontram-se em diversos modelos que utilizam o nitinol, liga de níquel e titânio, como base para a sua produção.

O canal arterial persistente foi das primeiras anomalias a ser ocluída por via percutânea. Esta técnica é actualmente a primeira escolha para o seu tratamento, sendo excepção o canal arterial do prematuro e o de grande dimensão e com morfologia inadequada para a utilização dos dispositivos. O procedimento tem elevada taxa de sucesso e uma taxa de oclusão próxima dos 100%, assim como baixa taxa de complicações. (Figura 4)

FIGURA 4. Encerramento de canal arterial persistente com coil (à esquerda) e com dispositivo de Amplatzer (à direita). Pode observar-se em ambos os casos a oclusão completa do canal arterial quando se realiza angiografia da aorta

Outros vasos anómalos podem ser ocluídos como, colaterais sistémico-pulmonares, fístulas arteriovenosas pulmonares, coronárias ou sistémicas e shunts cirúrgicos.

A oclusão de defeitos septais requer uma visualização adequada da estrutura anatómica do defeito, da sua relação com as estruturas adjacentes e da correcta implantação do dispositivo; para isso, utiliza-se em simultâneo a ecocardiografia transesofágica ou a intracardíaca. A comunicação interauricular, tipo ostium secundum, é uma das cardiopatias mais frequentes, sendo o seu encerramento por cateterismo actualmente a técnica seleccionada. Está apenas reservada a defeitos com dimensão, localização e bordos adequados para a oclusão por dispositivo. Importa que, além do sucesso da intervenção, não ocorram complicações ou distorção das estruturas adjacentes, como as veias pulmonares, a válvula mitral e as veias cavas. (Figura 5)

FIGURA 5. Oclusão de comunicação interauricular com dispositivo de Amplatzer. Pode observar-se a imagem por ecocardiografia do defeito septal (à esquerda) e a implantação do dispositivo simultaneamente por ecocardiografia transesofágica (ao meio) e por radioscopia (à direita)

O foramen ovale patente também pode ser ocluído por técnica idêntica em doentes com indicação para o seu encerramento, por acidente vascular cerebral secundário a embolia paradoxal. Esta situação é excepcional em pediatria.

As comunicações interventriculares (CIV) podem ser ocluídas por cateterismo. No entanto, esta técnica não é ainda a primeira escolha, por existirem complicações significativas, em particular com o encerramento das CIV perimembranosas. Os melhores resultados ocorrem em defeitos posicionados na região muscular do septo.

Mais recentemente, os procedimentos híbridos, que recorrem à colaboração entre as técnicas percutâneas e a cirurgia cardíaca, têm-se posicionado como os de maior potencial para o encerramento das comunicações interventriculares.

Implantação de válvulas

Diversas cardiopatias congénitas com obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito são tratadas cirurgicamente com implantação de condutos ou homoenxertos entre o ventrículo direito e a artéria pulmonar. Embora estes resolvam o problema da obstrução, a sua deterioração ao longo do tempo condiciona disfunção, regurgitação grave e estenose com calcificação variável.

Classicamente, este problema era solucionado com nova intervenção cirúrgica e substituição do conduto; como alternativa, Bonhoeffer foi pioneiro no desenvolvimento e implantação de válvula percutânea em posição pulmonar.

Esta consiste num stent de platina expansível por balão revestido por um conduto valvulado, constituído por jugular de vaca (Medtronic, Inc.). Este procedimento complexo requer a prévia colocação de stents no conduto disfuncionante, de modo a constituir uma plataforma adequada para implantação da válvula. O sistema de entrega é um cateter de grande calibre, o que condiciona o tamanho dos doentes que podem ser tratados. Actualmente existe outra válvula disponível no mercado (Edwards Lifescience), que assegura um maior leque de possibilidades terapêuticas.

O procedimento tem uma elevada taxa de sucesso e complicações limitadas, sendo a mais grave, a compressão das artérias coronárias. Pode ser evitada desde que sejam esclarecidos todos os pormenores morfológicos no cateterismo antes da implantação. (Figura 6)

FIGURA 6. Implantação de válvula pulmonar por via percutânea. Pode ver-se que, após a implantação da válvula, esta é perfeitamente competente durante a execução da arteriografia pulmonar

Cateterismo de intervenção e cirurgia cardíaca

O crescimento da cardiologia de intervenção permitiu o tratamento por cateterismo das cardiopatias congénitas mais simples, deixando as cardiopatias mais complexas para a cirurgia cardíaca. Por outro lado, a melhoria dos resultados cirúrgicos contribuiu com aumento de potenciais candidatos à intervenção percutânea para tratar defeitos residuais ou complicações.

A complementaridade das duas áreas terapêuticas permitiu uma melhoria significativa dos resultados nas crianças com cardiopatia congénita. Esta complementaridade culminou com o advento dos procedimentos híbridos; estes, tendo surgido inicialmente para o tratamento da síndroma do coração esquerdo hipoplásico, expandiram-se para outras patologias e serão seguramente uma área importante para o futuro. (Figura 7)

Novos desenvolvimentos de técnicas a nível de cateteres e de dispositivos, em particular da sua miniaturização e melhoria do seu perfil, permitirão uma maior gama de tratamentos para o futuro.

FIGURA 7. Tratamento híbrido em recém-nascido com síndroma de ventrículo esquerdo hipoplásico. Pode ver-se os bandings das artérias pulmonares (setas vermelhas 1 e 2) e a implantação de stent no canal arterial (seta vermelha 3)

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NOVOS MÉTODOS DE IMAGEM PARA A ORIENTAÇÃO DIAGNÓSTICA E TERAPÊUTICA DAS CARDIOPATIAS CONGÉNITAS

Introdução

Sendo as cardiopatias congénitas anomalias morfológicas com associações anatómicas variadas, o seu diagnóstico depende fundamentalmente de métodos de imagem com boa definição e acuidade para permitir a identificação dos defeitos intracardíacos e vasculares e, se possível, associada a uma avaliação funcional e fisiológica da circulação. Antes do aparecimento da ecocardiografia, este papel foi desempenhado pelo cateterismo diagnóstico, o qual foi rapidamente complementado e até suplantado pela ecocardiografia avançada, com a vantagem de se tratar de um exame não invasivo, raramente requerendo sedação.

Nos últimos anos ocorreram em simultâneo avanços extraordinários no âmbito da ultrassonografia (com a possibilidade de obter imagens tridimensionais em tempo real de alta definição), da ressonância magnética e da tomografia computadorizada (com aplicações específicas para a cardiologia, alterando a abordagem diagnóstica das cardiopatias congénitas). O cateterismo diagnóstico passou a ficar reservado para situações específicas em que não se consegue diagnosticar pelos outros métodos, e para avaliação de dados hemodinâmicos rigorosos numa perspectiva de decisão terapêutica. Em contrapartida, o laboratório de hemodinâmica avançou para a vertente de intervenção percutânea que é actualmente uma área fundamental para o tratamento de diversas anomalias.

Na era da multimodalidade de imagem, a ecografia continua a ser a primeira escolha na avaliação inicial e seguimento das cardiopatias congénitas. Em idade pediátrica esta é geralmente esclarecedora, não sendo necessário o recurso a outros métodos de imagem. No entanto, os enormes progressos a que temos assistido no campo das técnicas imagiológicas não invasivas, concretamente ressonância magnética (RM) e tomografia computadorizada (TC), têm vindo a modificar a abordagem diagnóstica e orientação terapêutica desta população de doentes, em particular nos que têm “má janela” ecocardiográfica.

Face à importância crescente dos referidos métodos e técnicas, cada vez menos invasivos, e cada vez mais esclarecedores quanto a avaliação funcional, o objectivo essencial deste capítulo é estabelecer, de modo sucinto, as respectivas indicações no contexto clínico das cardiopatias congénitas.

Tomografia computadorizada

Ambas as técnicas, RM e TC, permitem a obtenção de imagens em múltiplos planos, as quais podem ser posteriormente reconstruídas tridimensionalmente, o que facilita a compreensão espacial anatómica das cardiopatias congénitas mais complexas. Em ambas, torna-se necessário proceder a sedação ou anestesia para a sua execução em crianças.

A grande vantagem da TC sobre a RM é a rapidez na aquisição das imagens. Contudo, utilizando contraste iodado (com mais efeitos secundários que o contraste à base de gadolínio utilizado na RM), implica a exposição a radiação ionizante, aspecto da maior relevância em idade pediátrica tendo em conta designadamente a necessidade de seguimento e de repetição em várias idades.

Assim, as indicações da TC no âmbito das cardiopatias congénitas são muito restritas (Figura 1):

  1. Avaliação da anatomia vascular no pequeno lactente instável, em que os riscos de uma sedação/anestesia prolongada podem superar os riscos da radiação;
  2. Anatomia vascular pós-implantação de stents, uma vez que a RM é mais sensível aos artefactos produzidos por estes dispositivos;
  3. Suspeita de doença coronária;
  4. Contraindicação para a realização de RM, nomeadamente em doentes com pacemakers ou cardio-disfibrilhadores implantáveis.

FIGURA 1. Angio-TC num doente com transposição das grandes artérias operada (switch arterial) demonstrando discreta estenose funcional do RDAP, na zona de passagem entre a aorta e a veia cava superior (A); coronariografia-TC revela coronárias sem alterações (B); reconstrução tridimensional visualizando-se trajecto proximal das coronárias direita e esquerda (C). (Ao: aorta; AP: artéria pulmonar; CD: coronária direita; CE: coronária esquerda)

Ressonância magnética

A RM tem melhor resolução temporal que a TC, embora a resolução espacial seja inferior à da TC; em conjunto há possibilidade de obtenção de um manancial de informação não só anatómica, mas também funcional.

A RM é considerada na actualidade o método “padrão de ouro”/gold standard na avaliação da função ventricular sistólica, global e regional, permitindo o cálculo de volumes, massa e fracção de ejecção. Outra das potencialidades desta técnica é a quantificação de diversos fluxos, nomeadamente cálculo da fracção de regurgitação das válvulas aórtica e pulmonar, com acuidade diagnóstica superior à ecocardiografia. A combinação de múltiplas sequências de RM permite ainda caracterizar a composição tecidual das estruturas cardiovasculares e identificar fibrose miocárdica (substracto com potencial arritmogénico) pela técnica de realce tardio.

A RM tem um papel crucial na avaliação diagnóstica, prognóstica e consequente orientação terapêutica das cardiopatias congénitas, com as seguintes indicações (Figura 2):

  1. Avaliação da anatomia intracardíaca pré e, sobretudo pós-cirúrgica;
  2. Avaliação da anatomia vascular extracardíaca;
  3. Quantificação de volumes e função ventriculares, sobretudo nas patologias que envolvem o ventrículo direito, e nos corações de fisiologia univentricular;
  4. Quantificação de fluxos, concretamente Qp/Qs e fracção de regurgitação valvular;
  5. Caracterização tecidular, nomeadamente de tumores;
  6. Identificação de substractos arritmogénicos (fibrose miocárdica);
  7. Avaliação da origem e trajecto proximal das artérias coronárias. 

FIGURA 2. Dois exemplos em que a utilização de Angio-RM está indicada (após injecção de contraste com gadolinium): à esquerda, avaliação anatómica de coarctação aórtica severa justaductal com rede colateral exuberante; à direita avaliação anatómica e funcional pré-reintervenção cirúrgica em tetralogia de Fallot operada com dilatação major do VD (> 150 ml/m2) por regurgitação pulmonar

Conclusão

As técnicas de imagem não invasivas multiplanares e tridimensionais têm tido um impacte muito positivo na orientação diagnóstica e terapêutica das cardiopatias congénitas, com destaque para a RM cardiovascular; este método, que complementa e ultrapassa as limitações da janela ecocardiográfica, constitui uma alternativa não invasiva e não ionizante ao cateterismo cardíaco diagnóstico. A Angio-TC tem um papel adjuvante com indicações muito específicas em idade pediátrica, em especial para a avaliação anatómica da circulação coronária.

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CARDIOPATIAS CONGÉNITAS. GRUPOS FISIOPATOLÓGICOS

Definição e importância do problema

Tendo em consideração o número de cavidades, válvulas, septos e estruturas vasculares que entram e saem do coração, é fácil imaginar a enorme quantidade de defeitos estruturais relacionados com anomalias do desenvolvimento do coração: cavidades hipoplásicas ou inexistentes, septos incompletos, câmaras de entrada ou saída estenosadas, válvulas malformadas, vasos mal posicionados ou malformados, e ainda, persistência de estruturas que não tenham passado pelo normal processo de involução pós-natal.

Embora existam numerosas combinações de defeitos que determinam um considerável número de variantes anatómicas, é possível enquadrar essas entidades clínicas, sob o ponto de vista fisiopatológico, em cinco grupos, de modo a tornar mais facilmente compreensível o seu quadro clínico. O quadro clínico resultante é determinado pelas consequências das anomalias cardíacas, pelo que a sua avaliação deve ter em conta: a anomalia fisiológica básica e o tipo de carga que impõe ao sistema cardiovascular em desenvolvimento; o efeito possível sobre a dinâmica da circulação fetal e neonatal; e a influência dos fenómenos de adaptação circulatória pós-natal, (particularmente a maturação do leito vascular pulmonar) sobre as características do quadro clínico.

Grupos fisiopatológicos

De uma forma simplificada, as cardiopatias congénitas mais frequentes integram-se nos seguintes grupos fisiopatológicos, determinados pela influência da anomalia predominante:

  1. Cardiopatias congénitas com Shunts esquerdo-direito
  2. Lesões obstrutivas: esquerdas e direitas
  3. Cardiopatias congénitas cianóticas:
    • Com shunts direito-esquerdo;
    • Com fisiologia de transposição;
    • Com fisiologia de mistura.

1. Cardiopatias congénitas com shunt esquerdo–direito

O shunt esquerdo-direito representa um volume de sangue sistémico que faz bypass à circulação sistémica, sendo derivado para a circulação pulmonar. Para que tal ocorra, é necessário haver uma comunicação anormal intracardíaca (auricular ou ventricular) ou extracardíaca (entre a artéria pulmonar e a aorta). Desta forma, o débito pulmonar está aumentado e é superior ao sistémico; tal situação, condicionando sobrecarga de volume ventricular, traduz-se por um quadro clínico de insuficiência cardíaca.

A sintomatologia é influenciada pela idade do doente, localização anatómica do shunt, tamanho do defeito e resistência vascular relativa entre as duas circulações, sistémica e pulmonar. No recém-nascido de termo, a resistência vascular pulmonar é elevada e, por isso, os sinais de insuficiência cardíaca devida a um grande shunt esquerdo-direito apenas se manifestam entre a terceira e a sexta semana de vida (após o declínio fisiológico da resistência vascular pulmonar).

A localização anatómica do defeito é uma condicionante importante do quadro clínico; os shunts a nível auricular, permitindo a comunicação entre câmaras de baixa pressão, têm, por isso, pouco efeito sobre a pressão arterial pulmonar. A alteração fisiológica fundamental é a sobrecarga de volume das cavidades direitas (aurícula e ventrículo), dependente do tamanho do defeito e da distensibilidade diastólica do ventrículo direito, o que se traduz na dilatação e hipertrofia ventricular direitas. Nos shunts esquerdo–direito a nível ventricular (como comunicação interventricular) ou das grandes artérias (como persistência do canal arterial), a magnitude do shunt, e por isso a sintomatologia, são determinadas pelo tamanho do defeito e pela relação entre resistências vasculares pulmonar e sistémica.

O aumento do débito pulmonar associa-se a um aumento da pressão sistólica na artéria pulmonar, e em resposta a esta sobrecarga ocorre dilatação da artéria numa fase inicial. Ao longo do tempo, se os defeitos não forem corrigidos, este estímulo vai desencadear espessamento da camada média das artérias pulmonares, podendo evoluir para doença vascular pulmonar, com aumento muito significativo da resistência vascular pulmonar, desaparecimento do shunt esquerdo-direito e, até, inversão deste com aparecimento de cianose. O desenvolvimento de doença vascular pulmonar obstrutiva (síndroma de Eisenmenger), uma complicação devastadora e irreversível, constitui um risco inerente a este tipo de shunts. A sobrecarga de volume do ventrículo esquerdo por aumento do retorno venoso pulmonar leva ao desenvolvimento de dilatação e hipertrofia ventricular esquerdas.

2. Lesões obstrutivas

As anomalias das válvulas cardíacas contribuem para a maioria das lesões obstrutivas na infância. Os casos restantes são obstáculos proximais ou distais relativamente às válvulas. Os obstáculos à entrada do coração afectam o sistema venoso, provocando ingurgitamento e edema nos órgãos drenados pelo segmento obstruído. Os obstáculos à saída provocam aumento de pressão na cavidade ventricular e o desenvolvimento de mecanismos de adaptação para vencer a resistência, designadamente, hipertrofia ventricular.

O quadro clínico é determinado por diversos factores: localização anatómica; gravidade da obstrução; presença de outras sobrecargas hemodinâmicas (lesões associadas); idade do doente; alteração da função miocárdica. A localização anatómica da lesão determina obstáculo à entrada ou à saída do coração, marcando desde logo as diferenças quanto a manifestações clínicas, história natural, tratamento e prognóstico. Quanto mais grave for a obstrução, mais importante será a sua expressão clínica. O grau de obstrução valvular pode ser estimado pelos achados obtidos por auscultação cardíaca, electrocardiograma, ecocardiografia Döppler, e ainda directamente por cateterismo cardíaco. A coexistência de defeitos associados (lesões obstrutivas ou regurgitantes com outras localizações ou shunt esquerdo-direito), alteram a fisiopatologia e a expressão clínica da lesão obstrutiva.

A idade do doente é um factor importante porque existem diferenças significativas nas respostas funcionais desde o período neonatal até à idade adulta, determinadas pelas diferenças inerentes à transição circulatória do período neonatal, à reserva funcional do miocárdio e à capacidade de adaptação a alterações hemodinâmicas determinadas pelo obstáculo. As alterações da função miocárdica são consequência da rapidez de desenvolvimento do obstáculo: um obstáculo que se desenvolva rapidamente provocará alteração hemodinâmica aguda com deterioração rápida da função miocárdica, enquanto uma obstrução que se desenvolva gradualmente permitirá uma adaptação do miocárdio à sobrecarga de pressão. Um dos mecanismos de adaptação é a hipertrofia ventricular. A sobrecarga crónica de pressão provoca alterações na circulação miocárdica, a qual se tornará insuficiente para corresponder ao aumento das necessidades metabólicas impostas pelo aumento da massa muscular ventricular; como resultado, surgirão isquémia e, consequentemente, disfunção ventricular e insuficiência cardíaca.

2.1 Obstáculos esquerdos

Os obstáculos esquerdos correspondem a obstruções à entrada ou à saída do coração esquerdo. A regurgitação valvular é muito frequente e não pode ser ignorada na avaliação destas lesões. A localização anatómica à entrada do coração esquerdo (exemplos: estenose das veias pulmonares, cor triatriatum, estenose supravalvular mitral ou doença mitral congénita) provoca inicialmente obstáculo ao retorno venoso pulmonar e, portanto, hipertensão venosa e edema pulmonar com consequente diminuição da distensibilidade pulmonar, o que conduz a aumento do esforço respiratório. Este quadro pode ser confundido com doença pulmonar.

Numa fase ulterior, desenvolve-se hipertensão arterial e arteriolar pulmonares, com sobrecarga de pressão do ventrículo direito. Nos obstáculos à saída do coração esquerdo (exemplos: estenose aórtica subvalvular, valvular e supravalvular, coarctação da aorta), a principal alteração hemodinâmica é a sobrecarga de pressão do ventrículo esquerdo por aumento da resistência à ejecção, com consequente aumento da pressão intraventricular e hipertrofia ventricular esquerda. A evolução para disfunção ventricular depende da gravidade e cronicidade do obstáculo. A associação de insuficiência valvular com a estenose aórtica pode determinar a data da intervenção terapêutica, independentemente da gravidade do obstáculo.

 2.2 Obstáculos direitos

Os obstáculos à entrada do coração direito (ex. obstrução das veias cavas, atrésia ou estenose tricúspide), bem como as lesões regurgitantes da válvula tricúspide, produzem quadros de congestão venosa sistémica com hepatomegália e edema periférico (nas crianças mais velhas).

Os obstáculos à saída do ventrículo direito situam-se a nível valvular, subvalvular e, mais raramente, supravalvular. A gravidade destas lesões é relativamente fácil de avaliar pelas características da auscultação cardíaca e pelas alterações electrocardiográficas relacionadas com o grau de hipertrofia ventricular direita que determinam. A quantificação e definição morfológica obtêm-se com a ecocardiografia e a utilização do Döppler, que permite determinar o gradiente de pico transvalvular e desta forma especificar a gravidade da lesão.

3. Cardiopatias congénitas cianóticas

As cardiopatias congénitas cianóticas, caracterizam-se pela presença de cianose, a qual traduz um grau de hipoxémia na circulação sistémica. A cianose deve-se à presença de mais de 5 gramas de hemoglobina (Hb) não saturada em O2 por cada dL de sangue circulante. Salienta-se, contudo, que detecção clínica da cianose depende, não só da quantidade de Hb não saturada no sangue circulante, mas também da sua concentração total.

Em doentes com saturação Hb-O2 (SpO2) de 60% surgirá cianose se o teor em Hb total for >12,5 g/dL; não surgirá cianose se a Hb for < 10 g/dL, situação a que corresponde teor em Hb não saturada de quatro gramas por cada dL de sangue circulante.

As lesões que determinam esta expressão clínica enquadram-se em três mecanismos fisiopatológicos: cardiopatias com shunt direito-esquerdo, cardiopatias com fisiologia de transposição ou com fisiologia de mistura.

3.1 Cardiopatias com shunt direito-esquerdo

Shunt direito-esquerdo é a derivação de uma quantidade de sangue venoso para a circulação sistémica, fazendo bypass à circulação pulmonar; desta forma o débito sistémico é superior ao pulmonar. A tetralogia de Fallot é o protótipo da fisiologia de shunt direito-esquerdo: consiste na associação de comunicação interventricular grande com obstáculo à saída do ventrículo direito a nível infundibular e, por vezes, também a nível valvular ou supravalvular pulmonar. A presença do obstáculo direito condiciona restrição ao débito pulmonar; e a comunicação interventricular faz derivar o sangue venoso do ventrículo direito para a circulação sistémica.

Várias cardiopatias congénitas complexas partilham este tipo de fisiologia, uma vez que associam uma comunicação intracardíaca grande com um obstáculo:

  1. à circulação pulmonar (obstáculo que pode ocorrer a diversos níveis, desde a válvula tricúspide à pulmonar); e, também,
  2. a nível das artérias pulmonares (exemplos: atrésia da tricúspide com comunicação interauricular, ventrículo direito de dupla saída com obstáculo pulmonar ou coração univentricular com obstáculo pulmonar).
3.2 Cardiopatias com fisiologia de transposição

A característica da fisiologia de transposição é a presença de sangue mais oxigenado na artéria pulmonar do que na aorta; tal só é possível se, devido a uma anomalia na posição das grandes artérias, o fluxo venoso do ventrículo direito se dirigir primordialmente para a aorta, e o arterial do ventrículo esquerdo para a artéria pulmonar.

Esta anomalia observa-se na transposição das grandes artérias, a cardiopatia congénita cianótica mais frequente no período neonatal, representando cerca de 5% de todas as cardiopatias congénitas. Caracteriza-se por concordância aurículo-ventricular (aurícula direita-ventrículo direito) e discordância ventrículo-arterial (ventrículo direito-aorta e ventrículo esquerdo-artéria pulmonar). Como consequência desta anomalia anatómica, a circulação pulmonar e sistémica encontram-se em paralelo. Clinicamente, a situação só tem viabilidade se existirem, a algum nível da circulação, comunicações que permitam a mistura de sangue oxigenado com o venoso, por forma a obter uma mistura oxigenada viável a nível sistémico. Tal é possível a nível auricular, pelo foramen ovale; nos ventrículos através de uma comunicação interventricular; e a nível das grandes artérias pela presença do canal arterial; quanto maior for a quantidade de mistura a nível das referidas comunicações, melhor será a saturação sistémica e maior estabilidade do recém-nascido.

Ao nascer, devido às modificações fisiológicas da transição da circulação fetal para a neonatal, os shunts fetais (foramen ovale e canal arterial) diminuem ou encerram-se, transformando esta anomalia congénita numa situação fatal, caso não se consiga manter a permeabilidade de tais comunicações tendo em conta a hipoxémia grave resultante desde as primeiras horas de vida.

O tratamento é, pois, emergente: 1- utilização de prostaglandinas para manter o canal arterial patente; e 2- realização de atrioseptostomia de Rashkind para criar uma comunicação interauricular ampla.

3.3 Cardiopatias com fisiologia de mistura

A fisiologia de mistura é uma anomalia hemodinâmica em que existe mistura completa e não restritiva das circulações venosa e sistémica, de modo a que saturação Hb-O2 do sangue é idêntica na artéria pulmonar e na aorta. O paradigma desta situação é o truncus arteriosus, cardiopatia em que existe uma comunicação interventricular na câmara de saída, mas apenas um único vaso (truncus), que dá origem a artérias coronárias, aorta e artérias pulmonares; a mistura das duas circulações é efectuada no truncus. O quadro clínico depende das resistências relativas das duas circulações, mas é dominado por insuficiência cardíaca e cianose moderada, de aparecimento precoce na vida neonatal, geralmente nas primeiras semanas de vida. Nestas lesões a cianose é de menor grau e normalmente bem tolerada, apresentando-se o doente com SpO2 superiores a 85%.

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ARRITMIAS MAIS FREQUENTES EM IDADE PEDIÁTRICA

Definições e importância do problema

Arritmia etimologicamente significa ausência de ritmo. Na perspectiva da cardiologia, refere-se a alterações do automatismo e da condução do impulso cardíaco. Disritmia significa perturbação da frequência e/ou do ritmo cardíaco. Na prática clínica os referidos termos são utilizados como sinónimos, salientando-se que muitos autores dão preferência ao termo “disritmia”. Extrassistolia é definida como contracções anormais, prematuras ou antecipadas do coração, traduzidas por irregularidade do ritmo cardíaco (extrassístoles). Arritmia respiratória é uma situação frequente e benigna em que se verifica variabilidade da frequência cardíaca com os movimentos respiratórios: aumento na inspiração, e diminuição na expiração.

 

Nas últimas décadas tem surgido um interesse crescente por esta patologia pelas seguintes razões: – incremento da respectiva prevalência, relacionada com o desenvolvimento da genética e a detecção crescente de formas hereditárias; – desenvolvimento da cirurgia e cateterismo cardíacos; – desenvolvimento da quimioterapia; – efeito de acidentes tóxicos; – suporte vital no contexto de situações críticas requerendo terapia intensiva, etc.. Surgiram, entretanto, novos métodos de estudo e novos tratamentos incluindo os realizados no período pré-natal e utilizando a via transplacentar.

 

Testemunhando a importância deste problema clínico, citam-se alguns dados epidemiológicos:

  • as disritmias surgem entre 1 e 2% em fetos na fase final da gravidez; entre 1 e 5% em recém-nascidos; globalmente, em cerca de 5% de crianças com menos de 7 anos; e, podem atingir 90% em recém-nascidos pré-termo, com base em dados obtidos em registos Holter;
  • a extrassistolia pode ocorrer em cerca de 1-2% de crianças consideradas saudáveis;
  • as taquicardias supraventriculares, as arritmias mais comuns em idade pediátrica, podem, em cerca de 30% das mesmas, manifestar-se nas primeiras semanas de vida.

A prevalência das disritmias é mais elevada em crianças com cardiopatia congénita submetida ou não a cirurgia cardíaca, salientando-se que o miocárdio na criança tolera frequências cardíacas mais elevadas que o do adulto.

Na maioria dos casos as disritmias têm características benignas, não necessitam de tratamento e têm bom prognóstico. O diagnóstico é fundamental para o tratamento correcto, para tal, além da história clínica (anamnese e exame objectivo), importa a execução de determinados exames complementares, destacando-se, entre estes, o ECG nas suas diversas modalidades, pela sua simplicidade e importância.

Neste capítulo abordam-se as disritmias cardíacas mais frequentes em idade pediátrica.

Etiopatogénese

I – Generalidades

No coração, como se sabe, todos os miócitos têm, entre outras, a propriedade do automatismo. Isto é, todas as células conseguem despolarizar-se e contrair-se; no entanto, não o fazem da mesma forma relativamente ao ritmo a que conseguem despolarizar-se. 

Importa salientar que existem células especiais ou “especializadas” que têm capacidade de o fazer mais rapidamente; tais células, que integram o tecido de condução cardíaco, dispõem-se em grupos, formam verdadeiras “estradas” ou vias, e conduzindo os estímulos ou influxos nervosos que permitem marcar o ritmo da frequência cardíaca de cada indivíduo). (ver Glossário do capítulo anterior)

Na verdade, os estímulos ou influxos não circulam ao acaso, mas por estas vias. Para que o ritmo seja síncrono e haja tempo para o sangue entrar e sair em cada contracção ventricular, a contracção não se verifica em todas as células em simultâneo; designadamente, tem de existir tempo de latência entre a contracção das aurículas e a dos ventrículos. 

E, para que tal aconteça, existem determinados pontos, ao longo do trajecto da via, que “travam a velocidade” do influxo, tornando-o mais lento (sendo o nódulo auriculoventricular/NAV um deles), permitindo que os influxos despolarizem rapidamente toda a aurícula, “esperem um pouco” no referido NAV e, um pouco depois, despolarizem as células ventriculares, permitindo a contração ventricular depois da auricular.

Acontece que, em determinadas circunstâncias, poderão existir “grupos de células que se organizam” para se constituir uma via de condução rápida, passando ao lado (fazendo bypass) ao NAV. Assim, os influxos, chegando a esta via, que permite passagem ”rápida”, poderão “voltar para trás” e entrar (ou melhor, reentrar) na via normal caso esta esteja “desimpedida”, com possibilidade de receber tal influxo em direcção ao ventrículo.

Ou seja, o influxo segue um trajecto ou movimento circular até reentrar/reencontrar a via normal em direcção ao ventrículo (movimento de reentrada), ou que se transmite ao ventrículo. Esta explicação “simplista” permitirá compreender melhor o conceito de mecanismo de reentrada, adiante abordado.

II – Factores etiopatogénicos

Os factores etiopatogénicos das disritmias, que importa investigar, são muito diversos. Em idade pediátrica os mais frequentemente implicados são: cardiopatia estrutural (congénita ou adquirida); pós-operatório de intervenção cardíaca; inflamações/infecções cardíacas (pericardite e miocardite); doenças do miocárdio (cardiomiopatia; doenças metabólicas ou de depósitos); alterações da tiróide; tumores cardíacos; alterações genéticas do sistema de condução (síndromas do QT longo, de Wolff-Parkinson-White, de Jervel, etc.); alterações electrolíticas (envolvendo os iões K+, Ca++, Mg++); intoxicação acidental (medicamentosa, farmacológica ou outra); e hipotermia, entre outros.

FIGURA 1. Esquema do mecanismo de reentrada (MR): o impulso encontra a via habitual (β) bloqueada (1) e uma via acessória ou anómala (α) disponível para a sua condução, esta via conduz anterogradamente de forma mais rápida (2) e está disposta em forma circular, permitindo a condução retrógrada pela via inicial (3) agora desbloqueada, perpetuando este ritmo

Os mecanismos fisiopatológicos das disritmias podem envolver o sistema gerador dos impulsos, condicionando o aparecimento de fenómenos de automatismo anómalo ou, mais frequentemente, o sistema de condução dos estímulos, provocando mecanismos de condução anormal através de vias de reentrada ou bloqueios de condução. (ver atrás capítulo sobre ECG, abordando aspectos da anatomofisiologia fundamental)

  1. anomalia de automatismo surge quando uma zona localizada do miocárdio gera impulsos mais rapidamente do que o nódulo sinusal, passando a assumir o controlo do ritmo. Geralmente surgem a partir de um único local, sendo designadas por focais. Caracterizam-se por apresentarem variabilidade da frequência cardíaca, com um aumento progressivo no início (warm-up) e diminuição no final (cool-down). A frequência cardíaca é em geral menor do que nas taquicardias que se originam devido a mecanismo de reentrada.
  2. mecanismo de reentrada é o mais frequente, ocorrendo em 90% dos casos. Caracteriza-se pela presença de um impulso que sendo conduzido pelas vias habituais encontra um circuito circular, com uma das vias bloqueada. O impulso é conduzido pela via disponível de forma mais rápida, e alcança por condução retrógrada a via inicial, agora desbloqueada, formando-se um movimento circular que perpetua este ritmo. Para que surja, devem existir, pelo menos, duas vias distintas em redor da área de bloqueio de condução, vias de condução acessória ou anómala. O impulso que produz a reentrada pode ser normal, gerado no nódulo sinusal, ou anómalo, consequência de automatismo. (Figura 1)

A maioria das disritmias na criança pequena e no feto deve-se a mecanismo de reentrada por via acessória. No adolescente e no adulto é mais frequente a taquicardia de reentrada a nível do nódulo auriculoventricular.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica das disritmias em idade pediátrica é muito variável, dependendo da idade, da presença ou ausência de alterações cardíacas estruturais, assim como do tipo de disritmia. (ver adiante)

O recém-nascido e o lactente podem apresentar-se com sintomas e sinais inespecíficos, por vezes confundidos com sépsis: palidez, má perfusão periférica, cianose, irritabilidade, recusa alimentar, taquipneia e hipersudorese. A evolução do quadro clínico pode ser progressiva e conduzir a insuficiência cardíaca (IC) e choque cardiogénico. A probabilidade de desenvolvimento de IC é tanto maior quanto maior a frequência ventricular, menor a idade do doente, maior a duração do episódio, e na presença de cardiopatia congénita. Em cerca de 20% dos lactentes a disritmia é detectada durante uma avaliação médica de rotina, sem sintomas prévios.

As crianças maiores e os adolescentes são capazes de identificar e referir frequências cardíacas elevadas, podendo relatar queixas de palpitações, dispneia e dor torácica, tonturas e síncope. Nestas idades a apresentação em IC é mais rara.

As taquiarritmias são geralmente autolimitadas e intermitentes, quando se mantêm, pelo menos, durante cerca de 10-15% do período de 24 horas do dia, documentada em registo Holter; designam-se por incessantes ou permanentes e podem evoluir para cardiomiopatia dilatada secundária.

Durante os episódios de taquicardia, a frequência cardíaca pode ser da ordem de 250-350 batimentos por minuto (bpm) em recém-nascidos e lactentes, e de 160-200 bpm em crianças maiores e adolescentes.

Na vida fetal, a frequência pode ser mais elevada se persistir por mais de 12 horas; em tal circunstância: – poderá surgir insuficiência cardíaca grave e hidropisia fetal; – as taquicardias são persistentes (65%); – a frequência de hidropisia fetal é ~ 40%, e; – a taxa de mortalidade é significativa (6-12% dos fetos/ano). A taquicardia pode ser identificada pela mãe ou detectada na monitorização pré-natal de rotina.

Diagnóstico

O diagnóstico da disritmia cardíaca deve basear-se no registo electrocardiográfico embora seja obrigatório valorizar sempre o contexto clínico. Em doentes com manifestações clínicas ou crises frequentes mas transitórias, não documentadas por ECG, poderá ser necessário proceder a registos electrocardiográficos contínuos de duração variável (Holter, durante 24 horas, ou Detector de eventos, durante várias semanas) de modo a documentar os episódios e as suas características.

A análise do registo electrocardiográfico deve valorizar os seguintes parâmetros:

  • Regularidade do ritmo? (regular ou irregular);
  • Duração dos complexos QRS? (amplos ou não);
  • Morfologia das ondas P – (normal, anormal ou ondas P não visíveis);
  • Frequência das ondas? (P > 250 bpm)?;
  • Relação entre as ondas P e as ondas R? (1:1, 2:1, 3:1 ou > 3:1);
  • Resposta à adenosina ou manobras vagais?

Numa primeira avaliação poderá ainda estar indicada a realização de ecocardiograma, a fim de excluir a presença de cardiopatia congénita, e de avaliar as dimensões e função ventriculares. No feto, o diagnóstico de arritmia realiza-se por ecocardiografia e por Döppler pulsado.

Numa perspectiva prática, podemos classificar as disritmias em: extrassístoles isoladas, taquicardias e bradicardias.

Extrassístoles isoladas

As extrassístoles isoladas são batimentos independentes e diferentes do ritmo de base, podendo ter origem auricular ou ventricular:

  • Extrassístoles auriculares: são precedidos de ondas P. Têm carácter benigno, estão presentes em 20% das crianças saudáveis, diminuem com a idade, e não requerem tratamento. É prudente proceder a avaliação com ECG-Holter, para excluir a presença de taquicardia.
  • Extrassístoles ventriculares: não são precedidos de ondas P, o complexo QRS é largo, em geral com pausa compensadora. Na sua maioria, trata-se de situações benignas, geralmente não requerendo tratamento, e surgem em 2% das crianças e em cerca de 30% dos recém-nascidos. Se a sua frequência for elevada, está indicado proceder a ecocardiografia para excluir miocardite ou miocardiopatia dilatada. Em casos particulares poderá estar indicada terapêutica anti-arrítmica com beta-bloqueantes.

Taquicardias

As taquicardias são ritmos acelerados (frequência cardíaca aumentada), relativamente ao ritmo de base, podendo ter origem a diversos níveis: auricular, nodal (nódulo aurículo-ventricular), ou ventricular.

1. Taquicardias auriculares

  • Taquicardia sinusal: origina-se no nódulo sinusal (ou de Keith-Flack) e apresenta uma frequência superior à do ritmo normal (é um ritmo sinusal normal, mas com frequência elevada); pode ser secundária a aumento do tono do simpático, explicável por múltiplos factores como estresse, febre ou efeito de certos fármacos, e hipertiroidismo.
    Os achados do ECG caracterizam-se pela presença de ondas P sinusais antes de cada complexo QRS (relação P:R =1:1). Não necessita de tratamento.
  • Taquicardia auricular focal: é uma aceleração ou frequência cardíaca elevada, regular, por estimulação que se origina num foco auricular ectópico (em qualquer local auricular, que não o nódulo sinusal).
    Os achados do ECG podem apresentar uma onda P antes de cada QRS (P:R = 1:1) ou P:R 2:1, 3:1 ou superior, mas sempre com morfologia anómala (não sinusal). Em geral é assintomática, mas crianças mais velhas podem referir queixas de palpitações. Tem indicação para terapêutica farmacológica se as palpitações forem frequentes e interferirem com a vida da criança. Em casos selecionados poderá estar indicada ablação por radiofrequência.
  • Taquicardia auricular multifocal ou caótica: aceleração ou frequência cardíaca aumentada, irregular, similar à anterior, mas originada em múltiplos focos auriculares. O ECG evidencia: ondas P de morfologia anómala com, pelo menos, três morfologias distintas e intervalos entre os complexos RR, PP e PR grosseiramente irregulares. Geralmente é incessante e pode associar-se a doenças do miocárdio (miocardiopatias, doenças metabólicas de armazenamento) ou iatrogenia farmacológica, entre outras. Nos casos sintomáticos, com repercussão relevante na vida do doente, pode estar indicada a terapêutica farmacológica, com sotalol e/ou flecainida; contudo, como tratamento definitivo, torna-se fundamental actuar ao nível da doença de base.
  • Flutter auricular: aceleração irregular, com origem auricular. O ECG caracteriza-se por ondas “P” atípicas (dentes de serra ou ondas F) com frequência > 250 bpm e sem uma relação regular com os QRS, cuja frequência é menor. É rara em crianças saudáveis, sendo mais frequente no feto e no recém-nascido sem patologia. As causas mais frequentes são alterações hidroelectrolíticas (hipocalcémia e hipopotassémia), intoxicação digitálica e o pós-operatório de intervenções por cardiopatia congénita implicando manipulação auricular. Requerem tratamento, o qual deve ser individualizado; sempre que possível, tal alteração deverá ser convertida a ritmo sinusal com cardioversão eléctrica; o tratamento farmacológico inclui associação de digoxina a anti-arrítmicos vários. Se a duração ultrapassar 48 horas, está indicada terapêutica antiagregante/anticoagulante e, eventualmente, ablação por radiofrequência. (Figura 2)
  • Fibrilhação auricular: ritmo acelerado caótico com origem auricular.
    O ECG revela um ritmo irregular, com oscilação do ritmo de base (ondas f) sendo de difícil identificação os complexos auriculares (ausência de ondas P); a frequência pode ultrapassar os 400 bpm, e os complexos QRS, irregulares, têm menor frequência. É muito rara na idade pediátrica e na ausência de patologia. Pode associar-se a miocardiopatias. O tratamento consiste em tentar reverter a situação ao ritmo sinusal com fármacos ou cardioversão eléctrica. Pode empregar-se o termo Fibrilação.

FIGURA 2. Traçado ECG de flutter auricular, sendo bem visíveis no traçado inferior as ondas em forma de serra dos impulsos auriculares. No traçado superior, em desenho esquemático, fibrilação auricular: ausência de ondas P.

2. Taquicardias nodais

  • Taquicardia ectópica aurículo-ventricular ou juncional (JET<> junctional ectopic tachycardia): ritmo acelerado regular, mas com frequência menor que a auricular (120-180 bpm).
    Manifesta-se com complexos QRS estreitos com dissociação aurículo-ventricular (ondas P não relacionadas com os complexos QRS).
    Caracteriza-se pela ausência de resposta à administração de adenosina ou de antagonistas do cálcio. É rara, sendo mais frequente a forma adquirida (intoxicação digitálica ou no pós-operatório de cardiopatias congénitas).
    A forma congénita comporta elevada mortalidade. Causa repercussão hemodinâmica importante importante  traduzida por disfunção e dilatação ventriculares. O tratamento é fulcral e baseia-se na redução da frequência com amiodarona.

     

  • Taquicardia paroxística aurículo-ventricular ou  taquicardia paroxística supraventricular (TPSV)*: ritmo acelerado regular com frequência cardíaca muito elevada (200-300 bpm), respondendo a manobras vagais e a fármacos que tornam mais lenta a condução pelo nódulo aurículo-ventricular. É bem tolerada clinicamente; contudo, se a duração for prolongada, poderá surgir insuficiência cardíaca. (Figuras 3 e 4)

* Notas importantes:    

    1. A designação genérica de taquicardia supraventricular (TSV) diz respeito aos ritmos acelerados secundários a um mecanismo anormal que ocorre acima da bifurcação do feixe de His, isto é, podendo ter origem nas aurículas e / ou no nódulo auriculoventricular. Neste conceito excluem-se os casos de taquicardia sinusal.
    2. Resposta à administração de adenosina ou manobras vagais: ambas causam bloqueio a nível do nódulo auriculoventricular (AV), se a taquicardia termina, será muito provavelmente uma taquicardia de reentrada nodal AV. Se em resposta a estas manobras a frequência da onda P se mantém, apesar do bloqueio AV induzido, então a taquicardia é provavelmente auricular. (ver adiante – tratamento das taquiarritmias)

Produz-se por mecanismo de reentrada, a nível nodal por duplo sistema de condução dentro do nódulo aurículo-ventricular (não se visualizando ondas P) ou por via anómala acessória. Esta é o principal mecanismo das síndromas de pré-excitação, como o Wolff-Parkinson-White (WPW), podendo apresentar-se com complexos QRS estreitos ou largos.

Vem a propósito recordar as características da síndroma de WPW: encurtamento do intervalo PQ, QRS alargado com a característica onda δ e episódios de taquicardia paroxística supraventricular, geralmente assintomática. (Figura 5). A sua apresentação é mais frequente em lactentes, principalmente nos quatro primeiros meses de vida.

Podem apresentar-se também, na vida fetal, maioritariamente entre as 28 e as 30 semanas de idade gestacional, calculando-se uma prevalência de 1/200 fetos. Associa-se com frequência a cardiomiopatia ou a cardiopatia congénita.

FIGURA 3. Traçado demonstrando o início de taquicardia supraventricular de complexos estreitos. A extrassístole prematura supraventricular (seta) inicia a taquicardia

FIGURA 4. Traçado demonstrando a cessação de uma taquicardia supraventricular e conversão a ritmo sinusal

FIGURA 5. Traçado demonstrando a presença PQ curto e onda δ (seta) em doente com W-P-W

3. Taquicardias ventriculares

Tratando-se de situações muito raras e complexas, no âmbito da pediatria geral, apenas são citadas as entidades que integram este grupo:

  • Ritmo idioventricular acelerado;
  • Taquicardia do tracto de saída do ventrículo direito;
  • Taquicardia idiopática do ventrículo esquerdo (incluindo variante “torsades des pointes”);
  • Fibrilhação ventricular.

Bradicardias

As arritmias cardíacas que cursam com bradicardia (diminuição temporária ou permanente da frequência cardíaca, abaixo do mínimo considerado para a idade) designam-se por bradiarritmias.

São geralmente causadas por disfunção na génese do impulso eléctrico no nódulo sinusal, ou por alterações na condução AV. Podem ser persistentes ou intermitentes, congénitas ou secundárias a factores extrínsecos (por exemplo, como complicações de cirurgia cardíaca), ou intrínsecas (como a fibrose e a disfunção do nódulo sinusal).

O achado de bradicardia na criança poderá também constituir a única manifestação do efeito tóxico de vários fármacos e substâncias, tais como: digoxina, beta-bloqueantes, clonidina, opióides, neurolépticos, pesticidas, etc..

A resposta hemodinâmica às bradiarritmias é complexa, dependendo da função ventricular, da resistência vascular sistémica, da duração e da frequência cardíaca.

As formas clinicamente importantes de bradiarritmias em idade pediátrica incluem a bradicardia sinusal por disfunção do nódulo sinusal, o bloqueio AV de alto grau e o bloqueio AV completo, a seguir descritos.

  • Bradicardia sinusal: ritmo lento regular, com origem no nódulo sinusal. A bradicardia sinusal em repouso, resultante de elevada estimulação vagal, é normal, principalmente em jovens atletas.
    O ECG evidencia ritmo sinusal (onda P de morfologia normal antes de cada QRS) com frequência cardíaca < 2 desvios-padrão da média para a idade. Factores etiológicos secundários incluem hipóxia, aumento da pressão intracraniana, alterações iónicas ou acção de fármacos (digitálicos, bloqueadores dos receptores β-adrenérgicos). O tratamento é o da causa subjacente.
  • Bloqueio AV do 1º grau: ritmo sinusal sem alteração da frequência; na realidade não é uma bradicardia.
    O ECG mostra um prolongamento do intervalo PR (> 0,12-0,15 s), secundário a um atraso na condução do impulso eléctrico da aurícula para o ventrículo, regra geral ao nível do nódulo AV (Figura 6). Pode ocorrer como resultado de um aumento da estimulação vagal, ser idiopático, secundário a fármacos (digitálicos, bloqueadores dos receptores β-adrenérgicos), a alterações iónicas e a miocardite, e a cardite reumática, no contexto de doença cardíaca congénita; pode igualmente ocorrer no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Geralmente não causa sintomatologia; por isso, raramente requer terapêutica, excepto nos casos de intoxicação digitálica.

FIGURA 6. Traçado ECG em ritmo sinusal e bloqueio AV do 1º grau

  • Bloqueio AV de 2º grau, engloba dois tipos, descritos a seguir:
    • Mobitz tipo I/Wenckeback: ritmo lento, sinusal, caracterizado por falha intermitente da condução do impulso eléctrico da aurícula para o ventrículo, com aumento progressivo dos intervalos PR, até que um impulso é bloqueado e a onda P não é conduzida. É a forma mais comum de bloqueio AV de segundo grau; geralmente assintomática e com baixo risco de evolução para um grau de bloqueio AV mais elevado, não necessita, em regra, de terapêutica.
    • Mobitz Tipo II: ritmo lento, sinusal. O ECG demonstra uma falha intermitente da condução do impulso eléctrico da aurícula para o ventrículo, com intervalos PR fixos e um bloqueio súbito na condução do impulso. Pode ser idiopático, ou secundário a fármacos ou doença materna do tecido conjuntivo, e associar-se a doença significativa do sistema de condução abaixo do feixe de His (Figura 7). Por vezes evolui para bloqueio AV de alto grau, devendo ser tratada a causa subjacente. A aplicação de pacemaker instrumental/artificial está indicada (pacing) em doentes sintomáticos.

FIGURA 7. Traçado ECG em ritmo sinusal e bloqueio AV do 2º grau Mobitz tipo II

  • Bloqueio AV de 3º grau ou completo: o ECG evidencia uma interrupção completa na condução do impulso eléctrico da aurícula para o ventrículo; assim, as ondas P sinusais encontram-se dissociadas do ritmo ventricular regular e lento. De salientar que este ritmo ventricular depende do desencadeamento de impulsos com origem em focos ectópicos (chamados pacemakers subsidiários) localizados designadamente na junção A-V (ritmo juncional), activando os ventrículos com frequências de 20 a 50 bpm. (Figura 8)
    (Como nota à margem, para melhor compreensão da fisiopatologia, importa referir que o ritmo juncional poderá assumir o controlo do ritmo cardíaco se existir lesão ou depressão do nódulo sinusal).
    O bloqueio AV de 3º grau ou completo pode ser idiopático e isolado, ou secundário a diversas situações clínicas, tais como: doença materna do tecido conjuntivo (exposição in utero a anticorpos anti-Ro e anti-La, mais frequentes no LES e síndroma de Sjögren), doença de Lyme, cardite reumática, cardiomiopatia, e no contexto de cardiopatias congénita, ou da sua correcção cirúrgica.
    Geralmente sintomático, os doentes mais velhos podem apresentar-se com sintomas inespecíficos como tonturas, lipotímia, síncope, cansaço fácil ou, em casos mais graves, com clínica de insuficiência cardíaca congestiva e de baixo débito, podendo ocorrer morte súbita. A forma AV congénita fetal associa-se a complicações graves in utero, podendo resultar em hidropisia e morte fetal.
    Sucintamente, importa salientar as bases do tratamento, indicado em todos os doentes sintomáticos, bem como em doentes assintomáticos com frequência ventricular média < 45 bpm (ou com frequência ventricular < 70 bpm associada a anomalias estruturais congénitas cardíacas). Deve ser iniciada isoprenalina EV e proceder-se a implantação de pacemaker.

FIGURA 8. Traçado ECG em boqueio AV de 3º grau

Tratamento da taquiarritmia

O tratamento agudo das taquicardias supraventriculares depende do estado do doente e do mecanismo subjacente às arritmias. As taquiarritmias que causam compromisso hemodinâmico grave exigem uma intervenção urgente, habitualmente com cardioversão eléctrica. A terapêutica com fármacos exige tempo e estabilidade hemodinâmica.

Em doentes hemodinamicamente estáveis, o tratamento agudo das TSV (na maioria dos casos secundárias a mecanismos de reentrada dependentes do nódulo AV) envolve manobras vagotónicas (manobra de Valsalva, massagem do seio carotídeo, saco com mistura de gelo e água a cobrir a região frontal até à raiz do nariz durante 30 segundos, imersão da cabeça e ombros de modo a induzir diving reflex, estimulação rectal com sonda) ou a administração de adenosina endovenosa.

adenosina administra-se sob registo electrocardiográfico contínuo, na dose inicial de 200 mcg/kg (se ineficaz deve duplicar-se a dose até 500 mcg/kg), em via de bom calibre e o mais proximal possível, em bolus de forma rápida, seguido de lavagem, obtendo-se uma taxa de conversão a ritmo sinusal de aproximadamente 80%. Verifica-se, contudo, recidiva da TSV em 1/3 dos doentes, nos quais é necessário administrar repetidamente o fármaco. Os efeitos secundários, tais como precordialgia, rubor, tremor e dificuldade respiratória, são frequentes e de curta duração (escassos segundos).

São contraindicação para administração da adenosina a existência de doença do nódulo sinusal, distúrbios da condução AV e doentes com broncorreactividade grave. A adenosina tem uma semivida muito curta, induzindo bloqueio AV; assim, a falta de resposta à sua administração pode dever-se a: – dose inadequada; – administração lenta ou numa via demasiado distal ao coração (por exemplo, nos membros inferiores), ou; – ao facto de a situação de taquicardia não ser dependente da condução AV. Na presença de uma administração adequada, a não conversão a ritmo sinusal pode permitir fazer o diagnóstico da taquicardia com origem auricular. (Figura 9)

Na ausência de resposta à adenosina deve recorrer-se a outros fármacos, como a amiodarona, na dose de carga inicial de 25 mcg/kg/min durante quatro horas, eventualmente seguida de perfusão de 5-15 mcg/kg/min. Nas taquicardias refractárias, a flecainida e o sotalol são bastante eficazes, tanto isolados, como em combinação com os betabloqueadores ou a digoxina. Os antagonistas dos canais de cálcio estão contraindicados no recém-nascido e lactente.

FIGURA 9. Traçado demonstrando taquicardia auricular focal; durante a administração de adenosina é evidente a indução de bloqueio AV

Os doentes hemodinamicamente instáveis, em choque cardiogénico, exigem um tratamento urgente, procedendo-se a cardioversão eléctrica sincronizada com 0,25-2J/kg: 1º choque 0,5-1J/kg, 2º choque 2J/Kg, sob sedação e/ou anestesia. As manobras vagotónicas e a adenosina ev (quando existir acesso vascular disponível) podem ser usadas no doente instável, mas apenas se não atrasarem a cardioversão eléctrica.

Em relação ao tratamento crónico/de manutenção, deve ser ponderada a relação entre o risco e o benefício do mesmo, tendo em conta simultaneamente a frequência, duração e gravidade dos episódios de taquicardia, bem como os efeitos secundários de cada um dos fármacos utilizados. Uma vez que a identificação dos episódios de taquicardia em recém-nascidos e lactentes é difícil, nesta faixa etária, após um primeiro episódio de TSV, está geralmente indicada a terapêutica profiláctica. Em crianças com mais de um ano de idade o tratamento profiláctico está apenas indicado em doentes com episódios recorrentes, de longa duração ou mal tolerados. Em doentes com sintomas escassos, a terapêutica de manutenção não é geralmente necessária.

Existe actualmente controvérsia em relação ao tipo de tratamento profiláctico, farmacológico ou por ablação por cateter. Em recém-nascidos e lactentes com menos de um ano, a digoxina é o fármaco de primeira linha, devendo ser mantido até ao primeiro ano de idade. Na falência da digoxina em monoterapia, podem ser adicionados propranolol, sotalol ou propafenona. No tratamento de manutenção de doentes com mais de um ano de idade as principais opções farmacológicas são os betabloqueadores, flecainida, propafenona ou sotalol. A digoxina deve ser evitada em doentes com pré-excitação ventricular (WPW), face ao risco de facilitar a condução AV e desencadear fibrilhação auricular. A amiodarona, o fármaco mais potente, face aos seus múltiplos efeitos secundários extracardíacos, deve ser reservada para última opção, na falência dos antiarrítmicos supra mencionados.

Em lactentes e crianças pequenas com taquicardia supraventricular, o papel da ablação por radiofrequência no seu manejo não está ainda bem definido. Nesta população, a indicação para ablação por radiofrequência deve ser considerada somente quando todos os regimes farmacológicos falharem.

Em crianças mais velhas (aproximadamente 8-9 anos de idade), com episódios frequentes de taquicardia supraventricular, a ablação por radiofrequência passou a ser a opção terapêutica de primeira linha face à terapêutica farmacológica crónica. Em doentes assintomáticos, mesmo que com pré-excitação ventricular, não está indicada qualquer intervenção terapêutica, excepto em situações particulares.

Tratamento da bradiarritmia

O tratamento em fase aguda depende da frequência cardíaca, da presença de sintomas clínicos como síncope, pré-síncope, tonturas e lipotímia, de sinais de insuficiência cardíaca e da avaliação da função sistólica cardíaca. Nos doentes sintomáticos, a terapia farmacológica é apenas uma ponte para implantação de pacemaker definitivo.

A atropina é o fármaco de primeira escolha nas bradiarritmias sintomáticas. Pode ser administrada para o tratamento na fase aguda, sendo mais útil em doentes com disfunção do nódulo sinusal. Em doentes com bloqueio AV de segundo grau ou de grau elevado, uma amina simpaticomimética como a isoprenalina (dose inicial 0,02 μg/kg/min, aumentar até à dose máxima de 0,5 μg/kg/min) ou a dobutamina (1-5 μg/kg/min) podem ser utilizadas para aumentar a frequência cardíaca temporariamente.

O pacing temporário é usado quando os doentes evidenciam bradiarritmias hemodinamicamente significativas e persistentes, como ponte para a resolução de determinada etiologia temporária, ou na transição para a implantação de um pacemaker definitivo nos casos de bradiarritmia persistente.

Evolução e prognóstico

Cerca de 90% das TSV durante a idade pediátrica têm um mecanismo de reentrada subjacente. Apesar de a apresentação inicial poder ser fatal, numa minoria dos doentes o prognóstico geral é bom. Mais de metade dos lactentes cujos episódios de TSV ocorreram no período neonatal estarão assintomáticos, sem necessidade de tratamento farmacológico, aos 9-12 meses de vida. Entre aqueles cujo episódio inaugural tenha ocorrido durante o primeiro ano de vida, apenas 40% apresentarão novos episódios depois dos cinco anos de idade; por outro lado, a maioria dos que tiverem tido o episódio inaugural durante a infância, ou mais tarde, manterá episódios de taquicardia a longo prazo. No feto, cerca de 65% das taquicardias são persistentes. O flutter auricular de início no período neonatal raramente recidiva.

Nos lactentes com síndroma de WPW e quadro de taquicardia supraventricular iniciado antes dos 2 meses de idade, em cerca de 90% dos casos verificar-se-á desaparecimento da pré-excitação ventricular e dos episódios de taquicardia durante a infância, podendo, contudo, verificar-se recidiva em 1/3 dos casos a partir dos 8 anos de idade.

Nas formas incessantes de taquicardia, como foi referido anteriormente, poder-se-á desencadear cardiomiopatia dilatada secundária, a qual se resolve com o término da taquicardia.

O risco de morte súbita é variável, sendo de 6-12% fetos/ano nas taquicardias fetais. Em doentes com síndroma de WPW, o risco de morte súbita, é de 2,3% em indivíduos assintomáticos, podendo atingir a proporção de 4% em indivíduos sintomáticos.

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