Importância do problema

A cardiologia de intervenção em cardiologia pediátrica compreende um conjunto de técnicas terapêuticas que utilizam o cateterismo cardíaco para a execução de procedimentos terapêuticos com a finalidade de tratar anomalias estruturais cardíacas e vasculares. Estas técnicas envolvem procedimentos para dilatação de vasos ou válvulas estenóticas, oclusão de comunicações ou vasos anormais, abertura ou perfuração de septos ou válvulas atréticas ou implantação de válvulas artificiais.

Alguns procedimentos foram adaptados de técnicas efectuadas em adultos, como as angioplastias com cateter de balão, a implantação de stents ou a oclusão de vasos com dispositivos ou coils. Já outros, como as oclusões de defeitos septais ou a implantação de válvulas desenvolveram-se primeiro em crianças e foram posteriormente adaptados aos adultos.

São efectuados em salas próprias, o Laboratório de Hemodinâmica e Angiocardiografia, com ambiente esterilizado, e equipadas com mesas móveis e equipamento de radioscopia com capacidade para processar e registar imagem digital. São geralmente compartilhadas com a Cardiologia de Intervenção em adultos, o que permite sinergias, quer na utilização de material comum, quer na partilha de conhecimentos.

As anomalias passíveis de intervenção percutânea podem ser nativas, adquiridas ou residuais após os tratamentos cirúrgicos e percutâneos. Os procedimentos, mesmo os mais complexos, têm grande taxa de sucesso e taxas baixas de complicações, quando efectuados por equipas experientes. Os riscos nunca são negligenciáveis e há que ter em consideração a eventual necessidade de colaboração emergente da cirurgia cardíaca, quando ocorrem. A decisão de avançar com um tratamento percutâneo deve, por isso, ser discutida e assumida por uma equipa médico-cirúrgica, o que constitui o conceito de “Heart Team”.

A evolução das diversas técnicas de imagem, em particular da ecocardiografia, com definição de imagem e de acuidade cada vez maior, tornaram possível o quase abandono do cateterismo cardíaco diagnóstico, hoje reservado para situações clínicas, fisiopatológicas ou morfológicas não passíveis de esclarecimento por ecocardiografia, ou quando se justifica a exploração dos parâmetros hemodinâmicos ou a sua provocação com fármacos, como na hipertensão pulmonar. O cateterismo de diagnóstico cedeu a sua posição ao terapêutico, que constitui atualmente um volume superior a 60% dos exames efectuados.

Técnicas básicas

As técnicas de intervenção utilizadas em crianças seguem um método comum. São efectuadas sob anestesia geral ou sedação, e a maioria dos procedimentos começa com a colocação de acessos femorais, podendo, no entanto, ser utilizados outros. Durante o exame recolhem-se e registam-se parâmetros hemodinâmicos e realizam-se angiogramas com injecção intracavitária ou vascular de meios de contraste radiológico, compostos por moléculas de iodo. Os dados obtidos permitem as mais apuradas avaliação anatómica e da gravidade da lesão.

Identificado o problema, deve estabelecer-se um plano de intervenção que segue sempre características básicas comuns; a colocação de cateteres através da lesão a tratar, a introdução de um fio guia através desse cateter para dar suporte para a colocação de próteses terapêuticas, ou a introdução de cateteres com balão para angioplastia ou valvuloplastia. Os cateteres de balão podem ser posicionados directamente nas cavidades cardíacas ou vasos, enquanto os dispositivos, válvulas ou stents devem ser introduzidos de forma protegida, utilizando bainhas longas para a sua implantação.

Dilatações

Septostomia

A atriosseptostomia com cateter de balão, foi introduzida por William Rashkind e William Miller em 1966. Ambos desenvolveram um cateter de balão que é introduzido na aurícula esquerda, através do foramen ovale ou de uma comunicação interauricolar; depois de insuflado, é traccionado alargando a comunicação, o que permite melhor mistura de sangue a nível auricular. Este procedimento foi desenhado para melhorar a SpO2 de recém-nascidos com transposição das grandes artérias e é utilizado ainda hoje. Em Portugal foi efectuado pela primeira vez por Fernanda Sampayo em 1970, também numa criança com transposição. Este foi o primeiro cateterismo terapêutico e o precursor da cardiologia de intervenção. (Figura 1)

Em crianças mais velhas, em que o septo interauricolar é mais espesso e rígido, a criação de uma comunicação interauricular é efectuada por um cateter de lâmina ou um cateter de balão com lâminas (cutting balloon) e posteriormente alargada com cateter de balão.

Além de se utilizar para melhorar a SpO2 sistémica em crianças com transposição, é também utilizada para descomprimir cavidades auriculares com obstáculo de saída, como na atrésia da mitral ou da tricúspide, ou ainda, para fazer a descompressão da aurícula esquerda em doentes em ECMO.

FIGURA 1. Atriosseptostomia de Rashkind: aspecto do balão insuflado em radioscopia e ecocardiografia e resultado final com criação de comunicação interauricular

Valvuloplastia de balão

A utilização das técnicas de angioplastia e de valvuloplastia com cateter de balão foram progressivamente aceites como método não cirúrgico para dilatar artérias e válvulas estenosadas. Os princípios físicos desta técnica dependem da transmissão de uma força radial controlada através do balão rígido insuflado, contra a parede de um vaso ou os folhetos de uma válvula.

A valvuloplastia de balão foi descrita pela primeira vez em 1982, por Kan e tornou-se o tratamento de primeira linha para a estenose valvular pulmonar em qualquer idade. Utilizando técnica estandardizada de cateterismo cardíaco direito, o cateter de balão é posicionado na válvula pulmonar estenótica; ao ser insuflado, rasga as comissuras e alivia a estenose, por vezes à custa de regurgitação valvular, que quando tecnicamente bem efectuada é de grau ligeiro e bem tolerada.

Este procedimento inicialmente descrito para as válvulas pulmonares foi sendo adaptado e expandido para outras situações mais complexas e críticas e até outras válvulas e vasos estenóticos, utilizando sempre os mesmos conceitos técnicos.

A melhoria do material disponível e a sua miniaturização permitiram o seu uso em recém-nascidos com estenose pulmonar crítica e na atrésia da válvula pulmonar, para dilatação após a sua perfuração com um guia ou agulha de radiofrequência. (Figura 2)

Também pode ser efectuada, de forma paliativa, para reduzir a estenose valvular em recém-nascidos com tetralogia de Fallot, com a finalidade de melhorar a sua saturação e protelar a cirurgia.

A estenose valvular aórtica, na criança, também pode ser submetida a valvuloplastia. Este procedimento tem particularidades técnicas que devem ser respeitadas para obter um bom resultado, ou seja o alívio significativo da estenose sem regurgitação aórtica que, a surgir, é menos bem tolerada que à direita.

FIGURA 2. Valvuloplastia com cateter de balão em recém-nascido com estenose valvular pulmonar crítica. À esquerda visualiza-se ventriculografia direita evidenciando-se o pequeno orifíco da válvula pulmonar; no meio pode ver-se o cateter de balão insuflado; à direita o resultado final após dilatação com melhoria significativa do fluxo para a artéria pulmonar

Angioplastia de balão

A dilatação percutânea de vasos com cateteres de balão foi um dos primeiros tratamentos efectuados por cateterismo de intervenção. De salientar que foram os trabalhos pioneiros de Dotter e de Gruntzig que implementaram a sua utilização em artérias periféricas e em artérias coronárias para tratamento de lesões estenóticas ateroscleróticas. Esta técnica para tratamento ou paliação de estenoses vasculares congénitas, aplica-se na angioplastia da coarctação da aorta ou de estenoses de vasos arteriais, como as artérias pulmonares.

O procedimento foi descrito como substituto da cirurgia, inicialmente no tratamento da recoarctação da aorta após tratamento cirúrgico e, mais tarde, na coarctação nativa. Nesta, no entanto, está reservada a lactentes e crianças sem canal arterial e sem anomalias do arco aórtico, nomeadamente hipoplasia. (Figura 3)

FIGURA 3. Angioplastia com cateter de balão de coarctação da aorta. Observa-se à esquerda aortografia e a coarctação da aorta, e à direita o cateter de balão insuflado através da coarctação

Não é isenta de complicações, sendo a formação de aneurismas da parede do vaso e a sua ruptura as mais graves; portanto, a sua utilização deve ser judiciosa. Por outro lado a dilatação mais conservadora condiciona estenose residual. Por vezes as lesões são tão fixas que, mesmo após dilatação, regressam à forma inicial (recoil). Este problema pode ser solucionado com a implantação adicional de stents.

Stents

Os stents foram introduzidos para evitar e solucionar as complicações vasculares como a dissecção, aneurismas e recoil das lesões estenóticas, a nível arterial periférico e coronário. Em cardiologia pediátrica a sua utilização é particularmente importante nas estenoses dos ramos das artérias pulmonares, quer nativas, quer após correcção cirúrgica de cardiopatia complexa, em que uma nova cirurgia tem um peso significativo.

Os stents utilizados são, geralmente, expansíveis por cateter de balão, e podem ser ainda expandidos posteriormente de forma a acompanhar o crescimento da criança. Trata-se duma técnica complexa que apresenta resultados consistentes. Pode ter complicações graves, como ruptura dos vasos, trombose do in situ ou lesões vasculares, uma vez que para serem introduzidos no sistema vascular necessitam de cateteres e bainhas de maior calibre.

Actualmente são utilizados cada vez mais para tratar a coarctação nativa, em particular em crianças e adolescentes com mais de 30 Kg de peso.

A sua utilização é também possível, para manter patente o canal arterial no recém-nascido com cardiopatia canal-dependente, ou para dar estabilidade à câmara de saída do ventrículo direito, quando se pretende implantar uma válvula pulmonar.

Oclusões

A oclusão percutânea de defeitos septais e de vasos anómalos teve uma expansão extraordinária desde os anos 90, com a introdução de novos dispositivos de fácil utilização. Para estas técnicas é crucial que o dispositivo possa ser reposicionável, recuperável e ter uma estrutura biocompatível e suficientemente resistente para tolerar o estresse das contracções cardíacas ao longo da vida, sem fracturas. Estas características encontram-se em diversos modelos que utilizam o nitinol, liga de níquel e titânio, como base para a sua produção.

O canal arterial persistente foi das primeiras anomalias a ser ocluída por via percutânea. Esta técnica é actualmente a primeira escolha para o seu tratamento, sendo excepção o canal arterial do prematuro e o de grande dimensão e com morfologia inadequada para a utilização dos dispositivos. O procedimento tem elevada taxa de sucesso e uma taxa de oclusão próxima dos 100%, assim como baixa taxa de complicações. (Figura 4)

FIGURA 4. Encerramento de canal arterial persistente com coil (à esquerda) e com dispositivo de Amplatzer (à direita). Pode observar-se em ambos os casos a oclusão completa do canal arterial quando se realiza angiografia da aorta

Outros vasos anómalos podem ser ocluídos como, colaterais sistémico-pulmonares, fístulas arteriovenosas pulmonares, coronárias ou sistémicas e shunts cirúrgicos.

A oclusão de defeitos septais requer uma visualização adequada da estrutura anatómica do defeito, da sua relação com as estruturas adjacentes e da correcta implantação do dispositivo; para isso, utiliza-se em simultâneo a ecocardiografia transesofágica ou a intracardíaca. A comunicação interauricular, tipo ostium secundum, é uma das cardiopatias mais frequentes, sendo o seu encerramento por cateterismo actualmente a técnica seleccionada. Está apenas reservada a defeitos com dimensão, localização e bordos adequados para a oclusão por dispositivo. Importa que, além do sucesso da intervenção, não ocorram complicações ou distorção das estruturas adjacentes, como as veias pulmonares, a válvula mitral e as veias cavas. (Figura 5)

FIGURA 5. Oclusão de comunicação interauricular com dispositivo de Amplatzer. Pode observar-se a imagem por ecocardiografia do defeito septal (à esquerda) e a implantação do dispositivo simultaneamente por ecocardiografia transesofágica (ao meio) e por radioscopia (à direita)

O foramen ovale patente também pode ser ocluído por técnica idêntica em doentes com indicação para o seu encerramento, por acidente vascular cerebral secundário a embolia paradoxal. Esta situação é excepcional em pediatria.

As comunicações interventriculares (CIV) podem ser ocluídas por cateterismo. No entanto, esta técnica não é ainda a primeira escolha, por existirem complicações significativas, em particular com o encerramento das CIV perimembranosas. Os melhores resultados ocorrem em defeitos posicionados na região muscular do septo.

Mais recentemente, os procedimentos híbridos, que recorrem à colaboração entre as técnicas percutâneas e a cirurgia cardíaca, têm-se posicionado como os de maior potencial para o encerramento das comunicações interventriculares.

Implantação de válvulas

Diversas cardiopatias congénitas com obstáculo da câmara de saída do ventrículo direito são tratadas cirurgicamente com implantação de condutos ou homoenxertos entre o ventrículo direito e a artéria pulmonar. Embora estes resolvam o problema da obstrução, a sua deterioração ao longo do tempo condiciona disfunção, regurgitação grave e estenose com calcificação variável.

Classicamente, este problema era solucionado com nova intervenção cirúrgica e substituição do conduto; como alternativa, Bonhoeffer foi pioneiro no desenvolvimento e implantação de válvula percutânea em posição pulmonar.

Esta consiste num stent de platina expansível por balão revestido por um conduto valvulado, constituído por jugular de vaca (Medtronic, Inc.). Este procedimento complexo requer a prévia colocação de stents no conduto disfuncionante, de modo a constituir uma plataforma adequada para implantação da válvula. O sistema de entrega é um cateter de grande calibre, o que condiciona o tamanho dos doentes que podem ser tratados. Actualmente existe outra válvula disponível no mercado (Edwards Lifescience), que assegura um maior leque de possibilidades terapêuticas.

O procedimento tem uma elevada taxa de sucesso e complicações limitadas, sendo a mais grave, a compressão das artérias coronárias. Pode ser evitada desde que sejam esclarecidos todos os pormenores morfológicos no cateterismo antes da implantação. (Figura 6)

FIGURA 6. Implantação de válvula pulmonar por via percutânea. Pode ver-se que, após a implantação da válvula, esta é perfeitamente competente durante a execução da arteriografia pulmonar

Cateterismo de intervenção e cirurgia cardíaca

O crescimento da cardiologia de intervenção permitiu o tratamento por cateterismo das cardiopatias congénitas mais simples, deixando as cardiopatias mais complexas para a cirurgia cardíaca. Por outro lado, a melhoria dos resultados cirúrgicos contribuiu com aumento de potenciais candidatos à intervenção percutânea para tratar defeitos residuais ou complicações.

A complementaridade das duas áreas terapêuticas permitiu uma melhoria significativa dos resultados nas crianças com cardiopatia congénita. Esta complementaridade culminou com o advento dos procedimentos híbridos; estes, tendo surgido inicialmente para o tratamento da síndroma do coração esquerdo hipoplásico, expandiram-se para outras patologias e serão seguramente uma área importante para o futuro. (Figura 7)

Novos desenvolvimentos de técnicas a nível de cateteres e de dispositivos, em particular da sua miniaturização e melhoria do seu perfil, permitirão uma maior gama de tratamentos para o futuro.

FIGURA 7. Tratamento híbrido em recém-nascido com síndroma de ventrículo esquerdo hipoplásico. Pode ver-se os bandings das artérias pulmonares (setas vermelhas 1 e 2) e a implantação de stent no canal arterial (seta vermelha 3)

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