MORDEDURAS E PICADAS

Importância do problema

Os problemas clínicos relacionados com mordeduras e picadas por animais chamados venenosos são, não só pouco frequentes em crianças e adolescentes vivendo no meio urbano, como comportam baixa morbilidade e mortalidade. No que respeita às mordeduras, as situações mais prevalentes são, dum modo geral, as produzidas por animais domésticos, especialmente cães (a maioria ~80%) e gatos (~5%). As mordeduras produzidas por animais não domésticos (ratos, coelhos, répteis, etc.), assim como as lesões ou picadas por animais marinhos e insectos venenosos, constituem uma minoria (~1-2% conforme o meio em que a criança vive ou frequenta). No nosso meio é pouco comum ter primatas como animais de companhia.

Dum modo geral as lesões por mordedura de animais localizam-se nas extremidades; as lesões na face observam-se quase invariavelmente em crianças pequenas.

Neste capítulo é dada ênfase às lesões por mordedura de cão, gato, primata e réptil venenoso, assim como às lesões e picadas por animais marinhos e insectos venenosos.

1. MORDEDURA POR CÃO

Manifestações clínicas e factores etiológicos infecciosos

As lesões resultantes deste tipo de mordedura são variáveis, quer em extensão, quer em profundidade: entre feridas simples (punctiformes ou lineares) ou feridas múltiplas (lacerações e abrasões) e até amputações. Poderão ser atingidos, para além da pele, outras estruturas como vasos, nervos, músculos e tendões, deduzindo-se destas circunstâncias as implicações em termos de manifestações clínicas, as quais também dependem da localização.

Surgem frequentemente infecções de localização muito diversa como complicação, sobretudo por anaeróbios; tal depende das condições ambientais em que se verificou a lesão, do microbioma bucal do animal e do tempo decorrido entre a ocorrência e o início do tratamento.

Existe risco de infecção da pele e tecidos moles por S. viridans, S. aureus, Pasteurella multocida, Bacteróides sp, Fusobacterium sp, e Capnocytophaga canimorsus (DF-2). Este último agente pode dar origem a septicémia com CID em doentes asplénicos.

Tratamento

Como cuidados gerais iniciais, deve lavar-se a ferida com soro fisiológico estéril, de preferência com seringa, dirigindo o soro em jacto; em alternativa, com povidona iodada (Betadine®) diluída a 1%. De facto, uma lesão deste tipo deve ser sempre considerada ferida suja ou contaminada. Poderá haver necessidade de proceder a excisão de tecidos desvitalizados.

No âmbito dos cuidados iniciais, hospitalares ou em centro médico-cirúrgico, sob anestesia local ou no bloco operatório, deve proceder-se à excisão dos tecidos desvitalizados, retirando eventuais corpos estranhos. Como regra geral, é prudente não realizar suturas pelo risco de infecção, sobretudo se o tempo decorrido for > 8 horas após a mordedura. Tratando-se de lesão num membro, poderá estar indicada a imobilização do mesmo durante 3-5 dias.

Medidas profilácticas

A antibioticoterapia profiláctica está indicada sempre que a mordedura tenha ocorrido há mais de 8 horas, em feridas da face, profundas e em pacientes imunodeprimidos (amoxicilina+ácido clavulânico na dose de 40 mg/kg da primeira, por via oral durante 7 dias; ou ceftriaxona – 80 mg/kg IM em dose única); ou doxicilina PO em doentes com > 8 anos (dose inicial: 4 mg/kg; doses seguintes: 2 mg/kg em 1-2 doses). Em casos especiais poderá estar indicado proceder a exames culturais da ferida.

Está indicada a profilaxia da raiva nos cães não vacinados e reforço de 1 dose de vacina antitetânica – 0,5 mL por via IM.

Nos casos de feridas sujas (raros no panorama actual no nosso país – eventualmente cidadãos estrangeiros) não previamente vacinados, está indicada imunoglobulina antitetânica seguida de vacinação. Nos casos de ferida limpa, deve iniciar-se a vacinação.

No que respeita à profilaxia da raiva, cabe referir que a mesma está indicada se o estado de saúde do animal (que deve ser capturado e observado durante 10 dias) o justificar com base na decisão do delegado de saúde e autoridade veterinária. Em Portugal não há casos notificados de raiva na espécie humana desde há mais de meio século.

2. MORDEDURA/ARRANHÃO POR GATO

Manifestações clínicas

Frequentemente o gato origina mordeduras perfurantes nos membros, pescoço, tronco, fronte e face; outro tipo de lesão é o arranhão.

As complicações mais frequentes são as infecções da pele e tecidos moles (celulite, tenossinovite, linfangite) por Staphylococcus aureus, Streptococcus beta hemolítico do grupo A, Capnocytophaga canimorsus, Pasteurella multocida e Bartonella hensalae. Relativamente a este último germe microbiano é feita referência especial em capítulo próprio na Parte sobre Infecciologia.

Tratamento e medidas profilácticas

Aplicam-se os mesmo princípios gerais enunciados a propósito da mordedura por cão.

3. MORDEDURA POR RATO

Como resultado da mordedura do rato poderão surgir infecçõs da pele e tecidos moles, possivelmente causadas por Streptobacillus moniliformis ou Spirillum minus.

Em termos profilácticos, têm indicação as medidas locais referidas a propósito da mordedura por cão e gato.

Surgindo infecções da pele e tecidos moles, os antibióticos de primeira escolha são: penicilina G IM ou amoxicilina/clavulanato durante 10 dias. Como alternativa pode empregar-se doxiciclina em idades > 8 anos.

4. MORDEDURA POR PRIMATA

Embora no nosso meio, como se disse, não seja habitual a convivência com macacos, importa referir uma particularidade relacionada com o risco de transmissão de agentes como S. viridans, S. aureus, S. pyogenes, Eikenella corrodens, Bacteróides sp, Fusobacterium sp e vírus herpes.

Está indicada investigação serológica sobre VIH, VHB, VHC e Vírus herpes, dados os riscos de contrair infecções por estes agentes.

No caso de agentes bacterianos é possível o surgimento de infecções da pele e tecidos moles. Nesta perspectiva, para além doutras medidas de profilaxia abordadas na Parte sobre Infecciologia, caso surjam infecções da pele e tecidos moles, a antibioticoterapia de eleição contempla a amoxicilina-clavulanato (dose de amoxicilina: 30-60 mg/kg/dia PO ou IV em 3 doses); como alternativa: cefoxitina IV ou IM (75-200 mg/kg/dia em 3-4 doses), ou clindamicina IV, IM ou PO (15-40 mg/kg/dia em 3-4 doses) + cotrimoxazol (PO ou IV na dose de sulfametoxazol de 40-100 mg/kg/dia em 2-4 vezes, ou ciprofloxacina PO se > 18 anos: 10-30 mg/kg/dia; duração da antibioticoterapia -10 dias.

Deve proceder-se à lavagem da ferida ou feridas com água e sabão durante 3-5 minutos e nos primeiros minutos após o evento.

Para além da profilaxia da raiva, poderá ser necessária a limpeza cirúrgica da ferida e desinfecção com soluto iodado. No caso do globo ocular, se afectado, para além da indicação de observação por oftalmologista, como primeiros cuidados citam-se irrigação com soro fisiológico durante 15 minutos dado o risco de transmissão do vírus herpes; se não existir soro fisiológico, deve utilizar-se água corrente.

Está também indicada, como profilaxia, a administração de aciclovir PO quando as lesões são profundas, em crianças com > 6 anos durante 5 dias na dose de 800 mg de 4-4 horas, 5 vezes/dia.

5. MORDEDURA POR SERPENTE VENENOSA

Etiopatogénese e importância do problema

As serpentes venenosas existentes no nosso país e na Europa pertencem fundamentalmente a três espécies: Vipera aspis, Vipera latasti (víboras) e a Macroprotodon cuccullatus; esta última raramente inocula veneno porque tem dentes muito posteriores.

As víboras distinguem-se das restantes serpentes pelas seguintes características:

  • comprimento em geral inferior a 1 metro; versus maior;
  • cabeça achatada, larga e triangular; versus arredondada/ovóide;
  • pupilas elípticas; versus circulares;
  • apêndice nasal em forma de chifre; versus ausente;
  • dentes ou colmilhos em forma de garra aguçada, anteriores; versus

O veneno destes animais é proteolítico e coagulante em pequena dose; se inoculado em grande dose tem efeito hemolítico e anticoagulante. Não há casos registados de mortes por picada de víboras no nosso país. Tratando-se de um veneno hemotóxico, poderão surgir fenómenos hemorrágicos e trombóticos.

Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações clínicas variam em função do tamanho do animal, da idade e estado de saúde da criança, assim como do local da picada; a gravidade é tanto maior quanto maior o tamanho do animal e mais proximal o local da agressão.

A picada identifica-se por duas pequenas marcas ou orifícios separados entre 6 e 10 mm, sendo também possível identificar a marca de um colmilho ou mais de uma mordedura. Nos minutos que se seguem à mordedura, verifica-se inflamação localizada, com dor e edema variáveis. Se nos 30 minutos seguintes não se verificar reacção inflamatória local, é provável que a inoculação do veneno tenha sido escassa.

Para além dos fenómenos locais descritos, outros como flictenas, necrose, linfangite e tromboflebite poderão surgir. No caso de inoculação sistémica importante poderão surgir náuseas, vómitos, CID, choque, HTA, IRA, anemia hemolítica, convulsões, choque anafiláctico, rabdomiólise, etc.. São critérios de gravidade idade < 5 anos e lesões na face, pescoço e tronco.

Como prioridade, para além de ser fundamental proceder a colheita de sangue para hemograma e estudo da coagulação, o quadro descrito implica monitorização do doente durante um período ~24 horas, e evacuação para UCIP no caso de surgirem sinais de doença sistémica com disfunção multiorgânica.

Tratamento inicial

Imediatamente após a mordedura são estabelecidas as seguintes medidas gerais:

  • imobilização do membro afectado, colocando-o em posição inferior ao tronco;
  • arrefecimento local moderado (saco de água fria separado da pele com toalha);
  • limpeza da ferida com água e sabão e, posteriormente, com peróxido de hidrogénio;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno) – o ácido acetilsalicílico, hoje só utilizado em situações especiais, pode potenciar o efeito do veneno;
  • antibioticoterapia (ceftriaxona – 80 mg/kg em dose única IV);
  • profilaxia antitetânica, inclusivamente nos doentes vacinados (1 dose de reforço).

Tratamento hospitalar (UCIP)

  • limpeza da ferida com excisão dos tecidos no caso de necrose;
  • imobilização e (agora) elevação do membro;
  • sedação com diazepam se houver agitação;
  • heparinoterapia se existir CIVD;
  • fasciotomia se existir edema compressivo (síndroma compartimental);
  • soro anti-ofídio com indicações muito precisas dado o risco de choque anafiláctico; por outro lado, o efeito é duvidoso, sendo que os corticóides e os anti-histamínicos não modificam a evolução do processo.

Nota: Não se deve garrotar o membro atingido nem fazer incisão no local da mordedura por aumentar o risco de disseminação do veneno; também o socorrista não deverá proceder à sucção da ferida.

6. LESÕES E PICADAS POR ANIMAIS MARINHOS

Nesta alínea é dada ênfase à picada pelo peixe-aranha e às lesões por medusa, anémona e hidra.

Etiopatogénese

O peixe-aranha, com duas variedades principais – uma de menor comprimento ~15 cm, e outra com cerca de 55 cm tem espinhos venenosos numa das duas barbatanas dorsais, e em torno dos opérculos branquiais. Podendo estar enterrado na areia da praia, ao ser pisado inocula o veneno neurotóxico, não deixando habitualmente o espinho; ao ser manuseado ou pisado depois de morto, sua picada continua a ser venenosa.

No caso da medusa, anémona e hidra, o veneno, actuando por contacto, é libertado por determinadas células chamadas nematocistos, as quais funcionam como reservatório do veneno.

Manifestações clínicas

No caso do peixe-aranha, a picada localizada nas mãos ou pés provoca dor intensíssima e edema duro de dimensões varáveis; poderão surgir sintomas e sinais gerais como hipertermia, náuseas, vómitos, ansiedade, cefaleia, cãibras, dificuldade respiratória, sudação, vertigens, etc..

Tratando-se dos problemas provocados por medusa, anémona e hidra há a particularizar o aparecimento de lesões de tipo urticária com disposição grosseiramente linear.

Tratamento

Nas picadas por peixe-aranha recomenda-se:

  • desinfecção local e eventual extracção do espinho se partido ou espetado;
  • imersão imediata (nos primeiros 30 minutos para garantir eficácia) em água a 45º durante cerca de 30-60 minutos, uma vez que o veneno é termolábil;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno, eventualmente opiáceos);
  • infiltração com lidocaína em situações não respondentes às medidas anteriores;
  • profilaxia antitetânica;
  • antibioticoterapia profiláctica durante 3 dias (amoxicilina + ácido clavulânico).

Nas lesões por medusa, anémona ou hidra:

  • lavagem suave, sem exercer pressão, da zona da lesão com água salgada – e não com água doce pela possibilidade de ruptura das células contendo o veneno, o que poderá libertar mais tóxico, agravando a situação;
  • limpeza de seguida com vinagre (ácido acético a 5%) durante 30 minutos;
  • extracção de eventuais restos aderentes do animal com luvas;
  • corticóides tópicos;
  • analgésicos (paracetamol, ibuprofeno);
  • antibiótico tópico.

Não estão indicadas aplicação de penso oclusivo nem antibioticoterapia profiláctica sistémica.

7. PICADAS POR INSECTOS VENENOSOS

Etiopatogénese e importância do problema

Além dos himenópteros (englobando abelhas, vespas e formigas), outros insectos poderão estar implicados, como mosca, certos aracnídeos (carraça e lacrau, e um tipo de aranha conhecida como viúva negra).

A viúva negra, que produz uma potente neurotoxina (a alfa-latrotoxina) – distingue-se doutras pelo corpo esferóide, preto brilhante, com uma marca vermelha “em vidro de relógio” no abdómen. A referida neurotoxina liga-se às membranas neuronais pré-sinápticas causando libertação de acetilcolina e nor-adrenalina ao nível da junção neuromuscular. Como resultado da libertação destes neurotransmissores, surge despolarização muscular excessiva e hiperactividade do sistema autónomo.

A carraça produz também uma neurotoxina. Quanto aos lacraus cabe referir que a variedade negra não produz veneno tóxico, ao contrário da amarela.

Manifestações clínicas

A picada por himenópteros em geral origina reacção local com aparecimento de pápulas pruriginosas. Poderão surgir reacções de hipersensibilidade ao veneno traduzidas por choque anafiláctico e, em casos menos graves, de forma retardada sob a forma de urticária papular. Como regra, pode considerar-se que quanto mais curto é o intervalo entre a picada e o início dos sintomas, mais exuberante é a reacção.

No caso da picada por carraça poderá surgir paralisia flácida do tipo Guillain-Barré por inoculação de neurotoxina, sendo tal quadro clínico reversível com a extracção do aracnídeo.

Nas picadas de moscas, aparentemente irrelevantes, está indicado apenas tratamento sintomático. A picada por lacrau origina dor local muito intensa, edema e linfangite; a mesma tem maior relevância em crianças mais pequenas pela possibilidade de taquicárdia, arritmia e edema agudo do pulmão.

A picada da viúva negra origina reacções locais e sistémicas; na sua forma típica é indolor na primeira hora; ao cabo deste tempo surge dor local que rapidamente se generaliza pelo corpo, acompanhada de rigidez muscular regional, cefaleia, HTA, cãibras musculares e sinais muscarínicos (sialorreia, miose, hipersudorese e bradicárdia), náuseas, vómitos, irritabilidade, etc.. Em picadas nas extremidades poderão surgir lesões de necrose. Para decisão terapêutica é importante entrar em conta com quatro sintomas/sinais-chave: dor abdominal, HTA, mialgias e agitação/irritabilidade. (ver adiante)

Uma das formas de apresentação com dor abdominal, dor abdominal e rigidez muscular tipo “ventre em tábua” pode simular quadro de abdómen agudo relacionável com apendicite aguda ou peritonite. Na literatura antiga estão descritos casos fatais relacionados com laparotomia intempestiva, realizada no pressuposto de diagnóstico de apendicite aguda.

Tratamento

Nas picadas por himenópteros aplica-se tratamento que se pode generalizar a todas as picadas de insectos:

  • extracção imediata do ferrão (com pinça e não espremendo);
  • lavagem/limpeza da ferida;
  • arrefecimento com compressas geladas e elevação do membro (caso se trate de membro afectado) para combater o edema;
  • anti-histamínicos e analgésicos.

Nas reacções sistémicas, com internamento em UCIP, podem estar indicados:

  • adrenalina a 1/1.000 via SC na dose de 0,01 mL/kg;
  • corticóides sitémicos;
  • beta-agonistas se se verificar broncospasmo;
  • dopamina e cristalóides em caso de choque/hipotensão.

Nas picadas por carraça recomenda-se a extracção mediante impregnação com éter ou cloreto de etilo. Não está indicada antibioticoterapia profiláctica da febre escaronodular.

Nas picadas por lacrau deve aplicar-se gelo e, eventualmente proceder-se a infiltração de anestésico local quando a dor é muito intensa.

Nos casos de picada por viúva-negra:

  • tratamento sintomático, recomendando-se atropina se surgir síndroma muscarínica e gluconato de cálcio se surgirem cãibras;
  • a verificação de 3 ou menos dos sinais-chave anteriormente referidos com duração inferior a 12 horas estabelece indicação para tratamento conservador com benzodiazepinas e/ou opióides;
  • a verificação de 4 ou mais dos sinais-chave ou a hipótese anterior > 12 horas obrigam à utilização de soro antiveneno específico após prova intradérmica prévia a fim de avaliar risco de anafilaxia (em geral inferior a 1%).

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QUEIMADURAS. ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR

1. QUEIMADURAS E TRATAMENTO EMERGENTE

Definições e importância do problema

As queimaduras são lesões da pele e mucosas, de extensão e profundidade variáveis (lesões tridimensionais) que podem ser causadas por agentes físicos (líquidos quentes ou frios, corpos sólidos incandescentes, fogo, radiações ionizantes, corrente eléctrica), químicos corrosivos (fósforo, flúor, ácidos e bases fortes, hidrocarbonetos, medicamentos com acção na queratina) e biológicos (animais como a medusa, vegetais como látex, etc.).

Idênticas lesões podem ser consequências de fotossensibilidade em relação com a ingestão de sulfamidas, butazolidina ou difenil-hidantoína (síndroma de Leill).

A maioria das queimaduras em crianças é provocada por acidentes domésticos; dum modo geral são mais graves que no adulto. Com efeito, na criança as várias estruturas que formam a pele ainda não atingiram a maturação e são menos espessas. Por outro lado, os reflexos de defesa, consoante a idade, podem ainda não estar presentes.

Aspectos epidemiológicos

É sobretudo na faixa etária dos 0 aos 4 anos, com maior incidência aos 2 anos, que ocorrem queimaduras. É nesta fase de desenvolvimento psicomotor que a criança está mais activa na descoberta do ambiente que a rodeia: agarra, puxa, mete os dedos, corre pela casa sem se fazer notar, etc.. Os líquidos quentes são a principal causa de queimaduras neste grupo etário (60%): água a ferver, leite, chá, café, sopa, óleo alimentar, azeite, etc.); de salientar que cerca de 95% dos acidentes ocorrem na cozinha na presença de, pelo menos, um adulto.

Na faixa etária dos 5 aos 10 anos a água quente continua a ser a principal responsável, mas verifica-se um aumento importante dos acidentes com fogo, mais frequentemente associado a substâncias inflamáveis como o álcool ou a gasolina. As queimaduras eléctricas são mais frequentes no grupo etário dos 1-4 anos; e, a partir dos 10 anos, há um recrudescimento de acidentes por esta causa.

Nos Estados Unidos ocorrem em cada ano cerca de dois milhões de queimaduras, que originam internamento de 150.000 doentes. Neste país as queimaduras são causa de morte em 2.500 crianças por ano; e entre os sobreviventes, 50% requerem internamento superior a um mês. Por outro lado, as queimaduras são responsáveis por sequelas graves em cerca de 10.000 casos/ano. São também, em acidentes domésticos, a primeira causa de morte até aos catorze anos de idade.

Esta patologia pode, por outro lado, estar associada a casos de maus tratos infantis (entre 10-20% conforme as estatísticas). Este tipo de abuso é típico antes dos cinco anos de idade, apresentando um pico de incidência cerca dos 18 meses.

As queimaduras ocorrem também com incidência significativa em meios socialmente desfavorecidos e no contexto de crianças sozinhas durante longos períodos de tempo, sem vigilância adequada. Por isso, a principal medida com o objectivo de diminuir a incidência deste problema é a prevenção.

Etiopatogénese

A pele é constituída por uma camada superficial, a epiderme, uma camada intermédia, a derme ou mesoderme, e uma camada profunda, a hipoderme. Na epiderme encontram-se os queratinócitos, os melanócitos e as células de Langerhans. Na derme as células principais são os fibroblastos; nela existe uma rede densa, fibrosa, composta por colagénio, elastina e reticulina onde abundam os vasos sanguíneos, as terminações nervosas, as glândulas sebáceas e as estruturas pilosas. A hipoderme é constituída essencialmente por células adiposas.

A separação entre a epiderme e as camadas mais profundas é feita pela junção dermo-epidérmica ou membrana basal. (Figura 1)

Por efeito do agente agressor ocorre trombose vascular levando a hipóxia, isquémia e grau variável de disfunção e destruição celulares. Esta variação depende fundamentalmente da área afectada, do tipo e intensidade da acção do agente agressor, e da espessura da pele.

Na pele lesada por queimadura são identificadas três zonas no sentido da superfície para a profundidade. A zona externa (mais superficial) inclui tecido necrótico irrecuperável. Abaixo desta encontra-se zona de estase parcialmente viável, podendo evoluir para necrose. A zona adjacente à zona de estase é a chamada zona de hiperémia, dado que se verifica a esse nível incremento do fluxo sanguíneo associado a resposta inflamatória e imunitária.

Ao nível da superfície lesada, por alteração da permeabilidade capilar, verifica-se extravasão de fluidos e plasma para os tecidos vizinhos (edema), do que poderá resultar hipovolémia e choque.

A libertação de prostaglandinas provoca irritação das terminações nervosas sensitivas que se traduz clinicamente por dor. Nos casos de queimaduras de boca poderá haver edema e obstrução das vias respiratórias.

A resposta inflamatória à queimadura é constituída por uma fase vascular e uma fase celular. Inicialmente ocorre um curto período de vasoconstrição seguido de vasodilatação activa. Simultaneamente verifica-se afluxo à zona da lesão de vários mediadores inflamatórios, proteínas, macromoléculas assim como neutrófilos, monócitos e plaquetas. 

FIGURA 1. Esquema da pele

Os monócitos têm um papel central na modulação da resposta inflamatória. Os factores de coagulação e o complemento estimulam a migração celular e regulam a fase de resposta vascular.

A resposta imunitária processa-se nas seguintes fases: uma, inespecífica, ocorrendo logo no período inicial pós-queimadura; outra, constando de resposta celular e humoral mais tardia; e, finalmente por uma resposta específica linfocitária de natureza tímica e não tímica. Os elementos celulares referidos são fundamentalmente neutrófilos e macrófagos; e os elementos humorais integram factores de coagulação, fibrinogénio, complemento e fibronectina. A acção sinérgica dos linfócitos B pela produção de anticorpos específicos, e dos linfócitos T pela libertação de linfocinas, condiciona a resposta imunitária final.

A supressão da resposta imunitária nestes doentes é um fenómeno bem documentado. Tal fenómeno poderá contribuir para o agravamento clínico global do doente queimado e, designadamente, para o aparecimento de quadro séptico pós-queimadura explicável por compromisso da fagocitose e da quimiotaxia dos neutrófilos, por disfunção dos macrófagos, e diminuição da resposta linfocitária à estimulação mitogénica, dos níveis de IL-2, de fibronectina, de gamaglobulina, e da acção celular T-supressora.

A resposta metabólica às queimaduras cursa com um período inicial de hipometabolismo durante 48 horas, iniciando-se posteriormente um período de hipercatabolismo que pode originar perda importante de proteínas estruturais e de lípidos. Esta fase prolonga-se enquanto não se verifica reepitelização da área queimada, e agrava-se durante os episódios de infecção, o estresse pós-operatório e a colheita e colocação de enxertos cutâneos.

As queimaduras químicas, eléctricas e as provocadas por agentes inalados merecem uma referência especial.

As primeiras provocam desnaturação das proteínas e destruição celular. O grau de lesão depende do tempo de exposição, da concentração do agente e da sua solubilidade nos tecidos, sendo que os agentes alcalinos tendem a penetrar mais que os ácidos.

No caso das queimaduras eléctricas, o efeito lesivo não pode ser somente avaliado pela lesão verificada à superfície. Com efeito, uma vez que a corrente eléctrica segue a via dos tecidos com menor resistência, como consequência poderão surgir lesões “à distância”, ao longo dos nervos e vasos, e lesão miocárdica em grau variável, traduzida muitas vezes por arritmia.

Quanto às lesões inalatórias, exceptuando no caso do vapor de água a temperaturas elevadas, o calor provoca lesão apenas acima das cordas vocais. No que respeita à inalação de fumo, como consequência surge alteração da permeabilidade vascular pulmonar, do que pode resultar: edema pulmonar e destruição do surfactante pulmonar com consequentes diminuição da distensibilidade alveolar (compliance) e hipoventilação, culminando em insuficiência respiratória. Contudo, a maioria das lesões da via respiratória é atribuída a queimaduras por aspiração/inalação de produtos químicos como gases tóxicos, óxidos, aldeídos e produtos azotados.

A perda de integridade da pele expõe a criança ao ambiente exterior de agentes infecciosos como bactérias, vírus e fungos, ao mesmo tempo que leva à perda de fluidos e de temperatura corporal.

Em geral, as complicações secundárias das queimaduras estão ligadas à infecção e à ulterior cicatrização.

Quando a queimadura é profunda, o processo de cicatrização é prolongado, com formação, após 3-6 meses, de cicatriz hipertrófica relacionada com proliferação dos fibroblastos e neovasos, concomitantemente com aumento da produção de colagénio espesso e desorganizado. A cicatriz tem aspecto vermelho, é rosada, dura e pruriginosa; a partir do 9º-12º mês, este processo inflamatório diminui, adquirindo progressivamente a cicatriz o aspecto de cor rosada clara até atingir, pelo 18º-24º mês, o aspecto de pele normal.

No caso das queimaduras eléctricas poderão surgir sequelas tardias (meses ou anos) como cataratas e mielite transversa.

Na literatura tem sido descrita situação de carência em vitamina D como resultado das cicatrizes extensas.

Manifestações clínicas e classificação

De acordo com a profundidade das lesões, as queimaduras podem ser classificadas em 3 graus:

1° grau – As lesões estão confinadas à camada mais superficial da pele – a epiderme – sem perda de continuidade, não sendo atingida a membrana basal (Figura 1). Traduz-se por eritema doloroso. São exemplos as queimaduras provocadas por exposição solar ou por contacto de curta duração com chama; quanto à evolução, salienta-se a cura espontânea em menos de uma semana, sem sequelas.

2° grau – As queimaduras, lesando a membrana basal, atingem também a derme mais ou menos profundamente (2º grau superficial, e 2º grau profundo, respectivamente), com formação de eritema e flictenas ou bolhas (que correspondem à acumulação de líquido seroso subepidérmico). Nesta modalidade de queimaduras é possível a regeneração a partir do epitélio glandular.

  • Nas formas superficiais a pele mantém a elasticidade normal, verificando-se reepitelização cerca de 2 a 3 semanas após o evento agudo. A sequela mais frequente é a hipo ou hiperpigmentação, sinal que poderá regredir ao cabo de alguns meses, sobretudo nas crianças mais pequenas.
  • Nas formas profundas verifica-se edema mais acentuado relativamente às superficiais, com aspectos variáveis da pele: vermelho brilhante, ou branco amarelado, ou ainda aspecto nacarado central com halo de eritema. A cura é mais lenta que nas formas superficiais, podendo aparecer, como sequelas, cicatrizes hipertróficas e retracção da pele com repercussão funcional músculo-esquelética. (Figura 2)

3° grau – Neste tipo de queimaduras que, em fase inicial se poderão confundir com as de 2º grau profundas, toda a espessura da derme e tecidos subjacentes são atingidos, com destruição de vasos e terminações nervosas; trata-se de lesões indolores com aspecto macroscópico de necrose de coagulação dos tecidos. A cura é lenta e as sequelas graves.
Na prática clínica, são consideradas queimaduras profundas as de 2º grau profundas e as de 3º grau.
Como nota, salienta-se que constituem sinais de suspeita de queimaduras por maus tratos: 1 – presença de lesões da pele simétricas; 2 – lesões do períneo e dos membros inferiores; e 3 – intervalo de tempo alargado entre a ocorrência da queimadura e o pedido de observação médica.

FIGURA 2. Cicatriz em fase inf lamatória (vermelha, dura e pruriginosa)

Factores de gravidade

Classicamente considera-se que a gravidade duma queimadura na criança depende de um conjunto de factores:

  1. Extensão traduzida objectivamente pela percentagem de área total queimada (TSBA – sigla de: total surface burn area);
  2. Espessura e vascularização do tecido atingido;
  3. Localização;
  4. Idade < 5 anos.

São consideradas queimaduras major com indicação de serem referidas para centro especializado (com unidades de cuidados especiais ou intensivos e condições de internamento implicando isolamento e assépsia rigorosos, assim como apoio de equipas multidisciplinares médico-cirúrgicas especializadas) aquelas com as seguintes particularidades:

  • se TSBA > 15%;
  • se TSBA > 9% e idade < 5 anos;
  • se do 3º grau com TSBA > 5%
  • se associadas a doenças pré-existentes e a lesões traumáticas;
  • se atingirem olhos, orelhas, face, mãos, pés, períneo;
  • se eléctricas;
  • se inalatórias.

Nos casos de TSBA > 50% a probabilidade de sobrevivência é limitada.

Chama-se a atenção para o facto de a distribuição da TSBA ser diferente da do adulto, o que se explica pelas particularidades do organismo em idade pediátrica (crescimento e desenvolvimento), verificando-se maior relação superfície/peso. O Quadro 1 é elucidativo.

QUADRO 1 – Diferente distribuição da TSBA (%) em diferentes idades

Idade em anos
Área0-11-45-910-1415
Cabeça191713119
Pescoço22222
Tronco anterior1313131313
Tronco posterior1313131313
Cada nádega2,52,52,52,52,5
Genitais11111
Cada braço44444
Cada antebraço33333
Cada mão2,52,52,52,52,5
Cada coxa5,56,588,59
Cada perna555,566,5
Cada pé3,53,53,53,53,5

A determinação da extensão da queimadura permite uma estimativa do cálculo das perdas de fluidos e das respectivas necessidades, o que tem implicações práticas ao estabelecer o plano de tratamento emergente (Parte X).

Exames complementares

Sucintamente são indicados alguns exames complementares nos casos de queimaduras que requerem internamento. Contudo, cada caso – mesmo sem indicação para internamento – deverá ser ponderado face às respectivas particularidades.

Eis os essenciais:

  • hemograma e estudo da coagulação;
  • ionograma sérico;
  • doseamento sérico de glicose, ureia, creatinina, sódio, potássio, proteínas totais, albumina e pré-albumina;
  • análise sumária de urina com determinação de mioglobinúria;
  • osmolalidade sérica e urinária;
  • gasometria arterial;
  • determinação de carboxiemoglobina;
  • retinol ligado a proteína.

Tratamento emergente

No âmbito da actuação prioritária é fundamental determinar a TSBA, assim como obter a estimativa da profundidade da lesão. Por outro lado há que ter em atenção que a TSBA e a profundidade da lesão podem aumentar nas primeiras horas pós-trauma.

Tratando-se duma situação requerendo, nas formas graves, actuação de emergência em ambiente asséptico, (inicialmente em unidades de cuidados especiais ou intensivos e, depois, em unidades de queimados com equipas especializadas e logística própria), muitas das medidas a seguir descritas poderão ter de ser realizadas em simultâneo, garantindo sempre a estabilidade hemodinâmica com monitorização dos sinais vitais.

Cuidados gerais

  • Lavagem da área lesada, em condições de assépsia, com compressas esterilizadas utilizando soro fisiológico ou sabão cirúrgico/solução antisséptica sob analgesia, sedação, ou anestesia (ver adiante).
  • Algaliação.
  • Aplicação de sonda nasogástrica para descompressão do estômago.
  • Aplicação de cânula venosa periférica para garantir acesso venoso, eventualmente em dois locais, de preferência nos membros superiores (em caso de necessidade, não contra-indicada em tecidos lesados).
  • Profilaxia antitetânica.
  • Aplicação de penso ”almofadado” com sulfadiazina de prata a 1% ou vaselina esterilizada.
  • Analgesia/sedação*.
    • *As benzodiazepinas, das quais o midazolam é a escolha habitual em pediatria, têm um efeito sedativo variável consoante a dose. Não têm efeito analgésico, pelo que não devem ser usadas isoladamente em procedimentos dolorosos.
    • O paracetamol é o analgésico mais frequentemente utilizado; é eficaz apenas no tratamento da dor ligeira.
    • Os opióides são os fármacos de eleição no tratamento da dor intensa. A codeína, cloridrato de tramadol, morfina, fentanil e sufentanil têm uma potência analgésica crescente. A sua utilização de forma transitória não tem risco de dependência. O risco de depressão respiratória não deve inibir a sua prescrição.
    • A cetamina é um fármaco que produz analgesia, sedação, diminuição da ansiedade e amnésia, com relativa estabilidade cardiovascular; pode constituir alternativa para a realização de alguns procedimentos dolorosos como nos casos de queimaduras.

O esquema terapêutico a aplicar depende da extensão da queimadura e da sua profundidade. Em queimaduras superficiais e de pequena área pode utilizar-se apenas o paracetamol ou propacetamol. Em queimaduras mais extensas pode iniciar-se cetamina ou cetamina + midazolam. Nos casos mais graves: fentanil + midazolam.

  • Paracetamol; dose inicial 10-15 mg/kg PO ou 15-20 mg/kg rectal; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Proparacetamol (1 grama<>500 mg de paracetamol); dose inicial 30 mg/kg IV; intervalos de 4-4 horas SOS até máximo de 100 mg/kg/dia.
  • Cetamina; dose inicial 0,5 mg/kg IV a repetir de 10-10 minutos SOS até máximo de 2 mg/kg; por via IM, dose inicial: 2-3 mg/kg, seguida de doses parcelares de 0,5 mg/kg SOS de 10-10 minutos até máximo de 2 mg/kg.
  • Midazolam; dose inicial em bólus IV de 0,05-0,1 mg/kg, seguida de perfusão IV ao ritmo de 0,5-3 mcg/kg/minuto até dose total máxima de 10 mg.
  • Fentanil; dose inicial IV em bólus: 0,5 mcg/kg a repetir até efeito desejado, sem ultrapassar 5 mcg/kg (1/3 da dose em crianças com < 3 meses); em perfusão IV, após bólus: 0,5-3 mcg/kg/hora até máximo de 5 mcg/kg.
  • Homeostase térmica.
    A manutenção da temperatura corporal deve ser acautelada desde a primeira avaliação do doente e durante todos os procedimentos cirúrgicos subsequentes. De salientar que a hipotermia pode agravar o catabolismo pós-traumático. Assim, torna-se fundamental manter uma temperatura constante no bloco operatório de queimados a fim de evitar a perda térmica do doente.
  • Garantir a permeabilidade da via aérea.
    O factor primordial de reanimação de um queimado é a chamada reanimação com fluidos IV nos casos de TSBA > 15%. Na idade pediátrica, a maior relação superfície/peso e a maior intensidade do catabolismo, implicam o cálculo preciso do volume de fluidos a administrar, considerando-se a normalidade da natrémia um elemento chave na hidratação.

Assim, de acordo com a chamada fórmula de Parkland modificada para a idade pediátrica, o volume de fluidos (cristalóides) de ressuscitação (que devem ser aquecidos) para as primeiras 24 horas é: 

lactato de Ringer (4 mL/Kg x TSBA em %) + fluidos de manutenção

administrando 50% do volume nas primeiras oito horas, e os restantes 50% nas dezasseis horas subsequentes. O ritmo de perfusão deverá ser ajustado de modo a manter a diurese ~1 mL/kg/hora). Os fluidos de manutenção não são considerados se o doente pesar > 40 kg.

Como notas importantes quanto a reanimação por fluidoterapia há a referir:

  • uma reidratação ineficaz poderá ter efeitos adversos ao nível dos pulmões, rim e mesentério;
  • uma reidratação excessiva (sobrecarga de fluidos) poderá conduzir a edema pulmonar agudo, a edema ao nível das lesões da queimadura com hipóxia-isquémia secundárias;
  • o objectivo da fluidoterapia é manter normalidade das FC, FR, PA, diurese e natrémia;
  • nos casos de albuminémia < 3 g/dL está indicada albumina sem sal a 20% na dose de 1 g/kg em 4-6 horas, seguida, em função do contexto clínico, de furosemido (1 mg/kg).

Assistência respiratória

O tipo de assistência respiratória pode variar entre oxigenoterapia suplementar humidificada e aquecida através de cânula nasal ou máscara, e ventilação mecânica sofisticada e terapia com oxigénio hiperbárico, sobretudo nos casos de inalação de químicos tóxicos e SDR tipo adulto (sigla ARDS na nomenclatura de língua inglesa) com compromisso de surfactante (ver atrás). A verificação de estridor, sugestiva de edema da via aérea superior, estabelece a indicação de epinefrina racémica para melhorar o fluxo aéreo.

As estratégias ventilatórias mais usadas e “menos agressivas” incluem protocolos com baixo volume corrente, PEEP elevada, e alta frequência oscilatória. O heliox (mistura de oxigénio + hélio) é utilizado sobretudo nas lesões da via aérea superior.

Nas UCIP, para a ventilação mecânica nas situações de queimaduras e inalação de fumos, há tendência para a utilização de tubos endotraqueais (TET) com cuff (0,5 cm menores do que os sem cuff) com as seguintes dimensões/comprimento em cm, de acordo com as normas da Pediatric Advanced Life Support: (Idade/4) + 3 se TET com cuff, e (Idade/4) + 4 se TET sem cuff.

Nutrição e metabolismo

Os fenómenos que integram a chamada resposta metabólica às queimaduras, atrás descritos, são mediados por corticosteróides, epinefrina, norepinefrina, glucagom, aldosterona e HAD.

Na prática utilizam-se as seguintes fórmulas para suprimento energético global:

  • Lactentes (0-12 meses): 2100 kcal/m2 + 1000 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças (1-12 anos): 1800 kcal/m2 + 1300 kcal/m2 de área de queimadura;
  • Crianças/adolescentes (>12 anos): 1500 kcal/m2 + 1500 kcal/m2 de área de queimadura.

Em termos de % de VCT são estabelecidas as seguintes proporções de nutrientes: proteínas – 25%; hidratos de carbono – 50%; e lípidos – 25%. A nutrição deverá ser ministrada por via entérica, ficando a nutrição por via parentérica reservada para casos de extrema gravidade (se o suprimento calculado ultrapassar o limite de tolerância entérica). Igualmente deverá ser dada atenção às necessidades doutros nutrientes.

Deverá ser providenciada monitorização sérica de parâmetros bioquímicos e outros.

O hipercatabolismo pode ser combatido, até certo ponto, com a administração de propranolol (0,3-1 mg/kg cada 4 a 6 horas por via nasogástrica). Para combater a degradação da massa magra e do conteúdo mineral ósseo, assim como para promover a normalização da albuminémia, pré-albuminémia e do retinol ligado a proteína, é recomendada a administração de análogo da testosterona – a oxandrolona.

No âmbito do tópico em análise, há que atender a diversos problemas metabólicos (por ex. hiperglicémia, hipoglicémia) e hidroelectrolíticos a prevenir, detectar e tratar. Em casos seleccionados pode estar indicada insulinoterapia que, para além da normalização da glicémia, poderá contribuir para o combate ao catabolismo proteico.

Procedimentos cirúrgicos

Nas queimaduras superficiais e não incluídas nos critérios major, definidos a propósito dos factores de risco, a resolução é na maior parte das vezes conseguida com tratamento conservador, vigiando de modo seriado a reepitelização da zona lesada e aplicando os cuidados gerais.

Nas queimaduras profundas, os princípios fundamentais do tratamento cirúrgico são:

  • a excisão de tecidos desvitalizados sob anestesia, sedação e analgesia, evitando a infecção local;
  • a preparação precoce do leito da queimadura para receber o enxerto com sucesso.

A excisão tangencial dos tecidos não viáveis deverá ser limitada a cerca de 15% a 20% de área queimada por sessão cirúrgica. Por vezes, a gravidade da queimadura pela sua profundidade e disposição circunferencial, não permite este objectivo. A presença de compromisso neurovascular distal por desenvolvimento de síndroma compartimental poderá implicar a realização de escarotomias, o que impede a concretização de enxerto precoce.

Como terapêutica promissora, ainda em fase de investigação, citam-se as técnicas de reconstrução com base em pele fetal e cultura de tecidos (engenharia tecidual).

Como nota importante, salienta-se que o tratamento agressivo e precoce da queimadura permite reduzir o tempo de internamento hospitalar, limitar o número de procedimentos sob anestesia geral, e melhorar a relação custo-benefício do processo terapêutico.

2. QUEIMADURAS E REABILITAÇÃO

Importância do problema

A reabilitação dos doentes com formas graves deste tipo de patologia deve começar na fase inicial, ainda na unidade de queimados, e prolongar-se até à fase de maturação cicatricial; o objectivo é evitar repercussão em diversas vertentes, quer de ordem física, quer de ordem psíquica, tendo em conta a elevada probabilidade de sequelas funcionais e estéticas.

Em média, a duração da reabilitação é cerca de 18 a 24 meses, sendo que nos casos mais complicados poderá atingir 5 anos.

Reabilitação durante o período de cicatrização

A intervenção no âmbito da reabilitação de lesões por queimaduras em idade pediátrica deve estar integrada num programa de cuidados multidisciplinares, desde o internamento numa unidade especializada até à maturação cicatricial; o principal objectivo é a prevenção das sequelas cicatriciais e osteoarticulares.

Durante a hospitalização, o tratamento de reabilitação integra os seguintes procedimentos:

  1. posicionamento articular correcto, quer no leito quer sob os pensos cirúrgicos;
  2. aplicação de ortóteses estáticas para manter o posicionamento articular pretendido (Figura 3);
  3. prevenção de complicações respiratórias através de cinesiterapia respiratória;
  4. mobilização articular através de hidrocinesiterapia realizada durante os banhos salinos efectuados antes da realização dos pensos cirúrgicos (Figura 4);
  5. estímulo precoce da função, como nos casos de mão queimada (terapia ocupacional). (Figura 5)

FIGURA 3. Ortótese estática (tala) para posicionamento no leito da tibiotársica/pé em extensão; caso de queimadura na face dorsal do pé

FIGURA 4. Hidrocinesiterapia

FIGURA 5. Queimadura do membro superior: terapia ocupacional durante o internamento

Reabilitação após o período de cicatrização

Após cicatrização deve ser feita uma avaliação do estado da pele e das zonas funcionais abrangidas.

Na avaliação da pele é importante ter sempre presente a história clínica desde o acidente até à cicatrização. O balanço deverá ser feito tendo em conta o factor etiológico da queimadura, o tempo decorrido e os cuidados prestados até à admissão hospitalar, o tempo de cicatrização, a necessidade de enxerto e a existência de complicações durante a mesma cicatrização. Associando estes dados à eventualidade de antecedentes familiares de tendência para cicatrização hipertrófica (componente genético), é possível estabelecer a probabilidade de evolução do caso para cicatriz hipertrófica, ou não (Quadro 2). Nesta perspectiva há a referir que, até à 10ª semana após a cicatrização, a vigilância clínica deve ser extremamente rigorosa, minuciosa e frequente. Se não se verificarem sinais de hipertrofia com a cicatrização durante o referido período, existe fraca probabilidade de tal acontecer depois deste período.

QUADRO 2 – Parâmetros preditivos da evolução da cicatriz*

Cor
Dá orientação sobre a neovascularização.

Relevo
Presença de hipertrofia. No início detecta-se melhor à palpação superficial do que à inspecção.

Prurido
Directamente relacionado com a possibilidade de surgir hipertrofia.

Dor
Só está presente nas fases iniciais. Se se prolongar é possível surgir hipertrofia.

Consistência
Dá orientação sobre a formação de fibrose e consequente perda das fibras elásticas.


* Na cicatriz são avaliadas as seguintes características fundamentais: cor, relevo, prurido, dor e consistência. A cor pode ser rosada, vermelha rosada ou vermelha escura; tais variantes dão indicações quanto ao modo de evolução da neovascularização:
      1. a manutenção de cor vermelha viva poderá significar que a cicatriz está a evoluir para quelóide, com neovascularização activa e produção de colagénio;
      2. quando, pelo contrário, a cicatriz evolui para cor mais clara, tal significa que há regressão da vascularização acompanhada de diminuição da produção do colagénio, o que corresponde a melhor prognóstico.

 

Em função do resultado da avaliação referida, decide-se ou não pela aplicação de material compressivo o mais precocemente possível para contrariar a tendência para a cicatrização hipertrófica; uma vez que este tipo de material tem um custo elevado, a sua prescrição deverá ser sempre muito bem ponderada caso a caso.

Na avaliação das áreas articulares afectadas há que ponderar a necessidade, ou não, de ortótese para evitar a instalação de bridas que afectem a amplitude do movimento articular, obrigando posteriormente a uma ou mais intervenções cirúrgicas. Nas crianças, ao contrário dos adultos, o uso prolongado de ortóteses de imobilização não provoca rigidez articular, e o aparecimento de osteomas pós-imobilização é raro.

Quando a área queimada afecta, por retracção cutânea, a atitude postural, como acontece nas frequentes queimaduras da região anterior e ou lateral do tórax, ou quando existe uma ou mais zonas articulares com limitação da amplitude articular, devem ser prescritos tratamentos de fisioterapia para evitar a instalação de deformações osteoarticulares definitivas que poderão necessitar de intervenções cirúrgicas futuras. (Figura 6)

Se a queimadura abranger o membro superior, e em especial a mão (uni ou bilateralmente), os tratamentos devem ser sempre que possível orientados para terapia ocupacional. A recuperação da função dos membros superiores é fundamental para o normal desenvolvimento psicomotor e sensorial da criança.

FIGURA 6. Limitação articular do ombro por queimadura axilar

Prevenção e tratamento da hipertrofia

Dada a sua importância, reitera-se que o tratamento de reabilitação da criança que sofreu queimaduras deve ser fundamentalmente centrado na evolução cicatricial das áreas queimadas. Com efeito, uma boa cicatrização com a instalação mínima possível de hipertrofia e de bridas, poderá evitar sequelas osteoarticulares e posturas anómalas, com ou sem desvios da coluna.

Neste campo, cabe salientar a extraordinária importância da colaboração dos pais/família; de facto, são os mesmos que cuidam diariamente da criança. Devendo ser minorado pelo clínico assistente o eventual sentimento de culpa que possa instalar-se por parte daqueles em relação ao acidente (o que passou, passou…), há contudo que os responsabilizar pelo tratamento a decorrer, chamando-se a sua atenção para a hipótese de agravamento das sequelas, no caso de não colaboração nos cuidados a prestar à criança em casa.

Caso se venha a instalar cicatriz hipertrófica, torna-se fundamental descrever os principais procedimentos para combater a sua intensificação:

  • Hidratação correcta da pele, com a aplicação de um creme hidratante associado a um componente gordo (por ex. creme de aveia com omega 6); a aplicação deve ser feita várias vezes ao dia consoante o estado da pele, salientando-se que uma boa hidratação também diminui o prurido. Este deve ser evitado, pois o acto de coçar contribui para aumentar a vascularização, com consequente produção de colagénio por parte dos fibroblastos. As lesões de coceira numa pele friável podem, de facto, atrasar o processo cicatricial.
  • Para combater o prurido pode administrar-se, ao deitar (se for necessário, também durante o dia), hidroxizina; e, nos casos mais graves, diazepam.
  • Para lutar contra a hipertrofia (produção e deposição anómala de colagénio) recorre-se ao uso de peças de vestuário compressivas – pressoterapia (Figura 7). A compressão cicatricial é o meio mais eficaz de luta contra a proliferação anómala das fibras de colagéneo. Ao comprimir-se a rede vascular anómala existente na evolução cicatricial em fase inflamatória, diminui o suprimento de oxigénio aos fibroblastos e, consequentemente, a produção de colagénio. Por outro lado, a pressão sobre a cicatriz também promove uma distribuição paralela das fibras de colagénio, o que a torna menos dura e retráctil. O fato compressivo deve ser usado durante o máximo de tempo possível, cerca de 23 horas/dia, só se retirando para a higiene e para aplicação do hidratante. O seu uso em tempo parcial não é recomendado, principalmente na fase inflamatória do processo cicatricial.
  • No reforço da compressão cicatricial pode ser utilizado o silicone-gel (Figura 8) ou mesmo placas de couro (vulgar sola de sapato). O efeito do silicone-gel na evolução da cicatriz ainda hoje é discutível. Além da melhor distribuição das forças de pressão na zona pretendida, atribui-se-lhe a criação de um ambiente de anaerobiose local sobre a cicatriz, susceptível de contrariar a produção de colagénio. A pressoterapia deve ser mantida até haver a certeza de que a fase inflamatória cicatricial chegou ao seu termo; tal ocorre em geral quando a cicatriz começar a ficar rosada, clara, enrugada e mole.
  • Depois da fase inflamatória, podem ser iniciados os tratamentos de vacuoterapia. Este tipo de tratamento promove o descolamento da cicatriz dos planos profundos e destroi parcialmente a fibrose que possa ter-se instalado.
  • A massagem também tem o seu papel. A massagem clássica (do tipo deslizamento) está contra-indicada na fase inflamatória por promover o aumento da vascularização. Neste período somente está indicada a massagem do tipo compressivo, como a transversa profunda; o objectivo é comprimir os vasos arteriais e impedir a organização de fibrose.
  • Paralelamente a estes cuidados na luta contra a hipertrofia, por vezes há necessidade de recorrer aos tratamentos de cinesiterapia e/ou aos tratamentos em terapia ocupacional. (Figura 9).
  • O tratamento em estâncias termais (crenoterapia) com especialização para tratamentos de sequelas de queimaduras é eficaz, embora de elevado custo.

FIGURA 7. Fato compressivo (pressoterapia)

FIGURA 8. Placas de silicone sobre cicatrizes hipertróficas em fase inflamatória

FIGURA 9. Sequência de tratamentos de mãos queimadas em terapia ocupacional

GLOSSÁRIO

Pressoterapia > Método de tratamento utlizado classicamente nas perturbações circulatórias dos membros através de dispositivo mecânico de compressão e descompressão. No caso das queimaduras, o princípio baseia-se na compressão.

Vacuoterapia > Método de tratamento que consiste no descolamento de cicatrizes aderentes através de aparelho eléctrico com dispositivo colocado sobre aquelas, através do vácuo provocado (~sucção).

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ANALGESIA E SEDAÇÃO

Definições e importância do problema

Antes da abordagem do tema relacionado com dor, importa recordar definições básicas relacionadas:

  • Analgesia significa perda da sensibilidade à dor, o que suprime ou atenua a mesma;
  • Anestesia significa genericamente perda de sensibilidade que pode dizer respeito a uma ou mais formas de sensibilidade (por ex. à dor, ao calor, ao toque, etc.); especificamente, anestesia significa supressão artificial da sensibilidade por meio de fármacos chamados anestésicos, numa parte do corpo (local ou regional), ou em todo o corpo (geral- estado farmacologicamente induzido de amnésia, analgesia, perda de consciência e perda de reflexos musculares esqueléticos), quase sempre com vista a uma intervenção cirúrgica;
  • Narcose é o estado de sono provocado por fármacos, na maior parte durante uma anestesia geral; por extensão designa a própria anestesia geral;
  • Hipnose é um estado próximo do sono provocado pelo hipnotismo; no sentido menos corrente é o sono provocado por hipnotismo;
  • Hipnótico (sonífero ou soporífero) é um medicamento que provoca o sono;
  • Sedação corresponde a estado de consciência diminuída, induzida farmacologicamente, com respiração espontânea; pode ser ligeira ou ansiolítica, moderada (doente despertável e ventilação espontânea) e profunda, de acordo com doses administradas;
  • Sedação profunda é um estado de depressão do nível de consciência: o doente não pode ser despertado com facilidade, responder aos estímulos dolorosos, mas existe perda dos reflexos protectores da via aérea, necessitando de suporte para a manutenção da permeabilidade das vias aéreas e/ou ventilatório.

A dor, experiência emocional e sensorial desagradável associada a uma lesão, pode desencadear uma resposta ao estresse com libertação de catecolaminas. A abordagem da dor (um dos sintomas mais frequentes na idade pediátrica), podendo ser avaliada de forma subjectiva ou através de escalas de quantificação adequadas ao grupo etário, deve ser feita fundamentalmente com duas perspectivas: – proporcionar conforto e sensação de segurança ao doente; – ter em conta que a libertação de catecolaminas contribui para a instabilidade do doente crítico. Assim, a supressão da dor frena a resposta neuroendócrina e permite uma maior estabilização clínica.

Na prática clínica em geral, e no contexto da terapia de urgência e emergência, designadamente em cuidados intensivos, a analgesia e a sedação são aplicados: – em casos de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos dolorosos; – para promover a adaptação à ventilação mecânica. Importa referir a propósito o fenómeno de amnésia durante o período de sedação.

Não existindo um modelo único de actuação, a abordagem da terapêutica em análise tem como base normas que garantam segurança e facilitem a aplicação clínica. (ver capítulo “Dor no Recém-Nascido) – Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Avaliação da dor

As escalas de avaliação de dor são muito úteis, especialmente, em crianças pequenas. Existindo várias escalas, a Direcção Geral da Saúde (2010) recomenda algumas daquelas, não pormenorizadas neste capítulo, mas com especificação de idades em que estão indicadas:

Menores de 4 anos ou crianças sem capacidade para verbalizar

  FLACC (Face, Legs, Activity, Cry, Consolability).

Entre 4 e 6 anos

      1. FPS-R (Faces Pain Scale–Revised). Válida a partir dos 4 anos;
      2. Escala de faces de Wong-Baker. Válida a partir dos 3 anos.

A título de exemplo apresenta-se ainda a escala (OPS), adequada para avaliar crianças de todas as idades (0-18 anos), combinando indicadores comportamentais e fisiológicos com atribuição de pontuação 0-1-2. (Quadro 1)

QUADRO 1 – OPS – Escala objectiva da dor, até 18 anos

Sigla: OPS<> Objective Pain Scale. PA <> pressão arterial
Parâmetro012
PA sistólicaaumento < 20% PA basal20-30%> 30%
Choroausenteconsolávelinconsolável
Actividade motoratranquilamoderada/controlávelintensa/inconsolável
Expressão facialsorrisoneutraexpressiva
Avaliação verbal
(2-3 anos)
sem dorincómodo, não localizando a dorqueixa e localizando a dor
Linguagem corporal
(< 2 anos)
postura normalhipertoniaprotege ou toca zona dolorosa


Nesta escala, pontuações de 1-2 significam presença de dor ligeira; 3-5 dor moderada; 6-8 dor intensa que justificam a administração de opióides; 9-10 dor insuportável, com necessidade de opióides em perfusão.

Normas práticas importantes

1. O doente deve ser monitorizado durante todo o procedimento de analgesia e/ou sedação: frequência cardíaca, saturação em oxigénio por oximetria de pulso e pressão arterial.

2. Deve-se administrar oxigénio, se necessário.

3. Toda a equipa deve estar familiarizada com os procedimentos a efectuar, realçando-se a importância do cálculo das doses, das diluições usadas, do tempo de administração, do material e dos antídotos. Quanto à dose, recomenda-se iniciar por doses mais baixas e ir administrando bólus até atingir o efeito pretendido (sem ultrapassar a dose máxima). Excluir alergias

4. Recomenda-se dieta absoluta precedendo a analgesia e/ou sedação, com restrição de líquidos de duração variável: se líquidos à 2 h; se leite materno 4 h; se leite artificial ou restante alimentação à 6 h.

5. Conhecer factores de risco que possam alterar a susceptibilidade individual ao fármaco e que possam levar à necessidade de redução da dose, tais como idade inferior a 5 anos, antecedentes de apneia, risco de obstrução da via aérea (por ex. hipertrofia das adenóides), risco de doença crónica como displasia broncopulmonar e asma, insuficiência hepática, renal e doenças neurológicas. Na presença destes factores de risco, deve-se começar com doses mais baixas (25 a 50% de redução) até efeito desejado.

6. Outra forma de reduzir os efeitos secundários é utilizar sempre que possível, associação de fármacos, o que permite reduzir a dose total. O uso concomitante de fármacos adjuvantes também pode ser útil. Por exemplo, a hidroxizina (1-2 mg/kg/dose oral, dose máxima 25 mg), pode ser usada para aliviar a ansiedade e insónia, sem necessidade de incrementar as doses dos fármacos principais.

7. O conhecimento dos efeitos hemodinâmicos e respiratórios, da rapidez de actuação, da vida média do fármaco, de eventual interacção medicamentosa e da existência de antídoto específico contribuem para auxiliar o clínico na escolha dos fármacos a utilizar, com base na patologia de base, designadamente em contexto de insuficiência hepática ou renal.

ANALGESIA

1. Fármacos analgésicos mais utilizados

O Quadro 2 discrimina os fármacos analgésicos mais utilizados, seguindo-se a subdivisão de acordo com os diversos tipos de acção.

QUADRO 2 – Fármacos analgésicos mais utilizados

Não opióidesOpióides, doses de acordo com o efeito pretendido (ver adiante)
Paracetamol oral/rectal 10-15 mg/kg cada 4-6 h máx 30 mg/kg/dia (< 10 kg)
ev: < 10 kg 7,5 mg/kg/dose máx 30 mg/kg/dia > 10 kg 15 mg/kg cada 4-6 h máx 60 mg/kg
dose máx dia: 4 g/3 g se factores de risco
Morfina
Ibuprofeno: oral 5-10 mg/kg cada 6-8 h
(máx 40 mg/ kg/d)
Fentanil
Metamizol oral: 20-40 mg/kg cada 6-8 h
ev: 40 mg/kg cada 6-8 h
dose máx 2 g/dose
Alfentanil
Cetorolac ev/oral: 0,25-0,5 mg/kg cada 6 h
(> 3 anos) dose máx 30 mg/dose, durante 48-72 h
Remifentanil
Cetamina ev: 1-2 mg/kg/bólusCodeína oral: 0,5-1 mg/kg cada 4-6 h
1.1 Analgésicos não opióides – anti-inflamatórios não esteroides (AINE)

Estes analgésicos, com uma ação analgésica e anti-inflamatória, apresentam como efeitos secundários náuseas, vómitos, gastrite erosiva (pelo que se realça a importância da necessidade de gastroprotecção), e hepatoxicidade (paracetamol lesão/dose dependente).

1.2 Analgésicos opióides

Os analgésicos opióides, porque têm efeito analgésico e hipnótico, também são denominados narcóticos. São fármacos potentes com modulação no sistema nervoso autónomo, originando, entre outros efeitos, diminuição da sudorese; não produzem amnésia, e são frequentemente associados às benzodiazepinas. Produzem miose, o que permite titular o seu efeito. Têm eliminação hepática e renal, sendo necessário adaptar doses em caso de insuficiência orgânica.

Como efeitos secundários frequentes, descrevem-se: depressão respiratória (dose-dependente), náuseas, vómitos, íleo paralítico, espasmo do esfíncter Oddi, retenção urinária e bradicárdia. Como induzem a libertação de histamina, podem associar-se a prurido importante, broncospasmo e laringospasmo. A administração prolongada associa-se a tolerância e a dependência. A suspensão abrupta pode levar a síndroma de abstinência.

A Naloxona, é um antídoto que permite reverter a depressão respiratória em doentes com respiração espontânea (doses 0,01 mg/kg/dose, máx 2 mg). Pode repetir-se a dose e usar-se em perfusão ao ritmo de 2-10 mcg/kg/h. A reversão dos efeitos está contra-indicada quando existe dependência física.

Os opióides podem ser naturais, como a morfina e a codeína. Existem ainda várias substâncias sintéticas com acção semelhante aos opióides, como por exemplo a meperidina, o propoxifeno e a metadona.

Faz-se seguidamente referência aos analgésicos opióides mais representativos (Quadros 3, 4, 5, 6).

Morfina

A morfina está indicada no tratamento sintomático da dor moderada a severa (associada a cirurgia, doenças neoplásicas e dor crónica em geral), na sedação pré-operatória e como adjuvante da anestesia. É igualmente útil nas crises hipoxémicas na hipertensão pulmonar e edema pulmonar.

QUADRO 3 – Doses da Morfina

MORFINAVia EV/IM (idades em anos → A)Em perfusãoVia oral
Dose (respiração espontânea)0,1-0,2 mg/kg
cada 2-4 h
máx por dose
    • < 1 A – 2 mg
    • 1-6 A – 4 mg
    • 7-12A – 8 mg
    • > 12 A – 15 mg
10-15 mcg/kg/h0,2-0,5 mg/kg cada 4-6 h
Fentanil

É um fármaco muito utilizado para analgesia em procedimentos muito dolorosos, podendo ser usado em bólus (procedimentos curtos) ou em perfusão contínua (em situações de pós-operatório). É cem vezes mais potente do que a morfina, com início de acção após alguns minutos, e duração de 30-45 minutos. Doses repetidas podem prolongar os efeitos farmacológicos por acumulação.

A administração rápida pode produzir depressão respiratória, bradicardia e rigidez muscular. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Doses de Fentanil (ev)

Nota → Diluir com soro fisiológico ou Dextrose a 5% para perfusão contínua, na concentração máxima 50 mcg/mL; reajuste de dose na insuficiência renal <> 75% da dose com TGF 10-50 ml/min/1,73m3; 50% da dose TGF < 10 ml/min/1,73 m3

Analgesia (respiração espontânea)Sedoanalgesia (doente ventilado)
Bólus 0,5 mcg/kg
(dose máx 25-50 mcg); repetir, se necessário, de 5-5 minutos
1-3 mcg/kg   bólus cada 2 a 4 h
Perfusão   0,5-1 mcg/kg/h1-5 mcg/kg/h

Uma das utilizações do fentanil diz respeito ao tratamento da dor crónica, como a dor oncológica; pode ser utilizado sob a forma transdérmica (adesivos), sublingual, ou oral através de chupa-chupas. O cálculo da dose necessária leva em conta a soma de todos os analgésicos usados, aplicando, posteriormente, uma conversão através de uma tabela que permite calcular a dose final de fentanil.

 Alfentanil

Os derivados do fentanil (sulfentanil, alfentanil, remifentanil) vieram reduzir alguns dos efeitos secundários, nomeadamente alterações hemodinâmicas associadas ao uso da morfina, tendo níveis de potência de acção superiores em relação à morfina. São fármacos com maior estabilidade hemodinâmica e por isso são utilizados durante procedimentos ou mesmo durante cirurgia.

O alfentanil é um opióide sintético, de curta duração, indicado para analgesia, isolado ou em associação com outros anestésicos ou sedativos. Deve-se administrar em bólus lento, de forma a evitar rigidez muscular, em particular da caixa torácica que interfere com a ventilação. Tem uma acção de curta duração, sendo um fármaco de eleição para procedimentos breves e quando se pretende rápida recuperação da consciência, até cerca de 15 minutos. Tem acção mais rápida do que o fentanil, com 25% da sua potência. Vigilância acrescida nos doentes com bradicardia e sinais de hipertensão intracraniana. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Doses de Alfentanil (ev)

Nota Diluir com soro fisiológico ou com Dextrose a 5% para perfusão contínua, atendendo à concentração máxima permitida de 80 mcg/mL

AnalgesiaSedoanalgesia (doente ventilado)
Bólus 2-5 mcg/kgBólus  5-10 mcg/kg
Perfusão 2-5 mcg/kgPerfusão  2,5-30 mcg/kg/h
Remifentanil        

O remifentanil tem uma vida ultracurta (3-5 minutos); com eliminação rápida, permite recuperação imediata da consciência, muito útil quando é necessário proceder a monitorização neurológica. Tratando-se dum fármaco muito seguro no caso de insuficiência renal e hepática, é considerado um fármaco de eleição. O efeito analgésico é obtido ao fim de 1-3 minutos, não se acumula nos tecidos, permitindo a extubação após intervenção; também é adequado em contexto de se proceder a entubação (dose 1-3 mcg/kg/dose). (Quadro 6)

QUADRO 6 – Doses de Remifentanil (ev)

AnalgesiaSedoanalgesia
Bólus 0,1 mcg/kg, em procedimentos rápidosBólus sem interesse por acção curta
Perfusão 0,025-0,1 mcg/kg/minPerfusão 0,05-1 mcg/kg/min

 

2. Fármacos sedativos mais utilizados

O Quadro 7 discrimina os fármacos sedativos mais utilizados, divididos em dois grupos terapêuticos: os anestésicos e os ansiolíticos-hipnóticos.

QUADRO 7 – Fármacos sedativos mais utilizados: anestésicos e ansiolíticos-hipnóticos

ANESTÉSICOSANSIOLÍTICOS – HIPNÓTICOS
TiopentalHidrato cloral
EtomidatoDiazepam
PropofolMidazolam
Cetamina 
Protóxido de azoto 

 

2.1 Ansiolíticos-hipnóticos
Hidrato de cloral

O hidrato de cloral é um fármaco sedativo não analgésico que não provoca depressão respiratória nas doses de sedação. É utilizado frequentemente nos procedimentos não dolorosos, como por exemplo nos exames de Imagem. Com metabolismo hepático e eliminação renal, o seu efeito é mantido por 6-8 h. (Quadro 8)

QUADRO 8 – Hidrato cloral: doses e vias de administração

Vias de administração Doses
(Nota – Dose máxima: 2 g/24 h)
Oral (1 mL <> 50 mg)Sedação: 25 mg/kg/dia
Rectal (1 mL <> 100 mg)Hipnose: 50-100 mg /kg/dia
Dose máxima 2 g/24 h
Benzodiazepinas

O grupo das benzodiazepinas tem efeito dependente da dose, com acção inicial ansiolítica e, gradualmente, anticonvulsante, sedativa, e relaxante muscular, até à fase anestésica. Tem metabolismo hepático com eliminação renal e biliar. Este grupo terapêutico produz sedação, mas não analgesia.

Como efeitos secundários citam-se: depressão respiratória, depressão miocárdio, hipotensão, náuseas e vómitos.

O antídoto específico é o flumazenil (anexato); dose: 0,01 mg/kg até 0,2 mg/dose, podendo repetir-se bólus até máximo 1 mg. Dose para perfusão: 5-10 mcg/kg/h. Deve usar-se flumazenil só depois de reverter efeito do bloqueio neuromuscular (até o doente ter movimentos respiratórios espontâneos) e tendo-se em atenção o mal convulsivo: ao anular efeito farmacológico das benzodiazepinas, perde-se também acção terapêutica dirigida ao status convulsivo.

Entre as benzodiazepinas citam-se de modo sucinto, como os mais frequentemente utilizados, o midazolam e o diazepam. Nos Quadros 9 e 10 são descritas respectivamente as doses e as vias de administração

QUADRO 9 – Midazolam: doses e vias de administração

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua, concentração máxima 1-5 mg/mL. Se sedação insuficiente: administrar bólus extra de 0,05 mg/kg
MidazolamEVSublingual/intranasalOral
Dose0,05-0,1 mg/kg
(máx <> 5 mg)
0,2-0,5 mg/kg0,5-0,7 mg/kg;
(máx <> 20 mg)
Início de acção1-3 min10 min10-20 min
Efeito máximo5-7 min10 min 
Duração20-30 min (bólus)60 min 
Perfusão1-15 mcg/kg/min  

QUADRO 10 – Diazepam: doses e vias de administração

Nota – Menor potência do que o midazolam, mas acção mais prolongada. Concentração máxima de 5 mg/mL, não ultrapassando o ritmo de 5 mg/min
 >EVRectalOral
Dose
    • 0,05-0,1 mg/kg (pode ser repetido até 10 mg/dose)
    • 2-4 h (máx 0,6 mg/kg em 8 h)
    • 0,5 mg/kg/dose (até 5 anos)
    • 0,3 mg/kg/dose (6-11 anos)
    • 0,2 mg/kg (> 12 anos máx 10 mg)
0,2-0,8 mg/kg/dia (a: 6-8 h)
Início de acção3 min5 min10-20 min
Duração60-120 min  
2.2 Anestésicos
Cetamina

É um anestésico dissociativo que bloqueia selectivamente as vias de associação cerebral e deprime o sistema talâmico-cortical, o sistema activador reticular e límbico, produzindo analgesia e sedação.

Tem efeito anti-inflamatório e diminui as citocinas pró-inflamatórias, propriedades muito úteis em situações de estresse importante como cirurgia, sépsis e no trauma. Embora tenha efeito inotrópico negativo intrínseco e propriedades vasodilatadoras, a cetamina preserva a estabilidade hemodinâmica pelo efeito simpático secundário ao induzir a libertação de catecolaminas, (atenção, por isso, aos casos de hipertensão e/ou aneurisma), acabando por ser um estimulante cardiovascular: incrementa a pressão arterial, o cronotropismo e a resistência dos vasos periféricos. Por estas propriedades é um fármaco de primeira eleição nos casos cursando com hipotensão, (sépsis), broncospasmo (efeito broncodilatador) e nos queimados. Garante uma associação segura com propofol (ver adiante) por manter estabilidade hemodinâmica. Tem metabolismo hepático e excreção renal. (Quadro 11)

Como efeitos secundários indesejáveis regista-se o aumento das secreções orais e brônquicas.

QUADRO 11 – Cetamina: doses e vias de administração

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua; concentração de 5-10 mg/mL
Cetamina
Sedação para procedimentos 1 mg/kg/dose, pode-se repetir bólus (lento)
Anestésico 2 mg/kg/dose
Perfusão 5-20 mcg/kg/min
Intramuscular 2-3 mg/kg/dose

Uma dose endovenosa 1-2 mg/kg é normalmente adequada para induzir sedação com preservação da via aérea e de ventilação espontânea; por isso, permite realizar procedimentos dolorosos (suturas, colocação de catéteres centrais, redução de fracturas) em doentes não ventilados.

Tiopental

É um barbitúrico de acção ultracurta, início de acção imediata, com duração de 5 minutos. Produz sedação profunda e apneia em 15-30 segundos. Diminui o fluxo cerebral, o consumo de oxigénio cerebral e a pressão intracraniana. Indicado para procedimentos rápidos como a entubação. Indicado, também, na hipertensão intracraniana, e ainda na abordagem do estado mal convulsivo; as crises convulsivas podem ser controladas com tiopental enquanto os agentes anticonvulsantes não atingirem os níveis terapêuticos ideais. O uso de tiopental em perfusão já pressupõe ventilação assistida e possível suporte vasopressor. Tem eliminação hepática e excreção renal.

As doses em diferentes situações constam do Quadro 12.

QUADRO 12 – Doses do Tiopental (ev)

Nota – Diluir com soro fisiológico ou D5% para perfusão contínua; concentração máxima de 50 mg/mL
TIOPENTAL ev SEDAÇÃO curta ENTUBAÇÃO MAL CONVULSIVO
DOSE 1-3 mg/kg 3-5 mg/kg 1-5 mg/kg/h
Propofol

O propofol pertence ao grupo de anestésicos gerais; tem início de acção muito rápida (15-45s), e despertar também rápido. É metabolizado no fígado e eliminado pelo rim. Pode ser utilizado na sedação de jovens e adultos em ventilação mecânica, nas crianças com mais de um mês de idade (de acordo com o INFARMED, 2014) e adultos durante procedimentos de diagnóstico e cirúrgicos.

A administração rápida produz vasodilatação com diminuição das resistências periféricas e do inotropismo, pelo que deverá ser evitado em doentes hipovolémicos ou hemodinamicamente instáveis. Em perfusão contínua e prolongada (>10 mg/k/h) por mais de 48 horas, associa-se a acidose metabólica. Assim, a perfusão contínua e prolongada, não está recomendado em crianças pequenas, pela probabilidade de surgimento da chamada síndroma de perfusão do propofol (acidose metabólica, hipercaliémia, hiperlipémia, hepatomegália, insuficiência renal, disritmia, e insuficiência cardíaca. (Quadro 13)

Este fármaco está contra-indicado em casos de alergia ao ovo, à soja e ao amendoim.

QUADRO 13 – Doses de administração do Propofol (ev) e respectivos efeitos

PROPOFOL
Indução anestésica 2,5-3,5 mg/kg
Sedação 1-2 mg/kg
Perfusão 1-4 mg/kg/h
Etomidato

É um anestésico com início de acção imediata, indicado na indução de anestesia para procedimentos de curta duração, procedimentos de diagnóstico ou intervenções rápidas que exigem uma recuperação rápida sem sintomas residuais. O seu tempo de actuação é mais curto do que o do midazolam. A dose em bólus por via ev é 0,2-0,3 mg/kg.

Trata-se do anestésico com menor repercussão hemodinâmica, diminuindo a pressão intracraniana através da diminuição do fluxo cerebral e diminuição do consumo de oxigénio. Não recomendado para uso de rotina em doentes críticos ou sujeitos a estresse grave pelos efeitos de supressão da função da suprarrenal (inibe a 11-beta hidroxilase). Em tais circunstâncias deve proceder-se sempre à administração duma dose de reposição de prednisolona (1-2 mg/kg) de forma a acautelar a disfunção adrenocortical. Pode ocorrer supressão prolongada de cortisol e aldosterona quando administrado em perfusão contínua; por isso, este modo de administração não é aconselhado. Não possuindo efeito analgésico, recomenda-se a administração simultânea de um opióide como o alfentanil.

Protóxido de azoto

O protóxido de azoto é um gás anestésico, que associa propriedades analgésicas e amnésicas. É usado por via inalatória com máscara, permitindo diminuir a ansiedade e o medo, aumentando o limiar da dor e melhorando a cooperação da criança. Pode ser usado através de uma mistura equimolar de 50% de protóxido de azoto e pelo menos 50% de oxigénio (MEOPA). A via inalatória é feita através de uma máscara (com fluxo de 4 l/min) e durante pelo menos 3-4 minutos antes do início do procedimento.

A criança deve permanecer sempre comunicativa, já que o nível de sedação pretendido é mínimo. Verifica-se uma resposta normal a comandos verbais, sendo que, por outro lado, a função cardiovascular e respiratória permanece inalterada. Se a criança adormecer durante a administração, deve suspender-se o fornecimento do gás, passando a oxigénio unicamente. O procedimento pode manter-se desde que o paciente responda ao estímulo táctil. No fim de cada procedimento deve administrar-se oxigénio a 100%.

A sedação consciente mantém intactos os reflexos protectores da via aérea. O início rápido de acção e eliminação rápida (3-5 min), associados a ausência de nefrotoxicidade ou hepatotoxicidade são características que tornam o protóxido de azoto uma opção válida em pediatria, proporcionando segurança no seu uso, designadamente sem depressão do centro respiratório.

As suas limitações relacionam-se com dificuldades na adaptação da máscara, seja por falta de aderência, seja por alterações anatómicas faciais: distúrbios psiquiátricos, traumatismo craniano com alteração do estado de consciência, e associação de patologia com risco de expansão das cavidades com ar sob tensão, como pneumotórax. Também, tratando-se de procedimentos mais cruentos, esta abordagem poderá não ser suficiente.

A utilização desta técnica está indicada em procedimentos de curta duração, em casos de dor de intensidade ligeira ou moderada, mas associada a um elevado nível de ansiedade. Muito útil em pequenos procedimentos como punção venosa, punção lombar, cateterismo para uretrocistografia, suturas de pele, correcção de fractura, tratamento dentário e procedimentos endoscópicos.

Esquemas terapêuticos

Depois de avaliada a condição clínica do doente e os potenciais efeitos secundários dos fármacos, a escolha deve ser baseada no efeito pretendido, escolhendo para isso fármacos com menor risco, com doses mais baixas, e com possibilidade de existir antídoto. (ver Quadros seguintes)

A aplicação de escalas de dor é, mais uma vez, muito útil para decisão terapêutica.

QUADRO 14 – Analgesia de acordo com situação clínica e grau da dor

Dor Leve Dor moderada Dor intensa
Paracetamol Associação de 2 AINE Opióide em bólus
Metamizol AINE + Opióide Opióide em perfusão
Cetorolac Opióide + Midazolam

QUADRO 15 – Terapêutica em função do tipo de procedimento

Procedimentos não dolorosos Ecografia, Tomografia, Ressonância Magnética
Colaborante Sem necessidade
Não colaborante e sem via Hidrato de cloral, Hidroxizina oral Midazolam oral (0,5-0,75 mg/kg), 20 min antes
Não colaborante e com via Midazolam ev 0,05-0,1 mg/kg, lento, no local
Procedimentos dolorosos
Canalização venosa, punção lombar EMLA, ponderar de acordo com idade, clínica e colaboração restante sedação
Pensos, queimaduras, drenos torácicos em doentes não ventilados Cetamina+Midazolam Alfentanil+Midazolam Alfentanil+Propofol
Pensos, queimaduras, drenos torácicos em doentes ventilados Fentanil/Alfentanil+Midazolam (sedação profunda) Fentanil/Alfentanil+Midazolam+Vecurónio ou Rocurónio
Procedimentos muito dolorosos Doses até sedação profunda
Biópsia medula, hepática, renal, desbridamento de feridas, queimaduras Canalização de vias centrais Fentanil/Alfentanil+Midazolam Fentanil/Alfentanil+Propofol Cetamina+Midazolam

 

Esquemas terapêuticos segundo a patologia

O quadro 16 esquematiza as noções anteriormente expostas.

QUADRO 16 – Terapêutica segundo patologia

TRAUMA
Sem traumatismo cranianoCom traumatismo craniano e estabilidade hemodinâmicaSem estabilidade hemodinâmica
Midazolam+AlfentanilPropofol+RemifentanilMidazolam+Cetamina
Midazolam+CetaminaMidazolam+RemifentanilMidazolam+Alfentanil
 Midazolam+Alfentanil 
QUEIMADO
AlfentanilUso preferencial pelo seu efeito sobre a dor
HIPERTENSÃO INTRACRANIANA
Midazolam/Propofol+RemifentanilPonderar Tiopental (Coma Barbitúrico)
Ponderar Vecurónio/Rocurónio 
ENTUBAÇÃO
SedaçãoMidazolam
Cetamina (asma, hipotensão, choque)
Propofol
Nota – Com instabilidade hemodinâmica deve-se evitar o Propofol.
VENTILAÇÃO MECÂNICA
Midazolam+Fentanil/AlfentanilBólus e perfusão
Propafol+Fentanil/AlfentanilBólus e perfusão
Adicionar relaxante muscularQuando há transporte do doente
Risco de auto-extubação
Assistência respiratória agressiva


O Quadro 17 descreve aspectos sucintos do tratamento dos efeitos secundários dos opióides.        

QUADRO 17 – Tratamento dos efeitos secundários dos opióides

Digestivos
(náuseas, vómitos, dor abdominal)
Cutâneos
(prurido)
Urinários
(retenção urinária)
Metoclopramida
0,1-0,2 mg/kg/dose cada 6-8 h IV
Diminuição da dose opióidesAlgaliação
Ondasetron
0,1-0,2 mg/kg/dose 6-6 h IV
Compressas friasDiminuir dose de opióide
Difen-hidramina
1,25 mg/kg/dose 6-6 h IV
Difen-hidraminaBetanecol 0,05 mg/kg/dose de 8-8 h
PO SC
Droperidol
10-30 mcg/kg dose IV
  
Naloxona
0,01 mg/kg IV
Mudar para Cetamina 

Tolerância, dependência e abstinência

O uso de opióides, benzadiazepinas, barbitúricos e de cetamina por períodos curtos e em baixa dose, raramente induzem abstinência. O risco de abstinência é de 50% com o uso de fentanil por mais de 5 dias ou numa dose cumulativa maior que 1,5 mg/kg enquanto, para o midazolam, este risco ocorre com uma dose cumulativa total superior a 60 mg/kg.

Existem vários esquemas de redução da dose destes fármacos cuja descrição ultrapassa os objectivos deste livro.

Escalas de sedação

Os níveis de sedação dos doentes devem ser avaliados, a fim de evitar uma sedação mais profunda do que a necessária, reduzindo tempo de ventilação mecânica e de internamento, e não agravar o prognóstico pela associação de complicações e maior mobilidade. Para a descrição das referidas escalas, sugere-se ao leitor a consulta da bibliografia.

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TRAUMATISMOS CRANIOENCEFÁLICOS (TCE)

Definição e importância do problema

Ao abordar-se o tópico TCE, importa estabelecer uma destrinça entre traumatismo craniano e traumatismo cranioencefálico. A primeira situação refere-se ao problema clínico associado a concussão e contusão da cabeça. O TCE refere-se às situações em que a lesão traumática da cabeça origina perda transitória da consciência, perturbação do estado mental ou amnésia com ou sem défice neurológico. Nas formas ligeiras de TC ligeiro a criança está consciente ou é facilmente despertável, não se verificando défice neurológico. De acordo com estudos epidemiológicos, na maioria das situações não se verifica evolução de TC para TCE.

A lesão cerebral constitui a causa mais frequente de morte por traumatismo em idade pediátrica (75-97%). As causas mais frequentes variam de acordo com o grupo etário: em menores de 4 anos são as quedas e acidentes de viação, com destaque em menores de 1 ano para a síndroma da criança batida e, em adolescentes, os acidentes desportivos e de viação. De referir que o veículo motorizado é o componente que comporta maior risco no ambiente que rodeia a criança.

Os TCE correspondem a cerca de 50% dos acidentes no primeiro ano de vida e a 25% dos mesmos até aos 5 anos. Nos EUA estima-se uma incidência de 200-300 casos por 100.000 crianças por ano, correspondendo a cerca de 1-2% de todas as situações de emergência no referido grupo etário. Destas, cerca de 5% são fatais. 

Etiopatogénese

O TCE pode originar dois tipos de lesão: primária e secundária.

A chamada lesão primária é imediata e corresponde à lesão física

do couro cabeludo, crânio, dura, vasos e parênquima nervoso (neurónios, dendritos, axónios, glia). Descrevem-se os seguintes mecanismos de lesão: impacte (hemorragias epidural, subdural, intracerebral, contusão, fracturas); inércia (concussão, lesão difusa axonal); hipóxia/isquémia.

Se a lesão primária não for reconhecida, poderá surgir lesão secundária na base da qual estão cinco categorias de mecanismos: excitotoxicidade, isquémia e falência de energia, activação da cascata da inflamação, lesão/ruptura tecidual, e lesão dos axónios.

Todos estes fenómenos associam-se a eventos clínicos diversos: hipotensão sistémica, insuficiência respiratória e hipóxia-isquémia, assim como herniação cerebral ou do tronco cerebral como resultado de edema cerebral ou hemorragia intracraniana com consequente hipertensão intracraniana, agravante da hipóxia-isquémia/hipoperfusão cerebral. A presença de tecido cerebral lesado, por sua vez, poderá comprometer o débito sanguíneo cerebral, por disfunção do mecanismo de autorregulação.

A localização do encéfalo no interior da calote craniana confere protecção às agressões externas. Contudo, a rigidez óssea opõe-se às variações do volume do conteúdo intracraniano, exceptuando nas primeiras idades em que se verifica certo grau de distensibilidade da calote enquanto não se verificar o encerramento das fontanelas e suturas. Ou seja, a partir das idades em que a calote deixa de ser distensível, a expansão do tecido cerebral, ou dos fluidos que circulam dentro do crânio por lesão traumática originam elevação da pressão intracraniana (hipertensão intracraniana). Especificando: qualquer aumento do volume do tecido cerebral, do volume de sangue contido no tecido cerebral e meninges, e/ou do volume do LCR por patologia (como edema, hemorragia ou hidrocefalia) origina desvio do LCR para o canal espinal como mecanismo de compensação, o que, como se pode calcular, tem limites.

Se o aumento do volume intracraniano for muito acentuado, a pressão intracraniana (PIC) aumenta rapidamente. Se a PIC exceder a pressão venosa (PV) os vasos cerebrais são comprimidos, o que se repercute sobre a pressão de perfusão cerebral (PPC- pressão que garante o débito sanguíneo cerebral); a consequência é a redução do débito sanguíneo cerebral.

Recordam-se, a propósito, algumas noções básicas:

  • A PPC é a diferença entre a pressão nas artérias à entrada na calote craniana e a PIC;
  • Na maior parte dos órgãos, o débito sanguíneo é directamente proporcional à diferença entre a pressão arterial e a pressão venosa (pressão de perfusão) e inversamente proporcional à resistência que o órgão oferece ao leito vascular;
  • Nalguns órgãos como o coração e o cérebro, verifica-se igualmente um mecanismo de regulação através do tono vascular (resistência vascular) de modo a garantir débito sanguíneo constante face às variações da pressão de perfusão; trata-se do fenómeno de autorregulação.

Ao nível ultraestrutural são verificados os seguintes eventos com resultado do TCE:

  • Depleção de fosfocreatina com repercussão no défice de energia para as reacções requerendo ATP;
  • Falência da membrana com perda de gradientes iónicos, aumento de Ca++ e Na+ e diminuição de K+ intracelulares;
  • Libertação de ácidos gordos livres da membrana neuronal;
  • Acção do glutamato e de outros aminoácidos excitatórios originando lesão neuronal (excitotoxicidade) paralelamente à produção de radicais livres;
  • Estresse oxidativo (acção do O) e nitrativo (acção do N) como resultado da disfunção mitocondrial;
  • Peroxidação lipídica e oxidação proteica, conduzindo a lesão do ADN, necrose e apoptose; estes fenómenos são associados a nível elevado de poli-insaturação;
  • Edema citotóxico conduzindo a necrose neuronal e edema vasogénico (relacionado com disfunção da barreira hemato-encefálica por inflamação).

Actuação inicial

Sendo os TCE situações emergentes, importa abordar aspectos da actuação inicial (prioritária) antes da descrição sucinta das formas clínicas mais frequentes e dos procedimentos a realizar durante a estadia do doente na unidade de cuidados intensivos pediátricos. (Figura 1)   

Numa perspectiva prática, a actuação no âmbito deste problema clínico pressupõe um trabalho coordenado de equipa treinada, importando chamar a atenção para a necessidade de uma sequência de gestos:

  • Tratar prioritariamente a disfunção respiratória e cardiovascular;
  • Anamnese inquirindo sobre circunstâncias em que se verificou o acidente, sinais e sintomas ocorridos eventualmente como convulsões, vómitos, hemorragias nasais ou auriculares, perda de LCR etc.;
  • Exame somático global para detecção de lesões como abdómen agudo, fracturas, lesões torácicas etc;
  • Observação cuidadosa da calote craniana;
  • Monitorização dos sinais vitais (pressão arterial e pulso; hipertensão e bradicárdia apontam para hipertensão intracraniana, enquanto hipotensão e taquicárdia, para choque hipovolémico);
  • Avaliação neurológica prévia englobando atenção especial: – às pupilas (simetria, dimensões e reacção à luz), ao nível de consciência de modo estruturado, objectivo e mensurável em cada caso – através da escala de Glasgow ou Glasgow Coma Scale/GCS; e – à existência de défices motores e de sinais meníngeos; anisocória pode sugerir herniação ou hematoma epidural ou subdural;
  • Outros procedimentos a aplicar concomitantemente em função do contexto clínico (Quadros 1 e 2); salienta-se que a realização de radiografia do crânio nos TC ligeiros é pouco esclarecedora; por isso, é dada preferência à TAC-CE em situações acompanhadas de perda de consciência, sinais de fractura, suspeita de síndroma da criança batida, sinais neurológicos focais, ataxia, cefaleias e vómitos persistentes, otorráquia, rinorráquia, convulsão ou antecedentes de discrasias sanguíneas; a necessidade de suporte ventilatório implica seguramente, também, monitorização hemodinâmica invasiva e monitorização da PIC. De salientar que pode ocorrer herniação apesar de valores de PIC normais.

Nota: uma TAC-CE inicial normal não exclui a hipótese de se desenvolver hipertensão intracraniana ou de aparecerem outras lesões. Deverá repetir-se o exame se:

  • TAC-CE realizada nas primeiras 6 horas
  • Após 24 horas se a TAC-CE inicial evidenciar sinais de patologia
  • Se houver agravamento clínico
  • 24 h após drenagem de colecção para excluir recidiva
  • 24 h após primeira TAC normal, em doentes sedados, sem monitorização de PIC

FIGURA 1. Algoritmo para casos de TCE na idade pediátrica

QUADRO 1- Monitorização neurológica (Glasgow Coma Scale)

Interpretação: graus 13-15: ligeiro compromisso neurológico; graus 9-12: moderado compromisso neurológico; graus < 8: grave compromisso neurológico
Melhor abertura dos olhos (1-4)Melhor resposta motora
(membros superiores (1-6))
Melhor resposta verbal (1-5)Melhor resposta verbal (1-5)
(modificado para criança mais nova)
    1. Sem resposta
    2. Responde à dor
    3. Responde à voz
    4. Espontâneo
    1. Sem resposta
    2. Extensão anormal (postura de descerebração)
    3. Flexão anormal (postura de descorticação)
    4. Flexão de retirada à dor
    5. Localização da dor
    6. Obedece a ordens
    1. Ausência
    2. Sons incompreensíveis
    3. Palavras inapropriadas
    4. Discurso confuso
    5. Orientado
    1. Ausência
    2. Inquieto, agitado
    3. Irritabilidade persistente
    4. Choro consolável
    5. Palavras apropriadas, sorri, fixa + segue

QUADRO 2 – Procedimentos ABC (Airway – Breath – Circulation)

Entubação traqueal: quando, quem, como?…
Quando:
      • Escala de coma de Glasgow (GCS) < 8
      • Decréscimo de 3 pontos na GCS, independentemente do valor inicial de GCS
      • Assimetria pupilar
      • Esforço respiratório ineficaz ou lesão torácica ou pulmonar significativa
      • Perda do reflexo faríngeo (gag)
      • Apneia
      • Convulsões
Por quem:
      • Pela mais qualificada e experiente pessoa disponível
      • Com a presença de, pelo menos, duas pessoas qualificadas e experientes
      • Com o apoio indispensável de equipa de enfermagem e de assistência respiratória
Como:

Sequência rápida de procedimentos:

          • Estabilização com tracção axial do pescoço se houver suspeita de lesão da coluna cervical (até prova em contrário, toda a lesão craniana está associada a lesão cervical)
          • Compressão da cartilagem cricóide
          • Pré-oxigenação com O2 a 100% e máscara (2-3 minutos)
          • Lidocaína (1-2 mg/kg) – prevenção da elevação da pressão intracraniana (PIC)
          • Tiopental: 2-3 mg/kg se TC + hipovolémia; 5-7 mg/kg na ausência de hipovolémia
          • Considerar bloqueio neuromuscular: vecurónio (0,2-0,4 mg/kg)
          • Entubação
          • Promover oxigenação e ventilação eficazes

Algumas formas clínicas e actuação em situações específicas

 Importa considerar as principais formas clínicas de apresentação, descritas a seguir, chamando-se a atenção para medidas particulares de actuação. (Figuras 2 a 7)

Associada a qualquer das formas clínicas, poderá estar a hipertensão intracraniana; recordam-se os sinais principais desta última: alteração do estado de consciência, edema da papila, cefaleias e paralisia do 6º par craniano.

Poderá verificar-se evolução para herniação perante as seguintes circunstâncias:

  • Anisocória por midríase unilateral; ou
  • Tríade de Cushing (hipertensão, bradicardia e padrão respiratório anómalo).

Fracturas do crânio

Existindo uma força de impacte importante, o clínico poderá deparar-se com diversas situações:

  • Fractura linear; deverá ser ponderada a vigilância no domicílio ou no hospital.
  • Fractura exposta (risco de lesão directa do SNC e risco infeccioso); tal implica necessidade de avaliação neurocirúrgica.
  • Fractura com afundamento (quando a tábua interna sofre uma deslocação superior à espessura do osso); obriga à necessidade de avaliação neurocirúrgica e antibioticoterapia.
  • Fractura da base do crânio (basilar); o diagnóstico é clínico e imagiológico. A TAC evidencia sinais de fractura e de lesões cerebrais associadas. Relativamente ao exame objectivo há a salientar:
    • equimose retroauricular ou mastoideia (sinal de Battle) – por dissecção do sangue na região occipital ou mastoideia;
    • laceração do canal auditivo externo, nervos facial e auditivo (fractura do rochedo temporal);
    • hemorragia endotimpânica com abaulamento (fractura do rochedo temporal);
    • equimose periorbitária (racoon eyes)difusão do sangue para a região periorbitária;
    • perda de LCR (nasal, canal auditivo) <> ruptura da leptomeninge.

Este tipo de fracturas exige hospitalização, fluidoterapia IV, analgésicos e anti-eméticos, estando contra-indicada a entubação nasogástrica pelo risco de lesão da lâmina crivada do etmóide. A evolução, embora decorra habitualmente sem complicações, estas poderão surgir:

  • perda de LCR pela lâmina crivada do etmóide é a mais frequente (~80%), em geral com cura espontânea em cerca de 1 semana;
  • meningite (3-25% com rinorráquia; 4,5% com otorráquia); está contra-indicada a antibioticoterapia profiláctica;
  • lesão dos nervos cranianos: entre 3-10% com anósmia (permanente), entre 1-10% com paralisia ocular recuperando na maioria dos casos (~75%); entre 1-12% paralisia facial, com recuperação em cerca de 90%; e, em cerca de 2%, surdez neurossensorial completa.

Concussão

Trata-se da perda de consciência transitória na sequência de traumatismo craniano (termo descritivo, sem especificar alterações anatómicas ou fisiológicas). A sintomatologia acompanhante varia:

  • Nas crianças mais novas: sonolência e vómitos arrastados, sendo elevada a incidência de convulsões benignas pós-traumáticas.
  • Nas crianças mais velhas (colaborantes): amnésia pós-traumática, com duração proporcional à gravidade do trauma).

De um modo geral, verifica-se a normalização da função neurológica em 1 semana. A chamada síndroma pós-concussão pode persistir até 1 ano (ligeiro atraso na aprendizagem, alterações de comportamento, cefaleias ligeiras ou moderadas).

Contusão

Esta designação refere-se à maceração do tecido nervoso com hemorragia microscópica, sem laceração de tecidos.

As causas mais frequentes relacionam-se com agressão directa e efeito por desaceleração/aceleração.

Verifica-se deterioração neurológica relacionada com edema local progressivo, enfarte ou hematoma.

O tratamento é fundamentalmente médico: controlo da PIC. Em função da magnitude das lesões e sintomatologia, poderá estar indicado tratamento cirúrgico: drenagem do hematoma. O prognóstico é favorável.

FIGURA 2. Hematoma epidural (Esquema)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos (Imagem de TAC)

Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos pós-drenagem cirúrgica (TAC)

FIGURA 3. Hematoma epidural agudo em criança de 6 anos

Hematoma epidural

Esta forma clínica, geralmente associada a fractura, corresponde à colecção de sangue entre o crânio e a dura-máter. (Figuras 2, 3, 4)

Os factores etiológicos relacionam-se com agressão directa sobre a cabeça, com energia suficiente para descolar a dura do crânio. Trata-se dum hematoma limitado pelas linhas das suturas, podendo a sua origem ser arterial (manifestações surgidas cerca de 6-8 h após evento desencadeante), ou venosa (de início de manifestações mais tardio, cerca de 24 horas depois da acção do desencadeante). Classicamente existe um intervalo livre de tempo (intervalo lúcido) entre o evento agressivo e o início das manifestações clínicas com deterioração neurológica em geral rápida; as manifestações dependem da expansão maior ou menor do hematoma, da possível herniação do lobo temporal e da eventualidade de compressão da protuberância. A anisocória, como se disse, poderá ser um sinal suspeito. O hematoma da fossa posterior é assintomático em geral até se verificar herniação.

A TAC CE evidencia sinais de lesão de alta densidade, localizada, lenticular e efeito de massa.

A actuação emergente consiste em craniotomia. O prognóstico favorável:  mortalidade 5% e recuperação em cerca de 90% dos casos.

Hematoma epidural agudo em criança com 11 anos de idade (Imagem de TAC)

FIGURA 4. Hematoma epidural agudo em criança de 11 anos

Hematoma subdural agudo

O hematoma subdural agudo é uma colecção de sangue na superfície do córtex, debaixo da dura, em geral associada a lesão cortical (laceração de vasos ou contusão cortical), por acção mecânica de agente externo. (Figura 5)

Ao contrário do hematoma epidural, não está limitado pelas linhas das suturas, podendo ser holo-hemisférico.

As manifestações neurológicas surgem abruptamente, sem intervalo lúcido, o que se pode relacionar com lesão parenquimatosa grave associada. Poderá surgir anisocória entre outros sinais.

A TAC CE, realizada com carácter emergente, evidencia sinal em forma de crescente de hiperdensidade localizado ao longo da convexidade, efeito de massa importante, lesão cerebral subjacente e sinais de edema cerebral.

O tratamento é médico e cirúrgico. O prognóstico é menos favorável do que no caso do hematoma epidural.

Hematoma subdural crónico

Esta situação corresponde a uma colecção hemática no espaço subdural com produtos sanguíneos degradados. O principal factor etiopatogénico é um trauma não acidental (especialmente por abuso).

Raro em crianças depois dos 2 anos (a distensibilidade craniana – fontanelas e suturas – permitem uma lenta acumulação de líquido subdural), manifesta-se por convulsões como epifenómeno de irritação cortical; poderão verificar-se hipertensão intracraniana e hemorragias retinianas.

A TAC CE revela: sinais de colecção hipodensa nas convexidades cerebrais, em forma de crescente; alargamento dos espaços do LCR; e sulcos espaçados. (Figura 6)

O tratamento é geralmente médico e, por vezes, cirúrgico.

Hematoma subdural (Esquema)

Hematoma subdural (imagem de TAC)

Hematoma subdural com drenagem externa (imagem de TAC)

Hematoma subdural agudo em lactente de 3 meses de idade no contexto de sépsis meningocócica

FIGURA 5. Hematoma subdural agudo

Hematoma subdural crónico em criança de 8 meses de idade vítima de maus tratos (shaken baby) (TAC)

FIGURA 6. Hematoma subdural crónico

Hematoma intracerebral

Esta entidade clínica é pouco frequente na idade pediátrica. Em geral associado a lesão parenquimatosa grave, acompanha-se de prognóstico reservado. (Figura 7)

O tratamente consiste essencialmente em drenagem cirúrgica.

Hemorragia intracerebral num recém-nascido (TAC). Uso de derivação ventrículo-peritoneal como tratamento da hidrocefalia sequelar.

FIGURA 7. Hemorragia intracerebral

Lesão penetrante

Nos casos de lesões penetrantes está indicada intervenção neurocirúrgica emergente com avaliação imagiológica (TAC CE, RM ou angiografia). O objecto penetrante não deve ser removido pelo risco de hemorragia.

Deverá proceder-se a antibioticoterapia profiláctica e a terapêutica anticonvulsante em situações associadas a lesão cortical.

Hemorragia intraventricular

Este tipo de lesão traumática é, na maioria dos casos, provocada por pequenos traumas, com resolução espontânea. Existe risco de hidrocefalia obstrutiva.

Poderá estar indicada derivação ventriculoperitoneal.

Hemorragia subaracnoideia

Constitui a hemorragia intracraniana pós-traumática mais frequente.

Os sinais clínicos incluem: irritação das meninges pela hemorragia (cefaleias, rigidez da nuca, agitação, náuseas/vómitos). O tratamento é sintomático, incluindo analgesia com paracetamol e corticosteróides.

Lesão axonal difusa

Esta entidade corresponde a ruptura das vias axonais (resultado do efeito desaceleração/aceleração do crânio) com repercussão sobre os núcleos basais, tálamo e corpo caloso. A RM revela sinais de pequenas e numerosas hemorragias, assim como edema parenquimatoso difuso.

O prognóstico é reservado pelas sequelas, obrigando a ulterior reabilitação.

Lesão de golpe-contragolpe

Esta lesão traumática pode resultar de queda para trás com consequentes lesões bilaterais ou de acção traumática exercida sobre a região frontal (Figura 8). Geralmente estão implicados os lobos frontal inferior e temporal.

Neste tipo de lesões há grande probabilidade de ocorrer hemorragia subaracnoideia com contusão dos lobos frontal e temporal.

Síndroma do bébé abanado (Shaken Baby Syndrome)

A esta situação já foi feita referência no capítulo sobre “a criança maltratada” (volume 1).

Como consequência da oscilação da cabeça para a frente e para trás originando flexões e extensões da região cervicocefálica rápidas, intermitentes e até ao limite de mobilidade, poderá surgir lesão craniana fechada inesperada. Recorda-se, a propósito, frequente atraso na procura de apoio médico e história inconsistente ou ausente de evento traumático.

As características fundamentais das lesões são:

  • Hematoma subdural e/ou hemorragia intraparenquimatosa;
  • Hemorragias retinianas bilaterais (Figuras 9 e 10);
  • Fracturas ocultas;
  • Verificação de lesões antigas e recentes.

FIGURA 8. Lesão tipo chicote (golpe-contragolpe) – lesão de cabeça fechada com lesão cerebral resultante. Exibe os seguintes estágios: A. à cabeça empurrada para trás com o cérebro a chocar com a parede do crânio (impacte primário); e B. à cabeça é empurrada para a frente com o cérebro a chocar com a parede posterior do crânio (impacte secundário)

FIGURA 9. Hemorragia peripapilar (Fundoscopia)

FIGURA 10. Hemorragia intra e pré-retinal (Fundoscopia)

  • Terapia e monitorização na unidade de cuidados intensivos

 Para além dos aspectos focados na alínea Actuação inicial, importa focar os procedimentos a aplicar durante a estadia do doente na UCIP:

Monitorização
  • Avaliação neurológica e exame objectivo seriado;
  • Monitorização contínua cardiorrespiratória e hemodinâmica (frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial invasiva, pressão venosa central, capnografia e diurese);
  • Monitorização da PIC (tratar se >15 mmHg até aos 2 anos e > 20 mmHg acima dos 2 anos) e da PPC; esta deve ser superior a 40-50 mmHg no lactente, 50-60 mmHg na criança e > 60 mmHg no adolescente);
  • Doppler transcraniano;
  • NIRS (near-infrared spectroscopy) – permite a monitorização não invasiva da saturação de O2 cerebral;
  • Outros métodos de monitorização: Saturação venosa jugular? Pressão tecidual de O2, potenciais auditivos evocados do tronco, microdiálise cerebral.
Tratamento
  • Oxigenação e a ventilação
    • Entubação imediata se GCS ≤ 8 ou rápida deterioração neurológica
    • Manter PEEP < 10 para prevenir a diminuição do retorno venoso
    • Evitar a hiperventilação; normocápnia
  • Circulação
    • Manter normovolémia, com soro fisiológico para as necessidades (soro dextrosado apenas se houver hipoglicemia)
    • Garantir o suporte hemodinâmico necessário, rendibilizando PPC de modo que se estabeleça a relação → PPC=PAM-PIC
  • Suspeitar de lesão cervical até esta ser excluída
  • Colocar sonda orogástrica se suspeita de fractura da base do crânio
  • Posição do pescoço na linha média, elevação da cabeceira a 30º
  • Tratamento da dor e da agitação (sedoanalgesia; considerar bloqueio neuromuscular quando necessário)
  • Monitorização cuidadosa da PIC durante os cuidados de enfermagem, limitando ao mínimo a manipulação; aspiração de secreções – só quando necessário; administração de bólus de lidocaína 1 mg/kg ev antes das aspirações e manipulações
  • Após preparação cuidadosa dos visitantes, permitir o contacto calmo
    NB – Corticóides sem indicação
  • Tratar a hipertensão intracraniana
    • Aumentar sedoanalgesia; relaxantes musculares
    • Considerar drenagem LCR quando possível (se cateter PIC intraventricular)
    • Drenar hemorragias ocupando espaço se aplicacável
    • Promover fluidoterapia hiperosmolar:
      • manitol: 0,25-0,5 g/kg/dose): manter osmolalidade sérica < 320 mOsm/kg para evitar agravamento da lesão do tecido neural; pode associar-se furosemido
      • soro salino hipertónico (NaCl 3%-2-6 ml/kg; modo de preparação: 15 ml NaCl 20%+85 ml água destilada), pode seguir perfusão contínua 0,1-1 ml/kg/h; manter osmolalidade sérica < 360 mOsm/kg
    • Hiperventilação moderada (pCO2 30-35 mmHg)
    • Se falência das medidas anteriores:
      • hiperventilação intensa (pCO2 < 30 mmHg)
      • coma barbitúrico
      • craniectomia descompressiva
  • Diminuir a taxa metabólica cerebral
    • Prevenir as convulsões (fenitoína, fenobarbital)
    • Tratar agressivamente as convulsões (diazepam, fenitoína, fenobarbital)
    • Reservar o tiopental/pentobarbital para situações refractárias
    • Evitar a hipertermia; normotermia como meio de preservar o tecido cerebral; em relação a hipotermia (32-34ºC) – ainda não está provada a eficácia em crianças
    • Evitar a hiperglicemia; perfusão de insulina se necessário
  • Tratar possíveis complicações – disfunção do eixo hipotálamo-hipófise
    • Diabetes insípida central
    • Secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH)
    • Insuficiência suprarrenal

Procedimentos após a alta hospitalar

Após a alta, os pais ou prestadores de cuidados no domicílio deverão ser esclarecidos sobre a necessidade de vigilância, incidindo a atenção sobre determinados aspectos, quer nos casos de TCE, quer nos de TC ligeiro:

  • Alteração do estado mental/comportamento
  • Observação das pupilas (dimensões, simetria e resposta à luz)
  • Dificuldade em falar
  • Alterações da visão
  • Desequilíbrio na marcha
  • Dificuldade em usar os membros superiores
  • Cefaleias ou vómitos persistentes
  • Convulsões
  • Febre

Abreviaturas

GCS: Glasgow Coma Scale
SNC: sistema nervoso central
TC: traumatismo craniano
LCR: líquido cefalo-raquidiano
PIC: pressão intracraniana
HIC: hipertensão intracraniana
UCIP: unidade de cuidados intensivos pediátricos
PAM: pressão arterial média
PA: pressão arterial
TAC CE: tomografia axial computotadorizada cranioencefálica
CID: coagulação intravascular disseminada
SIHAD: síndroma secreção inapropriada de hormona anti-diurética
PPC: pressão de perfusão cerebral
ET: endotraqueal
SF: soro fisiológico

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HIPERTERMIA E HIPOTERMIA

1. HIPERTERMIA

Definições e importância do problema

A temperatura corporal compreende dois componentes: a chamada temperatura central (ou do interior do corpo), e periférica (ou do exterior, à superfície do mesmo). A temperatura central pode ser representada pela temperatura rectal, esofágica e oral; por sua vez, a temperatura periférica pode ser exemplificada pela temperatura cutânea, em geral determinada na região axilar. Cabe salientar, a propósito, que a temperatura central se relaciona com o risco de lesão dos vários órgãos.

Os termorreceptores em relação com a temperatura periférica residem na pele, enquanto os receptores para a temperatura central estão localizados, não só na pele, como no córtex cerebral, hipotálamo, tronco cerebral, medula espinhal e estruturas abdominais profundas.

Com as variações de temperatura, estes receptores transmitem impulsos aferentes através do feixe lateral espinotalâmico para o termóstato central localizado no hipotálamo anterior/pré-óptico que, com papel regulador, contribui para que a temperatura corporal se mantenha dentro dos níveis de normalidade (36-37,5ºC).

O termo genérico hipertermia refere-se à situação em que se verifica elevação da temperatura corporal para além dos limites de regulação do hipotálamo, quer por perda, quer por ganho excessivo de calor. O termo febre, com uma acepção mais ampla, designa especificamente elevação da temperatura central > 38,5ºC associada a determinados sinais e sintomas como taquicardia, taquipneia, delírio, letargia, alterações electrocardiográficas, etc.. Muitas vezes estes termos são empregues impropriamente como sinónimos.

O termo golpe de calor, situação potencialmente fatal, caracteriza-se pela elevação da temperatura central > 40ºC, associada a sintomas e sinais com maior repercussão sobre o estado geral que na situação considerada febre.

Existem múltiplas implicações fisiopatológicas da elevação excessiva da temperatura, de grau diverso em função da susceptibilidade individual, de base genética. A este propósito salientam-se as repercussões neurológicas, sobretudo ao nível do cerebelo, órgão particularmente sensível a altas temperaturas; outros problemas relacionam-se com a possibilidade de lesões no tubo digestivo e neurológicas, como hemorragia intracraniana, enfarte cerebral, edema cerebral, hipóxia-isquémia, etc..

Etiopatogénese

Para a melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes de hipertermia, importa recordar os mecanismos fundamentais do balanço térmico no organismo.

O calor é produzido no organismo como resultado final do metabolismo celular e também adquirido a partir do ambiente. As reacções metabólicas são exotérmicas, contribuindo para 50-60 kcal/m2/hora. Durante um esforço físico intenso a produção de calor pode atingir valor 10-20 vezes superior ao do correspondente à situação basal.

Os mecanismos de transferência de calor são quatro:

1 – Convecção: o calor é transferido através do ar e do vapor de água circundante ao corpo (dependendo do movimento do ar na pele e velocidade do vento e explica o efeito do uso de roupas largas e folgadas em climas quentes para manter algum conforto);

2 – Radiação: o calor é transferido por ondas electromagnéticas; trata-se da principal fonte de ganho de calor em ambientes quentes – até 300 Kcal/hora podem ser ganhas num dia de Verão;

3 – Evaporação: a conversão de um líquido para um gás resulta em transferência de calor (por exemplo 1 litro de suor resulta em uma perda de 580 Kcal de calor);

4 – Condução: o contacto físico transfere calor de um objecto mais quente para um mais frio (a água é 25 vezes mais eficiente que o ar na condução de calor).

 A maior parcela da perda verifica-se através da pele, designadamente por evaporação induzida pela perspiração. De particularizar que através dos vasos à superfície da pele é perdido calor do sangue circulante a determinada temperatura por condução e convecção, sendo que o sistema simpático regula o débito sanguíneo ao nível da pele através do efeito sobre fibras vasodilatadoras ou vasoconstritoras.

As síndromas com hipertermia podem ter na sua base factores ambientais por aumento do calor (ondas de calor, maior humidade) ou diminuição da dissipação do calor (excesso de roupa, maior humidade, anidrose), aumento da produção de calor (exercício físico, tirotoxicose, hipertermia maligna, síndroma maligna neuroléptica, feocromocitoma, delirium tremens, hemorragia hipotalâmica, ingestão tóxica – simpaticomiméticos, anticolinérgicos, ecstasy) e causas genéticas ou desconhecidas. De salientar que nos casos de hipertermia em que se identifica o exercício físico como factor de risco, poderá haver concomitantemente predisposição genética.

A seguir à elevação da temperatura corporal (com maior impacte nas situações de golpe de calor) surge elevação do nível sérico de TNF-alfa, IL1, IL6 e de endotoxinas susceptíveis de originarem lesão tecidual. Do balanço entre os mediadores pró-inflamatórios (tais como interferão-gama e IL1-beta) e mediadores anti-inflamatórios (tais como TNF-alfa e IL10) resultará o grau de lesão. A vasodilatação que resulta dos mediadores desvia o sangue da circulação esplâncnica para a circulação à superfície, do que resulta, designadamente hipóxia-isquémia gastrintestinal. A activação da cascata da coagulação como resultado da lesão tecidual pela temperatura excessiva traduz-se pela presença do complexo trombina-antitrombina e por diminuição do nível sérico das proteínas C, S e da antitrombina III.

Formas clínicas

Golpe de calor

Nos casos de exposição a calor ambiente excessivo em diversos cenários pode verificar-se delírio, convulsões, letargia ou coma; neste contexto, com temperatura central > 40,6ºC deve suspeitar-se de golpe de calor.

Em relação com os eventos fisiopatotógicos atrás descritos, verifica-se o seguinte quadro clínico-biológico-imagiológico: hipotensão e hipovolémia, IRA, alterações electrocardiográficas e ecocardiográficas (disfunção miocárdica, disritmias, alterações da condução, alterações do intervalo QT e do segmento ST, etc.). O prolongamento do intervalo QT poderá ser devido a diminuição do cálcio, magnésio e/ou potássio séricos (hipocaliémia- inicialmente- como consequência da alcalose respiratória), hiponatrémia (perdas de Na por sudorese acentuada), hipoglicémia, hiperuricémia, rabdomiólise (valor elevado de CPK e mioglobinúria), acidose láctica (compensada com alcalose respiratória por hiperventilação) e CID são achados frequentes.

A rabdomiólise, frequente no contexto de golpe de calor, leva a hiperpotassémia com acção cardiotóxica, mioglobinúria, necrose diafragmática e insuficiência respiratória grave. Nos casos de rabdomiólise, e nas 24-48 horas subsequentes ao episódio agudo do golpe de calor, pode surgir quadro de choque por sequestração de volume considerável de fluido intramuscular (síndroma compartimental), o que agrava a necrose muscular por compressão.

O quadro de SDR (tipo adulto) com sinais de hipoventilação globar (pulmão branco) pode estar relacionado com lesão alveolar pulmonar com disfunção ou destruição do surfactante.

As complicações do golpe de calor ao nível do SNC poderão obrigar a TAC ou RM para esclarecimento de eventuais lesões.

O diagnóstico diferencial faz-se com afecções do SNC (por ex. meningoencefalite), doença de Graves, acção de drogas como neurolépticos e anticolinérgicos, síndromas de abstinência de drogas (narcóticos, benzodiazepinas), cetoacidose diabética, hipertermia maligna (esta última abordada adiante mais pormenorizadamente).

O tratamento (emergente) em UCIP implica a aplicação dum conjunto de medidas assim sintetizadas (Quadro 1):

  • Ressuscitação cardiorrespiratória em obediência aos princípios explanados no Capítulo próprio, admitindo-se a eventualidade de ulterior ventilação mecânica com PEEP e oxigenoterapia para correcção da hipoxémia, não ultrapassando FiO2 de 50%; há que ter atenção ao choque pelas 24-48 horas, após o episódio inicial nos casos de rabdomiólise;
  • Aplicação de vários métodos de arrefecimento com o objectivo de obter temperatura central < 39ºC;
  • Fluidoterapia/reidratação em caso de rabdomiólise, com o objectivo de promover diurese > 3 mL/kg/hora e prevenir a IRA;
  • Correcção das alterações electrolíticas, tais como hiperpotassémia, hipocalcémia, etc.;
  • Correcção da hiperfosfatémia com quelantes do fósforo e diálise;
  • Alcalinização da urina acrescentando bicarbonato de sódio aos fluidos IV (para obter pH urinário > 6,5 a fim de prevenir a precipitação da mioglobina no túbulo renal, necrose tubular e IRA);
  • Administração de manitol IV (0,25 g/kg) uma vez obtido o estado de hidratação, com o objectivo de promover diurese osmótica;
  • Fasciotomia nos casos de rabdomiólise com síndroma compartimental.

QUADRO 1 – Métodos de antipirexia no golpe de calor

Gerais

    • Criança sem roupa.
    • Antipirético associado a fluidoterapia anteriormente referida.
      • 1º fármaco ” paracetamol po (10-15 mg/kg/dose, 4-6x/dia, até 80 mg/dia; duração variável); em alternativa pode ser usado propacetamol IV em que 1 g <> 0,5 g de paracetamol
      • 2º fármaco ” ibuprofeno po (5-10 mg/kg/dia, 4-6x/dia, até 20 mg/kg/dia); duração variável
    • Banho com água a temperatura cerca de 4ºC inferior à temperatura central, precedido de antipirético.
    • Ingestão de líquidos se o estado do doente o permitir.


Específicos (a aplicar apenas em UCIP)

    • Imersão em água com gelo (risco de vasoconstrição, interferindo com as medidas de ressuscitação).
    • Aplicação de água atomizada em micropartículas (spray) com ar quente de modo a manter a temperatura corporal > 33ºC (equipamento próprio).
    • Envolvimento com lençol húmido associado a deslocação de ar com ventoinha.
    • Aplicação de sacos com gelo sobre as axilas, virilhas e pescoço.
    • Outros métodos (em investigação)
      • introdução, através de sonda, de água fria no estômago e bexiga
      • fluidoterapia IV com fluidos arrefecidos

 

Síndroma de hipertermia maligna clássica

A chamada hipertermia maligna (HM) clássica é definida como uma síndroma hereditária autossómica dominante, com expressividade e penetrância variáveis (em relação com gene anormal localizado em locus 19q13.1, conhecendo-se mais de 15 mutações); pode estar associada a determinadas miopatias, designadamente a conhecida por central core.

A sua incidência varia entre 1/15.000 anestesias efectuadas em crianças, e cerca de 1/50.000 em adultos.

A etiopatogénese relaciona-se com disfunção do músculo esquelético (estriado), traduzida por incapacidade de a membrana do retículo sarcoplásmico reter o cálcio, aumentando a sua libertação para a estrutura muscular envolvente, o que leva a contracção muscular permanente e consequente estado hipermetabólico. Este estado de hipermetabolismo conduz a um aumento do metabolismo anaeróbio por estimulação do catabolismo do glicogénio, com acumulação de ácido láctico, aumento da produção de calor e de CO2 e aumento de consumo de O2. O aumento da permeabilidade das membranas leva a necrose das fibras musculares (rabdomiólise) com libertação de enzimas, electrólitos e mioglobina para a circulação sanguínea. Como se pode depreender, existe repercussão destas alterações ao nível de vários órgãos e sistemas, pelo que o doente deverá estar monitorizado em UCIP com apoio laboratorial e imagiológico contínuo.

As manifestações surgem sob a forma de episódios agudos na sequência de exposição do doente a certos anestésicos gerais potentes e a certos anestésicos locais (Quadro 2); para além da temperatura corporal excedendo por vezes 41ºC, verificam-se rigidez muscular, trismo, acidose respiratória e metabólica, taquicárdia e taquipneia (por vezes relacionável com SDR tipo adulto). Na ausência de intervenção emergente, a rabdomiólise leva a aumento dos valores de CPK ~ 35.000 UI/L e a mioglobinúria), verificando-se entretanto, taquicárdia, hipercaliémia e IRA mioglobinúrica. A repercussão hepática e hematológica traduz-se por elevação de ALT, LDH, TP, PTT, anemia, trombocitopénia, diminuição do fibrinogénio, aumento de PDF, etc..

QUADRO 2 – Hipertermia maligna (HM): agentes desencadeantes e agentes agravantes

* MAO = monoaminoxidase
DesencadeantesAgravantes
      • Halotano
      • Enflurano
      • Isoflurano
      • Desflurano
      • Sevoflurano
      • Metoxiflurano
      • Tricloroetileno
      • Ciclopropano
      • Contraste radiológico halogenado
      • Clorofórmio
      • Éter
      • Etileno
      • Succinilcolina
      • Drogas simpaticomiméticas
      • Drogas parassimpaticolíticas
      • Digitálicos
      • Cálcio
      • Potássio
      • Inibidores da MAO*
      • Inibidores da angiotensina
      • Antidepressivos tricíclicos
      • Bloqueantes dos canais de cálcio

Cabe salientar que a HM tem um espectro de apresentação clínica variável; de acordo com o Grupo Europeu de Hipertermia Maligna, distinguem-se os seguintes tipos: 1) fulminante – o mais grave com, pelo menos três das seguintes manifestações: taquicárdia e arritmia cardíaca, acidose, hipercápnia, rigidez muscular e febre; 2) espasmo do masséter – a única manifestação é a contractura do masséter ou trismo que, só por si pode levar a admitir o diagnóstico de HM em 50% dos casos; 3) abortivo, traduzindo-se por alguns dos sinais e sintomas ou alterações metabólicas descritos; a tríade “hipertermia, hipercápnia e acidose” constitui a associação mais frequente.

No diagnóstico diferencial da HM clássica há que ter em conta a chamada síndroma simile HM (SSHM) surgindo na ausência de exposição, quer a anestésicos, quer a succinilcolina; tal situação ocorre nos casos de coma hiperosmolar hiperglicémico não cetótico, associado a diabetes mellitus tipo 2, sendo que a hipertermia é desencadeada após administração de insulina. O quadro, mais frequente em obesos afroamericanos com acanthosis nigricans, é acompanhado de rabdomiólise, instabilidade hemodinâmica e falência de órgãos.

O tratamento de emergência da HM (a cargo do anestesista ou intensivista) integra um conjunto de medidas descritas nos Quadros 3, 4 e 5, relacionando aspectos semiológicos e diagnósticos com a actuação segundo a Associação da Hipertermia Maligna dos Estados Unidos da América.

QUADRO 3 – Hipertermia maligna: Avaliação Imediata

Avaliação imediata
Sinais de hipertermia malignaParagem cardíaca súbita/inesperadaTrismo ou contractura dos masseteres com succinilcolina
Aumento de ETCO2
(CO2 expirado)
Presumir hipercaliémia e iniciar tratamentoSinal precoce de HM
Rigidez corporalMedição de CPK, mioglobina e gasimetria até os valores normalizaremIniciar dantroleno se rigidez dos membros
Trismo ou contractura dos masseteresConsiderar dantrolenoPara procedimentos emergentes evitar agentes desencadeadores de HM; considerar dantroleno
Taquicardia/ taquipneiaSuspeitar de patologia miopática (ex. distrofia muscular)Monitorizar CPK imediatamente e de 6/6 horas até normalizar e pelo menos até 36 horas. Se urina escura testar para mioglobinúria
AcidoseReanimação pode ser difícil e prolongadaInternamento em Cuidados Intensivos até pelo menos 12 horas
Aumento da temperatura (pode ser um sinal tardio)  

QUADRO 4 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Aguda

Tratamento na fase aguda
1. Notificar o cirurgião
      • descontinuar agentes voláteis e succinilcolina
      • hiperventilar com FiO2 100% ou > 10 L/minuto
      • suspender o procedimento quando possível; se emergente, não usar agentes desencadeantes
2. Dantroleno 2,5 mg/kg ev rápido
      • repetir até regressão dos sinais de HM
      • se necessário máxima dose 10-30 mg/kg
      • dissolver 20 mg em pelo menos 60 ml de água esterilizada
3. Bicarbonato para tratamento da acidose metabólica
      • 1-2 mEq/kg de imediato se ainda não houver valores de gasometria 
4. Arrefecimento do doente se temperatura central > 39ºC
      • lavagem das cavidades abertas (estômago: lavagem gástrica por sonda naso/orogástrica – instilar 10 ml/kg de água ou soro fisiológico gelado em 30-60 segundos e remover em 30-60 segundos (objectivo: reduzir 0,15ºC por minuto); também se pode utilizar a bexiga e a ampola rectal)
      • lavagem peritoneal por catéter peritoneal: instilar e drenar 500-1000 ml de soro fisiológico gelado até temperatura central atingir 38-39ºC (objectivo: reduzir 0,5ºC por minuto ou 5-10ºC por hora)
      • perfusão endovenosa de solução salina gelada
      • arrefecimento externo: aplicação de gelo à superfície corporal, imersão em água gelada, vaporização com água tépida (15ºC), evaporação com ventoínhas, ambiente frio (ar condicionado, refrigeração)
      • suspender estes procedimentos quando temperatura central < 38ºC
5. Disritmias geralmente respondendo ao tratamento da acidose e hipercaliémia
      • usar fármacos adequados excepto os bloqueadores dos canais de cálcio (risco de hipercaliémia ou paragem cardíaca na presença do dantroleno)
6. Hipercaliémia: tratar com hiperventilação, bicarbonato, glicose/insulina, calcio
      • bicarbonato ≥ 1-2 mEq/kg ev
      • insulina ≥ 0,1 Unidade/kg e 1 ml/kg de glicose a 50% (adulto: 10 U insulina regular ev e 50 ml de glicose a 50% ev)
      • gluconato de cálcio a 10% ≥ 10-50 mg/kg se risco de vida pela hipercaliémia
      • monitorizar glicemia de hora a hora
7. Monitorizar ETCO2, electrólitos, gasometria, CPK, temperatura central, diurese e coloração da urina, provas de coagulação
      • induzir diurese se < 0,5 ml/kg/h ou CPK e/ou caliémia em agravamento, para evitar insuficiência renal por mioglobinúria

QUADRO 5 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Pós- Aguda

Tratamento na fase pós-aguda
      1. Observação do doente em Cuidados Intensivos até pelo menos 24 horas pelo risco de recorrência
      2. Dantroleno 1 mg/kg ev de 4-6 horas de intervalo ou 0,25 mg/kg/hora de perfusão ev, até pelo menos 24 horas
      3. Monitorizar CPK de 6/6 horas e gasimetrias frequentes (ver item 7. da fase aguda)
      4. Monitorizar mioglobinúria e prevenir a precipitação da mioglobina nos túbulos renais e subsequente insuficiência renal aguda. Promover diurese aumentada e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio
      5. Sinalizar o doente e familiares em consultas médicas específicas. Risco de desenvolver esta situação em novas ocasiões e prevenção para que não ocorram

Síndroma neuroléptica maligna

Define-se a síndroma neuroléptica maligna (SNM) como situação rara associada ao uso de fármacos antipsicóticos após período de latência de dias ou semanas.

As manifestações clínicas incluem classicamente quatro sinais cardinais:

  1. Rigidez muscular;
  2. Alterações do estado mental (confusão, agitação, catatonia, encefalopatia, coma);
  3. Hipertermia; e
  4. Instabilidade autonómica (taquicárdia, HTA lábil, diaforese).

Para o tratamento têm sido usados os fármacos dantroleno, bromocriptina e amantadina.

Síndroma serotonínica

Define-se como síndroma serotonínica (SS) uma situação em que se verificam sinais de excesso de neurotransmissão serotoninérgica pós-sináptica por acção de um conjunto de fármacos após período de latência curto (~24 horas).

Os fármacos que podem produzir tal efeito, entre outros, incluem: fentanil, dextrometorfam, L-triptofano, anfetamina, cocaína, ecstasy, fluoxetina, amitriptilina, nortriptilina, linezolid (inibidor da MAO), etc..

As manifestações clínicas incluem uma tríade clássica de anomalias: 1) do estado mental (agitação, delírio); 2) da função neuromuscular (hiperreflexia, clono, hipertonia, tremor); e 3) da função autonómica (hipertermia, taquicárdia, HTA, diaforese, vómitos, diarreia). Por vezes é confundida com SNM, sendo que o clono não é proeminente nesta última.

O tratamento inclui as seguintes medidas:

  • Ressuscitação circulatória com fluidos;
  • Fenilefrina (vasoconstritor de acção directa) para tratar a hipotensão;
  • Cipro-heptadina (antídoto para SS) por via nasogástrica na dose diária de 0,25 mg/kg/dia dividida em 4 doses (dose máxima diária de 12 mg dos 2-6 anos, e de 16 mg dos 7-14 anos).

Nos casos de SSHM o tratamento inclui também o dantroleno; uma vez que o dantroleno é diluído em água esterilizada, concomitantemente deve administrar-se soluto salino hipertónico em dose a calcular, a fim de se prevenir o rápido declínio da osmolalidade sérica, susceptível de originar edema cerebral. 

2. HIPOTERMIA

Definições e importância do problema

Hipotermia é definida pela verificação de temperatura corporal central inferior a 35ºC. A hipotermia tem implicações clínicas importantes pelas alterações fisiopatológicas sistémicas e lesões teciduais locais ou sistémicas que pode provocar em função do grau, obrigando a medidas terapêuticas específicas. Tal pode acontecer designadamente em crianças e jovens expostos a ambientes de clima frio com neve e gelo durante grande parte do ano, e em cenários de desportos de neve e de escaladas de montanhas no inverno. Para além da hipotermia de causa ambiental, são exemplos de lesões provocadas pelo frio: a frieira, e a necrose gorda ou paniculite.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Tendo em consideração o balanço térmico descrito em 1. torna-se importante salientar que existe maior susceptibilidade à lesão pelo frio em situações de alteração circulatória por doença cardiovascular, desidratação, anemia, toxicodependência, sépsis, e idades extremas (infância e velhice). Surge, assim, hipotermia como epifenómeno da falência dos mecanismos de manutenção da normalidade da temperatura central relacionados com diminuição da perda ou tentativa de produção de calor (designadamente por vasoconstrição, arrepio, contracção muscular). O Quadro 6 resume os principais factores etiológicos da hipotermia (acidental ou não, ambiental ou não), cuja gravidade se pode classificar do seguinte modo:

1) Ligeira (35-32ºC); 2) Moderada (< 32-28ºC); 3) Grave (< 28ºC).

Nos casos de hipotermia moderada ou grave, a água intra ou extacelular congela, o que interfere no funcionamento da bomba de sódio e conduz a ruptura da membrana celular. Ocorrem igualmente alterações estruturais em células sanguíneas podendo verificar-se microembolismo ou trombose. Como resultado de respostas neurovasculares (vasoconstrição/vasodilatação), poderão surgir curto-circuitos veiculando sangue para zonas menos afectadas, o que agrava as lesões iniciais. O espectro de lesões abrange sobretudo vasos, nervos e pele.

Ao abordar o tópico Hipotermia, torna-se oportuno citar sucintamente alguns exemplos de manifestações clínicas relacionadas com o efeito do frio no organismo (causa ambiental) – lesões locais provocadas pela exposição prolongada ao frio (não necessariamente associadas a hipotermia):

      • Forma ligeira de alteração dos tecidos da pele pelo frio, especialmente da face, orelhas, extremidades dos dedos das mãos e pés em indivíduos expostos a temperaturas ~15ºC (áreas brancas e frias). Poderão surgir nos 2-3 dias seguintes vesículas e descamação. (Frostnip)
      • Frieiras (eritema pérnio), ou lesões eritemato-vesiculares, por vezes ulcerando, em zonas expostas a temperaturas < 15ºC (orelhas, dedos das mãos e pés). Verifica-se, também, discreto edema, dor e prurido, admitindo-se que se originem por vasoconstrição. Podem durar enquanto se verificar a exposição ao frio.
      • Necrose gorda induzida pelo frio (paniculite), situação benigna traduzida por lesões maculares, papulares ou nodulares durando em geral entre 1 a 3 semanas. Esta afecção foi abordada anteriormente em capítulo próprio.
      • Destruição da pele ou outros tecidos (sofrendo congelação e podendo levar a gangrena) por exposição a temperaturas entre 6ºC e -15ºC. (Frostbite)

QUADRO 6 – Factores etiológicos de hipotermia

Perdas de calor aumentadas
(ambiental, iatrogénica/tratamento do golpe de calor, queimaduras, dermatose esfoliativa, vasodilatação periférica/etanol, beta-bloqueantes, etc.).
Produção de calor diminuída
(insuficiência neuromuscular, hipoglicémia, má-nutrição, falência endocrinológica/hipopituitarismo, hipotiroidismo, hipoadrenalismo).
Alteração da termogénese
(patologia do SNC, acção de fármacos no SNC, falência do sistema nervoso periférico/neuropatias/lesão da espinhal medula).
Outras situações clínicas
(lesões de politraumatismo, choque, sépsis, pancreatite, intoxicação pela água, disautonomia familiar).


Em função do grau de hipotermia surgem manifestações clínicas e respostas diversas, endócrino-metabólicas e ao nível de vários sistemas (SNC, cardiovascular, respiratório, renal e neuromuscular), considerando respectivamente os símbolos:

L = ligeiras; M = moderadas; G = graves.

L: arrepio, taquipneia, taquicárdia, HTA, íleo paralítico, hipocaliémia, alcalose, diurese pelo frio estado confusional, disartria, ataxia, hiperreflexia.

M: arrepio inconstante, hipoventilação, hipoxémia e acidose respiratória, bradicárdia, hipotensão, hipovolémia/IRA, prolongamento do intervalo QT, pancreatite, doença péptica, hiperglicémia, hipercaliémia, acidose láctica, oligúria, rigidez, hemoconcentração, hipercoagulabilidade, agitação, midríase, hiporreflexia.

G: ausência de arrepio, apneia, edema pulmonar, SDR, AESP, FV, assitolia, pancreatite, doença péptica, hipercaliémia, hiperglicémia, acidose láctica, rabdomiólise, trombocitopénia, CID, IRA, coma, pupilas não reactivas, estado símile morte cerebral.

Exames complementares

No doente hipotérmico são considerados exames complementares prioritários: ionograma sérico, glicémia, provas de função renal, gasometria arterial, hemograma completo, estudo da coagulação e exame toxicológico para doseamento de fármacos e etanol.

Tratamento

A actuação nos casos de hipotermia consiste nas seguintes medidas, a ponderar em função do contexto clínico de cada caso:

  • Reaquecimento passivo de todo o corpo, incluindo cabeça, com cobertor no sentido de reduzir as perdas por evaporação, em geral eficaz nos casos ligeiros (L) podendo incrementar a temperatura entre 0,5 – 4ºC;
  • Aquecimento externo activo através da aplicação de calor directo à pele, só efectivo se a circulação estiver intacta, permitindo o retorno, da periferia para a zona central do organismo, de sangue reaquecido; tal pode realizar-se através de cobertores aquecidos ou calor irradiante ou sob a forma de ar forçado aquecido a curta distância do doente; este método é eficaz em geral nos casos ligeiros e moderados (L,M);
  • Aquecimento interno activo através de ar humidificado e aquecido a 42ºC por via endotraqueal, associado a fluidoterapia IV com fluido aquecido a 42ºC em perfusão rápida controlada conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-2ºC/hora;
  • Aquecimento interno invasivo com “lavagem” através de instilação de soro fisiológico aquecido na bexiga, estômago e cólon (e, nalguns centros, também cavidades pleural e peritoneal), conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-4ºC/hora.

Na maior parte dos casos as disritmias corrigem-se com o aquecimento.

Aplicam-se nos casos de hipotermia as medidas de ressuscitação ABC descritas no Capítulo próprio, com algumas especificidades:

  • Em geral torna-se prioritário promover o reaquecimento até, pelo menos, 30ºC salientando-se que as manobras poderão ter que ser muito prolongadas;
  • Embora o doente pareça clinicamente morto, os esforços de ressuscitação deverão continuar até se atingir, com as manobras de reaquecimento, a temperatura central normal;
  • Justifica-se a ressuscitação circulatória agressiva nos doentes hipotérmicos desidratados, tendo em conta a hipovolémia e a vasodilatação após reaquecimento.

Nota final – Dado que a hipotermia programada constitui uma medida terapêutica (efeito neuroprotector) em situações especiais, o leitor pode consultar o capítulo sobre encefalopatia hipóxico-isquémica na Parte Perinatologia/Neonatologia.

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SÉPSIS

Importância do problema

Embora o organismo humano esteja exposto a numerosos agentes infecciosos potencialmente patogénicos, os seus sistemas de defesa de primeira linha actuam nos locais de invasão impedindo, na maior parte dos casos, infecções com desfecho fatal.

A sequência de eventos após a entrada em circulação de um agente infeccioso é complexa, dependendo o resultado final do balanço entre a virulência daquele e a capacidade de resposta do hospedeiro.

Embora a inflamação seja uma resposta essencial do hospedeiro, o início e progressão da sépsis resulta de uma “desregulação” da resposta normal, habitualmente com um aumento tanto de mediadores pró-inflamatórios como anti-inflamatórios, iniciando-se uma cadeia de eventos que leva a lesões teciduais generalizadas.

Esta desregulação da resposta do hospedeiro, mais do que o microrganismo infeccioso primário, é tipicamente responsável pela disfunção orgânica e pelo prognóstico.

Apesar dos avanços consideráveis da medicina intensiva nas últimas décadas, a sépsis continua a ser uma das principais causas de morte na idade pediátrica, com taxas que têm diminuído muito ao longo dos anos, mas que ainda atingem valores oscilando entre os 8 e 12%. A precocidade da sua identificação e do tratamento adequado contribuem decisivamente para a melhoria do prognóstico.

Definições

Segundo o Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock de 2016  é uma síndroma de resposta inflamatória sistémica (SIRS) em presença de uma infecção suspeitada ou demonstrada, acompanhada de disfunção orgânica grave, compromisso da microcirculação e, em geral de desregulação imunológica.

Este processo reactivo de resposta  não é, contudo, específico da infecção, podendo ser desencadeado por qualquer noxa considerada grave como traumatismo, queimadura, pancreatite, grande cirurgia, etc. (SIRS não infecciosa).

 Os critérios utilizados para as definições de sépsis, sépsis grave, SIRS e choque séptico encontram-se descritos no Quadro 1.

Quadro 1 – Infecção sistémica e critérios de diagnóstico

SIRS

Presença de 2 dos 4 critérios seguintes, um dos quais obrigatoriamente alteração da temperatura ou número anormal de leucócitos.

      • Temperatura central > 38,5ᵒC ou < 36ᵒC.
      • Taquicárdia (FC > 2 DP acima do valor de referência para a idade) na ausência de estímulos externos, drogas ou estímulo doloroso; ou inexplicada, persistindo 30 minutos – 4 horas; ou
      • Bradicárdia (FC < percentil 10 para a idade) na ausência de estímulo vagal, drogas b-bloqueantes, cardiopatia congénita; ou inexplicada e persistente > 30 minutos.
      • Frequência respiratória (FR > 2 DP acima do valor de referência para a idade); ou ventilação mecânica por um processo agudo não relacionado com:
        1. doença neuromuscular subjacente; ou
        2. status pós-anestesia geral.
      • Leucocitose ou leucopénia (não induzida por quimioterapia) ou neutrófilos imaturos > 10%.
Infecção

Invasão do organismo por agente microbiano patogénico, com capacidade de multiplicação.

      1. suspeita; ou
      2. provada (por cultura positiva ou PCR-reacção em cadeia da polimerase); ou
      3. probabilidade elevada (achados clínicos sugestivos, achados imagiológicos, ou laboratoriais (por ex. presença de leucócitos em fluido normalmente estéril, víscera perfurada, radiografia de tórax compatível com pneumonia, exantema purpúrico ou petequial, ou púrpura fulminante)
Sépsis
SIRS na presença de, (ou como resultado de) infecção suspeita ou provada.
Sépsis grave

Sépsis associada a um dos seguintes parâmetros:

      1.  disfunção cardiovascular; ou
      2. síndroma de dificuldade respiratória aguda; ou
      3.  disfunção de dois ou mais órgãos.
Choque séptico

Sépsis associada a disfunção cardiovascular definida por:

      • hipotensão (PA < percentil 5 para a idade ou < 2 DP para a idade); ou necessidade de
      • drogas vasoactivas para manter pressão arterial normal (dopamina > 5 μg/Kg/minuto, ou dobutamina, adrenalina ou noradrenalina em qualquer dose; ou
      • dois dos seguintes critérios:
        • Acidose metabólica: défice de base (DB) > -5 mEq/L;
        • Lactato arterial aumentado > 2 vezes o limite superior do normal;
        • Oligúria: débito urinário < 0,5 mL/Kg/h;
        • Tempo de recoloração capilar aumentado: > 5 segundos;
        • Diferença entre a temperatura central e periférica > 3oC,…
          …apesar da administração fluido isotónico 40 ml/kg durante 1 hora.

Etiopatogénese

Dum modo geral, as infecções invasivas em crianças saudáveis no período pós-neonatal são provocadas predominantemente por três germes: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, e Haemophilus influenzae do tipo b, sendo que os programas de vacinação em diversos países têm contribuído para a redução da incidência de sépsis pelos referidos germes.

Causas mais raras de sépsis em crianças saudáveis incluem infecções por Staphylococcus aureus, Streptococcus dos grupos A, C e G e espécies de Salmonella. Na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia são analisados os agentes mais frequentes no RN.

Nas crianças com défices imunitários podem estar implicados agentes tais como Pseudomonas aeruginosa e fungos. Nas situações cuja gravidade obriga a internamento em unidades de cuidados intensivos com uso de técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica existe um risco acrescido de sépsis por Staphylococcus coagulase negativo, Enterococcus e S. aureus resistentes à meticilina.

Actualmente, devido à aplicação de medidas preventivas e à melhoria dos cuidados de saúde e das condições de vida da população, tem-se verificado a diminuição dos casos de sépsis grave e de choque séptico adquiridos na comunidade em indivíduos saudáveis.

Efectivamente, esta patologia afecta particularmente os doentes hospitalizados, portadores de doenças debilitantes, com imunodeficiência primária ou secundária, submetidos a técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica e portadores de microbioma altamente resistente devido, entre outras causas, ao uso excessivo de antibióticos de largo espectro em meio hospitalar.

Considerando todos os germes mencionados, cabe salientar que, embora seja condição indispensável a presença dos mesmos na corrente sanguínea, nem sempre tal presença conduz a sépsis ou choque séptico, o que depende, como foi referido, do balanço entre as características do microrganismo e o sistema de defesa imunitário do hospedeiro.

Certos vírus, designadamente vírus herpes, enterovírus e adenovírus podem provocar doença com manifestações semelhantes às da sépsis bacteriana, sobretudo em RN e lactentes.

Na etiopatogénese da sépsis estão envolvidos mecanismos muito complexos que funcionam sequencialmente “em cascata”. Há factores predisponentes do hospedeiro que aumentam a probabilidade de sépsis por determinados agentes.

São dados alguns exemplos: asplenia predispõe a infecção por S. pneumoniae; polisplenia predispõe a infecção por Salmonella; os germes anteriores originam com maior probabilidade sépsis nos casos de doença de células falciformes; a sobrecarga em ferro predispõe a infecção por Listeria monocytogenes, Yersinia enterocolitica e Vibrio vulnificus; deficiência em complemento (C5 a C9) predispõe a infecções pelo género Neisseria, etc..

A acção das bactérias Gram-positivas depende da produção de exotoxinas potentes (por ex. tétano, botulismo, difteria); quanto às Gram-negativas, é principalmente o componente da camada externa da parede celular (lipopolissacárido/LPS) que está implicado na patogénese da sépsis.

Algumas exotoxinas (chamadas superantigénios) elaboradas por estreptococos e estafilococos actuam do seguinte modo:

  • Estimulam a proliferação das células T, induzindo a libertação maciça de citocinas pró-inflamatórias (TNF-alfa, interferão-gama e IL-1) mesmo em casos de infecção localizada; e
  • Desencadeiam a resposta inflamatória sistémica responsável pelas alterações cardiovasculares e hemodinâmicas características da sépsis.

As endotoxinas ligam-se a receptores dos macrófagos (designadamente hTLR) e estimulam a produção e libertação de citocinas pró-inflamatórias (sobretudo TNF-a, IL-1 e IL-6), radicais livres de oxigénio e metabólitos do ácido araquidónico. (Figura 1)

Os metabólitos do ácido araquidónico incluem: tromboxano A2 que causa vasoconstrição e agregação das plaquetas; prostaglandinas (PGF 2-alfa que causa vasoconstrição e PGI2 que causa vasodilatação); os leucotrienos que levam a vasoconstrição, broncoconstrição e aumento da permeabilidade capilar. A TNF-alfa e algumas IL podem lesar o miocárdio, ao mesmo tempo que estimulam a sintetase do óxido nítrico (NO).

É também activada a via alterna do complemento bem como a cascata da coagulação, criando-se um estado pró-coagulante e antifibrinolítico que leva a fenómenos de microtrombose causadores de hipóxia e lesão tecidual. Há também consumo de factores de coagulação com estabelecimento de quadros de coagulação intravascular disseminada.

O endotélio vascular, com papel fundamental na vasorregulação, é o alvo e fonte de produção de muitos mediadores. O NO produzido pelas células endoteliais é responsável pelas alterações a nível da microcirculação com vasodilatação e fuga transcapilar causadoras da hipotensão que se observa nas situações de choque séptico.

Na tentativa de conter a produção de citocinas pró-inflamatórias há libertação de citocinas anti-inflamatórias – IL4, IL10, IL13. A interacção entre estes dois tipos de mediadores pode ser considerada uma “luta entre forças opostas”. O seu equilíbrio significaria a obtenção da homeostase no processo séptico.

A produção e libertação de citocinas em quantidades moderadas é importante e necessária na defesa eficaz contra a infecção. No entanto, a sua libertação anárquica ou em quantidade muito elevada determina uma resposta amplificada, ultrapassando a capacidade reguladora do organismo, o que contribui para as alterações cardiovasculares e hemodinâmicas, com implicação na mortalidade.

FIGURA 1. Fisiopatologia da sépsis

Manifestações clínicas e exames complementares

Os sinais e sintomas de sépsis são muito variáveis, dependendo da idade, da doença de base, da duração da doença e do microrganismo responsável, podendo o seu curso ser de instalação rápida ou progressiva.

Quanto menor for a idade do doente mais inespecífica é a sintomatologia. Não há nenhum sinal clínico que possa ser considerado um indicador específico e sensível de infecção grave; consequentemente, o diagnóstico de sépsis requer um alto índice de suspeição clínica no pressuposto de anamnese cuidada e exame físico rigoroso, fundamentando a execução racional de exames complementares.

Nos lactentes pequenos, os sinais mais precoces de sépsis são muitas vezes as alterações do estado de consciência com períodos de irritabilidade, choro inconsolável, prostração e apneia.

Nas crianças maiores é mais frequente a hipertermia com calafrio, taquicárdia, taquipneia, palidez, icterícia, distensão abdominal, diminuição ou ausência de pulsos periféricos, prolongamento do tempo de preenchimento capilar, extremidades frias e exantema. O exantema petequial ou purpúrico é muito característico da infecção por Neisseria meningitidis, mas também se observa frequentemente nas infecções por outros agentes (por ex. H. Influenzae, Enterovírus, Rickettsias). De salientar que a hipotensão é um sinal de aparecimento tardio, pela existência de mecanismos compensatórios.

Por vezes são evidentes sinais de infecção focal, como pneumonia, meningite, celulite, artrite. No momento do diagnóstico poderão ser detectados já sinais clínicos de disfunção de vários órgãos, sobretudo o cérebro (alteração do estado de consciência), pulmão, coração, rim (diminuição da diurese), e vasos sanguíneos e sangue (exantema petequial).

O doente com sépsis necessita duma avaliação clínica cuidada e de instituição rápida de terapêutica adequada. A primeira avaliação deve ser feita com base em parâmetros meramente clínicos, sem necessidade de grandes recursos; é extremamente importante, pois permite o reconhecimento precoce do doente com sépsis, a avaliação da fase evolutiva em que se encontra, como tal, a instituição precoce de medidas terapêuticas, gesto decisivo no prognóstico da doença.

Quando a evolução clínica é desfavorável e não há resposta às primeiras medidas terapêuticas, torna-se necessária a utilização de métodos invasivos de monitorização (pressão venosa central, pressão arterial e saturação venosa de oxigénio) e tratamento; em tais circunstâncias o doente deve ser transferido para uma unidade de cuidados intensivos pediátricos.

Devem ser avaliados os seguintes parâmetros: estado de consciência, a frequência e ritmo cardíaco, pressão arterial não invasiva, pulsos periféricos, tempo de recoloração capilar, frequência e esforço respiratório, saturação O2-Hb/SpO2 por oximetria de pulso, temperatura central e periférica, diurese e presença de manifestações de diátese hemorrágica (petéquias, sufusões, hemorragia das mucosas).

Torna-se necessária a confirmação microbiológica de infecção, com identificação do agente causal. Devem ser realizados exames culturais seriados de vários líquidos orgânicos: sangue, urina, fezes, LCR, secreções respiratórias, líquido pleural, peritonial ou sinovial, e também de exsudados e de lesões cutâneas. A punção lombar deve ser efectuada após estabilização hemodinâmica, respiratória e neurológica, sem que isso atrase a instituição da terapêutica antibiótica.

Outros exames úteis no diagnóstico de infecção são: a pesquisa de antigénios bacterianos por testes de aglutinação; a detecção de antigénios víricos nas secreções nasofaríngeas por imunofluorescência; e as técnicas de biologia molecular – PCR (reacção da polimerase em cadeia – polymerase chain reaction), no soro e LCR, consideradas as mais eficazes e confiáveis para o diagnóstico de infecção por um determinado agente.

Em todos os casos em que se admite, pela anamnese e exame objectivo, o diagnóstico de sépsis, e atendendo a que o respectivo quadro clínico se caracteriza por repercussão multissistémica, deve proceder-se a exames complementares de modo sistematizado para avaliação do grau de disfunção dos vários órgãos:

  • Hematológica – hemograma (com tipagem), provas de coagulação;
  • Renal – ureia, creatinina, ionogramas sérico e urinário;
  • Hepática – ALT, AST, bilirrubinas, albumina;
  • Metabólica – glucose, bicarbonato, lactato, défice de bases;
  • Respiratória – gasometria (para monitorização da hipóxia e da retenção de dióxido de carbono);
  • Neurológica – ecografia transfontanelar, EEG, TAC (a ponderar caso a caso).

Habitualmente, verifica-se a existência de leucocitose com elevação do número absoluto de neutrófilos imaturos, vacuolização dos neutrófilos, e corpos de Döhle. A neutropénia é um sinal de gravidade. São frequentes: trombocitopénia e alterações da coagulação com diminuição do nível sérico do fibrinogénio, assim como aumento da proteína C reactiva, da procalcitonina, dos tempos de protrombina e de tromboplastina parcial.

Tratamento

Medidas prioritárias

Nas situações de sépsis bacteriana, o diagnóstico e intervenção terapêutica precoces são decisivos para a melhoria do prognóstico, por se impedir a progressão para o estádio de choque séptico e de falência multiorgânica.

O objectivo prioritário é restaurar a perfusão tecidual através da estabilização hemodinâmica e manutenção de oxigenação e ventilação adequadas (se necessário com ventilação invasiva, reduzindo desta forma o gasto cardíaco). As medidas terapêuticas preconizadas com esta finalidade foram desenvolvidas no capítulo sobre Choque.

Antibioticoterapia

Por outro lado, está demonstrado que o início precoce de antibioticoterapia empírica adequada melhora significativamente o prognóstico, pelo que, após realização dos exames culturais, aquela deve ser iniciada de imediato (na primeira hora), e posteriormente ajustada de acordo com os resultados dos exames microbiológicos.

Para uma prescrição adequada é necessário ter em conta o quadro clínico, a idade do doente e os seus antecedentes no que respeita a doenças anteriores, estado imunitário e antibioticoterapia prévia. É também importante o conhecimento de factores epidemiológicos, bem como do padrão de resistência local aos antibióticos. É correcto começar com antibióticos de largo espectro, os quais devem ser substituídos por outros de espectro mais limitado logo que se conheçam os agentes bacterianos envolvidos e sua sensibilidade aos antimicrobianos.

Os antibióticos a utilizar nas situações mais frequentes estão resumidos no Quadro 2. Os mesmos destinam-se ao tratamento da sépsis em crianças com quadro clínico grave que necessitam de ser hospitalizadas ou que adquiriram a infecção em meio hospitalar.

QUADRO 2 – Antbioticoterapia na sépsis

(#) → Nas crianças de idade > 3 meses os antibióticos empíricos de primeira linha são sempre as cefalosporinas de 3ª geração, de acordo com o quadro. Somente se associa a vancomicina nos casos em que há forte suspeita de infecção por Streptococcus pneumoniae.
(x) → Considera-se a gentamicina como o aminoglicosídeo de 1ª escolha, reservando outros (amicacina e tobramicina) para situações mais específicas.
(•) → Carbapenems: como 2ª linha.

Idade

Agentes prováveis

Antibióticos
(esquemas a adaptar em função da probabilidade/contexto clínico ou germe isolado)

RN – 3 meses

    • Streptococcus grupo B
    • Enterobacteriáceas
    • Listeria
    • Herpes simplex(*)
    • Ampicilina + aminoglicosídeo(x) ou cefotaxima/ceftriaxona

(*) + aciclovir se suspeita

> 3 meses(#)
Crianças saudáveis

    • S. pneumoniae
    • Neisseria meningitidis
    • Haemophilus influenzae
    • Staphylococcus aureus
    • Streptococcus βhemolítico
    • Cefotaxima/ceftriaxona (+ vancomicina se suspeita de meningite por S. pneumoniae ou se estafilococo ou pneumococo resistente à meticilina)
    • Flucloxacilina + aminoglicosídeo
    • Penicilina + clindamicina

Imunodeficiência, neutropénia ou infecção nosocomial

    • Enterobacteriáceas
    • Pseudomonas
    • S. aureus coagulase negativo
    • Serratia
    • Candida
    • Vancomicina + agente anti-pseudomonas:
      • Ceftazidima ou cefepime
      • Tobramicina
    • Vancomicina + ceftazidima + aminoglicosídeo
    • Penicilina + inibidor das beta-lactamases (clavulânico, tazobactam, sulbactam);
    • Carbapenems(•) (imipenem ou meropenem);
    • Anfotericina B

Sépsis de origem abdominal

    • Enterobacteriáceas
    • Anaeróbios
    • Cefotaxima/ceftriaxona + gentamicina + metronidazol ou clindamicina

Salienta-se a importância da adopção de critérios rigorosos na prescrição de antibióticos ao tratar infecções adquiridas na comunidade em crianças aparentemente saudáveis até à data do episódio infeccioso; com efeito, em tal circunstância os germes microbianos responsáveis são, na maioria das vezes, sensíveis aos velhos antibióticos, os quais deverão ser utilizados como terapêutica de primeira linha.

Não se deve esquecer o controlo de algum foco infeccioso existente, designadamente através da drenagem de colecções, do desbridamenteo de tecidos infectados e da remoção de corpos estranhos ou outros dispositivos.

Outras medidas terapêuticas

Nos últimos anos, o melhor conhecimento da fisiopatologia da sépsis levou ao aparecimento de numerosas terapêuticas na tentativa de modificar ou modular a resposta inflamatória do hospedeiro à infecção.

São exemplos os usos: de imunoglobulina IV em altas doses (com especial indicação nas síndromas de choque tóxico), de anticorpos antiendotoxina, de anticitocinas (anti-TNFa, anti-IL1), e do inibidor da sintetase do óxido nítrico. De referir que com nenhuma destas terapêuticas se demonstrou eficácia no respeitante à redução da mortalidade por sépsis.

A interacção entre as actividades inflamatória e procoagulante abriu um novo caminho no âmbito da terapêutica com anticoagulantes. Em estudos realizados em adultos verificou-se que a administração de proteína C activada, anticoagulante endógeno com propriedades anti-inflamatórias, levou a redução da mortalidade em casos de sépsis grave, o que não aconteceu na idade pediátrica. A utilização de corticóides continua a ser controversa, sendo recomendada apenas em crianças com choque resistente às catecolaminas e com risco de insuficiência da suprarrenal ou do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal. Também as hipóteses de efeito benéfico com a administração da hormona de crescimento (GH), tendo como base a disfunção do eixo hipotálamo-hipofisário, não se confirmaram em estudos científicos.

E ainda, outras medidas deverão ser tidas em conta:

  • Transfusão de concentrado eritrocitário (para manter níveis de hemoglobina superiores a 10g/dL);
  • Transfusão de concentrado plaquetário se sangramento activo e plaquetas inferiores a 50.000/µL, ou de forma profiláctica se as plaquetas apresentarem valores inferiores a 20.000/µL;
  • Administração de plasma perante alterações da coagulação que a justifiquem (poderá ser efectuado um tromboelastograma prévio);
  • Controlo da glicemia;
  • Correcção de alterações iónicas;
  • Utilização de ECMO (extracorporeal membrane oxygenation) em situações específicas designadamente em contexto de choque séptico refractário.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção da infecção por Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis são abordados noutros capítulos.

A diminuição dos casos de infecção associada à prestação dos cuidados de saúde, através do cumprimento rigoroso das medidas de controlo de infecção deve ser hoje um objectivo prioritário em qualquer unidade de saúde, constituindo um dos principais indicadores de qualidade dos cuidados prestados.

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CHOQUE

Definição e importância do problema

O choque é uma situação clínica relativamente frequente em idade pediátrica, sendo uma causa importante de morbilidade e mortalidade em todo o mundo.

Define-se como um estado agudo de falência energética em que existe insuficiência da microcirculação com consequente perfusão inadequada dos tecidos, sendo, a oferta de oxigénio e nutrientes, desajustada em relação às necessidades metabólicas.

O atraso no reconhecimento e consequente atraso no tratamento do choque resulta em metabolismo anaeróbio (menos eficiente), acidose tecidual e progressão de um estado compensado reversível para um estado de irreversibilidade com falência multiorgânica com uma probabilidade de morte directamente proporcional ao número de órgãos em falência.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com diversos estudos, o quadro de choque ocorre em cerca de 2 a 3% dos doentes hospitalizados (idade pediátrica e adultos), com uma mortalidade que tem diminuído muito nas últimas décadas graças aos progressos que permitem o reconhecimento e diagnóstico cada vez mais precoces, e também ao desenvolvimento de técnicas invasivas de diagnóstico e terapêutica.

Na perspectiva epidemiológica, e no que respeita a factores etiológicos em idade pediátrica adiante analisados, é importante salientar que o choque hipovolémico é o mais frequente, quer seja devido a hemorragia aguda (nos países desenvolvidos), quer a desidratação aguda por gastrenterite (nos países em vias de desenvolvimento).

No referido grupo etário, o choque cardiogénico é pouco frequente.

Por outro lado, a infecção constitui uma das principais causas de mortalidade nas unidades de cuidados intensivos.

Etiopatogénese e classificação

A perfusão tecidual depende da pressão arterial, sendo esta dependente de três variáveis relacionadas com a função cardiocirculatória:

  • O volume sanguíneo que deve ser adequado e com uma viscosidade sanguínea equilibrada;
  • A contractilidade cardíaca;
  • O tono vascular arterial e venoso que determina as resistências vasculares.

Qualquer interferência num destes factores poderá resultar em falência cardiocirculatória e choque.

Dado que a função essencial do sistema cardiovascular é levar aos tecidos o oxigénio adequado às suas necessidades, tal só poderá ser feito de forma eficaz em presença de condições de normalidade do mesmo.

O transporte de O2 aos tecidos (DO2) é o resultado do produto do débito cardíaco (DC) pelo conteúdo arterial de O2 (CaO2), de acordo com a fórmula:

DO2 = DC x Ca O2 (VN = 520 – 570 ml/min/m2)

Quando há diminuição da pressão arterial é desencadeada no organismo uma série de mecanismos de compensação para tentar manter a perfusão e oxigenação adequadas ao nível dos tecidos.

Inicialmente há uma activação do sistema simpático através da estimulação dos barorreceptores carotídeos, o que leva a um aumento do débito cardíaco por aumento da frequência e contractilidade cardíacas e a vasoconstrição periférica. Estes fenómenos conduzem a uma redistribuição do fluxo sanguíneo, com desvio para áreas “nobres” ou prioritárias em termos fisiológicos, como o cérebro e coração, em detrimento doutras em que o fluxo sanguíneo diminui – pele, músculo e circulação esplâncnica.

Para além do sistema simpático são activados diversos mecanismos endócrinos, nomeadamente, libertação de hormona antidiurética (HAD) e activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, levando a aumento da reabsorção renal de água e sódio com aumento do volume intravascular.

Esta resposta neuroendócrina compensatória, eficaz até certos limites, determina as várias fases do choque.

Classicamente, a resposta hemodinâmica correlacionando-se com a clínica, pode ser consubstanciada em três fases:

  1. Choque hiperdinâmico (choque compensado, choque quente)
    A resposta hemodinâmica compensatória é eficaz. Assim, a pressão arterial é normal, a frequência cardíaca é normal ou pode estar aumentada, e a diurese é normal;
  2. Choque hipodinâmico (choque descompensado, choque frio)
    Há falência da resposta hemodinâmica. O que caracteriza esta fase é a hipotensão arterial associada a taquicardia e sinais de hipoperfusão – diurese diminuída, depressão da consciência;
  3. Choque irreversível
    Há falência de órgãos e a morte é inevitável.

Desta evolução decorre que o choque pode ocorrer sem hipotensão; ou seja, a hipotensão, quando detectada, corresponde já a uma fase de falência dos mecanismos de compensação. É sempre um sinal tardio.

Embora os factores etiológicos do choque sejam múltiplos, os mecanismos patogénicos desencadeados pelos vários determinantes são os mesmos a nível celular e molecular, o que resulta numa apresentação clínica comum.

Com efeito, sabe-se, desde há vários anos, que em resposta a uma agressão grave, que pode ser infecciosa, traumática ou outra, há uma resposta inflamatória sistémica não específica designada síndroma de resposta inflamatória sistémica (SIRS). Mais do que a entidade agressora é esta resposta do hospedeiro que vai condicionar o prognóstico. Os mediadores inflamatórios produzidos com o intuito de combater o agente agressor tornam-se, a partir de certo ponto, os responsáveis pela manutenção das lesões celulares. Esta resposta inflamatória pode progredir independentemente da remoção da causa desencadeante para estádios de gravidade crescente. (ver capítulo sobre Sépsis)

As endotoxinas e exotoxinas circulantes induzem a libertação de mediadores pró-inflamatórios e anti-inflamatórios de cujo balanço resulta o quadro clínico. Se houver predomínio de mediadores pró-inflamatórios será desencadeada a cascata da inflamação, surgindo uma situação clínica de SIRS.

O endotélio e a parede vascular têm um papel chave em todo este processo. (Figura 1)

FIG. 1 – Fisiopatologia do Choque

O endotélio é o maior órgão do organismo e desempenha um papel relevante na vasorregulação. É local de actuação e de produção de muitos mediadores.

Há perda do tono vascular e aumento da permeabilidade vascular, com vasodilatação e depleção do volume intravascular, que originam hipotensão, e hipóxia tecidual, com aumento do lactato e morte celular. Para além disso, o endotélio activado, com uma actividade pró-coagulante e fibrinolítica, é responsável por fenómenos de adesão plaquetária e microtromboses, o que contribui para diminuir, ainda mais, a perfusão dos tecidos.

De acordo com os aspectos da etiopatogénese, pode classificar-se o choque como se sintetiza no Quadro 1.

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica do choque

Hipovolémico (défice de volume intravascular)

      • Desidratação
      • Hemorragia
      • Queimadura

Cardiogénico (falência da bomba cardíaca)

      • Cardiopatias congénitas
      • Disritmias
      • Cirurgia cardíaca
      • Miocardite

Distributivo (alteração do tono vascular)

      • Anafilaxia
      • Neurogénico: secção da medula espinhal, bloqueio simpático

Obstrutivo (obstáculo mecânico à ejecção ventricular)

      • Pneumotórax hipertensivo
      • Tamponamento cardíaco
Séptico (distributivo, hipovolémico, cardiogénico)

 

Como se depreende pela análise da lista do Quadro 1, em determinadas situações verificam-se mecanismos associados, sendo alguns deles comuns a diversas entidades clínicas.

O choque séptico é o exemplo clássico em que existe simultaneamente uma hipovolémia profunda em paralelo com alterações da distribuição do fluxo sanguíneo e também, muitas vezes, disfunção cardíaca. É também frequente que crianças com cardiopatias congénitas apresentem, em simultâneo, choque cardiogénico e hipovolémico devido a défice de suprimento hídrico por não ingesta, ou a perdas gastrintestinais.

 Manifestações clínicas e exames complementares

Um doente que evidencie um quadro de choque constitui uma emergência médica, necessitando duma avaliação clínica rigorosa paralelamente à instituição rápida de medidas terapêuticas adequadas.

A primeira avaliação deve ser feita com base apenas em parâmetros clínicos, sem necessidade de recursos semiológicos complexos, permite, em geral, o reconhecimento da fase evolutiva do choque.

Sendo o choque uma síndroma multissistémica com disfunção em grau variável de todos os órgãos, o objectivo da avaliação semiológica inicial é, fundamentalmente, a detecção de sinais de défice de perfusão tecidual (estado de consciência, temperatura diferencial, tempo de reperfusão capilar, diurese) e a avaliação das funções cardíaca e respiratória. (Quadro 2)

Quadro 2 – Parâmetros prioritários de avaliação clínica

Função circulatória

      • Frequência e ritmo cardíacos
      • Pressão arterial não invasiva
      • Pulsos periféricos
      • Tempo de reperfusão capilar

Função respiratória

      • Frequência e esforço respiratórios
      • Saturação em O2/SpO2 (por oximetria de pulso)

Temperatura diferencial (central/periférica)

Diátese hemorrágica

      • Petéquias, sufusões, hemorragia das mucosas

Estado de consciência

Diurese


É importante reconhecer a situação de choque na fase de taquicardia, taquipneia, tempo de reperfusão capilar ligeiramente aumentado, com boa reactividade e com pressão arterial normal (choque compensado ou quente). A instituição de terapêutica nesta fase aumenta muito a probabilidade de sobrevivência.

O estudo laboratorial permite o diagnóstico do factor etiológico desencadeante do choque, bem como avaliar a repercussão na função dos vários órgãos.

Por outro lado, tratando-se duma situação complexa com indicação para assistência em unidades de cuidados intensivos, importa uma referência especial ao papel da monitorização invasiva na avaliação clínica do problema em análise, o choque. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Exames complementares nas situações de choque

    1. Diagnóstico de infecção
      Em função do contexto clínico estão indicados exames culturais seriados – sangue, urina, LCR, lesões cutâneas, etc..
    2. Avaliação clássica da função de órgãos
      Pulmonar/cardíaca – Gasometria, troponina, CPK/CK-MB, BNP, Radiografia do tórax, ECG, ecocardiograma
      Hematológica – Hemograma, provas de coagulação, fibrinogénio, dímeros-D, PDF
      Renal – ureia, creatinina, ionograma sérico e urinário
      Hepático-pancreática – ALT, AST, bilirrubinas, albumina, amilase, LDH
      Metabólica – glicémia, bicarbonato, lactato
      Neurológica – ecografia transfontanelar (em lactentes), EEG, TAC-CE, RM do neuro-eixo (casos a seleccionar)
    3. Avaliação por métodos invasivos

 

Notas importantes:

      • Deve excluir-se anemia e transfundir-se com concentrado eritrocitário, se necessário. São frequentes também a trombocitopénia e alteração das provas de coagulação.
      • Nas primeiras fases do choque é habitual a hiperglicémia secundária a resposta adrenérgica. São também frequentes, alterações da função renal, hipernatrémia (choque hipovolémico) e hipocalcémia (muito importante, uma vez que poderá condicionar depressão de função miocárdica).
      • A acidose metabólica é uma constante, por elevação do lactato sérico. Este último é o indicador mais precoce de hipoperfusão tecidual e um importante parâmetro de avaliação da eficácia da terapêutica.
      • O BNP (B-Type Natriuretic Peptide) é uma hormona produzida pelos miócitos ventriculares, sendo libertada em resposta ao estresse na parede miocárdica. Os níveis séricos elevam-se na sépsis e na insuficiência cardíaca com choque cardiogénico. Níveis elevados de BNP reflectem estresse miocárdico; a melhoria da função cardíaca está associada à normalização dos níveis de BNP.

No que respeita à monitorização invasiva, importa valorizar os seguintes parâmetros:

      • Saturação venosa em oxigénio: A medição da saturação em O2 na artéria pulmonar (MvO2 mixed venous oxygen saturation), utilizando um cateter de Swan-Ganz, não é utilizada na maioria das unidades de cuidados intensivos pediátricos, tendo sido substituída por outras técnicas menos invasivas, tal como a medição de saturação em oxigénio numa amostra colhida de um cateter venoso central (SvO2).
        Comparando a saturação venosa em oxigénio (SvO2) com a saturação arterial em oxigénio (SaO2) poderá determinar-se a diferença quanto a saturação em oxigénio arteriovenosa, assim como a ratio de extracção de O2 (O2ER). Num doente com SaO2 normal (93-100%), a SvO2 normal é ~65-77%, uma vez que os tecidos extraem 23-35% do oxigénio distribuído aos tecidos. Se a extracção de oxigénio for superior a 35% é porque a perfusão dos tecidos pode ser inadequada, reflectindo um estado de choque.
        Se a extracção de oxigénio for inferior a 23%, tal é explicável pelo facto de o sangue oxigenado poder estar a seguir um trajecto de derivação ou desvio (shunt) ao nível dos leitos capilares como resultado duma distribuição inapropriada de fluxo de sangue (choque distributivo com shunt arteriovenoso resultando de vasodilatação). A sépsis pode levar a inibição do metabolismo celular, diminuindo a extracção de oxigénio e, consequentemente, a aumento da saturação venosa em oxigénio.
      • Pressão venosa central (PVC): Para a medição de PVC, pode ser utilizado um cateter colocado na veia cava superior. A pressão de enchimento cardíaco medido por esse cateter reflecte a função ventricular e a compliance/distensibilidade e não necessariamente apenas o volume intravascular. Contudo, os valores obtidos associados aos achados clínicos podem ajudar na monitorização do doente. A PVC normal oscila entre 8 e 12 cm H2 Pressões mais elevadas podem reflectir excesso de fluidos ou insuficiência cardíaca direita.
      • Monitorização de débito cardíaco: Na maior parte das unidades de cuidados intensivos utiliza-se frequentemente o ecocardiograma como forma de monitorização dinâmica do débito cardíaco. O índice cardíaco (CI) é calculado dividindo o débito cardíaco pela área de superfície corporal. Valores normais de CI situam-se entre 3,5-5,5 L/min/m2. A monitorização do CI permite o incremento da eficácia e eficiência da terapêutica com volume e inotrópicos.

Outros métodos mais recentes para monitorização de débito cardíaco incluem o cateter de PICCO (pulse contour cardiac output) e o FATD (femoral artery thermodilution cateter).

      • Espectroscopia próxima dos infravermelhos (NIRS ou near-infrared spectroscopy): Método não invasivo que permite monitorizar a saturação em oxigénio nos tecidos em territórios específicos como o cérebro, rins e região mesentérica.
      • Essa informação permitirá avaliar a resposta às diversas terapêuticas.

Tratamento

As medidas terapêuticas do choque devem ser instituídas o mais rapidamente possível. Há numerosos estudos que demonstram a melhoria do prognóstico com baixa significativa da mortalidade nos doentes tratados agressivamente na primeira hora, a chamada hora de ouro.

As primeiras medidas terapêuticas são comuns à maioria dos tipos de choque, sendo que o conhecimento da respectiva etiopatogénese permite instituir medidas específicas importantes.

  • No choque hipovolémico é fundamental parar a perda aguda (contenção de focos hemorrágicos, de perdas gastrintestinais).
  • No choque anafiláctico é determinante a administração rápida de adrenalina intramuscular.
  • No choque séptico é obrigatória a instituição precoce de antibioticoterapia de largo espectro.

Como os princípios iniciais do tratamento do choque são muito semelhantes independentemente da etiologia, em 2007 o American College of Critical Care Medicine (ACCM) definiu com rigor os parâmetros para o tratamento do choque pediátrico e neonatal. Em 2012 a Surviving Sepsis Campaign divulgou recomendações suplementares, com idêntico objectivo.

Com base nas referidas normas e recomendações, são descritos seguidamente os passos fundamentais no tratamento do choque. (Figura 2)

FIG. 2 – Algoritmo de Tratamento do Choque.
Adaptado de: American College of Critical Care Medicine 2007 e Surviving sepsis campaign guidelines for management of pediatric and neonatal patients with sepsis shock 2012.
Abreviaturas: EV- endovenoso; IO-intra-ósseo; PA-pressão arterial; SF- soro fisiológico; ECMO- extra corporal membrane oxygenation (técnica de oxigenação com circulação extracorporal)

O reconhecimento do choque é clínico e deve ser feito nos primeiros minutos da nossa observação.

O objectivo principal e prioritário do tratamento é restaurar a perfusão tecidual normal.

São assim, objectivos terapêuticos no tratamento do choque:

  • Estado de Consciência Normal;
  • Pressão Arterial Normal para a idade;
  • Frequência Cardíaca Normal para a idade;
  • Pulsos Periféricos e Centrais normais;
  • Extremidades quentes com tempo de reperfusão capilar de 2 segundos, ou menos;
  • Diurese de pelo menos 1 mL/kg/h;
  • Níveis de Glicémia Normais;
  • Níveis de Cálcio Ionizado Normais;
  • Níveis de Lactato a diminuir.

Reanimação inicial

Abordagem ABC (airway, breathing, circulation)

  • A via aérea do doente deve ser assegurada e o doente deve ser adequadamente ventilado e oxigenado. Inicialmente deve ser administrado oxigénio suplementar de alto débito com FiO2 de 100%;
  • Se houver dificuldade respiratória poderá tentar-se cânula nasal de oxigénio de alto fluxo ou ventilação não invasiva;
  • Se houver falência respiratória, considerar entubação e ventilação mecânica;
  • Se a via aérea puder ser mantida, e oxigenação e ventilação suportadas sem intervenção imediata do ponto de vista respiratório, deverá atrasar-se a entubação para permitir ressuscitação rápida e agressiva de fluidos. Esta recomendação advém do efeito potencialmente negativo da ventilação com pressão positiva no retorno venoso e na estabilidade cardíaca no doente hipovolémico.

Passos seguintes

  • Depois de assegurar a via aérea, assim como oxigenação e ventilação adequadas, deve canalizar-se de imediato 2 veias periféricas de bom calibre ou, na impossibilidade, garantir uma via intraóssea e iniciar de imediato ressuscitação hídrica, pedra basilar do tratamento de todas as situações de choque.
  • Deve proceder-se a uma primeira expansão vascular com administração de 20 mL/kg de soro fisiológico, em 5 – 10 minutos e, se o choque persistir e não houver sinais de sobrecarga hídrica (como sucede no choque cardiogénico), administrar mais dois bolus do mesmo volume.
  • É obrigatório ter em atenção os sinais de sobrecarga hídrica: taquipneia, tosse, fervores, hepatomegália. Se estes surgirem há que ser criterioso na administração de líquidos e iniciar o mais precocemente possível o suporte inotrópico.
  • Se não houver resposta às medidas terapêuticas anteriores e o doente se mantiver em choque deve iniciar-se a administração de fármacos inotrópicos. Estes usam-se em perfusão contínua, de preferência em veia central e com monitorização invasiva – pressão venosa central (PVC) e pressão arterial (PA). Deve-se, no entanto, salientar que o suporte inotrópico pode ser iniciado, sem risco, numa veia periférica de bom calibre.
    Na criança deve-se utilizar em primeiro lugar a dopamina – na dose de 5 mcg/kg/minuto, aumentando rapidamente para 10 mcg/kg/minuto, se necessário.

QUADRO 4 – Regra de preparação de inotrópicos

FÁRMACODILUENTEPREPARAÇÃORITMO DE INFUSÃO

ADRENALINA
NORADRENALINA
MILRINONA

Soro Fisiológico
Glicose a 5%

0,6 x peso + diluente até 100 ml1 ml/hora → 0,1 mg/kg/min

DOPAMINA
DOBUTAMINA
INAMRINONA
NITROGLICERINA
NITROPRUSSIATO

6 x peso + diluente até 100 ml1 ml / hora → 1 mg/kg/min

 

  • Se a hipotensão persistir, associa-se um vasopressor: a adrenalina no choque frio, e a noradrenalina no choque quente.
  • Se não houver resposta favorável, admite-se situação de choque resistente às catecolaminas. Nesta situação e, se houver risco de insuficiência adrenal, deve administrar-se hidrocortisona.
  • Pode suspeitar-se de insuficiência adrenal:
    • perante o surgimento de púrpura fulminante (síndroma de Waterhouse-Friderichsen);
    • nos doentes com anomalias conhecidas da suprarrenal ou da pituitária; ou
    • com terapêutica prévia com corticosteróides.
  • A hidrocortisona administra-se em dose de choque – 50 mg/m2/dia, em bolus, seguido de perfusão contínua com a mesma dose, mantida até à estabilização hemodinâmica, só sendo suspensa após a retirada dos inotrópicos. A utilização de metilprednisolona em altas doses e de dexametasona está contraindicada no choque séptico.
  • Se, depois de cumpridos todos os passos terapêuticos descritos, a situação de choque se mantiver, há que admitir uma de três hipóteses:
    1. Choque frio com Pressão Arterial Normal (e neste caso poderá adicionar-se dobutamina ou um inibidor da fosfodiesterase do tipo milrinona, ou considerar levosimendan);
    2. Choque frio com Pressão Arterial baixa (neste caso deverá titular-se o volume de fluidos administrados e da adrenalina);
      → Se se mantiver hipotensão, considerar a administração de noradrenalina.
      → Se SvO2 <70%, considerar a administração de dobutamina, milrinona ou levosimendan.
    3. Choque quente com Pressão Arterial Baixa (neste caso titular noradrenalina).
      → Se se mantiver hipotensão, ponderar a administração de vasopressina
                       ou
      angiotensina → Se SvO2 <70%, considerar baixa dose de adrenalina.

Nas situações de choque refractário pode-se considerar a hipótese de ECMO (extracorporeal membrane oxigenation).

Outras medidas terapêuticas

  • A correcção das alterações iónicas e metabólicas deve ser feita em simultâneo com as outras terapêuticas.
  • É importante manter a glicémia normal através do suplemento adequado de glicose ou da administração de insulina quando necessário.
  • A hipocalcémia, também habitual, deve ser corrigida precocemente. De facto, níveis baixos de cálcio ionizado têm sido associados a disfunção cardíaca. Por outro lado, a administração de cálcio está também recomendada no tratamento do choque causado por disritmias precipitadas por hipercaliémia, hipermagnesiémia ou por toxicidade de bloqueadores dos canais de cálcio.
  • A diátese hemorrágica, por vezes, com quadros de coagulação intravascular disseminada, é muito frequente em certos tipos de choque (choque séptico meningocócico). Para a sua resolução, o mais importante é o tratamento da causa desencadeante; contudo, muitas vezes é necessário tratamento substitutivo – concentrado eritrocitário, plasma, crioprecipitado, plaquetas. A tendência actual é para uma política transfusional restritiva pois os estudos mostram que não há vantagem na terapêutica liberal devido aos numerosos riscos dos derivados de sangue.
  • Deve manter-se valor da hemoglobina (Hb) na ordem de 9-10 g/dL. As transfusões de plasma e de crioprecipitado só devem ser realizadas se há manifestações de diátese activa e não para corrigir as provas de coagulação. A transfusão de plaquetas deve ser feita sempre que a contagem de plaquetas revelar ≤ 5000/mm3. Se for necessário, há que realizar técnicas invasivas ou intervenção cirúrgica, o valor das plaquetas deve ser > 50.000/mm3.
  • Sendo o rim um órgão atingido nas situações de choque, e sendo a lesão renal agravada pelos mecanismos de compensação hemodinâmica, deve evitar-se a oligoanúria prolongada, o que só é possível com a correcção da hipovolémia e da hipotensão.
  • Se surgir insuficiência renal oligoanúrica deve evitar-se a hipervolémia e a anasarca, instituindo precocemente depuração extra-renal. O método de eleição nestes casos é a hemofiltração venovenosa contínua.
  • No choque séptico é obrigatória a instituição precoce de antibioticoterapia de largo espectro, pelo menos com dois antimicrobianos, para cobertura dos agentes bacterianos mais prováveis. (ver capítulo sobre Sépsis)
  • Deve ser feita profilaxia da úlcera de estresse com inibidores dos receptores H2 ou inibidores da bomba de protões.

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COMA

Definições e importância do problema

A situação clínica designada por coma é definida como perda do estado de consciência, traduzida por impossibilidade de despertar, e por ausência de resposta a qualquer estímulo sensitivo externo ou interno. Nas formas graves, o coma acompanha-se de perturbações vegetativas e/ou metabólicas.

Nos países industrializados registam-se cerca de 140 casos de coma traumático e 30 casos de coma não traumático por 100.000 pacientes em idade pediátrica por ano.

O coma deve ser distinguido da morte cerebral, em que se verifica ausência permanente de toda a função do tronco cerebral, e do estado vegetativo, em que existe uma perda de consciência de si e do meio envolvente, acompanhado de alterações do ciclo sono/vigília, com preservação variável das funções do tronco cerebral.

Há que considerar outros termos que tipificam diversos níveis intermédios de consciência entre a vigília e o coma:

  • Estupor ou estado que se pode confundir com o sono normal; acompanha-se de escassez ou ausência de movimentos espontâneos, podendo o doente ser despertado por estímulos dolorosos;
  • Letargia ou estado de vigília reduzida com défice de atenção, associando-se por vezes a estados de agitação;
  • Obnubilação, apatia ou torpor em que se verifica sonolência com resposta a estímulos externos não dolorosos.

O chamado mutismo acinético é um estado acompanhado de lentidão ou ausência de actividade motora, e lentidão da cognição, com vigília preservada.

Uma vez que estes termos poderão comportar certo grau de subjectividade na apreciação, foi criado um instrumento de avaliação estruturada – adaptado do modelo utilizado no adulto – integrando um conjunto de achados físicos aos quais se atribui determinada pontuação. É a chamada escala de coma de Glasgow (Glasgow Coma Scale). (ver adiante)

Estabelecido o diagnóstico de coma, importa a respectiva investigação etiológica.

Etiopatogénese

Ao abordar sucintamente a etiopatogénese do coma, convém separar dois conceitos fundamentais: o que tem a ver com a percepção, relacionado com mecanismos de origem cortical; e com a reactividade, relacionada, esta, com mecanismos primários de origem subcortical. A vigília depende da activação cortical pela substância reticular do tronco cerebral e pelo tálamo medial. A referida vigília pode ser interrompida pelo sono ou por patologia da substância reticular ascendente, do tálamo ou do córtex cerebral ao nível de ambos os hemisférios.

O estado de coma corresponde invariavelmente a disfunção encefálica grave que pode ser rapidamente progressiva e fatal; nos casos em que não é fatal, poderá ser irreversível.

A situação de coma poderá estar associada a hipertensão intracraniana, fundamentalmente por: hemorragia intracraniana, edema cerebral e lesões ocupando espaço. O edema cerebral pode ser vasogénico, celular ou osmolar. O edema celular afectando os astrócitos, relaciona-se com alterações da homeostase da excitotoxicidade, acidose e acumulação de água e sódio no citoplasma. O edema osmolar pode ocorrer no contexto de focos de necrose por contusão cerebral.

Nos casos de lesões ocupando espaço e/ou associadas a edema, na ausência de distensibilidade da caixa craniana ou nos casos em que o aumento de volume do conteúdo encefálico ultrapassar a capacidade da caixa craniana rígida, pode surgir herniação a vários níveis: através da tenda do cerebelo (transtentorial), uncal, ou amigdalina (através do foramen magnum).

Numa perspectiva de classificação etiopatogénica, na criança os estados de coma podem ser devidos a:

  • Causas não estruturais (tóxico-metabólicas): são a maioria, em geral com evolução insidiosa, associadas a disfunção difusa das células neuronais as quais, em fases avançadas, poderão conduzir a lesão cerebral focal;
  • Causas estruturais (supra ou infratentoriais): associadas a destruição importante do tecido cerebral.

Numa perspectiva prática, clínica, podem ser consideradas duas grandes causas: traumáticas e não traumáticas.

As causas traumáticas incluem principalmente as diversas formas clínicas de traumatismo cranioencefálico (TCE) analisadas no capítulo 284.

As causas não traumáticas, mais comuns em crianças com idade inferior a seis anos, podem ser divididas de diversas formas, nomeadamente em coma com sinais focais, coma sem sinais focais e sem irritação meníngea e coma sem sinais focais, mas com irritação meníngea.

Estas causas podem ser exemplificadas pelas seguintes situações: abcesso ou tumor do sistema nervoso central, acidente vascular cerebral, hidrocefalia, encefalopatia hipóxico-isquémica, meningite, encefalite, doenças desmielinizantes, encefalopatia hipertensiva, doenças metabólicas sistémicas (por ex.: hipoglicemia, hiperglicemia, falência hepática, uremia, desequilíbrios hidroelectrolíticos, síndroma de Reye, doenças hereditárias do metabolismo), intoxicações, doenças inflamatórias autoimunes (sarcoidose, cerebrite do lúpus, síndroma de Sjögren), estado de mal epiléptico, etc.. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de coma na idade pediátrica

SEMIOLOGIA E QUADROS CLÍNICOS

Coma com sinais focais

Coma sem sinais focais e sem sinais de irritação meníngea

Coma sem sinais focais mas com sinais de irritação meníngea

    • Hemorragia intracraniana
    • AVC
    • Tumores
    • Abcessos cerebrais
    • Status pós-convulsivo (paralisia de Todd)
    • Encefalomielite aguda disseminada
    • Hipoxia/isquemia (anemia grave, apneia, asfixia, intoxicação por CO, afogamento, choque)
    • Alterações metabólicas (hipoglicemia, acidose, hiperamoniemia, uremia, alterações electrolíticas, doenças hereditárias do metabolismo)
    • Infecções sistémicas
    • Distúrbios pós-infecciosos
    • Encefalopatia pós-imunização
    • Drogas e toxinas
    • Malária cerebral
    • Encefalopatia hipertensiva
    • Status pós-convulsivos
    • Meningite
    • Encefalite
    • Hemorragia subaracnoideia

Exame clínico inicial e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas associadas ao estado de coma variam consoante a etiologia deste. Para o correcto diagnóstico etiológico, pressupõe-se um trabalho de equipa com medidas diversas executadas de modo coordenado e concomitante por diversos elementos para garantir eficácia, tentando evitar lesões neurológicas secundárias.

A abordagem inicial de um doente em coma, ou com compromisso do estado de vigília, baseia-se no princípio de que se trata dum quadro clínico com risco iminente de vida, com necessidade de estabilização emergente e de manutenção das funções vitais. Nesta perspectiva, é fundamental proceder à anamnese e ao exame físico, como base para a realização de exames complementares face às hipóteses de diagnóstico formuladas e subsequente orientação terapêutica.

 Anamnese

Importa inquirir sobre antecedentes de doença crónica, antecedentes familiares, forma de início do coma, traumatismo crânio-encefálico (TCE) recente, possibilidade de intoxicação, febre, doença aguda recente, ingestão de tóxicos, fármacos, doença prévia ou concomitante, vómitos matinais e cefaleias, convulsões, etc..

Exame objectivo

O exame físico implica a monitorização da FC, FR, PA, saturação O2-Hb (SpO2); salienta-se a importância da pesquisa de sinais exteriores de TCE, de odor peculiar (sugestivo de cetoacidose diabética, de intoxicação alcoólica ou por organofosforados), de sinais cutâneos (por ex.: em relação com discrasia hemorrágica, pigmentação), de febre, de sinais meníngeos, etc..

É importante realçar que a presença de sinais neurológicos focais é sugestiva de coma de causa estrutural.

No âmbito do referido exame, salientando a componente neurológica, deverão ser contemplados obrigatoriamente os seguintes parâmetros:

Avaliação do nível de consciência

Deve ser efectuada através da já referida escala quantitativa (Escala de Coma de Glasgow/GCS). (Quadro 2)

Oscila entre um valor mínimo de 3 pontos e um máximo de 15 pontos, devendo ser considerada a melhor resposta em cada avaliação. Um valor £ 8 sugere disfunção cerebral grave e indica necessidade de entubação endotraqueal imediata e de ventilação mecânica.

QUADRO 2 – Escala de coma de Glasgow (*)

Actividade

< 5 anos

≥ 5 anos

Pontuação

Abertura das pálpebras

Espontânea
À voz
À dor
Sem resposta

Espontânea
À voz
À dor
Sem resposta

4
3
2
1

Verbal

Vocaliza, palra
Irritado, chora
Chora com dor
Geme com dor
Sem resposta

Orientada e adequada
Discurso desorientado
Palavras sem nexo
Ininteligível
Sem resposta

5
4
3
2
1

Motora

Movimentos espontâneos
De fuga à estimulação táctil
De fuga à dor
Flexão anormal
Extensão anormal
Sem resposta

Obedece a ordens
Localiza a dor
Fuga
Em flexão
Em extensão
Sem resposta

6
5
4
3
2
1

(*) Nalguns centros utiliza-se também a chamada nova escala de coma ou The FOUR Score (sigla do inglês: Full Outline of UnResponsiveness), avaliando quatro componentes: olho, motor, tronco cerebral e respiração, atribuindo-se a cada componente a pontuação máxima de 4. Segundo certos especialistas são reconhecidas vantagens a este critério relativamente à escala Glasgow: avaliação dos reflexos relacionados com o tronco cerebral, avaliação do padrão respiratório, reconhecimento da síndroma locked in e reconhecimento de diversos estados de herniação.

Padrão respiratório

Podem ser detectados diversos padrões respiratórios no contexto de coma. (Figura 1)

  • Respiração de Cheyne-Stokes: respiração periódica, com amplitude em crescendo/decrescendo, seguida de pausas de apneia. Surge nas lesões bilaterais dos hemisférios, do diencéfalo ou em situações do foro metabólico.
  • Respiração de Kussmaul ou hiperventilação: hiperpneia rápida e profunda. Pode indiciar lesão do mesencéfalo, na ausência de hipoxia ou acidose metabólica.
  • Respiração apnéustica: pausas respiratórias prolongadas. Associada em geral a lesões da protuberância.
  • Respiração atáxica ou de Biot: respiração irregular, desorganizada, implicando possível lesão bulbar.
  • Hipoventilação: pode verificar-se nos casos de depressão respiratória secundária a drogas com efeito de depressão do SNC.

FIGURA 1. Coma e tipo de respiração

Pupilas

Nos comas metabólicos observa-se em geral miose reactiva, enquanto nas intoxicações por atropina e na hipoxia aguda se verifica midríase não reactiva. Outras intoxicações, como as provocadas por cocaína, anfetaminas ou álcool, podem provocar midríase com reflexo pupilar presente. As benzodiazepinas, os opiáceos e os barbitúricos tendem a produzir miose com reflexo pupilar preservado. Na situação de estado de mal epiléptico as alterações pupilares são diversas, incluindo anisocoria.

Havendo lesão estrutural, podem ser observadas as seguintes correspondências: mesencéfalo – midríase média; protuberância – miose reactiva; 3º par unilateral – midríase unilateral; diencéfalo – miose reactiva.

Movimentos oculares e reflexos

O exame dos movimentos oculares é importante para obter informação sobre a integridade do tronco cerebral. Quando existe perda da consciência, os movimentos voluntários desaparecem, devendo recorrer-se aos reflexos.

  • Reflexo oculocefálico ou dos “olhos de boneca” (pesquisa contra-indicada se existe possibilidade de traumatismo cervical) – com a deslocação lateral da cabeça, se o tronco cerebral estiver intacto, ambos os olhos se deslocam em direcção contrária ao movimento lateral.
  • Reflexo oculovestibular – ao instilar lentamente água fria no canal auditivo externo os olhos desviam-se para esse lado.
  • Reflexo corneano – ao estimular com algodão (5º par), produz-se pestanejo (7º par) e desvio do olho para cima (3º par). Neste reflexo participam os núcleos dos referidos pares (3º – mesencefálico; 5º e 7º – bulboprotuberanciais).

No que respeita a desvios conjugados:

  • Desvio para cima é próprio de lesão hemisférica;
  • Desvio para o lado paralisado pode ser devido a lesão da protuberância.
Função motora

As respostas motoras dão informação sobre o nível da lesão.

  • Postura e movimentos espontâneos – a presença de padrão hemiplégico sugere disfunção a qualquer nível da via piramidal; se há movimentos anormais como tremores ou mioclonias, há que admitir a hipótese de coma metabólico. No caso de escassez de movimentos devem ser observados a postura e os movimentos provocados por estímulos dolorosos; se o doente colaborar, localizando de modo correcto a dor, haverá integridade das vias motoras e sensitivas; se tal não acontecer, poderá haver lesão focal.
  • Rigidez de descorticação – traduz-se por hiperextensão das extremidades inferiores e flexão das extremidades superiores; tal corresponde a interrupção das vias cortico-espinhais e possível lesão na cápsula interna ou pedúnculo cerebral.
  • Rigidez de descerebração – hiperextensão das quatro extremidades; esta postura poderá corresponder a lesões mesencéfalo-pontinas ou cerebrais difusas.
  • Flacidez difusa – pode corresponder a lesão bulbar, medular e surgir associada ao coma metabólico profundo.
Sinais meníngeos

Os sinais meníngeos podem estar presentes na meningite, na hemorragia subaracnoideia e nos tumores da fossa posterior.

Sinais e sintomas de hipertensão intracraniana
  • Cefaleia matutina, vómitos em jacto, deterioração do nível de consciência, alterações da conduta, edema da papila, tríade de Cushing (hipertensão arterial, bradicardia, respiração irregular), convulsões, etc..
  • No lactente (com a fontanela anterior não encerrada, designadamente) o quadro clínico tem especificidades: hipertensão e bombeamento da fontanela anterior, olhos em sol poente, aumento das dimensões do perímetro craniano, deiscência das suturas, irritabilidade, etc..
Sinais de herniação
  • Herniação transtentorial – surge na hipertensão intracraniana global com deterioração progressiva do estado de consciência – entre letargia e coma – associada a miose, rigidez de descorticação e respiração de Cheyne-Stokes. Na ausência de tratamento, poderá surgir compromisso mesencefálico (pupilas intermédias fixas, rigidez de descerebração e respiração de Kussmaul) e, posteriormente, sinais de compromisso bulboprotuberancial (respiração irregular e resposta motora ausente).
  • Herniação uncal devida a hipertensão intracraniana por tumor ou hemorragia hemisférica localizada, com compromisso ipsilateral do 3º par (midríase, ptose e parésia adutora).
  • Herniação das amígdalas cerebelosas através do buraco occipital; verifica-se compressão do tronco cerebral com hipertensão na fossa posterior, e desaparecimento dos reflexos vestibulares e oculares.

Exames complementares

A situação de coma implica a realização de determinados exames com carácter de urgência, a ponderar em função do contexto clínico (anamnese e exame objectivo inicial), quer inicialmente, quer ao longo da evolução.

  • Sangue: glicemia, gasometria, hemograma completo e morfologia, ureia, ionograma incluindo cálcio, fósforo, magnésio e hiato iónico, provas de função renal e hepática, lactato, amónia, provas de coagulação, proteína C reactiva, serologias, doseamento de medicamentos antiepilépticos, etc.;
  • Urina: análise sumária, urocultura, pesquisa de tóxicos (principalmente em adolescentes);
  • Líquido cefalorraquidiano: frequentemente é necessário efectuar punção lombar para excluir a infecção do SNC (ter atenção aos sinais de hipertensão intracraniana, em que a punção lombar estará contra-indicada); igualmente, lactato, PCR para vírus, culturas especiais;
  • TAC ou RM CE urgentes (e outros exames de imagem) caso haja, por exemplo, suspeita de TCE ou de hemorragia do SNC, hipertensão intracraniana (HIC) e/ou herniação;
  • EEG nos casos de convulsões e/ou suspeita de encefalite e coma de etiologia tóxico-metabólica;
  • Se a causa não for evidente devem ser guardados sangue, urina e, eventualmente, conteúdo gástrico (este último para uma pesquisa mais alargada de tóxicos);
  • Outros exames mais específicos a realizar em função da suspeita etiológica (doseamento de aminoácidos no sangue e na urina, doseamento de ácidos orgânicos na urina, ácidos gordos livres e carnitina, amónia, função tiroideia, estudos virológicos, etc.).

Tratamento

A intervenção terapêutica obedece aos seguintes princípios: estabilização inicial e monitorização, tratamento imediato das causas tóxico-metabólicas, tratamento da HIC, e tratamento etiológico.

Estabilização inicial e monitorização

Neste tipo de intervenção prioritário, (monitorizando continuamente os parâmetros FC, FR, PA, SpO2-Hb e temperatura), aplicam-se os princípios da reanimação, já abordados noutro capítulo, e sintetizados a seguir.

  • A (Airway): permeabilização e estabilização da via aérea.
    (Deve ser dada uma atenção particular ao cuidado com a mobilização cervical sempre que se suspeite de causa traumática);
  • B (Breathing): avaliação da função respiratória e, se necessário, entubação endotraqueal e ventilação mecânica;
  • C (Circulation): avaliação da função circulatória (sinais vitais, pulsos periféricos, repercussão da má perfusão nos órgãos-alvo), garantindo normovolemia, PA normal, SpO2-Hb > 95% e hematócrito > 30% para eficaz perfusão tecidual.

A hipotensão deve ser tratada com fluidos e inotrópicos; se houver hipertensão, a mesma deverá ser combatida paulatinamente.

As medidas de protecção cerebral incluem:

  • A colocação da cabeça na linha média e inclinada 30º sobre a horizontal (caso não se verifique hipotensão arterial);
  • Analgesia para evitar estímulos susceptíveis de gerarem HIC;
  • Vigilância da temperatura, mantendo a normotermia;
  • Sedação a ponderar tendo em conta a repercussão sobre a valorização dos sinais neurológicos.

Tratamento imediato das causas metabólicas e tóxicas

  • A hipoglicemia é uma emergência médica que deve estar sempre presente quando se avalia uma criança em coma. Assim que exista um acesso vascular e após colheita de sangue, caso não seja possível determinar de imediato a glicemia capilar, deve ser administrado um bolus de glicose 10% na dose de 2,5 mL/kg IV;
  • Correcção das alterações hidroelectrolíticas e do equilíbrio ácido-base;
  • Tratamento das convulsões;
  • Tratamento da intoxicação por opiáceos: naloxona na dose de 0,01-0,1 mg/kg por via subcutânea, IM, IV ou intra-óssea. Poderá ser necessário administrar várias doses, uma vez que a vida média da naloxona é mais curta que a do tóxico. Nos casos de coma sem etiologia esclarecida, a naloxona pode ser administrada como tratamento de prova;
  • Tratamento da intoxicação por benzodiazepinas: flumazenil IV na dose de 0,01 mg/kg em 15 segundos, até máximo de 0,2 mg/dose. Se os sinais clínicos persistirem, pode repetir-se a dose inicial de minuto a minuto até máximo de 1 mg.

O tratamento de situações como diabetes, hiperamoniemia, SHU, meningite, encefalite vírica, etc. foi abordado nos respectivos capítulos. Nesta alínea referimo-nos sucintamente apenas aos seguintes quadros:

  • Intoxicação pelo chumbo, obrigando ao emprego de quelantes; a este propósito sugere-se ao leitor a consulta do capítulo sobre Intoxicações agudas;
  • Intoxicação por CO obrigando a oxigénio a 100% e, eventualmente, câmara hiperbárica;
  • Intoxicação pelo álcool originando défice de tiamina (vitamina B1), obrigando a administração desta vitamina (10-25 mg/dose), até 100 mg/dose.

Tratamento da hipertensão intracraniana

O tratamento da HIC foi abordado noutro capítulo.

Prognóstico

O coma é uma situação que pode ser consequência de múltiplos processos. Daqui resulta que a evolução do quadro dependa fundamentalmente da etiologia. Em geral, pode afirmar-se que as lesões estruturais cursam com maior mortalidade do que as não estruturais.

Sendo um estado transitório, geralmente de duração inferior a 2-4 semanas, período após o qual o paciente recupera (de forma completa ou com sequelas e incapacidade), morre ou evolui para estado vegetativo ou para estado de mínima consciência.

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ESTADO DE MAL EPILÉPTICO

Definição

Estado de mal epiléptico (EME), ou status epiléptico, é tradicionalmente definido como persistência ou recorrência de convulsões num período igual ou superior a 30 minutos, sem recuperação da consciência; de acordo com as recentes normas da Neurocritical Care Society entende-se por EME como a situação clínica em que existe actividade convulsiva clínica e/ou electroencefalográfica contínua com duração igual ou superior a cinco minutos, ou duas ou mais convulsões sequenciais sem recuperação do estado de consciência.

Diz-se que o EME é precoce quando a actividade convulsiva tem a duração de 5-30 minutos, e que é refractário quando a actividade convulsiva tem uma duração superior a 30 minutos, ou persiste após administração de dois ou mais anticonvulsantes em doses adequadas.

Dada a existência de vários estudos demonstrando que a maior duração do EME está associada a pior prognóstico, e que quanto mais precoce o tratamento do EME, maior a eficácia do seu controlo, deve instituir-se terapêutica agressiva na crise convulsiva que dura mais de 5 minutos.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

O EME é a emergência neurológica mais frequente na criança (18-23/100.000 crianças/ano), com maior incidência abaixo de um ano de idade. Em cerca de 10% das crianças a primeira convulsão apresenta-se como EME.

A avaliação inicial dos doentes com este tipo de problema deve focar-se na etiologia aguda tratável, presente em proporção variável, até 26% dos casos. As causas mais frequentes, sobretudo abaixo dos dois anos, são as infecções do sistema nervoso central (SNC).

Em cerca de 20% dos casos trata-se duma primeira manifestação de epilepsia, salientando-se que frequentemente o episódio é provocado por um factor extrínseco, como infecção (não do SNC), ou por alterações de medicação anterior.

A taxa de mortalidade do EME é variável de acordo com a duração do mesmo, estando descritos valores de 3% no EME precoce, e 19% no EME refractário.

Classificação

O Quadro 1 integra a classificação do EME, adaptada de fontes bibliográficas recentes.

QUADRO 1 – Classificação do estado de mal epiléptico

A. Estado de mal epiléptico não convulsivo

Crise generalizada
     – Ausência

Crise focal
     – Parcial complexa
     – Focal com sintomas autonómicos e sensitivos

B. Estado de mal epiléptico convulsivo

Crise focal motora (epilepsia parcial contínua)

Crise generalizada
     – Mioclónico
     – Clónico
     – Tónico

Crise mista
     – Tónico-clónico

Classificação

QUADRO 2 – Etiologia do EME na idade pediátrica

Etiologia
    • (45-58%) Criptogénica
    • (19-44%) Etiologia aguda neurológica: alterações do equilíbrio hidro-electrolítico, causa traumática, infecciosa, tumoral, metabólica ou tóxica
    • (11-25%) Doença neurológica crónica

Até ao 1º mês de vida

    • Lesão durante o parto (encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI), hemorragia)
    • Anomalias congénitas
    • Infecção (meningite)
    • Doenças metabólicas e desequilíbrios electrolíticos (hipoglicemia, hipocalcemia, hiponatremia, lipidoses, aminoacidúrias)

≤ 6 anos

    • Convulsão febril (3 meses – 6 anos)
    • Lesão durante o parto (EHI, hemorragia)
    • Infecção do SNC
    • Doenças metabólicas
    • Trauma
    • Síndromas neurocutâneas
    • Doenças cerebrais degenerativas
    • Tumores
    • Malformações vasculares cerebrais
    • Epilepsia sem terapêutica adequada
    • Desequilíbrios electrolíticos (hipo ou hipernatremia, hipercalcemia)

> 6 anos

    • Epilepsia
    • Trauma
    • Infecção
    • Lesão durante o parto
    • Doenças cerebrais
    • Encefalite
    • Tumores
    • AVC (remoto ou agudo)
    • Hemorragia subaracnoideia
    • Tóxicos
    • Desequilíbrios electrolíticos
    • Encefalopatia hepática

Etiopatogénese

A convulsão é uma descarga eléctrica súbita, paroxística e auto-alimentada de um grupo de neurónios, podendo levar à morte celular. As manifestações clínicas dependem do local onde se inicia a descarga, da velocidade de recrutamento dos neurónios vizinhos, e do modo como aquela se propaga no SNC.

Os factores etiológicos são discriminados no Quadro 2, sendo de salientar que em cerca de 45-58% dos casos não é possível identificar tal factor, o que corresponde às chamadas situações criptogénicas. Dum modo geral pode afirmar-se que a etiologia é diversa e variável consoante a idade, o que determina significativamente o prognóstico.

À medida que o córtex cerebral evolui (da imaturidade do recém-nascido até ao córtex com maturação mais avançada, próprio da criança mais velha), o tipo de convulsões também varia com a idade.

A repercussão a nível hemodinâmico e bioquímico pode sistematizar-se em duas fases:

  • Nos primeiros 30 minutos há um aumento da frequência cardíaca, da frequência respiratória e da pressão arterial, assim como um aumento do consumo de oxigénio, do fluxo cerebral, do lactato sérico, da glicemia e do potássio;
  • Numa segunda fase, após aquele período de tempo, há uma diminuição dos referidos parâmetros hemodinâmicos, podendo ocorrer a lesão irreversível do neurónio e a morte celular, como resultado da alteração dos canais de cálcio, da permeabilidade da membrana celular e do consequente edema celular.

Diagnóstico

O algoritmo diagnóstico deve incluir uma anamnese sucinta orientada para o diagnóstico etiológico da convulsão, bem como uma investigação etiológica ajustada às particularidades de cada caso. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Abordagem diagnóstica do EME

Anamnese

Crise

    • História de epilepsia
    • Início e circunstâncias da crise
    • Duração da crise antes da observação médica
    • Partes do corpo envolvidas
    • Natureza dos movimentos
    • Incontinência
    • Cianose (perioral, facial)
    • Estado mental após a crise

Etiologia

    • Febre
    • Infecção ou doença do SNC
    • TCE recente ou remoto
    • Intoxicação ou exposição a tóxicos
    • Doença concomitante
    • Encefalite
    • Doença metabólica

Antecedentes

    • Antecedentes familiares
    • Gravidez
    • Parto
    • Desenvolvimento psicomotor e estaturo-ponderal
    • Doenças anteriores/crónicas
    • Epilepsia
    • Convulsão febril
    • Doença metabólica/genética
Exame objectivo

Características da crise
Alteração do estado de consciência
Há manifestações motoras?
TIPO: Convulsões tónico-clónicas rítmicas, convulsão tónica persistente, automatismos (movimentos de mastigação, gestuais, piscar dos olhos, grito)
LOCALIZAÇÃO: focais ou generalizadas
Há manifestações sensitivas?

Lesões associadas
Lesões associadas: laceração dos bordos da língua
Luxações articulares (ombro)
Sinais de traumatismo (craniano e/ou facial)

Evidência de lesão intracraniana
Hematoma, deformidade craniana, alterações no exame neurológico, sinais de HIC

Sinais de doença concomitante
Febre, dificuldade respiratória, cianose, sinais de meningite ou sépsis, alterações cutâneas (petéquias, púrpura, vesículas, má perfusão periférica)

Exames complementares

Dados laboratoriais

    • Hemograma
    • Glicemia
    • Função renal
    • Ionograma
    • Calcemia
    • Magnesiemia
    • Função hepática
    • Doseamento dos antiepilépticos (se doente com epilepsia)
    • Tóxicos
    • Pesquisa de doença: infecciosa, metabólica
    • Exames culturais (hemocultura, urocultura, cultura LCR)
    • Punção lombar
      • Se suspeita de infecção do SNC
      • Protelar se suspeita de lesão estrutural/hipertensão intracraniana (HTIC), mas, se probabilidade de infecção, iniciar de imediato antibioticoterapia empírica

Neuro-imagiologia

    • Crise convulsiva de novo, especialmente se em apirexia
    • Ausência de causa óbvia de EME
    • Défices neurológicos focais
    • Epilepsia refractária
    • Alteração do estado de consciência, com ou sem história de intoxicação, febre, TCE recente, cefaleia prévia persistente, neoplasia, anticoagulação, SIDA

*TAC-CE: mais sensível para hemorragia nas primeiras horas; mais facilmente disponível na urgência

*RM-CE

Electroencefalograma

    • Não é necessário no serviço de urgência para EME convulsivo generalizado
    • Indicações para EEG urgente:
    • Alteração do estado de consciência persistente inexplicado (excluir EME não convulsivo)
    • Paralisia neuromuscular
    • EME refractário com terapêutica anticonvulsante em doses elevadas
    • EME duvidoso (excluir pseudo-convulsões)

TRATAMENTO

A abordagem terapêutica do EME e EME refractário é ilustrada no Quadro 4.

QUADRO 4 – Tratamento do EME e do EME refractário

Tratamento EME
Avaliação inicial
    1. Confirmar a convulsão
    2. Verificar o tipo de convulsão
    3. Registar o tempo de actividade convulsiva
    4. Ressuscitação:
      A – Assegurar a via aérea: posicionamento, aspiração de secreções, coadjuvantes da via aérea
      B – Estabilizar ventilação: oxigénio suplementar por máscara (concentração de 100%), ponderar entubação orotraqueal
      C – Manter circulação (dois acessos venosos periféricos; iniciar soro isotónico glicosado para 80% das necessidades)
    5. Monitorizar sinais vitais; ponderar descompressão gástrica com SNG
    6. Avaliação da glicemia capilar e correcção dos desequilíbrios metabólicos e hidro-electrolíticos
    7. Administração de antipirético se necessário
Sem acesso IVCom acesso IV
DIAZEPAM 0,5 mg/kg rectal (máx. 10 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2 mg/kg IM (máx. 6 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2 mg/kg intranasal (máx. 10 mg/dose)
MIDAZOLAM 0,2-0,5 mg/kg bucal (máx. 10 mg/dose)
DIAZEPAM 0,1-0,3 mg/kg IV lento
(3-5 minutos; máx. 10 mg/dose) 
Não cede em 5 minutos
2ª administração de benzodiazepina
Não cede em 5 minutos
FENITOÍNA 20 mg/kg IV em 15-20 minutos (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min, pura ou diluída em soro fisiológico)
Não cede em 10 minutos
FENOBARBITAL 20 mg/kg IV (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min)
Não cede 10 minutos após administração de fenobarbital (ou ≥ 30 minutos após o primeiro fármaco administrado)

EME REFRACTÁRIO
30 minutosMedidas gerais e investigação de emergência

Se UCIP não disponível (até haver vaga): 

FENOBARBITAL 20 mg/kg IV (máx. 1 g; velocidade de administração ≤ 1 mg/kg/min)
Pode repetir bolus de 5-10 mg/kg cada 15-20 minutos; aos 30-40 mg/kg de dose total pode haver necessidade de entubação

LEVETIRACETAM 20-30 mg/kg (velocidade de administração ≤ 5 mg/kg/min) – considerar nos casos de insuficiência renal, doença hepática ou metabólica, coagulopatias e crianças sob quimioterapia 

VALPROATO DE SÓDIO 20 mg/kg (velocidade de administração ≤ 3 mg/kg/min) – particular atenção: se crianças < 2 anos, doença hepática ou metabólica e coagulopatias

Ventilação mecânica

Intensificar suporte hemodinâmico (poderá haver necessidade de drogas vasopressoras)

Se houver sinais de hipertensão intracraniana, tratar em conformidade

Manter anestesia até 12-24 horas depois da última convulsão clínica e/ou electroencefalográfica

Optimizar tratamento de manutenção com anticonvulsante

Monitorização electroencefalográfica contínua

Tratar outras complicações do EME: mioglobinúria, hiperuricemia e hipertermia

 

≥ 30 minutos

MIDAZOLAM IV

Bolus de 0,5 mg/kg seguido de perfusão a 2 mcg/kg/min

Se persistência da convulsão:
bolus de 0,5 mg/kg
e aumentar perfusão para 4 mcg/kg/min

Após 5 minutos:
Bolus de 0,5 mg/kg
e aumentar midazolam 4 mcg/kg/min cada 5 minutos até máximo de 32 mcg/kg/min 

Se ausência de convulsões nas últimas 24-48 horas: reduzir gradualmente perfusão de midazolam 1 mcg/kg/min cada 15 minutos

TIOPENTAL IV

Bolus de 2-4 mg/kg (velocidade de administração £ 50 mg/min) seguido de perfusão a 0,5-5 mg/kg/h

Se persistência da convulsão:
Aumentar o ritmo 0,5-1 mg/kg/h a cada 12 horas
(Parar fenobarbital e perfusão de midazolam após início de tiopental)

PENTOBARBITAL IV

Bolus de 5-15 mg/kg (velocidade de administração £ 50 mg/min), seguido de perfusão a 0,5-5 mg/kg/h

Se persistência da convulsão
:
Aumentar o ritmo 0,5-1 mg/kg/h a cada 12 horas
(Parar fenobarbital e perfusão de midazolam após início de pentobarbital)

Se ausência de convulsões nas últimas 24-48 horas:
Reduzir gradualmente o fármaco iniciado, 25% a cada 12 horas
Reiniciar fenobarbital durante a redução

Se recorrência de convulsões no desmame: reiniciar midazolam, tiopental ou pentobarbital

PROPOFOL IV (> 5 anos)

Bolus de 3-5 mg/kg, seguido de perfusão 1-15 mg/kg/h
A perfusão do propofol deve ser reduzida para 50% 12 horas após o controlo das crises (a suspensão rápida pode induzir convulsões)
Atenção à síndroma de infusão do propofol

Outros tratamentos de acordo com quadro clínico

VALPROATO DE SÓDIO: EM de ausências, EM mioclónico, EM por suspensão de VPA que fazia previamente e EM refractário

PIRIDOXINA: Bolus IV/IM 50-100 mg em crianças com menos de 2 anos; manutenção: 50-200 mg PO/dia

HIPOGLICEMIA:
RN: bolus IV glicose 10% 2-4 ml/kg em 2-3 min seguido de perfusão de glicose 6-8 mg/kg/min
Criança: bolus IV glicose 10% 2,5-5 ml/kg ou glicose 30% 2 ml/kg em 2-3 min seguido de perfusão de glicose a 5 mg/kg/min
Reavaliar 30/30 minutos e, se hipoglicemia, repetir bolus e aumentar perfusão
COMA ALCOÓLICO: TIAMINA 100 mg IM
INTOXICAÇÃO POR OPIÓIDES: NALOXONA IV lento 0,1 mg/kg/dose; repetir cada 5-10 minutos se ausência de resposta

Tratamento de manutenção (prevenção de recorrências)
FENITOÍNA 5-8 mg/kg/dia, 12/12 horas
VALPROATO DE SÓDIO 20 mg/kg/dia, 12/12 horas
FENOBARBITAL 3-5 mg/kg/dia, 12/12 horas

De acordo com estudos recentes em casos seleccionados, e em função de estudos experimentais, a hipotermia durante tempo variável (32-35ºC) poderá ser também uma opção nos casos refractários.

Prognóstico

O prognóstico depende da etiologia, da duração das crises (se duração superior a uma hora o risco de morbilidade é ~50%, variando desde défice neurológico ligeiro, como hemiparesia, síndroma extrapiramidal, até insuficiência intelectual profunda e estado vegetativo), das complicações hemodinâmicas, metabólicas e hidro-electrolíticas.

Através de estudos por RM-CE comprovou-se sobretudo em crianças com idade < 1 ano, que proporção significativa de casos se relaciona com lesão do hipocampo com atrofia, associada a disgenesia cerebral prévia.

A terapêutica anticonvulsante adequada e atempada, minorando a duração do EME, constitui o principal factor com influência no referido prognóstico.

O estado de mal epiléptico é uma emergência médica. As medidas iniciais de suporte ventilatório, hemodinâmico e metabólico, associadas à terapêutica adequada das convulsões e da sua causa permitem, não só diminuir a mortalidade, como a morbilidade.

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REANIMAÇÃO CARDIORRESPIRATÓRIA

Definições e importância do problema

Entende-se por reanimação cardiorrespiratória (RCR) o conjunto de técnicas que se aplicam a doentes em paragem respiratória ou cardiorrespiratória.

Em idade pediátrica, define-se paragem cardiorrespiratória (PCR) pela verificação de, pelo menos, um dos seguintes parâmetros:

  1. Interrupção da respiração e circulação; a este evento, que pode ser reversível, associa-se como consequência, estado de inconsciência, apneia e ausência de pulso (palpação em artéria central);
  2. Interrupção da respiração com bradicárdia (frequência cardíaca < 60 batimentos/minuto com pulso detectável), associada a sinais de circulação ineficaz apesar do suprimento de oxigénio e ventilação; trata-se da situação mais frequente;
  3. Actividade eléctrica detectável no monitor, mas sem pulso palpável (actividade eléctrica sem pulso ou AESP).

A incidência de PCR é cerca de 12/1 milhão de habitantes com menos de 18 anos. Na idade pediátrica, entre 45-70% dos casos de paragem cardiorrespiratória surge em menores de 1 ano de idade.

Os procedimentos e atitudes a realizar com carácter de emergência para tentar reverter a PCR, imprescindíveis para salvar a vida em perigo iminente, poderão ser realizados:

  1. Com o mínimo de meios disponíveis, não invasivos, em geral fora do ambiente hospitalar (na comunidade) utilizando determinados gestos básicos imprescindíveis para salvar a vida, como garantir a permeabilidade da via aérea, ventilar boca a boca e, se necessário, massagem cardíaca; é o conceito de RCR básica ou suporte básico de vida/SBV (cuja execução implica o conhecimento, treino e prática de atitudes correctas de imediato) que, em geral, implica continuidade com medidas mais sofisticadas por técnicos diferenciados;
  2. Com a utilização de equipamento de reanimação (entubação traqueal, ventilação, desfibrilhação, fármacos) e que deve ser efectuada por pessoal com formação específica; é o conceito de suporte avançado de vida/SAV.

Em circunstâncias especiais poderá ser necessário continuar as medidas de suporte avançado de modo prolongado em função do contexto clínico; trata-se do chamado suporte prolongado de vida/SPV.

Com a RCR pretende-se garantir, tanto quanto possível, a perfusão sanguínea e oxigenação cerebral até à recuperação da função cardiorrespiratória, tendo em consideração que a tolerância das células cerebrais à isquémia é muito limitada (cerca de 3-4 minutos). De facto, com as manobras correctas de SBV é possível promover uma oxigenação de emergência cerebral e de outros órgãos vitais, até haver condições para a realização do SAV.

Uma vez que o prognóstico da paragem cardiorrespiratória é, em princípio, reservado, sobretudo se prolongada, assumem a maior importância a prevenção, assim como a necessidade de formação básica em SBV de todos os cidadãos.

O objectivo deste capítulo é a descrição sucinta dos procedimentos a realizar no âmbito da RCR básica (SBV) e do SAV (sem pormenorizar técnicas específicas como entubação traqueal e ventilação mecânica); chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de os conhecimentos básicos serem completados com indispensável treino de gestos e atitudes em modelos ou manequins, exequível com o apoio de formadores experientes.

Etiopatogénese

Na maioria dos casos de paragem cardíaca no adulto, a causa é primariamente cardíaca: fibrilhação ventricular (FV) e taquicardia ventricular sem pulso (TVSP).

Pelo contrário, na idade pediátrica, a causa mais frequente (~95%) é a hipóxia resultante de falência respiratória de etiopatogénese diversa (respiratória ou extra-respiratória, designadamente por depressão do SNC). A falência circulatória como causa (por sépsis, choque ou patologia cardíaca primária) é, efectivamente muito mais rara (correspondendo a cerca de 5%), embora seja reconhecida frequência crescente de situações de paragem cardíaca súbita explicáveis por FV e taquicárdia ventricular sem pulso (TVSP) atribuíveis a patologia cardíaca primária subjacente (como miocardiopatia hipertrófica, síndroma de QT longo), drogas ou miocardite, entre outras, com implicação na abordagem imediata.

Em 90% das PCR na criança ocorre assistolia.

Sistematização

Para que a RCR seja eficaz, torna-se necessário o cumprimento de certos passos em sequência lógica, o que tem implicações importantes, quer em termos de treino/aprendizagem, quer em termos organizativos no âmbito dos cuidados à comunidade:

  1. Diagnóstico de PCR no contexto de doente que pareça inconsciente;
  2. Início dos procedimentos de SBV em que são utilizados métodos não invasivos;
  3. Activação do sistema de emergência médica (contacto solicitando apoio – o designado alerta);
  4. Entubação traqueal assegurando via aérea;
  5. Procedimento de desfibrilhação nos casos de FV/TVSP;
  6. Administração de fármacos.

As especificidades anatomofisiológicas da idade pediátrica e as diferenças quanto a etiopatogénese da PCR relativamente ao adulto, obrigam a que o esquema-base de gestos a efectuar seja diferente conforme a idade (excluindo o período neonatal).

Assim:

  • No lactente (> 28 dias até 1 ano) e na criança até à puberdade inicia-se de imediato a reanimação;
  • A partir da puberdade, procede-se primeiramente ao alerta por eventual necessidade de desfibrilhação;
  • Em qualquer grupo etário, nos casos de doença cardíaca conhecida, deve dar-se o alerta em primeiro lugar; nos casos de afogamento e trauma, inicia-se o SBV e dá-se o alerta de seguida;
  • Quando existem vários reanimadores, a RCR é iniciada e mantida, e 1 dos reanimadores dá o alerta.

No que respeita à técnica de RCR tem-se em conta igualmente tal subdivisão etária.

1. RCR BÁSICA (SBV)

Generalidades

O SBV integra o conjunto de manobras emergentes destinadas à reversão da PCR ou manutenção das funções vitais, utilizando meios não invasivos. Por razões didácticas, é clássico utlilizar a sigla derivada do inglês ABC: A-airway; B-breathing; C-circulation. Concretizando, eis as manobras:

A – Permeabilização da via aérea;
B – Ventilação boca-nariz e boca; boca-boca;
C – Massagem cardíaca externa.

O SBV inclui ainda as manobras de desobstrução da via aérea por corpo estranho.

Para a eficácia da reanimação importa que o doente se encontre sobre uma superfície dura (tábua, pavimento).

O suporte básico de vida inicia-se com os 3 “S”: Safety (segurança), Stimulate (estimular) e Shout for help (pedir ajuda).

Verificação de condições de segurança

O reanimador ou equipa de reanimação não devem correr riscos; se o ambiente for adverso (acidente na via pública, incêndio, sismo), a regra é que as referidas manobras sejam aplicadas em segurança.

A vítima deverá ser mobilizada se o local for considerado perigoso ou se a posição em que se encontra comprometer a realização das manobras.

Verificação do estado de consciência e pedido de ajuda

O doente deve ser estimulado (estímulos auditivos e tácteis).

Em caso de suspeita de traumatismo da coluna cervical, assim como no lactente, o doente não deve ser sacudido nem abanado, e todas as manobras deverão ser efectuadas com imobilização cervical no primeiro caso.

Se houver resposta com movimentos ou vocalizações, coloca-se o doente em posição lateral de segurança; ou, no caso de doentes mais pequenos, em posição de conforto, avaliando-se a situação de modo continuado. (Figura 1)

FIGURA 1. Posição lateral de segurança

Se não houver resposta, deve efectuar-se o primeiro pedido de ajuda (gritar por ajuda, ligar para o 112), não devendo o reanimador nesta fase abandonar a vítima

Abertura da via aérea

Após o posicionamento em plano duro, deve realizar-se a abertura da via aérea com as seguintes manobras:

Manobra de extensão da cabeça (fronte-mento)

Sempre que não haja suspeita de traumatismo cervical, efectua-se a extensão do pescoço, colocando cuidadosamente a mão sobre a fronte. No lactente, pela proeminência do occipital quando aquele se coloca sobre uma superfície plana, origina logo uma ligeira extensão. Em seguida levanta-se o mento, colocando a ponta dos dedos da outra mão debaixo do mesmo. No lactente, a abertura da via aérea realiza-se com a cabeça em posição neutra (eixo orelhas alinhadas com o eixo do tórax) e na criança com extensão cervical.

Precauções:

  • Não fechar a boca;
  • Não exercer pressão sobre os tecidos moles do pescoço para não provocar a compressão da via aérea, especialmente em lactentes. (Figura 2)

FIGURA 2. Abertura da via aérea (manobra fronte-mento)

Manobra de subluxação da mandíbula (manobra tripla)

Na suspeita de traumatismo crânio-cervical, puxa-se para cima a mandíbula com uma mão, enquanto se fixa a cabeça com a outra para impedir que a coluna se desloque. Pode também efectuar-se a manobra colocando dois ou três dedos de cada mão nos ângulos da mandíbula e levantá-la, para cima e para a frente, enquanto se fixa o pescoço. (Figura 3)

Respiração

Verificar a respiração

Mantendo a abertura da via aérea, o reanimador aproxima o ouvido e a face da boca da vítima para:

  • VER (V) se há movimentos torácicos ou abdominais;
  • OUVIR (O) se existem ruídos respiratórios;
  • SENTIR (S) se o ar golpeia a face.

Esta operação, designada pela sigla VOS, deve realizar-se, no máximo, em 10 segundos.

FIGURA 3. Subluxação da mandíbula

Ventilar

A ventilação artificial é realizada com o ar expirado pelo reanimador:

  • No lactente: boca – boca e nariz;
  • Na criança e adulto: boca – boca, com oclusão do nariz do doente com indicador e polegar.
Procedimento
  • 2 insuflações com expiração forçada de modo a provocar expansão do tórax do doente; se tal não acontecer, reabrem-se as vias aéreas e reinicia-se a ventilação até 5 insuflações, de modo a conseguir 2 insuflações eficazes (lentas, em cerca de 1 segundo). Na ausência de expansão do tórax, ou se esta for insuficiente, deve rever-se o posicionamento do doente, verificando a abertura da via aérea;
  • O reanimador, observando a expansão do tórax, insufla o seu ar expirado tanto quanto baste para garantir a referida expansão torácica (evitando insuflação excessiva pelo risco de barotrauma e de distensão gástrica);
  • Mantendo a extensão da cabeça e a elevação do mento, a boca do reanimador é afastada da boca da criança após verificação da expansão torácica desejada, verificando-se a seguir que o tórax se retrai (coincidindo com o ar expirado pelo doente);
  • De imediato repete-se a manobra de insuflação. (Figura 4)

 FIGURA 4. Ventilação com ar expirado

Desobstrução da via aérea em caso de corpo estranho

Se o doente estiver consciente

  • Se tosse eficaz, encorajar a tosse e manter vigilância.
  • Se tosse ineficaz:
    • O lactente (idade < 1 ano), é colocado em decúbito ventral sobre o antebraço do reanimador, segurando-o pela mandíbula com a cabeça ligeiramente estendida, em nível inferior ao do tronco. Na zona interescapular, com a base da outra mão, efectuam-se 5 pancadas rápidas; em seguida coloca-se o lactente em decúbito dorsal, prendendo a cabeça com a mão e em posição mais baixa que o tronco. Efectuam-se 5 compressões torácicas com os dedos indicador e médio, ao nível da região médio-esternal. (Figura 5)
    • Na criança com idade > 1 ano, efectua-se a manobra de Heimlich: ajoelhar ou ficar de pé por trás da criança e aplicar o punho de uma mão sobre o epigastro e, sobrepondo a outra mão, fazer movimentos de pressão para trás e para cima, até 5 vezes. (Figura 5)

Se o doente estiver inconsciente

  • Colocar a criança sobre uma superfície dura, abrir a boca e procurar qualquer objecto evidente que se possa remover (não tentar às cegas); abrir a via aérea e tentar 5 insuflações e, se não houver resposta, iniciar compressões torácicas sem verificação da circulação, ou seja SBV.

Circulação

Verificar a circulação

A palpação do pulso central deve fazer-se de modo rápido, em tempo < 10 segundos:

  • Na artéria braquial (no lactente);
  • Na artéria carótida (na criança e adolescente/adulto);
  • Na artéria femoral (em qualquer faixa etária).

Se houver pulso arterial central, continua-se a ventilação com uma frequência de 12-20 ciclos/minuto, consoante o grupo etário.

Se não houver pulso arterial central, ou se houver dúvidas quanto a tal, inicia-se a massagem cardíaca externa coordenada com a ventilação.

FIGURA 5. Desobstrução por corpo estranho

Massagem cardíaca externa

Procedimento
  • Manter a cabeça em posição adequada para a ventilação (ver atrás); posição das mãos do reanimador:

→ Lactente (< 1 ano): com as pontas dos dedos médio e anelar do reanimador sobre o esterno, um dedo abaixo da linha intermamilar. Esta é a técnica preferível quando há um só reanimador (Figura 6). Outra variante (com dois reanimadores e em geral na idade < 3 meses) é abraçar o tórax com as duas mãos e fazer compressão com os polegares sobre o esterno logo abaixo da linha intermamilar. Os outros dedos funcionam como plano duro. (Figura 7)
→ Criança (1 ano – puberdade): a base de uma das mãos do reanimador sobre o esterno, dois dedos acima do apêndice xifoideu. Compressão com o membro superior não flectido, utilizando as mãos sobrepostas, com os dedos entrelaçados ou não, exercendo-se a força apenas na base da mão, aproveitando o peso do reanimador na vertical e a linha dos ombros do reanimador paralela ao eixo da vítima. (Figura 8)
→ A partir da puberdade: sobre a metade inferior do esterno, compressão utilizando as mãos sobrepostas, com os dedos entrelaçados ou não, exercendo-se a força apenas na base da mão, aproveitando o peso do reanimador na vertical.

FIGURA 6. Massagem cardíaca externa (no lactente)

FIGURA 7. Massagem cardíaca externa (no lactente – técnica do abraço)

FIGURA 8. Massagem cardíaca externa em criança (de 1 ano à puberdade)

A compressão deve durar 50% do ciclo (100/minuto) de modo que o tórax volte à sua posição normal, nunca se retirando a mão da zona de compressão, excepto se for necessário ao reanimador também efectuar a ventilação. A profundidade da compressão deve ser sempre cerca de 1/3 da altura (diâmetro ântero-posterior) do tórax, o que varia, segundo a idade, entre 4 e 5 cm. (Figura 8)

Quer com a intervenção de um, quer com a intervenção de dois reanimadores, a frequência da compressão cardíaca deve ser ~100/minuto em todos os grupos etários, com uma relação compressão/ventilação 15/2 no lactente e criança até à puberdade e 30/2 em idades ulteriores.

Esta última relação (30/2) também poderá ser utilizada em qualquer idade se o profissional de saúde estiver sozinho.

Avaliação da RCR

A RCR na criança é efectuada durante 1 minuto; ao cabo deste tempo reavalia-se o pulso: no caso de não ter sido eficaz, abandona-se momentaneamente a vítima para solicitar ajuda (alerta).

Se a vítima for um lactente muito pequeno, deve ser tentado o transporte e a reanimação simultaneamente, levando-o, e fazendo do antebraço do reanimador o plano duro.

As avaliações periódicas (pulso e a respiração) não devem exceder 10 segundos. Por outro lado, deve manter-se o SBV até à chegada da ajuda solicitada, a vítima recuperar, ou o reanimador ficar exausto.

As Figuras 9, 10 e 11 resumem os passos fundamentais do SBV, incluindo nos casos de eventual obstrução por corpo estranho.

2. RCR AVANÇADA (SAV)

Generalidades

A RCR avançada (o chamado SAV) compreende um conjunto de procedimentos invasivos que se aplicam na sequência do SBV, para o restabelecimento das funções respiratória e cardíaca. Como foi anteriormente referido, para a sua efectivação torna-se imprescindível a existência de equipa de profissionais (médicos, enfermeiros, paramédicos, etc.) com formação específica e experiência, assim como meios técnicos invasivos (equipamento, incluindo laringoscópios para entubação traqueal, ventiladores com tubagens, tubos traqueais ou alternativas, desfibrilhadores, fármacos, etc.).

Sendo essencial o diagnóstico do tipo de ritmo cardíaco de paragem (FV/TVSP, assistolia/AESP) (Figura 12), proceder a SAV em ambiente hospitalar implica a obediência a um conjunto de regras importantes que devem estar na mente de todos os intervenientes bem treinados, com funções bem definidas, no pressuposto de que muitas manobras terão que ser feitas concomitante e sincronizadamente por mais do que um reanimador:

  • Registar a hora da PCR e tempos de RCR;
  • Identificar o coordenador da reanimação;
  • Posição correcta do doente em decúbito dorsal em leito duro para garantir a eficácia da massagem cardíaca;
  • Garantir que o “carro de urgência” com instrumentos e fármacos para a reanimação seja colocado à cabeceira do doente, ao mesmo tempo que se aplicam eléctrodos no doente para ligação ao monitor cardíaco, assim como oxímetro de pulso;
  • O SAV deve ser aplicado na sequência do SBV, sem hiatos na actuação; ou seja, para iniciar e concretizar os procedimentos do SAV, não se devem interromper as manobras de reanimação básica mais do que 30 segundos para entubação traqueal. (Figuras 12, 13 e 14)

Quando houver via aérea segura (TET) as compressões serão contínuas, mantendo a mesma frequência de compressão (100 pm) e as ventilações entre 12 e 20 pm.

FIGURA 9. Suporte Básico de Vida Pediátrico (segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 10. Suporte Básico de Vida de Adulto com desfibrilhação automática externa/DAE (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 11. Aspiração de corpo estranho

FIGURA 12. Suporte Avançado de Vida Pediátrico (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015)

FIGURA 13. Suporte Avançado de Vida (Segundo o Conselho Português de Reanimação e European Resuscitation Council, Outubro de 2015). PCI= Percutaneous Coronary Intervention; RCP= Reanimação cardiopulmonar

FIGURA 14. PCR- Resumo da actuação nos casos de ritmos não desfibrilháveis. (Ver Figura 18)

Via aérea e ventilação

No âmbito do SAV, quer a técnica para se obter uma via aérea segura, quer o tipo de suporte ventilatório utilizado devem atender às características da criança e às capacidades do reanimador.

Ventilar com ressuscitador manual e oxigénio

Em primeiro lugar deve proceder-se à abertura da via aérea como descrito anteriormente. Podem ser utlilizados adjuvantes para este processo, como os tubos orofaríngeos ou de Guedel (tamanho adequado: distância entre os incisivos e o ângulo da mandibular) e os tubos nasofaríngeos (tamanho adequado: distância entre a asa do nariz e o ângulo da mandíbula).

Após a abertura da via aérea, deve iniciar-se ventilação com ressuscitador manual com máscara adequada à idade e oxigénio. A máscara deve ser transparente para permitir visualizar o eventual aparecimento de qualquer material na boca (sangue, secreções, alimentos, etc.). O ressuscitador manual deve ter um volume superior a 500 mL, concentrador de O2 e estar ligado a uma fonte de oxigénio permitindo débito de 15 L/minuto para se obter Fi O2 ~100%.

A entubação endotraqueal (orotraqueal), constitui o procedimento ideal para garantir a protecção da via aérea. (Figura 15)

FIGURA 15. Modo de imobilizar o lactente para proceder à laringoscopia e ulterior entubação traqueal

Dum modo geral os TET dividem-se em sem cuff e com cuff; os TET com cuff podem ser utilizados em qualquer idade excepto no período neonatal.

QUADRO 1 – Tubo endotraqueal (TET)

Tubo endotraqueal (TET):  cálculo para a escolha do calibre e profundidade de inserção (entubação orotraqueal)

→ TET sem cuff (se com cuff, subtrair 0,5):

RN de termo: TET 3,5
1 mês – 1 ano: 3,5-4,0
1-2 anos: 4,0-4,5
> 2 anos: diâmetro interno em mm = idade (anos)/4 + 4

→ Profundidade da inserção (entubação orotraqueal) em cm = (idade em anos/2) + 12 (a partir do lábio ou gengiva)

A posição intratraqueal do TET em emergência é verificada basicamente pela melhoria da saturação em O2 e expansão simétrica do tórax; posteriormente, através da auscultação bilateral das áreas axilares, da ausência de ruído de entrada de ar na auscultação do epigastro, da ausência de distensão gástrica, da detecção de CO2 exalado e, por fim, logo que possível, da radiografia do tórax póstero-anterior, será confirmada a posição ideal da extremidade do TET: ao nível da articulação esternoclavicular, 1-2 cm acima da carina.

Uma alternativa à entubação traqueal é a máscara laríngea, a qual não exige treino tão diferenciado como no primeiro caso, mas que também não protege totalmente a via aérea contra o risco de aspiração.

Em qualquer das opções, é fundamental garantir previamente ventilação e oxigenação (FiO2 100%) eficazes.

As situações de obstrução da via aérea superior poderão obrigar a efectuar de imediato a cricotirotomia de emergência (punção da membrana cricotiróide com cânula apropriada); não se dispondo desta, poderá utilizar-se um angiocateter (de calibre nº 14) que se conecta a um adaptador de TET nº 3 ou de 3 mm. (Figura 16)

FIGURA 16. Cricotirotomia

Acessos venosos

Devem ser tentados de imediato acessos venosos periféricos, não demorando mais de 60 segundos (cerca de 3 tentativas). Se tal não for conseguido, deve obter-se uma via alternativa: intra-óssea. Existem 3 tipos de dispositivos para punção intra-óssea: manual (ex. agulha IO Cook), automática por disparo (ex. Bone injection gun – BIG) e automática eléctrica (ex. EZ-IO).  O local de inserção mais utilizado em pediatria é a região tibial proximal (Figura 17). (consultar anexo para informação mais detalhada)

Como notas importantes, destaca-se que:

  • Já não é recomendada a via endotraqueal para a adiministração de fármacos;
  • A via intracardíaca para administração de fármacos nunca deve ser utilizada.

Desfibrilhação

A realização de desfibrilhação implica a observação do ritmo cardíaco no monitor electrónico ou no próprio desfibrilhador.

Tal procedimento deve ser iniciado de imediato, logo que se confirme FV ou TVSP. (Figura 18)

FIGURA 17. Punção intra-óssea (IO)

FIGURA 18. PCR- Resumo da actuação nos casos de ritmos desfibrilháveis.

De salientar que:

  • A desfibrilhação, em certas circunstâncias, poderá ser o primeiro acto no âmbito da RCR, caso possa ser executada nos primeiros 2 minutos após paragem cardíca súbita e presenciada por médico ou enfermeiro (a partir do 1 ano de idade);
  • Uma linha isoeléctrica detectada no visor do monitor poderá estar relacionada com contacto deficiente dos eléctrodos ou com um dos eléctrodos soltos – confirmar eléctrodos!

Há diversos tipos de desfibrilhadores; os que habitualmente se utilizam em meio hospitalar são os desfibrilhadores manuais bifásicos. O Quadro 2 sintetiza os passos fundamentais da técnica de desfibrilhação e a Figura 19 o modo de colocação das “pás” do desfibrilhador.

A intensidade do choque na criança é de 4 Joules/kg. Após a puberdade a dose é de 150-360 Joules, consoante o desfibrilhador (bifásico ou monofásico respectivamente). Desconhecendo-se o tipo de desfibrilhador aplicar-se-ão 200 Joules.

O chamado murro pré-cordial somente tem indicação na circunstância de se presenciar a paragem cardíaca e se não houver desfibrilhador para uso imediato, sendo improvável a sua eficácia se tiverem passado mais de 30 segundos.

FIGURA 19. Desfibrilhação: colocação das pás do desfibrilhador

QUADRO 2 – Técnica de desfibrilhação

    • Preparar as pás adequadas:
      < 10 kg → pás pediátricas;
      ≥ 10 kg → pás de adulto.
    • Pegar nas pás pelo cabo isolado.
    • Lubrificar as pás do desfibrilhador com gel condutor ou compressas embebidas em soro fisiológico, e evitar contacto entre si.
    • Marcar a potência pretendida.
    • Seleccionar o modo assíncrono.
    • Colocar as pás pressionando contra o tórax. Uma pá na zona infraclavicular paraesternal direita e a outra pá no ápex (abaixo e à esquerda do mamilo esquerdo). Na criança muito pequena as pás podem colocar-se na face anterior e posterior do tórax.
    • Avaliar a segurança da equipa (todas as pessoas devem afastar-se, afastar as fontes de oxigénio; afastar/secar superficies molhadas).
    • Confirmar ritmo desfibrilhável.
    • Disparar apertando simultaneamente os botões de ambas as pás.
    • Retomar massagem cardíca de imediato.

Farmacoterapia

Adrenalina

A adrenalina é o fármaco vasoactivo de eleição na RCR.

As suas indicações são: a assistolia, a actividade eléctrica sem pulso (AESP), sendo adjuvante na taquicárdia ventricular sem pulso (TVSP), e fibrilhação ventricular (FV).

A dose é 0,01 mg/kg por via intravenosa ou intra-óssea; tal corresponde a 0,1 mL/kg da diluição a 1:10000 (1 ampola de adrenalina 1:1000 <> 1 mg (1 ml) + soro fisiológico 9 ml para perfazer 10 ml de solução).

A partir da puberdade e no adulto a dose-padrão é de 1 mg não diluído (1 ampola 1 ml).

Antes e após a administração de adrenalina, tal como das outras drogas, deve “lavar-se” a via com soro fisiológico. Salienta-se que a adrenalina é inactivada em soluções alcalinas.

Amiodarona

Está indicada nas seguintes situações:

  • FV e TVSP;
  • FV e TVSP refractárias à adrenalina e ao 3º choque de desfibrilhação.

A dose de amiodarona é 5 mg/kg em bolus IV rápido, seguido de 2 minutos de SBV; após o início da puberdade emprega-se a dose de 300 mg.

Bicarbonato de sódio

O bicarbonato de sódio utiliza-se nos casos de acidose metabólica grave [pH < 7,2 e DB (défice de base) < 10 mmol/L] e PCR prolongada (10 minutos de RCR sem recuperação). Utiliza-se a dose de 1 mEq/kg (bicarbonato de sódio a 8,4%, 1 mL<> 1 mEq).

Cálcio

O cálcio, na forma de cloreto a 10% (sal com maior biodisponibilidade), ou de gluconato a 10%, tem como indicações PCR secundárias a hipocalcémia, hipercaliémia, hipermagnesiémia e sobredosagem de bloqueadores dos canais de cálcio.

  • Cloreto de cálcio a 10%: 0,2 mL/kg/dose;
  • Gluconato de cálcio a 10%: 0,3 mL/kg/dose em bolus lento.

Glicose

Nas situações de hipoglicémia administra-se glucose, evitando hiperglicémia. Utilizando a solução de dextrose a 10%, a dose é: 5 mL/kg/dose.

Atropina

A atropina somente tem indicação nas situações de bradicárdia por reflexo vagal, ou na profilaxia destas. A dose é 0,02 mg/kg/dose via IV, intra-óssea ou endotraqueal.

Nota importante: dose mínima 0,1 mg; dose máxima 0,5 mg.

Lidocaína

A lidocaína está indicada nas seguintes situações: FV e TVSP, como alternativa à amiodorona. A dose é 1 mg/kg/dose em bolus (deve usar-se com precaução nas crianças com disfunção hepática).

ECMO (Extra Corporeal Membrane Oxygenation life support)

Esta técnica de suporte de vida extracorporal deve ser considerada em crianças em PCR refractária a RCP convencional com uma causa potencialmente reversível, se a paragem ocorrer numa unidade assistencial com equipa experimentada e recursos indispensáveis.

Cuidados pós-reanimação

Os objectivos principais são reverter lesões cerebrais e disfunção miocárdica, tratar a resposta sistémica à isquémia/reperfusão e doenças precipitantes.

  • Disfunção miocárdica: manter boa perfusão de órgãos, com PA sistólica >P5 de acordo com a idade.
  • Oxigenação e ventilação: manter normoxémia e normocápnia (salvo situações especiais como cardiopatia cianótica ou ARDS/síndroma de dificuldade respiratória tipo adulto).
  • Controlo glicémico: evitar hiperglicémia e hipoglicémia.
  • Temperatura: evitar hipertermia e hipotermia graves. Hipotermia terapêutica versus normotermia controlada (ver seguidamente Notas importantes).

Notas importantes

 

Como principais causas reversíveis de PCR que devem ser corrigidas no decurso da RCR apontam-se:

  • 4 “H”: hpóxia, hipovolémia, hiper ou hipocaliémia/metabólico, hipotermia
  • 4 “T”: pneumotórax sob tensão, tamponamento cardíaco, tóxicos e tromboembolismo.

Durante a RCR usam-se fluidos intravenosos como veículo dos fármacos e manutenção do acesso venoso (soro fisiológico, lactato de Ringer, por ex.). A excepção é o quadro de choque em que se procede à expansão da volémia com o soro fisiológico na dose de 20 ml/kg em bolus inicial, ou ainda com concentrado eritrocitário nas situações acompanhadas de hemorragia aguda.

→ Sobre calibres e nomenclaturas de TET

  • TET sem cuff designado por 4 significa que o seu diâmetro interno é 4 mm.
  • As chamadas unidades French (F) representam o perímetro externo em mm.
  • A conversão de diâmetro interno em perímetro externo (ou Unidades F) depende da espessura de cada TET; com certa aproximação, pode obter-se pela equação: Unidades French (F) = (diâmetro interno x 4) + 2

→ Sobre actualização das normas da American Heart Association em 2019

  • Nos casos de paragem cardíaca fora do hospital, é razoável continuar a ventilação com máscara-balão até verificação de condições hospitalares para entubação traqueal.
  • É dada ênfase ao papel neuroprotector da hipotermia terapêutica e da normotermia controlada, chamando-se a atenção para a eventualidade de surgimento de febre por vezes acompanhando paragem cardíaca, coma e eventos hipóxico-isquémicos, com agravamento do prognóstico neurológico designadamente. Estes dados aplicam-se na idade pediátrica, incluindo o período neonatal.
  • Para além da prevenção da febre como medida terapêutica fundamental, o documento da AHA 2019 relata estudos realizados aplicando os seguintes protocolos, com as seguintes temperaturas programadas alvo:
    • Hipotermia terapêutica [32-34ºC à 2 dias; 36-37,5ºC à 3 dias]; ou
    • Normotermia controlada [36-37,5ºC à 5 dias]
  • No estado actual da investigação neste campo não foram verificadas diferenças significativas quanto a resultados (tempo de estadia em UCI, resultado neurológico a prazo e mortalidade).  

APÊNDICE

Em complemento do texto que integra este Capítulo, são apresentadas na parte final do 3º volume (Anexos) algumas tabelas utilizadas na UCIP do Hospital Dona Estefânia, elaboradas pelo Grupo de Formação em Reanimação Cardiorrespiratória do mesmo Hospital e autores deste capítulo.

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SERVIÇOS DE URGÊNCIA E EMERGÊNCIA. ASPECTOS ORGANIZATIVOS

Definições e importância do problema

A Organização Mundial de Saúde considera urgência toda a situação em que, na opinião do doente ou dos seus responsáveis, família ou outra entidade, são requeridos cuidados médicos imediatos. A Comissão Americana para a Medicina de Emergência Pediátrica definiu emergência sob o ponto de vista do utente (prudent-layperson laws): “todo o problema clínico de aparecimento súbito que se manifesta por sintomas suficientemente graves, incluindo dor de grande intensidade, para a qual o leigo prudente que possua conhecimentos médios sobre saúde e medicina, poderá com grande probabilidade esperar que, na ausência de avaliação médica, exista risco para a saúde da pessoa, ou perturbação grave de funções de órgão ou parte do corpo”. Há um grande componente subjectivo nestes conceitos, e uma situação considerada subjectivamente como urgência poderá vir a revelar-se como verdadeira urgência vital ou emergência, susceptível de assistência em serviços com características diversas, ou como não vital – a maioria. (Figura 1)

FIGURA 1. Urgência avaliada inicialmente segundo critérios subjectivos e evolução possível

No nosso País, a Comissão Técnica de Apoio ao Processo de Requalificação das Urgências (2007), estabeleceu as seguintes definições:

  • Urgências – todas as situações clínicas de instalação súbita em que existe o risco de falência de funções vitais;
  • Emergências – todas as situações clínicas de estabelecimento súbito em que existe, estabelecido ou iminente, o compromisso de uma ou mais funções vitais.

Sistema de cuidados de urgência e emergência

A filosofia de prestação de cuidados baseia-se num sistema que regula relações de complementaridade e de apoio técnico entre instituições hospitalares e não hospitalares, com graus de diferenciação diversos de modo a garantir o acesso atempado de todos os doentes aos serviços e unidades prestadoras de cuidados de saúde em função da patologia detectada. Estes sistemas deverão articular-se entre si explorando complementaridades e concentrando recursos humanos e técnicos, tendo em vista as necessidades reais das populações e a eficiência dos cuidados prestados.

Os utilizadores dos serviços de urgência têm características que os distinguem dos de outros serviços hospitalares:

  • A sua chegada não tem marcação;
  • A variabilidade das queixas e da gravidade é ampla;
  • O cuidado prestado é episódico;
  • O recurso ao serviço é muitas vezes inadequado.

De acordo com diversas estatísticas em contextos diversos, entre 20 e 80% das visitas de pacientes aos Serviços de Urgência (SU) pediátricos são motivadas por situações não urgentes. O seu atendimento deveria ter lugar nas instituições devotadas aos cuidados de saúde primários (CSP), o que não sobrecarregaria os SU hospitalares.

Uma vez que, dum modo geral, o cidadão comum e famílias não possuem conhecimentos sobre a orgânica e funcionamento dos serviços de saúde, surgem consequências dramáticas na organização e sustentabilidade dos SU na “pura e técnica” concepção do termo.

A Medicina de Urgência/Emergência, constituindo-se como paradigma actual para a resposta a essas necessidades, inclui diversas vertentes:

  • Triagem;
  • Avaliação médica de acordo com prioridade;
  • Prestação de cuidados (urgentes e emergentes em função do contexto clínico, incluindo lesões traumáticas);
  • Encaminhamento dos doentes para seguimento;
  • Transporte do doente grave ou com necessidades de cuidados específicos;
  • Formação própria;
  • Investigação básica e aplicada em aspectos clínicos, mas também de gestão e organização de recursos.

Sobre as vertentes Triagem e Transporte de doentes, as mesmas serão retomadas adiante.

Legislação sobre o Sistema Integrado de Emergência

O despacho nº 10319/2014 sobre o Sistema Integrado de Emergência Médica, que é omisso em orientações para o atendimento e seguimento de situações verdadeiramente não urgentes nos CSP, define a Rede de SU, respectivas responsabilidades e localizações da seguinte forma:

Serviços de Urgência Básica (SUB)

“O atendimento a crianças é da responsabilidade de Médicos e de Enfermeiros não diferenciados em Pediatria, os quais devem receber formação de modo a garantir as competências adequadas ao reconhecimento e abordagem de situações de doença grave, paragem cardíaca, abordagem da via aérea com adjuvantes, acesso vascular emergente e reconhecimento e abordagem inicial da paragem cardíaca em crianças.”

Em todos os SUB deve existir equipamento adequado às diferentes idades pediátricas, para utilização na abordagem correcta da via aérea básica e avançada, na obtenção de acesso vascular urgente e na monitorização em situações de doença grave ou paragem cardíaca; devem dispor de uma sala dedicada ao atendimento de crianças, e que permita, se necessário, a sua permanência para observação de curta duração em espaço separado do atendimento dos adultos. É igualmente considerada desejável a existência de espaços de admissão e salas de espera dedicados à idade.”

Serviços de Urgência Médico-Cirúrgica (SUMC) e Serviços de Urgência Polivalente (SUP)

O atendimento a crianças, da responsabilidade de Serviços de Urgências Pediátricas, deve ter instalações autónomas, incluindo admissão e áreas de espera.

Devem existir, nestas urgências, áreas adequadas a funcionar como salas de observação ou internamento de curta duração (incluindo o de foro ortopédico, cirúrgico e de outras especialidades de apoio). O atendimento deve abranger todos os pacientes em idade pediátrica independentemente da patologia apresentada, excepto nas situações inerentes ou consequentes à gravidez, as quais devem ser atendidas nos serviços de urgência obstétrica.

As Urgências Pediátricas devem funcionar como primeiro ponto de atendimento pediátrico especializado em situações urgentes e emergentes, com base numa lógica de proximidade e organização regional. Devem estar dotadas de canais de comunicação, ágeis e disponíveis, com os SUB e CSP da área, bem como com os serviços para os quais referenciam, nomeadamente Unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos e outras áreas de especialidade, tais como Cirurgia Pediátrica, Neurocirurgia e outras. A referenciação para estas Unidades, via transporte inter-hospitalar pediátrico, deve ser protocolada regionalmente e coordenada pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).

As urgências pediátricas de hospitais com SUMC ou SUP devem dispor da presença física permanente de, pelo menos, dois pediatras, um dos quais com formação em suporte avançado de vida pediátrico. Nos hospitais com SUMC, as crianças e jovens com patologia cirúrgica devem ser observados pelos especialistas que prestam cuidados na urgência de adultos, devendo ser protocolada a referenciação de situações clínicas que devam ser transferidas para um SUP Pediátrico.

Para além da disponibilidade dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica definidos para os SUMC ou SUP, as Urgências Pediátricas devem dispor de todos os equipamentos específicos da idade pediátrica necessários à abordagem avançada do paciente gravemente doente, traumatizado ou em paragem cardíaca.”

Serviços de Urgência Polivalente Pediátrica (SUPP)

O SUPP deve dispor de todos os recursos mínimos definidos para um SUP, e apoio em termos de diagnóstico e terapêutica e das diversas especialidades, incluindo Neurocirurgia, de Cirurgia Pediátrica e Cuidados Intensivos Pediátricos, local e permanente.

As equipas devem ainda ter formação adequada para que os SUPP funcionem como Centro de Trauma Pediátrico (CTP), devendo o SUPP estar preparado para o atendimento diferenciado de trauma grave, incluindo neurotrauma. O SUPP deve dispor de apoio fácil local ou com garantia de apoio efectivo das áreas de Cardiologia Pediátrica e Pedopsiquiatria. Tal apoio pressupõe a existência de normas rígidas exequíveis.

Triagem

A grande afluência de doentes aos SU em todos os países obrigou ao aperfeiçoamento das normas do atendimento, estabelecendo prioridades em função da gravidade. A finalidade última da triagem é prestar globalmente melhor serviço à comunidade, com rapidez, eficácia e eficiência proporcionais à gravidade. Para evitar iniquidades, estabeleceram-se critérios objectivos (de aplicabilidade, reprodutibilidade e validade), internacionalmente reconhecidos e já utilizados nos sistemas de triagem estruturados noutros Países.

Estes sistemas pressupõem obrigatoriamente os seguintes requisitos:

  • Definição de 5 níveis de prioridade (gravidade);
  • Definição de tempos máximos de espera aguardando observação médica de cada caso clínico previamente analisado;
  • Auditoria realizada por entidades externas.

A triagem é um processo dinâmico e exigente que se inicia quando o paciente chega ao serviço de urgência, e finaliza quando este recebe uma avaliação completa por um médico. Neste processo, requer-se, não só a capacidade de reconhecer os sinais e sintomas que necessitam de ser tratados imediatamente, mas também o reconhecimento de sintomas que provavelmente corresponderão a uma doença benigna.

Durante o tempo de espera os pacientes podem melhorar ou piorar; por isso, torna-se necessário proceder a reavaliações periódicas (retriagem).

Nesta perspectiva, a triagem implica, pois, formação e aperfeiçoamento dos profissionais que a realizam, estando bem definidas as características e as responsabilidades de tal função.

Os sistemas de triagem recomendados para a Pediatria em Portugal são o Manchester Triage Scale (MTS) e o Canadian Paediatric Triage and Acuity Scale (CPTAS). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Sistemas internacionais de triagem pediátrica em Portugal

 MTSCPTAS
Nível de Gravidade
(sinalização com cor)
Tempo de Resposta
Médica Alvo (minutos)
Tempo de Resposta
Médica Alvo (minutos)
1 = Imediata (Vermelho)
2 = Muito Urgente (Laranja)
3 = Urgente (Amarelo)
4 = Menos Urgente (Verde)
5 = Não Urgente (Azul)
Imediato
10
60
120
240
Imediato
15
30
60
120

Transporte de doentes

Os sistemas de transporte pediátrico e neonatal inter-hospitalar permitem que os doentes beneficiem de cuidados especializados antes e durante a transferência. Está demonstrado em diversos estudos que o transporte, incorporando equipa médica e de enfermagem especializadas, permite reduzir a mortalidade e morbilidade, verificando-se também uma boa relação custo-benefício.

Existem diversos modelos de organização de sistemas de transporte, nem sempre consensuais. O ideal será, pois, criar condições para que o sistema de transporte se desloque ao local onde existe um doente em estado crítico requerendo tratamento emergente, e não o contrário.

Reproduzindo o que foi estabelecido oficialmente, importa realçar certos princípios: “Em Portugal o transporte pré-hospitalar é assegurado pelo INEM, dependente do Ministério da Saúde.

Quanto ao transporte inter-hospitalar neonatal e pediátrico destacam-se principalmente três períodos:

  • A experiência nacional desde 1978, com o transporte inter-hospitalar especializado de recém-nascidos (RN), de cobertura nacional, no âmbito do INEM;
  • A experiência da região centro do país desde 1991 coordenada a partir do Hospital Pediátrico de Coimbra, também no âmbito do INEM; tal subsistema assegura, não só o transporte de RN de alto risco, mas igualmente o de doentes pediátricos necessitando de cuidados intensivos;
  • O modelo actual, a funcionar desde 2013, em que houve uma uniformização e integração a nível nacional da gestão altamente diferenciada do Transporte Inter-hospitalar Pediátrico (TIP); tal modelo tem como missão:
    • a deslocação rápida de uma equipa de transporte de doente crítico urgente em idade pediátrica;
    • a estabilização clínica dos recém-nascidos e/ou crianças gravemente doentes; e
    • o transporte acompanhado para unidades de cuidados intensivos neonatais e/ou pediátricas disponíveis.”

Reforçando o que foi abordado anteriormente, o sistema de transporte implica igualmente o estabelecimento de normas de actuação médica e organizativa, assim como recursos logísticos tais como: equipa médica e de enfermagem treinada autónoma, meios de transporte por via terrestre ou aérea, aparelhagem específica, oxigénio e ar armazenados com possibilidade de ventilação mecânica, fármacos, etc.. (Quadros 2 e 3)

QUADRO 2 – Equipamento indispensável durante o transporte

    • Fontes de oxigénio e ar com sistema de mistura
    • Sistema de aspiração de secreções portátil
    • Material de reanimação primária (insuflador manual, máscaras laríngeas, laringoscópios para RN/lactentes e outras idades, tubos endotraqueais, etc.)
    • Monitores cardiorrespiratórios e de pressão intracraniana
    • Oxímetros de pulso
    • Ventilador
    • Aparelho para determinação da glicémia por micrométodo
    • Cateteres
    • Bombas de perfusão
    • Desfibrilhador
    • Ligaduras, talas e colares cervicais

QUADRO 3 – Fármacos e fluidos indispensáveis durante o transporte

    • Solução de cloreto de sódio em concentrações e volumes diversos
    • Dextrose em água em concentrações e volumes diversos
    • Fármacos diversos:
      • Dopamina, dobutamina, adrenalina, noradrenalina, milrinona;
      • Bicarbonato de sódio, gluconato de cálcio, sulfato de magnésio, amiodarona, naloxona, lidocaína, atropina, adenosina;
      • Fentanil, midazolam, cetamina, vecurónio, atropina, propofol, tiopental;
      • Furosemido;
      • Antibióticos e antivíricos;
      • Prostaglandinas;
      • Salbutamol, brometo de ipratrópio, prednisolona, metilprednisolona;
      • Diazepam, difenil-hidantoína, fenobarbital;
      • Manitol a 20%.


Uma norma basilar aplicável ao transporte de doentes em qualquer grupo etário diz respeito à garantia de estabilização hemodinâmica, antes de se iniciar o transporte, e à ponderação dos benefícios face aos riscos.

Com efeito, o hospital de proximidade da ocorrência, necessitando de transferência de doentes/hospital “emissor” (por doença ou por lesão traumática), deve ter:

  • Capacidade para a estabilização do doente antecedendo uma transferência;
  • Plano de transferências e transportes que permita enviar de modo sistemático, em segurança e atempadamente, um doente para um centro de maior diferenciação/hospital “receptor”, pré-identificado, que proporcione cuidados definitivos.

Unidades de cuidados intensivos pediátricos (UCIP)

Uma parcela limitada dos doentes recorrendo aos SU/E abertos ao exterior, ou transferidos doutros hospitais, requerem cuidados designados por intensivos pela situação clínica considerada crítica.

Considera-se doente crítico aquele em que, por disfunção ou falência profunda de um ou mais órgãos ou sistemas, a sobrevivência depende de:

  • Recursos humanos altamente especializados integrando equipas próprias médico-cirúrgicas e de enfermagem altamente na relação de 1 enfermeira/doente (permanentes, 7 dias por semana, 24 horas por dia, 365 dias por ano), e o apoio de múltiplos subespecialistas;
  • Meios sofisticados de terapêutica (por ex.: ventilação mecânica, hemodiálise, circulação extracorporal, farmacoterapia complexa, terapia pós-transplantes, etc.); e
  • Diversos tipos de monitorização contínua (electrónica, biofísica, bioquímica/laboratorial, invasiva e não invasiva, etc.).

Pelos elevados custos que tal tipo de cuidados exige, e pela necessidade de ser criada massa crítica com vista à aquisição de experiência e aperfeiçoamento de competências por parte das equipas assistenciais, garantindo a qualidade dos mesmos cuidados, torna-se necessário concentrar recursos humanos e materiais nas chamadas unidades de cuidados intensivos (neste caso pediátricos, com número limitado de postos), localizadas em hospitais do mais elevado nível de diferenciação na prestação de cuidados hospitalares (nível terciário), com esquemas organizativos variáveis, a que atrás se aludiu.

Urgências e Emergências Pediátricas – o presente e o futuro

Nas décadas recentes ocorreram grandes avanços no âmbito da prestação e organização de cuidados pediátricos urgentes e emergentes a nível mundial, com maior relevância nos países ditos desenvolvidos. Com efeito, de acordo com a experiência acumulada, concluiu-se que se torna indispensável considerar a valência Urgências Pediátricas como uma subespecialidade pediátrica, implicando a criação de equipas (designadamente médicas e de enfermagem), com sólida formação global e com competências específicas (designadamente técnicas) para o tratamento de doentes complexos em estado crítico.

Estas equipas participariam, não só na assistência médica directa, mas também noutras tarefas: auditorias internas devotadas ao atingimento de metas de qualidade assistencial dos respectivos serviços; consultas de reavaliação de situações agudas mais complexas; consultas sem presença de doente; ligação a instituições (de proximidade, emissoras de pacientes como anteriormente referido, quer hospitais, quer centros de saúde); acções de formação, incluindo as relacionadas com treino em simulação de técnicas; criação e discussão de normas de orientação clínica; investigação, designadamente no âmbito da comunicação médico-paciente e interpares, analgesia, sedação, avaliação do risco clínico e técnicas de imagiologia rápida como a ecografia, etc..

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