TRAUMATISMOS ÓCULO-ORBITÁRIOS

Importância do problema e sistematização

Os traumatismos óculo-orbitários constituem uma das principais causas não congénitas de cegueira monocular na idade pediátrica. Com efeito, pela sua frequência, gravidade, dificuldade de diagnóstico e de terapêutica, as suas consequências podem ser dramáticas, salientando-se entre estas a ambliopia. De referir que tal patologia pode surgir desde fase muito precoce da vida, já durante o parto, com manifestações imediatas.

As lesões traumáticas em análise podem afectar isoladamente ou em conjunto:

  1. as pálpebras e vias lacrimais (equimoses e lacerações palpebrais);
  2. o globo ocular (traumatismos fechados, abertos e por agentes físicos e químicos);
  3. a órbita e seu conteúdo (traumatismos directos e indirectos).

Na maioria das situações há indicação de encaminhamento urgente para o oftalmologista, sendo desejável o contacto prévio perante qualquer dúvida; efectivamente, o tratamento correcto duma determinada lesão inicial permitirá, em princípio, evitar futuras sequelas funcionais. Trata-se de situações com indicação de assistência hospitalar no serviço de urgência.

Neste capítulo são também abordadas as lesões traumáticas óculo-orbitárias no contexto de síndroma da criança maltratada.

Actuação prática

Salientando-se que a maioria das situações a tratar é confinável à Oftalmologia, importa conhecer os princípios gerais da actuação:

  1. Anamnese pormenorizada inquirindo sobre as condições do acidente;
  2. Exame objectivo implicando descrição rigorosa das lesões (designadamente estado das feridas, sua profundidade, presença ou não de corpos estranhos, medição da acuidade visual, avaliação da musculatura extrínseca e intrínseca, e presença ou ausência de enfisema subcutâneo;
  3. Exame neurorradiológico, o qual deve incluir exames de imagem por radiografia simples convencional, TAC e/ou RM.

Traumatismos palpebrais

As equimoses palpebrais são infiltrações hemáticas das pálpebras, muito frequentes nos traumatismos oculares, podendo estar associadas a fracturas da órbita. Por vezes é necessário o recurso a exames complementares imagiológicos para um diagnóstico correcto.

As lacerações palpebrais são lesões resultantes de rasgamento da pele até ao tecido subcutâneo. (Figura 1)

FIGURA 1. Laceração palpebral

A detecção de tais lesões implica a inspecção cuidadosa dos canalículos lacrimais, da profundidade da ferida, a pesquisa de eventuais corpos estranhos e a verificação do funcionamento do músculo levantador da pálpebra superior. Por vezes há que recorrer a anestesia geral.

Traumatismos oculares propriamente ditos

No âmbito deste tópico são considerados, respectivamente, traumatismos fechados, abertos, e lesões por agentes físicos e químicos.

Traumatismos oculares fechados

Nestas situações não há solução de continuidade das paredes do globo ocular. Para fins didácticos de sistematização são considerados, respectivamente, traumatismos do segmento anterior e do segmento posterior.

Traumatismos do segmento anterior

A hemorragia subconjuntival em idade pediátrica, ao contrário do que acontece no adulto, raramente é espontânea; em regra a origem é traumática. (Figura 2)

A erosão da córnea ou perda de substância superficial do epitélio corneano tem como consequência a exposição da camada basal e dos nervos corneanos superficiais.

FIGURA 2. Hemorragia subconjuntival

De tal tipo de lesão no contexto de história de traumatismo, resulta dor, olho vermelho, lacrimejo e, por vezes, baixa de acuidade visual de aparecimento brusco. A aplicação de gotas de colírio anestésico e fluoresceína permite fazer o diagnóstico e orientar a terapêutica.

O corpo estranho intracorneano causa frequentemente dor ocular, olho vermelho e baixa de acuidade visual, principalmente quando se trata de corpos estranhos metálicos de localização central extraídos tardiamente.

A corectopia ou deslocação da íris pode acompanhar-se doutras lesões traumáticas; na forma congénita é rara.

O hifema (hemorragia da câmara anterior) é uma das complicações mais frequentes que surge no contexto de compressão violenta sem solução de continuidade (contusão) do globo ocular. O hifema espontâneo pode ser uma manifestação doutras doenças (retinoblastoma, alterações da coagulação, leucemia, xantogranuloma juvenil etc.); quando abundante, não permite fazer o exame dos fundos oculares. Nestes casos deve proceder-se à avaliação ecográfica do cristalino, do vítreo e da retina. Geralmente verifica-se reabsorção em poucos dias.

A catarata traumática pode aparecer horas, dias, ou meses depois do traumatismo. Perante uma situação de catarata monocular, principalmente na segunda infância, deve efectivamente inquirir-se sobre a eventualidade de episódio traumático anterior. O tratamento das cataratas traumáticas é cirúrgico.

A luxação ou subluxação do cristalino constitui outro exemplo de lesão traumática do segmento anterior; a sua verificação na circunstância de traumatismo mínimo implica o diagnóstico diferencial com outro tipo de patologia de base (por ex. síndroma de Weill-Marchesani, de Marfan, homocistinémia ou miopia grave).

À forma congénita de deslocação do cristalino dá-se o nome de ectopia do cristalino (ectopia lentis).

A luxação anterior do cristalino é mal tolerada, acompanhando-se de dores e de diminuição da acuidade visual. A solução é cirúrgica.

A luxação posterior do cristalino é mais tolerada, mas provoca sempre uma baixa de acuidade visual que deve ser corrigida com brevidade para evitar a ambliopia. A solução, como regra geral, é cirúrgica.

A subluxação do cristalino requer apenas vigilância e correcção da acuidade visual quando é pouco acentuada. Se for muito pronunciada e com grave repercussão na acuidade visual, a solução é também cirúrgica.

Traumatismos do segmento posterior

A hemorragia do vítreo (sangue na câmara vítrea) é uma complicação frequente dos traumatismos do segmento posterior. Se pouco abundante, e permitir a observação dos fundos oculares, requer apenas vigilância. Se for muito abundante e não permitir fundoscopia, o seguimento é feito também com estudo ecográfico para avaliar o estado da retina ou a existência de possível corpo estranho. Na presença de lesões retinianas ou da não reabsorção da hemorragia, é necessário intervir cirurgicamente.

O edema retiniano, geralmente transitório, resulta de traumatismo directo do globo ocular. A visão pode estar afectada se a localização for macular.

A rotura da coroideia resulta, em geral, de traumatismo directo ântero-posterior. Pode ser compatível com boa acuidade visual se a mácula não estiver afectada.

O chamado buraco macular pode ser observado a seguir a um traumatismo (logo, ou semanas mais tarde) como complicação de edema retiniano, hemorragia sub-retiniana ou rotura da coroideia.

A retinopatia de Purtscher, também conhecida por angiopatia retiniana traumática, geralmente bilateral, é secundária a traumatismo craniano e torácico graves, com hiperpressão no território da veia cava superior. Manifesta-se por hemorragias retinianas e pré-retinianas abundantes, exsudados algodonosos retinianos e peripapilares, e por edema da mácula.

O descolamento da retina em idade pediátrica tem como primeira causa o traumatismo. A solução terapêutica é cirúrgica.

A neuropatia óptica pós-traumática resulta de compressão, ou mesmo secção anatómica, do nervo óptico. A consequência é a amaurose ou a diminuição muito acentuada da visão.

Traumatismos oculares abertos

Nestas situações há solução de continuidade das paredes do globo ocular. Como exemplos paradigmáticos consideram-se as feridas do globo ocular e os corpos estranhos.

As feridas do globo ocular, de acordo com a respectiva localização, podem ser corneanas, esclerais e córneo-esclerais. Requerem reparação cirúrgica urgente, acompanhada de tratamento anti-inflamatório e anti-infeccioso.

Os corpos estranhos intra-oculares requerem um estudo pormenorizado para se proceder à correcta localização e à extracção.

Lesões por agentes químicos e físicos

As lesões por agentes físicos são pouco frequentes na criança. O tratamento por radiações ionizantes em certos casos de tumor (retinoblastoma) pode provocar cataratas ou lesões isquémicas da retina. O traumatismo solar por fixação do sol, quando se observa um eclipse, provoca lesões maculares foveais.

As lesões por agentes químicos são mais frequentes provocando queimaduras, principalmente corneanas e conjuntivais. A gravidade depende do tipo de agente, da sua quantidade e do tempo de permanência no fundo de saco conjuntival.

Traumatismos da órbita

Nesta alínea são considerados traumatismos directos e traumatismos indirectos.

Os traumatismos directos são responsáveis por fracturas do rebordo orbitário, podendo atingir os ossos contíguos, incluindo as paredes da órbita. Podem fazer parte de um quadro traumático mais grave, com compromisso concomitante das pálpebras, vias lacrimais, globo ocular e crânio.

Os traumatismos indirectos atingem o conteúdo orbitário sem atingir o rebordo. No momento do traumatismo, o conteúdo da órbita não compressível transmite a onda de choque às paredes, sendo que as zonas de menor resistência podem sofrer fracturas (fracturas por estalido).

Os traumatismos que mais frequentemente são observados em Oftalmologia são os que atingem o pavimento, a parede interna e tecto da órbita; menos frequentes são os que atingem a parede externa e o vértice.

Traumatismos óculo-orbitários na criança maltratada

A prática de maus tratos é, infelizmente, um acontecimento frequente, por vezes mortal e sempre com sequelas físicas e psíquicas importantes.

Os sinais oftalmológicos traumáticos no contexto referido são diferentes conforme se trata de um lactente ou de uma criança com mais idade.

No lactente descreve-se uma síndroma especialmente grave, a síndroma da criança sacudida. Nesta síndroma a escassez de sinais traumáticos externos contrasta com a gravidade do caso (coma e crises convulsivas): a criança, chorando continuamente, é sacudida várias vezes e com violência pelo agressor. Sendo a cabeça nesta idade “suportada” com dificuldade (certa instabilidade cefálica compatível com a idade do lactente), a mesma “é projectada a cada sacudidela”.

Na ausência de anamnese, o diagnóstico é feito com base nos sinais neurorradiológicos (hematoma subdural, por vezes bilateral e edema cerebral) e oftalmológicos (hemorragias retinianas, pré-retinianas e vítreas graves).

Se a criança sobreviver, o prognóstico é grave pelas lesões retinianas, do nervo óptico e cerebrais provocadas pelo traumatismo.

Nas crianças maiores é frequente encontrar hemorragias retinianas, lesões do couro cabeludo, corpo, hematomas ou edema periorbitário, cicatrizes corneanas, hifema, desinserção da íris, luxação do cristalino, cataratas, e descolamento de retina, por vezes bilateral.

Nestes casos, a criança deve ser hospitalizada em serviço de pediatria para estudo clínico e imagiológico pormenorizado, e tratada por uma equipa multidisciplinar.

BIBLIOGRAFIA

Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011

Forbes BJ, Christian CW, Judkins AR, et al. Inflicted childhood neurotrauma (shaken baby syndrome): ophthalmic findings. J Pediatr Ophthalmol Strabismus 2004; 41: 80-88

Garcia Feijoo J, Julvez P. Manual de Oftalmologia. Madrid: Elsevier, 2012

Khaw PT, Shah P, Elkington AR. Injury to the eye. BMJ 2004; 328: 36-38

Kivlin JD, Simons KB, Lazoritz S, et al. Shaken baby Syndrome. Ophthalmology 2000; 107: 1246-1254

Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nelson LB, Olitsky SE. Harley’s Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 296-298

Van Heuven WAJ, Zwaan JT. Decision making in Ophtalmology. An algorithmic approach. St Louis: Mosby, 2000

Wright KW. Pediatric Ophthalmology for Primary care. Elk Grove, Illinois: AAP, 2008

CATARATA

Definição e importância do problema

A catarata é definida como opacidade do cristalino. A repercussão na visão depende essencialmente de vários factores como intensidade da referida opacidade, sua extensão e uni ou bilateralidade.

Tal anomalia, contribuindo significativamente para diminuir o estímulo visual na primeira infância, poderá interferir no desenvolvimento da área do córtex cerebral responsável pela visão (área occipital), dando origem a sequelas, tais como ambliopia. Por outro lado, sendo detectada em fase precoce da vida, existe a possibilidade de intervenção com bons resultados.

A catarata constitui uma das afecções do sistema ocular mais frequentes em idade pediátrica, (entre 2 a 4 por 10.000 recém-nascidos), por sua vez explicando cerca de 15% dos casos de cegueira nos países ditos desenvolvidos.

As cataratas (uni ou bilaterais) podem também estar associadas a outras afecções oculares ou sistémicas, ser congénitas (evidentes na data do nascimento ou pouco tempo depois) ou adquiridas na vida extra-uterina. (ver glossário no fim do capítulo)

Etiopatogénese

Existe uma multiplicidade de factores etiológicos que poderão levar à opacidade do cristalino; descrevem-se como factores mais frequentes os genéticos (cerca de 25-35% dos casos segundo várias estatísticas, sendo mais frequente a hereditariedade de tipo autossómico dominante), infecções fetais (cerca de 40% dos casos), doenças metabólicas (cerca de 10%). Salienta-se que em cerca de 1/3 dos casos nenhum factor etiológico é, na fase actual dos conhecimentos, identificável (formas ditas idiopáticas). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Cataratas em idade pediátrica e patologia associada

Doenças metabólicas (galactosémia, doença de Niemann-Pick, doença de Wilson, abetalipoproteinémia, homocistinémia, etc.)
Infecções fetais (grupo TORCHS-toxoplamose, rubéola, citomegalovírus, herpes, sífilis, outros)
Doenças endócrinas (diabetes mellitus, hipoparatiroidismo, etc.)
Doenças genéticas (síndromas como trissomia, síndroma de Alport, Crouzon, Conradi, Marfan, etc.)
Associadas a outras doenças oculares (coloboma, aniridia, microftalmia, etc.)
Miscelânea (corticoterapia, radioterapia, lesões traumáticas, causa desconhecida/formas idiopáticas)

Manifestações clínicas

A manifestação clínica clássica da catarata é a leucocória (sinal de pupila “branca” ou do reflexo pupilar “branco”); refira-se, no entanto, que as manifestações podem variar, essencialmente em função da localização e intensidade da opacidade. Outros sinais são: nistagmo, fotofobia, estrabismo, sensação de alheamento ou de contacto social, já por volta dos 2-3 meses, fase em que a criança nascida de termo começa em condições normais, a seguir objectos.

A ausência do “reflexo vermelho” pode ser evidenciada por oftalmoscopia directa, a qual deverá ser realizada no âmbito dos exames de saúde durante o primeiro ano de vida pelo clínico geral ou pediatra.

Tendo em consideração que determinados casos de localização posterior são detectáveis somente por biomicroscópio com lâmpada de fenda pelo oftalmologista, qualquer suspeita face à verificação de antecedentes familiares ou doutros sinais atrás descritos, implica o encaminhamento atempado para a consulta de Oftalmologia.

Tratamento

O tratamento, da competência do oftalmologista, consiste na remoção do cristalino e ulterior correção do erro de refracção com óculos ou, em casos especiais, aplicação de lentes de contacto ou de implantação. Na actuação está implícita a necessidade de correção da ambliopia e de processo de reabilitação. Refira-se a importância do diagnóstico precoce, factor determinante do prognóstico.

Importa salientar que a reabilitação – que pode ser processo moroso – a cargo de uma equipa multidisciplinar (incluindo, designadamente pediatra/clínico geral, oftalmologista, fisiatra e técnico de oftalmologia), constitui uma vertente fundamental da actuação tendo em vista a tentativa de recuperação.

Prognóstico

O prognóstico depende dum conjunto de factores. São considerados agravantes: baixa idade da criança, baixa idade de detecção, anterior ao completo desenvolvimento visual, intensidade da opacidade, unilateralidade implicando maior dificuldade na recuperação funcional, duração e gravidade da ambliopia, associação a doença ocular ou sistémica, etc..

A precocidade do diagnóstico e da intervenção (remoção do cristalino afectado), constituem, dum modo geral, factores de bom prognóstico.

Glossário

Sendo a catarata uma anomalia do cristalino, importa definir outras anomalias do mesmo.
Ectopia > Deslocação congénita do cristalino da posição normal; sinónimo em latim: ectopia lentis.
Lenticone > Defeito congénito do cristalino que consiste na verificação de saliência central (~cone, daí o nome) anterior ou posterior. Pode estar associado a catarata.
Microsferofaquia > Conformação esferóide do cristalino, cujas dimensões são reduzidas (~microsfera). Trata-se de defeito por vezes associado a diversas síndromas (Marfan, Klinefelter, etc.).

BIBLIOGRAFIA

Bhatti TR, Dott M, Yoon PW, et al. Descriptive epidemiology of infantile cataracts in metropolitan Atlanta GA, 1968-1998. Arch Pediatr Adolesc Med 2003; 157: 341-347

Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011

Fallha N, Lambert SR. Pediatric cataracts. Ophthalmol Clin North Am 2001; 14: 479-492

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Meux P L. Ophtalmologie Pédiatrique. Paris: Masson, 2003

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nelson LB, Olitsky SE. Harley’s Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 255-284

Van Heuven WAJ, Zwaan JT. Decision making in Ophtalmology. An algorithmic approach. St Louis: Mosby, 2000

Wirth MG, Russell-Eggitt IM, Craig JE, Elder JE, Mackey DA. Etiology of congenital and pediatric cataract in an Australian population. Br J Ophtalmol 2002; 86: 782-786

Zetterstrom C, Kugelberg M. Paediatric cataract surgery, Acta Ophthalmol Scand 2007; 85: 698-710

DOENÇAS DA RETINA

Bases anatomofisiológicas e neurodesenvolvimento

A retina, considerada um prolongamento do SNC, é a camada mais interna das três que constituem a parede de globo ocular.

A coroideia, um dos três constituintes da úvea, é uma estrutura vascular responsável por uma parcela importante do suprimento sanguíneo e nutritivo à retina.

O vítreo, estrutura transparente, propaga a luz submetida a refracção pela córnea e cristalino, transmitindo-a à retina. Posteriormente a retina continua-se pelo nervo óptico.

Quanto a aspectos histológicos, a retina pode dividir-se em duas porções: a retina neurossensorial e a camada de epitélio pigmentado. A primeira é composta por nove camadas onde se dispõem os fotorreceptores e as células relacionadas com a transmissão dos impulsos nervosos e respectivos dendritos e axónios. (Figura 1) A camada de epitélio pigmentado contacta com a coroideia. As duas porções, com origem embriológica diferente, resultam de dois folhetos diferentes de neuroectoderme, formando-se entre os mesmos um espaço subretiniano, virtual, que se une atrás (no rebordo da papila óptica) e à frente (ora serrata).

O desenvolvimento da retina inicia-se na quarta semana de gestação, com a invaginação da vesícula óptica, uma estrutura derivada do diencéfalo. Durante o quarto mês inicia-se a vascularização retiniana definitiva que substitui o sistema vascular primitivo. A vascularização retiniana definitiva, a partir da papila óptica, atinge a periferia temporal no nono mês de gestação. Numa gestação de termo, a retina já se encontra bem diferenciada, havendo completa maturação celular com excepção da mácula, centrada pela fóvea. Esta zona da retina, responsável pela visão central de alta resolução, continua a desenvolver-se atingindo a configuração adulta por volta dos 4 anos. O desenvolvimento da fóvea coincide com o crescimento dendrítico cortical e formação de sinapses.

As funções da retina são transformar a imagem óptica em sinais eléctricos, (o que é executado pelos fotorreceptores), e processar as características do mundo visual, transmitindo os sinais captados pelos fotorreceptores até ao córtex visual através do nervo óptico.

FIGURA 1. Camadas da retina: representação esquemática

Manifestações clínicas

As doenças da retina habitualmente manifestam-se por perturbações da visão, baixa da acuidade ou alteração da qualidade visual. Se na criança que já se sabe exprimir o aparecimento dos sintomas pode ser verbalizado, na criança mais pequena são os sinais ou as complicações de determinada situação patológica que podem sugerir o diagnóstico de doença retiniana. Eis algumas manifestações a realçar:

  • Diminuição da acuidade visual – Quando a criança não sabe exprimir a perda de acuidade ou não valoriza o sintoma por ser muito precoce, o comportamento pode ser sugestivo: desinteresse por objectos distantes, não reconhecimento de faces conhecidas a partir de certa distância, sinal oculodigital de Franceschetti (procura de estímulo visual pela compressão dos globos oculares), dificuldade ou atraso na
  • Alteração da qualidade visual – Traduz-se por sinais variados que podem apontar para problemas clínicos específicos:
    • Discromatopsia – Alteração da visão das cores, por anomalia dos cones ou neuropatia óptica. Pode ser congénita e não evolutiva como o daltonismo, ou adquirida e frequentemente evolutiva, devendo-se a patologia coriorretiniana ou iatrogenia medicamentosa;
    • Hemeralopia ou cegueira diurna – Diminuição da acuidade visual em condições de luz Tal alteração sugere doença degenerativa da retina (cones), podendo também dever-se a opacidade da córnea ou cristalino;
    • Nictalopia ou cegueira nocturna – Dificuldade visual em condições de baixa luminosidade. O medo extremo do escuro e a dificuldade na orientação em ambientes escurecidos podem ser os sinais reveladores. Este problema surge nas degenerescências pigmentares da retina;
    • Fotopsia – Sensações luminosas (por ~”faíscas”) produzidas por estímulos não ópticos nem luminosos, como a excitação mecânica induzida pela pressão digital no globo ocular ou a tracção do vítreo;
    • Miodesopsia – Percepção de manchas escuras (~”moscas volantes”) no campo visual que parecem flutuar com os movimentos dos Podem dever-se à presença de exsudado inflamatório ou a sangue no vítreo (hemovítreo), assim como ao descolamento retiniano, situações que projectam sombras sobre a retina;
    • Metamorfopsia – Percepção de imagem distorcida, aumentada ou diminuída. Deve-se a doença macular, associando-se habitualmente a baixa da acuidade visual.
  • Alterações campimétricas – Perda de campo visual que pode assumir várias formas, tais como: ser localizada a uma área (escotoma), generalizada, etc., consoante a quantidade e localização de fibras nervosas afectadas.
  • Leucocória – Trata-se de “pupila de cor branca” a qual pode ter várias causas; relaciona-se com opacidade da córnea, do cristalino (catarata), com patologia do segmento posterior do globo ocular (retinoblastoma, descolamento da retina de causa inflamatória, infecciosa, degenerativa, traumática, ), patologia vítreo-retiniana ou defeito congénito.
  • Estrabismo – O estrabismo pode ser a única manifestação de doença retiniana; assim, qualquer criança estrábica deve ser sempre avaliada e sujeita a A baixa de visão traduz-se em dificuldade na fixação e consequente desvio do olho.
  • Nistagmo – A sucessão de movimentos rítmicos, involuntários e conjugados dos globos oculares, com alternância de oscilações lentas e rápidas pode ser uni ou bilateral. Define-se, convencionalmente, pelo sentido da oscilação rápida e pela sua direcção: horizontal, vertical, rotatório, multidireccional ou misto. Constitui sinal de lesões do aparelho vestibular ou das vias nervosas centrais ou periféricas; pode ser provocado por certas posições. Quando de origem retiniana ocorre por incapacidade de fixação associada a patologia macular.

Principais doenças retinianas

Em termos semiológicos as doenças retinianas podem dividir-se em dois grupos: as doenças maculares e as doenças da periferia retiniana. Recorda-se que a mácula é a região da retina que contribui primordialmente para a visão central, fotópica e de alta resolução.

As doenças maculares caracterizam-se por diminuição da acuidade visual, metamorfopsia, fotofobia, hemeralopia e alterações campimétricas centrais (escotoma central). A periferia retiniana é responsável pela visão periférica, escotópica e de orientação espacial, pelo que as afecções periféricas se associam à perturbação da referida visão.

A avaliação objectiva das doenças retinianas compreende a medição da acuidade visual (acuidade de detecção medida com pequenos objectos, acuidade de padrões pelo olhar preferencial ou pela resolução de linhas de orientação, acuidade de reconhecimento com testes de optótipos e acuidade de leitura), determinação da sensibilidade ao contraste (capacidade de ver detalhes em níveis baixos de contraste), registo dos campos visuais e avaliação da visão cromática. Completa-se pela visualização directa da retina (oftalmoscopia directa e indirecta), habitualmente com a pupila dilatada farmacologicamente. Frequentemente é necessário recorrer a outros exames complementares como a retinografia, a angiografia fluoresceínica, a ecografia ocular, a tomografia de coerência óptica e a electrofisiologia (electrorretinograma, electroculograma e potenciais evocados visuais).

São referidos a seguir problemas clínicos de etiopatogénese diversa associados a doença retiniana, chamando-se especial atenção para a retinopatia da prematuridade e para o retinoblastoma.

Anomalias congénitas

As anomalias congénitas da retina e nervo óptico podem implicar um compromisso funcional variável, salientando-se que algumas delas poderão indiciar a existência de defeitos com outra localização. Surgem com uma incidência ~1,6/1.000 em RN.

São exemplos a displasia vítreo-retiniana, a persistência do vítreo primário hiperplásico, anomalias vasculares e o coloboma (qualquer anomalia congénita do desenvolvimento que poderá surgir em qualquer das seguintes estruturas: pálpebras, íris, cristalino, coroideia, retina ou nervo óptico).

O coloboma é um dos constituintes da associação CHARGE, razão pela qual a sua verificação obriga à detecção doutros defeitos (síndromas malformativas, cromossomopatias, etc.).

Albinismo

O albinismo corresponde a um grupo heterogéneo de doenças, quer sob o ponto de vista genético, quer clínico; caracteriza-se por hipopigmentação da pele, cabelo e olhos, explicável por deficiência da produção de melanina. São descritas duas formas de albinismo: oculocutâneo e ocular. As síndromas de Hermansky-Pudlak e Chediak-Higashi associam-se a albinismo oculocutâneo.

Doenças hereditárias do metabolismo

Existem mais de 400 doenças hereditárias com envolvimento significativo da retina, mácula ou coróide, com quadros clínicos diversos de degenerescência retiniana, conforme as áreas inicialmente atingidas e progressão verificada. A patologia metabólica pode originar alterações retinianas com aspectos particulares, nomeadamente as degenerativas (retinopatia pigmentar, atrofia girata, alteração do epitélio pigmentar e alteração da mácula em mancha cor de cereja), bem como quadros de hemorragia retiniana e neuropatia óptica. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Degenerescência retiniana e doenças hereditárias do metabolismo

* LCHAD – Hidroxiacil-CoA desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia longa
Doença retiniana associada a outras doenças
    • Defeito do metabolismo lipídico
      • Abetalipoproteinémia
      • Doença peroxissomal: alteração da biogénese do peroxissoma (Síndroma Zellwegwer)
      • Defeito isolado da ß-oxidação
      • Doença de Refsum
      • Defeito da ß-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos: deficiência LCHAD*
      • Síndroma de Sjogren-Larsson
    • Defeito lisossómico

      • Ceroidolipofuscinoses

      • Mucopolissacaridoses: todas excepto doença de Mórquio (MPS IV)

      • Mucolipidose IV

      • Doença de Krabbe

         

    • Defeito mitocondrial

      • Síndroma de Kearn-Sayre

      • Outros defeitos

    • Defeitos congénitos da glicosilação (CDG)
    • Defeitos do metabolismo do cobre: doença de Menkes

    • Outros: alteração do metabolismo da cobalamina C

Doença retiniana isolada
    •  Atrofia girata

Nas alterações degenerativas da mácula, o aspecto em mancha cor de cereja é de uma forma geral relacionado com etiologia metabólica, sendo fundamental o diagnóstico diferencial das doenças de sobrecarga lisossomal. Tal padrão do fundo ocular é devido à acumulação de lípidos complexos nas células ganglionares da retina, originando uma cor esbranquiçada rodeando a zona da fóvea. (Figura 2 e Quadro 2)

FIGURA 2. Fundoscopia: mancha cor de cereja

QUADRO 2 – Degenerescência macular em “mancha cor de cereja”

Doença“Mancha cor de cereja”
Sialidoses tipo IConstante
Sialidoses tipo IIConstante
GalactossialidoseFrequente
Gangliosidose GM2
• Doença de Tay-Sachs (infantil)Constante
• Doença de Sandhoff (infantil)Constante
Gangliosidose GM1 (infantil)Frequente
Doença de Niemann-Pick tipo AFrequente
Doença de Gaucher tipo 2Ocasional

Diabetes mellitus

No que se refere a diabetes mellitus (tipos 1 e 2) cabe referir que as manifestações oculares mais frequentes ocorrem na retina e no cristalino. A retinopatia diabética raramente surge antes de 3-5 anos de doença, e antes da puberdade. O tempo de evolução e o grau de descompensação metabólica da doença são factores relevantes no desenvolvimento e na gravidade das complicações oculares. Surge microangiopatia progressiva que leva à lesão e oclusão dos pequenos vasos retinianos. Em fases inicias da retinopatia (chamada de fundo), à fundoscopia observam-se microaneurismas (dilatação capilar), tortuosidade vascular, hemorragias e edema. Pode haver défice da aquidade visual se o edema atingir a mácula.

Com o tempo, a oclusão microvascular progressiva leva à isquémia e à formação de neovasos (retinopatia proliferativa), com edema e hemorragia mais acentuados, (hemorragias retinianas e do vítreo), maculopatia e risco mais elevado de descolamento retiniano. A retinopatia é lentamente progressiva, sabendo-se que, após 10 anos de doença, 70 a 90% dos diabéticos do tipo 1 evidenciam graus diversos de retinopatia, sendo tanto mais grave quanto pior o controlo metabólico.

O compromisso associado do cristalino, evidenciado pela sua opacificação (catarata) depende também muito da qualidade e estabilidade da compensação metabólica. A presença de catarata diminui a acuidade visual.

A intervenção cirúrgica está indicada no tratamento da catarata, do hemovítreo ou do descolamento retiniano. O método de tratamento com raios laser é utilizado como profilaxia destas últimas complicações e no tratamento de certas formas de maculopatia.

O acompanhamento oftalmológico da criança e do adolescente diabético deve ser ajustado à idade e à gravidade da diabetes. Em geral, deve fazer-se a avaliação uma vez feito o diagnóstico, com a finalidade de esclarecimento da criança/família e exclusão de outra patologia. A detecção e vigilância da retinopatia deve iniciar-se 3 anos após o início do período da puberdade, quando a evolução metabólica tenha sido favorável, ou antes, pelos 9 anos de idade, no caso de não ser conseguido tal objectivo. Posteriormente, a vigilância oftalmológica deve ser, pelo menos, semestral.

Doenças hematológicas

A retinopatia verificada nos casos de doença de células falciformes relaciona-se com a hiperviscosidade sanguínea e consequente hipóxia, salientando-se que as manifestações oculares são mais frequentes quando há associação a outra hemoglobinopatia.

As lesões encontram-se na periferia, podendo configurar uma forma não proliferativa, de fundo, caracterizada por envolvimento arteriolar com embainhamento, tortuosidade e hemorragias (manchas-salmão, intrarretinianas, e aglomerados pigmentares cicatriciais), ou evoluir para uma forma proliferativa quando a isquémia é mantida. A retinopatia drepanocítica proliferativa (rara em idade pediátrica) deve-se à oclusão arteriolar e neovascularização; define-se pela presença de tufos vasculares de aspecto típico e pode levar a complicações irreversíveis.

A aplicação do método de laser pode estar indicada como medida preventiva.

A vigilância oftalmológica deve iniciar-se por volta dos 10 anos de idade e repetir-se semestralmente.

Inflamação e infecção

A inflamação da retina habitualmente não ocorre de forma isolada, associando-se, pelo menos, ao compromisso da coroideia. Daí que os processos inflamatórios destas duas estruturas sejam habitualmente considerados em simultâneo, mesmo quando um processo é predominantemente retiniano.

O termo uveíte significa inflamação da úvea (estrutura composta pela íris, corpo ciliar e coroideia). Se todas as referidas estruturas estiverem atingidas, diz-se que há panuveíte.

Segundo o critério topográfico, são considerados três tipos de uveíte:

  1. anterior, compreendendo a irite e a iridociclite;
  2. intermédia, compreendendo a ciclite e a chamada pars planite;
  3. posterior, compreendendo a coroidite (ou a coroidorretinite quando se verifica compromisso retiniano); ou seja, a uveíte posterior atinge predominantemente o segmento posterior do globo ocu

Quanto à etiologia,  podem ser considerados  quatro grupos: de origem infecciosa, autoimune e idiopática, para além de situações integrando as chamadas “síndromas mascaradas”. Estas últimas compreendem situações clínicas diversas que cursam com uveíte, por ex.: linfoma, retinoblastoma, leucemia, metástases de tumor distante, descolamento, degenerescência retiniana e presença de corpo estranho intra-ocular.

A uveíte intermédia é, em geral, uma situação crónica e idiopática.

Na idade pediátrica, cerca de 40% das uveítes afectam o segmento posterior, sendo a etiologia infecciosa (congénita ou adquirida) a mais importante: por Toxoplasma gondii, Citomegalovirus, Mycobacterim tuberculosis, Candida albicans, Toxocara canis, etc..

Como noutras doenças retinianas, a presença de uveíte posterior pode revelar-se quando a criança é capaz de expressar queixas, nomeadamente de miodesopsia, de alteração da acuidade ou qualidade visual, ou através de sinais que revelam diminuição da acuidade visual. Frequentemente, trata-se de situações que se associam a outras manifestações oculares, inflamatórias ou a anomalias congénitas.

O atraso no diagnóstico devido à não verbalização das queixas e as consequências sobre o sistema visual, ainda em desenvolvimento, podem agravar o prognóstico na criança mais pequena.

Refira-se, no entanto, que por vezes o diagnóstico de uveíte posterior é um achado ocasional no âmbito de observação oftalmológica realizada por motivos diversos.

São descritos a seguir alguns quadros clínicos que tipificam processos de inflamação e infecção de expressão retiniana:

  • Toxocarose – Deve-se à presença da larva enquistada na Em geral existe compromisso uniocular. O aspecto mais típico é o de granuloma localizado no pólo posterior do olho ou na periferia; no entanto, o processo inflamatório pode ser mais difuso. Ao cicatrizar, pode originar o descolamento da retina. As manifestações clínicas incluem diminuição de visão, estrabismo ou leucocória, impondo por vezes, o diagnóstico diferencial com retinoblastoma.
  • Retinites víricas – Vários agentes víricos (por vírus da imunodeficiência humana/VIH, Herpes simplex, Herpes zoster, Citomegalovirus e vírus da rubéola) podem infectar a retina da criança, desde a fase de vida intra-uterina, podendo as respectivas repercussões ser mais ou menos devastadoras. Para além da infecção da retina, outras estruturas oculares podem estar envolvidas, como a córnea, o cristalino, a íris, o corpo ciliar, o nervo óptico, etc..
    O exame fundoscópico permite observar focos activos de coriorretinite (áreas de edema retiniano que se podem associar a fenómenos de vasculite e hemorragias) ou cicatrizes de infecção coroidorretiniana (áreas de hiperpigmentação alternando com áreas menos pigmentadas ou esbranquiçadas) em maior ou menor extensão. Um aspecto frequente nalgumas infecções congénitas (rubéola, sarampo) é o quadro designado classicamente por “retinopatia pigmentada em sal e pimenta” em que se observa a dispersão pigmentar em toda a retina ou parte dela.
    A doença ocular em crianças infectadas pelo VIH e Citomegalovirus é muito menos frequente do que nos adultos.
  • Coroidorretinites bacterianas e fúngicas – Trata-se de situações mais raras, habitualmente ocorrendo associadas a outras manifestações oculares e não A sífilis congénita pode dar origem a retinopatia em sal e pimenta semelhante à da rubéola. O envolvimento retiniano é ainda possível na doença de Lyme, na tuberculose e na doença do arranhão do gato. Em todas estas doenças as manifestações clínicas são muito variáveis, não havendo um padrão típico de apresentação.
    A retinopatia surgindo no contexto de septicémia ou bacteriémia é muito rara; em geral deve-se a um êmbolo séptico decorrente de endocardite bacteriana. O exame oftalmológico especializado permite identificar sinais de hemorragia centrada por uma área branca (mancha de Roth), como manifestação do êmbolo formado. As infecções por fungos (por ex. Candida albicans) também podem originar endoftalmite por embolia.
  • Coroidorretinite por Toxoplasma gondii (Toxoplasmose) – A toxoplasmose (congénita ou adquirida) é a causa mais importante de uveíte posterior em todos os grupos etários; em idade pediátrica é responsável por cerca de 50% dos casos de uveíte posterior (coroidite ou coroidorretinite). Uma vez instalado na célula retiniana, há proliferação do protozoário causando reacção de hipersensibilidade e inflamação nos tecidos e vasos adjacentes, vítreo e coroideia, sendo de realçar que poderá surgir reactivação em zona adjacente a cicatriz coroidorretiniana antiga. As manifestações de toxoplasmose congénita variam muito, entre cicatriz retiniana periférica e coroidorretinite activa.
  • Uveítes não infecciosas – Estas afecções são muito raras em idade pediátrica salientando-se, a este propósito, que alguns casos de uveíte posterior podem associar-se a sarcoidose, a nefrite tubulointersticial (TINU) e a doença de Behçet.

Distrofias coroidorretinianas

Abrangem um conjunto de situações de natureza genética relativamente às quais cada vez são conhecidos mais genes; geralmente só se manifestam no adolescente ou adulto. Para o estabelecimento do diagnóstico e prognóstico destas doenças, a electrofisiologia ocular é fundamental. Outros meios auxiliares de diagnóstico importantes são o estudo da visão cromática e a angiografia fluoresceínica. São salientadas, entre outras, as seguintes distrofias:

  • Retinopatia pigmentada (retinose pigmentar) – É caracterizada por disfunção progressiva dos fotorreceptores e atrofia de várias camadas da retina, verificando-se perda progressiva de bastonetes e,  posteriormente, também de cones. Manifesta-se essencialmente por nictalopia e diminuição progressiva dos campos visuais. Por fundoscopia são identificadas alterações pigmentares retinianas típicas (espiculadas), atenuação vascular e palidez óptica. Na maioria dos casos, o modo de transmissão é autossómico recessivo, tendo sido comprovada hereditariedade ligada ao cromossoma X em cerca de 15% dos casos.
  • Distrofia de cones-bastonetes – Nesta forma os fotorreceptores são afectados de forma generalizada, sendo maior a perda de função do cone do que a do bastonete. A hereditariedade é autossómica (recessiva ou dominante), ou ligada ao cromossoma X. A maioria revela-se entre o final da segunda década de vida e o início da idade adulta. Manifesta-se essencialmente por perda de visão central, discromatopsia e fotofobia, instalando-se progressivamente nictalopia e perda de visão periférica. Por fundoscopia observam-se alterações semelhantes às da retinopatia pigmentada.
  • Amaurose congénita de Leber – Trata-se duma distrofia cone-bastonete identificável desde a data do nascimento ou nos primeiros meses de vida por défice de visão e nistagmo. Em geral, a transmissão é autossómica recessiva, podendo também ocorrer a forma autossómica dominante. Constitui a causa mais frequente de deficiência visual infantil de natureza hereditária. As manifestações ulteriores incluem movimentos erráticos dos globos oculares ou nistagmo, deficiente reflexo fotomotor pupilar e o já citado sinal oculodigital de Franceschetti (como resultado da deficiente estimulação visual pela luz, a criança exerce pressão sobre os globos oculares para estimular mecanicamente a retina, conseguindo, assim, obter sensação visual); com o tempo, a pressão repetida pode levar a atrofia da gordura orbitária e afundamento do globo ocular – enoftalmia – e a catarata.

Descolamento da retina

Entende-se por descolamento retiniano a separação entre a retina neurossensorial e o epitélio pigmentado subjacente por mecanismos diversos. Como consequência, a retina pode sofrer atrofia por insuficiência de suprimento sanguíneo e de nutrientes.

As manifestações clínicas essenciais variam consoante a causa do descolamento e a sua extensão: fotopsias, miodesopsias, perda de campo ou acuidade visual, e leucocória. Como em qualquer situação que decorre com perda de acuidade visual, o estrabismo adquirido pode ser um sinal revelador.

Retinopatia da prematuridade

Definição

Entende-se, por retinopatia da prematuridade (RP) a doença vascular retiniana consequente à proliferação fibrovascular anómala numa retina em desenvolvimento, com vascularização incompleta. A prematuridade, pelas repercussões na maturação do globo ocular e das estruturas do sistema nervoso central, pode ter implicações no desenvolvimento da visão. Neste contexto, as principais alterações oftalmológicas com as quais o clínico depara são, a chamada retinopatia da prematuridade na fase aguda, e suas sequelas: os defeitos refractivos e o estrabismo.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A RP é uma doença cuja incidência e gravidade são inversamente proporcionais ao peso de nascimento e à idade gestacional. De acordo com o CRYO-ROP Group, a frequência é ~ 47% em RN com idade gestacional > 31 semanas e peso entre 1.000 e 1.250 gramas; e ~90% nos casos com < 28 semanas e < 750 gramas. Estudos mais recentes apontam para uma diminuição da incidência de retinopatia (10 a 40%) e redução da probabilidade de ocorrência de retinopatia limiar (3%); no entanto, em absoluto, os casos graves são cada vez mais frequentes, dado o aumento de sobrevivência de RN com peso de nascimento inferior a 750 gramas em virtude dos progressos realizados em terapia intensiva.

Etiopatogénese

A angiogénese dos vasos da retina inicia-se pelas 16 semanas de gestação, prolongando-se até cerca das 40 semanas. Tem a sua origem no pólo posterior do globo ocular, ao nível da papila óptica, evoluindo anteriormente até atingir a ora serrata, o limite anterior da retina. Por outras palavras: a vascularização da retina do feto faz-se da papila óptica para a periferia; a mesma completa-se primeiramente na retina lado nasal pelo facto de esta ser mais curta. Por isso, é mais frequente o compromisso da retina (RP) no lado temporal cujo desenvolvimento se completa pelas 40 semanas (gestação de termo).

Quando a criança nasce após gravidez muito encurtada em tempo (recém-nascido pré-termo), o processo de angiogénese não se encontra completo.

A RP progride em duas fases. Numa primeira fase (hiperóxica), o contacto com meio ambiente extra-uterino, mais rico em oxigénio que o meio intra-uterino, cria vasoconstrição que, se prolongada, se torna irreversível, tendo em conta a elevada susceptibilidade dos vasos retinianos a elevada pressão parcial de oxigénio*.

*No sangue fetal a saturação em O2 da Hb é ~70%, enquanto no RN de termo respirando ar é ~100% (correspondendo respectivamente a PaO2 de 30 mmHg e de 60-100 mmHg).

Numa segunda fase (isquémica) – que surge à medida que o RN pré-termo cresce (entre as 30 e as 34 semanas de idade gestacional) – a hipoxia tecidual, resultante do não desenvolvimento normal da vascularização retiniana, necessária para o metabolismo da retina, conduz à produção de factores angiogénicos com consequente processo de neovascularização. Esta poderá evoluir no sentido de proliferação fibrovascular anómala levando a tracção dos tecidos, descolamento da retina ou cegueira.

Vários factores de risco de RP têm sido apontados: baixo peso de nascimento, baixa idade gestacional, terapia com oxigénio (factor relevante, embora não constitua um pré-requisito), carência de vitamina E, exposição a produtos decorrentes de infecção/inflamação (como por ex., selectina-E, interleucinas), hiperglicémia, transfusões de sangue, RCIU, hipercápnia, anemia, hemorragia intraventricular, etc.. Dá-se grande importância ao papel dos factores de crescimento na génese da RP, designadamente IGF-1 e VEGF (vascular endothelial growth factor). O défice de síntese de IGF-1 no pré-termo seria responsável pela paragem do crescimento vascular retiniano.

A hipoxémia retiniana consecutiva à hipoperfusão origina síntese predominante de VEGF que se acumula no vítreo, sem efeito sobre o crescimento vascular. Uma vez retomada a secreção de IGF-I, associada à quantidade acumulada de VEGF, verifica-se intensa proliferação vascular retiniana. Quanto mais baixo o peso de nascimento e menor a idade gestacional, maior a probabilidade de, no recém-nascido pré-termo, se desenvolver retinopatia, em concomitância com elevadas probabilidades de complicações cardiovasculares e respiratórias.

Em suma, a RP parece, pois, ter uma relação directa com o grau de imaturidade vascular retiniana, acção do oxigénio sobre os vasos imaturos e factores que intervêm na oxigenação tecidual. Por outro lado, existem factores considerados protectores relativamente à mesma RP; entre eles contam-se a administração de esteróides no período pré-natal, e de surfactante ao recém-nascido (RN).

Classificação

O sistema classificativo de gravidade actualmente utilizado foi estabelecido pelo chamado CRYO-ROP Group, criado nos Estados Unidos da América do Norte. Como meio de estudo foi estabelecida a classificação, ainda em vigor. Muito do que se sabe hoje sobre a evolução da retinopatia e sua terapêutica deve-se aos estudos que este grupo tem efectuado, embora não seja de menosprezar o contributo doutros autores noutros países.

A classificação baseia-se fundamentalmente na extensão e localização da doença, assim como na sua gravidade. Classicamente são considerados os parâmetros que se seguem (Figura 3):

FIGURA 3. Camadas da retina: representação esquemática

Zona – Determina até que ponto progrediu o desenvolvimento da vascularização e onde residem as anomalias. Centrada no nervo óptico (papila ou disco óptico), a zona I compreende uma área circunferencial de raio duas vezes superior à distância papila-mácula lútea. É a porção mais posterior e a mais importante em termos de qualidade visual. A zona II é a área circunferencial distal à zona I, limitada anteriormente pela ora serrata nasal. A zona III corresponde ao crescente temporal remanescente.

Estádio – Indica a gravidade do processo, definindo-se pelo aspecto das alterações encontradas:

  1. A linha de demarcação separa a retina avascular da vascularizada;
  2. A linha de demarcação adquire volume, formando uma prega;
  3. Estendendo-se a partir da prega, observa-se tecido proliferativo fibrovascular extrarretiniano que se estende para o vítreo;
  4. Descolamento subtotal da retina; resulta da contracção do tecido proliferativo, que separa a retina da coroideia subjacente;
  5. Descolamento total da retina (corresponde à antiga designação fibroplasia retrolenticular).

Extensão – Designa a área circunferencial dentro da qual se observam alterações, expressas em sectores circulares de 30º (ou em “horas”); tem interesse apenas em estádios mais avançados: por ex., se a RP se estende entre 12 horas e 3 horas, terá extensão de 90º.

Doença plus (+) – Designa a existência de sinais de incompetência vascular. Traduz-se por dilatação e tortuosidade vascular progressivas que podem também atingir outras estruturas, como a íris. A presença de doença plus, habitualmente verificada em olhos que se encontram em estádio 3, conjugada como a sua extensão, pode sugerir a evolução iminente para um estádio de doença grave e irreversível, se não tratada.
A designação de doença rush denomina situações extremas em que há agravamento muito rápido, notório de dia para dia.

Nota: Cada caso é classificado em função do estádio mais avançado, da zona mais posterior e da presença de doença plus. Em regra, nos casos de RP ligeira até estádio 2, sem doença plus (+), verifica-se resolução completa.

Retinopatia limiar – Esta designação refere-se a estádio de evolução de retinopatia em que o risco de descolamento é ~ 50%; corresponde a uma retinopatia em estádio 3 atingindo a zona I ou II, numa extensão de 5 horas contínuas ou 8 horas descontínuas.

Retinopatia pré-limiar – Esta designação traduz um padrão requerendo acompanhamento mais rigoroso face ao risco de evolução para retinopatia limiar

Diagnóstico

O diagnóstico de RP baseia-se nos achados obtidos por oftalmoscopia binocular indirecta, da competência do oftalmologista.

Rastreio oftalmológico

Havendo antecedentes de prematuridade e factores de risco, torna-se obrigatório proceder ao rastreio da retinopatia aguda; tal rastreio deve começar ainda quando a criança está hospitalizada em unidades de cuidados intensivos neonatais.

De acordo com as normas de 2013 da Academia Americana de Pediatria e da Associação Americana de Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo, são considerados lactentes em risco, por conseguinte com indicação para rastreio, todos aqueles com antecedentes de peso de nascimento (PN) inferior a 1500 g e de idade gestacional (IG) igual ou inferior a 32 semanas (ou com PN entre 1500 e 2000 gramas ou IG superior a 32 semanas havendo concomitantemente factores de risco, – designadamente instabilidade clínica e necessidade de suporte ventilatório).

O primeiro exame deve ser efectuado em função da IG ao nascer e da idade cronológica em semanas. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Primeiro exame oftalmológico

Idade Gestacional ao Nascer (semanas) Idade Pós-natal (semanas)
22 9
23 8
24 7
25 6
26 5
27-32 4

A partir do primeiro exame, o oftalmologista adapta o seguimento às particularidades de cada caso, designadamente as relacionadas com a gravidade.

No âmbito do rastreio da RP chama-se a atenção para uma aparelhagem moderna (câmara de fibras ópticas designada por RetCam, adaptada para fundoscopia e que permite visualizar imagens digitalizadas do fundo do olho com assistência por computador); é aplicável à telemedicina e pode ser utilizada por neonatologista treinado com o apoio de oftalmologia. Tal como para o método convencional, há necessidades de dilatação pupilar > 8 mm, o que se consegue com tropicamida a 0,5% (30-45 minutos antes da observação).

Estudos recentes em 2018, incidindo sobre os níveis do péptido natriurético urinário (NTproBNP) no RN em risco de retinopatia da prematuridade, concluíram que apenas nos casos com idade gestacional inferior a 30 semanas tal marcador poderá contribuir para identificar situação de risco de tal patologia.

A este propósito, especula-se que acima das 30 semanas, a patogénese da retinopatia poderá incluir certos mecanismos que poderão divergir dos verificados em idades gestacionais mais baixas.

Em termos de custo-benefício há que referir o custo de 100.000 dólares USA, confrontado com o custo dos cuidados assistenciais relacionados com a cegueira por RP: 1-5 milhões de dólares USA.

Após alta hospitalar devem ser feitos exames periódicos, regra geral entre os 6 e os 12 meses de idade pós-natal, entre os 2 e 2 anos e meio, entre os 3 e meio e 4 anos; e, depois, bianualmente.

Prevenção e tratamento

Na fase actual dos conhecimentos não existe qualquer fármaco para prevenir ou tratar a RP. Salienta-se, no entanto, como medida prioritária a prevenção do parto pré-termo, a necessidade de vigilância rigorosa da oxigenoterapia administrada ao RN pré-termo e da monitorização rigorosa da pressão arterial de O2 e de CO2 evitando a ultrapassagem de níveis críticos.

O objectivo do tratamento, da competência do oftalmologista, é deter a evolução para alterações estruturais graves (descolamento da retina), tentando evitar a perda visual, tendo em conta os efeitos iatrogénicos da própria terapêutica. Está indicado quando a retinopatia atinge o estádio limiar, ou pré-limiar com risco de descolamento de retina.

Através da ablação da retina isquémica, periférica ao tecido proliferativo, pretende-se diminuir a produção local de factores angiogénicos e deter o processo. A ablação é feita pela crioterapia (estudo CRYO-ROP) ou pelo método laser (árgon verde ou díodo vermelho). Pelas suas características menos agressivas, o método de fotocoagulação com laser de díodo é o método de eleição.

Na presença de descolamento de retina (estádios 4 ou 5) a ablação retiniana pode ser coadjuvada por vitrectomia e indentação escleral. No entanto, nesta fase o prognóstico é mau.

Nalguns centros tem sido utilizado um agente anti-angiogénico (à base de anticorpos inibidores de VEGF) intravítreo. Em 2011, de acordo com o estudo BEAT-ROP, foi demonstrada eficácia superior de bevacizumab/Avastin®. Admite-se que no futuro tenha papel importante o tratamento com células estaminais e com IGF-1.

Prognóstico

O período de tempo que medeia entre as 32 e as 42 semanas de gestação é crucial no que respeita à evolução da retinopatia. Pode ocorrer a sua regressão ou, pelo contrário, a evolução para formas graves. Na maioria dos casos ela regride, observando-se que o seu início ocorre por volta das 37 semanas de idade gestacional (entre as 34 e 46 semanas) e dura em média 15 semanas. A regressão com resolução completa é a regra nos casos de RP ligeira – estádio 1 ou 2, como foi referido antes.

No outro extremo de gravidade encontra-se a RP que atinge a zona I, situação associada a 90% de risco de progressão para descolamento da retina, se não tratada. Mesmo quando tratados, 50% de tais casos evoluem desfavoravelmente; por esta razão, mais recentemente tende a intervir-se mais precocemente nas crianças com RP na zona I ou na zona II.

Após a regressão espontânea ou induzida pelo tratamento, poderão manter-se alterações retinianas residuais de gravidade variável: em geral são tanto mais frequentes e mais graves quanto mais evoluído o estádio atingido.

Como consequência destas sequelas, são de destacar: o astigmatismo por distorção retiniana, a maculopatia cicatricial e o descolamento retiniano tardio do jovem ou adulto.

Os defeitos refractivos são mais frequentes nas crianças com antecedentes de prematuridade extrema (PN<1000 gramas). Mesmo não se tendo verificado evolução para RP grave, é mais frequente a ocorrência de miopia, astigmatismo e anisometropia (diferença significativa da capacidade refractiva entre os dois olhos). Este último defeito refractivo pode ser uma causa de ambliopia.

As perturbações da motilidade ocular (estrabismo e nistagmo) poderão tornar-se manifestas posteriormente, relacionando-se, quer com sequelas oculares (retinopatia e defeitos refractivos), quer com lesões do sistema nervoso central associadas.

Devido a erros refractivos significativos ou a estrabismo, a criança com antecedentes de prematuridade tem maior probabilidade de vir a ser amblíope.

Retinoblastoma

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

O retinoblastoma, desenvolvendo-se a partir de células retinianas nucleadas imaturas, é o tumor maligno ocular mais frequente na criança. A célula estaminal ou primordial do retinoblastoma parece ser neuronal.

A sua incidência mundial oscila, de acordo com diversas estatísticas, entre 1 para 14.000 a 1/34.000 recém-nascidos. Em 90% dos casos surge antes dos 3 anos, sendo 30% bilateral. Numa minoria (10%) há antecedentes familiares.

A sua importância deriva essencialmente do facto de ser letal quando não tratado; inversamente, quando diagnosticado e tratado de forma oportuna, a percentagem de cura aumenta significativamente.

Etiopatogénese

O retinoblastoma representa a expressão fenotípica da ausência de um gene supressor tumoral, designado por gene do retinoblastoma ou RB1, que se localiza no braço longo, banda 14, do cromossoma 13 (13q14). Trata-se do primeiro gene supressor tumoral humano que foi completamente caracterizado. A sua função é suprimir o crescimento celular. Duas cópias normais do gene estão presentes na maioria das células humanas, sendo a sua função limitar o crescimento da célula; de referir que apenas uma cópia normal basta para cumprir a sua função. Antes de se conhecer a existência deste gene, o retinoblastoma era classificado como esporádico ou hereditário. Clínica e histologicamente, ambas as formas são indistinguíveis. A variedade hereditária, associando-se a tumores múltiplos e a compromisso binocular, pode ocorrer sob as formas autossómica dominante (mais frequente), ou recessiva.

Como resultado do crescimento celular superando a capacidade de irrigação sanguínea, surge um processo de necrose e de calcificação. Enquanto as células tumorais com origem nas camadas mais internas da retina crescem em direcção ao cristalino invadindo outras zonas da retina, as que se originam nas camadas mais externas podem levar ao descolamento da mesma. O retinoblastoma, através da invasão do nervo óptico ou da coroideia, pode invadir a órbita, salientando-se que a disseminação à distância, por via linfática ou sanguínea, surge raramente.

No respeitante ao tipo histológico em causa, cabe salientar que o sarcoma osteogénico é o mais frequente. Outros tipos tumorais possíveis são: neuroblastoma, condrossarcoma, rabdomiossarcoma, etc.. Nos casos de retinoblastoma hereditário existe elevada probabilidade de aparecimento de pinealoblastoma, altamente invasivo e letal, habitualmente ocorrendo nos primeiros quatro anos de vida.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As principais formas de apresentação do retinoblastoma são estrabismo (em geral o primeiro sinal) e diminuição da visão ou leucocória. A propósito de leucocória, cabe referir a ausência do reflexo vermelho da pupila da criança quando o foco luminoso forte atravessa a pupila. (Figura 4)

Mais raramente e/ou com a progressão do tumor, este pode manifestar-se por hifema espontâneo (presença de sangue entre a íris e a córnea), glaucoma secundário, anisocória (midríase do olho afectado), heterocromia iridiana (diferente coloração da íris), nistagmo ou inflamação crónica. Em fases muito avançadas de proliferação ultrapassando os limites do globo, poderá sugerir o diagnóstico de celulite orbitária.

FIGURA 4. Leucocória do globo ocular esquerdo

De acordo com a classificação internacional (2007) são considerados cinco grupos de A a E em função da extensão: A (≤ 3 mm) ou small; B (bigger); C (contained); D (diffuse); E (extensive).

O diagnóstico diferencial faz-se, fundamentalmente, com a catarata, uveíte ganulomatosa anterior, toxocarose, toxoplasmose, retinite vírica, displasia da retina, retinosquise juvenil ligada ao X, etc., sendo que a anamnese e o exame objectivo geral se tornam fundamentais para orientar a destrinça.

O exame do fundo do olho sob dilatação pupilar, realizado por oftalmologista é fundamental; o aspecto é variável consoante o tipo de crescimento tumoral e a extensão e número de focos tumorais. (Figura 5)

A presença de calcificações retinianas em crianças com menos de 2 anos de idade é considerada sinal patognomónico de retinoblastoma, o que não acontece após os 2 anos. (Figura 6)

FIGURA 5. Retinoblastoma: aspecto da fundoscopia

FIGURA 6. Retinoblastoma – imagem de calcificação (TAC)

Após fundoscopia, habitualmente repetida sob anestesia geral, o exame completa-se através da ecografia ocular realizada em ambos os olhos, e do estudo imagiológico (TAC, RM) para confirmação do diagnóstico e avaliação dos estádios evolutivos da doença.

Tratamento

O tratamento, da competência do oftalmologista, pode ser:

  1. conservador (nos casos de tumores de pequenas dimensões e intraoculares por ex. fotocoagulação, laser, termoterapia por laser díodo, quimiorredução, crioterapia, braquiterapia, radioterapia, etc.);
  2. radical (nos casos de grandes dimensões e associados à invasão do nervo óptico-enucleação).  Salienta-se que a quimioterapia está indicada em associação às modalidades atrás referidas – a) e b).

Em centros especializados estão a ser usados novos tratamentos, alguns em fase experimental: vírus oncolíticos, genes “suicidas” tendo como vector adenovírus com gene de timidina de herpes simplex seguido de administração de ganciclovir, esterovírus angiostáticos, factor anti-VEGF, carboplatina de libertação lenta, etc..

Prognóstico

O factor de prognóstico mais importante é relacionável com o compromisso do nervo óptico; se forem detectadas células tumorais na margem do nervo óptico ou no espaço subaracnoideu, o prognóstico é mais reservado.

Nos casos de tumores unilaterais e intra-oculares, a taxa de cura é cerca de 90%.

O retinoblastoma bilateral associa-se a elevado risco de desenvolvimento doutras neoplasias primárias ao longo da vida, o que pode ainda ser potenciado pela radioterapia. O tempo médio de latência é cerca de 13 anos.

Nos casos de mutação genética germinal, o risco de recorrência é elevado.

Aconselhamento genético

O risco de retinoblastoma na descendência de um indivíduo com retinoblastoma só existe quando o doente tem uma mutação germinal. A avaliação do risco determina-se pela história familiar e pelo grau de compromisso tumoral, uni ou bilateral (ou multifocal). Os pais e irmãos de doentes afectados por retinoblastoma deverão também ser submetidos a exame fundoscópico. A penetrância do RB1 é cerca de 90%, o que corresponde a risco de passagem à descendência ~45%.

Agradecimento

As Figuras 4, 5 e 6 foram gentilmente cedidas pelos colegas Drs. Maria Araújo e Augusto Magalhães da Secção de Oftalmologia Pediátrica do Serviço de Oftalmologia do Hospital de São João, Porto, e a Figura 2 pelo Prof. João Goyri O´Neill da FCM/UNL e Serviço Universitário de Oftalmologia do Hospital Egas Moniz, Lisboa, a quem o editor e autora muito agradecem.

BIBLIOGRAFIA

Ahmadpour-K M, Jashni Motlagh A, Rasoulinejad SA, et al. Correlation between hyperglycemia and retinopathy of prematurity. Pediatr Int 2014; 56: 726-730

American Academy of Pediatrics, American Academy of Ophthalmology, American Association of Pediatric Ophthalmology and Strabismus. Screening examination of premature infants for retinopathy of prematurity. Pediatrics 2001; 108: 809-811

Aranda JV, Qu J, Valencia GB, Beharry KD. Pharmacologic interventions for the prevention and treatment of retinopathy of prematurity. Semin Perinatol 2019; 43: 360-366

Berrington JE, Clarke P, Embleton ND, et al. Retinopathy of prematurity screening at ≥30 weeks: urinary NTpro-BNP performance. Acta Paediatrica 2018; 107: 1722-1725

Brito C, Abrantes P. Oftalmologia. In Orientação Diagnóstica em Pediatria. Palminha J, Carrilho E M (eds). Lisboa: Lidel, 2003; 685-718

Cetinkaya M, Erener-Ercan T, Cansev M, et al. The utility of serial plasma sE-selectin measurements in the prediction of ROP in premature infants. Early Human Development 2014; 90: 517-521

Chiang MF, Keenan JD, Starren J, et al. Accuracy and reliability of remote retinopathy of prematurity diagnosis. Arch Ophthalmol 2006; 124: 322-327

Committee for the Classification of Retinopathy of Prematurity. Arch Ophthalmol 1984; 102: 1130-1134

Darlow BA, Ells AI, Gilbert CE, et al. Are we there yet? Bevacizumab therapy for retinopathy of prematurity. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2013; 98; F170-F74

Edwards EM, Horbar JD. Retinopathy of prematurity prevention, screening and treatment programmes. Semin Perinatol 2019; 43: 341-343

Gilbert C, Darlow BA. Retinopathy of prematurity. A world update. Semin Perinatol 2019; 43: 315-316

Good WV. Screening for retinopathy of prematurity: no ophthalmologist required? BJO 2000; 84: 127-128

Hartnett, ME. Pediatric Retina. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005

Hong HK, Lee HJ, Ko JH, et al. Neonatal systemic inflammation in rats alters retinal vessels and stimulates pathologic features of ROP. J Neuroinflammation 2014; 11:87

Hutcheson KA. Retinopathy of prematurity. Curr Opin Ophthalmol 2003; 14: 286-290

Kanski JJ (ed). Oftalmologia Clínica. Barcelona: Elsevier, 2012

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Lee J, Dammann O. Perinatal infection, inflammation and ROP. Semin Fetal Neonatal Med 2012; 17: 26-29

Magalhães AA. Retina Pediátrica (Monografia). Porto: Sociedade Portuguesa de Oftalmologia, 2007

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Poll-Thé BT, Mailette L, Barth PG. The eye as window to inborn errors of metabolism. J Inherit Metab Dis 2003; 26: 229-244

Repka MX, Palmer EA, Tung B. Involution of retinopathy of prematurity. Cryotherapy for retinopathy of prematurity cooperative group. Arch Ophthalmol 2000; 118: 645-649

Reynolds JD, Dobson V, Quinn GE, Fielder AR, Palmer EA, Saunders RA, Hardy RJ, Phelps DL, Baker JD, Trese MT, Schaffer D, Tung B. Evidence-based screening criteria for retinopathy of prematurity: natural history data from the CRYO-ROP and LIGHT-ROP studies. Arch Ophthalmol 2002; 120: 1470-1476

Rodrigues P, Nepomuceno J, Brito C, Mesquita J. Perspectivas do estudo da diabetes ocular numa consulta de pediatria. Acta Pediatr Port 2003; 34: 13-15

VanderVeen DK, Cataltep SU. Anti-vascular endothelial growth factor intravitreal therapy for retinopathy of prematurity. Semin Perinatol 2019; 43: 375-380

Wu C, Petersen RA, VanderVeen DK. RetCam imaging for retinopathy of prematurity screening. JAAPOS 2006; 10: 107-111

SÍNDROMA DO “OLHO VERMELHO”

Definição

A designação de “olho vermelho”, traduzindo um conceito semiológico, diz respeito a um conjunto de situações frequentes em Oftalmologia Pediátrica em que predomina, entre outros sinais ou sintomas, o rubor ou hiperémia do globo ocular.

Etiopatogénese e semiologia

A hiperémia do globo ocular pode surgir nas seguintes situações:

  1. hiperémia dos vasos conjuntivais exibindo grande ramificação (ou injecção conjuntival, com aspecto de vermelho vivo), sendo de salientar que em tal circunstância a hiperémia é progressivamente menos acentuada à medida que se aproxima da zona de transição da córnea com a esclerótica (aspecto de halo branco pericorneano);
  2. hiperémia ou injecção ciliar traduzindo-se por coloração vermelha-azulada mais intensa, precisamente junto ao bordo corneano;
  3. combinação das situações descritas em a) e b);
  4. hiperémia dos vasos corneanos superficiais bem visíveis em continuidade com os vasos da conjuntiva, também hiperemiados;
  5. hiperémia dos vasos corneanos profundos em escova ou do próprio parênquima corneano, independentes estes dos vasos conjuntivais superficiais;
  6. sufusão hemorrágica subconjuntival ou hiposfagma, sem compromisso visual, e

Em função de determinados sintomas e sinais associados é, em certa medida, possível admitir as entidades clínicas subjacentes à hiperémia ocular:

  • A associação a prurido intenso indica, em geral, a presença de conjuntivite alérgica;
  • A dor “em pontada”, de início agudo e localizada sugere a presença de corpo estranho;
  • A dor mais insidiosa, profunda, de carácter difuso, e por vezes mal definida, pode acompanhar um quadro de uveíte ou de neurite óptica;
  • A “sensação de corpo estranho”, de queimadura ou de desconforto, mais ou menos intensa, pode indiciar alteração local nas pálpebras, conjuntiva, córnea, esclerótica ou episclera.

A fotofobia tem uma importância limitada como possível indicador da localização da doença que cursa com “olho vermelho”: apesar de estar frequentemente associada a doença intra-ocular (uveíte, glaucoma) pode, também, surgir em processos patológicos extra-oculares (conjuntivite, ceratite).

Seguidamente são abordadas as principais situações clínicas que cursam com “olho vermelho”, salientando-se que, na maioria das mesmas, está indicado o encaminhamento para o oftalmologista.

Quadros clínicos

Na perspectiva de sistematização anátomo-fisiológica (das pálpebras ao sistema ocular propriamente dito) são abordados os quadros clínicos clássicos, com especial realce para a conjuntivite.

Hordéolo interno e calázio

O hordéolo interno é um pequeno tumor hiperemiado ou inflamação nodular, indolor (embora doloroso à compressão), duro, aderente à cartilagem do tarso, no bordo das pálpebras, procidente para dentro, devido a inflamação das glândulas de Zeiss ou de Moll. Trata-se de foliculite.

Quando se verifica inflamação crónica da glândula de Meibomius, o processo inflamatório designa-se por calázio; a tumefacção é indolor e mais dura. (Figura 1)

O agente etiológico mais frequente é o Staphylococcus aureus; no entanto, o exsudado pode ser estéril.

Tal quadro clínico deve ser inicialmente tratado com aplicação local de compressas quentes associadas à utilização tópica de pomadas (ou colírios); o antibiótico tópico de escolha é a flucloxacilina ou, em alternativa, o ácido fusídico, canamicina, gentamicina ou cloranfenicol (de 4-4 horas e 5 vezes por dia), entre outros.

Se a lesão resistir ao tratamento médico pode, após o desaparecimento da inflamação aguda e adequada delimitação capsular, ser removida cirurgicamente, por via cutânea ou conjuntival.

A antibioticoterapia sistémica somente está indicada se se verificar celulite difusa ou adenite pré-auricular.

Hordéolo externo

Esta situação (sinónima de terçol e, na designação popular, de terçolho) é um processo inflamatório agudo supurado, em forma de ”grão de cevada” que se desenvolve no bordo da pálpebra, procidente para fora, ao nível de uma das glândulas sebáceas (glândulas de Zeiss), acompanhado de dor. (Figura 2)

Na prática, a actuação é semelhante à já referida a propósito do calázio e hordéolo interno.

Blefarite

Trata-se duma inflamação (aguda ou crónica) do bordo da pálpebra. Originando sensação de “irritação” e prurido, são descritas as formas estafilocócica e seborreica. A pediculose das pálpebras pode originar um quadro de blefarite. A etiologia mais frequente é estafilocócica.

FIGURA 1. Calázio. (NIHDE)

FIGURA 2. Hordéolo externo. (NIHDE)

Na prática é suficiente a aplicação tópica empírica de unguento (pomada) oftálmico com antibiótico de 4-4 horas (5 vezes por dia): ácido fusídico, polimixina, cloranfenicol, gentamicina ou canamicina.

Está indicada a aplicação de calor seco local duas a quatro vezes por dia.

Somente se deve recorrer à antibioticoterapia sistémica (com flucloxacilina nos casos identificados de etiologia estafilocócica) se surgir abcesso da pálpebra.

Dacriocistite

A dacriocistite é uma infecção do saco lacrimal, geralmente obstruído; os agentes etiológicos mais frequentes são: S. aureus, S. coagulase negativo, S. pneumoniae, Streptococcus pyogenes (grupo A), etc.. Exercendo pressão sobre o saco nasolacrimal verifica-se a saída de exsudado purulento.

O antibiótico de primeira escolha é a flucloxacilina; em alternativa, amoxicilina-clavulanato, cefalosporinas de segunda ou terceira geração, ou clindamicina.

A duração do tratamento é de 7-10 dias, sendo que poderá estar indicado o exame cultural do exsudado com colaboração de Gram; havendo sinais de pus colectado, o oftalmologista procede a drenagem cirúrgica. (Figura 3)

FIGURA 3. Dacriocistite: tumefacção do saco lacrimal

Conjuntivite aguda

Definição e importância do problema

A conjuntivite aguda, constituindo, seguramente, a principal causa de “olho vermelho” na idade pediátrica, define-se como inflamação da conjuntiva provocada por infecção bacteriana ou vírica, estado alérgico ou irritação mecânica (corpos estranhos, líquidos, etc.). As conjuntivites em geral podem evoluir de modo agudo ou crónico.

Anatomia patológica

Para além da dilatação vascular difusa, exsudação e quemose (ou infiltração edematosa da conjuntiva ocular, na maior parte das vezes de origem inflamatória, dando origem a um rebordo saliente, avermelhado, em volta da córnea), existem cinco tipos de resposta morfológica da conjuntiva: papilar, folicular, membranosa/pseudomembranosa, cicatricial e granulomatosa.

Sob o ponto de vista biomicroscópico, a caracterização dos aglomerados inflamatórios na conjuntiva tarsal reveste-se de particular importância para estabelecer a destrinça entre conjuntivite vírica (na qual se verifica a existência de aglomerados inflamatórios com vascularização interlesional, designados por folículos), e a conjuntivite bacteriana ou alérgica (caracterizadas pela evidência de aglomerados com um pedículo vascular central, designados por papilas).

Manifestações clínicas

As conjuntivites agudas, para além da hiperémia conjuntival, sensação de “areia ou de corpo estranho” no olho, evidenciam-se por prurido, ardor e aparecimento de lacrimejo e secreção aquosa, mucosa ou purulenta; havendo compromisso da conjuntiva palpebral, surgirá edema palpebral. Em geral não evoluem com dor, excepto se existir concomitante compromisso da córnea. Os reflexos pupilares são normais.

A presença de secreção purulenta com encerramento palpebral matinal sugere infecção bacteriana. Nas conjuntivites bacterianas (estando em causa, sobretudo, Streptococcus pneumoniae, Moraxella, Haemophilus influenzae e Chlamydia trachomatis, do que resulta o quadro anátomo-patológico de conjuntivite papilar), a secreção varia entre mucosa e mucopurulenta, em função da virulência do germe. (Figura 4)

No caso do H. influenzae é habitual haver secreção simultaneamente sanguinolenta, a qual não deverá ser confundida com hemorragia subconjuntival ou hiposfagma; é autolimitada e, por isso, de evolução favorável.

Nas situações de etiologia por C. trachomatis é habitual a concomitância de sintomatologia do foro respiratório.

O período de contagiosidade das conjuntivites bacterianas agudas, dum modo geral, termina cerca de 24 horas após início do tratamento adequado.

No âmbito das conjuntivites agudas de causa vírica (a que corresponde, em geral, o quadro anátomo-patológico de conjuntivite folicular), cabe uma referência especial ao Adenovirus, provavelmente o agente mais frequente, excluindo o período neonatal. Salienta-se a sua elevada contagiosidade e a possibilidade de compromisso concomitante da córnea. (Figura 5)

Em termos de manifestações clínicas, duas associações possíveis são: o aparecimento de secreção muco-sanguinolenta (tal como nas infecções por H. influenzae) e o achado de adenomegália pré-auricular.

O período de contagiosidade das conjuntivites víricas agudas, dum modo geral, termina cerca de 7 dias após início dos sinais e sintomas.

A chamada oftalmia neonatal corresponde a uma forma de conjuntivite que ocorre nas primeiras quatro semanas de vida (período neonatal) com uma frequência oscilando entre 1 e 12%; trata-se da doença ocular mais frequente no recém-nascido.

Em função da idade de manifestação inicial são considerados vários agentes etiológicos possíveis.

Se surgir entre 1-3 dias após o parto, sendo notória secreção purulenta espessa e abundante, a causa será a Neisseria gonorrhoeae (com maior probabilidade) ou Herpes simplex. Salienta-se a probabilidade de a infecção por gonococo ou por vírus herpes simples se poder estender à córnea; por isso, esta situação constitui uma emergência oftalmológica.

Se as manifestações surgirem entre os 5 e 10 dias, os agentes etiológicos prováveis serão a Chlamydia trachomatis ou cocos gram-positivos (Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus do grupo B, etc.).

Nas conjuntivites surgidas após os 7 dias de vida está em causa geralmente o vírus Herpes simplex, sendo que a respectiva infecção, como foi referido antes, poderá manifestar-se já antes. Pode ser uni ou bilateral; habitualmente verifica-se secreção serosa ou mucopurulenta.

No período neonatal poderá surgir uma forma de conjuntivite de causa química (conjuntivite química), de evolução autolimitada (24-48 horas) a qual se relaciona, curiosamente, com a utilização de nitrato de prata a 1% na profilaxia da oftalmia gonocócica levada a efeito já na sala de parto (método Credé); os sinais surgem, em geral, entre as 6 e 12 horas após o parto: exsudado mais frequentemente aquoso, podendo evoluir para purulento.

Refira-se, no entanto, que tal medida contribuiu, de facto, para a diminuição da incidência da conjuntivite gonocócica.

A conjuntivite alérgica aguda deve-se a uma reacção mediada pela IgE (tipo 1) a qual é estimulada por alergénios como pó da casa, pêlo de animais, pólen, etc..

FIGURA 4. Conjuntivite papilar com exsudado purulento

FIGURA 5. Conjuntivite vírica

Diagnóstico laboratorial

Não se procede a exames culturais do exsudado conjuntival de modo sistemático, tendo em conta que a conjuntivite bacteriana responde a grande número de antimicrobianos tópicos aplicados segundo critério empírico; por outro lado, estando em causa infecção conjuntival aguda provavelmente vírica, a aplicação de antimicrobianos tópicos não comporta efeitos colaterais significativos.

No entanto, no período neonatal, perante suspeita de conjuntivite gonocócica, deverá proceder-se a coloração pelo método de Gram e a exame cultural do exsudado.

Tratamento
Recém-nascido

A antibioticoterapia a aplicar depende do agente etiológico de que há suspeita; poderá haver indicação de internamento (utilizando antibioticoterapia por via sistémica/endovenosa), sendo indispensável o apoio do oftalmologista.

  • gonorrhoeae
    O antibiótico de primeira escolha é a ceftriaxona na dose de 25-50 mg/kg (dose máxima: 125 mg) por via intravenosa ou intramuscular em dose única; este esquema é igualmente aplicável a recém-nascidos de mães com gonorreia, não tratadas. Pode empregar-se cefotaxima por via endovenosa durante 10-14 dias (50 mg/kg/dia divididos por duas doses).
    Como tratamento tópico está indicada lavagem com soro fisiológico e aplicação de compressas esterilizadas aquecidas, sobre a pálpebra encerrada.
    A detecção desta infecção no recém-nascido implica igualmente o tratamento dos progenitores.
  • Chlamydia trachomatis
    Os antibióticos de eleição são macrólidos: eritromicina (40 mg/kg/dia em 4 doses) ou claritromicina (15 mg/kg/dia em duas doses) durante 14 dias.
    Torna-se também indispensável o tratamento dos progenitores.
  • Outros germes: S. aureus, S. pneumoniae, H. influenzae
    Nestes casos está indicada a aplicação de unguentos (pomadas) oftálmicos de 4-4 horas – cinco vezes por dia, ou gotas oftálmicas (colírio) de 3-3 horas – seis vezes por dia, à base de ácido fusídico, cloranfenicol, oxitetraciclina, polimixina, etc. durante 7-10 dias.
Outras idades

Não se tratando do recém-nascido, não está provada a eficácia da terapêutica antibiótica sistémica.

Para o tratamento das conjuntivites bacterianas agudas por germes tais como H. influenzae, S. pneumoniae, S. aureus, Streptococcus pyogenes (grupo A) são empregues colírios ou unguentos à base de cloranfenicol, polimixina, gentamicina, tetraciclina, ou fluroquinolonas de quarta geração (por ex: gatifloxacina) etc., durante 7 a 10 dias.

Conjuntivite crónica

Esta entidade tem como características essenciais a ausência de dor e a evolução arrastada. As manifestações clínicas gerais incluem sensação de corpo estranho, prurido, injecção conjuntival, secreção mínima e perda de cílios. Compreende duas formas: infecciosa e alérgica.

A forma infecciosa é em geral secundária a blefarite, já abordada anteriormente; pode também ter origem vírica (por Papilomavirus, Mollusco contagiosum, etc.), sendo característica a recorrência de manifestações.

A conjuntivite alérgica constitui a causa mais frequente da doença crónica ocular. Os doentes afectados evidenciam com frequência antecedentes de doença atópica, como asma, eczema ou rinite, sendo os picos de incidência verificados na adolescência ou em adultos jovens; com efeito, cerca de 30% das crianças com manifestações diversas de doença alérgica evidenciam manifestações oculares, nomeadamente conjuntivite. Contudo, apesar da elevada prevalência, a conjuntivite alérgica raramente origina sequelas no sistema ocular.

Os sinais e sintomas são bilaterais incluindo prurido, lacrimejo, secreção mucosa, hiperémia conjuntival, edema palpebral e quemose; estão geralmente associados a manifestações nasais ou faríngeas.

As conjuntivites alérgicas crónicas apresentam-se sob cinco formas clínicas principais: 1) a sazonal (mais frequente, correspondendo a cerca de 80% dos casos de conjuntivite alérgica), manifestando-se durante certas épocas do ano em que circulam no ar determinados alergénios específicos como pólen de plantas; 2) a perene, variante da primeira, persistindo durante todo o ano, mais frequentemente associada a rinite perene; 3) a ceratoconjuntivite primaveril associada a história familiar de atopia; 4) ceratoconjuntivite atópica associada a dermatite atópica; e 5) a ceratoconjuntivite papilar gigante ou vernal que corresponde a uma alteração imunológica da conjuntiva superior tarsal, possivelmente desencadeada por uma variedade de corpos estranhos, incluindo lentes de contacto; traduz-se pela presença de papilas gigantes (diâmetro entre 0,5 e 1 mm); através do biomicroscópico utilizado pelo oftalmologista, é possível estabelecer correspondência anátomo-patológica com os chamados nódulos de Horner-Trantas (aglomerados justalímbicos de eosinófilos e células epiteliais degeneradas).

Estas alterações podem causar neovascularização e úlcera da córnea. Tal forma de ceratoconjuntivite, iniciando-se antes dos 10 anos de idade, regride dum modo geral durante a puberdade. (Figura 6)

Entre os sinais biomicroscópicos salientam-se as papilas tarsais (com diâmetro maior que 1 mm).

FIGURA 6. Conjuntivite alérgica

A actuação geral, que compreende fundamentalmente a aplicação de compressas frias e de colírio sucedâneo das lágrimas artificiais, é geralmente pouco eficaz nas crianças.

No âmbito da actuação do oftalmologista, a aplicação tópica de anti-histamínicos e estabilizadores dos mastócitos (olopatadina, cromoglicato) contribui para o alívio dos sintomas. A utilização tópica de corticosteróides (dexametasona, prednisolona), apenas aplicável a casos especiais, deve ser evitada.

A chamada conjuntivite papilar gigante é uma forma associada aos portadores de lentes de contacto, habitual em adolescentes.

Outras situações cursando com “olho vermelho”

Citam-se de modo genérico nesta alínea situações já abordadas noutros capítulos como a uveíte anterior aguda, o glaucoma agudo e a lesão aguda da córnea (ceratite ou queratite).

Relativamente à lesão da córnea, cabe referir que qualquer lesão corneana infecciosa, displásica ou traumática, se pode acompanhar de hiperémia conjuntival.

AGRADECIMENTO

O editor e autor agradecem muito reconhecidamente aos colegas Drs. Jorge Palmares e Augusto Magalhães a cedência das fotografias das Figuras 3 e 5 do Arquivo da Secção de Oftalmologia Pediátrica/Serviço de Oftalmologia do Hospital de São João, Porto.

BIBLIOGRAFIA

Bielory L. Allergic and immunologic disorders of the eye. Part II: ocular allergy. J Allergy Clin Immunol 2000; 106: 1019-1032

Chung CW. Eye disorders: bacterial conjunctivitis. West J Med 2000; 173: 202-205

David SP. Should we prescribe antibiotics for acute conjunctivitis? Am Fam Physician 2002; 66: 1649-1650

Everitt HA, Little PS, Smith PWF. A randomized controlled trial of management strategies for acute infective conjunctivitis in general practice. BMJ 2006; 333: 321-324

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Mah F. Bacterial conjuntivitis in pediatrics and primary care. Pediatr Clin North Am 2006; 53 (Suppl 1)

Moro M, Málaga S, Madero L (eds): CruzTratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nelson LB, Olitsky SE (eds). Harley’s Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 207-209

Richards A, Guzman-Cottrill JA. Conjunctivitis. Pediatr Rev 2010; 31:196-208

Tasman W, Jaeger EA (eds). Duane’s Clinical Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005

Taylor D, Hoyt CS. (eds) Pediatric Ophthalmology and Strabismus. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2005

Wilson EM, Saunders L, Rupal T (eds). Pediatric Ophthalmology. Berlin: Springer Verlag, 2009

Wright KW. Pediatric Ophthalmology for Primary Care. Elk Grove, Illinois: AAP, 2008

GLAUCOMA

Definição

O termo glaucoma designa um conjunto de doenças que se caracterizam por lesão do nervo óptico e perda de campo visual, habitualmente associadas a, ou provocadas por aumento da pressão intra-ocular (PIO) avaliada por tonometria.

Importância do problema

Trata-se duma situação relativamente prevalente na população geral (3%), sendo bastante mais frequente na população idosa, e muito rara na população infantil ou juvenil. Embora constitua menos de 0,07% das doenças do foro oftalmológico, de acordo com diversos estudos epidemiológicos pode resultar em amaurose em cerca de 3 a 12% dos casos. Nas formas congénitas têm sido apuradas incidências da ordem de 1/10.000 a 1/20.000 recém-nascidos.

Etiopatogénese e classificação

O humor aquoso produzido pelo corpo ciliar passa da câmara posterior, através do orifício pupilar, para a câmara anterior, sendo drenado através da malha trabecular do ângulo iridocorneano e do canal de Schlemm para a circulação geral pelas chamadas veias aquosas. (Figura 1)

A pressão intra-ocular (PIO) – com um valor médio de 7 mmHg na data do nascimento, aumentando cerca de 1 mmHg cada 2 anos até aos 12 anos – resulta do equilíbrio entre a produção de humor aquoso e a respectiva drenagem. Se houver excesso de produção ou obstáculo à drenagem verifica-se acumulação de líquido no interior do globo ocular. O excesso de PIO compromete a vascularização do nervo óptico levando à perda de função progressiva das fibras nervosas de que se compõe, com consequente perda de campo visual.

A imaturidade do colagénio da córnea e esclerótica na infância confere elasticidade ao globo ocular. Na criança, o excesso de PIO pode ainda originar aumento de volume do globo ocular (buftalmo) e da córnea (megalocórnea); o estiramento desta estrutura, assim como a rutura das camadas mais posteriores da mesma favorecem a entrada de humor aquoso na sua espessura, do que resulta edema e consequente perda da habitual transparência.

Da etiopatogénese decorre um dos modos de classificar o glaucoma, podendo considerar-se dois grandes grupos:

  1. Os glaucomas resultantes de qualquer perturbação do sistema de circulação e de drenagem do humor aquoso, relacionável com anomalia isolada do ângulo iridocorneano (disgenesia da malha trabecular) e alterações secundárias do desenvolvimento da íris e corpo ciliar – são os glaucomas primários; (Figura 1)
  2. Os glaucomas resultantes de doenças oculares congénitas ou adquiridas várias (por exemplo outro tipo de disgenesias como do segmento anterior do globo ocular, do segmento posterior ou de todo o globo), doenças inflamatórias ou infecciosas do globo ocular (por ex. uveíte), doenças metabólicas (por ex. mucopolissacaridoses), doenças do tecido conjuntivo, tumores oculares (por retinoblastoma), bloqueio da pupila por sinéquias posteriores da íris ao cristalino, subluxação do cristalino (por ex. na homocistinúria e síndroma de Marfan), artrite crónica juvenil (por sinéquias inflamatórias – goniossinéquias), neurofibromatoses, anomalias craniofaciais sindromáticas, cromossomopatias, lesões resultantes de traumatismos, lesões iatrogénicas (como as que resultam de intervenções cirúrgicas por catarata, e do uso prolongado de corticosteróides locais ou sistémicos etc.) – são os glaucomas secundários.

Existem outras classificações relacionadas, nomeadamente com: o modo de aparecimento (agudo ou crónico), idade de aparecimento, idade de manifestação (no período neonatal ou ulteriormente).

FIGURA 1. Ângulo iridocorneano

Manifestações clínicas e diagnóstico

O glaucoma primário (correspondendo a cerca de 60-70% dos casos pediátricos, em regra congénito, pelo facto de a PIO ter início geralmente no período pré-natal), evidencia sintomatologia antes dos 3 anos de idade, enquanto o que é gerado após o nascimento (em regra secundário, também chamado adquirido ou juvenil) evidencia sintomatologia entre os 3 e 30 anos.

As manifestações dependem muito da magnitude da elevação da PIO e da idade de início. Os achados mais frequentes são: lacrimejo, fotofobia, blefarospasmo, megalocórnea, buftalmo e opacidade corneana.

Uma PIO elevada muito precoce, evidenciada logo na data do nascimento, pode provocar opacificação, procidência e aumento de dimensões da córnea. Nos casos de aumento mais gradual da PIO poderá verificar-se, não opacidade corneana, mas apenas buftalmo ou buftalmia.

A ocorrência simultânea de lacrimejo, fotofobia e blefarospasmo, no recém-nascido ou lactente, associados a edema corneano, é muito sugestiva de hipertensão ocular.

Após os 3 anos, como diminui a elasticidade do segmento anterior, a criança pode evidenciar miopia progressiva, estrabismo ou percepção de perda de campo visual; nestas situações a sintomatologia relaciona-se essencialmente com a perda visual.

O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se com a megalocórnea, inflamações, traumatismos de nascimento, obstrução das vias nasolacrimais, e ceratoconjuntivites, entre outras situações.

Seguidamente é dada ênfase a duas formas clínicas de glaucoma primário.

Glaucoma primário congénito

É a forma mais frequente de glaucoma no recém-nascido e lactente.

Na maioria dos casos trata-se de formas esporádicas, demonstrando-se em cerca de 10-40% dos casos antecedentes familiares e hereditariedade autossómica recessiva com penetrância variável. Conhecem-se pelo menos três loci cromossómicos responsáveis pela hereditariedade do glaucoma congénito primário. O gene CYP1B1 foi identificado num desses três loci.

O risco de ocorrência em irmãos de uma criança afectada, sem consanguinidade dos pais, é muito baixo (3% para o sexo masculino e 0% para uma criança do sexo feminino). Apesar de a probabilidade ser baixa, recomenda-se o exame de irmãos e descendentes de doentes com glaucoma congénito primário, especialmente nos primeiros 6 meses de vida.

Glaucoma primário juvenil

Associa-se a miopia e história familiar de glaucoma, de início entre os 5 e 20 anos. Parece haver associação com o gene GLC1A do cromossoma 1q21-q31.

Exames complementares

Para além da tonometria e doutros exames especializados que ultrapassam o âmbito deste trabalho, o especialista recorre em geral a exames imagiológicos, destacando-se a ecografia para avaliação do comprimento axial do globo ocular, com relevância na fase de opção terapêutica e no estudo evolutivo.

Tratamento

A abordagem terapêutica médica ou cirúrgica (a cargo do especialista de oftalmologia) é variável consoante o tipo de glaucoma, sendo objectivo regular a PIO e preservar a acuidade visual. Importa, por isso, que o clínico geral e o pediatra estejam sensibilizados para os sinais descritos, tendo em vista a referência atempada para o oftalmologista.

Salienta-se que o glaucoma congénito deve ser sempre considerado uma emergência médica.

Existem vários colírios antiglaucomatosos com mecanismos de acção diferentes, utilizados em geral a título temporário. Frequentemente, o medicamento que se usa em primeira linha na criança é um beta-bloqueante, o que exige algumas precauções uma vez que se verifica sempre absorção sistémica do medicamento. Inibidores da anidrase carbónica, antagonistas das prostaglandinas e parassimpaticomiméticos são outros medicamentos que podem ser empregues.

O tratamento do glaucoma relacionado com anomalias do desenvolvimento é essencialmente cirúrgico (por vezes numerosas intervenções ao longo da vida, mesmo quando os resultados imediatos são bons). O recurso a medicação antiglaucomatosa habitualmente é temporário.

Prognóstico

Dum modo geral pode afirmar-se que o prognóstico do glaucoma congénito é mau; com efeito, em mais de 50% das crianças a acuidade visual fica reduzida a cerca de 1/10, embora, face às medidas levadas a cabo, com PIO normalizada na maioria dos casos.

O prognóstico relaciona-se, mais com o atraso no diagnóstico e com a gravidade da doença, do que com a técnica cirúrgica utilizada.

BIBLIOGRAFIA

Bohnsack BL, Freedman SF. Surgical outcomes in childhood uveitic glaucoma. Am J Ophtalmol 2013; 155: 134-142

Brito C, Abrantes P. Oftalmologia. In Palminha J, Carrilho E (eds). Orientação Diagnóstica em Pediatria. Lisboa: Lidel, 2003; 685-718

Flammer J. Glaucoma. Göttingen: Hogrefe & Huber Publishers, 2003

Ho CL, Walton DS. Management of childhood glaucoma. Curr Opin Ophthalmol 2004; 15:  460-464

Kincaid MC, Yanoff M, Fine BS. Retina. In Tasman W, Jaeger EA (eds). Duane’s Clinical Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Mandal AK, Chakrabarti D. Update on congenital glaucoma. Indian J Ophthalmol 2011; 59: 148-157

Moro M, Málaga S, Madero L (eds): Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Taylor D, Hoyt CS. Pediatric Ophthalmology and Strabismus. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2005

Wilson EM, Saunders L, Rupal T (eds). Pediatric Ophthalmology. Berlin: Springer Verlag, 2009

Wright KW. Pediatric Ophthalmology for Primary Care. Elk Grove, Illinois: AAP, 2008

OBSTRUÇÃO DO APARELHO LACRIMAL

Bases anatomofisiológicas e definições

Em condições basais, a produção da lágrima depende das várias células glandulares que se distribuem pelas pálpebras e conjuntiva. Destacando-se a glândula lacrimal, esta localiza-se na porção súpero-externa e anterior da órbita; compreende duas porções: orbital e palpebral. (Figura 1)

A mesma cresce até aos 4 anos, sendo que a produção reflexa da sua secreção – a lágrima – é, em geral, ínfima até ao 6º mês de vida.

O filme lacrimal com as suas três camadas – lipídica, aquosa e mucinosa, desempenha um papel importante na nutrição da córnea, na sua lubrificação, na protecção do olho contra os agentes infecciosos e os poluentes externos, e na refracção. A sua composição, produção e estabilidade são, por isso, importantes.

A fina camada lipídica, a mais externa, é produzida pelas células intertarsais das glândulas de Meibomius, pelas células glandulares sebáceas de Zeiss e pelas células sudoríparas de Moll.

A camada aquosa, intermédia e a mais espessa, resulta das células secretoras de Krause e de Wolfring, também designadas por glândulas lacrimais acessórias.

A camada mucinosa, mais interna, é produzida pelas células caliciformes, pelas células glandulares de Manz e pelas criptas de Henle. (Figura 2)

O movimento das pálpebras promove a circulação da lágrima encaminhando-a para o canto interno da fenda palpebral – carúncula. A sua drenagem faz-se pelas vias lacrimais que se iniciam nos pontos lacrimais, pequenos orifícios, um superior e outro inferior, no topo dos tubérculos lacrimais. Seguem-se os canalículos lacrimais que se abrem no saco lacrimal, e este continua-se pelo canal lacrimonasal, cuja abertura inferior se localiza no meato inferior das fossas nasais.

FIGURA 1. Globo ocular direito em esquema: relação com pálpebra e carúncula lacrimal.

FIGURA  2. Constituição anatómica da pálpebra (corte sagital)

Embriologicamente as vias lacrimais resultam de um cordão celular ectodérmico cujas células centrais desaparecem depois, para dar lugar ao lume tubular. À nascença, segundo alguns estudos, mais de 35% dos bebés não têm ainda a totalidade do sistema de drenagem patente, e em cerca de 5% das crianças nascidas de termo persistem ainda alguns restos celulares até cerca do sexto mês de vida, ocluindo a parte inferior do canal lacrimonasal. (Figura 3)

As Figuras 1 e 3 esquematisando, respectivamente a relação entre glândula lacrimal e carúncula, e o trajecto das vias lacrimais, facilitam a compreensão dos processos em que existe dificuldade de drenagem da secreção lacrimal.

Diz-se que há lacrimejo quando se verifica excesso de produção de lágrimas, como acontece, por exemplo, nos casos de estimulação retiniana com luz brilhante), psíquica (por ex. o choro e o riso) ou física (por ex.: corpos estranhos, poluentes, ambiente seco). Igualmente, as conjuntivites, os corpos estranhos superficiais na córnea e na conjuntiva, e a triquíase (desvio congénito ou adquirido das pestanas para dentro, contra o globo ocular, enquanto a pálpebra conserva a sua posição normal), podem actuar como irritantes, desencadeando o lacrimejo.

O termo epífora reserva-se para as situações de deficiente drenagem através das vias lacrimais. Em ambos os casos (lacrimejo e epífora), a lágrima transborda o rebordo palpebral, correndo pela face.

 As chamadas “lágrimas de crocodilo” na designação popular correspondem à situação em que há lacrimejo durante a sucção e mastigação; tal se explica por enervação aberrante entre o 5º par craniano (o qual enerva a glândula lacrimal) e as fibras gustativas do 7º par.

FIGURA 3. Vias lacrimais em esquema: olho direito

Importância do problema

Em cerca de 5 a 7 % dos recém-nascidos e lactentes, não estando os canalículos e ductos lacrimais completamente desenvolvidos, existe possibilidade de obstrução lacrimal em idade muito precoce.

Por outro lado, poderão estar em causa defeitos congénitos de canalização duma ou mais daquelas estruturas, também com consequente obstrução lacrimal; salienta-se que a causa mais frequente de epífora no lactente é, de facto, a obstrução congénita da via lacrimal.

Manifestações clínicas

A obstrução das vias lacrimais é a causa mais comum de epífora na criança recém-nascida, que se acompanha por vezes de uma secreção mucosa ou mucopurulenta junto dos pontos lacrimais. As vias lacrimais impermeáveis, com secreção retida funcionando como um meio de cultura e de desenvolvimento microbiano facilitam, por sua vez, a ocorrência de conjuntivites repetidas, com epífora e lacrimejo.

A epífora e o lacrimejo a que atrás nos referimos, como epifenómenos de obstrução da via lacrimal, levam a conjuntivite recorrente explicável pela estase lacrimal; recordando o trajecto das vias lacrimais (Figura 3) pode compreender-se que a compressão do dorso do nariz pode originar refluxo da secreção para o espaço conjuntival.

A dacriocistite (ou infecção do saco nasolacrimal) é uma complicação frequente, sendo de referir que o germe bacteriano mais frequentemente implicado é o Staphylococcus aureus; traduz-se por rubor e dor ao nível da comissura interna palpebral e do dorso do nariz, epífora e refluxo de secreção mucosa ou mucopurulenta pelos canalículos lacrimais.

O diagnóstico de obstrução das vias lacrimais pode ser facilmente feito com a instilação de uma gota de fluoresceína a 2% no fundo de saco conjuntival inferior, verificando-se depois, com luz ultra-violeta, o aparecimento do corante, ou não (no caso de obstrução), nas fossas nasais ou na faringe.

Diagnóstico diferencial

Nas síndromas de obstrução das vias lacrimais haverá que ponderar duas situações específicas: 1) atrésia dos pontos lacrimais (em geral, trata-se duma fina membrana epitelial que oclui o orifício); 2) dacriocistocele (mucocele) congénito, pouco frequente, resultando duma obstrução a montante (canalículos lacrimais) e a jusante (canal lacrimonasal) do saco lacrimal, levando à sua dilatação, habitualmente com infecção, que ocorre nas primeiras semanas de vida.

Tratamento

A massagem digital, ou com uma “cotonete”, repetida várias vezes ao dia na zona do saco lacrimal e do canal lacrimonasal é muitas vezes suficiente para resolver a situação: esvaziando-se com tal manobra o saco lacrimal, evita-se assim o crescimento bacteriano; por outro lado, a pressão hidrostática produzida contribui para a expulsão dos ”restos” de secreções mais ou menos viscosas que ainda entopem o canal lacrimonasal. À massagem pode associar-se a instilação de uma gota de colírio antibiótico, se houver conjuntivites de repetição.

Quando a situação não se soluciona com as massagens persistentes até aos 6 meses, poderá estar indicada a sondagem das vias lacrimais, atitude que deverá ser ponderada e realizada, sempre pelo médico oftalmologista. A título de informação apenas, são descritos alguns procedimentos que ultrapassam o âmbito do pediatra e do clínico geral.

Se a dificuldade de drenagem das lágrimas for explicada por atrésia dos pontos lacrimais, bastará realizar a sua perfuração, seguida de dilatação. Nalguns casos menos frequentes a oclusão prolonga-se pelo canalículo lacrimal, implicando uma atitude cirúrgica mais elaborada.

Nos casos de dacriocistocele (mucocele) congénito, a massagem digital cuidadosa poderá ser suficiente para resolver a situação; noutros casos haverá    necessidade de sondagem cautelosa ou de manobras cirúrgicas mais complexas.

BIBLIOGRAFIA

Gallin FP (ed). Pediatric Ophtalmology. New York/Stuttgart: Thieme, 2000

Honovar SG, Prakash VE, Rao GN. Outcome of probing for congenital nasolacrimal duct obstruction in older children. Am J Ophthalmol 2000; 130: 42-48

Kanski JJ (ed). Oftalmologia Clínica. Barcelona: Elsevier, 2012

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Mac Ewen CJ, Young JD. Epiphora during the first year of life. Eye 1991; 5: 596-600

Pepose JS, Holland GN, Wilhelmus KR. Ocular Infection & Immunity. St Louis: Mosby, 2004

Taylor D (ed). Pediatric Ophtalmology. Oxford: Blackwell Science, 2004

Wright KW. Pediatric Ophthalmology for Primary Care. Elk Grove, Illinois: AAP, 2008

AMBLIOPIA

Definição e importância do problema

O termo ambliopia, derivado da língua grega – “olho preguiçoso”, significa genericamente situação de acuidade visual baixa. Trata-se, portanto, duma designação com base sintomatológica, a qual engloba diferentes factores etiológicos funcionais ou orgânicos implicando actuações terapêuticas diversas.

Entre os factores etiológicos ditos funcionais citam-se os erros de refracção, opacidade ocular ou disfunção dos músculos do olho. Quanto aos factores de tipo orgânico citam-se fundamentalmente as anomalias congénitas do globo ocular, do SNC e vias ópticas.

Embora as alterações da retina central e das vias ópticas sejam de facto causas de ambliopia, é mais frequente reservar o termo apenas para os casos em que não se verifica lesão orgânica patente nem compromisso da visão periférica e do campo visual.

A ambliopia pode ser unilateral ou bilateral.

Estima-se que a prevalência da ambliopia oscile entre 2 a 4% na população geral, sendo mais frequente a modalidade unilateral. Trata-se dum problema oftalmológico cuja frequência nos países desenvolvidos é superior ao conjunto de todas as outras situações implicadas na redução da visão infantil.

De reiterar as seguintes noções práticas:

  1. o estrabismo é a causa mais comum de ambliopia na criança, sendo a esotropia (estrabismo convergente) a forma mais frequentemente implicada;
  2. o atraso no diagnóstico e no tratamento poderá deixar sequelas permanentes; pelo contrário, quanto mais precoce o diagnóstico etiológico, maiores as probabilidades de recuperação;
  3. quanto mais jovem a criança, maior o risco de desenvolvimento de

Etiopatogénese e classificação

O cérebro, recebendo imagens diferentes dos dois olhos e não conseguindo “fundi-las” numa só, suprime a imagem de um dos olhos para não se verificar diplopia. Consequentemente, o córtex cerebral, desenvolvendo-se sem “adquirir experiência” na recepção do estímulo visual bilateral, passará futuramente a não reconhecer a imagem que é gerada pelo olho não estimulado.

Por outras palavras, caso não haja condições para o estabelecimento de uma visão binocular adequada, o olho “desviado” é funcionalmente suprimido, porque fornece uma imagem de má qualidade sem possibilidade de se fundir com a imagem recolhida pelo outro olho. No olho com boa direcção visual a imagem do objecto-alvo da visão incide correctamente na fóvea, enquanto a imagem do olho desviado se projecta numa zona retiniana extrafoveal e, por isso, incapaz de fornecer uma boa acuidade visual.

Quanto maior for o ângulo do desvio, tanto pior será a imagem captada pela retina do olho desviado, e tanto mais rapidamente se estabelecerá a supressão funcional desse olho e, consequentemente a ambliopia. Por sua vez, um estrabismo monocular e sem alternância é também mais ambliogénico, como o são os estrabismos de instalação mais precoce, em relação aos de aparecimento em idades mais tardias.

De acordo com o que foi referido atrás a propósito de factores funcionais e orgânicos, pode afirmar-se, em síntese, que a imagem não formada pode resultar de:

  1. desvio do olho (ambliopia estrábica); neste caso o olho desviado não é estimulado, razão pela qual se desenvolve nele menos a visão;
  2. necessidade desigual de correcção da visão entre os olhos (ambliopia anisometrópica);
  3. erro de refracção de forte intensidade em ambos os olhos (ambliopia ametrópica);
  4. opacidade no eixo visual (ambliopia de privação).

Como regra geral pode afirmar-se que situações decorrentes de disfunção oculomotora, erro de refracção ou opacidade ocular são potencialmente reversíveis se a criança for estimulada durante o desenvolvimento visual.

Pelo contrário, nos casos em que se verificam anomalias estruturais do globo ocular, anomalias das vias ópticas ou do sistema nervoso central não se verifica melhoria com a estimulação sensorial.

Como exemplos representativos de ambliopia orgânica em idade pediátrica citam-se, entre outras, a retinopatia associada à prematuridade (a abordar no capítulo 271), a displasia da retina e outras anomalias congénitas (como o coloboma macular, o albinismo, a atrofia óptica), ou adquiridas (traumáticas, tóxicas, metabólicas, infecciosas, inflamatórias, etc.).

Diagnóstico

A ambliopia é em geral assintomática; a sua detecção deve ser precoce, e pode ser levada a cabo através dum programa de rastreio da visão em todas as crianças em idade pré-escolar.

No âmbito dos exames de saúde realizados pelo clínico geral ou pediatra em idades-chave, de acordo com o plano nacional de vigilância em saúde infantil, são exequíveis: o “teste da oclusão” descrito a propósito do exame oftalmológico desde os primeiros meses de vida; o teste dos reflexos luminosos na córnea; e o cover-test, realizado de modo seriado antes da idade escolar. Qualquer anomalia ou suspeita de anomalia detectada deve ser encaminhada para especialista de oftalmologia; com efeito, reitera-se que o êxito da recuperação nos casos de ambliopia depende grandemente da precocidade no início do tratamento.

Tratamento

Nas situações de ambliopia o objectivo principal do tratamento é estimular o olho com baixa visão. No caso do estrabismo, o passo inicial é, exactamente, a recuperação da acuidade visual do olho desviado, equilibrando-a tanto quanto possível com a do outro olho; uma das medidas básicas é, precisamente, ocluir o olho considerado saudável para estimular a visão do contralateral, sendo que este procedimento é da competência do oftalmologista.

A avaliação da acuidade visual monocular permitirá desde logo ter uma ideia da diferença refractiva entre os dois olhos. A atempada correcção óptica dos defeitos refractivos subjacentes é determinante para evitar a instalação de ambliopia.

Na ambliopia por privação procura-se a remoção da causa (por ex. tratamento cirúrgico de catarata ou correcção de ptose palpebral). Na catarata congénita a regressão da ambliopia é, em regra, menos eficaz e depende, não só da precocidade do tratamento cirúrgico, mas também do êxito conseguido com a subsequente correcção óptica.

Nas ambliopias anisométrica e ametrópica, entre outras medidas, são utilizadas lentes correctoras. Por vezes, são ainda necessárias medidas complementares de estimulação.

BIBLIOGRAFIA

Gallin FP (ed). Pediatric Ophtalmology. New York/Stuttgart: Thieme, 2000

Holmes JM, Clarke MP. Amblyopia. Lancet 2006; 367: 1343-1351

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nelson LB, Olitsky SE (eds). Harley´s Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 194-196

Pediatric Eye Disease Investigator Group. Randomized trial of treatment amblyopia in children aged 7 to 17 years. Arch Ophthalmol 2005; 123: 437-447

Simons K. Amblyopia characterization, treatment, and prophylaxis. Surv Ophthalmol 2005; 50: 123-166

Wright KW. Pediatric Ophthalmology for Primary Care. Hagerstown: Williams & Wilkins, 2008

ESTRABISMO

Definição e importância do problema

O estrabismo é uma situação clínica a que já se fez alusão a propósito do exame oftalmológico: ausência de alinhamento dos eixos dos globos oculares.

Trata-se dum dos problemas clínicos mais frequentes em idade pediátrica (frequência de cerca de 3 a 5%), atingindo valores cerca de dez vezes superiores nos casos de doença motora cerebral. Deve salientar-se a importância do diagnóstico precoce com o objectivo principal de evitar alteração da acuidade visual.

Correspondendo a uma síndroma motora e sensorial, poderá constituir um epifenómeno de doenças mais graves, como tumores do sistema nervoso central ou do próprio globo ocular.

Etiopatogénese e classificação

A falta de alinhamento em paralelo dos eixos dos globos oculares determina que as imagens que chegam ao sistema nervoso central (SNC) “não se fundindo”, originem visão dupla (diplopia) que é compensada pelo SNC através dum mecanismo de supressão da visão do olho desalinhado que, não sendo estimulado, conduz a défice visual.

Por outro lado, nos desalinhamentos adquiridos nem sempre surge tal supressão de estímulo no olho desviado pelo facto de a criança adoptar determinada posição da cabeça (flexão lateral do pescoço e/ou rotação da cabeça) na “tentativa de evitar” visão dupla.

O estrabismo pode classificar-se de acordo com diversos critérios: idade de aparecimento (congénito se antes dos 6 meses, ou adquirido se depois desta idade); compromisso de um ou dois olhos (respectivamente monocular ou binocular, sendo que este último evidencia melhor prognóstico indiciando, em princípio, visão conservada nos dois olhos e menor probabilidade de desenvolvimento de ambliopia); duração da anomalia (constante, intermitente, ou ainda cíclico se se manifestar por períodos com intervalos assintomáticos); direcção do desvio ocular (esotrópico ou convergente, exotrópico ou divergente, hipotrópico ou para baixo, e hipertrópico ou para cima). Lembra-se, a propósito do que foi referido no glossário do capítulo 261 que, em situações consideradas latentes no sentido lato, ou seja, não constantes, o prefixo dos termos será “… fórico” em vez de “… trópico”.

Diagnóstico

A verificação, pelo clínico geral ou pediatra, de desvio ocular mantido pelos 4-5 meses, ou a partir desta idade, implica a realização de história clínica e referência atempada ao oftalmologista acompanhada de relatório sucinto para diagnóstico etiológico e actuação adequada em função do tipo e magnitude do referido desvio. Trata-se, efectivamente, duma situação cujo tratamento ultrapassa o âmbito dos clínicos generalistas (pediatras ou não).

No relatório a enviar ao especialista importa salientar os dados anamnésticos investigados: antecedentes da gravidez, desenvolvimento cognitivo, defeitos congénitos associados, fotofobia, doença motora cerebral não evolutiva, antecedentes de traumatismo cranioencefálico, torcicolo, fotofobia, diplopia, idade e modo de início do desvio ocular, etc..

Idealmente, o relatório deverá incluir igualmente achados do exame físico que foi descrito no capítulo “Exame oftalmológico”, salientando-se que um exame objectivo cuidadoso poderá identificar quadros semelhantes ao estrabismo (pseudostrabismo) como os relacionados, por exemplo, com epicanto, hipertelorismo e assimetria craniofacial.

Uma noção importante a reter é: quanto mais precoce o desvio e mais tardio o início do tratamento, tanto mais reservado o prognóstico. Ou seja, o papel do médico generalista quanto à identificação precoce da situação é de primordial importância.

Tratamento

Para além da correcção estética a proporcionar ao doente, a base racional do tratamento é prevenir a baixa acuidade visual ou a ambliopia, propiciando visão binocular normal.

Na prática, tal desiderato a cargo do especialista, pode ser obtido através de correcção óptica e/ou de intervenção cirúrgica.

Nalguns centros utiliza-se a injecção de toxina botulínica A nos músculos extraoculares.

BIBLIOGRAFIA

American Academy of Ophtalmology (AAO). Pediatric ophtalmology and strabismus. Section 6. Burlington / Vermont: AAO, 2004

Kanski JJ (ed). Oftalmologia Clínica. Barcelona: Elsevier, 2012

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Mills MD. The eye in childhood. Am Fam Physician 1999; 60: 907-916

Mohney BG, Huffaker RK. Common forms of childhood exotrofia. Ophthalmology 2003; 110: 2093-2096

Nelson LB, Olitsky SE (eds). Harley’s Pediatric Ophthalmology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 143-192

Prieto-Diaz J, Souza-Dias C. Estrabismo. Barcelona: Roca / Editorial JIMS, 2000

Wright KW. Pediatric Ophthalmology for Primary Care. Elk Grove Village, Illinois: AAP, 2008

ANOMALIAS DE REFRACÇÃO (AMETROPIA)

Definições

O termo ametropia designa as perturbações da refracção ocular devidas a má convergência (“não focagem”) dos raios luminosos na retina; consequentemente, a imagem dum objecto colocado no infinito não se forma no plano da retina.

Tais perturbações conduzem a que um indivíduo, para visualizar melhor um objecto, faça um esforço de acomodação (situação de hipermetropia ou astigmatismo) ou se aproxime do objecto (situação de miopia). A ametropia inclui situações clínicas em geral hereditárias.

Na miopia o foco de imagem ocorre em plano adiante da retina fazendo com que o indivíduo evidencie dificuldade de identificar objectos distantes, vendo bem objectos de perto; a miopia pode resultar do aumento do diâmetro ântero-posterior do globo ocular.

Na hipermetropia o foco de imagem ocorre em plano atrás da retina, o que é explicável pela diminuição do diâmetro ântero-posterior do globo ocular; consequentemente existe baixa acuidade visual para objectos próximos.

O astigmatismo resulta duma alteração da curvatura dum dos meridianos da córnea; consequentemente, o indivíduo apresenta o foco da imagem em duas linhas distintas, em vez de num ponto único.

O termo emetropia significa, precisamente, estado normal do poder de refracção do olho que viabiliza formação de imagem no plano da retina.

Importância do problema

A miopia não é um achado frequente em lactentes e pré-escolares; no recém-nascido surge com uma prevalência entre 1 e 25%, correspondendo os valores mais elevados aos recém-nascidos (RN) pré-termo portadores de retinopatia da prematuridade. Na faixa etária entre 11 e 13 anos a prevalência também é mais elevada.

A hipermetropia é o erro de refracção mais comum na idade pediátrica, sendo que a maioria dos recém-nascidos é hipermétrope.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de ametropia são: 1) diminuição da acuidade visual; 2) um conjunto de sinais e sintomas que constituem epifenómeno da contracção contínua do músculo ciliar durante o processo de acomodação para garantir a focagem nítida das imagens na retina (cefaleia, cansaço visual, “sensação de peso na vista”, olhos vermelhos) sendo de salientar que as crianças, ao contrário dos adultos, evidenciam grande amplitude de acomodação.

Miopia

Na maior parte das vezes a miopia não corresponde a qualquer alteração patológica do olho, sendo referida como simples ou fisiológica; num grupo menor de casos pode ser patológica, associada a situações como retinopatia da prematuridade, glaucoma, catarata, uveíte, determinadas doenças do foro genético como síndroma de Down, síndroma de Marfan, homocistinúria, etc.. Quanto à intensidade pode ser classificada em: baixa [erro de refracção <- 4 dioptrias (D)]; intermédia (entre -4 e -9 D); e elevada (> -9 D).

Hipermetropia

Nos RN e lactentes o erro de refracção ronda +2,32 D. Salienta-se que a hipermetropia aumenta durante os primeiros 7 anos de vida, em média +0,23D/ano; após os 7 anos começa a decrescer gradualmente.

Astigmatismo

O astigmatismo pode apresentar-se isolado ou associado às duas alterações anteriores. Como este erro de refracção depende, sobretudo, da curvatura da córnea e esta não se modifica em geral a partir dos 5 anos, a sua intensidade não se modifica com a idade; no entanto, no que se refere à acuidade visual, os sinais e sintomas são mais evidentes do que nos outros erros de refracção.

Tratamento

Salientando-se que somente o oftalmologista tem competência para decidir quanto a opções correctivas ou outras medidas, são resumidos, como orientação, os princípios gerais de tais opções.

Nos casos de miopia de intensidade até -2D, em crianças pequenas, não haverá necessidade de correcção com lentes, embora esteja indicado o acompanhamento periódico por oftalmologista.

Graus ligeiros de hipermetropia não necessitam, em geral, de correcção com lentes devido à elevada capacidade de acomodação da criança.

No astigmatismo está indicada a correcção com lentes cilíndricas.

A aplicação eventual de raios laser em situações específicas poderá ser uma opção em certos defeitos de refracção.

GLOSSÁRIO

Dioptria (d ou D) > Unidade de potência dos sistemas ópticos: olho, lentes, etc. As lentes côncavas para óculos para miopia são designadas por sinal (-); as lentes convexas para hipermetropia são designadas por sinal (+); uma lente cujo foco esteja a 1 metro de distância tem 1 dioptria de potência.

BIBLIOGRAFIA

Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kuo A, Sinatra RB, Donahhue SP. Distribution of refractive error in healthy infants. JAAPOS 2003; 7: 174-177

McInerny T (ed). Tratado de Pediatria / American Academy of Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010

Mills MD. The eye in childhood. Am Fam Physician 1999; 60: 907-916

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Sakimoto T, Rosenblatt MI, Azar DT. Laser eye surgery for refractive errors. Lancet 2006; 369: 1432-1447

Ton Y, Wysenbeak YS, Spierer A. A refractive error in premature infants. JAAPOS 2004; 8: 534-538

Wright KW (ed). Pediatric Ophtalmology for Primary Care. Elk Grove Village,Illinois: American Academy of Pediatrics/AAP, 2008

EXAME OFTALMOLÓGICO NA IDADE PEDIÁTRICA

Metodologia geral

A avaliação oftalmológica da criança inicia-se desde o momento da sua entrada na sala de consulta. Deve ser atentamente analisada a posição da cabeça, a movimentação dos olhos e a forma como se desloca, servindo-se da orientação visual.

O Quadro 1 resume os dez passos fundamentais da avaliação oftalmológica. A acuidade visual é definida como a capacidade do olho para distinguir entre dois pontos próximos, a qual depende de diversos factores, em especial do espaçamento dos foto-receptores na retina e da precisão da refracção do olho.

Anamnese

Na anamnese devem ser pesquisados antecedentes familiares e hereditários (cegueira na família, estrabismo, cataratas em crianças, defeitos da refracção, nomeadamente miopia, etc.). A história da gravidez e do parto, o peso de nascimento, idade gestacional, eventuais traumatismos relacionados com o parto, designadamente com repercussão no globo ocular, a necessidade de oxigenoterapia, são aspectos fundamentais que devem ser inquiridos. A evolução do subsequente desenvolvimento da criança deverá ser cuidadosamente avaliada, sendo útil a análise de fotografias em idades diferentes para observar o alinhamento dos olhos e a posição da cabeça em relação ao pescoço e tronco. A informação sobre o comportamento diário da criança quando utiliza a visão, na escola, junto à televisão, e nas actividades lúdicas, é também importante.

O inquérito sobre as doenças que afectaram a criança e os tratamentos a que esteve submetida constituem um elemento igualmente de relevo para a anamnese, tendo em conta a possibilidade de desencadeamento de certo tipo de patologia oftalmológica associada a determinados eventos.

QUADRO 1 – Avaliação oftalmológica

    1. Anamnese
    2. Exame geral
    3. Fixação, alinhamento e motilidade oculares
    4. Acuidade visual
    5. Visão cromática
    6. Visão binocular
    7. Campo visual
    8. Reflexos pupilares
    9. Fundoscopia
    10. Outros exames

Exame objectivo e testes específicos

 

  1. No exame geral, numa abordagem sumária, deve ser analisada a configuração facial, a implantação dos globos oculares e os seus movimentos, nomeadamente para a fixação do olhar despertado por fontes luminosas e pelos sons; igualmente, a eventual existência de fotofobia, as pálpebras e o pestanejo, a localização e orientação das pestanas, bem como a coordenação olho-mão. A verificação de posição anómala da cabeça em relação ao pescoço e ao tronco merece uma menção especial: quer a retroflexão, quer a rotação ou a inclinação da cabeça, poderão corresponder a posições viciosas para que a criança tenha melhor acuidade visual, ou para compensar uma diplopia. Muitas vezes a posição viciosa permite o alinhamento ocular.
    Com uma fonte de luz (lanterna) observam-se os fundos de saco conjuntivais e os pontos lacrimais, que devem estar patentes; avalia-se a coloração da esclera, os vasos conjuntivais, a transparência e o diâmetro das córneas, a profundidade da câmara anterior, a íris e a área pupilar.
    As pupilas devem ter diâmetros semelhantes (isocória), salientando-se que a presença de anisocória implica estudos mais detalhados. Devem ser regularmente redondas, excluindo-se assim a existência de colobomas, de aderências devidas a sinéquias, ou ainda a persistência de restos da membrana pupilar. Devem transmitir um reflexo normal (“vermelho”) do fundo ocular, eliminando-se a presença de uma leucocória (pupila branca), que alerta para a existência de situações ambliogénicas, como a catarata, ou ainda de alterações do segmento posterior do globo ocular (retinopatia da prematuridade, vítreo hiperplástico, retinoblastoma, etc.), por vezes de prognóstico muito grave (caso do retinoblastoma), com elevado risco para a vida da criança. Com a lanterna pode aproveitar-se a ocasião para avaliar também os reflexos pupilares fotomotores, directo e consensual.

  2. No que respeita à fixação e motilidade oculares, cabe referir que a capacidade de manter a fixação monocular num objecto se atinge pelo 2º ou 3º mês de vida; com esta idade a criança deverá ser capaz de seguir com os olhos um objecto familiar, como a face da mãe, embora a visão binocular ainda seja muito incipiente. Pelo 4º mês, a capacidade de convergência está estabelecida, devendo pelo 6º mês haver já um correcto alinhamento dos olhos com visão binocular.
    Para avaliar a fixação e a motilidade oculares pode utilizar-se uma caneta/lanterna ou um pequeno objecto (brinquedo) que desperte a atenção e a fixação visual da criança, tentando verificar o paralelismo na motilidade binocular. Para verificar o alinhamento utiliza-se o teste de Hirschberg ou teste dos reflexos corneanos (Figura 1): projectando uma fonte luminosa sobre a córnea obtém-se um reflexo luminoso punctiforme que, em condições de normalidade (olhos alinhados, em posição simétrica), coincide com o centro da pupila), simetricamente nos dois olhos, sendo que a assimetria é, em geral, sinal de estrabismo. (consultar glossário incluído neste capítulo) 
  1. Na data do nascimento a acuidade visual da criança é muito baixa (numa escala de 1 em 10: cerca de 1/10), aumentando rapidamente nas primeiras semanas de vida. Os primeiros 3 meses de vida são particularmente importantes para o desenvolvimento da acuidade visual da criança e o estabelecimento da fixação. Aos três anos é provável existir já uma acuidade visual de 8/10, e de 10/10 pelos 5 anos de idade. A capacidade de perseguição do estímulo visual é igualmente importante e relaciona-se com: a acuidade visual, a fixação, a motilidade ocular e o desenvolvimento do campo visual.

    Para o desenvolvimento de uma acuidade visual normal é essencial que o olho tenha as condições refractivas necessárias para que o foco de uma imagem incida sobre a retina e sobre a fóvea.

    A avaliação da acuidade visual é, portanto, essencial no exame oftalmológico da criança em qualquer idade, devendo contudo tal prova estar adaptada à idade e colaboração da mesma.

    Podem ser utilizados: métodos qualitativos e quantitativos; e técnicas que fazem apelo a respostas objectivas ou subjectivas, estas mais próximas das situações reais quotidianas e dos métodos utilizados habitualmente para o adulto. Em qualquer circunstância requere-se a colaboração que, por sua vez, implica interesse pela prova a realizar, e atenção.

FIGURA 1. Teste de Hirschberg. Estando os olhos alinhados, em situação de normalidade, o reflexo luminoso coincide com o centro da pupila

3.1 Métodos qualitativos

No recém-nascido, uma avaliação grosseira da capacidade visual pode ser feita pelo reflexo fotomotor directo.

Entre os 2 e 6 meses de vida, além do reflexo fotomotor, deve ser avaliada a capacidade de manter a fixação e seguir um estímulo visual apropriado (face humana aos três meses, uma fonte de luz depois, e um brinquedo aos 6 meses). O movimento com perseguição do estímulo visual adquire-se primeiramente na horizontal e, só depois, na vertical, pelas 4 a 8 semanas.

A prova de reacção à oclusão constitui também um método simples de avaliação da acuidade visual, podendo ser realizada pelos próprios pais, desde que devidamente elucidados.

Na prática, procede-se à oclusão de um dos olhos estando a criança a fixar determinado objecto que lhe desperte a atenção. Com este procedimento é possível obter três tipos de respostas: 1) se a criança reagir apenas à oclusão de um olho, poderá tratar-se de défice grave no olho que não reagiu à oclusão, o que implica observação por oftalmologista; 2) se a criança não reagir à oclusão de qualquer dos olhos, tal indicará, em princípio, acuidade visual normal nos dois olhos; 3) a criança poderá não reagir também por razões relacionadas com comportamento (por ex. apatia), ou por alterações do sistema nervoso central.

3.2 Métodos quantitativos*

A pesquisa do nistagmo optocinético, uma resposta involuntária com movimento pendular dos olhos (movimento alternado dos olhos em direcções opostas, repetitivo), desencadeada pela apresentação rítmica de um estímulo visual – por exemplo faixas ou tiras alternadamente negras e brancas aplicadas num tambor rotativo – pode também servir para a determinação da acuidade visual. Diminuindo progressivamente a largura dessas faixas colocadas de modo sucessivo na face lateral do tambor, é possível avaliar a acuidade visual máxima relacionando-a com a faixa de menor largura capaz de desencadear o movimento reflexo. (Figura 2)

Os chamados testes do olhar preferencial, como os que empregam cartões de Teller, podem ser utilizados como técnica de avaliação da acuidade visual, após os 4-5 meses, em crianças pré-verbais. Os referidos cartões têm um lado branco e outro com riscos ou barras pretas e brancas de larguras variadas. A criança é atraída pelo padrão com barras (desde que exista capacidade de discriminação acima do limiar de acuidade visual), sendo a acuidade visual deduzida pela menor largura das barras que atrai o olhar e chama a atenção da mesma.

As bolas rolantes STYCAR (um conjunto de 10 bolas brancas com diâmetros progressivamente menores, que se fazem deslocar num tapete negro, observando-se a fixação e perseguição da criança ao estímulo visual), constituem outro método de avaliação da acuidade visual, passível de aplicar pelos 6 meses de idade. Também aqui, como no olhar preferencial, não é possível estabelecer uma equivalência com a acuidade determinada por optótipos. (Figura 2)

*Nota:
a – Não é possível estabelecer uma equivalência entre os resultados obtidos pelos diversos métodos quantitativos.
b – A determinação da acuidade visual deve ser feita separadamente para longe e para perto, em monocularidade e em binocularidade, sem correcção óptica e utilizando-a, quando existir.

FIGURA 2. Avaliação da acuidade visual, utilizando o método do nistagmo optocinético (A) observando o comportamento da criança atrás dum biombo com orifício (permitindo que a mesma não veja o observador) (B). Esta estratégia é aplicada, também para o olhar preferencial e para as bolas rolantes STYCAR

Outro método é a utilização de optótipos (figuras, letras ou caracteres de tamanhos diferentes, apresentados sob a forma de quadros em série).

Em geral, após os 3 anos de idade já é possível avaliar a acuidade visual utilizando um destes métodos de optótipos: habitualmente, para os mais pequenos, apenas em símbolos isolados e, depois dos 4 anos, em tabelas com conjuntos de letras. A prática do examinador e, sobretudo, o grau de desenvolvimento da criança ditarão qual a melhor técnica a utilizar. Os símbolos, quando isolados, dão em regra uma melhor acuidade visual do que quando estão incluídos numa série, em tabelas. (Figura 3)

Outro método é a utilização de optótipos (figuras, letras ou caracteres de tamanhos diferentes, apresentados sob a forma de quadros em série).

Em geral, após os 3 anos de idade já é possível avaliar a acuidade visual utilizando um destes métodos de optótipos: habitualmente, para os mais pequenos, apenas em símbolos isolados e, depois dos 4 anos, em tabelas com conjuntos de letras. A prática do examinador e, sobretudo, o grau de desenvolvimento da criança ditarão qual a melhor técnica a utilizar. Os símbolos, quando isolados, dão em regra uma melhor acuidade visual do que quando estão incluídos numa série, em tabelas. (Figura 3)

FIGURA 3. Símbolos e tabelas para determinação da acuidade visual

Não existe consenso sobre o melhor método e/ou tabelas de optótipos a utilizar para a determinação da acuidade visual em crianças pequenas e até à idade escolar. Diversos métodos têm sido propostos e utilizados: tabelas de letras e de desenhos figurativos, como as representadas na Figura 3, E de Snellen (com a letra E em várias posições) etc..

A técnica dos potenciais eléctricos atingindo o córtex occipital, desencadeados por um estímulo visual [os chamados potenciais evocados visuais (PEV)] é uma forma mais objectiva de avaliar a capacidade visual; tal técnica não dá, contudo, informação sobre o processamento neurológico mais diferenciado.

 

  1. Embora não se realize muitas vezes como exame de rotina na avaliação da criança, o estudo da visão cromática está indicado, sobretudo em situações com suspeita de discromatopsia (perturbação na percepção das cores, de que é exemplo o daltonismo); trata-se, efectivamente, dum problema importante (congénito hereditário ou adquirido), sobretudo se for desconhecido, por poder interferir no desenvolvimento global da criança e no seu rendimento escolar. As acromatopsias totais são muito raras. As discromatopsias congénitas são hereditárias, bilaterais e não evolutivas. Têm maior incidência no sexo masculino aparecendo, segundo alguns autores, em 8% dos rapazes e apenas 0,5% das raparigas, embora com graus diversos.
    As discromatopsias adquiridas devem-se a patologia coriorretiniana ou do nervo óptico e são em geral evolutivas e frequentemente unilaterais ou assimétricas, acompanhadas doutros sinais e sintomas.
    É bom relembrar que a criança em idade pré-escolar poderá distinguir as cores primárias (vermelho, verde e azul), mas não ser ainda capaz de as identificar pelo nome.
    Os testes comparativos, como a utilização de pares de canetas de formato igual e com as três cores primárias, são úteis para a avaliação da visão cromática na criança pequena. Nas mais crescidas podem ser utilizados os livros de tábuas pseudoisocromáticos, como o de Ishiara, com a identificação dos números; ou, se a criança ainda não os reconhecer, recorrendo ao “jogo” dos labirintos, que em geral já consegue executar aos 4-5 anos.
    Os testes dicotómicos de Farnsworth, mais informativos, mas também mais complexos, requerem melhor colaboração, sendo por isso mais difíceis de aplicar numa criança.

  2. No estudo da visão binocular há que ter em conta os elementos já recolhidos na observação da fixação, no estudo da motilidade ocular, e na avaliação da acuidade visual.
    Dum modo geral, pode afirmar-se que a avaliação da bisão binocular se baseia na noção da capacidade de fusão das imagens recebidas por cada olho.
    Uma correcta binocularidade só é possível com movimentos oculares normais e com visão equilibrada nos dois olhos.
    De referir que o exame da motilidade ocular extrínseca é levado a cabo inicialmente em binocularidade (terminologia de “versões”), avaliando a simetria da rotação dos dois olhos; verificando-se assimetria, a avaliação deve passar a fazer-se procedendo à oclusão alternada de cada olho (monocularidade com a terminologia de “duções”).
    É igualmente importante determinar se algum dos seis músculos extrínsecos que movimentam o olho está hiper ou hipofuncionante, o que poderá determinar desequilíbrio em determinada posição do olhar.
    As posições de olhar (ou posições cardinais) são as seguintes: para baixo e para a direita, para cima e para a direita, para a direita na linha média, para a esquerda e para cima, para a esquerda na linha média, e para baixo e para a esquerda. Deve igualmente analisar-se o olhar para cima e para baixo, assim como a posição primária do olhar.
    Aos 6 meses a criança já deverá ter a visão binocular estabelecida (teste de Hirschberg), existindo condições ideais (intrínsecas e extrínsecas de desenvolvimento) tais como ausência de anomalias congénitas e estimulação com interactividade.
    O chamado cover-test baseando-se no estudo da motilidade ocular extrínseca, é um exame essencial no estudo da visão binocular, permitindo um diagnóstico dos desvios latentes e constantes, assim como da sua alternância ou unilateralidade.
    Para a execução do cover-test não é necessário equipamento especial, apenas um objecto de fixação (optótipo correspondente à melhor acuidade visual conseguida pela criança) e um oclusor; todavia, importa haver experiência e treino por quem o executa para se obter a colaboração da criança, nomeadamente quanto à observação dos movimentos dos olhos. O teste deverá ser realizado com fixação para longe (6 metros) e para perto (30 cm); se a criança usar óculos deverá ainda ser executado com a correcção óptica.
    Na prática, procede-se do seguinte modo: na modalidade de “cover” para perto (30 cm) deve ocluir-se um olho enquanto o paciente fixa o objecto com o outro; remove-se depois a oclusão, observando o movimento do olho ocluído.
    Na condição ideal para a binocularidade, a ortoforia (correcto alinhamento dos dois olhos, sem desvios latentes ou manifestos), não há qualquer movimento dos olhos, atrás do oclusor ou ao destapar, pois ambos se mantêm alinhados com o objecto de fixação, pese embora a oclusão de um deles.


Na heterotropia (não alinhamento ocular manifesto ou estrabismo) a oclusão do olho que fixa obriga o outro olho que estava desviado a movimentar-se para alinhar o ponto de fixação da retina (a fóvea se houver uma fixação central) com o objecto.

Se o movimento do olho após remoção da oclusão se verificar em direcção à linha média (convergente), diz-se que há esoforia; caso tal não se verifique (divergente) diz-se que há exoforia. Em ambas as situações os dois olhos fixam o objecto quando estão descobertos.

No caso de se verificar um desvio fixo na direcção medial (convergente), diz-se que há esotropia; a situação de desvio fixo para fora (divergente), designa-se exotropia.

Se o movimento for vertical para cima, haverá hipotropia ou hipoforia; se para baixo, hipertropia ou hiperforia. (consultar adiante o glossário)

Nas heteroforias (desvios latentes) é apenas o olho ocluído que executa um movimento por detrás do oclusor (quando lhe é retirado o estímulo de fixação) sendo que, ao destapar-se, readquire a fixação sem que haja movimento simultâneo do olho que esteve a fixar. (Figura 4)

FIGURA 4. Covert Test: alguns resultados obtidos (consultar texto e glossário)

FIGURA 5. Estereoteste polarizado de Wirt – Titmus

FIGURA 6. Evolução do campo visual na criança em esquema figurativo

Os testes de estereopsia dão uma indicação útil sobre o funcionamento sensorial da visão binocular e, quando normais, mostram a existência de percepção simultânea e de uma boa capacidade de fusão das imagens recolhidas pelos dois olhos.

Um dos testes mais utilizados é o estereoteste polarizado de Wirt-Titmus, baseado numa dissociação da imagem que é apresentada aos dois olhos. A dissociação é feita colocando óculos com filtros que polarizam a luz segundo direcções opostas; desta forma, cada olho vê uma imagem algo diferente, com ligeiro deslocamento lateral em relação à imagem do outro olho. (Figura 5)

Na prática são apresentados vários círculos e desenhos de dimensões diferentes fabricados em material polarizado. Da fusão das duas imagens recebidas resulta a noção tridimensional de estereopsia; ou seja, as imagens parecem ter relevo.

Para as crianças mais pequenas apenas é possível a colaboração com o teste da mosca: havendo visão estereoscópica, a criança reage com uma reacção de espanto, ou até de medo. Pedindo-lhe para agarrar as asas da mosca com o polegar e indicador, fá-lo num plano superior ao do cartão-teste.

Crianças de 4 anos colaboram já na avaliação, utilizando as filas de animais, o que permite uma melhor quantificação da estereopsia. Pergunta-se qual deles, em cada fila, está em relevo. Os círculos estereoscópicos são ainda mais discriminativos, mas apenas utilizáveis em idades mais avançadas.

  1. O campo visual da criança (definido como a área de visão que o olho alcança pressupondo que o olhar se dirige para um ponto fixo) é inicialmente muito limitado, seja em profundidade, seja em amplitude; de salientar que o mesmo evolui progressivamente com o crescimento e a maturação. (Figura 6)
    Outro termo utilizado é campo do olhar que corresponde à área de visão alcançada com o somatório das várias posições do olhar, no pressuposto de que a cabeça está fixa.

Os exames de avaliação do campo visual ou de campimetria utilizando o perímetro manual de Goldman e perímetros automáticos só são geralmente exequíveis após os 6 anos por requererem colaboração, com permanente atenção durante longo período. Em crianças mais pequenas poderá ser feita a avaliação dos campos visuais utilizando o método de confrontação ou ainda, pelos 2 anos, com as chamadas bolas montadas (testes de Sheridan/STYCAR). Ambos são métodos que permitem apenas uma avaliação grosseira.

No teste de confrontação o examinador, sentado em frente da criança a cerca de 60 cm e com os olhos de ambos à mesma altura, mantém o olhar da criança a fixar o seu nariz. Depois introduz de fora para dentro do campo visual, a meia distância entre ambos, um objecto ou os dedos, que a criança assinala assim que os vê, permitindo a comparação da amplitude do seu campo visual com a do examinador. A avaliação deve ser feita em ambos os lados e nos diversos quadrantes, tendo especial atenção para que o examinado fixe continuamente o nariz do examinador. Pode ser feita em monocularidade (utilizando um penso oclusor) e em binocularidade. (Figura 7)

FIGURA 7. Avaliação do campo visual por confrontação

Utilizando o método de Sheridan, um examinador, colocado atrás da criança, introduz sucessivamente no campo visual uma bola montada numa haste (o teste original utiliza as bolas com diâmetros entre 13 mm e 3 mm). Uma outra pessoa, colocada à distância em frente da criança (Figura 2-B), mantém-lhe a fixação do olhar num alvo e observa a reacção assim que a bola é percebida. (Figura 8)

  1. Os reflexos pupilares que se manifestam por movimentos da pupila relacionam-se com a motilidade intrínseca. Descrevem-se dois tipos de reflexos pupilares: os fotomotores e o de acomodação.

    Há dois tipos de reflexos fotomotores: – directo, traduzido por verificação de miose como resultado do estímulo com fonte luminosa; – consensual, traduzido por idêntica resposta pupilar verificável no olho não estimulado pela fonte luminosa.

    O reflexo de acomodação obtém-se quando o olho fixa um objecto próximo: a resposta é miose associada a convergência dos olhos. Ou seja, pela aproximação de um objecto seguindo a linha média ântero-posterior em direcção ao nariz da criança avalia-se o movimento de convergência binocular, a amplitude de acomodação e o reflexo da miose que a acompanha.

FIGURA 8. Avaliação do campo visual pelo método de Sheridan com bolas montadas

  1. O exame do fundo ocular – fundoscopia constitui rotina no exame da criança, em Oftalmologia. As características da papila do nervo óptico devem ser avaliadas: coloração, contornos, características da escavação e dos vasos na papila. Igualmente, o restante fundo ocular deve ser analisado, nomeadamente a coloração e homogeneidade, as características dos vasos retinianos, sua coloração, trajecto e relações, bem como a área macular e foveolar. (Figura 9)

    Frequentemente, em crianças de pouca idade, é difícil realizar tal observação com pormenor, sobretudo pela escassa colaboração, pela diminuição do diâmetro pupilar, e pela dificuldade em manter a fixação do olhar, o que dificulta a focagem da retina. Estas circunstâncias podem levar à necessidade de dilatação prévia da pupila com paralisia da acomodação, utilizando colírio cicloplégico (por ex. atropina), atitude que deverá ser ponderada pelo médico oftalmologista. Nalguns casos, para que a observação seja viável, poderá ser mesmo necessário o recurso à anestesia.

FIGURA 9. Fundoscopia normal

Na impossibilidade duma observação fundoscópica, torna-se fundamental a observação do chamado “reflexo alaranjado” (com um oftalmoscópio colocado a certa distância do globo ocular é observada, em condições de normalidade, a luz de cor alaranjada reflectida pela retina). A observação pode ser facilitada procedendo à dilatação pupilar. A não verificação de tal cor pode ser indicativa de doença ocular. (alínea: 1.)

  1. Diversos exames complementares de diagnóstico podem ser necessários para o estudo de determinada patologia oftalmológica. Salientam-se, entre outros, certos exames imagiológicos – ecografia, tomografia axial computadorizada (TAC), ressonância magnética (RM), angiografia fluoresceínica, exames especiais do campo visual, exames de ortóptica, exames de neuroftalmologia, exames electrofisiológicos (electrorretinograma/ERG, potenciais evocados visuais/PEV, etc.), cujo âmbito ultrapassa os objectivos deste trabalho. Para melhor compreensão da terminologia, em geral do domínio do oftalmologista, é apresentado um glossário no pressuposto de utilidade para o médico de família e pediatra.

GLOSSÁRIO

Acomodação > fenómeno pelo qual se consegue visualizar os objectos próximos, o que é possível graças à contracção do músculo ciliar e à elasticidade da cápsula do cristalino.
Acuidade visual > capacidade de distinguir dois pontos distintos a determinada distância; este parâmetro mede a actividade macular (visão central).
Campimetria > exploração e determinação do campo visual periférico e central.
Catarata > opacidade do cristalino.
Estereopsia > Capacidade de percepção de imagens com noção de relevo ou de 3 dimensões.
Estrabismo > não alinhamento ocular.
Hifema > colecção de sangue na câmara anterior.
Hipopion > colecção de pus na câmara anterior.
Leucocória > pupila branca (em vez de negra, normal).
Nistagmo > oscilações rítmicas dos globos oculares, independentes dos movimentos oculares normais.
Ortóptica > conjunto de processos de reeducação do olho destinados à correção das pertubações da visão binocular (designadamente estrabismo) e da motibilidade ocular.
Prefixo “exo” > divergente.
Prefixo “eso”ou “endo” > convergente.
Sufixo “foria” > latente.
Sufixo “tropia” > manifesto.

BIBLIOGRAFIA

Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Gallin FP (ed). Pediatric Ophtalmology. New York/Stuttgart: Thieme, 2000

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Mills MD. The eye in childhood. Am Family Physician 1999; 60: 907-916

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Rogers GL, Jordan CO. Pediatric vision screening. Pediatr Rev 2013; 34: 134-136

Wright KW (ed). Pediatric Ophtalmology for Primary Care. Elk Grove Village,Illinois: American Academy of Pediatrics/AAP, 2008

INTRODUÇÃO À OFTALMOLOGIA PEDIÁTRICA

Bases anatomofisiológicas com implicações clínicas

Para melhor compreensão dos vários problemas clínicos que afectam o sistema ocular, são recordados sucintamente alguns aspectos da respectiva anatomofisiologia.

Os globos oculares estão localizados nas cavidades ósseas denominadas órbitas, compostas de porções dos ossos frontal, maxilar superior, malar, esfenóide, etmóide, lacrimal e palatino.

Ao globo ocular encontram-se associadas estruturas acessórias adiante discriminadas (anexos): pálpebras, cílios (pestanas), supracílios (sobrancelhas), conjuntiva, músculos extrínsecos e aparelho lacrimal.

O diâmetro do globo ocular no recém-nascido corresponde a cerca de 65% do adulto (respectivamente ~17 mm e 24 mm). O olho aumenta rapidamente de tamanho durante os primeiros 2 anos da vida, salientando-se que o respectivo crescimento é mais lento, depois, até à puberdade. Cada globo ocular compõe-se, respectivamente, de três túnicas, de quatro meios transparentes e dos já referidos anexos. (Figura 1)

FIGURA 1. Esquema do globo ocular

Túnicas

  1. Túnica fibrosa externa ou esclerótica (“zona branca” do olho). Trata-se duma túnica resistente de tecido fibroso e elástico que envolve externamente o globo ocular. A maior parte da esclerótica é opaca e chama-se esclera; nesta, estão inseridos os músculos extraoculares que movem os globos oculares. A parte anterior da esclerótica, transparente, chama-se córnea e actua como lente convergente.
  2. Túnica intermédia vascular pigmentada: úvea. Compreende a coroideia (coróide ou corióide), o corpo ciliar e a íris. A coroideia, situada abaixo da esclerótica, está impregnada por pigmentos que absorvem a luz que chega à retina, evitando sua reflexão; é intensamente vascularizada, com a função de nutrir a retina. Possui uma estrutura muscular de cor variável, a íris, a qual é dotada de um orifício central (pupila) cujo diâmetro varia de acordo com a iluminação do ambiente. A túnica coroideia une-se na parte anterior do olho ao corpo ciliar, estrutura formada por musculatura lisa que envolve o cristalino, modificando a sua forma.
  3. Túnica interna: retina. A retina é a camada mais interna do globo ocular. Nela se encontram células nervosas especializadas em captar os estímulos luminosos, (fotorreceptores) designadamente as denominadas por cones e bastonetes.

Os cones encontram-se principalmente na retina central, região da mácula (fovea central ou mácula lutea/amarela).

Os referidos cones permitem uma visão de alta resolução e cromática, mas somente em presença de forte luminosidade (visão diurna ou fotópica).

Os bastonetes, ausentes na mácula, encontram-se principalmente na retina periférica, transmitindo informação directamente para as células ganglionares e permitem visão não cromática com fraca luminosidade (mesópica ou crepuscular) e visão nocturna (ou escotópica).

No fundo da retina localiza-se o ponto cego (mancha cega ou papila), insensível à luz, ao nível do qual não há cones nem bastonetes; corresponde à emergência de vasos sanguíneos da retina e do nervo óptico, nervo que conduz os impulsos nervosos para o centro da visão, no cérebro.

Na retina encontra-se também a já citada mancha amarela (mácula lutea ou fovea central), assim chamada por evidenciar pigmento de cor amarelada. O centro desta zona não contém vasos, sendo constituído unicamente por cones retinianos; é a este nível que as impressões visuais têm o máximo de precisão e nitidez.

No ambiente escuro é muito difícil, e às vezes até mesmo impossível, a visão. Com efeito, é a luz que estimula o tecido nervoso dos olhos e permite distinguir a forma, o tamanho, a cor, o movimento, etc.. Em ambientes mal iluminados, por acção do sistema nervoso simpático, o diâmetro da pupila aumenta, o que permite a entrada de maior quantidade de luz. Ao invés, em locais muito iluminados, a acção do sistema nervoso parassimpático leva à diminuição do diâmetro da pupila e, consequentemente à entrada de luz. Tal mecanismo evita o ofuscamento e impede que a luz em excesso lese as células fotossensíveis da retina.

 

Meios transparentes

  1. Córnea
    Trata-se da porção transparente da túnica externa (esclerótica); é circular no seu contorno e de espessura uniforme. A sua superfície é nutrida pela lágrima segregada pelas glândulas lacrimais e drenada para a cavidade nasal através de um orifício existente no canto interno do olho. O diâmetro corneano médio é ~ 9,5 a 10,5 mm nos recém-nascidos e ~12 mm nos adultos. Quanto ao respectivo raio da curvatura: 6,6-7,4 mm nos recém-nascidos e ~7,4 a 8,4 mm nos adultos.
  2. Humor aquoso

    É o líquido aquoso que se situa entre a córnea e o cristalino, preenchendo o espaço designado por câmara anterior do olho.

  3. Cristalino

    Tem o formato de lente biconvexa coberta por uma cápsula transparente. Situa-se atrás da pupila e orienta a passagem da luz até à retina. Divide o interior do olho em dois compartimentos contendo fluidos ligeiramente diferentes: a) a câmara anterior, preenchida pelo humor aquoso como foi referido antes; b) a câmara posterior, preenchida pelo humor vítreo. O cristalino pode variar a sua forma ficando mais achatado ou mais globoso, uma vez que está suspenso pelo músculo ciliar; tais modificações de forma ocorrem para fazer convergir os raios luminosos na direcção da mancha amarela. Com efeito, o cristalino fica mais globoso para a visão próxima, e mais aplanado para a visão à distância, permitindo que os olhos ajustem o foco para diferentes distâncias. A essa propriedade do cristalino dá-se o nome de acomodação. Com o envelhecimento, o cristalino perde progressivamente a transparência normal, tornando-se opaco; a tal situação chama-se catarata. Com a idade, à medida que o comprimento axial do olho aumenta, o cristalino aplana-se.

  4. Humor vítreo

    O humor vítreo é um fluido mais viscoso e gelatinoso que o humor aquoso, ocupando o espaço entre o cristalino e a retina, isto é, a câmara posterior do olho. A sua pressão mantém o globo ocular esférico.

Anexos

  1. A conjuntiva é uma mucosa transparente, lisa, que reveste a face interna das pálpebras (conjuntiva palpebral) e a face anterior do globo ocular até à córnea (conjuntiva bulbar); une o fundo das pálpebras ao globo ocular, permitindo o seu deslizamento.
  2. As pálpebras são duas porções de pele revestidas internamente pela conjuntiva palpebral. Servem para proteger os olhos e distribuir sobre eles a secreção líquida designada lágrima.
  3. Os cílios ou pestanas impedem a entrada de poeira e de excesso de luz nos
  4. As sobrancelhas ou supracílios têm a função primordial de proteger o globo ocular da sudação da
  5. As glândulas lacrimais produzem lágrimas Tal líquido é distribuído pelos movimentos das pálpebras, limpando e lubrificando o olho. As lágrimas são drenadas através do canal lacrimal que desemboca nas fossas nasais.
  6. Os músculos extrínsecos oculares. Estes músculos são em número de seis (6), com a designação respectiva de rectos, em número de quatro (4), e de oblíquos, em número de dois (2).

Os músculos rectos têm todos uma inserção comum pelo tendão de Zinn na porção média da fenda esfenoidal.

O músculo recto superior tem uma acção de elevação, intorção (ou rotação em torno do eixo principal, para dentro), e adução. O músculo recto inferior tem uma acção de abaixamento, extorção (ou rotação em torno do eixo principal, para fora), e adução. O músculo recto interno ou medial tem uma acção de adução. O músculo recto externo ou lateral tem uma acção de abdução.

O músculo grande oblíquo (superior) tem uma acção de abaixamento, intorção e abdução. O músculo pequeno oblíquo (inferior) tem uma acção de elevação, extorção e abdução. (Figura 2)

Desenvolvimento do sistema visual e sua importância

Considerando a globalidade dos órgãos dos sentidos na espécie humana, a visão constitui o mais importante meio de comunicação com o mundo exterior. De toda a informação que recolhemos, mais de 70% passa em primeiro lugar pelos olhos e pela visão. A normal utilização das funções visuais é, por isso, de extrema importância para um desenvolvimento harmonioso e saudável do ser em crescimento e desenvolvimento – criança e adolescente. Refira-se, a propósito, que o período crítico de desenvolvimento e maturação da visão se processa até aos 4 anos, sendo os primeiros seis meses cruciais.

FIGURA 2. Músculos extrínsecos do olho e levantador da pálpebra superior

Está demonstrado que o recém-nascido (RN) é capaz de ver quando estimulado, por exemplo, por mudanças de intensidade luminosa (ressaltando-se que o rosto da mãe constitui um estímulo visual da maior importância); realça-se, ainda, que a maioria das funções sensoriais e motoras ligadas ao sistema da visual se desenvolve sobretudo no período pós-natal.

Com efeito, o desenvolvimento da visão no primeiro ano de vida depende essencialmente da maturação da retina (cones e bastonetes), da mielinização dos nervos ópticos e outras vias nervosas, assim como do desenvolvimento das sinapses ao nível do córtex visual. Fácil se torna deduzir, então, a extraordinária vulnerabilidade de tais estruturas a noxas que possam surgir nos primeiros meses, incluindo período pré-natal, das quais poderão resultar sequelas graves.

No que respeita a particularidades anatómicas é importante salientar que o olho de um RN de termo tem um diâmetro cerca de 70% do do adulto, e cerca de 95% pelos 3-4 anos de vida. Quanto ao diâmetro da córnea, também em relação ao adulto, tais valores percentuais são, respectivamente, 80% no RN e 95% pelos 1-2 anos. Relativamente à velocidade de crescimento, o globo ocular atinge o acme durante o primeiro ano de vida, com desaceleração a partir do 3º ano, e em velocidade mais lenta até à puberdade.

Os RN e pequenos lactentes mantêm as pálpebras encerradas durante a maior parte do tempo; quanto à sua acuidade visual (adiante abordada com mais pormenor, e já aqui definida resumidamente como a capacidade para distinguir dois pontos distintos a uma determinada distância), numa escala de 0-400 (escala de Snellen) é cerca de 20/400, atingindo a acuidade semelhante à do adulto pelos 2-3 anos de idade.

No respeitante à acomodação (fenómeno pelo qual se torna possível visualizar objectos próximos em função da contracção do músculo ciliar e à elasticidade da cápsula do cristalino), o acme do seu desenvolvimente ocorre entre os 7 e 10 anos, diminuindo após a adolescência.

O reflexo fotomotor pode ser obtido já no recém-nascido, inclusivamente a partir de idades gestacionais de 30 semanas; no período neonatal, pode ainda ser demonstrada a capacidade de fixação em determinado objecto, embora por períodos curtos, sendo que tal capacidade, em termos de duração ou de “concentração”, já está desenvolvida pelos 2 meses; tal permite, pelos 3 meses, seguir com os olhos determinado objecto desde que não ultrapasse o campo visual. (consultar glossário)

Quanto à capacidade para discriminar cores e diversas intensidades de luz, o recém-nascido tem estas capacidades, embora ainda pouco desenvolvidas.

Quanto à secreção lacrimal desencadeada pelo choro, até cerca dos 2-3 meses, é escassa. No respeitante à cor da íris poderá verificar-se pigmentação e consequente modificação da mesma até cerca dos 6-8 meses; a partir de então, a chamada “cor dos olhos” poderá considerar-se definitiva.

Por fim, é importante salientar que alterações no processo de desenvolvimento da motricidade infantil e da coordenação olho-mão estão frequentemente relacionadas com problemas visuais. Na idade escolar, depois dos 6 anos, uma grande parte dos problemas sensoriais ligados ao desenvolvimento da visão é dificilmente tratável, e a recuperação total não é muitas vezes conseguida.

O pediatra e o clínico geral , que acompanham a criança desde o nascimento, devem estar alerta para a vigilância da maturação das funções visuais, considerando a sua posição privilegiada para detectar os problemas e encaminhar precocemente a criança para uma observação em centro especializado de oftalmologia.

No âmbito dos chamados exames de saúde, para além da anamnese rigorosa, determinados procedimentos simples relacionados com a anatomofisiologia do sistema ocular abordados adiante devem fazer parte daqueles: movimentos oculares, inspecção do globo ocular, e estruturas adjacentes, pesquisa do reflexo vermelho, simetria e reactividade da pupila, detecção de opacidades, etc.. Nesta perspectiva é desejável que se proceda ao exame do fundo ocular entre os 3 e 5 anos de idade.

Os rastreios oftalmológicos sistemáticos da criança em “períodos chave” do desenvolvimento são um imperativo, apelando à colaboração entre o médico de família, o pediatra e o oftalmologista.

Nos capítulos seguintes são abordados tópicos fundamentais de Oftalmologia Pediátrica destinados a propiciar ao estudante de medicina, clínico geral e pediatra geral noções gerais no âmbito da referida subespecialidade, com a finalidade de apoio na actuação no ambulatório e na decisão de encaminhamento atempado para centros especializados de situações específicas que ultrapassam as respectivas competências.

BIBLIOGRAFIA

Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience. Basel: Karger, 2008

Gallin FP (ed). Pediatric Ophtalmology. New York/Stuttgart: Thieme, 2000

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Mills MD. The eye in childhood. Am Family Physician 1999; 60: 907-916

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Rogers GL, Jordan CO. Pediatric vision screening. Pediatr Rev 2013; 34: 134-136

Wright KW (ed). Pediatric Ophtalmology for Primary Care. Elk Grove Village,Illinois: American Academy of Pediatrics/AAP, 2008

Nota: As ilustrações inseridas na Parte XXVI foram executadas no Departamento de Anatomia da Faculdade de Ciências Médicas/NOVA Medical School/Universidade NOVA de Lisboa (FCM/NMS/UNL).