CELULITES PERIORBITÁRIAS E ORBITÁRIAS

Definição e importância do problema

A designação de celulite periorbitária corresponde a um processo inflamatório da hipoderme e do tecido conjuntivo subcutâneo, com ligeiro compromisso da derme, ao nível da pálpebra e tecidos periorbitários, sem proptose ou limitação do movimento ocular.

A celulite orbitária corresponde a um processo inflamatório dos tecidos da órbita com proptose, limitação dos movimentos do globo ocular, associado a edema da conjuntiva com rebordo saliente avermelhado em torno da córnea (quemose).

À primeira também se chama pré-septal (ou anterior ao septo orbitário), e à segunda, pós-septal (ou posterior ao septo orbitário), considerando-se anatomicamente o septo orbitário (folheto fibroso) como uma barreira entre os dois referidos espaços.

Na pálpebra superior, o septo tem origem no periósteo do rebordo orbitário superior, ligando-se ao bordo superior do tarso* da pálpebra (zona correspondente à zona de rebatimento da pele (concavidade circundante da respectiva pálpebra).

O septo ao nível da pálpebra inferior origina-se ao nível do periósteo do rebordo orbitário inferior, inserindo-se no bordo inferior do tarso* da pálpebra inferior (correspondente à concavidade inferior circundante da pálpebra inferior).

Estas noções anatómicas têm implicações clínicas importantes; com efeito, como se disse, o septo constitui uma barreira biológica que dificulta (não impedindo, no entanto) a difusão da infecção do espaço pré-septal para o espaço orbitário. Por outro lado, a localização pós-septal não implica necessariamente infecção prévia pré-septal.

* Recorda-se a definição de tarso palpebral: lamela de tecido conjuntivo relativamente denso, com forma semilunar, que constitui o bordo livre da pálpebra superior ou inferior.

Aspectos epidemiológicos

A celulite periorbitária é mais frequente que a celulite orbitária, sendo a primeira mais comum em crianças mais pequenas (< 5 anos); a segunda predomina em crianças mais velhas, o que é relacionável com o maior desenvolvimento dos seios perinasais nesta última circunstância.

A celulite orbitária ocorre mais frequentemente no sexo masculino (2:1), com maior incidência no final do Outono e início da Primavera, coincidindo com o pico de incidência de sinusite. A idade média na data do diagnóstico é de 7 anos.

Etiopatogénese

Os agentes patogénicos implicados são difíceis de identificar, pois as hemoculturas são maioritariamente negativas e as culturas orbitárias apenas são realizadas se estiverem indicadas intervenção cirúrgica e drenagem; de facto, demonstrou-se que os resultados de tais exames poderão não reflectir a etiologia das celulites orbitárias com precisão.

Antes da introdução da vacina conjugada anti-Haemophilus influenzae tipo b, este era o agente microbiano mais comum nas crianças de idade inferior a 2 anos. Actualmente contam-se como agentes mais frequentemente implicados os seguintes: Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae não tipável, Moraxella catarrhalis, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus meticilino-sensível, grupo S. anginosus (milleri) e anaeróbios (Bacteroides, Peptostreptococcus, Prevotella, Fusobacterium).

Nas últimas décadas, infecções por S. aureus meticilino-resistente (MRSA) têm tido incidência crescente, sobretudo no continente americano. Outros agentes etiológicos mais raros incluem Pseudomonas aeruginosa (indivíduos imunocomprometidos) e Eikenella corrodens. A infecção polimicrobiana (aeróbios e anaeróbios) surge sobretudo em crianças mais velhas.

A etiologia fúngica é rara, nomeadamente a mucormicose típica do doente diabético; a primeira, juntamente com a aspergilose são típicas nos doentes imunocomprometidos, apresentando uma evolução mais lenta ao longo de meses.

A infecção por micobactérias (sobretudo M. tuberculosis) é rara.

De acordo com o ponto de partida da infecção, podem ser consideradas diferentes etiologias, discriminadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Etiologias mais prováveis de acordo com o ponto de partida da infecção presumível.

PatologiaAgente mais provável
Sinusite / Infecção respiratóriaS. pneumoniae, H. influenzae não tipável, M. catarrhalis, Streptococcus spp, S. aureus, Anaeróbios
Traumatismo / Picada / Infecção cutâneaS. aureus (SAMS), S. pyogenes
HordéoloS. aureus
DacriocistiteS. pneumoniae, H. influenzae não tipável, S. pyogenes, S. aureus, P. aeruginosa
Abcesso dentárioPolimicrobiano (aeróbios e anaeróbios)
Infecção sistémica
– via hematogénica
S. pneumoniae, H. influenzae não tipável, S. pyogenes, S. aureus


A celulite pré-septal surge na sequência de três possíveis mecanismos: lesões traumáticas penetrantes (ferida, picada de insecto, mordedura); inflamações ou infecções perioculares (dacriocistite, dacrioadenite, calázio, conjuntivite, infecção cutânea); ou, menos frequentemente, difusão de microrganismos a partir de infecções dos seios perinasais ou nasofaringe para o espaço pré-septal.

A celulite pós-septal surge maioritariamente (70-90%) como consequência de sinusite, por extensão do processo infeccioso.

O seio etmoidal é o ponto de partida mais frequente; seguem-se, por ordem decrescente quanto ao referido ponto de partida, outras localizações – etmoidal > maxilar > frontal > esfenoidal-, verificando-se disseminação através da lamina papyracea.

A razão pela qual o espaço orbitário está particularmente predisposto à difusão da infecção a partir dos seios perinasais relaciona-se com particularidades anatómicas regionais: deiscências ósseas naturais nas paredes dos seios esfenoidais e etmoidais (lamina papyracea); e veias orbitárias sem válvulas, o que permite comunicação entre os seios e a órbita por via sanguínea.

Pela rapidez da evolução clínica, e pela proximidade das estruturas do SNC, sobretudo nos casos de celulite pós-septal, existe risco de lesão do globo ocular, nervo óptico, assim como de trombose do seio cavernoso, meningite e abcesso cerebral.

Frequentemente verifica-se infecção de dois seios perinasais, sendo a combinação etmoidal-maxilar a mais frequente. Outros mecanismos incluem: infecções odontogénicas; lesões penetrantes com solução de continuidade do septo orbitário (traumatismo, status pós-cirurgia ocular, etc.) ou disseminação hematogénica por bacteriémia que, sendo rara, pode ocorrer por S. pneumoniae, S. pyogenes, S. aureus ou H. influenzae não tipável.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas permitem, na maioria dos casos, estabelecer a diferença entre celulite pré-septal e pós-septal. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Diferenças clínicas entre a celulite pré-septal e pós-septal.

Celulite pré-septalCelulite pós-septal
Edema palpebral com ou sem eritema
Febre
Visão não afectadaDor ocular marcada
Dor com os movimentos oculares
Quemose
Proptose
Oftalmoplegia
Alteração da resposta pupilar
Alterações visuais


Podem ser considerados 5 estádios de evolução, salientando-se, e reiterando, que a celulite pré-septal não precede obrigatoriamente a celulite pós-septal. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Estádios da doença (adaptado de Chandler et al, 1970).

Estádio I
Celulite pré-septal
    • Edema e eritema palpebral (superior e/ou inferior)
    • Sem dor ou limitação dos movimentos oculares
    • Sem sinais sistémicos
Estádio II
Celulite pós-septal
    • Edema e eritema palpebral, quemose
    • Dor referida à órbita
    • Proptose
    • Limitação dos movimentos oculares, com dor associada nas posições extremas
    • Febre
Estádio III
Abcesso subperióstico
    • Igual ao anterior + eventual diminuição da acuidade visual e proptose
Estádio IV
Abcesso da órbita
    • Igual ao anterior + dor ocular intensa + compromisso da visão + oftalmoplegia
Estádio V
Trombose do seio cavernoso
    • Igual ao anterior. Poderão surgir sinais bilateralmente (após 24-48h), dada a inexistência de mecanismo valvular venoso no seio cavernoso.
    • Síndroma do ápex orbitário – ptose unilateral, proptose, perda de visão, oftalmoplegia intrínseca e extrínseca (midríase por paralisia do par III, e dos músculos extrínsecos por paralisia dos pares III, IV e VI), e perda da sensibilidade da região frontal até à linha média por compromisso do par V (raiz sensitiva)


As Figuras 1, 2, 3 e 4 documentam respectivamente os estádios I, II, II e IV.

FIGURA 1. Estádio I – celulite pré-septal ou periorbitária.

FIGURA 2. Estádio II – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: assimetria de estruturas/proptose do olho direito.

FIGURA 3. Estádio III – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: espaço orbitário preenchido por imagem “em meia lua” com contorno nítido (abcesso subperióstico secundário a sinusite), correspondendo ao levantamento do periósteo pela colecção purulenta; compressão do nervo óptico e do próprio globo ocular.

FIGURA 4. Estádio IV – celulite pós-septal ou orbitária. Aspecto imagiológico da TAC: espaço orbitário preenchido por imagem “em meia lua” com contorno denteado, e densidade diferente da anterior, correspondendo ao abcesso do espaço orbitário, comprimindo o nervo óptico e o próprio globo ocular.

Estabelecendo uma relação com aspectos da patogénese já descritos anteriormente, importa salientar sob o ponto de vista clínico que a evolução para abcesso subperióstico e abcesso orbitário, as complicações mais frequentes, pode ser rápida. O abcesso subperióstico surge maioritariamente por extensão de sinusite etmoidal, facilitada através da lamina papyracea.

No abcesso orbitário, o aumento da pressão intraorbitária com consequente oclusão dos vasos da retina, assim como a neurite óptica associada, podem condicionar alteração da visão. Como manifestação clássica cita-se a fixação do olhar “para baixo e para fora”. A ausência de reflexo pupilar aferente é um sinal precoce de complicação, o que implica necessidade da sua detecção com regularidade e em tempo útil. A extensão da infecção para o SNC- traduzida por empiema epidural ou subdural, meningite e abcesso cerebral-, e a trombose do seio cavernoso são as complicações mais temidas.

Exames complementares

Exames laboratoriais

Na celulite pré-septal e pós-septal pode verificar-se a presença de leucocitose, embora seja mais frequente nesta última. A bacteriémia ocorre em cerca de 33% das crianças com idade inferior a 4 anos. Por isso, deve realizar-se hemocultura antes do início da antibioticoterapia, embora o isolamento microbiano a partir do sangue seja raro. Nos casos com necessidade de intervenção cirúrgica deve proceder-se a:

  • exame bacteriológico da amostra colhida; e
  • exames micológico e para micobactérias em crianças com factores de risco como imunossupressão.

A pesquisa microbiana através de zaragatoa nasal e/ou conjuntival tem pouco interesse para o diagnóstico etiológico.

Exames imagiológicos

A tomografia axial computadorizada (TAC) da órbita e seios perinasais (de preferência com contraste intravenoso) é importante para avaliar a extensão da celulite e as complicações. Deve ser realizada em todos os casos que apresentem sintomas ou sinais sugestivos de celulite da órbita, de envolvimento do SNC (convulsões, alterações do estado de consciência), incerteza quanto ao diagnóstico (menor colaboração no exame objectivo em crianças com <1 ano) e deterioração do estado geral ou intensificação dos sinais inflamatórios locais apesar de tratamento instituído (após 24-48 horas).

A ressonância magnética (RM) é o exame de eleição na suspeita de trombose do seio cavernoso (desenvolvimento de sintomas bilaterais após um período unilateral, ou clínica sugestiva de síndroma do ápex orbitário).

Da mesma forma, na suspeita de complicações intracranianas está indicada a realização de punção lombar, sempre após TAC crânio-encefálica e na asusência de contraindicação.

Diagnóstico diferencial

O edema palpebral presente, quer na celulite pré- como pós-septal, pode ter múltiplas causas, a destacar: reacção alérgica, hipoproteinémia (edema bilateral), enfarte da parede da órbita e hematoma subperióstico (por doença de células falciformes, designadamente).

O diagnóstico diferencial de proptose inclui inúmeras patologias de origem infecciosa e não-infecciosa: trombose do seio cavernoso, pseudotumor da órbita, granulomatose de Wegener, sarcoidose, linfoma, rabdomiossarcoma, retinoblastoma, histiocitose X e doença de Graves (proptose bilateral). A síndroma do apex orbitário, que pode decorrer destas etiologias, pode ser forma de apresentação de mucormicose ou aspergilose em doentes imunocomprometidos.

Tratamento

As celulites pré e pós-septal devem ser rápida e agressivamente tratadas. A escolha de antibioticoterapia deve ser feita de acordo com o ponto de partida de infecção presumível, idade do doente, presença de co-morbilidades e complicações.

Na celulite pré-septal poderá ser considerado o tratamento em regime ambulatório e por via oral nas crianças de idade superior a 1 ano, sem doença subjacente, sem sinais sistémicos, com condições para boa adesão à terapêutica, e garantia de vigilância médica 24 horas após o início do mesmo.

A amoxicilina com ácido clavulânico ou a cefuroxima oral são boas opções terapêuticas nas crianças em que o ponto de partida aparenta ser sinusite, infecção odontogénica, conjuntivite ou mordedura de cão. Na presença de hordéolo, calázio, dacrioadenite, dacriocistite, lesão cutânea ou picada de insecto a escolha é a flucloxacilina.

A celulite pós-septal deve ser sempre tratada em regime de internamento, com vigilância rigorosa dos sinais clínicos sugestivos de extensão ou complicação do processo infeccioso. Nestes casos, as opções terapêuticas devem ser de aplicação intravenosa:

  • amoxicilina com ácido clavulânico (50 mg/kg/dose 8/8h de amoxi-) ou,
  • cefuroxima (150 mg/kg/dia 8/8h) associada ou não à clindamicina (30-40 mg/kg/dia 6/6h).

Na suspeita de bacteriémia é preferível optar por ceftriaxona (100 mg/kg/dia 24/24h) ou cefotaxima (200 mg/kg/dia 6/6h).

No abcesso subperióstico ou orbitário associa-se habitualmente a clindamicina ou o metronidazol à cefalosporina de terceira geração.

Nos doentes com suspeita de extensão intracraniana, deve optar-se por ceftriaxona ou cefotaxima (200 mg/kg/dia 6/6h) em associação à vancomicina (60 mg/kg/dia 8/8h) e metronidazol (30 mg/kg/dia 8/8h).

Nos doentes com celulite não complicada é possível a transição para terapêutica oral após 24h de apirexia, na condição de se verificar melhoria dos sinais inflamatórios locais, habitualmente após 3 a 5 dias de terapêutica intravenosa. A duração total é de 10 dias, excepto nos casos de sinusite aguda (14 dias), complicações intracranianas (4-8 semanas) e de sinusite etmoidal com destruição óssea (6-8 semanas).

Na suspeita de infecção confirmada por S. aureus meticilino-resistente (MRSA) é recomendado o uso de vancomina.

Nos casos de infecção em doentes imunocomprometidos ou com outros factores de risco (por ex. diabetes mellitus mal controlada), deve ser considerada a etiologia fúngica e ponderar-se a instituição de antifúngico.

A terapêutica adjuvante com descongestionantes nasais, por um período de 7-10 dias e nos casos em que o factor predisponente é sinusite, pode facilitar a drenagem do seio infectado e promover a resolução do quadro. O uso de corticosteróides é controverso.

Salienta-se que a celulite pós-septal implica uma abordagem multidisciplinar, incluindo obrigatoriamente otorrinolaringologista, oftalmologista e neurocirurgião.

As situações que requerem intervenção cirúrgica urgente incluem: diminuição da acuidade visual, oftalmoplegia, sinusite frontal (Pott tuffy tumor, osteíte frontal), abcesso subperióstico de grandes dimensões (>10 mm) ou não-medial, abcesso orbitário, complicações intracranianas e ausência de melhoria ou agravamento clínico após 24-48h de antibioticoterapia adequada.

A abordagem cirúrgica do abcesso subperióstico é controversa. Alguns estudos defendem iniciar antibioticoterapia em crianças pequenas (< 9 anos), seguida de cirurgia na ausência de melhoria ou agravamento, o que requer uma monitorização rigorosa; alguns autores elegem o volume como melhor critério para escolha de abordagem, considerando que um abcesso que corresponda a > 1,25 cm3 deve ser submetido a intervenção cirúrgica.

O tratamento com anticoagulante na trombose do seio cavernoso, para além da terapêutica antibiótica e doutras medidas de suporte vital, é controverso. Alguns autores defendem os seus benefícios quando iniciado precocemente em doentes sem evidência de hemorragia.

Prognóstico

O prognóstico de celulite pré-septal é favorável após instituição de terapêutica adequada.

Raramente há progressão para celulite pós-septal ou complicações. Contrariamente, a celulite pós-septal é uma situação que comporta elevado risco: pode levar a perda visual definitiva, a complicações intracranianas e, até, à morte.

Na maioria dos casos em que a abordagem terapêutica médica e/ou cirúrgica é concretizada de forma urgente e eficaz (conforme é recomendado), não se verificam sequelas.

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INFECÇÕES DA PELE E DOS TECIDOS MOLES

Definição e importância do problema

As infecções de pele e tecidos moles são processos inflamatórios que podem atingir todas as camadas da pele (epiderme, derme, folículos pilosos, hipoderme* e tecido celular subcutâneo).

Trata-se de patologia frequente em todas as idades pediátricas, correspondendo a cerca de 25% dos motivos de recurso aos serviços de urgência e de ambulatório. O diagnóstico precoce é fundamental, pois sem tratamento a morbilidade e mortalidade associadas são elevadas. Globalmente, Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes são os agentes mais frequentes; no entanto, são raras as entidades clínicas exclusivamente associadas a um destes agentes.

A lista de causas de infecções bacterianas da pele é extensa; neste capítulo são focadas as situações mais comuns e apenas as infecções bacterianas, tendo em conta a localização, profundidade, agente etiológico e clínica. (Quadro 1)

* As paniculites (ou hipodermites) são quadros clinicopatológicos em que se verifica inflamação do panículo adiposo (hipoderme) de etiopatogénese diversa (infecções, doenças inflamatórias e administração de fármacos).  Por vezes associadas a vasculite, nesta obra optou-se pela inclusão de tal nosologia na Parte sobre Reumatologia.

QUADRO 1 – Infeções da pele e tecidos moles: estruturas atingidas e microrganismos envolvidos

 EstruturaMicrorganismos
ImpetigoSimplesEpidermeStaphylococcus aureus
Streptococcus pyogenes
BolhosoS. aureus
Síndroma da Pele EscaldadaSistémicoS. aureus
ÉctimaEpiderme/DermeStreptococcus pyogenes/S. aureus
Éctima gangrenosaEpiderme/DermePseudomonas aeruginosa
Dermatite perianalEpidermeS. pyogenes/S. aureus
FoliculiteFolículo piloso superficial (epiderme e derme)S. aureus
Staphylococcus coagulase negativos
Klebsiella spp
Enterobacter spp
Escherichia coli
Pseudomonas aeruginosa
Proteus spp
FurúnculoFolículo piloso profundo (derme e hipoderme)S. aureus
CarbúnculoBacillus anthracis
ErisipelaDerme
Tecido celular subcutâneo (Vasos linfáticos)
S. pyogenes
Streptococcus grupo B, C e G
S. aureus
Streptococcus pneumoniae
CeluliteHipoderme
Tecido celular subcutâneo
S. pyogenes
S. aureus
Haemophilus influenzae tipo b
Streptococcus pneumoniae
Abcesso e FleimãoDerme e hipodermeS. aureus
S. pyogenes
Fascite NecrotizanteTecido celular subcutâneo
Fáscia
S. pyogenes
S. aureus
Polimicrobiano
Gangrena GasosaHipoderme
Tecido celular subcutâneo
Clostridium perfringens
PiomiositeMúsculoS. aureus
S. pyogenes
Streptococcus pneumoniae

Aspectos semiológicos

Para melhor compreensão da terminologia relacionada com as infecções da pele e dos tecidos moles a analisar, importa ter em consideração alguns aspectos semiológicos.

Lesões cutâneas primárias

  1. Sem relevo na superfície cutânea, atingindo a epiderme e derme (mancha ou mácula).
  2. Com relevo na superfície cutânea.

a) sólidas (sem conteúdo líquido)

  • pápula (atingindo a epiderme e derme);
  • nódulo (atingindo a epiderme, derme profunda até à hipoderme);
  • tumor (semelhante ao nódulo, mas de maiores dimensões.

b) com conteúdo líquido (atingindo a epiderme ou derme e epiderme)

  • vesícula;
  • bolha ou flictena;
  • pústula.

Entre pápulas, nódulos e tumores existem principalmente diferenças quantitativas; assim sucede entre vesícula e bolha (ou flictena). A pústula refere-se à natureza do conteúdo líquido (pus).

A Figura 1 e o Quadro 1 ilustram esquematicamente as principais formas clínicas de infecção da pele e tecidos moles.  

A – Impétigo B – Éctima C – Erisipela D – Abcesso e fleimão E – Ostiofoliculite F – Foliculite G – Furúnculo H – Antraz I – Hidrosadenite J – Perioniquia

FIGURA 1. Principais formas clínicas das infeções da pele e tecidos moles.

Lesões cutâneas secundárias

  1. Escama (pequena lâmina epidérmica seca que se destaca da superfície da pele em caso de perturbação da sua queratinização).
    Conforme o tamanho e aspecto, as escamas podem ser farinosas, furfuráceas, pitiriásicas e psoriásicas).
  2. Crosta (pequena formação sólida constituída na superfície da pele ou de uma mucosa por serosidade, sangue ou pus secos.
  3. Escoriação ou erosão (perda de substância limitada às camadas superficiais da pele, de uma mucosa ou de uma membrana superficial tal como a córnea). Na pele pode ser provocada por coceira.
  4. Fenda ou fissura (solução de continuidade ou abertura estreita e linear).
  5. Ulceração (processo patológico que leva à formação de úlcera ou a própria quando está em vias de constituição); o conceito, em comparação com escoriação, implica maior profundidade e maior dificuldade de cicatrização.
  6. Cicatriz (tecido fibroso neoformado substituindo perda de substância, tecido inflamatório, ou reunindo as partes divididas duma ferida ou uma incisão operatória).
  7. Atrofia (redução das dimensões de tecido ou de lesão anterior).

Etiopatogénese

Microbiota cutânea

O termo colonização refere-se à presença de microrganismos na pele, sem sinais ou sintomas associados. As bactérias colonizadoras podem ser residentes ou comensais; raramente condicionando doença, constituem a maior parte da microbiota dita normal ou saprófita (Staphylococcus epidermidis e Propionibacterium acnes). As bactérias transitórias ou contaminantes provêm da flora patogénica do meio ambiente (S. aureus, Streptococcus spp, microrganismos entéricos gram-negativos e Candida albicans) que se multiplicam e persistem na pele por tempo variado e podem causar doença ao hospedeiro. Esta distinção tem implicações clínicas importantes na interpretação dos resultados dos exames bacteriológicos cutâneos visto que, por vezes, é difícil distinguir entre colonização e infecção secundária.

Mecanismos de defesa

A pele íntegra constitui uma barreira anatómica eficaz contra a infecção. Fissuras ou escoriações, que podem ter múltiplas causas – picada, mordedura, traumatismo, queimadura, infecções (varicela), infestações e lesões de coceira (escabiose), ou ainda dermatoses primárias (eczema ou psoríase) – são a porta de entrada para múltiplos microrganismos que predispõem a infecção. São também factores predisponentes importantes as síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida, prematuridade, diabetes mellitus e terapêutica imunossupressora (por ex. corticoterapia).

Para além de barreira anatómica, a pele também funciona como barreira imunológica, integrando mecanismos de imunidade inata e adaptativa. A resposta inata, a linha de defesa inicial contra os microrganismos patogénicos, é rápida, inespecífica e limitada. Os queratinócitos da epiderme produzem péptidos cutâneos microbicidas em resposta a padrões moleculares associados a patogénios (PAMP ou DAMP) e citocinas pro-inflamatórias (IL-1, IL-6, TNFa) em resposta à infecção. As células de Langerhans integram no citoplasma os microrganismos e produzem Il-1b, Il-6. Esta resposta integra ainda a produção de citocinas imunomoduladoras (IL-10, TGF-β) (que mantêm a integridade da barreira), proteínas do complemento (promovendo a opsonização de microrganismos extracelulares), células fagocitárias (neutrófilos e macrófagos), células Natural Killer e outras células “promovendo a apresentação” de antigénios.

Sendo a resposta imune inata a primeira linha de defesa, a resposta imune adaptativa é mais tardia, específica para o antigénio e com capacidade de memória. Em infecções da pele a resposta imunitária adaptativa é efectuada principalmente por células T e anticorpos IgE. Em resposta aos antigénios apresentados pelas células dendríticas, as células T activadas expandem-se e formam vários subtipos, de que se destacam as células T CD4+, Th1, Th2, Th17 e Tregs.

Patogenicidade

Sendo os agentes S. aureus e S. pyogenes os principais microrganismos responsáveis pelas infecções da pele e tecidos moles, é importante salientar os principais mecanismos de patogenicidade.

S. aureus – adere à pele e, na presença de lesão, pode invadir o epitélio, atingir os tecidos mais superficiais e estender-se aos mais profundos, causando infecção. Este patogénio tem capacidade de produção de múltiplos factores de virulência, nomeadamente diferentes toxinas – enterotoxinas, TSST-1(toxic shock syndrome toxin-1) e toxinas esfoliativas (A e B) – que funcionam como superantigénios e induzem resposta inflamatória sistémica que é responsável pelas manifestações clínicas características do processo infeccioso. A leucocidina de Panton-Valentine (LPV) é uma citotoxina particularmente virulenta que provoca destruição leucocitária e necrose tecidual; tem sido encontrada nas infeções mais graves. A resistência à meticilina – S. aureus meticilino-resistente (SAMR) – tem aumentado nos últimos anos, principalmente no âmbito dos cuidados de saúde, mas também na comunidade. Pode estar associada a um aumento de virulência relacionada com vários factores, como a produção da toxina LPV. Esta capacidade de resistência é conferida pela PBP2a (penicillin-binding protein 2a), que é codificada pelo gene mecA.

S. pyogenes adere à superfície das células do hospedeiro e invade as células epiteliais, utilizando uma variedade de estratégias para se difundir e causar infecção. A virulência deste organismo depende sobretudo da proteína M que promove a adesão, confere resistência à fagocitose e ilude a resposta inata do organismo. Com base nesta proteína de superfície, com características antigénicas, estão identificados cerca de 200 serótipos distintos, sendo que os tipos associados a infecções cutâneas raramente causam faringite. Existem outros mecanismos de evasão como a cápsula de ácido hialurónico, exotoxinas, hemolisinas estreptocócicas O e S, leucocidina, estreptoquinase, desoxirribonuclease, hialuronidase, peptidase C5a e estreptodornase – descritos noutro capítulo.

Actualmente tem surgido o conceito de reguladores da expressão de factores de virulência, os quais controlam de forma complexa a síntese destes factores ao longo do tempo e sob determinadas situações, como o designado CovRS. A transmissão de infecções estreptocócicas e estafilocócicas faz-se sobretudo por contacto direto.

Formas clínicas

1. Impetigo

Trata-se duma infecção superficial da epiderme, muito contagiosa, caracterizada por vesículas, pústulas e posteriormente crostas. É a infecção cutânea mais frequente na idade pediátrica, correspondendo a cerca de 10% de todos os problemas dermatológicos. Descrevem-se duas formas de impetigo: – o superficial simples não bolhoso, que é o mais frequente (70% dos casos); e – o impetigo bolhoso.

Impetigo não bolhoso

O impetigo superficial simples não bolhoso corresponde a uma infecção superficial da pele, com atingimento da epiderme. Tem uma incidência máxima entre os 2 e os 5 anos, sendo raro abaixo dos 2 anos.

Atinge preferencialmente crianças e jovens em condições precárias de higiene ou classe social baixa. Tem maior prevalência no verão e em climas tropicais (quente e húmido) e pode ocorrer em epidemias familiares ou em escolas e infantários.

O agente etiológico mais frequente é S. aureus, seguido por S. pyogenes. Em cerca de 15% dos casos de impetigo, estes dois microrganismos encontram-se associados.

Clinicamente estas duas entidades são de muito difícil distinção. As lesões típicas começam na face, com predomínio periorificial, ou membros inferiores, em pele previamente traumatizada; inicia-se por uma lesão maculopapular eritematosa que rapidamente evolui para vesícula e pústula com crosta do tipo “cor de mel”. Habitualmente de diâmetro inferior a 2 cm e com halo eritematoso não é dolorosa, evoluindo com prurido ocasional e sem repercussão sistémica. Na maioria dos casos pode ter associada adenopatia regional.

Ao fim de algum tempo as crostas destacam-se e, na superfície da pele, pode surgir ligeira descamação e alteração da pigmentação, sem ulterior formação de cicatriz (Figura 2). O diagnóstico é clínico e o diagnóstico diferencial inclui infecções por herpes, tinha e eczema agudizado.

FIGURA 2. Impetigo.

Impetigo bolhoso

O impetigo bolhoso tem maior incidência em lactentes e crianças pequenas. É causado quase exclusivamente por uma toxina esfoliativa produzida por S. aureus (cerca de 80% pertence ao grupo fágico II, produtor da toxina epidermolítica A e B).

Surgindo vesículas em pele previamente sã, as mesmas rapidamente aumentam de tamanho e formam bolhas transparentes, de parede fina, flácida, não dolorosas, habitualmente de diâmetro superior a 1 cm, com conteúdo amarelo claro (Figura 3) que se pode tornar turvo e purulento. A ruptura da bolha deixa uma base eritematosa e húmida que posteriormente seca e fica com um aspecto acastanhado e brilhante (Figura 4).

Tratamento

O impetigo dissemina-se a outras zonas do corpo por autoinoculação, pelo que é importante respeitar certos princípios gerais; o objectivo é evitar a propagação e recidiva, assim como limitar as probabilidades de transmissão. As lesões devem ser lavadas com água e sabão ou antissépticos, e eventualmente tapadas. O tratamento tópico é lícito nas lesões localizadas, com ácido fusídico ou mupirocina, durante 5 a 7 dias. Havendo ineficácia do tratamento tópico, lesões múltiplas e dispersas, localização periorificial (olhos e boca), ou outros casos de impetigo em familiares ou conviventes, está indicada a antibioticoterapia sistémica durante 5 a 7 dias. O antibiótico de primeira linha é a flucloxacilina oral 50-100 mg/kg/dia de 8 em 8 horas. Como tratamento de segunda linha, ou havendo suspeita de infecção por S. pyogenes, deve optar-se pela amoxicilina com ácido clavulânico, sendo 50 mg/kg/dia de amoxicilina de 8 em 8 horas. Apesar de raros, nos casos de alergia à penicilina, poderá optar-se pela clindamicina (20 a 40 mg/kg/dia), ou por uma cefalosporina de 1ª geração como a cefradina (25-100 mg/kg/dia) (este princípio também é válido para as patologias descritas adiante).

FIGURA 3. Impetigo bolhoso.

FIGURA 4. Impetigo bolhoso após ruptura da bolha.

Quando não tratado, pode curar sem sequelas ou evoluir durante semanas em surtos sucessivos. Em menos de 10% dos casos evolui para infecções mais profundas, como celulite e linfadenite. O aparecimento de glomerulonefrite está relacionado com as estirpes estreptocócicas nefritogénicas (sobretudo tipo M 2, 31, 49, 53, 55, 56, 57 e 60), surgindo 10 a 21 dias após o aparecimento do impetigo. Pelo contrário, as infecções cutâneas por Streptococcus não estão associadas a ulterior febre reumática.

O impetigo é uma doença de evicção escolar; a lesão deve ser coberta e a evicção deve ser concretizada até 24 horas após o início da antibioticoterapia.

Nos casos de impetigo recorrente deve-se considerar a pesquisa de colonização por S. aureus (ver abcessos recorrentes).

2. Síndroma da pele escaldada estafilocócica

Considerada a variante sistémica do impetigo bolhoso, é causada pelas toxinas esfoliativas A e B produzidas por S. aureus, afectando geralmente crianças até aos 5 anos. (Figura 5)

FIGURA 5. Síndroma de pele escaldada.

FIGURA 5A. Escarlatina estafilocócica.

FIGURA 6. Síndroma de Ritter. 

Tem início súbito, habitualmente, após uma infecção estafilocócica primária (umbigo, conjuntiva). Caracteriza-se por mau estado geral aparente, febre alta, prostração, eritema difuso e doloroso, tipo escarlatiniforme. Verifica-se descamação superficial da pele ao toque (sinal de Nikolsky, correspondendo à clivagem epiderme-derme, característica desta situação); a evolução é muito rápida, com aparecimento de bolhas de conteúdo claro em grandes áreas da pele; após rotura evidenciam uma base eritematosa que cicatriza com restitutio ad integrum.

No RN este quadro clínico, surge entre o 4º e 10º dia de vida, por vezes assumindo carácter epidémico nas unidades neonatais; é denominado síndroma de Ritter ou impetigo neonatal. Traduz-se por descolamento epidérmico de grandes áreas do corpo. Por vezes surge septicemia, pneumonia e meningite. (Figura 6)

Dada a gravidade clínica e possibilidade de complicações, a síndroma da pele escaldada estafilocócica exige internamento hospitalar. A pele requer os mesmos cuidados que a de um grande queimado: deve ser mantida limpa e húmida com compressas esterilizadas embebidas em soro fisiológico, e aplicação de emoliente em função do contexto clínico. A assepsia deve ser rigorosa, usando sempre material esterilizado. A antibioticoterapia sistémica IV, está sempre indicada, sendo a primeira escolha a associação de flucloxacilina, 150-200 mg/kg/dia de 6 em 6 horas, com clindamicina, 40 mg/kg/dia de 6 em 6 horas (este último antibiótico inibindo a síntese da toxina bacteriana), durante 10 a 14 dias.

Com o tratamento adequado a recuperação habitualmente é rápida; no entanto, por vezes são necessárias medidas de ressuscitação e suporte hemodinâmico. É essencial ter em atenção as complicações, nomeadamente alterações hidroelectrolíticas, perturbações da termorregulação e infecções bacterianas secundárias graves.

Nota importante: A chamada escarlatina estafilocócica tem afinidades com a síndroma de pele escaldada; com efeito, a sua etiopatogénese está também relacionada com a toxina epidermolítica estafilocócica. Manifesta-se em crianças mais velhas e com maior experiência imunológica: febre, eritrodermia difusa, dolorosa e áspera, não evidenciando – ao contrário da escarlatina estreptocócicanem “língua de fambroesa” nem petéquias no véu do paladar. Evolui para descamação em grandes retalhos. (Figura 5A)

3. Éctima

A éctima é uma infeção ulcerosa da pele, atingindo a epiderme e derme. Surgindo, sobretudo em crianças e idosos, tem como localização mais frequente os membros inferiores. É causada por S. pyogenes, sendo que o agente S. aureus também poderá actuar secundariamente com efeito sinérgico e contribuir para manutenção da infecção.

Trata-se duma situação semelhante ao impetigo, com evolução mais arrastada e erosão da epiderme, levando à ulceração e atingimento da derme. (Quadro 1) Frequentemente surge num local traumatizado, forma-se uma vesícula ou vesicopústula que se cobre de crosta dura, necrótica, elevada e aderente. Cura com formação de cicatriz, geralmente pouco evidente (Figura 7). O tratamento, semelhante ao do impetigo, deve ser sistémico.

FIGURA 7. Éctima.

A éctima deve ser distinguida da éctima gangrenosa, que tem uma apresentação mais exuberante, com bacteriémia e múltiplas lesões na pele que correspondem a vasculite necrosante bacteriana. Esta entidade tem sido associada a infecção por Pseudomonas aeruginosa e é rara em crianças saudáveis; por isso, quando presente, deve ser feito estudo para detecção de imunodeficiência primária (IDP) subjacente.

4. Dermatite perianal

É uma infeção superficial da epiderme, localizada e bem delimitada na região perianal, muito contagiosa. Mais frequente em crianças entre os 6 meses e os 10 anos, com maior frequência entre os 3 e 5 anos, e predomínio no sexo masculino (70%).

Causada classicamente por S. pyogenes, nos últimos anos tem-se verificado incremento do número de casos por S. aureus.

Clinicamente cursa com eritema perianal (90%) bem delimitado, sem induração, e confluente com o orifício anal.

Posteriormente, na ausência de tratamento, começam a aparecer fissuras dolorosas, com dejecções mucosas e placas “cor de mel” na periferia. Pode estar associada a prurido (80%), dor (50%) e, em 1/3 dos casos, pode haver fezes com sangue.

Em geral não se verifica elevação dos títulos de antiestreptolisina O, nem de DNAase B. Pode ser feita cultura da zaragatoa perianal, mas o diagnóstico é essencialmente clínico.

O diagnóstico diferencial, em função da idade e do contexto ambiental, deve ser feito com dermatite seborreica, psoríase, candidíase, doença inflamatória intestinal e abuso sexual.

O tratamento de escolha é realizado com amoxicilina (50 mg/kg/dia de 8 em 8 horas, 7 dias). Se houver suspeita de S. aureus, deve utilizar-se amoxicilina com ácido clavulânico ou flucloxacilina.

A dermatite perianal é muito contagiosa e em mais de 40% dos casos é recorrente.

5. Foliculite, furúnculo e antraz

Estas entidades representam um grupo de infecções que têm em comum a sua origem nos folículos pilosos com formação de abcessos. Factores como humidade, higiene precária e maceração da pele predispõem à infeção por S. aureus, o principal agente patogénico envolvido. Esta patologia pode ser sistematizada como se segue.

Foliculite

Infecção piogénica dos folículos pilosos com atingimento da derme e epiderme. Invade apenas a porção superficial de um único folículo e pode atingir com maior profundidade o bulbo piloso, mas com reacção tecidual mínima (Figura 8). Pode observar-se, em zonas contíguas da pele, lesões em vários estádios evolutivos.

Formam-se pápulas eritematosas que evoluem para pústulas de localização folicular. Habitualmente atinge as zonas com maior número de folículos pilosos, barba (sicose vulgar), couro cabeludo, regiões pilosas das nádegas e extremidades.

O tratamento da foliculite inclui a eliminação dos factores patogénicos e a limpeza da pele. Como medidas locais citam-se: cuidados de assepsia, protecção com pensos, limpeza da pele com cloro-hexidina e aplicação de antibioticoterapia tópica (ácido fusídico, bacitracina ou mupirocina). O uso de depilação com laser ou pinça devem ser os métodos preferidos; os métodos que utilizam cera ou lâmina agravam a foliculite, pelo que devem ser evitados. 

A foliculite é, na sua maioria, autolimitada; pode regredir com a terapêutica tópica, ou ainda, evoluir para formas mais profundas (furúnculo) e necessitar de antibioticoterapia sistémica.

FIGURA 8. Foliculite.

Furúnculo e antraz*

– Furúnculo é a inflamação estafilocócica perifolicular global. Trata-se dum processo mais profundo (derme e hipoderme) (Quadro 1) com necrose do folículo e tecidos adjacentes (Figura 9). O furúnculo da pálpebra ou terçol constitui um exemplo deste tipo de lesão, com localização particular.

– Antraz é uma lesão de maiores dimensões, profunda (derme e hipoderme), com reacção tecidual mais extensa e podendo estar associado a sintomas sistémicos. É a aglomeração de vários furúnculos separados por septos que drenam à superfície da pele por orifícios independentes e com locas que comunicam entre si. (Figura 10)

*Na linguagem em língua inglesa, a aglomeração de diversos furúnculos com tendência necrosante é designada carbuncle. Na literatura científica portuguesa clássica o referido quadro clínico-patológico é designado antraz, o que por vezes pode gerar confusão.

O termo carbúnculo, segundo a linguagem clássica portuguesa diz respeito à doença infecciosa, hoje rara, comum ao gado e à espécie humana provocada por “bactéria carbunculosa” – bacilo Gram positivo (Bacilus anthracis) – cujos esporos, muito resistentes, contaminam o solo e diversos produtos de origem animal. Esta infecção é designada na literatura de língua inglesa por anthrax. O microrganismo em causa constitui  uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.


Havendo tendência para localização em áreas pilosas e mais expostas a atrito (nádegas, pescoço, axilas, região da cintura), a lesão inicia-se em volta dum folículo piloso por nódulo doloroso eritematoso. Após alguns dias surge massa necrótica a que se sucede colecção purulenta central com flutuação. A ruptura dá lugar à expulsão do rolhão de tecido necrosado, com destruição do folículo piloso e cicatriz residual.

O furúnculo e o antraz comportam risco de celulite, bacteriémia, e de focos infecciosos à distância como osteomielite, endocardite e abcessos cerebrais. Os furúnculos da asa do nariz, lábio superior e canal auditivo externo podem associar-se a trombose do seio cavernoso com risco de extensão à veia angular e propagação ao cérebro.

O tratamento destas entidades consiste nas medidas gerais aplicáveis à foliculite: aplicar compressas esterilizadas húmidas e quentes (facilitando a drenagem) e evitar manipulação de lesões, nomeadamente as localizadas na face. Nas lesões mais profundas, bem localizadas e com flutuação, está indicada drenagem cirúrgica e a antibioticoterapia é habitualmente desnecessária.

Quando a drenagem não é possível, ou há sintomas sistémicos associados, utiliza-se como primeira escolha a flucloxacilina durante 5 a 10 dias. Se houver atingimento sistémico, deve iniciar-se antibioticoterapia endovenosa e, após melhoria, passar-se a oral.

Na ausência de tratamento, o que é actualmente raro, pode haver evolução por surtos, com aparecimento sucessivo de novas lesões durante semanas ou meses. Nos casos recorrentes, deve ser feita a pesquisa de colonização por SAMR ou S. aureus produtor de LPV; se presente, deve ser ponderada a descolonização adequada. A abordagem da furunculose recorrente será focada na alínea dedicada a “abcessos recorrentes”.

6. Erisipela

A erisipela é definida como inflamação superficial da pele, que envolve a camada profunda da derme e pode estender-se até à camada superficial do tecido celular subcutâneo, com atingimento dos vasos linfáticos. (Quadro 1)

É mais frequente nos extremos etários (crianças e idosos) e em imunocomprometidos. Nas crianças parece ser mais frequente no sexo masculino e, com o avançar da idade, passa a ser mais comum nas mulheres. Em 70 a 80% dos casos são os membros inferiores e superiores que estão envolvidos, sendo a face afectada em apenas 5 a 20% dos casos.

A erisipela é maioritariamente causada por S. pyogenes, sendo menos frequentes outros Streptococcus dos grupos B, C e G. Mais recentemente tem-se atribuído o envolvimento do agente S. aureus e outros microrganismos gram-negativos em cerca de 10% dos casos.

As manifestações clínicas surgem de modo aparatoso após um período de incubação de 2 a 5 dias, com sintomas sistémicos inespecíficos, febre, cefaleia, astenia e vómitos. Posteriormente, surge uma placa eritematosa, edemaciada, quente, dolorosa, circunscrita com os limites muito bem definidos e com bordo nítido, elevado, com tendência para extensão periférica. Por vezes surgem vesículas, bolhas, linfangite superficial (aspecto “casca de laranja”) e adenite satélite (Figura 11). Na fase inicial, a erisipela pode ser facilmente confundida com celulite, a diferenciação é feita com a evolução da doença.

O diagnóstico é clínico e em regra o quadro acompanha-se de leucocitose com neutrofilia e elevação do valor da PCR. O resultado do exame cultural da lesão raramente é positivo, pelo que é desnecessário para o diagnóstico.

É fundamental o repouso com elevação do membro afectado e manobras de diminuição da estase linfática. O tratamento da eventual “porta de entrada” (fissuras, dermatofitoses) é indispensável e obrigatório. Outras medidas de suporte incluem analgésicos e antipiréticos (paracetamol); localmente podem ser aplicados emolientes.

Quando a apresentação clínica é exuberante, o tratamento deve ser iniciado em internamento hospitalar.

A antibioticoterapia de primeira escolha é a penicilina G cristalina 150.000 – 200.000 UI/kg/dia IV, de 6 em 6 horas; após melhoria clínica, o tratamento antimicrobiano pode completar-se com 7 a 10 dias de antibioticoterapia no domicílio, com amoxicilina 50 mg/kg/dia PO de 8 em 8 horas. Se se suspeitar de infecção por S. aureus (aspecto geral tóxico), deve ser associada a clindamicina.

A erisipela pode apresentar recorrência em cerca de 20 a 30% dos casos em que há condições predisponentes (diabetes, linfoma, síndroma nefrótica, estase venosa e hipogamaglobulinémia). Nestas formas recidivantes poderá estar indicada a profilaxia com penicilina G benzatínica intramuscular ou amoxicilina oral.

Sem tratamento adequado a situação pode complicar-se com septicemia, focos infecciosos metastáticos (pneumonia, meningite e osteomielite), abcesso, tromboflebite, fascite necrosante ou choque tóxico.

Nota importante: A propósito da designação “erisipela” chama-se a atenção para uma entidade clínica designada erisipelóide, a qual é provocada por uma bactéria da família Corynebacteriaceae chamada Erysipelothrix rhusiopathiae. Trata-se duma infecção aguda (rara, autolimitada, localizada nos dedos das mãos, não ultrapassando a porção proximal do pulso), resultante da inoculação do microrganismo por contacto com peixes, aves ou os seus produtos contaminados. Traduz-se por edema e eritema azulado, com compromisso articular. O tratamento específico de escolha inclui eritromicina ou penicilina.

FIGURA  9. Furúnculo.

FIGURA 10. Antraz.

FIGURA 11. Erisipela.

7. Celulite

A celulite é uma inflamação aguda da hipoderme e do tecido celular subcutâneo (Quadro 1). Pode manifestar-se em qualquer idade sendo mais frequente nos membros inferiores; (39,9%), seguem-se em frequência a face e os membros superiores.

Os agentes etiológicos mais comuns são S. pyogenes e S. aureus; e mais raros, Streptococcus pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa.

A celulite surge frequentemente como sobreinfecção de uma lesão da pele. Manifesta-se por área edematosa, vermelho vivo, quente, de propagação insidiosa, associada a dor ligeira, com limites mal definidos, ao contrário da erisipela. Concomitantemente pode aparecer febre (inconstante) e outros sinais sistémicos inespecíficos que, quando presentes, são brandos. Pode haver linfadenopatia regional associada. Nas formas mais graves podem surgir lesões bolhosas, hemorrágicas e necrose.

Após a introdução duma vacina conjugada, a celulite por Haemophilus influenzae tipo b tornou-se rara. Surgindo no decurso de bacteriémia, a observação da pele mostra zona de aspecto violáceo, por alguns considerado patognomónico. A face e o pescoço são as áreas mais afectadas.

Se idênticos sinais surgirem no RN, admite-se como hipótese mais provável, infecção por Streptococcus agalactiae ou Escherichia coli.

FIGURA 12. Celulite localizada.

FIGURA 13. Celulite com sinais sistémicos.

→ Celulite sem sinais sistémicos: mais provavelmente provocada pelo agente S. aureus, é mais localizada, mais rapidamente supurada, mas sem sinais sistémicos (Figura 12).

→ Celulite com sinais sistémicos: distribuição mais difusa, com linfangite e adenite associadas a sintomas sistémicos mais graves; o agente causal mais provável é S. pyogenes; existe elevado risco de produção de toxina necrosante. (Figura 13)

O diagnóstico é clínico; no entanto, deve proceder-se a hemocultura nos casos com sinais sistémicos mais graves, pois em cerca de 5% dos casos pode haver associação a bacteriémia.

O diagnóstico diferencial faz-se com erisipela, reação inflamatória a picadas de insetos, tromboflebite superficial e piomiosite.

Nas formas não acompanhadas de sinais sistémicos, localizadas, está indicada flucloxacilina (100-150 mg/kg/dia PO de 8 em 8 horas (no RN e lactente, via IV), durante 7 a 10 dias.

Havendo sinais sistémicos deve ser feito tratamento com penicilina G cristalina IV (100.000-200.000 UI/kg/dia) de 6 em 6 horas ou uma cefalosporina, associada a clindamicina IV. Após melhoria clínica (habitualmente três a cinco dias) o tratamento pode ser completado em ambulatório com flucloxacilina, amoxicilina ou clindamicina PO.

Na maioria dos casos de celulite não complicada pode verificar-se evolução para abcesso, osteomielite ou artrite séptica. Sem tratamento, a situação poderá evoluir para infecção mais profunda e grave, como a fascite necrosante.

8. Abcesso e fleimão

Numa perspectiva global, abcesso e fleimão são infeções purulentas com atingimento da derme e hipoderme (Quadro 1). Verifica-se acentuada destruição tecidual, com rápida propagação (sobretudo no fleimão) e possível repercussão no estado geral, por vezes grave. Nas crianças as localizações mais frequentes são mama, região perianal, glândulas sudoríparas e couro cabeludo.

Habitualmente o quadro inflamatório localizado é precedido por manifestações sistémicas: calafrio, mal-estar geral e febre.

O fleimão caracteriza-se por maior tendência para empastamento tecidual difuso e propagação da afecção para a profundidade. Surge como área de eritema que rapidamente se torna viva, adquire tumefação edematosa de bordo mal definido, no início dura, que pode evoluir para abcesso. Quando o fleimão tem localização ganglionar denomina-se adenofleimão. S. aureus e S. pyogenes são os agentes etiológicos implicados.

No abcesso, ao eritema e tumefação localizados com aumento da temperatura local seguem-se flutuação, ruptura e fistulização com consequente descarga purulenta; geralmente verifica-se adenite regional. Em causa está habitualmente o microrganismo S. aureus.

Estas duas entidades correspondem a situações clínicas de urgência; a sua evolução é por vezes grave, podendo ser ponto de partida para complicações viscerais; em consequência da metastização bacteriana poderá instalar-se quadro de sépsis.

As bases do tratamento do abcesso podem ser assim sintetizadas:

  • Incisão e drenagem – é o procedimento de primeira escolha e fundamental para evitar complicações; deve ser feita cultura do material drenado.
  • Antibioticoterapia – o uso adicional de antibiótico após drenagem não parece trazer vantagens na melhoria clínica; assim, só deve ser iniciada nos abcessos múltiplos ou com mais de 5 cm, nos abcessos persistentes após drenagem, ou se houver sinais de resposta inflamatória sistémica, risco de endocardite, celulite extensa associada, presença de comorbilidades ou imunossupressão, ou ainda, se se tratar de um lactente; o antimicrobiano de escolha é a flucloxacilina (100-200 mg/kg/dia) PO de 8 em 8 horas durante 7 dias; demonstrando-se etiologia estreptocócica, aplicam-se os princípios da antibioticoterapia referidos a propósito da erisipela.

No tratamento do fleimão aplicam-se os mesmos princípios, sendo que a duração da antibioticoterapia deverá durar, no mínimo, 10 dias.

Notas importantes:
→ À semelhança do que sucede na furunculose, quando há história de abcessos cutâneos recorrentes os doentes devem ser avaliados. Na maioria dos casos não há imunodeficiência subjacente e as medidas de higiene são suficientes. Contudo, nalguns casos pode estar subjacente quadro de IDP, pelo que a história clínica deve ser bem caracterizada. Deve inquirir-se sobre os antecedentes familiares, incluindo a presença de consanguinidade e sobre doenças concomitantes e o padrão da doença. Por exemplo os abcessos perianais são mais frequentes na doença de Crohn, o eczema na síndroma de hiperIgE ou Wiskott-Aldrich, a onfalite e a queda tardia do cordão umbilical na deficiência da adesão leucocitária (LAD) e a infecção por bactérias ou fungos habitualmente não patogénicas, nos defeitos dos neutrófilos.
→ Nos casos de impetigo, foliculite ou abcessos recorrentes deve considerar-se a pesquisa de colonização por S. aureus. Se se tratar de SAMR ou LPV positivo, deve ponderar-se descontaminação com mupirocina tópica de 8 em 8 horas durante 5 dias associada a medidas de higiene estritas: banho diário com digluconato de cloro-hexidina a 4%; uso individual de toalhas e mudança diária; mudança dos lençóis diariamente; manter a casa limpa, aspirar e lavar casa-de-banho (banheira e lavatório) com lixívia; não frequentar locais públicos como ginásio e piscina; cobrir as zonas infectadas; lavar as mãos, frequentemente, com sabão líquido; a recolonização é frequente, pelo que o número de descolonizações a fazer deve ser ponderado caso a caso; a pesquisa de S. aureus após o tratamento não é recomendada por rotina.

9. Fascite necrosante

A fascite necrosante ou “gangrena estreptocócica” é a infeção bacteriana aguda do tecido celular subcutâneo, hipoderme e fáscia, com tendência para difusão rápida e grande destruição tecidual com necrose maciça. É uma entidade rara na idade pediátrica, localizando-se principalmente no tronco e nos membros superiores ou inferiores. (Figura 14)

S. pyogenes é o agente causal mais frequente, de forma isolada ou combinado com S. aureus verificando-se efeito sinérgico (tipo 2). Muitas vezes a etiologia pode ser mista, polimicrobiana (tipo 1).

Esta infecção pode implantar-se em lesões cutâneas prévias (por ex. feridas, queimaduras, escoriações, ulcerações de diversa natureza, eczema ou mais frequentemente varicela). O uso de ibuprofeno, ou outros anti-inflamatórios não esteróides, no contexto de varicela tem sido associado a risco mais elevado de fascite necrosante; no entanto, os dados disponíveis não são consistentes.

A apresentação clínica pode ser subaguda, aguda ou fulminante. Na fase inicial pode começar como uma celulite, com sinais locais mínimos mas com dor intensa desproporcional, podendo atrasar o diagnóstico. Posteriormente surge sintomatologia sistémica, como febre, prostração, mau estado geral, por vezes choque e falência multiorgânica.

Cerca de dois a quatro dias depois, coincidindo com agravamento do estado geral, verifica-se evolução da lesão tecidual: área edematosa com rubor vivo, de bordo mal definido que fica com aspecto violáceo, extensão centrífuga rápida e aparecimento de bolhas hemorrágicas e necrose.

O diagnóstico é clínico, com tradução imagiológica. A TAC pode mostrar a referida necrose, como pode não mostrar alterações. A ressonância magnética é o exame de escolha para visualização dos tecidos moles; contudo, a impossibilidade de a realizar, não deve atrasar o início da terapêutica. No que respeita a exames complementares, cabe referir que o número de leucócitos é geralmente normal e o valor da PCR está elevado. Pode haver trombocitopenia, coagulopatia e hipoalbuminemia com hipocalcemia. Deve ser colhida hemocultura antes de se iniciar a antibioticoterapia. Mais frequentemente, o agente S. pyogenes é isolado do sangue e do líquido das bolhas. Em casos raros a etiologia é polimicrobiana, particularmente na gangrena de Fournier, ou fascite necrosante do períneo. Nestes casos, para além de S. aureus e S. pyogenes, os anaeróbios, incluindo Peptotreptococcus, Prevotella e Bacterioides fragilis estão geralmente implicados.

O diagnóstico diferencial realiza-se com outras gangrenas (designadamente, gangrena gasosa, abordada adiante). O exame histológico evidencia sinais de necrose subcutânea que se estende ao longo das fáscias com trombose e necrose fibrinóide das paredes vasculares.

A fascite necrosante é uma emergência que obriga a terapia em cuidados intensivos, com apoio da cirurgia. Muitas vezes é necessário adoptar várias medidas já descritas no tratamento de quadros de choque e sépsis, tais como expansão de volume, medidas de suporte inotrópico, sedação e analgesia.

A antibioticoterapia deve ser iniciada de forma empírica. Admitindo a etiologia por S. pyogenes deve ser iniciada, penicilina G aquosa (300.000 a 400.000 UI/kg/dia IV, de 4 em 4 ou de 6 em 6 horas) associada a clindamicina (40 mg/kg/dia IV, de 6 em 6 ou de 8 em 8 horas); deverá ponderar-se adicionar a flucloxacilina se houver suspeita de infecção por S. aureus.

Nos casos em que se suspeita de infecção polimicrobiana deve ser iniciada antibioticoterapia de largo espectro com cefotaxima, clindamicina e gentamicina. Nos doentes neutropénicos é importante a administração de antimicrobianos com actividade contra P. aeruginosa.

Verificando-se alergia à penicilina, importa adoptar o seguinte esquema: cefalosporina de 3ª geração IV – cefotaxima (150 mg/kg/dia) ou ceftriaxona (75 mg/kg/dia), em 2 doses + clindamicina IV (20 a 40 mg/kg/dia) em 3-4 doses, durante 15 a 21 dias.

A excisão cirúrgica da área afectada deve ser precoce e seriada a cada 24 a 48 horas, até haver controlo da infecção.

FIGURA 14. Fascite necrosante no contexto de varicela. TAC evidenciando sinais de necrose da hipoderme ao longo das fáscias.

Posteriormente, e quando possível, a antibioticoterapia deve ser ajustada de acordo com o TSA e manter-se até: – não ser necessário proceder a mais excisões; ou – haver melhoria clínica significativa e; – se verificar apirexia de 3 a 5 dias (mínimo: 15 dias de antibioticoterapia). O uso de imunoglobulina não é consensual e deve ser ponderado caso a caso.

Esta entidade clínica comporta morbilidade e mortalidade elevadas.

10. Gangrena gasosa ou mionecrose

A gangrena gasosa é uma infecção bacteriana aguda da hipoderme e tecido subcutâneo com evolução para necrose do tecido muscular. Em cerca de 90-95% dos casos está implicado o agente Clostridium perfringens. (Figura 15)

Na maioria dos casos, a etiopatogénese desta infecção relaciona-se com lesões traumáticas que atingem o músculo e são a forma de entrada do agente microbiano. Por outro lado, a infecção pode ter origem endógena através de agentes anaeróbios, com ponto de partida no tracto gastrintestinal e invasão da corrente sanguínea (bacteriémia).

FIGURA 15. Gangrena gasosa ou mionecrose.

Clinicamente surge quadro de mau estado geral e sépsis. O doente pode evidenciar dor intensa na área do músculo afectado, a qual se apresenta edemaciada e pálida, tornando-se posteriormente violácea. Pode ser notado odor característico, aparecendo, entretanto, bolhas de conteúdo purpúrico; à palpação da pele nota-se crepitação. Trata-se duma situação clínica muito grave, com evolução rápida para choque séptico.

Para além das medidas de terapia intensiva de suporte (ressuscitação, ventilação, estabilização hemodinâmica), a antibioticoterapia de escolha, no pressuposto de que Clostridium perfringens é o agente etiológico: penicilina G aquosa (250.000 UI/kg/dia IV, de 6 em 6 horas) associada a clindamicina (40 mg/kg/dia IV, de 8 em 8 horas) durante 15 a 21 dias.

11. Piomiosite

A piomiosite é uma infeção bacteriana primária, aguda e supurada do músculo esquelético. Relativamente comum em regiões tropicais (4% das admissões hospitalares nestes países), salienta-se que a incidência tem aumentado em climas temperados nas últimas décadas. A emergência de estirpes de S. aureus produtoras da toxina LPV e o aumento global da temperatura, têm sido factores apontados.

Surge habitualmente em crianças até então saudáveis, embora possa estar associada a imunodeficiência (por ex. VIH, diabetes) ou a infecções concomitantes em 25% dos casos.

Os músculos dos membros inferiores e cintura pélvica são os mais frequentemente atingidos.

S. aureus é o agente mais comum (95%). Em situações associadas a varicela, S. pyogenes pode ser agente causal. Agentes mais raros são: S. pneumoniae, E. coli, Salmonella typhi, Bacteroides fragilis, N. gonorroeae e Mycobacterium tuberculosis.

Na maioria dos casos surge como consequência de bacteriemia, com consequente metastização nos grandes músculos estriados; raramente, por difusão a partir de foco infeccioso contíguo ao músculo.

Sobre a patogénese, não totalmente esclarecida, admite-se que o esforço muscular, lesão muscular e status pós-hipóxia-isquémia muscular constituam factores predisponentes.

As manifestações clínicas incluem fundamentalmente febre, dores e rigidez musculares, cãibras, rubor e edema ao nível da pele suprajacente. Verifica-se leucocitose e aumento da velocidade de sedimentação que podem durar mais de duas semanas. Os aspirados musculares somente evidenciando material purulento, permitem o isolamento do agente infeccioso após formação de abcessos.

Curiosamente não se verifica adenopatia satélite.

O diagnóstico diferencial faz-se com osteoartrite, hematoma, neoplasia, polimiosite e celulite; nesta última, ao contrário da piomiosite, bacteriémia, a velocidade de sedimentação elevada e a leucocitose são raras, e as adenopatias frequentes.

A piomiosite não tratada evolui para choque séptico.

Com a progressão da infecção, os sinais de toxicidade sistémica tornam-se evidentes. Verifica-se leucocitose e aumento dos valores da PCR e da velocidade de sedimentação, podendo durar mais de duas semanas. As enzimas musculares (CK e AST) estão habitualmente com valores normais.

A hemocultura é positiva em 10 a 35% dos casos e o exame cultural após aspiração do conteúdo dos abcessos pode contribuir decisivamente para o diagnóstico. Nos primeiros estádios da doença a RM é o exame mais sensível, sendo muito útil na determinação da localização e extensão.

Para além das medidas gerais de suporte, em função da gravidade, deve ser iniciada antibioticoterapia com flucloxacilina IV 150 a 200 mg/kg/dia de 6 em 6 horas, associada a clindamicina 40 mg/kg/dia de 8 em 8 horas, até melhoria clínica, seguida de flucloxacilina oral. A duração total da terapêutica é variável, consoante a evolução clínica e analítica, sendo habitualmente de 15 dias.

12. Outras formas clínicas

O panarício ou perioniquia é uma inflamação dos tecidos periungueais, com etiologia polimicrobiana. A hidrosadenite é uma infecção rara, crónica e recidivante das glândulas sudoríparas apócrinas (derme e hipoderme) que pode surgir na adolescência. O terçol (terçolho ou hordéolo) e o calázio foram descritos na Parte sobre Oftalmologia. As infecções da pele e dos tecidos moles com ponto de partida nos dentes e tecidos envolventes (infecções odontogénicas) constam da Parte sobre Estomatologia. Às infecções relacionadas com mordeduras foi feita referência na Parte sobre Urgências e emergências.

AGRADECIMENTOS

Ao Professor F. Guerra Rodrigo co-autor do livro Dermatologia, citado na Bibliografia, o agradecimento do coordenador- editor pela cedência da Figura 1.

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MENINGOENCEFALITES VÍRICAS

Definição e importância do problema

A meningoencefalite (ME) é um processo inflamatório das meninges e, em grau variável, do encéfalo. Trata-se dum quadro clínico causado por agentes vários, na maioria das vezes autolimitado, podendo, no entanto, ser fatal ou provocar sequelas neurológicas importantes.

Sendo numerosas as situações clínicas, infecciosas ou não, que se podem apresentar de início com um quadro que se pode sobrepor ao da ME (febre, alteração do estado de consciência, cefaleias e sinais neurológicos focais), torna-se, por isso, premente que no âmbito do raciocínio clínico exista elevado índice de suspeita.

Aspectos epidemiológicos

O padrão epidemiológico da ME, na maior parte das vezes de origem vírica, está por sua vez relacionado com a prevalência da infecção por enterovírus, o agente etiológico mais comum.

A infecção por enterovírus dissemina-se rapidamente de pessoa a pessoa, com um período de incubação variando entre 4 e 6 dias. Nos climas temperados ocorre com mais frequência no Verão e Outono.

Etiopatogénese

Os enterovírus (com mais de 70 serótipos) são os agentes responsáveis por ME em > 90% dos casos. Podendo surgir epidemias nos períodos atrás referidos, a via fecal-oral constitui a forma mais frequente de transmissão. Salienta-se o papel importante do enterovírus humano 68, associado a paralisia flácida, assim como dos parechovirus, com manifestações semelhantes às dos enterovírus.

A ME também pode ser provocada por diversos membros da família Herpes. O HVS do tipo 1 actua mais tipicamente nas crianças mais velhas e pode ocorrer durante a primo-infecção ou por reactivação do vírus, latente no gânglio do trigémio. Causa doença focal que atinge preferencialmente o lobo temporal; quando não tratada, comporta mortalidade elevada (> 70%) sem tratamento. A infecção pelo VHS do tipo 2 predomina no período neonatal, sendo adquirida intraparto. Neste caso, o SNC é atingido de forma difusa e apresenta um melhor prognóstico. Uma forma mais ligeira e transitória (na maioria por VHS do tipo 2) pode acompanhar a infecção por herpes genital em adolescentes sexualmente activos.

O vírus da varicela-zóster (VVZ) pode causar infecção do SNC em estreita relação temporal com o período eruptivo da varicela (os sinais neurológicos ocorrem geralmente 2 a 6 dias após o início das manifestações cutâneas, mas podem surgir durante o período de incubação ou após cicatrização das vesículas). A manifestação mais comum de compromisso do SNC é a ataxia cerebelosa, e a encefalite aguda a forma mais grave.

Após infecção primária, VVZ permanece latente nas raízes e gânglios dos nervos cranianos e espinhais, podendo mais tarde originar quadro de herpes-zóster acompanhado de meningoencefalite ligeira. A reactivação na forma de herpes-zóster pode ser acompanhada de meningoencefalite ligeira.

Os arbovírus (abreviatura do inglês: arthropod-borne-virus) constituem um grupo de vírus com ARN transmitidos pela picada de artrópodes, incluindo grande número de tipos patogénicos para o homem. Os astrovírus, englobados nos arbovírus e provocando classicamente gastrenterite, são a causa mais comum de encefalite epidémica nalgumas áreas geográficas dos Estados Unidos da América, China, Sudoeste Asiático e Índia. Destacam-se a encefalite japonesa, a encefalite de Saint Louis e a encefalite pelo vírus do Nilo (WNV ou West Nile vírus), entre outros. Não há casos descritos em Portugal. Os mosquitos e as carraças são os principais vectores, transmitindo a doença ao Homem e outros animais vertebrados após picada de pássaros e de outros pequenos animais infectados. O WNV pode também ser transmitido por transfusão de sangue ou derivados, em transplantes de órgãos, e por via transplacentar.

Outras doenças provocadas por vírus como o sarampo, a raiva, a papeira, a rubéola, a infecção congénita por CMV ou mesmo infecções por vírus respiratórios, como o adenovírus e o VRS, podem provocar meningoencefalite.

Os vírus podem atingir o SNC por via hematogénica ou intraneural. A disseminação hematogénica é característica dos arbovírus e enterovírus. Estes, após inoculação através do vector ou transmissão fecal-oral respectivamente, replicam-se localmente e, após virémia transitória, alojam-se no sistema reticuloendotelial e tecido muscular. A replicação nestes tecidos promove uma segunda virémia com invasão de outros órgãos, incluindo o SNC. O VHS, o vírus da raiva e, possivelmente, os poliovírus atingem o SNC por via axonal retrógada.

A lesão do SNC explica-se por invasão directa, com replicação do vírus, ou por reacção do hospedeiro aos antigénios dos vírus. A resposta imunológica do hospedeiro é responsável por desmielinização e por destruição vascular e perivascular. O estudo histológico revela sinais de congestão meníngea com infiltração linfocitária e mononuclear envolvendo “em manga” os vasos. Outros achados incluem ruptura neuronal, neuronofagia e proliferação ou necrose endoteliais.

O achado histopatológico de certo grau de desmielinização, com preservação de neurónios e seus axónios, é considerado representativo do quadro de encefalite pós-infecciosa ou alérgica. O córtex cerebral, especialmente o lobo temporal, é frequentemente afectado pelo VHS; os arbovírus tendem a afectar de modo generalizado o encéfalo, e o vírus da raiva as estruturas da base. O compromisso da espinhal medula, raízes nervosas e nervos periféricos é variável.

Manifestações clínicas

Como regra, pode estabelecer-se que o início da doença é geralmente agudo, sendo os sinais e sintomas relacionados com infecção do SNC, designadamente meningite associada a encefalite.

Classicamente é considerada a tríade febre, cefaleias e alteração do estado da consciência, valorizando-se igualmente a existência de eventual exantema (por ex. nas infecções por enterovírus, sarampo, rubéola, etc.) ou sinais inespecíficos durando alguns dias. Nas crianças mais velhas os sinais de apresentação incluem cefaleias e hiperestesia; nos lactentes, sobretudo irritabilidade ou letargia. O exantema prévio pode prolongar-se, a par das manifestações neurológicas.

Outros achados incluem sonolência, desorientação, náuseas, vómitos, fotofobia, cervicalgias, dorsalgias, perturbações comportamentais ou da fala. Poderão surgir rigidez da nuca, e sinais neurológicos como hemiparésia, convulsões, ou movimentos anómalos bizarros. Os sinais neurológicos podem ser mantidos, progressivos ou flutuantes.

Tendo como base os sinais e sintomas referidos apontando para compromisso das meninges e encéfalo (áreas anatómicas não estanques e em continuidade com o tronco cerebral e a espinhal medula) em termos de raciocínio clínico, com utilidade para o diagnóstico diferencial, importa salientar sucintamente os sinais e sintomas de infecção do tronco cerebral (febre, cefaleias, letargia, estado confusional, convulsões), e de mielite (retenção urinária, dor dorsolombar, parestesias/disestesias, fraqueza muscular, alterações do trânsito intestinal e vesical, e sinais de disfunção autonómica.

Diagnóstico

O diagnóstico provisório de meningoencefalite por vírus é, em geral, sugerido pela verificação de sinais prodrómicos inespecíficos seguidos por sintomatologia progressiva do SNC. A este propósito, é importante reforçar a noção de que é a anamnese e o exame físico/neurológico rigorosos que deverão fundamentar a realização de exames complementares.

Alguns achados sugerem uma etiologia específica: dor e parestesias das extremidades devem levantar a suspeita de ME pelo vírus da raiva ou por enterovírus não-pólio.

Achados focais, como a paralisia ou a afasia, apontam para probabilidade de ME por VHS, sem, no entanto, se poder excluir ME por VEB, ou CMV. Formas específicas de ME ou complicações incluem a síndroma de Guillain-Barré, a mielite transversa aguda, a hemiplegia aguda, e a ataxia cerebelar aguda.

Face à hipótese diagnóstica, torna-se prioritário proceder a PL para exame do LCR, excluídas as contra-indicações clássicas. Em contexto de ME por vírus verifica-se, em geral:

  • pleiocitose linfocítica (10 a 1000 células/mm3 até, por vezes, 8000 células/mm3); pleiocitose acentuada poderá ser epifenómeno de destruição extensa, tal como acontece nos casos de infecção por VHS;
  • proteínas em valor normal ou elevado (geralmente, 50-200 mg/dL); e
  • glicose geralmente normal (> 40 mg/dL), ou hipoglicorráquia discreta.

Estes parâmetros podem, no entanto, variar, sendo que o resultado do exame do LCR pode ser normal nos estádios iniciais da doença, ou evidenciar elevação dos polimorfonucleares antecedendo a pleiocitose linfocítica.

Quanto à pressão intracraniana, nas situações de infecção bacterina meníngea aguda em geral é elevada, sendo normal ou ligeiramente elevada nas de causa vírica.

O LCR deverá ser submetido a exames culturais para vírus, bactérias, fungos, e micobactérias; em determinado contexto clínico poderá haver necessidade de proceder a exames especiais para detecção de protozoários, Mycoplasma e outros patogénios. Sendo fortemente sugestiva a implicação de vírus no quadro de ME, deverá fazer-se a sua pesquisa igualmente noutros locais, como secreções da orofaringe, fezes, urina, etc..

A detecção do DNA ou RNA víricos por método molecular PCR/reacção em cadeia da polimerase no LCR, respectivamente para VHS, parechovírus, e enterovírus tornou-se o método diagnóstico de escolha (especificidade ~ 100%), sendo positivo nas primeiras 24 horas de doença e durante a primeira semana de terapêutica. O estudo serológico no LCR constitui o método de escolha para WNV.

Outros exames a efectuar para avaliação dos doentes com suspeita de ME são o EEG e os exames de neuroimagem.

No caso do EEG, na situação presente, ou se verifica normalidade, ou inespecificidade dos traçados, com actividade lenta difusa. A presença de complexos de ondas lentas ou de sinais de descargas epileptiformes laterais periódicas (PLED) nas regiões temporal e fronto-temporal é muito sugestiva de ME por VHS.

Quanto aos estudos de neuroimagem (TAC ou RM) podem ser detectados sinais de edema cerebral ou sinais focais.

A verificação de convulsões focais, e de sinais focais no EEG e nos estudos de neuroimagem – especialmente nos lobos temporais – apontam para ME por VHS.

No início da doença deve proceder-se a colheita de sangue para estudo serológico. Nos casos de as culturas de vírus serem negativas na fase precoce da doença, o estudo serológico repetido 2-3 semanas depois da primeira colheita poderá ter grande utilidade para verificar eventual subida de títulos. O estudo serológico para enterovírus não tem, contudo, utilidade por haver muitos serótipos.

Diagnóstico diferencial

Grande número de situações poderá ter manifestações clínicas semelhantes às da ME. As mesmas podem ser sistematizadas do seguinte modo:

  • meningite bacteriana;
  • outras infecções bacterianas (abcesso cerebral, empiema subdural ou epidural);
  • infecções por M. tuberculosis, T. pallidum, B. Burgdorferi /doença de Lyme, Bartonella henselae/ doença do arranhão do gato;
  • infecções por fungos, riquétsias, Mycoplasma, protozoários, e outros parasitas;
  • infecções humanas por vírus lentos (panencefalite esclerosante subaguda, encefalopatia espongiforme/doença de Creutzfeldt-Jakob, VIH, leucoencefalopatia multifocal progressiva, etc.);
  • várias situações não infecciosas (encefalopatia urémica, hepática, doenças hereditárias do metabolismo);
  • doenças tóxicas (intoxicações medicamentosas acidentais, acção tóxica percutânea de chumbo, hexaclorofeno, mercúrio, síndroma de Reye);
  • miscelânea (tumores intracranianos, hemorragias subaracnoideias, embolias por endocardite bacteriana, doenças desmielinizantes agudas, status epilepticus; doenças para – infecciosas (pós-infecciosas e alérgicas) associadas a vírus, riquétsias, Mycoplasma, vacinas, etc.).

Em suma, tendo em conta esta vasta lista de quadros clínicos, importa salientar:

  • várias situações não infecciosas poder estar associadas a inflamação do SNC e evidenciar sinais e sintomas que se sobrepõem aos da ME. São exemplos: doenças do foro oncológico, doenças autoimunes e hemorragia intracraniana;
  • encefalite autoimune devida a anticorpos anti-receptor do N-metil-D-aspartato é uma importante causa de encefalite de causa não infecciosa na idade pediátrica; este diagnóstico pode ser confirmado pela detecção dos referidos anticorpos no LCR;
  • a encefalomielite aguda disseminada também pode ser confundida na fase inicial com encefalite.

Tratamento

Exceptuando os casos de ME por VHS para os quais existe tratamento específico anti-vírico, dum modo geral as medidas a aplicar são sintomáticas e de suporte: analgésicos (desde paracetamol a codeína e morfina), ambiente calmo com diminuição do ruído e da luminosidade, anti-eméticos, fluidoterapia IV para compensar as dificuldades de alimentação oral, tratamento das convulsões, oxigenoterapia, etc..

Nas formas mais graves está indicado o internamento em UCIP para tratamento do coma, edema cerebral, estado de mal epiléptico, choque, monitorização da pressão intracraniana, correcção de desequilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, alterações metabólicas, síndroma de secreção inapropriada da hormona anti-diurética/SIADH, etc..

No que respeita ao tratamento das infecções por VHS, administra-se aciclovir IV na dose de 10 mg/kg de 8-8 horas (20 mg/kg nos recém-nascidos) durante 14-21 dias. Verificando-se resistência ao aciclovir, o foscarnet constitui uma alternativa.

Nos casos de ME por VVZ utiliza-se aciclovir IV; a associação de ganciclovir com foscarnet é utilizada quando o agente etiológico é o CMV.

Prognóstico

O prognóstico depende essencialmente da idade, do nível de consciência na data de internamento e do agente etiológico. A idade inferior a um ano, a diminuição do estado de consciência, a ocorrência de convulsões e o isolamento do HVS como agente etiológico são factores de mau prognóstico. As crianças com um ou mais destes factores de risco comportam maior taxa de mortalidade e de sequelas graves. Nos casos em que nenhum destes factores está presente, a recuperação é geralmente total.

Todas as crianças com o diagnóstico de meningoencefalite devem ser acompanhadas por uma equipa multidisciplinar na perspectiva de intervenção precoce para minorar possíveis défices. Tal acompanhamento deverá manter-se pelo menos durante dois anos e, idealmente, até ao ingresso na escola, período em que determinados problemas auditivos ou cognitivos se poderão tornar mais evidentes.

Prevenção

Os aspectos principais da prevenção podem ser assim sintetizados:

  • aplicação de vacinas anti-víricas desde a idade pediátrica; de salientar algumas dificuldades ainda verificadas na confecção de vacinas anti-arbovírus;
  • aplicação de vacinas em animais domésticos (o exemplo da vacina antirrábica é paradigmático);
  • actuação contra os insectos vectores através de produtos aplicados sob a forma de spray;
  • utilização de repelentes de insectos;
  • uso de roupa que proteja eficazmente a pele das picadas dos insectos.

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MENINGITE BACTERIANA PÓS-NEONATAL

Definição e importância do problema

Por meningite entende-se a inflamação das membranas (meninges) que cobrem o encéfalo e a medula espinhal. A inflamação meníngea é habitualmente o resultado de infecção vírica ou bacteriana, e mais raramente fúngica; outras etiologias pouco frequentes são as neoplasias, drogas ou doenças autoimunes. Neste capítulo não será abordada a meningite crónica, nem a encefalite (inflamação do encéfalo), em que o processo inflamatório ultrapassa as meninges e atinge o tecido encefálico.

Apesar dos progressos realizados no que respeita a medidas gerais de suporte e a terapêutica antimicrobiana, as infecções do sistema nervoso central são ainda na actualidade uma importante causa de morbilidade e mortalidade na criança, sobretudo nos primeiros 3 anos de vida, período de maior incidência da doença.

Aspectos epidemiológicos

A meningite bacteriana aguda tem uma incidência global anual de 2-5 casos por 100.000 habitantes nos países ocidentais. Vários microrganismos podem ser responsáveis pela doença, sendo que o agente mais provável pode ser inferido de acordo com a idade (Quadro 1), assim como da presença de factores de risco, co-morbilidades e estado imunológico.

Nos últimos anos, verificou-se uma mudança frequente na epidemiologia das meningites bacterianas, à custa de medidas preventivas como o rastreio e tratamento de mães portadoras de Streptococcus agalactiae ou do grupo B (SGB) e a introdução de vacinas contra Haemophilus influenzae b, Streptococcus pneumoniae (vacina conjugada pneumocócica 13-valente, VCP13) e Neisseria meningitidis do serogrupo C (e recentemente do serogrupo B).

Actualmente, Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae são responsáveis por 80% dos casos em crianças imunocompetentes com mais de 4 semanas de vida. Os bacilos gram negativos (Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter) são responsáveis por menos de 10% dos casos.

A meningite neonatal está habitualmente relacionada com os agentes que colonizam o tracto intestinal ou genital da mãe e com a imaturidade e inexperiência imunológicas do recém-nascido (ver Parte sobre Perinatologia/Neonatologia). No entanto, as bactérias adquiridas por contacto ambiental, típicas do lactente e criança, podem também originar meningite no recém-nascido. Neste grupo etário E. coli e SGB são os agentes mais frequentes, podendo também ocorrer infecção por Listeria monocytogenes em 5-10% dos casos, segundo alguns autores.

Entre os 30 e 90 dias, os principais agentes são Streptococcus do grupo B (SGB), Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae, seguidos de microrganismos entéricos gram-negativos. Segundo os dados mais recentes publicados (Neto MT et al., 2008), entre 2001-2005 registaram-se 46 casos (19%) de meningite por SGB a nível nacional, verificando-se uma incidência de 0,54 casos de doença invasiva por SGB por cada 1000 nascimentos, sendo esta mais frequente nos primeiros 7 dias de vida (81%).

Após os 3 meses, N. meningitidis é o agente mais frequente em Portugal, sobretudo após a comercialização da vacina conjugada polissacarídea 13 valente (VCP13) contra S. pneumoniae. A nível europeu os serogrupos mais prevalentes responsáveis por doença invasiva meningocócica são o B, C e Y. Em Portugal, desde 2007, o serogrupo B é responsável pela maioria dos casos de doença invasiva meningocócica (49-92%), a qual apresenta uma incidência anual de 6,3 casos por 100.000 habitantes em crianças com idade compreendida entre 1-4 anos (20,2 casos/100.000 habitantes em menores de 1 ano de idade), entre 2003-2012, segundo Simões MJ (2014). Desde 2014 está disponível para compra a vacina de 4 componentes contra a N. meningitidis do serogrupo B.

Relativamente à doença invasiva pneumocócica, no período entre 2010-2012 registou-se uma incidência global 12,33/100.000 crianças até aos 5 anos, a qual tem vindo a diminuir, sendo mais frequente abaixo dos 2 anos (20,9/100.000). A meningite bacteriana de etiologia pneumocócica, verificou-se em 18% dos casos, sendo que em metade dos casos não havia antecedentes de VCP13.

Após a introdução da vacina contra Haemophilus influenzae b, a meningite por este agente é excepcional nos países que a introduziram nos seus programas de vacinação, tal como aconteceu em Portugal. Existem, no entanto, alguns casos esporádicos (em crianças que não tenham cumprido a primovacinação, ou com falência vacinal) em contactos com indivíduos colonizados.

Uma forma hoje rara, mas grave, de meningite bacteriana é causada por Mycobacterium tuberculosis, microrganismo que pode afectar todas as idades; a patogénese é insidiosa, condicionando em geral apresentação clínica atípica (ver capítulo respectivo).

 QUADRO 1 – Distribuição de agentes de meningite pós-neonatal por faixa etária.

Grupo etário Causas
Recém-nascidos S. agalactiae, E. coli, L. monocytogenes
1-3 meses Agentes neonatais, S. pneumoniae, N. meningitidis, H. influenzae b
3 meses – 5 anos S. pneumoniae, N. meningitidis, H. influenzae b
6 anos – adolescentes N. meningitidis, S. pneumoniae

Etiopatogénese

Os agentes responsáveis pela meningite bacteriana podem atingir as leptomeninges por:

  • via hematogénica, a mais frequente, em que as bactérias atingem as meninges através da corrente sanguínea; a mais frequente corresponde à bacteriémia com origem nasofaríngea, adquirida por contacto com portador assintomático;
  • extensão contígua de local de infecção extracerebral (por exemplo, otite média, mastoidite ou sinusite);
  • implantação bacteriana directa como complicação de intervenção neurocirúrgica na cabeça e pescoço, lesão penetrante na cabeça, fractura de crânio com fístula de LCR ou erosão osteomielítica. Nestas circunstâncias há risco acrescido de meningite recorrente, sendo que o primeiro episódio poderá não ter uma relação temporal com o traumatismo;
  • anomalias congénitas, nomeadamente defeitos de encerramento da linha média, como quistos dermóides intracranianos (associados a seio dérmico com fístula para a pele e meningite por agentes menos habituais como Staphylococcus epidermidis).

As bactérias mais frequentemente associadas a meningite (N. meningitidis, S. pneumoniae, H. influenzae) contêm uma cápsula de polissacáridos, o que permite a colonização da nasofaringe das crianças saudáveis. Uma infecção vírica intercorrente pode facilitar a penetração da bactéria através do epitélio nasofaríngeo. Atingida a corrente sanguínea, o polissacárido capsular confere resistência à opsonização pela via clássica do complemento, com consequente inibição da fagocitose, criando-se condições para bacteriémia e acesso às meninges.

A parede celular das bactérias Gram-positivas e Gram-negativas contém componentes que desencadeiam resposta inflamatória. Nas bactérias Gram-positivas o ácido lipotecóico e o peptidoglicano, e nas Gram-negativas o lipopolissacárido ou as endotoxinas, são considerados os componentes patogénicos principais. Os mediadores da resposta inflamatória incluem citocinas (TNF, IL-1, 6, 8, 10), PAF (factor activador das plaquetas), óxido nítrico, prostaglandinas e leucotrienos. Numa segunda fase, a resposta pró-inflamatória provoca lesão do espaço subaracnoideu e, posteriormente, verifica-se aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica, edema cerebral e presença de leucócitos e mediadores tóxicos no líquido céfalo-raquidiano (LCR). Uma vez lesada a barreira hematoencefálica, os microrganismos invadem o LCR.

Através do LCR há extensão do exsudado para as cisternas basais com consequente:

  1. lesão dos nervos cranianos (nomeadamente VII par, podendo condicionar surdez neuro-sensorial);
  2. obstrução da drenagem do LCR (causando hidrocefalia obstrutiva);
  3. vasculite (sendo as células endoteliais dos capilares o local principal da lesão na meningite bacteriana) e tromboflebite secundárias, responsáveis por áreas de isquémia localizadas.

À medida que aumenta a pressão intracraniana pelo edema cerebral, o fluxo sanguíneo cerebral diminui, provocando alteração do estado de consciência. Sem intervenção terapêutica, o ciclo de diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, intensificação do edema e aumento da pressão intracraniana mantém-se, condicionando maior lesão endotelial com vasospasmo e trombose, maior compromisso do fluxo sanguíneo cerebral e estenose dos grandes e pequenos vasos; ulteriormente surge, como consequência, hipotensão sistémica (choque séptico) e lesão difusa do sistema nervoso central.

Os componentes ou produtos patogénicos bacterianos são libertados no LCR, não só no decurso da multiplicação bacteriana, mas especialmente quando há lesão destrutiva da parede celular, sendo que a terapêutica antimicrobiana leva a libertação significativa de mediadores de resposta inflamatória.

 Factores de risco

  • Idades inferior a 5 anos, e principalmente inferior a 2 anos.
  • Na criança de idade inferior a 5 anos são factores de risco acrescido: diabetes mellitus, insuficiência renal ou suprarrenal, hipoparatiroidismo, fibrose quística, desnutrição.
  • Defeitos imunitários congénitos.
  • imunossupressão (maior risco de infecção por agentes oportunistas, podendo não evidenciar os sinais clássicos de febre e irritação meníngea).
  • Status pós-esplenectomia, asplenia congénita, drepanocitose e talassémia major (maior risco de infecção por microrganismos capsulados).
  • Infeção contígua (por ex. sinusite), fístula de LCR ou outras alterações traumáticas, cirúrgicas ou congénitas, atrás referidas.
  • Dependência de drogas endovenosas.
  • Endocardite bacteriana.
  • Derivação ventriculoperitoneal (infecção por Staphylococcus, Streptococcus e enterobacteriáceas são mais frequentes).
  • Co-habitação de grande número de indivíduos (risco aumentado de surtos de meningite meningocócica).
  • Exposição recente a outros casos de meningite, com ou sem profilaxia.

Manifestações clínicas

Na criança, os sinais e sintomas são, regra geral, dependentes da idade. Muitas vezes é referida infecção das vias respiratórias superiores nos dias precedentes, coexistindo eventualmente com o quadro descrito (por ex. sinusite e/ou otite média).

Os sintomas clássicos em lactentes são: recusa alimentar, vómito, irritabilidade, gemido, choro gritado, prostração, febre ou hipotermia, fontanela hipertensa, por vezes convulsões, dificuldade respiratória, episódios de apneia ou cianose. Os sinais de irritação meníngea poderão não estar presentes no primeiro ano de vida.

Em crianças de idade superior a 1 ano são habituais náusea e vómitos, cefaleia, fotofobia, febre ou hipotermia, prostração. Em 75% dos casos estão presentes os sinais clássicos de irritação meníngea: rigidez da nuca, sinal de Kernig (impossibilidade de extensão completa dos membros inferiores após flexão a 90º da coxa sobre a anca) e sinal de Brudzinski (flexão automática dos joelhos com a flexão do pescoço.

Outros sinais de compromisso neurológico que poderão ser verificados são: alteração do estado de consciência, convulsões, sinais neurológicos focais e alterações dos pares cranianos III, IV, VI, VII. O edema da papila surge em cerca de um terço dos doentes com meningite, demorando cerca de 24 a 48 horas a estabelecer-se. As convulsões, generalizadas ou focais, podem surgir em cerca de 30% dos doentes, sendo duas vezes mais comuns na meningite por S. pneumoniae e Hib do que na meningite meningocócica.

O choque por endotoxinas com colapso vascular é característico da infecção grave por N. meningitidis. Apesar de o exantema generalizado, máculo-papular, petequial ou purpúrico ser habitualmente associado à meningite/sépsis meningocócica, pode surgir igualmente nas infecções por H. influenzae e por S. pnemoniae. Um exantema petequial precoce (concomitante com a febre) deve ser sempre considerado indicador muito provável de infecção bacteriana, e um exantema macular com aparecimento precoce em relação à febre deve sempre evocar uma infecção meningocócica.

A hipertensão intracraniana pode evoluir para herniação cerebral, com alteração dos movimentos oculares, bradicardia, hipertensão, descorticação/descerebração e apneia.

A artrite, quando surge, é sugestiva de infecção por Neisseria meningitidis. Se ocorrer nos primeiros dias de doença é muitas vezes piogénica; se mais tarde, corresponderá a forma reactiva, curando, regra geral, sem sequelas.

Diagnóstico

Exame do LCR

A análise do LCR através de punção lombar (PL) é fundamental para o diagnóstico, devendo ser realizada sempre excepto em caso de contraindicação.

Tipicamente há marcada pleiocitose (>1000 células/mm3; até aos 3 meses de idade considera-se normal a presença de até 6 células/mm3) com predomínio polimorfonuclear, elevação das proteínas (100-200 mg/dL) e diminuição da concentração da glucose (ratio LCR/soro < 0,4). (Quadros 2 e 3)

QUADRO 2 – Valores de referência no LCR.

LCRPré-termoRN1-12 meses> 12 meses
Leucócitos (/mm3)0-320-290-10< 10
Proteínas (mg/dL)65-15020-170< 60< 40
Glucose (mg/dL)55-10545-150> 50% glicémia

QUADRO 3 – Etiologia sugestiva de acordo com exame citoquímico e citológico LCR.

  Mais comumMenos comum
Glicorráquia (mg/dL)< 10Bacteriana e micobacterianaFúngica
10 – 45 Sífilis, vírus
Proteinorráquia (mg/dL)50 – 250Vírica, Borrelia 
> 1000BacterianaParotidite
Contagem celular (/mm3)100-1000Bacteriana, vírica, micobacteriana 
5 – 100Bacteriana (fase inicial), vírica, micobacteriana, sífilis 

 

A identificação do agente habitualmente é obtida por coloração de Gram e por exame cultural (considerado “padrão de ouro”, embora com sensibilidade 50-90%); estes parâmetros devem ser sempre realizados.

Para identificação específica de agente pode ser realizado teste rápido de aglutinação de antigénios (sensibilidade 60-90%; especificidade 90-100%; valor preditivo negativo 80-95%) e/ou identificação molecular por técnica de reação em cadeia da polimerase/PCR (sensibilidade 87-100%; especificidade 98-100%). De referir que os testes rápidos de aglutinação têm caído em desuso pela maior sensibilidade e especificidade da PCR e também pela diminuição de casos de meningite por Hib, situação em que eram mais úteis. A PCR é particularmente útil nas situações em que a criança já estava sob antibioticoterapia no momento da PL e nos casos de PL traumática. Uma desvantagem desta técnica em relação à cultura é não fornecer sensibilidade do microrganismo aos antibióticos.

Em caso de evolução clínica favorável a PL não é repetida, excepto nas seguintes situações: diagnóstico incerto; evolução desfavorável na ausência de outras causas; meningite por bacilo gram-negativo; doentes tratados com vancomicina e dexametasona; meningite em doente com derivação ventriculo-peritoneal e submetido a antibioticoterapia intratecal.

São consideradas contraindicações para realização de PL:

  • Hipertensão intracraniana (depressão do estado de consciência ou deterioração rápida; sinais neurológicos focais; edema da papila; após convulsão prolongada – duração superior a 30 minutos; hipertensão com bradicardia – tríade de Cushing);
  • Choque ou instabilidade hemodinâmica;
  • Alterações dos reflexos pupilares, midríase ou anisocória;
  • Postura de descerebração ou de descorticação;
  • Infecções da pele e tecidos moles no local da punção;
  • Alterações anatómicas locais, como escoliose grave ou mielomeningocele;
  • Alterações da coagulação (sendo a trombocitopénia contraindicação relativa).

Notas:

    1. Em caso de suspeita clínica e insucesso na realização de punção lombar, não deve ser protelado o início de terapêutica empírica para meningite;
    2. Se a PL for traumática e se se verificar LCR hemorrágico, a interpretação de resultados deve ser cuidadosa, só podendo ser valorizada a glicorráquia e a coloração de gram. O diagnóstico definitivo dependerá sempre da identificação do agente por meio cultural ou molecular;
    3. Um resultado positivo de PCR no sangue para S. pneumoniae não significa que seja este o agente responsável pelo processo meníngeo; poderá apenas reflectir colonização nasofaríngea. Em relação a N. meningitidis, alguns autores referem que a PCR quantitativa no sangue periférico se correlaciona com o prognóstico e que a carga bacteriana máxima tem sido observada em crianças que vieram a falecer.

 

Hemocultura e outros exames culturais

Em todos os casos de suspeita de meningite deve proceder-se a hemocultura antes de se iniciar antibioticoterapia, a qual poderá identificar o agente em 50-80% dos casos (cerca de 80% dos casos provocados por H. influenza b e S. pneumoniae, mas apenas em 50% dos casos de meningite por Neisseria meningitidis).

Outros exames laboratoriais

Para avaliação global do doente, tratando-se duma doença sistémica, são realizados os seguintes exames, a ponderar racionalmente caso a caso:

  • Hemograma e estudo da coagulação;
  • Proteína C reactiva (negativa em 90% dos casos de meningite vírica);
  • Ionograma sérico (avaliação do equilíbrio hidroelectrolítico, estado de hidratação e detecção de eventual hiponatrémia (de diluição) compatível com síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética – SIADH);
  • Glicémia;
  • Ureia, creatinina e enzimas hepáticas (para detecção de eventual disfunção de órgãos e correcção terapêutica);
  • Gasometria arterial (pode haver acidose metabólica e elevação de lactato);
  • Ionograma urinário, suspeitando-se de SIADH.

Exames imagiológicos

Os exames imagiológicos (TAC e RM) poderão estar indicados nas seguintes situações:

  • Doentes com evidência de traumatismo craniano, alteração do estado de consciência ou sinais focais;
  • Doentes com edema da papila ou outras contra-indicações para punção lombar;
  • Avaliação de complicações da meningite (enfarte, hidrocefalia, ventriculite, empiema e abcesso cerebral, trombose do seio venoso);
  • Situações de difícil diagnóstico diferencial (ver adiante).

A TAC é um exame rápido e útil para excluir contra-indicações à realização de PL, enquanto a RM é mais sensível na determinação do envolvimento do SNC. Ambos podem ser normais, numa fase inicial, ou revelar reforço leptomeníngeo, dilatação ventricular, apagamento dos sulcos cerebrais na convexidade e acentuação da hiperdensidade relativa da substância cinzenta. Sinais mais tardios incluem enfarte venoso e hidrocefalia comunicante.

Diagnóstico diferencial

  • Outros agentes de meningite/meningoencefalite aguda não bacteriana: víricos; fúngicos (Histoplasma e Blastomyces; nos imunocomprometidos Candida, Cryptococcus, Aspegillus), tuberculose.
  • Infecções focais do SNC [abcesso cerebral, abcesso parameníngeo (empiema subdural, abcesso epidural espinhal e craniano, osteomielite)].
  • Meningite de causa não infecciosa: medicamentos (AINE, imunoglobulina endovenosa, trimpetropim-sulfametoxazol, isoniazida, metronidazol), vasculites (LES, Doença de Behçet, Sarcoidose, Febre Familiar do Mediterrâneo), tumores e hemorragia do SNC.

Tratamento

Princípios gerais

Nas formas agudas, rapidamente progressivas, que surgem em menos de 24 horas, e na ausência de sinais de hipertensão intracraniana (HIC), deve ser iniciada de imediato antibioticoterapia segundo esquema empírico, após PL.

Verificando-se sinais de HIC ou sinais neurológicos focais, a antibioticoterapia deverá ser iniciada sem proceder a PL e antes de realizar TAC; a HIC deve ser tratada simultaneamente, tal como a disfunção multiorgânica e/ou choque e SDR.

Apesar de o início da antibioticoterapia antes da realização de PL estar associado frequentemente a um exame cultural de LCR negativo, habitualmente não provoca alteração do número de células nem da concentração de proteínas, mesmo que efectuado durante 44-68 horas. Nestes casos, a presença de pleiocitose e proteinorráquia permitem inferir como provável o diagnóstico, podendo o agente ser identificado por hemocultura e exames não-culturais.

Medidas de suporte

  • Monitorização dos sinais vitais, de manifestações neurológicas e do balanço hídrico.
  • Cabeceira elevada a 30º.
  • Suprimento hídrico endovenoso para 2/3 das necessidades, para prevenção do edema cerebral de forma a obter pressão arterial sistólica em valores cerca de 80 mmHg, diurese cerca de 500 mL/m2/dia e perfusão tecidual adequada.
  • Dopamina e outros agentes inotrópicos: poderão estar indicados com o objectivo de manter uma pressão arterial adequada.

Antibioticoterapia

1. Empírica (Quadro 4)

A terapêutica inicial da meningite bacteriana aguda deve cobrir os dois agentes mais frequentes (S. pneumoniae e N. meningitidis), com o objectivo de obter níveis bactericidas no LCR. Actualmente, as cefalosporinas de terceira geração são recomendadas como primeira linha da terapêutica empírica, excepto nos recém-nascidos, não só pelo seu bom e abrangente perfil bactericida no LCR, mas também pela emergência de estirpes de pneumococos resistentes às penicilinas. Dentro do grupo, são recomendados cefotaxima (225-300 mg/kg/dia, 8/8h ou 6/6h) ou ceftriaxona (100 mg/kg/dia, 12/12 ou 24/24h) (Quadro 4). Com a emergência de estirpes de pneumococos resistentes às penicilinas e às cefalosporinas, muitos autores, bem como a Academia Americana de Pediatria, defendem o uso associado de vancomicina no tratamento empírico (60 mg/kg/dia, 6/6h, máximo 4 g/dia, de forma a obter valor sérico em vale superior a 10-15 mcg/mL). Listeria é intrinsecamente resistente às cefalosporinas pelo que, na suspeita de meningite por este agente deve ser usada ampicilina (2 g 4/4h) ou amoxicilina, por via endovenosa, em doses altas, associada a gentamicina nos primeiros 7 dias de terapêutica.

QUADRO 4 – Esquemas de antibioticoterapia empírica de acordo com idade.

Idade Esquemas em 1ª escolha
1-3 meses
    • Ampicilina (400 mg/kg/dia, máx.12 g/dia) + Cefotaxima (200-300 mg/kg/dia, máx.12 g/dia) ou Ceftriaxona (100 mg/kg/dia, máx. 4 g/dia)
    • Ampicilina + Gentamicina
    • Ampicilina + Cefotaxima + Vancomicina
> 3 meses Ceftriaxona (100 mg/kg/dia, máx. 4 g/dia) ou Cefotaxima (200-300 mg/kg/dia, máx. 12 g/dia) + Vancomicina (60 mg/kg/dia)

 

O resultado da coloração de Gram pode orientar na escolha terapêutica:

  • Gram-negativo (provável N. meningitidis): cefalosporina de 3ª geração, cefotaxima IV (200-300 mg/kg/dia em 4 doses) ou ceftriaxona IV (100 mg/kg/dia) em dose única diária (sendo em duas doses com intervalo de 12 horas nas primeiras 24 horas de terapêutica).
    Alguns autores propõem, mesmo nos casos com resultado conhecido da coloração de Gram, a associação empírica inicial com vancomicina (ver abaixo) de modo a cobrir H. influenzae do tipo b, resistente às b-lactamases;
  • Gram-positivo (provável S. pneumoniae): cefalosporina de 3ª geração, cefotaxima IV (200-300 mg/kg/dia em 4 doses) ou ceftriaxona IV (100 mg/kg/dia) em dose única diária (após duas doses com intervalo de 12 horas nas primeiras 24 horas de terapêutica), associada a vancomicina IV (60 mg/kg/dia em 4 doses);
  • Desconhecendo-se o resultado da coloração de Gram, e em crianças de idade inferior a 2 anos, ou com factores de risco de doença pneumocócica invasiva, a terapêutica empírica inicial deverá incluir uma cefalosporina de 3ª geração e vancomicina (ver atrás). Em crianças com idade superior a 2 anos e sem factores de risco referidos, a terapêutica empírica inicial deverá incluir apenas uma cefalosporina de 3ª geração.

No caso de situações especiais, a terapêutica empírica deve ser ajustada à situação clínica subjacente. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Antibioticoterapia.

FACTOR DE RISCOETIOLOGIAANTIBIOTICOTERAPIA
NeurocirurgiaStaphylococcus (CN e aureus)
Pseudomonas aeruginosa
Outros Bacilos G-
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G +-
Aminoglicosídeo
Fístula LCRStreptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Derivação Ventriculoperitoneal (VP)Staphylococcus (CN e aureus)
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Sinus dermóide
Mielomeningocele
Staphylococcus (CN e aureus)
Bacilos G-
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G +-
Aminoglicosídeo
Infecção por VIH
Hipogamaglobulinémia
Patologia ORL
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Asplenia
Drepanocitose
Streptococcus pneumoniae
Neisseria meningitidis
Salmonella
Vancomicina +
Cefalosporina 3ª G
Défices do complementoNeisseria meningitidisCefalosporina 3ª G
2. Terapêutica dirigida e duração

S. pneumoniae:

  • Sensível à penicilina (~75% dos casos): substituir cefalosporina por penicilina G aquosa IV (400.000U/kg/dia em 4 a 6 doses);
  • Sensível às cefalosporinas de 3ª geração (concentração inibitória mínima < 0,06 mcg/mL): interromper a vancomicina e manter ceftriaxona ou cefotaxima.

Se CIM para cefotaxima elevada (~ 2 mcg/mL), deve utilizar-se uma dose mais elevada da mesma (300 mg/kg/dia) ou ceftriaxona (200 mg/kg/dia), em associação a vancomicina (60 mg/kg/dia). Nos casos raros de resistência às cefalosporinas de 3ª geração (~25%), a monoterapia com vancomicina, antibiótico com penetração deficiente no SNC, poderá não ser adequada para uma rápida esterilização do LCR, razão pela qual deve ser adicionada rifampicina (600 mg 12/12 h). Estudos recentes sugerem que a terapêutica com carbapenemes (meropenem ou imipenem) ou com linezoline, combinada com rifampicina, pode ser uma opção nestes casos;

  • Duração: 10-14 dias.

N. meningitidis:

  • Penicilina G aquosa IV (400.000U/kg/dia em 4 a 6 doses) ou ceftriaxona ou cefotaxima;
  • Duração: 5-7 dias para casos não complicados.

H. influenzae:

  • Cefotaxima ou ceftriaxona, conforme doses indicadas previamente. Em alternativa: ampicilina/amoxicilina ou cloranfenicol;
  • Duração: 7-14 dias.

L. monocytogenes:

  • Ampicilina IV (200 mg/kg/dia) em 4 doses diárias, à qual se pode associar, nos primeiros 7-10 dias, gentamicina. Em alternativa: trimetoprim-sulfametoxazol IV (10-20 mg/kg 6-12 h).
  • Duração: 21 dias.

Staphylococcus aureus:

  • Flucloxacilina 2 g 6/6h ou vancomicina, à qual se poderá associar rifampicina. Em casos de SAMR, o linezoline é uma boa alternativa.
  • Duração: 14 dias.

Bacilos Gram-negativos (E. coli, Pseudomonas aeruginosa, Klebisella pneumoniae):

  • Cefalosporinas de 3ª geração (ceftriaxona, ceftazidima, cefotaxima) ou, em alternativa, meropenem;  aeruginosa: ceftazidima (maioria é sensível). Em alternativa, meropenem com gentamicina;
  • Duração: 21-27 dias ou 2 semanas após esterilização do LCR (o que pode acontecer entre 2-10 dias depois do início do tratamento).

Corticoterapia

O efeito anti-inflamatório dos corticóides na meningite bacteriana tem sido explorado nos últimos anos, contudo a sua utilização continua a considerar-se controversa devido a diferenças entre estudos relativamente a metodologia, gravidade da doença, co-morbilidades, agentes bacterianos e antibioticoterapia efectuada. No entanto, foi demonstrada uma diminuição das sequelas auditivas ligeiras com o uso da dexametasona antes do início da antibioticoterapia (0,15 mg/kg cerca de 15-20 minutos antes e depois de 6 em 6 horas durante 4 dias) na meningite por H. influenzae b (se iniciada até uma hora após a administração do antibiótico).

Em relação às meningites pneumocócica e meningocócica, de acordo com múltiplos estudos efectuados, não foi demonstrada vantagem na diminuição de sequelas.

O uso de corticóides não está associado a diminuição da mortalidade, independentemente do agente.

Actuação nos casos de hipertensão intracraniana

  • Elevação da cabeceira a 30º, cabeça na linha média, minorar estímulos externos, hipotermia normal a moderada e evitar hipercápnia.
  • Manitol 20% – Nos casos de hipertensão intracraniana está indicada a administração precoce de manitol (0,25-1 g/kg/dose IV durante 20-30 minutos, podendo ser repetida a administração 0,25 g/kg/dose em intervalos 2-3 h ou 1 g/kg/dose em intervalos 4-6 h); o mesmo produz efeito diurético osmótico que, ao aumentar transitoriamente a osmolalidade do espaço intravascular, condiciona um movimento de água dos tecidos cerebrais para o espaço intravascular.
  • Acetazolamida e furosemido – a sua eficácia em doentes com meningite bacteriana não foi demonstrada em estudos controlados.

Actuação em caso de convulsões

As convulsões são frequentes na meningite bacteriana, estando associadas a maior mortalidade.

Durante a convulsão, assegurando-se a permeabilidade da via aérea (ressucitação ABC), devem ser administradas de imediato drogas anticonvulsantes por via endovenosa. A terapêutica inicia-se, preferencialmente, por diazepam IV (0,2-0,5 mg/kg/dose). Após paragem da convulsão deve iniciar-se fenitoína (dose de impregnação de 15-20 mg/kg, seguida de dose de manutenção de 5 mg/kg/dia) a fim de evitar recorrência. A fenitoína, obrigando a monitorização sérica, é preferível ao fenobarbital pela menor probabilidade de depressão respiratória: os níveis séricos deverão ser mantidos entre 10-20 mcg/mL. Neste contexto haverá também que proceder ao doseamento sérico de glucose, cálcio e sódio.

Complicações, sequelas e prognóstico

O prognóstico da meningite está directamente relacionado com: – a idade (pior no período neonatal); – com a precocidade da antibioticoterapia (melhor quando iniciada nas primeiras 48 horas de doença); – com o agente e número de colónias (mau prognóstico se associado a mais de 10 UFC/mL); e – com comorbilidades.

São factores de mau prognóstico:

  • Atraso no diagnóstico e início do tratamento;
  • Recém-nascidos e lactentes com < 6 meses; imunodeprimidos;
  • Meningite por Gram-negativo, por pneumoniae e por microrganismo multirresistente aos antimicrobianos;
  • LCR: glicorráquia < 20 mg/dL na admissão e elevado número de células;
  • Sinais neurológicos focais ou coma na admissão;
  • Convulsões tardias (> 72 h após início da antibioticoterapia);
  • Factores do meio ambiente: más condições socioeconómicas, sobrepopulação.

Globalmente, a meningite bacteriana aguda tem uma mortalidade inferior a 10%, sendo esta mais elevada no período neonatal e nos casos de etiologia pneumocócica.

Em relação à evolução clínica no decurso do internamento, as convulsões nos primeiros 3 dias de internamento têm, regra geral, valor prognóstico irrelevante. Contudo, convulsões difíceis de controlar, que persistem ao 4º dia de internamento ou que surgem tardiamente (após 72 h), estão geralmente relacionadas com uma evolução complicada e sequelas graves, as quais são mais frequentes no contexto de convulsões focais do que no de generalizadas. Nestes casos deve proceder-se a EEG.

A febre prolongada (persistente ao 8º dia de antibioticoterapia) pode estar associada a resposta terapêutica desfavorável, designadamente por complicações supurativas da meningite (abcesso cerebral, empiema subdural ou pleural, artrite séptica, pericardite), intercorrência vírica ou infecções associadas a dispositivos implantados.

As sequelas a longo prazo variam conforme o agente etiológico, a idade do doente, os sinais clínicos iniciais e o atraso no diagnóstico.

Assim, estas crianças devem ter uma vigilância mantida após o internamento, para detecção precoce das sequelas e tentativa de minorar consequências. Ainda que na maioria dos casos as sequelas neurológicas sejam subtis e dificilmente detectáveis, nomeadamente a dificuldade na aprendizagem que pode ter etiopatogénese multifactorial, nalguns doentes surgem sequelas graves: surdez neurossensorial em 33,6% (S. pneumoniae ≤ 30%, por N. meningitidis 10% e Hib 85-40%), epilepsia (12,6%), hemi/tetraparésia, ataxia, atraso do desenvolvimento psicomotor (9%), hidrocefalia obstrutiva (7%), atrofia cerebral e cegueira (6%).

O défice da audição pode ser precoce ou tardio e a sua detecção permitirá medidas que têm como objectivo a recuperação precoce.

As sequelas motoras, neurológicas ou por amputação (nomeadamente nalguns dos casos de sépsis meningocócica que se manifestam por coagulação intravascular disseminada e choque por endotoxinas) implicarão um trabalho de reabilitação, de terapia ocupacional e de apoio psicológico de modo a rendibilizar, ao máximo, a função de cada doente com a utilização de todas as suas potencialidades.

Prevenção

A quimioprofilaxia utiliza-se nos casos de doença invasiva por N. meningitidis e H. influenzae. A quimiprofilaxia no âmbito da comunidade deve ser decidida pela Autoridade de Saúde local. Na doença invasiva por S. pneumoniae a quimioprofilaxia não tem qualquer interesse, uma vez que a colonização nasofaríngea é muito frequente e existe uma grande variabilidade de serótipos.

1- N. meningitidis se:

→ contacto prolongado (> 8 horas) e próximo (< 1 metro) com o doente ou que tenham sido expostos às secreções orais do doente nos sete dias anteriores ao início dos sintomas ou até 24 horas após o início de terapêutica eficaz;

→ conviventes no domicílio do doente, pessoas que tenham partilhado o mesmo quarto, assim como quaisquer pessoas expostas às suas secreções orais, nomeadamente através dos beijos, partilha de escovas de dentes ou utensílios de mesa;

→ adultos e crianças que, mesmo não tendo qualquer relação de proximidade com o doente, tenham frequentado as mesmas creches, amas ou jardins de infância;

→ viajantes que tenham tido contacto directo com as secreções respiratórias do doente ou que tenham estado sentados ao lado do doente num vôo prolongado (> 8 horas);

→ indivíduos que tenham tido contacto estreito e frequente com o doente, em escolas do ensino básico e secundário; em geral, não se consideram contactos íntimos os casos de colegas cuja única relação com o doente frequentarem a mesma sala;

→ indivíduos que tenham sido expostos a secreções orais: ressuscitação boca-a-boca, intubação endotraqueal; relativamente à maioria dos trabalhadores da área da saúde somente se consideram contactos íntimos os casos associados a exposição directa às secreções respiratórias (aspiração ou entubação, por exemplo).

As opções disponíveis estão resumidas no Quadro 6.

QUADRO 6 – Esquemas de quimioprofilaxia

Fármaco Idade Dose Duração
Rifampicina < 1 mês 5 mg/kg de 12/12 horas 2 dias
> 1 mês 10 mg/kg de 12/12 horas 2 dias
Adultos 600 mg 12/12h 2 dias
Ceftriaxona < 15 anos 125 mg Toma única
Adultos 250 mg Toma única
Ciprofloxacina Adultos 500 mg Toma única
2- H. influenzae b em todos os contactos íntimos domiciliários nas seguintes circunstâncias:

→ existência de 1 contacto com idade < 4 anos que não tenha recebido o número preconizado de doses da vacina contra Hib. A criança susceptível deverá receber uma dose de vacina, planeando-se entretanto a aplicação das restantes doses, se for caso disso;

→ existência de contacto com criança imunocomprometida, independentemente do seu estado vacinal e da idade.

A profilaxia deve ser feita com rifampicina, de acordo com a idade e o peso:

  • Idade < 1 mês à 10 mg/kg, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias;
  • Idade >1 mês à 20 mg/kg, até ao máximo de 600 mg por dose, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias;
  • Adultos à 600 mg, por via oral, de 24 em 24 horas, durante quatro dias.

Deverá ser preenchido e enviado o impresso de Notificação das Doenças de Declaração Obrigatória quando estiver indicado. De salientar que a meningite por N. meningitidis, H. influenzae do tipo b e S. pneumoniae são de declaração obrigatória.

Adicionalmente, é obrigatória a notificação laboratorial de doença invasiva pneumocócica e meningocócica para o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge para caracterização molecular.

Vacinas

A melhor forma de prevenção contra a doença invasiva é através da vacinação. Actualmente estão incluídas no Programa Nacional de Vacinação as vacinas pneumocócica 13-valente, a vacina contra H. influenzae b e a vacina contra N. meningitidis serogrupo C. De referir ainda a introdução recente no mercado da vacina contra N. meningitidis do serogrupo B.

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FEBRE SEM FOCO DE INFECÇÃO LOCALIZÁVEL

Definições e aspectos epidemiológicos

Na idade pediátrica a febre é uma das causas mais frequentes de recurso aos serviços de saúde (10-30% das visitas a consultas e 25-30% das visitas aos serviços de urgência). Os episódios febris são mais frequentes entre os 3 e os 36 meses. Neste período, a média de episódios febris agudos oscila entre 4 a 6 por ano. Não há diferenças significativas relativamente ao sexo ou condição económica. As doenças febris em crianças são causadas na sua maioria por vírus; porém, estima-se que em 5% dos casos a causa poderá ser uma infecção bacteriana.

Nos últimos anos, com a introdução das vacinas conjugadas contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib), Neisseria meningitidis do serogrupo C e Streptococcus pneumoniae (para 13 serótipos), o panorama geral relacionado com quadros febris em crianças pequenas (sobretudo entre os 3 e 36 meses) requerendo actuação especial melhorou substancialmente.

A este respeito importa definir um conjunto de conceitos:

  1. A febre surge como resposta a um estímulo patológico com produção de pirogénios endógenos que actuam no centro termorregulador.
    Existem várias definições de febre; segundo a mais consensual, febre é o aumento da temperatura corporal acima da variação da temperatura normal diária de um indivíduo. Depreende-se assim que o valor da temperatura corporal a partir do qual se considera febre pode ser variável; concretizando, na prática diz-se que o paciente tem febre quando a temperatura rectal é > 38ºC, auricular > 38,2ºC ou axilar > 37,5ºC.
  2. O termo febre sem foco (de infecção localizável) refere-se às situações de febre com duração inferior ou igual a 7 dias numa criança sem evidenciar sinais compatíveis com sépsis, e em que a anamnese ou o exame físico não permitem detectar a sua etiologia.
  3. A bacteriémia oculta é um processo febril em que a criança não evidencia clinicamente sinais de gravidade compatíveis com sépsis, mas em que se detecta crescimento de bactérias no sangue.
  4. A designação de febre de origem indeterminada refere-se à presença de febre com duração superior a 3 semanas, sem etiologia identificável após realização de anamnese, exame objectivo e exames complementares de diagnóstico ou após uma semana de hospitalização e avaliação.

Em cerca de 20% dos casos com quadro febril agudo, não é possível identificar um foco infeccioso após cuidado exame objectivo. Neste sentido, perante uma criança febril a principal atitude é excluir uma infecção bacteriana potencialmente grave (sépsis, pneumonia, artrite séptica, osteomielite, celulite, pielonefrite, meningite, gastrenterite aguda bacteriana), tendo em conta a sua idade e o seu estado de imunização.

Neste grupo de crianças, as infecções do tracto urinário representam a infecção bacteriana mais frequente, com uma prevalência que varia entre 5% a 7%.

O número de casos de meningite bacteriana também tem diminuído, muito devido à generalização da vacinação (anteriormente referida) contra o Hib, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis (serogrupos C e B). O mesmo aconteceu com as bacteriémias ocultas em crianças febris entre os 3 e 36 meses de idade (diminuição de 5% para 1%.

A pneumonia sem sintomas ou sinais respiratórios é causa pouco provável de febre sem foco, embora existam estudos demonstrando que nos lactentes com febre > 39ºC e leucocitose ~20 000/μL, a incidência de pneumonia poderá atingir o valor de 19%.

Este capítulo incide sobre as crianças com febre sem foco de idades entre os 3 e 36 meses, grupo etário que comporta maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave. Excluem-se desta análise as crianças que necessitam de uma abordagem individualizada – crianças com sinais compatíveis com sépsis, recém-nascidos com sépsis neonatal precoce, e crianças com imunodeficiências primárias ou adquiridas, ou com doenças crónicas.

Etiopatogénese

O aparecimento de febre resulta da libertação de pirogénios endógenos para a circulação como resultado, na maioria das vezes, de infecções; uma proporção mais restrita poderá resultar de causas não infecciosas, tais como disfunção do SNC, febre neoplásica, condições inflamatórias crónicas, febre medicamentosa ou recções às imunizações. Na presença de uma infecção, os agentes e toxinas microbianos actuam como pirogénios exógenos; estes estimulam a libertação de pirogénios endógenos (citocinas) a partir de monócitos, macrófagos, células mesangiais, células gliais, células epiteliais, e linfócitos B: interleucina-1(IL-1), IL-6, factor de necrose tumoral (TNF) e interferões vários. Quer a proteína C reactiva (PCR), quer a procalcitonina (PCT), como reagentes da fase aguda inflamatória, são produzidos no fígado como resposta às citocinas.

Os pirogénios endógenos, atingindo o hipotálamo, promovem a libertação de ácido araquidónico que, transformado em prostaglandina E2, actua no centro termorregulador. Os antipiréticos (paracetamol, ibuprofeno, ácido acetilsalicílico), inibindo a cicloxigenase hipotalâmica, inibem a produção de prostaglandina E2.

A razão pela qual os lactentes têm um risco aumentado de infecção bacteriana grave deve-se essencialmente à imaturidade do seu sistema imunológico. Nos primeiros meses de vida existe um défice na opsonização e da função dos macrófagos e da actividade dos neutrófilos. A imunidade celular e humoral também é extremamente imatura, nomeadamente a produção de IgG específicas contra bactérias capsuladas.

A etiologia dos quadros febris infecciosos varia consoante a idade da criança.

Nos recém-nascidos (idade até 28 dias/4 semanas completas), os agentes mais prevalentes são: Streptococcus do grupo B, Escherichia coli, Listeria monocytogenes, se bem que possam também surgir infecções por agentes que surgem com maior frequência noutros grupos etários, nomeadamente Neisseria meningitidis e Streptococcus pneumoniae.

Entre os 29 dias e os 3 meses de idade estão habitualmente implicados: Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, Haemophilus influenzae. No entanto, poderão também estar em causa germes que infectam habitualmente o RN.

Após os 90 dias e até aos 36 meses (3 anos): Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Neisseria meningitidis, Salmonella spp, e Haemophilus influenzae.

Abordagem clínica

Por definição, a febre sem foco não se acompanha de qualquer sinal ou sintoma de localização (infecção das vias respiratórias superiores ou inferiores, infecção gastrintestinal, infecção urinária, infecção osteoarticular, infecção do SNC); por outro lado, na grande maioria das crianças existe bom estado geral. Por isso, o grande desafio do clínico é identificar quais os pacientes que comportam maior risco de infecção bacteriana potencialmente grave.

Para tentar identificar as crianças com uma infecção bacteriana potencialmente grave é imprescindível a realização de história clínica pormenorizada, incluindo anamnese e exame objectivo minuciosos.

Nas crianças mais pequenas, a anamnese propicia dados mais escassos e o exame objectivo é mais difícil. Nesta perspectiva, tentando de modo estruturado quantificar/estratificar o risco de infecção bacteriana potencialmente grave nas situações de febre sem foco, foram desenvolvidas escalas de avaliação associando critérios clínicos e valores analíticos. São exemplos as escalas de YOS (Young Infant Observation– para crianças com menos de 3 meses), Rochester, Boston, Yale ou Philadelphia. De acordo com os resultados de estudos, salienta-se que a sensibilidade e a especificidade de tais critérios é baixa.

A anamnese relativamente à criança febril deve ser sempre pormenorizada, incluindo inquirir, designadamente sobre:

  • Parto de termo ou pré-termo;
  • Doenças anteriores;
  • Imunizações (quais e quando);
  • Contexto epidemiológico, como contactos de doentes conhecidos e eventual frequência de escola ou infantário;
  • Características da febre;
  • Nível de actividade da criança desde o início da febre;
  • Repercussão eventual sobre o apetite.

O risco de haver uma infecção bacteriana potencialmente grave é menor nas crianças que nasceram de termo e previamente saudáveis. É importante caracterizar a febre: existe um maior risco de bacteriémia com temperatura mais elevada, mas não há relação com a duração da febre; a facilidade de resposta a antipiréticos também não permite distinguir quadros bacterianos de víricos.

São manifestações de possível infecção sistémica e, como tal, sugestivas de gravidade clínica, prostração e recusa alimentar.

O exame objectivo deve ser pormenorizado, valorizando, designadamente:

  • Mau estado geral compatível com quadro séptico;
  • Presença de foco infeccioso;
  • Sinais respiratórios;
  • Existência de exantema.

O estado geral da criança é um importante indicador clínico. A criança com aspecto geral séptico, nomeadamente com prostração, pouco reactiva, com bradipneia ou hiper ou taquipneia, que não estabelece contacto ocular e não sorri, tem maior probabilidade de ter uma doença grave do que a criança que evidencia bom estado geral. A má perfusão periférica, a pele marmoreada e cianose são também indicadores de maior gravidade.

A existência de exantema é importante: lesões petequiais ou purpúricas surgem na sépsis meningocócica e, mais raramente, em infecções por Haemophilus influenzae. O exantema macular que surge precocemente em relação ao início da febre pode igualmente ser sinal de sépsis; por isso, torna-se obrigatório determinar a cronologia do aparecimento das lesões cutâneas.

A pneumonia pode manifestar-se apenas por taquipneia ou sinais de hipoxémia; por conseguinte, não deve excluir-se infecção das vias respiratórias inferiores pela ausência de sinais de dificuldade respiratória ou de ruídos adventícios através da auscultação pulmonar.

O exame objectivo completo deve incluir a medição da frequência respiratória e a determinação da saturação transcutânea em O2 (SpO2), especialmente nos recém-nascidos e pequenos lactentes.

A observação deve identificar possíveis focos infecciosos. A presença de sinais sugestivos de infecção vírica diminui a probabilidade de existir uma doença bacteriana grave subjacente. No entanto, tal não se aplica a recém-nascidos e pequenos lactentes: efectivamente, diversos estudos revelaram igual incidência de doença bacteriana com e sem infecção vírica concomitante.

De salientar que taxas de bacteriémia são semelhantes em crianças febris com e sem otite média aguda, sem outro foco infeccioso aparente; por isso, tal achado não deve ser sobrevalorizado.

Actuação prática e exames complementares

Como regra geral pode estabelecer-se que uma criança com febre e sinais sistémicos graves deve ser imediatamente hospitalizada.

Com vista à actuação prática, específica, as crianças são classicamente divididas de acordo com a sua idade:

  1. Recém-nascidos;
  2. Lactentes com idades entre os 29 dias e os 3 meses; e
  3. Crianças com idades entre >3 e 36 meses.

     

I. Recém-nascidos

A imaturidade imunológica dos recém-nascidos constitui um factor de maior vulnerabilidade a agentes infecciosos, o que determina maior probabilidade de evolução desfavorável da doença.

Com base na avaliação estritamente clínica, em geral torna-se difícil identificar as situações de possível doença bacteriana grave. Assim, nesta faixa etária, todo o paciente deve ser abordado, até prova em contrário, como tendo uma doença bacteriana grave e sujeito a avaliação diagnóstica completa, sendo obrigatório proceder ao internamento hospitalar e à realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo;
  • Doseamento da proteína C reactiva (PCR) e da procalcitonina (PCT);
  • Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto ou alterações na auscultação pulmonar;
  • Punção lombar, sempre que o estado clínico 
da criança o permita, para análise citoquímica, coloração Gram e exame cultural do líquido céfalo-raquidiano (LCR); pesquisa específica de diversos vírus por técnica molecular/PCR se suspeita de meningite vírica e/ou em função da clínica;
  • ALT, AST, GGT, PT, aPTT, LDH (eventualmente em função da clínica);
  • Coproculturas, se houver história de diarreia, ou de sangue ou muco nas fezes. 


Em regra, devido à elevada incidência de doença bacteriana grave e a sua elevada taxa de mortalidade se não for tratada, após a realização destes exames deve ser instituída terapêutica antibiótica empírica. Habitualmente, o tratamento inclui ampicilina e gentamicina e/ou uma cefalosporina de terceira geração (designadamente cefotaxima, sobretudo se houver sinais de doença grave ou evidência de meningite, tendo como base o resultado do exame citoquímico do LCR.

Embora o tratamento empírico com aciclovir não seja usado por rotina, a sua utilização deve ser considerada na presença de factores de risco de infecção por vírus Herpes simplex (história materna de infecção por vírus Herpes simplex, ruptura prolongada de membranas, presença de vesículas mucocutâneas, orais ou oculares, sinais neurológicos focais, falência da antibioticoterapia passadas 48 horas, elevação dos valores das enzimas hepáticas (indicadores precoce de infecção disseminada por VHS em recém-nascidos com < 2 semanas de vida) ou pleiocitose no LCR

II. Crianças com idades entre 29 dias e 3 meses

Apesar de nesta faixa etária já ser mais habitual haver sinais indiciando foco localizado de infecção, ainda é muito difícil prever se a criança tem uma doença potencialmente grave. Nesta idade, uma infecção vírica não diminui a probabilidade de doença bacteriana grave concomitante.

Porém, com a introdução de novas vacinas, nomeadamente com a vacina anti-pneumocócica conjugada, verificou-se uma diminuição da prevalência de bacteriémia oculta, tornando-se assim controversa a necessidade de hospitalização e terapêutica antibiótica em todos os lactentes nesta faixa etária. Os critérios de observação clínica mais difundidos e que não utilizam a punção lombar para estratificação do risco são os critérios de Rochester (Quadro 1). Estes critérios tentam identificar as crianças com baixo risco de infecção bacteriana, o que permite uma abordagem menos agressiva nas crianças que cumprem todos os critérios. Para uma infecção bacteriana grave, estes critérios apresentam um valor preditivo negativo de 98,9% e, para o risco de bacteriémia, um valor preditivo negativo de 99,5%.

Assim, uma vez realizados a anamnese e o exame objectivo, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Hemograma completo
  •  Doseamento de PCR e PCT;
  •  Hemocultura;
  • Análise sumária de urina e urocultura;
  • Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucocitos > 20.000/mmc;
  • Punção lombar – na criança com aspecto geral séptico, não cumprimento dos critérios de Rochester ou antes de iniciar antibioticoterapia.

 

Nota

    • PCR com valor limitado para identificar lactente febril com risco de bacteriémia oculta;
    • PCT com valor > 0,5 ng/mL aumenta a probabilidade de infecção bacteriana potencialmente grave.

Assim, numa criança cumprindo todos os critérios de baixo risco ou com o diagnóstico estabelecido de pielonefrite pode protelar-se a realização da punção lombar e o início de antibioticoterapia, vigiando a evolução do quadro febril (sendo a criança obrigatoriamente reavaliada dentro de 24 horas, ou antes, se houver agravamento clínico). Contudo, é essencial avaliar previamente se os pais e/ou familiares estão capacitados para identificar eventual agravamento do estado clínico da criança, e se existe fácil acesso à instituição de saúde.

Se a investigação levada a cabo não permitir a identificação do foco e se a criança não cumprir todos os critérios de baixo risco, a mesma deverá ser submetida a punção lombar e hospitalizada para antibioticoterapia empírica, por existir, nestas circunstâncias, risco elevado de bacteriémia oculta. O esquema de tratamento é ampicilina + cefotaxima. Deve considerar-se a administração de aciclovir caso o lactente tenha estado em contacto com algum indivíduo com infecção herpética.

A actuação nos casos de lactente vigiado em ambulatório sem antibioticoterapia instituída previamente, e cuja hemocultura é positiva, é a seguinte: – deve repetir-se a avaliação analítica; – deve proceder-se à hospitalização para antibioticoterapia endovenosa de acordo com o antibiograma.

QUADRO 1 – Critérios de Rochester

Parâmetros a avaliar
    • Bom estado geral
    • Previamente saudável (idade gestacional > 37 semanas; sem tratamento antibiótico perinatal; sem tratamento para hiperbilirrubinémia neonatal de etiologia desconhecida, sem hospitalização ou antibioticoterapia prévia, sem doença crónica conhecida)
    • Sem sinais de foco infeccioso (pele, tecido subcutâneo, osso, articulações ou ouvidos)
    • Valores laboratoriais
      • Leucócitos 5.000-15.000/mmc; relação do número absoluto neutrófilos imatutos/número absoluto de neutrófilos totais ou NANI/NANT < 0,2
      • Bastonetes no sangue periférico < 1.500/mmc
      • Sedimento urinário: < 10 leucócitos/campo
      • Se diarreia: < 5 leucócitos fecais/campo

 

III. Crianças com idades entre > 3 e 36 meses

Neste período etário será possível identificar um número significante de infecções através da anamnese e do exame objectivo; no entanto, existe ainda a possibilidade de determinados casos corresponderem a infecções ocultas: entre estas, como mais frequentes e potencialmente mais graves, citam-se a infecção urinária, a pneumonia e a bacteriémia oculta.

Neste grupo de doentes, a abordagem divide-se consoante a idade e estado de imunização:

  • Crianças com idade > 6 meses e estado vacinal actualizado (três doses de vacina anti-Hib e, pelo menos, duas doses de vacina antipneumocócica): o risco de bacteriémia é inferior a 1% sendo, por isso, recomendadas a avaliação analítica nem a antibioticoterapia empírica. Porém, porque o risco de infecção do tracto urinário se mantém, nestas crianças estão indicados: – Exame sumário da urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não circuncidados com menos de 12 meses ou naqueles submetidos a circuncisão com idade inferior a 6 meses).
  • Crianças com estado vacinal desactualizado ou com idade < 6 meses: o risco de bacteriémia oculta pode ser superior a 5%, embora actualmente (após introdução da vacina anti-pneumocócica) este valor possa ser menor devido ao efeito da imunização de grupo. Nestes casos recomenda-se a realização dos seguintes exames:
    • Hemograma completo;
    • PCR e PCT;
    • Hemocultura;
    • Exame sumário de urina e urocultura (sobretudo nas raparigas com < 24 meses, nos rapazes não com idade < 12 meses, ou naqueles submetidos a circuncisão com idade < 6 meses);
    • Radiografia de tórax se leucócitos > 20.000/mmc.

Perante o diagnóstico de infecção urinária ou pneumonia, a decisão de proceder a tratamento antibiótico em regime de internamento ou em regime ambulatório dependerá de vários factores: idade da criança, estado geral, tolerância da via oral, e capacidade de os pais ou representantes assegurarem o cumprimento terapêutico.

Na hipótese de bacteriémia oculta (ausência de foco e de aspecto séptico e valor de leucócitos > 15.000/mmc, é fortemente recomendado iniciar antibioticoterapia com ceftriaxona intramuscular e reavaliar após 24 horas, uma vez que vários estudos têm demonstrado que a utilização de antibioticoterapia empírica, nas crianças não imunizadas e no contexto de febre sem foco, poderá evitar a progressão da bacteriémia para a focalização, especialmente meningite.

O resultado da hemocultura, que virá estabelecer o diagnóstico, poderá obrigar à alteração do antimicrobiano escolhido antes empiricamente, de acordo com o antibiograma relativo ao agente isolado.

Outra situação possível é a obtenção de resultado positivo da hemocultura numa criança relativamente à qual se optou inicialmente por abstenção de antibioticoterapia. A atitude neste caso é a seguinte:

  • Hemocultura positiva para S. pneumoniae: no caso de febre persistente, deve proceder-se a avaliação analítica, incluindo punção lombar. Se se verificar meningite a criança deverá ser hospitalizada e medicada com cefalosporina de 3ª geração (associada a vancomicina até confirmação da inexistência de resistência elevada à penicilina e cefalosporinas de 3ª geração). Se o LCR for estéril, pode proceder-se a antibioticoterapia oral (amoxicilina 90 mg/kg/dia) durante 7 a 10 dias em ambulatório; em caso de apirexia, há indicação para antibioticoterapia oral em ambulatório (amoxicilina 90 mg/kg/dia);
  • Hemocultura positiva para N. meningitidis ou H. influenzae tipo B: a criança deve ser hospitalizada, realizando-se avaliação analítica, incluindo punção lombar e iniciando-se antibioticoterapia endovenosa com ceftriaxona.

O tratamento das situações em que tenham sido isoladas outras bactérias, como Salmonella spp, Streptococcus – hemolítico grupo A, Staphylococcus spp, Moraxella spp e Haemophilus influenzae não-B, está menos bem definido; contudo, poderá adoptar-se o procedimento referido a propósito dos casos com isolamento de Streptococcus pneumoniae, valorizando sempre o estado clínico. Apesar de os resultados das hemoculturas serem conhecidos regra geral 24-48 horas após a colheita, é de salientar que muitas vezes o resultado, quando positivo, poderá não ter relação com o agente causal, situação que corresponde a contaminação da colheita.

Tratamento antipirético

Embora não altere a evolução da doença infecciosa de base, justifica-se o tratamento sintomático da febre alta (temperatura rectal > 38ºC), sobretudo se associada a mal-estar evidenciado por sintomatologia como gemido, prostração, hiporreactividade, etc.. Por outro lado, o abaixamento da temperatura:

  1. reduz as necessidades metabólicas;
  2. permite que a criança esteja mais desperta e com maior propensão para comer e beber líquidos – cuja ingestão deve ser estimulada – prevenindo a desidratação;
  3. diminui a probabilidade de convulsões em crianças de risco neurológico.

Com a criança despida, procede-se à passagem pelo corpo de esponja embebida em água tépida (não álcool) a temperatura < 3-4ºC relativamente à temperatura corporal, ao mesmo tempo que se administra como primeira prioridade paracetamol (oral ou rectal) na dose de 10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 80 mg/kg/dia.

Como segunda prioridade utiliza-se o ibuprofeno (oral) na dose de 5-10 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes por dia até máximo de 20 mg/kg/dia. Salienta-se que o decréscimo da temperatura corporal após tratamento antipirético não permite distinguir doença bacteriana grave de doença vírica menos grave.

O AAS não é recomendado na idade pediátrica como antipirético pela possibilidade de desencadear síndroma de Reye.

QUADRO 2 – Síntese da abordagem

FEBRE SEM FOCO DE INFECÇÃO LOCALIZÁVEL
Idade*Abordagem diagnóstica e terapêutica
< 1 mês
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar; RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Hospitalização
    • Antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou ampicilina 200 mg/kg/dia + cefotaxima 200 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8/8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
1-3 meses
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura; Radiografia de tórax – deve ser realizada se sintomas respiratórios, frequência respiratória > 50 ciclos/minuto, alterações na auscultação pulmonar ou leucócitos > 20 000/mmc; Punção lombar – considerada na criança com aspecto geral séptico ou não cumprimento de factores de baixo risco para infecção bacteriana potencialmente grave
    • Avaliação clínica e/ou analítica – critérios Rochester
    • Baixo risco – Vigilância em internamento ou em ambulatório (reavaliação após 24 horas de evolução)
    • Alto risco – Vigilância em internamento e início de antibioticoterapia empírica: ampicilina 200 mg/kg/dia + gentamicina 3-5 mg/kg/dia ou cefotaxime 50 mg/kg/dia
    • Considerar aciclovir 20 mg/kg/dose de 8-8h se suspeita de infecção por vírus Herpes simplex
> 3 meses a
36 meses
Criança sem aspecto séptico, com idade > 6 meses e com vacinas actualizadas (incluido 2 doses vacina anti-pneumocócica)
    • Exame sumário de urina
    • Vigilância em ambulatório apenas com tratamento sintomático. Reavaliar às 24h
 Crianças sem estado vacinal actualizado e com idade inferior a 6 meses
    • Exame sumário de urina
    • Avaliação analítica: hemograma, PCR, PCT, hemocultura.
    • Considerar antibioticoterapia se leucócitos ≥ 15.000/mmc ou vigilância em internamento sem antibioticoterapia
 Crianças com aspecto séptico
    • Abordagem ABCDE
    • Tratar o choque, se indicado
    • Avaliação analítica: hemograma, exame sumário de urina, hemocultura, urocultura, punção lombar (excepto se instabilidade clínica, alteração do estado de consciência ou sinais neurológicos focais); RX do tórax e coprocultura se indicado
    • Internamento
* Neste quadro, para fins práticos, procedeu-se a um arredondamento quanto à divisão em idades inicialmente estabelecida  

Conclusão

O quadro clínico designado por febre sem foco (FSF) de infecção localizável constitui uma realidade cada vez mais frequente na prática clínica pediátrica. Apesar de se ter registado uma diminuição do número absoluto de casos de bacteriémias ocultas, torna-se premente conseguir identificar e tratar precocemente tais crianças.

Para cumprir tal objectivo, ao longo do tempo têm sido elaboradas inúmeras grelhas de critérios para estratificar, caso a caso, o risco de doença bacteriana potencialmente grave. Tais critérios, contudo, vieram a revelar-se insuficientes pela introdução de novas vacinas, contribuindo para uma diminuição do risco de doença bacteriana grave no contexto do quadro de FSF.

Em suma, a decisão de investigar e, posteriormente, de tratar ou não, é do médico que observa cada criança, sabendo-se à partida que não há sinal, sintoma ou resultado laboratorial que seja por si só diagnóstico. Há, pois, necessidade de actuar com bom senso, conjugando várias circunstâncias presentes. Da acção combinada dos profissionais de saúde e dos familiares, será possível reduzir-se ao mínimo as agressões iatrogénicas às crianças.

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DOENÇAS EXANTEMÁTICAS – UMA VISÃO GLOBAL

Definição e etiopatogénese

Exantema define-se como uma erupção cutânea, localizada ou generalizada, que pode surgir num vasto leque de doenças de etiopatogénese diversa (infecciosa, alérgica ou autoimune). Contudo, em Pediatria, quando nos referimos a doenças exantemáticas falamos de um grupo relativamente restrito de doenças infecciosas que se manifestam, na maioria das vezes, por exantema associado a febre (exantema febril). As doenças exantemáticas “clássicas”, descritas no início do século XX, são o sarampo, a escarlatina, a rubéola, o eritema infeccioso e o exantema súbito. No entanto, muitos outros agentes infecciosos são causa frequente de exantema, tais como enterovírus, adenovírus, vírus da varicela, VEB, Staphylococcus aureus e Rickettsia spp.

Algumas destas doenças têm um carácter sazonal mais ou menos acentuado. As infecções por enterovírus são mais comuns no Verão e início de Outono; por vírus da varicela-zóster no Inverno e Primavera; por parvovírus B19 no fim do Inverno e Primavera; por Rickettsia spp na Primavera e Verão. As infecções por VEB e HHV 6 e 7 ocorrem durante todo o ano. Antes do uso generalizado da vacina os surtos de sarampo e rubéola eram mais comuns na Primavera.

As lesões podem ser resultantes de infecção da derme (sarampo, varicela, doença por enterovírus), de lesão do endotélio vascular (riquetsiose), de efeitos de toxinas circulantes (S. pyogenes, S. aureus), de resposta imunológica do hospedeiro (parvovírus B19) ou da combinação de vários factores.

Os exantemas, o problema de expressão cutânea mais frequente na idade pediátrica, são na sua maioria causados por infecções víricas, de transmissão horizontal, pessoa a pessoa.

Aspectos epidemiológicos

Estudos de seroprevalência mostram que a grande maioria destas infecções ocorre até ao final da adolescência. Em Portugal, a ampla cobertura vacinal contra o sarampo e a rubéola levou a um quase desaparecimento da sua incidência. No que respeita a Doenças de Declaração Obrigatória, nos anos de 2009 a 2012 foram notificados à DGS, até aos 15 anos de idade, seis casos de rubéola, dois casos confirmados de rubéola congénita, cinco casos de sarampo (importados de outros países) e 208 casos de febre escaro-nodular.

Quanto a outras doenças como varicela, enterovírus ou infecção por parvovírus B19, não de declaração obrigatória, não existem estudos representativos da população nacional para avaliar a sua incidência em função da idade. No entanto, no inquérito serológico nacional efectuado em 2002, 94% dos indivíduos dos 15 aos 19 anos apresentavam evidência serológica de infecção anterior por varicela. Na Europa e nos Estados Unidos nos últimos têm ocorrido vários surtos de sarampo sobretudo em populações não vacinadas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na avaliação da criança previamente saudável com exantema febril, a abordagem clínica com base na anamnese e exame objectivo é fundamental para se estabelecer o diagnóstico etiológico. Este tem implicações óbvias na atitude terapêutica a tomar e, nalguns casos, igualmente de extrema importância na programação de medidas atempadas de controlo epidemiológico.

No contexto epidemiológico importam: a idade, o estado vacinal (por ex. podendo apoiar a exclusão de diagnóstico de sarampo ou rubéola); o contacto com animais (febre escaro-nodular); contacto familiar ou na escola com casos de doença já diagnosticada (escarlatina, adenovírus, enterovírus); história de viagens, doença exantemática prévia, etc..

Quanto à história da doença actual, determinados aspectos devem ser inquiridos e/ou observados com rigor: O exantema foi precedido por um pródromo febril de alguns dias? Foi a primeira manifestação da doença (rubéola, escarlatina) ou surgiu após o desaparecimento da febre (exantema súbito)? Estão presentes sinais patognomónicos ou sugestivos da etiologia (manchas de Koplik no sarampo, tache noire na febre escaro-nodular, amigdalite eritemato-pultácea na escarlatina ou mononucleose infecciosa)? A natureza da lesão elementar: mácula – sem relevo na superfície cutânea; pápula – com relevo e sem conteúdo líquido; vesícula, bolha ou pústula – com relevo e com conteúdo líquido; petéquias ou sufusões hemorrágicas. Na presença de exantema maculopapular é útil verificar se existe um fundo eritematoso que atinge toda a superfície cutânea da zona afectada (escarlatiniforme); se as manchas são confluentes e de tom vermelho escuro (morbiliforme), ou róseo, discreto e não confluente (rubeoliforme). Por sua vez, na febre escaro-nodular, as lesões são mais dispersas e algumas são nodulares. A topografia das lesões: atingimento do couro cabeludo e mucosas na varicela ou das palmas e plantas na febre escaro-nodular e enterovírus. A presença de prurido (eritema infeccioso, rubéola no adolescente e o exantema vírico por enterovírus e adenovírus) e a descamação ulterior ao exantema (furfurácea no sarampo, em dedos de luva na escarlatina e doença de Kawasaki) são elementos importantes.

Os exames complementares têm interesse limitado uma vez que o diagnóstico é essencialmente clínico. No entanto, por vezes podem dar-nos algumas indicações (leucocitose com neutrofilia na escarlatina, neutropenia no exantema súbito, presença de linfócitos atípicos na mononucleose infecciosa).

As serologias têm interesse para a confirmação do diagnóstico, sobretudo nas situações em que tal é importante por motivos epidemiológicos ou pela presença de complicações. Nos últimos anos, a utilização mais generalizada das técnicas de biologia molecular contribuiu para a confirmação do diagnóstico etiológico em situações menos típicas e/ou de maior relevância clínica.

O Quadro 1 sintetiza as principais características clínicas e biológicas de doenças exantemáticas surgindo classicamente em idade pediátrica, algumas das quais são objecto de abordagem em capítulos próprios. No Quadro 2 são descritos os tipos de exantema associados a doenças infecciosas e a outras situações não infecciosas. Nas Figuras 1 e 2 são exemplificados aspectos de exantema petequial e morbiliforme.

Tratamento e medidas de controlo epidemiológico

Apenas na escarlatina e na febre escaro-nodular é necessária antibioticoterapia. Com a escarlatina, o sarampo e a rubéola existe risco de contágio, obrigando por isso a evicção escolar. A febre escaro-nodular, o sarampo e a rubéola são doenças de declaração obrigatória. (Consultar Anexos)

QUADRO 1 – Doenças exantemáticas – Características clínicas.

PI – período de incubação; PCR – reacção de polimerase em cadeia/técnica molecular

Doença/AgenteClínicaExantemaDiagnósticoComplicações
Sarampo
Paramixovírus
Febre alta, tosse, coriza e conjuntivite; manchas de Koplik na mucosa oral antes do início do exantemaAo 4º/5º dia de doença; maculopapular confluente com progressão cefalo-caudal; descamação furfurácea e coloração acobreadaClínico; Serologia; PCROtite, pneumonia, laringotraqueíte, encefalite, panencefalite esclerosante subaguda, morte
Rubéola
Togavírus
Febre baixa ou ausente, adenopatia cervical posterior ou occipitalPrimeira manifestação, macular discreto, não confluente, fugaz, progressão cefalocaudal pode ser pruriginosoClínico; SerologiaSíndroma da rubéola congénita, encefalite, poliartralgia, artrite
Escarlatina
Streptococcus β-hemolítico do grupo A
Febre alta com amigdalite eritemato-pultácea e enantema do palato, língua saburrosa e adenomegalias cervicaisInício simultâneo com a febre, eritematoso, puntiforme, sem intervalos de pele sã, áspero, mais intenso nas pregas cutâneas, palidez peribucal; descamação foliácea dos dedos na 2ª ou 3ª semanaCultura de exsudado faríngeo; Pesquisa de antigénioAbcesso retro amigdalino; sépsis, miocardite, febre reumática; glomerulonefrite aguda
Exantema súbito
Herpes vírus 6
Herpes vírus 7
Mais frequente no lactente, febre alta por 3-4 dias antes do exantemaInício após normalizar a temperatura, macular ou maculopapular, róseo, centrífugo, dois a três dias de duraçãoClínico, serologia e PCRConvulsões febris; doença disseminada em imunocomprometidos
Eritema infeccioso
Parvovírus B19
Sintomas gerais; por vezes dois a três dias de febre e intervalo livre de sete diasExantema eritematoso da face, geográfico da superfície extensora dos membros; pode recorrer por várias semanasClínico, serologia e PCRHidropisia fetal, artrite; crise aplásica, infeção crónica em imunocomprometidos
EnterovírusFebre, faringiteMaculopapular, morbiliforme ou petequial; pode atingir palmas e plantas (Coxsackie)Clínico, serologia, PCRMeningite, miocardite
Vírus Epstein-BarrFebre, cefaleias, edema palpebral, amigdalite exsudativa, adenomegalias, hepatosplenomegaliaMaculopapular ou urticariforme; atinge mais o troncoClínico, serologia, PCRObstrução respiratória, ruptura esplénica, síndroma hemofagocítica; associado a linfoma
VaricelaFebreTipicamente com máculas, pápulas, vesículas, pústulas e crostas, pruriginoso, progressão cefalocaudal, atinge couro cabeludo e mucosasClínico, serologia, PCRSobre infecção bacteriana das lesões, piomiosite, fascite, encefalite, cerebelite
Febre escaro-nodular
Rickettsia conorii
Contacto com cães, febre alta com mialgias e mal-estar geral“Tache noire”; exantema nodular disperso; não poupa plantas e palmasClínico; SerologiaPneumonia, flebite; encefalite, miocardite

QUADRO 2 – Tipos de exantema em doenças infecciosas e não infecciosas.

Nota: Outras situações como infecções por Mycoplasma, sífilis, blastomicose, dengue, doença de inclusões citomegálicas, dermatomicoses, etc. podem estar associadas a erupção, a qual está enquadrada em sintomatologia mais relevante.
Erupção maculopapular ou punctiforme
    • Infecciosa: sarampo, rubéola, exantema súbito, eritema infeccioso, escarlatina, riquetsioses, doença meningocócica, toxoplasmose, infecções por enterovírus, mononucleose infecciosa
    • Não infecciosa: queimadura solar, miliária, eritema tóxico, erupções por fármacos
Erupção pápulo-vesicular
    • Infecciosa: varicela-zóster, herpes simplex, varíola, eczema herpeticum, eczema vacinatum, infecções por enterovírus, riquetsioses, impétigo, molusco contagioso, dermatite herpetiforme.
    • Não infecciosa: picada de insecto, estrófulo, erupções por fármacos.

FIGURA 1. Aspecto de exantemas: A – máculo-papuloso; B – petequial. (NIHDE)

FIGURA 2. Aspecto de exantema morbiliforme (caso de sarampo). (NIHDE)

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