FEBRE Q

Definição e importância do problema

A febre Q é uma doença infecciosa aguda e geralmente autolimitada (embora se possa manifestar sob a forma crónica) tendo Coxiella burnetti como agente etiológico responsável, um cocobacilo Gram-negativo intracelular obrigatório.

A doença foi diagnosticada em 1935 pela primeira vez em Queensland, na Austrália, após um surto de febre de causa desconhecida (“Q” de query) num matadouro. Tendo-se demonstrado que o referido agente é geneticamente distinto dos géneros Rickettsia, Ehrlichia e Anaplasma, actualmente o mesmo já não é englobado na ordem das riquetsioses, mas sim na ordem Legionellales, pertencendo à família Coxiellaceae.

Microrganismo altamente infeccioso em animais e na espécie humana, constitui, por isso, uma arma potencialmente utilizável no bioterrorismo.

As formas crónicas comportam grau mais elevado de morbilidade, designadamente pelo facto de o processo inflamatório poder originar lesões valvulares cardíacas, lesões vasculares persistentes ou osteomielite.

Aspectos epidemiológicos 

A febre Q, distribuída por todo o mundo, é uma zoonose, sendo o gado bovino, ovino e caprino os principais reservatórios da doença. Todavia, animais domésticos tais como gatos, cães e pássaros, podem transmitir a doença, que é mais frequente em meio rural; importa acentuar que a carraça poderá (raramente) ser um vector de transmissão inter-reservatórios.

Mais de 60% das infecções são assintomáticas, podendo um pequeno contingente (~5%) requerer hospitalização.

Como o microrganismo C. burnetti é muito resistente ao calor e a produtos químicos, pode sobreviver nos locais infectados durante meses. Por outro lado, este facto permite que microrganismos viáveis sejam levados pelo vento para locais distantes, o que pode dificultar a identificação da origem da infecção.

De realçar que a criança pode ser infectada através do leite materno.

Em inquéritos de seroprevalência em certas regiões da Europa foram comprovados antecedentes de infecção em percentagem muito variável conforme as regiões (6%-70%). Tratando-se duma doença de declaração obrigatória/DDO, em Portugal foram declarados 71 casos entre 2010-2013, mas apenas 2 abaixo dos 15 anos. Estabelecendo comparação com dados epidemiológicos doutro país europeu (França), em que se apurou incidência de 50 casos por 100.000 habitantes, é possível que em Portugal se verifique subnotificação.

Na Holanda, entre 2007 e 2010 verificou-se um surto de febre Q, com identificação de 4026 casos em humanos. De acordo com dados do CDC, nos EUA, em 2010 foram notificados 129 casos, em oposição a 17 casos apenas no ano de 2000; este aumento associa-se provavelmente a um maior número de notificações desde o 11 de Setembro de 2001.

Etiopatogénese

Ao contrário das infecções por Rickettsia, o ser humano adquire infecção por C. burnetti predominantemente através da inalação de partículas infectadas sob a forma de aerossóis, por exposição directa a produtos de animais (secreções genitais no parto, tosquias, matadouros), ou por ingestão de produtos lácteos não pasteurizados.

Após a inoculação das partículas infectantes portadoras de C. burnetti ocorre pneumonite intersticial linfocitária com alta concentração de macrófagos infectados no exsudado alveolar. O microrganismo pode permanecer latente nos macrófagos de tecidos durante anos, o que poderá conduzir a lesões permanentes (valvulopatias, vasculopatia, osteomielite). Também podem ser encontrados granulomas hepáticos na medula óssea, bem como noutros órgãos.

Manifestações clínicas

Forma aguda

Após um período de incubação entre 9 a 39 dias, surge febre durante 7-10 dias com calafrio, associada a cefaleias intensas, mialgias, vómitos e dor abdominal, entre outros sintomas sistémicos inespecíficos.

A perda de peso e a fraqueza muscular podem ser acentuadas. Na criança, pode verificar-se exantema em 50% dos casos, ao contrário do que acontece no adulto; os suores nocturnos, frequentes nos adultos, são raros na idade pediátrica. No adulto, a febre pode durar 2-3 semanas.

Na criança, a doença é habitualmente autolimitada, com resolução espontânea entre uma a três semanas. Em mais de metade dos casos a infecção em causa pode ser assintomática.

A hepatoesplenomegália pode estar presente nalguns doentes, coincidindo com quadro de hepatite na maioria dos casos. É frequente o compromisso do sistema respiratório com tosse não produtiva e dor torácica. Outras manifestações – que podem ser consideradas complicações raras, incluindo miocardite, pericardite, SHU, rabdomiólise, hemofagocitose, meningoencefalite – podem surgir alguns meses após infecção inicial.

Forma crónica

Em cerca de 1% dos casos poderá verificar-se evolução para a cronicidade, em geral relacionável com doença cardíaca ou vascular prévias. A endocardite pode manifestar-se meses a anos após o episódio agudo da doença. A osteomielite crónica também constitui uma manifestação de doença crónica.

Diagnóstico

Trata-se duma doença de difícil diagnóstico se não houver uma forte suspeita clínica e epidemiológica. Haverá que admitir tal hipótese nos seguintes casos:

  • em toda a criança com febre de origem desconhecida que viva em meio rural ou que contacte com animais e/ou seus produtos; e igualmente,
  • no contexto de pneumonia atípica, endocardite evoluindo com culturas negativas, osteomielite recorrente.

Relativamente aos sinais radiológicos torácicos encontrados, o padrão é semelhante ao verificado nos casos de pneumonia por vírus, Mycoplasma pneumoniae ou por Chlamydophila pneumoniae; de referir que também poderão ser encontradas opacidades arredondadas em doentes clinicamente assintomáticos.

A serologia continua a ser o procedimento diagnóstico mais utilizado, sendo a imunofluorescência indirecta o método mais sensível.

Para confirmar a infecção aguda prévia, deve demonstrar-se um aumento de 4x ou > do título de anticorpos entre a fase aguda e a convalescença, ou título de anticorpos de IgM > 1:50. Título de anticorpos de IgG = ou > 1:128 deve considerar-se como sinal de infecção provável; e de IgG > 1:200 são sugestivos de infecção.

Para o diagnóstico na fase crónica, num paciente com quadro clínico compatível, será suficiente um título de anticorpos IgG = ou > 1:800. Títulos de IgG < 1:200 e de IgM negativos poderão indicar cura.

O microrganismo pode também ser identificado em cultura de tecidos, ou através de estudo molecular/PCR com amostras de sangue ou de tecidos (neste último caso, – designadamente em válvulas cardíacas – evidenciando maior sensibilidade).

Considerando outros exames laboratoriais, cumpre salientar que se pode verificar hipergamaglobulinémia, hiperfibrinogenémia e elevação da proteína C reactiva. Em mais de metade dos doentes há evidência laboratorial de processo autoimune, explicável designadamente pela positividade de: factor reumatóide, anticorpos antiplaquetas, antimúsculo liso, antimitocôndrias e prova de Coombs directa.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da febre Q com outras doenças depende da forma de apresentação clínica. Como foi referido anteriormente, o quadro respiratório pode ser confundido com infecções por Mycoplasma pneumoniae, Chlamydophila pneumoniae, mas também infecção por VEB ou Legionella.

No caso de hepatite granulomatosa, tuberculose ou outras infecções por micobactérias, salmonelose, leishmaniose visceral, toxoplasmose, brucelose, doença do arranhão do gato, doença de Hodgkin ou sarcoidose devem ser situações a equacionar.

A presença de endocardite deve levar a admitir hipóteses de infecção por Brucella, Bartonella ou ainda por bactérias do grupo HACEK (Haemophilus, Agregatibacter, Cardiobacterium hominis, Eikenella corrodens, Kingella).

Tratamento

Na forma aguda da doença, a doxiciclina (4 mg/kg/dia até máximo de 200 mg/dia) é o fármaco de primeira escolha acima dos oito anos; esta terapêutica deve ser mantida durante 14 a 21 dias e até se verificar apirexia durante pelo menos 3 dias. Como alternativas poderão ser usados os antimicrobianos azitromicina, sulfametoxazol+trimetoprim/cotrimoxazol, cloranfenicol ou fluoroquinolonas (estas últimas somente acima dos 17 anos de idade). A doxiciclina e as fluoroquinolonas não têm formulação pediátrica em Portugal.

Nos casos de febre Q crónica (endocardite e hepatite) deverá associar-se à doxiciclina: a rifampicina, cotrimoxazol ou fluoroquinolonas. A associação entre rifampicina e hidroxicloroquina, de 18 a 36 meses de duração, é a forma adoptada actualmente, sobretudo em adultos.

Nas formas consideradas refractárias, tem sido utilizado o interferão-gama.

Nota importante: na hipótese de diagnóstico feito retrospectivamente, mesmo que a criança esteja assintomática, o esquema de tratamento é igual, tendo como objectivo erradicar a infecção e evitar a cronicidade.

Prognóstico

A mortalidade da febre Q aguda não complicada é inferior a 1%.

Em caso de endocardite, a doença pode ser fatal em 30%-60% dos doentes.

Prevenção

A prevenção compreende essencialmente medidas de higiene de âmbito veterinário e protecção das pessoas que contactam com animais contaminados e seus produtos (matadouros, laboratórios, etc.).

Existe actualmente uma vacina que confere protecção, pelo menos, durante 5 anos, indicada para as pessoas em risco, designadamente para os trabalhadores em matadouros.

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FEBRE ESCARONODULAR

Definição e importância do problema

A febre escaronodular (FEN), designação dada por Ricardo Jorge em Portugal em 1930, também conhecida por febre botonosa ou febre exantemática mediterrânica, é uma doença infecciosa aguda causada pela bactéria Rickettsia conorii.

Trata-se duma zoonose (doença transmitida de animal vertebrado para o Homem), característica dos meses quentes nos países mediterrânicos. Nos últimos anos, especialmente no sul da Europa, parece existir um recrudescimento da doença, provavelmente devido ao maior número de cães nas cidades, à maior mobilidade das populações, bem como às alterções climáticas, e em particular à menor pluviosidade.

Aspectos epidemiológicos

A FEN, a riquetsiose mais frequente nos países do sul da Europa, é especialmente prevalente nos países mediterrâneos desde Espanha até Israel, embora também se verifique em África, Índia e Sudoeste Asiático. Em Portugal, é a zoonose mais prevalente; entre 2010 e 2013 foram declarados 564 casos, na sua maioria entre os meses de Julho e Setembro, dos quais 208 até aos 14 anos (36,8% do total). Todavia, o número real de casos de doença deve ser bem superior, pois a notificação da doença nem sempre é levada a cabo, em especial nos serviços de urgência, local onde o diagnóstico é geralmente realizado.

O maior número de casos verifica-se no Verão e princípio do Outono embora nalgumas regiões a doença possa ser transmitida noutras épocas do ano permitindo, em função das condições climáticas, que o vector se mantenha activo fora da época estival. Refira-se que a carraça somente transmite a infecção se permanecer entre 6-20 horas em contacto com a pessoa, o que acontecerá se as medidas de higiene básica forem precárias.

Etiopatogénese

Rickettsia conorii, o agente infectante, é uma bactéria gram-negativa intracelular obrigatória, com uma forma coco-bacilar que se multiplica por divisão binária. Na bacia mediterrânica o principal vector é o ioxídeo conhecido por carraça do cão (Rhipicephalus sanguineus) em estádios de desenvolvimento diversos – larva, ninfa ou adulto. Os principais reservatórios são os cães, raposas, lebres e outros roedores. Na carraça (a qual funciona também como reservatório), a bactéria pode alojar-se nas células de múltiplos órgãos, incluindo os ovários. O organismo humano constitui um hospedeiro acidental.

A doença transmite-se ao organismo humano pela picada da carraça infectada enquanto esta efectua a sua refeição sanguínea, ou através da contaminação de mucosas com macerados de ioxídeos infectados. Depois da picada, Rickettsia conorii provoca lesão da íntima e a média dos vasos, desencadeando no organismo humano fenómenos de vasculite, com infiltrado perivascular rico em linfócitos e histiócitos. Neste processo inflamatório são notórios: activação das plaquetas, aumento de tromboxano A2, libertação de endotelina e aumento da permeabilidade capilar.

O compromisso dos vasos da derme é responsável pelo exantema característico da doença. A lesão endotelial capilar que pode ocorrer é responsável pela bacteriémia e compromisso doutros órgãos, sendo o pericárdio e o pulmão os mais atingidos. Nestas circunstâncias, podem coexistir pericardite ou pneumonite. Raramente, surgem lesões ao nível do SNC.

No local da picada forma-se uma lesão castanha escura ou escara, denominada tâche noire pelos autores franceses, que é consequência da necrose provocada pelo infiltrado inflamatório oriundo de substâncias produzidas, quer pela R. conorii, quer pela própria carraça. De realçar que a maioria das carraças do cão não está infectada, pelo que o detectar-se uma carraça numa pessoa não implica que a mesma contraia a doença.

Manifestações clínicas

A doença surge após um período de incubação variando entre 4 a 12 dias (em média, cerca de uma semana). Verifica-se um período prodrómico de quatro a cinco dias, semelhante à síndroma gripal, com início abrupto: febre alta (39-40ºC), arrepios, cefaleia intensa, mialgias e prostração; poderá verificar-se também dor abdominal.

Entre o 4º e 6º dia de doença, surge o exantema maculopapular, discretamente nodular, rosado, irregular, com lesões de cerca de 1 a 4 mm, que se inicia pelos membros inferiores e que atinge tipicamente a palma das mãos e a planta dos pés, e que se pode ou não generalizar a todo o corpo. Inicialmente de cor rósea, pode evoluir para purpúrico ou petequial com ulterior evolução para pigmentação residual. Este exantema pode ser pruriginoso e persistir cerca de 15 dias após a regressão dos sinais gerais. (Figura 1)

A lesão de inoculação da carraça, escara ou tâche noire, indolor e raramente pruriginosa, embora patognomónica da doença, nem sempre está presente. Trata-se duma lesão arredondada, de cerca de 1 cm de diâmetro, negra (lesão ulcerosa coberta por escara negra e rodeada por halo eritematoso) que deve ser procurada em qualquer zona do corpo, nomeadamente no couro cabeludo, regiões retroauricular, inguinal ou internadegueira; na criança predomina no couro cabeludo, enquanto nos adultos predomina nos membros inferiores, mas também na cintura (Figura 2). A referida lesão desaparece lentamente em 10 a 20 dias sem deixar cicatriz, e acompanha-se de adenopatia satélite.

No exame objectivo pode ainda ser evidente hepatosplenomegália em cerca de 20% dos doentes. A hepatomegália pode acompanhar-se de discreta elevação do valor das transaminases séricas. Nas crianças anteriormente saudáveis o curso da doença é benigno, ocorrendo resolução do quadro clínico em cerca de 10 a 20 dias.

Complicações

As complicações mais frequentemente descritas, correspondendo ao compromisso possível de qualquer órgão ou sistema, são: cardiovasculares (pericardite, miocardite, arritmia, flebotrombose), respiratórias (pneumonite, derrame pleural), oculares (retinite, uveíte), renais (proteinúria, insuficiência renal), gastrintestinais (gastrenterite, pancreatite, hemorragia digestiva), osteomusculares (artrite), hematológicas (CIVD, anemia e trombocitopénia autoimune, síndroma mononucleósica) e neurológicas (radiculonevrite, meningoencefalite, AVC). Nas formas clínicas de evolução grave e por vezes fatal, poderão surgir vasculite generalizada, insuficiência renal, choque e CIVD.

Como factores predisponentes relevantes das complicações apontam-se a diabetes mellitus e a deficiência em desidrogenase da glucose-6-fosfato.

Exames complementares e diagnóstico

O diagnóstico da FEN é essencialmente clínico. As características do exantema associado ao quadro febril e a sinais gerais conduzem à suspeita do diagnóstico. Se o exame objectivo permitir identificar a tâche noire, o diagnóstico pode considerar-se definitivo.

FIGURA 1. Exantema da FEN. (NIHDE)

FIGURA 2. FEN: lesão de inoculação da carraça (escara). (NIHDE)

O estudo serológico para detecção de anticorpos por imunofluorescência indirecta pode ser conclusivo verificando-se títulos de anticorpos: IgG ≥ 128 e IgM ≥ 32, sendo de referir que somente se verifica positividade na segunda semana de doença. O critério de diagnóstico baseia-se na seroconversão ou no aumento do título (4 vezes) em duas amostras colhidas com intervalo de 2 a 4 semanas (entre a fase aguda e a fase de convalescença), pelo que este exame apenas é útil na confirmação ulterior da doença, não contribuindo para o diagnóstico na fase aguda.

A detecção directa da Riquétsia na fase aguda é possível, quer através do seu isolamento pela técnica de “shell vial”, quer por detecção do genoma da riquétsia – técnica PCR em amostras de sangue ou biópsias de pele (exantema e/ou escara), somente disponível em laboratórios especializados.

A reacção de Weil-Félix, método clássico para pesquisa de anticorpos, é hoje em dia considerada obsoleta por sensibilidade e especificidade baixas.

Regra geral, o hemograma não evidencia alterações significativas. Pode ocorrer anemia hemolítica autoimune, assim como leucopénia, leucocitose e trombocitopénia. A velocidade de sedimentação, assim com as enzimas hepáticas e musculares pderão revelar valores elevados, designadamente nas formas clínicas complicadas.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmentre com outras riquetsioses, primoinfecção por VIH, meningococcémia, infecções víricas exantemáticas (por ex. vírus Coxsackie, sarampo) e toxidermias.

Tratamento

O tratamento precoce é da maior importância por encurtar a duração dos sintomas o que, por sua vez, diminui a probabilidade de complicações.

O antibiótico de eleição é a doxiciclina PO, 4 mg/kg/dia em duas doses (máxima dose diária: 200 mg). A duração do tratamento é de 10 dias, ou até verificação de 2 dias de apirexia na condição de antibioticoterapia com duração mínima de 5 dias.

Como alternativas podem ser utilizados macrólidos PO:

  • azitromicina (10 mg/kg/dia) numa dose diária durante 3 dias; ou
  • claritromicina (15 mg/kg/dia) em duas doses diárias durante 7 dias.

Prognóstico

Na idade pediátrica, o prognóstico da FEN pode considerar-se, em geral, bom, sem sequelas, nomeadamente se não existir doença crónica subjacente.

Prevenção

Com o objectivo de diminuir a probabilidade de picada da carraça podem ser adoptadas determinadas medidas contra reservatórios e vectores e na própria espécie humana:

  • desparasitação de animais domésticos;
  • utilização de repelentes (por ex. N, N-dietil-m-toluamida – DEET) após o 1 ano de idade;
  • cuidados básicos de higiene;
  • nas situações de risco (actividades no campo, por ex.) utilização de roupa branca para mais fácil identificação da carraça; a roupa deverá ficar justa ao corpo para servir de barreira àquela, evitando o seu contacto com a pele.

Se eventualmente for identificada a carraça, deve proceder-se do seguinte modo:

  1. aplicação local de éter ou cloreto de etilo para matar a carraça;
  2. retirar a carraça completamente com pinça fina de bordos finos, sem garras.

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RIQUETSIOSES (excluindo febre escaronodular)

Nomenclatura e importância do problema

Os agentes Riquétsia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias. A ordem Rickettsiales compreende actualmente duas famílias, a família Rickettsiaceae e a família Anaplasmataceae.

A família Anaplasmataceae engloba os géneros Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia.

Por sua vez, a família Rickettsiaceae inclui o género Rickettsia, que se divide em dois grupos: o grupo do tifo, com duas espécies patogénicas para o homem, Rickettsia prowazeki e R. typhi, e o grupo das febres exantemáticas. Actualmente são conhecidas vinte e quatro estirpes de Rickettsia, mas apenas dezassete são responsáveis por doença no Homem.

O impacte mundial destas zoonoses continua a ser considerável devido à sua elevada prevalência em numerosas áreas do globo e à morbilidade a que determinam. Algumas espécies constituem actualmente autênticos paradigmas de agentes patogénicos emergentes. Por outro lado, o interesse geral por este género de microrganismos tem aumentado pela potencial utilização como arma biológica no bioterrorismo.

Etiopatogénese

As Riquétsias crescem livremente no citoplasma das células eucarióticas do hospedeiro (artrópodes ou helmintas), que servem como vectores biológicos para a transmissão ao Homem.

Os referidos agentes microbianos são transmitidos ao Homem por diferentes artrópodes, como piolhos, pulgas, ácaros ou mais frequentemente carraças (ixodídeos).

As Riquétsias do grupo tifo são essencialmente transmitidas:

  • através das fezes do piolho (Pediculus humanus corporis) no caso do tifo epidémico; ou
  • através das fezes da pulga, no caso do tifo murino.

Numa pequena percentagem de casos a transmissão faz-se por contaminação das mucosas (por ex. conjuntiva) e por inalação de aerossóis. O ciclo de vida mantém-se ao infectar espécies de hospedeiros (geralmente mamíferos) e vectores (habitualmente carraças ou pulgas). Com excepção do agente Rickettsia prowazekii, o ser humano constitui um hospedeiro acidental.

Neste capítulo, em obediência à taxonomia actual descrita no início, procede-se à abordagem sucinta das seguintes entidades clínicas:

  1. febres exantemáticas, com excepção da febre escaronodular, riquetsiose com maior expressão no nosso país, onde é endémica;
  2. tifo murino ou endémico;
  3. tifo exantemático epidémico;
  4. erliquiose e anaplasmose.

Cabe salientar que, com excepção das riquetsioses que integram o grupo exantemático, as restantes não estão presentes em Portugal.

Todas as estirpes de Rickettsia têm como alvo as células endoteliais, provocando uma resposta inflamatória por parte do hospedeiro que se manifesta através do aumento de IFN-γ, IFN-α e β que, por sua vez, estimulam a produção de IL-12 e resposta celular T helper tipo 1. As células endoteliais infectadas produzem IL-6, IL-8 e MCP-1.

Esta resposta de fase aguda, que é multifocal, conduz a vasculite disseminada (aumento da permeabilidade vascular, edema, hipovolémia e hipotensão) e a estado procoagulante, com fibrinogénio elevado.

1. FEBRES EXANTEMÁTICAS

Introdução

O grupo das febres exantemáticas, que inclui a espécie R. conorii, engloba a maioria das espécies de riquetsias transmitidas por ixodídeos ou carraças, sendo consideradas patogénicas todas as identificadas em humanos por amplificação de DNA. (Quadro 1)

Todas as riquetsias deste grupo provocam febre, cefaleia e mialgias intensas. Exantema e escara (tache noire) ocorrem na maioria, mas não em todas as riquetsioses do grupo.

A imunofluorescência indirecta (IFA) é a técnica recomendada para o diagnóstico, apesar de existirem outras técnicas para testes serológicos como a ELISA. Contudo, aquela tem a desvantagem de não permitir o diagnóstico em fase aguda de doença e de não identificar a espécie de Rickettsia dentro do mesmo grupo taxonómico.

O tratamento é semelhante para todas e deve ser iniciado imediatamente perante suspeita clínica, após colheita de amostras para diagnóstico, de forma a melhorar o prognóstico.

Quadro 1 – Grupo das Febres Exantemáticas.

Agente Doença Vector
R. rickettsii Febre das Montanhas Rochosas Dermacentor spp., Amblyoma spp., Rhipicephalus spp.
R. conorii sensu stricto (Malish) Febre Botonosa Rhipicephalus spp., Haemaphysalis spp.
Astrakhan fever rickettsia Febre de Astrakan Rhipicephalus punilo
Israeli tick typhus Febre Botonosa de Israel Rhipicephalus spp
R. sibirica Tifo Siberiano Dermacentor spp., Haemaphysalis spp.
R. australis Tifo da carraça de Queensland Ixodes holocyclus
R. honei Febre botonosa das ilhas Flinders Aponoma sp., Ixodes sp.
R. japonica Febre exantemática oriental Haemaphysalis spp., Dermacentor spp.
R. africae Febre da carraça africana
 Amblyomma sp.
R. sibirica monglotimonae Lymphangitis associated rickettsiosis (LAR) Hyalomma asiaticum
R. slovaca TIBOLA, DEBONEL Dermacentor marginatus
R. helvetica Perimiocardite crónica Ixodes ricinus
R. akari Riquetsiose vesicular Liponyssoides sanguineus
R.felis California flea rickettsiosis Ctenocephalides felis

1.1. Febre das Montanhas Rochosas

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

A febre das Montanhas Rochosas (FMR), que não existe em Portugal, é a riquetsiose mais frequente nos EUA. Está presente também no Canadá e América Central e Sul. Nos EUA, é a segunda doença infecciosa transmitida por vectores, logo a seguir à doença de Lyme. Apresenta uma incidência anual crescente (14,3 casos por cada milhão de pessoas em 2012), sendo mais frequente de Abril a Setembro e em crianças abaixo dos 10 anos de idade.

  1. rickettssi, o agente etiológico, é transmitido por várias espécies de carraças, nomeadamente Dermacentor, Rhipicephalus e Amblyomma. Após inoculação, os microrganismos alcançam o endotélio vascular e invadem-no através da interacção entre os lipopolissacáridos da membrana e proteínas da membrana externa das riquétsias (rOmp), permitindo a entrada nas células endoteliais por endocitose.

Uma vez no interior das células, provocam lise do fagossoma, ficando livres no citosol onde provocam polimerização dos filamentos de actina do citoplasma das células hospedeiras, originando a sua invaginação. Os agentes R. rickettsii disseminam-se posteriormente por via hematogénica e linfática.

O mecanismo pelo qual provocam morte celular a nível dos pequenos vasos não é conhecido: está provavelmente relacionado com a acção da peroxidase lipídica, das proteases e de fosfolipase A.

O exame histológico permite evidenciar infiltrados perivasculares linfocíticos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Após um período de incubação de 3 a 12 dias, surge febre alta, de início súbito, associada a mialgias, cefaleia intensa, náuseas, vómitos e anorexia. Outras manifestações menos frequentes incluem irritabilidade, alteração do estado de consciência, dor abdominal, esplenomegália, hiperémia conjuntival e edema periorbitário.

Em cerca de 80% a 90% dos casos surge exantema entre o 2º e o 4º dias de doença: inicialmente macular, podendo evoluir para papular e para petequial; a evolução é centrípeta, com início nos punhos e tornozelos, incluindo palmas e plantas, expandindo-se depois para o tronco, coxas, braços e face. A doença dura geralmente três semanas, com compromisso habitual dos sistemas nervoso central, cardiovascular, pulmonar e renal.

Nas situações graves pode surgir choque e, rararamente, CIVD. São considerados como principais factores de risco a presença de défice de glucose-6-fosfato desidrogenase e o atraso no início da antibioticoterapia.

O diagnóstico é estabelecido por serologia e/ou por detecção de DNA por polymerase chain-reaction (PCR), no sangue ou em tecido, ou ainda por imunopatologia através de biópsia cutânea.

A serologia por imunofluorescência indirecta (IFI) embora continue a ser o método-padrão de diagnóstico, é um método retrospectivo. Nos primeiros 10-15 dias é frequentemente negativa, não excluindo a hipótese diagnóstica em fase aguda. Contudo, serve para confirmação diagnóstica a posteriori.

Para o diagnóstico será necessário comprovar elevação do título 4 vezes no intervalo de 2-4 semanas a partir da fase aguda, ou título > 64 na convalescença; em qualquer fase, título > 128 corresponde a caso suspeito.

A PCR, apesar de dispendiosa, é altamente sensível e específica, permitindo o diagnóstico rápido, antes da seroconversão. Pode ser efectuada no sangue ou em amostra de tecido de biópsia.

Tratamento

A antibioticoterapia de eleição para a FMR é a doxiciclina PO durante 5-7 dias (2,2 mg/kg/dose em duas doses; máximo 100 mg/dose). Nas formas graves com disfunção multiorgânica está indicado internamento em UCIP e doxiciclina EV.

A taxa de mortalidade é mais elevada em crianças com menos de 4 anos (3%-4%).

Prevenção

As medidas principais consistem em prevenir a infestação de animais pelos vectores nas áreas endémicas, protecção da pele com roupa e repelentes contendo DEET (N-dietil-meta-toluamida) e eventual remoção dos vectores da pele. Não existe vacina disponível.

1.2. Linfangite associada a riquetsioses (LAR)

A LAR é provocada por R. sibirica mongolotimonae, isolada pela primeira vez de uma carraça na Mongólia em 1991. Vários casos de infecção por este agente foram entretanto reconhecidos no sul de França, mas também em Portugal, Espanha, Grécia, Argélia e Egipto (bacia do Mediterrâneo) e África do Sul. É transmitida pelos vectores Hyalomma asiaticum (Mongólia), H. truncatum, H. anatolicum excavatum (Grécia) e Rhipicephalus pusillus (Portugal, Espanha, França).

A doença manifesta-se fundamentalmente por linfadenopatia loco-regional e/ou linfangite; em diversos estudos, os sinais mais frequentemente encontrados, por vezes em associação, são assim sintetizados: adenopatia (50% casos), febre (100%), cefaleia (80%), exantema maculopapular, e escara de inoculação (92%) que pode aparecer em vários locais. Habitualmente trata-se duma situação de mediana gravidade, embora haja casos descritos de doença grave com complicações renais e retinianas.

O diagnóstico etiológico é confirmado por PCR utilizando-se tecido da escara (propiciando maior sensibilidade) e sangue periférico.

O tratamento faz-se com doxiciclina durante 5-7 dias, na dose 2,2 mg/kg/dose de 12/12h nas crianças com ≤ 45 kg ou 100 mg de 12/12 horas também, nas crianças com peso superior.

1.3. Linfadenopatia associada a carraça (TIBOLA) ou Linfadenopatia e escara de necrose associada à carraça Dermatocentor (DEBONEL)

A infecção por Riquétsias R. slovaca, R. raoultii e R. rioja resulta na síndroma de linfadenopatia associada a carraças – Tick-borne lymphadenopathy ou TIBOLA, também reconhecida por Dermacentorborne necrosis-eschar-lymphadenopathy ou DEBONEL. Recentemente foi proposto o acrónimo SENLAT como substituto (scalp eschars and neck lymphadenopathy).

Trata-se duma infeção comum nos países europeus (França, Espanha, Itália, Alemanha, Polónia, Hungria e, mais recentemente, em Portugal), mais frequente nos meses mais frios, de Outubro a Abril, transmitida pelos vectores Dermacentor marginatus e D. reticulatus.

A prevalência de infecção por R. slovaca em Dermatocentor spp é elevada na Europa; atingindo o valor de 41% em Portugal, sendo actualmente a segunda riquetsiose mais frequente depois da febre escaronodular, é mais comum nas crianças e mulheres.

Após inoculação e 5 dias de incubação, surge uma lesão em crosta com exsudado cor de mel no couro cabeludo (68%-100%), no local da mordida, que evolui para uma escara necrosada dias depois, associada a linfadenopatia dolorosa occipital e/ou cervical (74%-100%) e a eritema local. Febre e exantema são pouco frequentes (25% e 5% respectivamente). A escara mantém-se durante um ou dois meses, sendo frequente o desenvolvimento de alopécia no local.

A suspeita diagnóstica (pela epidemiologia e manifestações clínicas) é confirmada por seroconversão e/ou por amplificação de DNA por método PCR (utilizando amostra da escara ou sangue periférico).

O tratamento de escolha é a doxiciclina, conforme esquema prévio.

 1.4. Riquetsiose das pulgas

R. felis foi isolada pela primeira vez em 1992 a partir de pulgas de gatos (Ctenocephalides felis). É mais frequente na América do Sul, México e continente africano.

O quadro clínico é ligeiro e semelhante ao do tifo murino (ver adiante), podendo também cursar com exantema maculopapular no tronco, escara e linfadenopatia regional.

De acordo com resultados de exames laboratoriais verifica-se, tal como nas restantes riquetsioses, leucopénia, trombocitopénia e anemia ligeiras. Pode também surgir hiponatrémia, hipoalbuminémia, aumento das transaminases e disfunção renal.

Apesar de a IFA ser recomendada como método de diagnóstico, os anticorpos para R. felis apresentam reactividade cruzada com os anticorpos de R. rickettsii, R. conorii e R. typhi.

Assim, perante suspeita de riquetsiose, deve ser efectuada IFA e, para ulterior identificação da espécie, deve proceder-se a exames Western-Blott, PCR ou cultura (principalmente em doentes com contacto com pulgas de gatos e sem contacto com ratos).

Para o tratamento utiliza-se a doxiciclina, em esquema já descrito anteriormente.

2. TIFO MURINO OU ENDÉMICO

Definição e etiopatogénese

O tifo endémico é uma infecção causada por R. typhi, mais frequente em países em desenvolvimento e em áreas de elevado agregado populacional com proximidade de contacto com ratos. Estes constituem o principal reservatório, sendo a pulga Xenopsylla cheopsis o vector de transmissão da doença. Contudo, outras espécies de pulgas podem estar envolvidas, como a pulga do gato que pode desempenhar um importante papel no ciclo biológico e na transmissão ao Homem.

Actualmente rara em países desenvolvidos, foi identificada pela última vez em Portugal em 1996, em Porto Santo, em cinco doentes hospitalizados.

O mecanismo desta afecção é semelhante ao descrito para R. rickettsii.

 Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

O período de incubação varia entre 6 a 14 dias. Trata-se duma doença de gravidade moderada na idade pediátrica, caracterizando-se por febre, cefaleia, calafrio e mialgias.

Entre o 4º e 7º dias de doença (em média pelo 6º dia) pode surgir exantema macular, maculopapular, ou papular, petequial, ou ainda, morbiliforme. O exantema atinge sobretudo o tronco e extremidades (evolução centrífuga) sendo raro nas palmas, plantas e face. A presença de escara é rara.

A tríade febre, cefaleia e exantema ocorre em menos de 15% dos doentes, razão pela qual, sendo habitualmente de gravidade ligeira, é facilmente subdiagnosticada podendo confundir-se com síndroma gripal.

Em casos graves pode haver envolvimento do sistema nervoso central (confusão, convulsões, coma), renal (IRA), hepático (icterícia), cardíaco (alterações do ritmo) e pulmonar (derrame pleural, insuficiência respiratória).

Os exames laboratoriais evidenciam frequentemente elevação das transaminases e da LDH, hiponatrémia ligeira e hipocalcémia. Pode também cursar com hipoalbuminémia, leucopénia e trombocitopénia precoce.

O diagnóstico é confirmado por métodos moleculares, através da técnica de PCR, ou por serologia, através de IFI (IgM >1/32 e/ou IgG >1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot.

Tal como no grupo das febres exantemáticas, o tratamento de eleição é a doxiciclina em esquema semelhante durante 7 a 14 dias. O cloranfenicol não é actualmente recomendado por se associar a risco de recorrência.

Geralmente o prognóstico é bom.

3. TIFO EXANTEMÁTICO EPIDÉMICO

Definição e importância do problema

O tifo exantemático epidémico, infecção provocada por R. prowazekii, tem sido responsável por um elevadíssimo número de mortes ao longo da história da Humanidade.

Considerada a partir da II Guerra Mundial como uma doença do passado, tem reemergido desde 1995 com pequenos surtos (Rússia 1997, Peru 1998) e com casos esporádicos (África e França).

O ser humano constitui o reservatório, sendo a doença transmitida pelo piolho Pediculus humanus corporis. Afecta todas as idades, sendo que a pobreza e as más condições de higiene favorecem o aparecimento e disseminação da doença.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 10 a 14 dias, a doença tem um início súbito com febre, arrepios, mialgias, cefaleia intensa.

O exantema, maculopapular aparece entre o 4º e 7º dias de doença, nas axilas e posteriormente tronco, com ulterior evolução para a periferia (centrífugo) e para petequial e hemorrágico. Poupa face, palmas das mãos e plantas dos pés.

A escara de inoculação está ausente. As complicações relacionadas com alteração do SNC eram frequentes na era pré-antibiótica (delírio, letargia, coma, convulsões).

A recorrência da doença (designada por doença de Brill-Zinsser) podendo ocorrer anos mais tarde após a infecção primária, tem carácter benigno.

O diagnóstico é confirmado habitualmente por serologia através de IFA (IgM > 1/32 e/ou IgG > 1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot (mais específico e sensível em fase precoce da doença do que a imunofluorescência indirecta). Pode ainda realizar-se PCR com amostra de sangue (rápido e sensível) e exame cultural.

O tratamento de eleição é também a doxiciclina, mas em dose única, 100-200 mg. Cloranfenicol, fluoroquinolonas e macrólidos não são alternativas.

4. ERLIQUIOSES e ANAPLASMOSES

Introdução

Reportando-nos à primeira alínea deste capítulo, cabe referir que todos os membros da família Anaplasmataceae (Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia) são bactérias intracelulares obrigatórias que crescem em vacúolos com origem na membrana celular das células eucarióticas do hospedeiro.

À excepção do género Wolbachia, todas as estirpes têm a capacidade de replicação em hospedeiros vertebrados, sobretudo em células hematopoiéticas.

Tipicamente, os microrganismos Ehrlichia spp infectam células da linhagem leucocitária (monócitos e macrófagos), enquanto Anaplasma spp têm como alvo todas as células hematopoiéticas (eritrócitos, neutrófilos e plaquetas). Destacam-se duas espécies mais frequentemente associadas a doença na espécie humana:

  • a Ehrlichia chaffeensis (Erliquiose humana);
  • a Anaplasma phagocytophilum (Anaplasmose humana granulocítica).

Ao contrário do que acontece nas riquetsioses propriamente ditas, a vasculite é rara, não estando a patogénese completamente esclarecida. Os principais achados anatomopatológicos incluem infiltrados linfo-histiocitários perivasculares, hepatite lobular ligeira, infiltrados de fagócitos mononucleares no baço, e granulomas no fígado e medula óssea. Poderá haver compromisso multiorgânico.

4.1. Erliquiose humana

Definição e epidemiologia

A erliquiose humana é uma infecção provocada pelas espécies do género Ehrlichia: E. chaffeensis, associada à Erliquiose Monocítica (EM); a carraça Amblyomma americanum, rara na Europa e frequente nos EUA, é o vector mais frequente da doença,

Nos EUA a doença apresenta uma incidência crescente, tendo sido verificados 3,2 casos da doença por milhão de pessoas anualmente, entre 2008-2012. Em Portugal, há registos serológicos que apontam para a exposição do homem a E. chaffeensis ou a agentes antigenicamente semelhantes.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 5-10 dias surge, em geral, febre, cefaleia e mialgias; numa minoria, poderão surgir também manifestações graves como hepatite, pneumonia/ARDS, meningite, menigoencefalite ou IRA.

Tipicamente, o exantema de localização variável (macular ou maculopapular, mais comum que o petequial), é menos frequente do que nas riquetsioses propriamente ditas, e mais comum em crianças (67%) do que em adultos.

Os exames laboratoriais evidenciam geralmente leucopénia e trombocitopénia (início pelo 3º dia, nadir pelo 6º dia). Pode haver aumento das transaminases (ALT>AST).

O diagnóstico pode ser confirmado:

  • por visualização directa (detecção de mórulas nos leucócitos do sangue periférico – achado típico mas raro);
  • por detecção molecular de ADN;
  • por serologia (IFI ou Western blot) ou;
  • por cultura.

Habitualmente é estabelecido por serologia (seroconversão ou aumento de 4x nos títulos em duas amostras consecutivas colhidas com um intervalo de 2-3 semanas). Há contudo a referir, que numa fase inicial da infecção, o diagnóstico pode ser efectuado por PCR de sangue periférico ou por isolamento cultural.

A doxiciclina é o tratamento recomendado em primeira linha, durante 5-14 dias segundo esquema habitual, incluindo em crianças com menos de 8 anos (risco baixo de pigmentação dentária com cursos curtos). Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

Nas crianças com menos de 5 anos, a taxa de mortalidade é superior à dos adultos (4% vs 1%, respectivamente).

4.2. Anaplasmose granulocítica humana

Definição e epidemiologia

A anaplasmose granulocítica humana (AGH) é provocada por A. phagocytophilum, transmitida por carraças do género Ixodes, identificada em Portugal nas espécies I. ricinus e I. ventalloi. Ocasionalmente, pode ocorrer coinfecção com doença de Lyme, uma vez que o vector é o mesmo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Esta zoonose manifesta-se habitualmente através de um quadro febril ligeiro, geralmente de prognóstico benigno, acompanhado de sintomatologia inespecífica como arrepios, mal-estar geral, cefaleias e mialgias.

A presença de exantema é rara e habitualmente deve-se a coinfecção por Borrelia burgdoferi (eritema migrans). O exame objectivo habitualmente não revela alterações.

Os exames laboratoriais poderão evidenciar trombocitopénia, leucopénia, aumento das transaminases e/ou hiponatrémia ligeira.

O diagnóstico pode ser confirmado através da visualização de aglomerados de bactérias nos vacúolos citoplasmáticos de granulócitos (achado raro nos doentes Europeus) e/ou por PCR e/ou por serologia, identicamente ao que foi descrito para a erliquiose.

A doxiciclina é o tratamento recomendado, em esquema semelhante ao da erliquiose. Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

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INFECÇÕES POR Chlamydia

Importância do problema

Os agentes Clamídia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias, da família Chlamydiaceae, com capacidade para infectar uma grande variedade de células. O nome Chlamydia deriva da palavra grega “chlamys”, representando a capa ou manto com que se cobriam os homens na Grécia Antiga. Em comparação com tal facto histórico, os cientistas, desde o início, verificaram a existência de “agentes patogénicos” que infectavam células, envolvendo, como uma manta ou capa, o respectivo núcleo.

As referidas bactérias incluem apenas o género Chlamydia, com nove espécies. As três espécies com acção patogénica humana são: Chlamydia trachomatis (causando largo espectro de doenças, com relevância para as infecções do tracto genital, constitui o principal agente patogénico das doenças sexualmente transmissíveis em todo o mundo); Chlamydia pneumoniae – também designada Chlamydophila pneumoniae (provocando doença respiratória); e Chlamydia psittaci (causa da psitacose ou ornitose, considerada uma zoonose com significativo impacte em saúde pública).

De acordo com alguns estudos, C. abortus e C. felis poderão raramente originar infecções em seres humanos. C. pecorum causa doença apenas em porcos, ovelhas e gado, em geral.

A imunidade à infecção por estes agentes microbianos é de fraca duração, razão pela qual são comuns as reinfecções ou a persistência de infecções, particularmente, oculares e genitais.

Ciclo de vida nas células epiteliais

Os agentes Clamídia, evidenciando um ciclo de vida (complexo) nas células epiteliais que se descreve muito resumidamente, apresentam-se com duas formas morfológicas características: – a forma intracelular (ou corpo reticular -CR), representando a forma replicativa; e – a forma intracelular (ou corpo elementar – CE), representando as partículas infecciosas. Estas últimas ligam-se às células do hospedeiro pela interacção de proteínas da membrana externa com os receptores do hospedeiro e, após endocitose, expressam proteínas que impedem a sua fusão com os lisossomas. Posteriormente, diferenciam-se em CR, replicam-se por fissão binária e rediferenciam-se novamente em CE, libertados da célula por lise ou extrusão.

Este capítulo incide fundamentalmente sobre as infecções provocados pelos três agentes mais relevantes. As principais medidas preventivas e o tratamento são abordados no fim, em conjunto, após descrição das três entidades clínicas respectivas.

1. CHLAMYDIA TRACHOMATIS

Etiopatogénese

O agente Chlamydia trachomatis subdivide-se em serótipos associados a largo espectro de doenças. Os serótipos A, B, Ba e C são os dominantes no tracoma; os serótipos de D a K causam infecções do tracto genital, recto, faringe e conjuntiva; e, os serótipos L1, L2 e L3 são responsáveis pelo linfogranuloma venéreo (LGV).

De salientar que, enquanto as infecções pelos serótipos A a K estão, habitualmente, confinadas à mucosa, os serótipos L podem atravessar o epitélio, disseminar-se por via linfática e causar doença sistémica.

Após um período de incubação médio de 10 dias (variável entre 7 e 21 dias), surge uma variedade de manifestações clínicas resultante da resposta inflamatória do hospedeiro e consequente destruição tecidual. Nas infecções oculares e genitais, os plasmócitos estão presentes em número elevado, enquanto na pneumonia predominam eosinófilos e neutrófilos.

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

O agente Chlamydia trachomatis é o patogénio mais comum de transmissão sexual nos países industrializados. Na sua maioria, as infecções por C. trachomatis nos seres humanos são assintomáticas e constituem um reservatório da infecção; sendo a causa de 30% a 50% de casos de uretrite não gonocócica no sexo masculino, é frequente a coinfecção com o gonococo.

Como foi referido antes, é causa das infecções bacterianas sexualmente transmissíveis (IST) mais prevalentes em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, em 2012, cerca de 131 milhões de novos casos entre os 15 e 49 anos, e 128 milhões de prevalentes. A prevalência é maior no sexo feminino (4,2% vs 2,7%), sobretudo, na faixa etária dos 15 aos 19 anos.

Na Europa verifica-se um aumento da incidência destas infecções desde 2004, tendo-se registado 384.555 casos em 2013 nos 26 estados membros do European Center for Disease Prevention and Control (ECDC). Como na maioria dos casos as infecções são assintomáticas, a verdadeira incidência poderá ser subestimada. Dois terços (67%) de todos os casos reportados ocorreram em jovens adolescentes entre os 15 e 24 anos.

O aumento do número de casos poderá ser explicado por maior número de rastreios, melhoria da sensibilidade dos testes de diagnóstico, aumento da notificação dos casos detectados, bem como pelo aumento real da incidência das IST.

Na gravidez, a taxa de infecção cervical por Chlamydia trachomatis varia de 1 a 37%, com mais elevada incidência em idades inferiores a 25 anos. O risco de o recém-nascido de mãe com infecção activa ser infectado é de 50%-75%. Na grávida com infecção activa, a transmissão perinatal de Chlamydia trachomatis ao feto na maioria das vezes tem lugar durante o parto por via vaginal, independentemente de haver ou não ruptura de membranas. Entre os lactentes expostos, cerca de 20%-50% desenvolvem conjuntivite e, 10%-20%, pneumonia.

A infecção por Chlamydia trachomatis adquirida por via perinatal pode persistir meses a anos. Este facto poderá dificultar mais tarde o diagnóstico de possível abuso sexual dada a positividade persistente do agente em amostras vaginais e rectais.

O tracoma, endémico em 42 países de vários continentes (África, América Central e do Sul, Ásia, Austrália e Médio Oriente), é responsável por cegueira ou diminuição da acuidade visual em cerca de 1,9 milhões de sujeitos. O continente mais afectado é o africano.

Manifestações clínicas

Conjuntivite

A infecção por Chlamydia trachomatis constitui a principal causa de conjuntivite neonatal e a principal manifestação neonatal de infecção por Chlamydia em países em que não é feito o rastreio sistemático e tratamento de IST na gravidez, como Portugal.

O período de incubação é 5-14 dias após o parto, ou inferior, se houver ruptura prematura de membranas. Pelo menos 50% dos recém-nascidos com conjuntivite por Chlamydia trachomatis apresentam também infecção nasofaríngea.

O espectro clínico de tal conjuntivite (difícil de distinguir de conjuntivites com outra etiologia) é amplo: pode ocorrer injecção conjuntival ligeira com exsudado mucoso ou, na forma grave, exsudado purulento copioso, quemose e pseudomembranas. O eritema e edema palpebral são frequentes e em dois terços dos casos a infecção é bilateral.

O diagnóstico diferencial com oftalmia gonocócica é difícil pelas semelhanças do tempo de incubação e achados clínicos, mas imprescindível. Tal oftalmia é mais frequente na ausência de vigilância da gravidez, de doença gonocócica prévia, doutras IST ou de história de abuso de drogas ilícitas.

Na maioria dos casos verifica-se resolução espontânea nos primeiros meses de vida, sem repercussão na função visual. Ao contrário do que acontece no tracoma, é rara a evolução para a cronicidade com formação de úlceras da córnea, cicatrizes e tecido de granulação (pannus)

Pneumonia

Aproximadamente, 70% dos recém-nascidos infectados apresentam resultados positivos das culturas da nasofaringe para Chlamydia trachomatis; em cerca de 30% há forte probabilidade de surgimento de pneumonia entre as 4 e 12 semanas de vida.

Clinicamente, a pneumonia cursa com coriza, tosse, taquipneia, apneia nos lactentes mais pequenos e, na auscultação pulmonar, com fervores e ausência de sibilos. Habitualmente não existe febre.

Os achados da radiografia torácica são inespecíficos: sinais de hiperinsuflação, infiltrados bilaterais intersticiais, reticulonodulares; contudo, pode verificar-se normalidade.

Os achados laboratoriais incluem frequentemente eosinofilia periférica (> 300 células/mm3), hipoxemia arterial e aumento das imunoglobulinas séricas. Estes achados, difíceis de distinguir dos associados à pneumonia vírica, implicam a necessidade de valorizar a história clínica. A presença de leucorreia materna durante a gravidez, a existência de conjuntivite anterior às duas semanas de vida e a eosinofilia devem levar à suspeita do diagnóstico de clamidose.

Dum modo geral, a pneumonia é autolimitada, não requerendo internamento.

No que respeita ao prognóstico da pneumonia, importa relatar a possibilidade de surgir mais tarde, em crianças, adolescentes e adultos, alterações na função respiratória, incluindo sibilância recorrente e asma.

Tracoma

O tracoma, endémico no Médio Oriente e Sueste Asiático, é a causa mais importante de cegueira evitável em todo o mundo. A infecção, ocorrendo em idades precoces, pode persistir por vários anos. A mesma é disseminada através de secreções infectadas, pelo que a falta de condições de saneamento e a presença de vectores (moscas) constituem factores de risco de transmissão da mesma.

O quadro clínico corresponde a ceratoconjuntivite folicular crónica (infiltrado de linfócitos, monócitos, plasmócitos e macrófagos), com neovascularização da córnea, secundária a infecção recorrente ou crónica. A cicatrização conjuntival, por vezes exacerbada por sobreinfecção bacteriana, pode levar a entrópio (inversão do bordo palpebral) que, por sua vez, resulta num agravamento do trauma da córnea pela acção traumática dos cílios palpebrais, com ulceração, cicatrização, opacificação e cegueira (entre 1%-15% dos pacientes) após a doença activa.

A OMS sugere um sistema de classificação simples para as manifestações clínicas do tracoma: 1) tracoma folicular, definido pela presença de pelos 5 folículos na zona central da conjuntiva tarsal superior, indicativos de doença activa; 2) inflamação intensa tracomatosa, caracterizada pelo espessamento inflamatório pronunciado e hipertrofia papilar da conjuntiva tarsal superior; 3) cicatrização tracomatosa, implicando a presença de linhas ou bandas brancas na conjuntiva tarsal, correspondente a doença passada; 4) triquíase, caracterizada pela inversão de, pelo menos, um folículo piloso em contacto com o globo ocular; 5) opacidade da córnea.

Infecções genitais

Este tipo de infecções pode ser sistematizado do seguinte modo: vaginite nas mulheres pré-púberes, uretrite e epididimite no sexo masculino, e uretrite, cervicite, endometrite, salpingite e peri-hepatite (síndroma de Fitz-Hugh-Curtis) nas mulheres pós-púberes. Nestas últimas, a infecção pode originar doença inflamatória pélvica, gravidez ectópica ou esterilidade.

A infecção por Chlamydia trachomatis tem um pico de incidência no sexo feminino, entre os 15 e 19 anos. A discrepância entre sexos parece estar relacionada com uma susceptibilidade aumentada da mulher a este agente e pelo rastreio mais eficaz nas raparigas adolescentes. A reinfecção é muito comum, ocorrendo em cerca de 40% dos casos dentro de 9 meses, habitualmente por parceiros não tratados.

A uretrite por C. trachomatis no sexo masculino origina um exsudado predominantemente mucóide, enquanto na causada por gonococo o exsudado é purulento.

Linfogranuloma venéreo

O LGV é uma IST causada pelos serótipos L1 a L3 de Chlamydia trachomatis, endémicos em regiões tropicais e subtropicais. Recentemente tem-se assistido ao ressurgimento desta infecção na Europa e EUA no contexto de homossexualidade masculina.

Sucintamente, manifesta-se por infecção linfática invasiva com lesão ulcerosa inicial nos genitais e linfadenopatias inguinais dolorosas, supuradas e unilaterais. Pode surgir infecção anorrectal ou proctocolite.

Pormenorizando, importa distinguir três estádios definidos:

  1. infecção local – pápula, pústula ou úlcera genital ou rectal não dolorosa, pequena, que não deixa cicatriz (estádio primário);
  2. disseminação regional (estádio secundário) e;
  3. lesão tecidual com regressão ou possíveis sequelas (estádio terciário).

Cerca de 2 a 6 semanas após a lesão do estádio primário, surge linfadenopatia aguda inguinal unilateral e dolorosa, designada por “bubão”. Se a lesão do estádio primário for rectal, pode ocorrer proctite aguda hemorrágica ou dor abdominal ou lombar devido ao envolvimento dos gânglios retroperitoneais e pélvicos.

O estádio secundário é habitualmente acompanhado de sintomatologia sistémica, como febre, mialgias e cefaleias. Em 1/3 dos casos associados a surgimento de bubões poderá verificar-se drenagem espontânea; nos restantes, involução lenta.

Na maioria dos casos há regressão da doença no estádio terciário. Contudo, numa minoria, surge infecção anorrectal persistente, desenvolvendo-se uma inflamação crónica e fibrose, com diversas consequências: úlceras genitais crónicas, fístulas, estenoses rectais e elefantíase genital.

Diagnóstico

O método diagnóstico de referência da infecção por Chlamydia trachomatis em lactentes e crianças é o exame cultural. Segundo o CDC, pretende-se o isolamento do microrganismo em cultura de tecidos e confirmação ulterior através da identificação, por microscopia, das inclusões citoplasmáticas típicas. As amostras, que podem ser conjuntivais, nasofaríngeas, vaginais ou rectais, devem conter epitélio colunar da mucosa em vez de exsudado.

A citologia é utilizada principalmente para o diagnóstico de conjuntivite. As inclusões citoplasmáticas de Chlamydia trachomatis contêm glicogénio, o qual pode ser identificado com a coloração Giemsa nos raspados conjuntivais em 90% das crianças com conjuntivite. Nas situações de tracoma, tal identificação é viável apenas em 10% a 30% dos casos.

A técnica de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) é um instrumento com sensibilidade e especificidade elevadas para o diagnóstico de infecções genitais.

Existem actualmente três testes disponíveis e aprovados pela FDA: polymerase chain reaction, transcription-mediated amplification e strand displacement amplification. A sua utilização em crianças ainda não se encontra aprovada, embora os dados disponíveis sugiram que existe equivalência com o exame cultural em amostras conjuntivais e nasofaríngeas de crianças com conjuntivite.

Outro método de diagnóstico, com sensibilidade e especificidade elevadas, e que pode ser utilizado em amostras de esfregaços conjuntivais ou faríngeos, é constituído pelos testes directos com anticorpos fluorescentes utilizando anticorpos monoclonais conjugados com fluoresceína para identificação de antigénios.

O estudo serológico classicamente tem indicação em estudos populacionais.
Contudo, é útil no diagnóstico do LGV e da pneumonia neonatal. De salientar que a técnica serológica de referência é a microimunofluorescência (MIF). Um título de IgM igual ou > 1:32 considera-se com valor diagnóstico de pneumonia neonatal.

2. CHLAMYDIA (CHLAMYDOPHILA) PNEUMONIAE

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

Chlamydia (Chlamydophila) pneumoniae é uma causa frequente de infecção respiratória na idade escolar e na adultícia jovem (tal como o agente Mycoplasma). Transmite-se de pessoa para pessoa através de secreções infectadas do tracto respiratório, sendo desconhecido qualquer reservatório animal. A infecção inicial ocorre mais frequentemente entre os 5 e 15 anos de idade, sendo a recorrência comum.

Podendo eliminar-se até cerca de 1 ano após a infecção, verifica-se uma frequência de colonização na idade escolar da ordem de 5% a 25%, e uma incidência muito aproximada de 100 casos por 100.000 habitantes.

Com um período de incubação médio de 21 dias, de acordo com diversos estudos, a infecção respiratória por C. pneumoniae tem sido associada a hiperreactividade brônquica.

Diversos estudos têm sugerido um papel importante do agente C. pneumoniae na patogénese da doença cardiovascular aterosclerótica com base numa prevalência elevada de anticorpos anti-C. pneumoniae nos doentes com tal patologia. Contudo, não está provado cientificamente o benefício da utilização de antibioticoterapia, quer quanto à redução da placa aterosclerótica, quer quanto à redução significativa de eventos coronários.

Manifestações clínicas

As infecções por C. pneumoniae são em geral assintomáticas ou associadas a manifestações ligeiras. Incluem uma variedade de nosologias, mais frequentemente, pneumonia e bronquite e, menos frequentemente, faringite, laringite, rinossinusite e otite média aguda.

Caracterizada por febre, mal-estar, cefaleia, tosse e faringite, o curso da doença é prolongado, podendo a tosse persistir até 2 a 6 semanas, e apresentar uma evolução bifásica.

O quadro clínico de pneumonia, com roncos, fervores e sibilâncias, é semelhante ao da infecção por Mycoplasma. Nos casos de crianças com doença das células falciformes, poderá surgir forma grave acompanhada de síndroma torácica aguda. A radiografia torácica, inespecífica, pode evidenciar sinais de infiltrado hilífugo bilateral.

Como manifestações extrapulmonares têm sido descritas as seguintes situações: eritema nodoso, irite, meningoencefalite, síndroma de Guillain-Barré, artrite reactiva e miocardite.

A coinfecção por Streptococcus pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e vírus respiratórios é frequente.

Diagnóstico

Não existe nenhuma prova completamente confiável para o diagnóstico desta infecção.

O diagnóstico laboratorial específico consiste no seu isolamento em cultura a partir de amostras de secreções obtidas por zaragatoas da nasofaringe posterior; podem também ser utilizadas amostras de expectoração, lavado broncoalveolar ou líquido pleural.

As TAAN baseadas na reacção em cadeia da polimerase (PCR) em tempo real evidenciam sensibilidade e especificidade elevadas. Contudo, na fase actual não estão comercializadas.

O método serológico por microimunofluorescência (MIF) é o mais sensível e específico. Para o diagnóstico de infecção aguda estão definidos os seguintes critérios: um título de IgM igual ou superior a 1:16, ou um aumento 4 vezes do título de IgG.

Na infecção primária:

  • a IgM surge aproximadamente 2 a 3 semanas após o início da infecção e;
  • a IgG não atinge o pico máximo antes das 6 a 8 semanas.

Importa salientar que a terapêutica antimicrobiana precoce poderá suprimir a resposta imunológica.

3. CHLAMYDIA PSITTACI

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

Chlamydia psitacci é o agente etiológico da psitacose (ou doença dos papagaios – por afectar os papagaios) e ornitose (doença infecciosa que afecta outras aves como galinhas, pombos, perus, araras, patos).

As aves são, pois, o principal reservatório de Chlamydia psittaci, embora tal microrganismo também possa infectar mamíferos, como ovelhas, cabras, gado e gatos.

Estas clamidoses constituem, assim, um perigo biológico para a saúde humana e uma ameaça económica à indústria avícula.

O período de incubação, variando entre 5 a 14 dias, pode ser mais prolongado.

Trata-se de doenças de distribuição mundial, esporádicas, podendo, contudo, surgir em surtos. A infecção é adquirida habitualmente pela inalação de aerossóis de secreções respiratórias, oculares, ou de fezes ou urina, dos animais infectados.

Os indivíduos com maior risco são trabalhadores em explorações avículas, matadouros de aves e funcionários de lojas de animais. A importação e tráfico ilegal de aves exóticas estão associados a um aumento da incidência porque a infecção, habitualmente no estado latente, é activada por factores de estresse como sobrelotação, subnutrição, transporte ou outras infecções provocadas por outros microrganismos. Pode também ser transmitida a partir de animais assintomáticos, com sintomatologia ligeira ou durante longos períodos após a recuperação da doença. A transmissão entre pessoas não foi demonstrada.

Na idade pediátrica, a infecção é rara. Entre 1990 e 2008 foram reportados ao CDC 756 casos de psitacose, com uma proporção de 9% em idade inferior a 20 anos.

Manifestações clínicas

Esta clamidose (que pode ser assintomática) manifesta-se habitualmente com sinais de infecção respiratória aguda associada a sintomatologia sistémica, de grau variável, incluindo febre, tosse não produtiva, cefaleia, mialgias, calafrios, diarreia, vómitos e hepatomegália.

Através do exame objectivo comprova-se eritema faríngeo, fervores crepitantes ou outras alterações da auscultação pulmonar.

A radiografia do tórax poderá evidenciar sinais de infiltrados exuberantes, em desproporção com os sinais auscultatórios verificados; em tais circunstâncias, o quadro clínico-radiológico é compatível com pneumonia atípica.

Raramente poderão surgir complicações, como eritema nodoso, pericardite, miocardite, endocardite, tromboflebite superficial, hepatite e encefalite.

Em suma, e na prática, o diagnóstico desta clamidose pode ser admitido em face da verificação de febre, cefaleia, mialgias e tosse seca num paciente em contacto com aves.

Diagnóstico

Dado que o exame cultural (do sangue ou de amostras respiratórias – expectoração ou líquido pleural) somente está disponível em laboratórios especializados, o diagnóstico de psitacose/ornitose é estabelecido fundamentalmente com base:

  • em provas serológicas; de preferência, recomenda-se a detecção de anticorpos por MIF, requerendo-se um aumento 4 vezes dos níveis de IgG- idealmente em intervalo de 4-6 semanas-, ou valores de IgM ≥ 32. Em alternativa, a prova de fixação do complemento. De salientar que o tratamento antimicrobiano poderá retardar ou diminuir a resposta imunológica.
  • detecção de ADN de Chlamydia psittaci por PCR.

Tratamento e prevenção das clamidoses descritas

A seguir, são descritas, de modo sucinto e encadeado, as principais bases do tratamento e da prevenção.

Tratamento

No que respeita ao tratamento antimicrobiano, o Quadro 1 integra o esquema a utilizar em cada entidade clínica (referindo-se que existem variantes de actuação descritas na literatura científica): são considerados respectivamente os fármacos de eleição, e as alternativas, estas últimas, designadas antes do nome por “Ou”.

QUADRO 1 – Bases do tratamento antimicrobiano das infecções por Chlamydia.

Notas importantes
A: até aos 45 kg, eritromicina na mesma dose que para a pneumonia do lactente; se mais de 45 kg, mas menos de 8 anos, indicada azitromicina, 1 grama, em dose única.
B: contraindicação na grávida.
C: na gravidez e em menores de 8 anos.
Abreviatura- po: per os
*Relativamente ao tracoma, para além do tratamento antimicrobiano, a OMS preconiza a chamada estratégia denominada SAFE (sigla de Surgery, Antibiotics, Facial cleanliness, Environmental improvements) tendo em vista a sua erradicação. A cirurgia, reservada para os casos de triquíase, é de extrema importância na prevenção da amaurose.
Por outro lado, estando bem estabelecida a relação entre a prevalência de tracoma em determinada área e as respectivas condições de vida dos habitantes, a correcta higiene corporal (designadamente a correcta limpeza da face, com especial realce nas crianças), o acesso a água potável e o saneamento adequado tornam-se imprescindíveis com vista à erradicação desta infecção.

→ C. trachomatis

Conjuntivite do RN e pneumonia do lactente
Eritromicina: 50 mg/kg/dia po, 4 doses, 14 dias,
Ou Azitromicina: 20 mg/kg/dia po, 1 dose, 3 dias (efeito idêntico à eritromicina)
NB- Risco de estenose hipertrófica do piloro em lactentes com < de 6 semanas, tratados com eritromicina.

Tracoma*
Eritromicina ou tetraciclina tópicas, 2 doses/dia, 2 meses, ou 5 dias/mês, 6 meses
Azitromicina: 20 mg/kg/semana em dose única po (máx. 1 g), 3 semanas,
Ou Doxiciclina (se > 8 anos): 4 mg/kg/dia po 2 doses, 40 dias. OMS prefere azitromicina para formas graves

Infecções genitaisA
Doxiciclina (se > 8 anos)B: 4 mg/kg/dia po 2 doses (máx. 200 mg/dia), 7 dias
Azitromicina: 1 g em dose única po,
Ou Eritromicina base: 2 g/dia ou Eritromicina etilsuccinato: 3,2 g/dia po (em 4 doses),
Ou OfloxacinaB: 600 mg/dia em 2 doses ou Levofloxacina: 500 mg/dia po, 7 dias

Na grávida
Azitromicina: 1 g em dose única po,
Amoxicilina: 1,5 g/dia po em 3 doses, 7 dias
Ou Eritromicina base: 2 g/dia po em 4 doses, 7 dias

Linfogranuloma venéreo (LGV)
Doxiciclina: 200 mg/dia po em 2 doses, 21 dias,
Ou Eritromicina base: 2 g/dia po em 4 doses, 21 dias ou Azitromicina: 1 g/semana po, 3 semanas

→ C. pneumoniae
Pneumonia atípica
Eritromicina base ou Eritromicina etilsuccinato: 50 mg/kg/dia po em 4 doses, 14 dias,
Ou Azitromicina: 20 mg/kg/dia, em dose única po, 3 dias
Doxiciclina (se > 8 anos): 2-4 mg/kg/dia po em 2 doses (máx. 200 mg/dia), 10-14 dias
→ C. psittaci
Psitacose
Doxiciclina (se > 8 anos): 4 mg/kg/dia po em 2 doses (máx. 200 mg/dia), (mínimo de 10 dias e até mais 10-14 dias após remissão da febre,
Ou AzitromicinaB ou Eritromicina nos casos de gravidez ou de idade < 8 anos

Medidas preventivas

No que respeita às principais medidas preventivas, dá-se ênfase às que se relacionam com infecções por C. trachomatis e C. psittaci.

C. trachomatis

Relativamente à profilaxia da conjuntivite por C. trachomatis, a OMS recomenda, a todos os recém-nascidos, profilaxia ocular tópica com uma das seguintes opções, escolhidas com base nos padrões de resistência locais: – aplicação tópica em ambos os olhos, imediatamente após o parto de cloridrato de tetraciclina 1%, ou eritromicina 0,5%, ou cloranfenicol 1%, ou solução de iodopovidona 2,5%, ou nitrato de prata 1%; quanto à aplicação tópica dos dois últimos compostos (incluindo iodo e prata, respectivamente), os resultados de diversos estudos demonstram que existe um benefício superior ao risco, de possível desenvolvimento de conjuntivite não-infecciosa.

De referir, contudo, que alguns autores desaconselham profilaxia tópica em RN de mães infectadas.

Quanto à prevenção das infecções genitais no âmbito de população com comportamento de risco, sintetizam-se as seguintes normas gerais:

  • os parceiros sexuais (contacto de parceiro aparentemente saudável com outro doente ou suspeito) devem ser avaliados e tratados em caso de relações dentro do período de 60 dias precedendo o início dos sintomas;
  • havendo contacto de parceiro doente com parceiro saudável, recomenda-se ulteriormente abstenção de relações por período mínimo de 7 dias, quer após regime de tratamento antimicrobiano com dose única de 1 dia, quer após esquema de tratamento diário durante 7 dias;
  • rastreio anual de C. trachomatis (ou com maior frequência em função do grau de comportamento de risco dos parceiros) incidindo designadamente sobre: – adolescentes do sexo feminino, sexualmente activas; – todas as mulheres entre 20-25 anos; – todas as mulheres com > 25 anos com comportamentos de risco.
 C. psittaci

Antes de sistematizar as principais medidas de contenção da clamidíase provocada por esta bactéria (medidas com particularidades, podendo variar em países ou regiões), e incidindo essencialmente sobre pessoas que lidam com aves (por ex. em aviários, na criação e transporte de aves) importa salientar que tal agente, vulnerável ao calor e à maior parte dos desinfectantes e detergentes, é resistente aos ácidos e alcalis:

  • identificação das fontes de infecção, divulgando ulteriormente o facto junto do pessoal exposto;
  • nos actos de compra e venda de aves, assim como na exposição em eventos ou feiras, as mesmas deverão ser isoladas nos 30 a 45 dias anteriores, para vigilância, eventuais análises e/ou tratamento profiláctico, sob tutela do médico-veterinário;
  • higiene rigorosa quanto ao manuseamento de material fecal e comida das aves, evitando contacto directo;
  • formação do pessoal envolvido, com chamada de atenção para sinais de alerta de doença nas aves, tais como exsudado ocular, dejecções diarreicas, défice ponderal, etc.;
  • uso de fato para isolamento e de máscaras, próprios (a clássica máscara cirúrgica é insuficiente) nos casos de contactos com aves doentes com indicação de tratamento, as quais deverão ser isoladas durante 45 dias.

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INFECÇÕES POR Mycoplasma

Sistematização e importância do problema

Os agentes Mycoplasma, um género de bactérias sem parede celular, são os mais pequenos procariotas conhecidos que causam doença na espécie humana. Pelas dimensões (50-250 nm), aproximam-se mais dos vírus do que das bactérias. Trata-se de Gram-negativos com forma muito variável, dependentes da ligação a células do hospedeiro para obtenção de precursores essenciais como nucleótidos, ácidos gordos, esteróis e aminoácidos. Possuem um único genoma e ADN circular, de dupla cadeia (5×108 daltons). A ausência de parede celular rígida reflecte-se no aparecimento de morfologia variável ou pleiomorfismo (cocobacilar, filamentosa ramificada, etc.). Possuem, contudo, uma membrana citoplásmica trilaminar.

Das 16 espécies de Mycoplasma isoladas da espécie humana, M. pneumoniae é o principal agente de infecções respiratórias em crianças de idade escolar, adolescentes e jovens adultos.

Ureaplasma constitui outro género que se integra nos Mycoplasmas genitais.

1. INFECÇÕES POR Mycoplasma pneumoniae

Aspectos epidemiológicos

As infecções por este microrganismo são endémicas nas grandes comunidades, podendo ocorrer surtos epidémicos em ciclos cada 3-7 anos. Esporádicas nas pequenas comunidades, podem ocorrer surtos epidémicos irregularmente no tempo.

Trata-se de patologia pouco frequente antes dos 3 anos, de expressão clínica tanto mais ligeira quanto mais baixa a idade, e pico de incidência na idade escolar. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, explica entre 7%-40% das pneumonias adquiridas na comunidade dos 3-15 anos.

Com um período de incubação ~ 1-3 semanas, ocorre através da contaminação por gotículas respiratórias, sobretudo em comunidades ou instituições de grande concentração de pessoas, em ambiente fechado.

Etiopatogénese

As células do epitélio respiratório ciliado são o alvo dos microrganismos às quais estes se ligam através de junção de glicoproteína ou glicolípido sulfatado, penetrando nelas depois, e em cujo citoplasma sobrevivem; como consequência verifica-se citólise (em parte explicável por toxina ou pela produção de peróxido de hidrogénio), disfunção ciliar e, ulteriormente, destacamento ou “descamação” celular.

Acrescenta-se que o agente pode actuar sobre células de outros aparelhos e sistemas, determinando também sintomatologia decorrente de tal acção, cujo mecanismo não está completamente esclarecido.

Como efeito da acção (complexa) do microrganismo verifica-se activação policlonal dos linfócitos B e de células T CD4+, o que por sua vez amplifica a resposta imune com libertação de várias citocinas pró-inflamatórias e anti-inflamatórias, interferões vários, TNF-alfa e outras citocinas. Como resposta do hospedeiro agredido surgem diversas reacções de imunidade celular e anticorpos que o protegem ou contribuem para a cura.

De salientar que situações crónicas de hipogamaglobulinémia, drepanocitose ou síndromas de imunodeficiência primária predispõem a infecções respiratórias de maior gravidade. Todavia, M. pneumoniae não se comporta como agente oportunista em doentes com síndroma de imunodeficiência adquirida.

M. pneumoniae pode ser detectado por reacção da polimerase em cadeia (PCR) em diversos locais extra tracto respiratório, tais como sangue, líquido pleural, LCR e líquido sinovial. Este facto aponta para a possibilidade de o efeito ao nível de diversos territórios se relacionar, mais com acção directa da invasão do agente, do que com mecanismo imunológico.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações do tracto respiratório, este tópico foi abordado na Parte XIV, capítulo sobre Pneumonia, cuja Figura 1 mostra o respectivo padrão de pneumonia.

Quanto às manifestações extrapulmonares (que podem surgir antes, durante, ou depois das manifestações respiratórias e, inclusivamente, em doentes sem manifestações respiratórias, e outrora consideradas complicações), pode proceder-se à seguinte sistematização:

  • gastrintestinais (gastrenterite, hepatite colestática, pancreatite, gastropatia hipertrófica com perda de proteínas, elevação das transaminases, etc.);
  • génito-urinárias (nefropatia por IgA, glomerulonefrite aguda, nefropatia tubulointersticial, insuficiênca renal, etc.);
  • dermatológicas (eritema nodoso, exantema maculopapuloso, urticária, síndroma de Stevens Johnson, eritema multiforme, etc.);
  • músculo-esqueléticas (artromialgias, miosite aguda, síndroma símile febre reumática “sem cardite”, etc.);
  • cardiovasculares (pericardite, miocardite, endocardite, etc.);
  • oculares (conjuntivite, uveíte, retinite, iridociclite, etc.);
  • neurológicas (meningite asséptica, meningoencefalite, paralisia de pares cranianos, ataxia cerebelosa, síndroma de Guillain-Barré, etc.); quanto à encefalite ocorrendo dentro de 5 dias após início dos sintomas prodrómicos, a mesma poderá ser devida a invasão directa do SNC; se ocorrer para além de 7 dias após início daqueles, tratar-se-á provavelmente de encefalite por mecanismo autoimune;
  • hematológicas (crioaglutininas IgM, trombocitopénia, púrpura trombocitopénica trombótica, CIVD, anemia aplástica, anemia hemolítica com prova de Coombs positiva e reticulocitose cerca de 2-3 semanas após início da doença – a hemólise grave, rara, pode ser documentada por determinação do título de hemaglutininas frias (> 1/512).

Diagnóstico

  1. Na forma clássica de infecção do tracto respiratório, o diagnóstico etiológico pode fazer-se através do exame cultural de secreções da faringe ou expectoração, método que não permite resposta rápida (~ 1 semana). A sensibilidade desta prova é baixa, estando em desuso.
  2. Considerando a infecção por M. pneumoniae na perspectiva global (formas respiratórias e extrarrespiratórias), cumpre salientar as seguintes provas:
    • provas serológicas, sendo que a mais popular e exequível é a da fixação do complemento; título (elevado) de anticorpos IgG anti- M. pneumoniae com subida 4 vezes no período entre 10 dias e 3 semanas é sugestivo da respectiva infecção; a detecção de IgM específicas por imunofluorescência não distingue entre infecção aguda e infecção recente anterior;
    • determinação de anticorpos IgM/crioaglutininas dirigidos contra antigénio I dos eritrócitos, em desuso, por sensibilidade e especificidade baixas;
    • técnicas de PCR a partir de exsudado da naso ou orofaringe e doutros produtos biológicos (ver atrás) é a prova de eleição, rápida, com sensibilidade e especificidade entre 80% e 100% sempre que se necessita de confirmação microbiológica.

Tratamento

Para além de medidas gerais descritas antes relativamente às formas clínicas do tracto respiratório, cabe referir que a medida mais efectiva para a erradicação de M. pneumoniae é a antibioticoterapia com claritromicina ou azitromicina. Verificando-se surtos em instituições, é recomendada a profilaxia dos contactos com azitromicina, designadamente nas situações predisponentes atrás descritas (hipogamaglobulinémia, drepanocitose, etc.).

Contudo, nas formas extrarrespiratórias, apenas parece ser consensual entre especialistas antibioticoterapia nos casos de artrite, doentes imunodeprimidos, compromisso cardíaco ou hemólise. Nas formas neurológicas, tendo em conta a importância do mecanismo imunológico, a antibioticoterapia é controversa, embora se admita o papel do macrólido como imunomodulador; nalguns centros propõe-se a utilização de antibioticoterapia com levofloxacina, corticóides e de imunoglobulina intravenosa.

 Complicações

As complicações neurológicas (que surgem, em média 10 dias após doença respiratória) incluem meningoencefalite, mielite transversa, meningite asséptica, ataxia cerebelosa, paralisia de Bell, surdez, encefalite desmielinizante aguda e síndroma de Guillain-Barré; contudo, podem surgir sem doença respiratória prévia em cerca de 20% dos casos.

Prognóstico

As infecções fatais são raras. Com o desenvolvimento da tecnologia da imagem (TAC de alta resolução) demonstrou-se numa baixa percentagem de crianças pequenas com antecedentes de doença pulmonar por M. pneumoniae: espessamento da parede brônquica, alterações da perfusão pulmonar e bronquiectasias. Em geral há recuperação completa com excepção no respeitante às sequelas de encefalite.

2. INFECÇÕES por OUTRAS ESPÉCIES de Mycoplasma

As três espécies M. hominis, M. genitalium e Ureaplasma urealyticum são patogénios humanos urogenitais; colonizam o tracto genital feminino, podendo originar corioamnionite, colonização dos RN e infecção perinatal. Estão muitas vezes associadas a infecções sexualmente transmitidas, tais como uretrite não gonocócica.

Duas outras espécies de Mycoplasma genitais (M. fermentans e M. penetrans) podem ser isoladas de secreções, quer do tracto respiratório, quer do tracto genital, com maior frequência em doentes com infecção por VIH.

Os restantes membros são provavelmente saprófitas, excepto em circunstâncias invulgares, como é o caso de M. salivarium, associado a artrite na hipogamaglobulinémia.

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LEPTOSPIROSE

Definição e importância do problema

A leptospirose é uma zoonose sistémica aguda e febril com espectro clínico muito variável, provocada por um grupo de espiroquetas, móveis e aeróbios, do género Leptospira, o qual possui espécies com mais de 300 serótipos de virulência variável.

Na Europa, os serótipos mais comuns são L. icterohaemorrhagiae, L. canicola, L. pomona, L. hebdomadis e L. ballum. A Leptospira biflexa engloba mais de 60 serótipos não patogénicos. A correlação dos serótipos referidos com síndromas específicas é impossível dada a variedade da patologia que pode ser produzida por cada serótipo.

De distribuição universal, é a zoonose mais frequente. Contudo, a sua distribuição geográfica é muito variável, a qual depende, sobretudo, da maior ou menor abundância de vectores e do nível sanitário das populações.

Aspectos epidemiológicos

Está descrita variação sazonal na frequência de leptospirose. Com efeito, precipitação de chuvas e inundações, facilitando a acumulação de água contaminada, podem dar origem a surtos epidémicos.

A doença é cerca de 10 vezes mais prevalente em zonas tropicais do que em climas temperados e em ambientes pobres, sem saneamento.

A leptospirose é uma doença de notificação obrigatória. Em Portugal foram declarados 124 casos entre 2010-2013, dos quais apenas um corresponde a idade inferior a 15 anos.

O melhor conhecimento da epidemiologia da leptospirose e a introdução de antibióticos determinaram que praticamente tenha desaparecido de zonas, onde há décadas, era uma doença frequente e grave.

Etiopatogénese

Em geral, o ser humano contamina-se a partir do contacto com água, lama ou alimentos contaminados. A porta de entrada é geralmente a pele ou as mucosas com lesões (oral, ocular, esofágica e nasofaríngea).

O contágio directo através do sangue, por contacto com tecidos ou órgãos de animais infectados (por exemplo em acidentes de laboratório), é mais raro. O leite materno pode igualmente transmitir a doença.

Foram também descritos casos de transmissão vertical, por ingestão ou inalação.

O agente Leptospira infecta um grande número de animais, quer domésticos, quer selvagens, sendo o rato a principal fonte de infecção humana. Nestes animais (reservatórios), o serótipo determina o quadro clínico, variando entre doença fatal e portador crónico, assintomático.

A bactéria é excretada na urina, líquido amniótico e placenta dos animais infectados, permanecendo viável na água e solo durante meses nos climas temperados. Especificando, L. icterohaemorrhagiae é eliminado pela urina do rato, L. canicola pela urina do cão e L. pomona pela urina do porco.

O microrganismo, entrando em circulação, pode atingir todos os órgãos. As manifestações clínicas são secundárias a lesões em estruturas microvasculares (vasculite generalizada com lesão das células endoteliais dos pequenos vasos) produzindo, designadamente, aumento da permeabilidade capilar, microcoagulação local, edema, hipóxia-isquémia em órgãos-alvo e hipovolémia.

Posteriormente, ao mesmo tempo que os microrganismos desaparecem no sangue e LCR, aparecem anticorpos circulantes IgM, verificando-se deposição de Leptospiras em diversos órgãos, assim como de imunocomplexos (designadamente no rim/túbulos renais e humor aquoso/globo ocular, conduzindo a lesão funcional em consequência de infiltrados inflamatórios e necrose. Este quadro anatomofisiológico poderá persistir durante várias semanas.

Manifestações clínicas

O espectro de manifestações clínicas da leptospirose na espécie humana varia entre:

  • infecção assintomática ou doença ligeira (90% dos casos); e
  • doença grave (10% dos casos), caracterizada por disfunção multiorgânica, com letalidade > 5%.

Após um período de incubação médio de 7 a 15 dias (podendo variar entre 2 e 30 dias), a doença evolui em duas fases, respectivamente: a inicial (septicémica/com leptospirémia) e a tardia, imune ou de localização (com leptospirúria). Trata-se, pois, duma doença bifásica.

Assim, a fase inicial, septicémica, com duração de 3-7 dias, caracteriza-se por manifestações de doença febril aguda com sintomatologia inespecífica: febre alta, calafrio, cefaleias, mialgias intensas dos gémeos e região lombar (80% dos casos), náuseas, vómitos, injecção conjuntival sem exsudado (30%-40%), exantema no tronco, adenomegálias generalizadas e hepatosplenomegália.

Na fase seguinte (imune), com duração até várias semanas, atenuam-se os sintomas iniciais, diminui a febre e passam a ser notórios sinais e sintomas de localização traduzidos sobretudo por meningite asséptica e nefrite intersticial mais frequentemente, e por síndroma de Guillain-Barré, neuropatia, colecistite e pneumopatia, menos frequentemente. Apesar da presença de anticorpos circulantes, Leptospiras podem persistir nos tecidos e órgãos, designadamente, rim, urina e humor aquoso. Pode também surgir uveíte com evolução arrastada até cerca de 6 a 12 meses.

Em cerca de 10% dos casos (raramente em idade pediátrica), a leptospirose, para além da sintomatologia descrita antes, pode apresentar-se com icterícia, e sinais de insuficiência hepática e renal graves, logo após o 4º-6º dia de evolução, constituindo a chamada Forma clínica ictérica ou Síndroma de Weil (em geral provocada por L. icterohaemorrhagiae). A sintomatologia mais relevante é constituída, sobretudo, por pneumonite hemorrágica e colapso cardiocirculatório.

A infecção da grávida por Leptospira pode provocar abortamento e infecção congénita.

Diagnóstico

Deve suspeitar-se de leptospirose perante uma doença febril aguda, surgindo em doentes que vivem em zonas de prevalência de roedores, nomeadamente ratos, sem saneamento básico, com história de contacto directo com animais, águas ou solos contaminados.

O agente Leptospira pode ser isolado no sangue ou líquor durante a fase septicémica, através de técnicas e meios de cultura especiais.

Na fase imune, que corresponde à excreção pela urina, pode ser pesquisado através de exame directo – microscopia em campo escuro, ou de exame cultural. Também podem ser utilizadas técnicas ELISA e técnica molecular/PCR em tempo real para identificação do microrganismo em tecidos infectados ou fluidos orgânicos.

A bactéria também se pode detectar em tecidos por meio de técnicas imuno-histoquímicas.

As provas serológicas em sangue colhido 7 dias após o início da doença evidenciam subida do título de anticorpos (3 a 4 vezes) a partir do 12º dia, com títulos máximos pela 2ª a 3ª semana, em casos da doença. Títulos baixos poderão persistir durante anos. Em cerca de 10% dos casos não é possível detectar aglutininas, possivelmente pelo facto de os anti-soros disponíveis não identificarem todos os serótipos

Tendo em conta a repercussão multissistémica da doença, em função da sintomatologia, poderão ser realizados diversos exames fundamentados em diversas circunstâncias:

  • diátese hemorrágica: hemograma com plaquetas, estudo da coagulação;
  • icterícia: bilirrubinémia, transaminases, gamaglutamil transpeptidase, fosfatase alcalina;
  • disfunção renal: análise sumária de urina, creatininémia e ionograma sérico;
  • disfunção cardíaca: CPK e CPK-MB, ECG, ECO-CG e radiografia do tórax.

Diagnóstico diferencial

Nas formas anictéricas o diagnóstico diferencial faz-se com: infecções víricas e com meningite linfocitária. Nas formas ictéricas e septicémia, com hepatites víricas, colecistite aguda, malária, riquetsioses e febre tifóide.

Tratamento

Leptospira é sensível a múltiplos antibióticos sem que se tenham verificado resistências.

A antibioticoterapia é tanto mais eficaz quanto mais precocemente se iniciar, inclusivamente na primeira semana após início dos sintomas.

A penicilina G cristalina por via IV, 25.000-50.000 UI/kg/dia dividida em doses de 4/4 horas (máximo 12 milhões UI/dia), durante 7 a 10 dias é o antibiótico de eleição para os doentes com necessidade de internamento.

Na doença moderada poderá ser administrada a doxiciclina 2 mg/kg/dia, de 12/12 horas, (dose máxima 200 mg/dia); o tratamento deve durar também 7-10 dias. A azitromicina, também eficaz, é uma alternativa à doxiciclina.

O tratamento de suporte inclui vigilância do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, eventual terapia intensiva, incluindo oxigenoterapia, correcção da hipovolémia e hipotensão, e prevenção da hemorragia digestiva com ranitidina ou omeprazol.

Prognóstico

A mortalidade causada por Leptospira varia entre cerca de 1% nas formas ligeiras, e superior a 40% nos casos graves, sendo que as infecções por L. icterohemorrhagiae e L. copenhageni estão associadas a doença mais grave. Tal deve-se essencialmente à síndroma hemorrágica (equimoses, petéquias, hemorragia pulmonar, hemorragia gastrintestinal).

Todavia, realça-se que na maioria dos casos a leptospirose é uma doença autolimitada.

Prevenção

A prevenção tem como principal objectivo controlar as pragas de roedores e proceder à imunização dos animais reservatórios da doença (com vacina inactivada que, no entanto, não previne a leptospirúria); portanto, os animais vacinados poderão ainda ser fontes de infecção humana. Não existe actualmente disponível vacina humana.

Alguns autores preconizam como medida profiláctica transitória, para quem se desloca em viagens a zonas de alta endemia, doxiciclina PO em dose de 200 mg semanal.

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FEBRE RECORRENTE

Definição e importância do problema

A febre recorrente é uma doença infecciosa pouco comum, caracterizada por episódios recorrentes de febre. A mesma é causada por espiroquetas do género Borrelia, os quais se transmitem à espécie humana por dois artrópodes-vectores distintos, respectivamente: o piolho Pediculus humanus e a carraça da espécie Ornithodoros erraticus.

Trata-se duma doença de distribuição mundial, salientando-se o aparecimento de epidemias na África Oriental. A doença em lactentes é responsável por cerca de 5% do total de casos.

Aspectos epidemiológicos

A febre recorrente epidémica é causada pelo agente Borrelia recurrentis; foram descritas epidemias na costa oriental de África, designadamente Sudão e Etiópia.

A febre recorrente endémica é causada por cerca de 15 espécies de Borrelia; as mais comuns são B. hermsii e B. turicatae, prevalentes na parte ocidental dos EUA, B. dugesi no México e América Central, B. hispanica em Espanha, e B. persica na Ásia.

Estas espécies de Borrelia (recurrentis) são distintas das associadas a outras doenças, nomeadamente à doença de Lyme.

Uma característica particular destes germes bacterianos é a contínua mutação de genes determinando grande variação de antigénios ao longo do tempo. Assim, o agente Borrelia isolado num primeiro episódio febril será antigenicamente diferente dos agentes isolados em episódios subsequentes, o que explica a natureza cíclica da infecção.

Etiopatogénese

A febre recorrente epidémica é transmitida ao homem pelo piolho Pediculus humanus, que ingere o espiroqueta ao alimentar-se do sangue de um doente. Ao ser esmagado pelo homem, os fluidos do piolho contaminam o local da picada.

Por outro lado, feridas da pele decorrentes do efeito traumático de lesões de coceira permitem a entrada em circulação do espiroqueta.

Esta infecção está associada a precárias condições de higiene e saneamento. Actualmente é mais frequente na Etiópia, Somália e Eritreia, tendo sido associada aos desastres sociais e guerra naquela região do globo.

A febre recorrente endémica é transmitida ao homem por carraças do género Ornithodoros, infectadas a partir de roedores selvagens. A saliva do artrópode que pica o homem permite a entrada de Borrelia na circulação sanguínea. Salienta-se que nos abrigos de montanha de parques naturais existem condições propícias para contrair a infecção.

Durante os episódios febris, os espiroquetas, entrando na corrente sanguínea, promovem o desenvolvimento de anticorpos específicos IgM e IgG, os quais actuando contra determinadas espécies antigénicas, contribuem para a “depuração” de determinadas variantes, restando contudo incólumes outras variantes de espécies que poderão proliferar e originar ulteriormente outros episódios.

Ou seja, durante a fase de remissão os espiroquetas Borrelia podem permanecer na corrente sanguínea, podendo originar novos episódios em função do número remanescente. A eliminação dos referidos microrganismos dependerá da efectividade do tratamento.

Salienta-se que os microrganismos podem ser sequestrados, fagocitados e sofrendo lise, no fígado, baço, sistema nervoso central, e/ou medula óssea.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação médio de 7 dias (2-18 dias), verifica-se o aparecimento súbito de febre alta com calafrio, sudorese, cefaleias, mialgias, fraqueza muscular e artralgias.

O episódio inicial febril termina ao fim de 4 a 7 dias com um quadro agudo marcado por diaforese, hipotermia, hipotensão, bradicárdia e fraqueza muscular profunda.

De acordo com o que foi referido antes, nos doentes sem tratamento a febre poderá surgir de novo ao fim de uma semana com manifestações de síndroma gripal.

Poderão ocorrer cerca de 10 episódios de febre; todavia os episódios sintomáticos tornam-se progressivamente mais espaçados e mais moderados. Ou seja, verifica-se um aumento gradual dos períodos de remissão.

As picadas, quer da carraça, quer do piolho, são assintomáticas.

É comum surgir exantema macular fugaz no tronco, podendo generalizar-se ou tornar-se petequial. O exame objectivo poderá evidenciar, também, hepatosplenomegália.

Poderão também surgir trombocitopénia, icterícia, iridociclite, pneumonia, meningite ou miocardite.

Sinais de discrasia hemorrágica são comuns na febre epidémica, mas não na endémica.

Diagnóstico

Apesar de a história epidemiológica ser extremamente valiosa, levantando forte suspeita, torna-se fundamental proceder à identificação de Borrelia no sangue durante o episódio febril: a observação ao microscópio do esfregaço de sangue periférico corado pelos métodos de Wright e Giemsa permite, assim, o diagnóstico.

O diagnóstico também pode ser realizado por imunofluorescência indirecta.

O estudo molecular, atilizando a PCR é igualmente útil.

Salienta-se que o estudo serológico está fortemente limitado pela grande variabilidade antigénica a que atrás se fez menção. Por outro lado, salienta-se que existe reacção serológica cruzada com outros espiroquetas, designadamente com Borrelia burgdorferi, agente da doença de Lyme.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da febre recorrente podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como malária, riquetsioses, brucelose, febre tifóide, tularémia, vírus da dengue, hepatite vírica ou leptospirose, pelo que a epidemiologia e a história clínica devem ser devidamente valorizadas.

Tratamento

Os objectivos essenciais do tratamento são eliminar os espiroquetas do sangue e prevenir ou controlar a reacção de Jarisch-Herxheimer resultante da destruição maciça de microrganismos.

Existe uma larga gama de antibióticos eficazes.

O tratamento da febre recorrente, epidémica ou endémica, consiste na administração de eritromicina PO 50 mg/kg/dia, 4 vezes por dia, durante 10 dias, em crianças pequenas. Acima dos 8 anos, pode considerar-se ainda a tetraciclina PO (500 mg 4 vezes por dia) ou doxiciclina PO (100 mg 2 vezes por dia), durante 10 dias.

Aspecto importante da antibioticoterapia é a possibilidade de ocorrência da já referida reacção de Jarisch-Herxheimer (J-H), associada a níveis elevados de TNF-alfa, IL-6 e IL-8.

Por isso, é recomendável que se mantenha linha IV com soro fisiológico para eventual tratamento do choque anafiláctico na eventualidade de surgir a reacção. Está em investigação o tratamento da reacção de J-H com anticorpos anti-TNF-alfa.

Prognóstico

Com tratamento adequado em regime hospitalar, a mortalidade em doentes com febre recorrente é < 2%. A febre recorrente epidémica sem tratamento pode comportar mortalidade elevada, entre 10% a 70% dos casos.

Prevenção

A prevenção faz-se através da erradicação dos vectores. A melhoria dos cuidados de higiene pessoal é essencial para a prevenção da febre recorrente epidémica. Quanto à febre recorrente endémica, o uso de roupa adequada, de repelentes e a desinfestação dos abrigos de montanha reduz o número de pessoas infectadas.

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BORRELIOSE DE LYME

Definição e importância do problema

A borreliose de Lyme, ou doença de Lyme, uma zoonose descrita pela primeira vez em 1975, é uma perturbação inflamatória multissistémica causada pela resposta do sistema imunitário à infecção por um grupo de espiroquetas – Borrelia burgdorferi sensu latu –; trata-se de bactérias Gram-negativas de forma cilíndrica espiralada, fazendo-se a transmissão por picada dum artrópode infectado – a carraça.

Nos EUA, particularmente nalguns estados, constitui a zoonose mais frequente, com mais de 30.000 casos declarados anualmente. Na Europa, a doença é mais comum no norte e região central, evidenciando características clínicas ligeiramente diferentes.

Epidemiologia

O nome da doença corresponde ao nome duma comunidade de Connecticut nos EUA (Lyme) onde foi pela primeira vez descrita. Ulteriormente foi identificada em mais de 50 países; na Europa verifica-se maior prevalência na Alemanha, Áustria, Eslovénia e Suécia.

Existem algumas áreas endémicas onde a incidência anual da doença oscila entre 20 a 130 casos/100.000 habitantes admitindo-se que seja uma doença subdiagnosticada. Pode afectar indivíduos de qualquer idade mas, em cerca de 25% dos casos, atinge crianças abaixo dos 15 anos. No nosso país é uma doença de notificação obrigatória. Entre 2010-2013 foram declarados 24 casos, 2 dos quais na faixa etária entre 5 e 14 anos.

A doença apresenta-se com maior incidência em dois períodos de idade: 5-10 anos e 35-55 anos, sendo que no primeiro grupo a doença é mais prevalente no sexo masculino, devendo-se provavelmente a maior prática de actividades ao ar livre por rapazes.

Quanto aos reservatórios naturais da doença, eles são múltiplos: ratos do campo, ungulados selvagens (raposa, javali), ou domésticos (cabra, vaca) e cães. A carraça, vector da doença para o homem, é mais pequena do que a carraça comum do cão, encontrando-se com maior frequência em animais selvagens do que em animais domésticos.

A maioria dos casos de doença ocorre entre Abril e Outubro, estando esta sazonalidade relacionada com o ciclo de vida do vector artrópode. O risco de transmissão do agente B. burgdorferi a partir da carraça infectada relaciona-se directamente com a duração da picada; ou seja, são necessárias mais de 24 horas de contacto do artrópode com o ser humano, considerando-se que o risco infeccioso é elevado a partir das 36-48 horas de duração do mesmo.

O risco associa-se ainda ao estado em que se encontra a carraça – larvar, ninfa ou forma adulta -, sendo a ninfa o principal vector da doença.

Não se encontrou relação directa entre doença de Lyme na gravidez e o aparecimento de defeitos congénitos no feto, nem está provado que o leite materno transmita o microrganismo.

Etiopatogénese

Os agentes em causa – Borrelia burgdorferi sensu latu possuem dupla membrana (externa e interna) e flagelos inseridos na membrana interna.

Foram descritas três proteínas major na membrana externa (designadas respectivamente OspA, OspB e OspC) e uma proteína flagelar designada 41 kDa, inserida na membrana interna. Estas proteínas, com pesos moleculares diversos, têm papel importante na resposta imune.

As diferenças quanto à estrutura molecular das diferentes espécies estão associadas a diferenças quanto a manifestações clínicas na Europa e Estados Unidos (por ex. frequência mais elevada de casos de radiculoneurite na Europa e de artrite nos Estados Unidos.

Na América do Norte, Borrelia burgdorferi sensu strictu é a única espécie causadora de doença.

Na Europa, são cinco as espécies responsáveis pela doença: Borrelia afzelli, Borrelia garinii, Borrelia burgdorferi, Borrelia spielmanii e Borrelia bavariensis, sendo as primeiras duas as mais prevalentes. Na Ásia, a espécie Borrelia garinii é a mais comum.

A bactéria pode ser isolada a partir do sangue, pele, líquor e líquido sinovial de doentes infectados, bem como a nível do intestino do vector – a carraça do género Ixodes.

O I. scapularis e I. pacificus são prevalentes nos EUA, o I. ricinus na Europa e o I. persulcatus na Ásia.

O alvo inicial da infecção causada pela B. burgdorferi é a pele, onde o espiroqueta pode ser depositado pela saliva ou pelo material fecal da carraça. Após um período de incubação de 3 a 31 dias, neste local da pele surge eritema cutâneo característico adiante descrito. Contudo, o espiroqueta pode ser injectado na corrente sanguínea através da saliva da carraça, atingindo vários tecidos e órgãos, aderindo às células, onde pode permanecer por longos períodos de tempo após a infecção inicial. Esta permanência explica os sintomas tardios.

Os espiroquetas não produzem toxinas. O aparecimento de sintomas, quer na fase precoce disseminada, quer na fase tardia, está directamente relacionado com os danos teciduais originados a partir da resposta imunológica desencadeada pela estimulação de mediadores da inflamação, como o factor de necrose tumoral (TNF), interferão-gama (IFN-δ), factor transformador de crescimento (TGF) e interleucinas (IL-1, IL-6, IL-8, IL-10).

Um dos aspectos do mecanismo de resposta imunológica a determinadas espécies de espiroqueta é a desactivação do complemento. Salienta-se também o recrutamento de macrófagos e neutrófilos para eliminar o espiroqueta.

Admite-se que o desenvolvimento de sintomas refractários da doença esteja relacionado com uma base imunogenética, sendo os indivíduos portadores dos genótipos HLA-DR2, DR3 e DR4 mais predispostos.

As alterações histológicas secundárias à agressão microbiana a doença de Lyme caracterizam-se por lesões inflamatórias contendo linfócitos, macrófagos e plasmócitos. Estes infiltrados inflamatórios podem ser observados na pele ou em qualquer dos órgãos atingidos, como o miocárdio ou o SNC. Também podem coexistir fenómenos de vasculite, o que sugere a presença do microrganismo na parede ou em redor dos pequenos vasos sanguíneos.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações clínicas, consideram-se três estádios ou formas de apresentação: precoce (localizada e disseminada) e doença tardia e persistente.

Doença precoce localizada

No local da picada (entre 3 e 30 dias após a mesma) verifica-se uma lesão eritematosa macular ou papular (única).

Esta lesão, localizada, tem a forma de coroa circular (contorno redondo), aumenta de dimensão expandindo-se concentricamente, em dias ou semanas, podendo atingir um diâmetro entre 5 e 20 cm; tipicamente exibe, então, de fora para dentro, um aspecto em alvo com três zonas: bordo eritematoso em “anel”, zona intermédia mais clara, e pequena zona central concêntrica eritematosa rósea/eritematosa com tonalidade semelhante à do bordo externo circular. Por vezes a lesão, de contormo circular, exibe interiormente mais do que um anel circular de rubi, separado por aneis “pálidos”, isto é, de rubor menos acentuado ou com o aspecto de pele de cor normal.

O bordo externo “em anel” é habitualmente plano mas, por vezes, pode ser proeminente e endurecido. Raramente, existem vesículas ou zonas necróticas ao nível da pequena área circular central eritematosa.

Ao toque, a lesão aparenta temperatura mais elevada, sendo ocasionalmente pruriginosa ou dolorosa. Pode surgir em qualquer parte do corpo. As crianças mais pequenas são mais atingidas na cabeça e pescoço, enquanto as maiores, nas extremidades. (Figura 1)

A este tipo de lesão cutânea com expansão periférica e apagamento central é dado o nome de eritema migratório (eritema migrans), o qual evolui durante alguns dias, podendo persistir durante duas ou três semanas, regredindo posteriormente de forma gradual.

Esta forma clínica pode ser acompanhada de febre, mialgia, artralgia e cefaleia.

Como nota importante, salienta-se que em cerca de 1/3 dos doentes não há antecedentes precisos de picada, pelo que é essencial a suspeita clínica.

Doença precoce generalizada

Esta forma clínica, a mais frequente, caracteriza-se por lesões cutâneas múltiplas de eritema migrans atrás descrito, habitualmente de menores dimensões. Surge cerca de 3 a 12 semanas após a inoculação da bactéria a partir do vector artrópode.

A disseminação das lesões de eritema migrans corresponde à disseminação hematogénica do microrganismo.

Regra geral, está presente sintomatologia sistémica de maior intensidade em relação à doença localizada, como febre, cefaleias, artralgia e mialgia.

As manifestações neurológicas, nomeadamente de meningite asséptica, ocorrem em cerca de 8% dos casos, podendo coexistir com edema da papila e paralisia facial. Esta última, relativamente frequente na criança, persiste cerca de 2 a 8 semanas, e pode constituir a manifestação inicial e, por vezes, única, desta forma da doença de Lyme; regride na maioria dos casos.

FIGURA 1. Mácula circular em forma de alvo com tendência para ir aumentando de dimensões com a evolução, como que expandindo-se; neste caso, rubor acentuado na periferia, em “coroa” periférica e zona central mais “pálida”. (Arquivo pessoal do editor – JMVA)

Embora as alterações citoquímicas do LCR sejam semelhantes às encontradas na meningite vírica, em cerca de 90% das crianças com doença de Lyme verifica-se associação a neuropatia doutros pares cranianos para além do VIIº atrás referido; contudo, o curso da meningite da doença de Lyme é mais arrastado.

O compromisso cardíaco, raro na criança, traduz-se por graus variáveis de bloqueio auriculoventricular, miocardite, pericardite ou disfunção ventricular esquerda.

Como nota final, cumpre referir que, perante quadro de paralisia facial, a doença de Lyme deve ser equacionada, mesmo na ausência de outras manifestações.

Doença tardia

Esta forma clínica (classicamente associada a intervalo entre picada e início de sintomatologia > 2 meses) caracteriza-se pelo aparecimento de episódios recorrentes de artrite. Trata-se de artrite pauciarticular, envolvendo as grandes articulações, sendo o joelho atingido em cerca de 90% dos casos: são notórios edema e dor (não tão intensa como na artrite bacteriana) e sensação de calor sem rubor.

As manifestações de artrite podem ocorrer sem história inicial de doença, nomeadamente sem antecedentes de eritema migrans (ver atrás). Se a doença não for tratada, as manifestações de artrite podem regredir em semanas, voltando a surgir ulteriormente e a atingir progressivamente outras articulações; esta forma clínica recorrente surge em 50% dos casos não tratados.

Notas importantes: a)- embora o microrganismo B. burgdorferi tenha sido isolado de abortos, fetos mortos e nados-vivos com anomalias congénitas, nas respectivas placentas não foram detectados sinais de inflamação; de acordo com alguns patologistas, se existir doença de Lyme congénita, ela será muito rara; b)- B. burgdorferi não se transmite através do leite materno.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se no antecedente de picada de carraça com manifestações clínicas compatíveis, requerendo-se, no entanto, confirmação microbiológica ou serológica em todas as formas da doença.

A avaliação laboratorial global é pouco informativa. A velocidade de sedimentação elevada, o valor normal de leucócitos ou discretamente elevado, bem como o aumento moderado das aminotransferases séricas, não são orientadores do diagnóstico.

Quanto ao estudo serológico, importa salientar que este apenas deve ser realizado nas seguintes circunstâncias:

  • doente viajante ou residente em zona endémica de doença de Lyme;
  • factor de risco de exposição a picada;
  • sintomas compatíveis com estádio disseminado da doença.

Não está indicado estudo serológico nos casos de:

  •  eritema migrans como manifestação única;
  •  doentes assintomáticos em áreas endémicas.

Os anticorpos específicos IgM após infecção aguda com B. bugdorferi são detectáveis em geral 3-4 semanas após a infecção aguda com valor máximo cerca das 6-8 semanas, diminuindo depois (ou seja, na fase de aparecimento do eritema migrans não é ainda possível detectar anticorpos contra B. burgdorferi na maioria dos doentes).

Por outro lado, pode verificar-se elevação do valor de IgM durante tempo mais prolongado apesar do tratamento antimicrobiano.

Os anticorpos específicos IgG aparecem em geral pelas 6-8 semanas após início da infecção, atingindo valor máximo ao cabo de 4-6 meses, mantendo-se elevados indefinidamente; assim, como não desaparecem por completo após cura da doença, não têm utilidade para confirmar o sucesso terapêutico.

Nalguns casos de tratamento antimicrobiano muito precoce, poderá ser anulada a resposta com formação de anticorpos.

As técnicas mais sensíveis e específicas para detecção de anticorpos específicos incluem a imunofluorescência e o método ELISA; este último é responsável por maior número de falsos positivos devido à reacção cruzada com anticorpos para outros espiroquetas, varicela, mononucleose, bem como em casos de lúpus eritematoso sistémico. Nos casos de positividade de qualquer destas provas, a confirmação serológica deve ser realizada pela técnica Western-Blot.

Contudo, resultados de estudos recentes comprovam que, a partir de um determinado cut-off (> 3,0), o método ELISA tem um valor preditivo positivo muito elevado e dispensa o Western-Blot. Em estudo encontram-se outros testes, nomeadamente o VisE C6, em associação ou alternativa aos testes serológicos anteriores.

Quanto à confirmação microbiológica, nalguns laboratórios procede-se ao estudo molecular por PCR, cuja sensibilidade é baixa pelo facto de a concentração de bactérias ser baixa e associada a muitos falsos positivos.

Através de exames culturais, o isolamento de B. burgdorferi a partir do sangue, pele, líquor e líquido sinovial é um processo moroso e dispendioso (e por vezes invasivo), exigindo meios de cultura especiais como o de Barbour-Stoenner-Kelly e tempo superior a 4 semanas para que haja crescimento bacteriano; por outro lado, a percentagem de isolamento do agente em tais circunstâncias é baixa.

De salientar que o crescimento dos microrganismos Borrelia em cultura é extremamente lento, exigindo, para tal, meios especiais. Como se torna lógico depreender, tanto as provas serológicas como o exame cultural implicam a disponibilidade de laboratórios especializados.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da doença de Lyme, exceptuando no que respeita ao eritema migrans na sua forma típica, são inespecíficas. A forma mono ou pauci-articular de artrite poderá levantar a suspeita, quer de artrite séptica aguda, quer doutras causas de artrite tais como artrite reumatóide juvenil ou artrite pós-estreptocócica.

Por outro lado, a paralisia facial devida a doença de Lyme não se distingue da paralisia de Bell, assim como a meningite de Lyme não se distingue da meningite por enterovírus.

Considerando o quadro morfológico cutâneo de eritema migrans, há que salientar que, por vezes, o mesmo poderá ser confundido inicialmente com eczema numular, granuloma anular, manifestação cutânea no local de picada de insecto em geral, tinha ou celulite.

Tratamento

Na doença precoce localizada, a doxiciclina PO na dose de 4 mg/kg/dia (máximo 200 mg/dia) de 12/12 horas durante 14 a 21 dias é o antimicrobiano de escolha para crianças com idade superior a 8 anos.

Nas crianças com idade inferior a 8 anos está indicada a amoxicilina PO na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1,5 g/dia) de 8/8 horas durante 14-21 dias.

Nos casos de alergia à penicilina, constituem alternativas a cefuroxima axetil (PO) na dose de 30-40 mg/kg/dia (máximo 1 g/dia), em duas doses.

Na doença precoce disseminada e na doença tardia, com eritema migrans múltiplo, paralisia facial isolada (ou paralisia de outros nervos cranianos), ou artrite não complicada, recomenda-se o mesmo regime terapêutico aplicável à doença localizada, entre 14 a 21 dias. Nos casos de paralisia dos nervos cranianos os corticóides não deverão ser utilizados.

Na cardite, meningite ou encefalite, a antibioticoterapia (com a duração de 10 a 28 dias) deverá ser IV com:

  • ceftriaxona (50-75mg/kg/dia, máximo 2 g/dia).

Nos casos de artrite recorrente ou persistente (para além de 2 meses) aconselha-se duração de 28 dias e eventualmente segundo curso terapêutico.

Notas importantes:

    • a resposta ao tratamento poderá ser demorada persistindo sinais e sintomas durante várias semanas;
    • existe risco de fotossensibilidade em doentes durante tratamento com doxiciclina;
    • nalguns doentes (até 15%) verifica-se reacção de Jarisch-Herxheimer após início do tratamento (febre, sudação, e mialgias).

Prognóstico

Nas crianças com doença de Lyme tratada, o prognóstico é excelente.

De salientar que, com a regressão dos sinais de eritema migrans após tratamento precoce, não se verifica, em geral, o desenvolvimento de fases ulteriores da doença (evolução para doença tardia). (ver atrás)

Quer nos casos clínicos que cursam com meningite, quer nos casos de artrite, a resolução clínica é em geral completa e sem sequelas se o tratamento for adequado.

Prevenção

A medida preventiva mais eficaz implica o uso de vestuário adequado aquando da permanência em áreas endémicas.

Os repelentes de insectos, como o DEET, produzem efeito temporário; e em doses elevadas podem provocar toxicidade para a criança. As permetrinas matam o vector, devendo ser aplicadas somente à superfície da roupa.

O banho ajuda à remoção de prováveis vectores. Medidas ambientais, como o uso de acaricidas em zonas endémicas, poderão ter igualmente algum efeito protector.

Como a maioria das pessoas reconhece a presença da carraça, esta será removida nas primeiras 36 horas de adesão, ou seja, antes de haver risco elevado de transmissão da bactéria (com pinça ou, na falta dela, por extracção manual/dedos em pinça, na vertical, capturando-a sob a roupa, pela região cefálica).

De acordo com um estudo realizado numa zona endémica demonstrou-se que, após picada de carraça, uma dose única profiláctica de doxiciclina PO 200 mg preveniu a doença de Lyme em 87% de casos. Contudo, este estudo decorreu em adultos, pelo que continua a não recomendar-se o uso de antibióticos profilácticos em crianças..

Actualmente, não existe vacina disponível.

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BOTULISMO

Definição e importância do problema

O botulismo é uma afecção rara e potencialmente fatal caracterizada por paralisia flácida aguda simétrica e descendente, não acompanhada de febre e afectando tipicamente os pares cranianos, causada por uma neurotoxina produzida por Clostridium botulinum (e, mais raramente, Clostridium butyricum e Clostridium baratii).

Como consequência surge bloqueio irreversível dos receptores pré-sinápticos colinérgicos da junção neuromuscular. Trata-se, pois, de bactérias anaeróbias Gram-positivas do género Clostridium, produtoras de esporos.

O termo botulismo, derivando do latim botulus significando “salsichas ou enchidos em geral”, explica-se pelo facto de, em 1820, na Alemanha, se ter relacionado pela primeira vez um quadro de paralisia com “intoxicação com salsichas ingeridas em estado de deterioração”. A taxa de mortalidade varia entre 5% e 25%.

Sistematização

Estão descritas actualmente 6 formas clínicas distintas de botulismo de acordo com o seu modo de transmissão:

  1. botulismo alimentar (através de alimentos contaminados com a toxina pré-formada, por exemplo, em conservas, produtos desidratados, presunto, azeitonas, mel, etc.);
  2. botulismo infantil (através da ingestão de esporos de Clostridium, colonização no tracto gastrintestinal e libertação da toxina in vivo);
  3. botulismo associado a ferimentos (através de infecção de lesão cutaneomucosa, – como nos casos de tétano – com produção da toxina in vivo);
  4. botulismo entérico forma-adulta (idêntico à forma clássica infantil);
  5. botulismo inalado (situação rara, com toxina aerossolizada, em contexto de potencial bioterrorismo; estima-se que um grama de toxina pode matar pelo menos 1,5 milhões de pessoas); e
  6. botulismo iatrogénico (por sobredosagem na administração da toxina botulínica com fins cosméticos ou terapêuticos).

Neste capítulo é dada ênfase às formas 1, 2 e 3.

Aspectos epidemiológicos

As formas alimentar e infantil, manifestadas em geral como pequenos surtos, são as mais frequentes em todo o mundo (respectivamente 70% e 25%), com o maior número de casos descritos nos Estados Unidos da América (EUA). Dados dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) estimam ocorrência média anual de 110 casos. Em cerca de 95% dos casos da forma infantil são atingidas crianças entre as 3 semanas de vida e os 6 meses de idade e com um “pico” entre os 2 e 4 meses. A forma associada a ferimentos é muito rara, com menos de 400 casos notificados a nível mundial.

Na Europa, os registos do sistema de vigilância das doenças infecciosas de declaração obrigatória (DDO) são heterogéneos e com limitações dependentes dos notificantes, o que condiciona a precisão dos dados estatísticos. Neste continente, nos últimos nove anos (2007-2015) foram reportados 1029 casos (~ 114/ano), com distribuição variável.

Em 2016, no âmbito da União Europeia foram emitidos alertas a relembrar o risco de alguns alimentos potencialmente contaminados: salmão fumado, sopas embaladas, molho de mostarda caseiro e feijão branco embalado.

Embora o botulismo possa ocorrer em todas as zonas do mundo, os surtos são mais frequentes nas regiões em que a preservação da fruta, vegetais e outros bens de consumo alimentar é menos comum, como nos países tropicais.

Em Portugal, o botulismo é uma DDO desde 1999, devendo proceder-se à respectiva notificação à Direcção Geral da Saúde (DGS). No ano de 2000, em contexto de consumo de fumeiros caseiros no Norte do país e na Região Autónoma da Madeira foram notificados 31 pacientes.

De acordo com dados da DGS, entre 2013 e 2016, foram notificados 14 casos (entre < 1 ano e > 75 anos), correspondendo apenas 1 caso abaixo dos 18 anos (ano de 2015) constam (dos dados do sistema de vigilância europeia) 26 casos nacionais, incluindo 6 casos recentes, em 2015.

Etiopatogénese

Microbiologia

Reafirmando que o botulismo é provocado na quase totalidade dos casos por Clostridium botulinum – um grupo heterogéneo de bacilos Gram-positivos, formadores de esporos e anaeróbios obrigatórios – realça-se que se trata de microrganismos ubíquos, com habitat natural no solo, pó e sedimentos marinhos, facilmente isolados duma variedade de produtos agrícolas e alimentos frescos, cozinhados ou processados. Os esporos são resistentes ao calor e sobrevivem a 100ºC por várias horas, sendo destruídos acima dos 120ºC durante 5 minutos. Em determinadas condições (ambiente anaeróbio, água com pH ácido baixo 4 e temperatura entre os 25-37ºC) os referidos esporos germinam e crescem, produzindo neurotoxinas. Por outro lado, esta toxina – provavelmente o “veneno” mais potente conhecido, donde o papel do seu aproveitamento para o bioterrorismo – é termolábil e facilmente destruída acima dos 85ºC, ou fica inactiva em água com cloro em apenas vinte minutos, ou em água fresca por três a seis dias.

Foram indentificadas 8 estirpes de C. botulinum de acordo com a especificidade antigénica, sendo que cada uma das 8 estirpes produz respectivamente um tipo específico de toxina (com as designações de A, B, C, D, E, F, G, H). O botulismo humano produz-se quase sempre pelas toxinas A, B, E e raramente pelas F, G e H. As toxinas E e F são também produzidas por Clostridium baratii e Clostridium butyricum. Ou seja, as toxinas patogénicas para o ser humano são as A, B, E, F, G e H. Esta última foi descrita pela primeira vez em 2013.

Patogénese

A toxina botulínica é uma proteína com cadeia de dupla hélice, libertada como um precursor polipeptídico que origina, por clivagem através das proteases, uma neurotoxina composta por uma cadeia leve de 50 KDa e uma cadeia pesada de 100 KDa.

Após a sua ingestão é absorvida inicialmente no estômago (resistindo à acidez gástrica), e posteriormente no intestino delgado e cólon. Distribuindo-se por via hematogénica, atinge as sinapses colinérgicas com consequente bloqueio pré-sináptico, impedindo a libertação de acetilcolina. Como consequência verifica-se paralisia flácida. De salientar que a toxina exerce também bloqueio da acetilcolina ao nível do sistema autonómico, induzindo sintomas de boca seca e sudação reduzida.

Mais pormenorizadamente, importa referir que o mecanismo preciso da acção da toxina compreende um processo com várias etapas que incluem a ligação irreversível da cadeia pesada a receptores específicos na terminação (só a colinérgica) pré-sináptica dos nervos periféricos e na placa motora. A ligação faz-se através da chamada sinaptotagmina II.

Uma vez no interior da célula (isto é, após endocitose), a cadeia leve, uma metaloprotease de zinco, impede a fusão das vesículas pré-sinápticas com a membrana, o que evita a libertação de acetilcolina (neurotransmissor) e provoca a “desinervação” funcional do músculo. A recuperação requer a formação de novas terminações pré-sinápticas (em cerca de 6 meses).

Sendo afectadas a união motora e autonómica, pode deduzir-se o atingimento de neurónios motores e sensitivos, bem como o bloqueio da inervação colinérgica do músculo liso e estriado, assim como das glândulas salivares, lacrimais e sudoríparas.

Está provado que a toxina pode atravessar a barreira hemato-encefálica, quer por via da disseminação sistémica, quer por transporte axonal anterógrado ou retrógrado. A morte resulta frequentemente dos efeitos paralíticos sobre a via respiratória.

Alimentos como o peixe, a carne, os vegetais, as frutas e os molhos, sobretudo se em ambiente com pH ácido baixo, representam o meio propício para a multiplicação de Clostridium botulinum e a produção de toxina. Também os alimentos embalados e processados para distribuição comercial, mesmo que selados em sacos de plástico e refrigerados, podem constituir um risco considerável.

Com implicações práticas no que respeita à forma infantil de botulismo, importa referir que em estudos prospectivos se demonstrou efeito benéfico e protector do leite humano, traduzido nomeadamente por manifestações clínicas mais ligeiras do que nos pacientes alimentados com fórmula. Por outro lado, também se verificou que nas crianças amamentadas, a suplementação com ferro antecipa o início da doença.

A doença não confere imunidade.

Manifestações clínicas

Aspectos gerais 

Como foi referido anteriormente, o botulismo traduz-se tipicamente por paralisia flácida descendente e simétrica surgida em horas ou dias. A gravidade pode variar de doente para doente: entre obstipação e hipotonia ligeira, e tetraparésia flácida.

Nos casos de C. baratii, produtor da toxina F, o quadro clínico ocorre em idades muito jovens, com início rápido e maior gravidade; em tal contexto, contudo, a paralisia tem duração inferior à da provocada por C. botulinum.

Em crianças mais velhas, com botulismo clássico ou associado a ferimentos, o início de sintomas obedece a uma sequência: diplopia, visão turva, ptose, xerostomia, disfagia, disfonia, disartria e reflexo córneo diminuído.

De referir que a assimetria dos sinais, o carácter ascendente e a ausência de atingimento cervical e facial afastam a hipótese de botulismo.

Botulismo alimentar

Em cerca de 30% dos casos o doente começa com náuseas, vómitos ou diarreia cerca de 12-36 horas após a ingestão de alimentos contaminados; contudo, estes sintomas poderão surgir tão precocemente como às duas horas ou, tardiamente, ao oitavo dia. Na fase seguinte surge obstipação e sintomas motores e anticolinérgicos, iniciando-se pelos nervos cranianos: diplopia, disartria, disfagia e disfonia. A visão é afectada, tornando-se “nebulosa” por alteração da acomodação, surgindo também secura bucal e ocular paralelamente a debilidade muscular/paralisia flácida descendente rapidamente progressiva, retenção urinária e fecal, assim como hipotensão ortostática. O paciente está apirético, excepto se houver outra infecção secundária, mais frequentemente, pneumonia.

Os raros casos provocados pela colonização por C. butyricum cursam com distensão abdominal, podendo conduzir ao diagnóstico de abdómen agudo.

Botulismo infantil

As manifestações clínicas, correspondendo a 50% de todos os casos, podem surgir pelas 7 a 13 semanas de vida. Geralmente apirética, o primeiro indício na criança é a obstipação. Os pais notam hipoactividade motora, letargia, hipotonia cervicocefálica (que pode passar despercebida se a criança não for colocada em posição vertical), incapacidade para alimentar-se por hiporreflexia da sucção e choro fraco. Em média, nos quatro a cinco dias seguintes surge paralisia flácida descendente, dificuldade respiratória e sintomas anticolinérgicos.

O exame objectivo ocular – de grande importância para o diagnóstico – evidencia, em 50%-80% dos casos, ptose palpebral, oftalmoplegia e pupilas hiporreactivas. Nalguns casos o reflexo pupilar pode manter-se intacto até estádios avançados.

Esta forma clínica pode evoluir de forma fulminante, conduzindo a morte súbita.

Pode ocorrer paragem respiratória súbita por acumulação de secreções não deglutidas e paralisia da musculatura faríngea. Poderá surgir febre, geralmente provocada por complicação, como infecção bacteriana secundária, em geral pneumonia de aspiração.

Salienta-se que nos casos menos graves os sinais de botulismo são subtis e poderão não ser diagnosticados.

Botulismo associado a ferimentos

Difere do botulismo alimentar pela ausência de sintomas gastrintestinais e período de incubação superior ao das restantes formas clínicas (4-14 dias). Inicialmente foram descritos casos no contexto de feridas perfurantes, abcessos subcutâneos ou infecções de tecidos profundos. Ultimamente, têm sido descritos como consequência de abrasões, lacerações, incisões cirúrgicas e até fracturas expostas. A febre pode estar presente, sendo que os sinais de infecção poderão estar ausentes.

Diagnóstico

Como com qualquer tipo de patologia, uma anamnese criteriosa seguida de exame físico completo são fundamentais.

Admitida a hipótese clínica de botulismo, na base de suspeita fundamentada, importa obter a confirmação laboratorial definitiva, o que requer métodos especializados e morosos (inoculação da neurotoxina em ratinhos).

Outros métodos de confirmação incluem a demonstração da presença da toxina no soro do doente, ou dos esporos em alimentos, material de feridas, fluidos ou fezes.

A emissão da toxina nas fezes pode durar meses, em especial em lactentes.

Dado que o microrganismo C. botulinum não faz parte da microbiota intestinal na espécie humana, o seu isolamento nas fezes pode considerar-se patognomónico.

O electromiograma mostra padrão característico, mas não é justificado por ser doloroso e eventualmente não conclusivo.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se com outras formas de fraqueza muscular com a síndroma de Guillain-Barré (que é ascendente), paralisia por picada de carraça (a avaliar pela história clínica), doenças metabólicas (em que há vómitos, hipoglicémia e acidose), hipotiroidismo (de evolução mais lenta), a Mistenia gravis (limitada habitualmente a ptose palpebral intermitente), a doença de Werdnig-Hoffman (que respeita os pares cranianos), o enfarte cerebral (localizado), a síndroma de Miller-Fisher, a poliomielite, a intoxicação por metais pesados, por organofosforados e por mariscos.

Há determinados exames complementares com utilidade no diagnóstico diferencial com outras causas de paralisia.

O líquido cefalorraquidiano é normal no botulismo, ao invés do que acontece noutro tipo de patologia do SNC. Na síndroma de Guillain-Barré é muitas vezes normal no início da doença.

Exames de imagem do cérebro, medula espinhal e tórax podem mostrar sinais de hemorragia, inflamação ou neoplasia.

O teste com cloreto de edrofónio reverte por curto período de tempo a paralisia em doentes com Miastenia gravis e em alguns com botulismo.

A inspecção da pele e do couro cabeludo pode revelar uma carraça.

No caso de suspeita de intoxicação por organofosforados, esta deve ser rapidamente confirmada pela premência do uso do antídoto.

Prognóstico

O botulismo poderá requerer internamento hospitalar durante 4 a 8 semanas. A taxa de mortalidade é cerca de 1% a 8%. Nas formas graves poderão surgir sequelas neurológicas. Parece haver maior incidência de estrabismo nas crianças não tratadas.

Nos tipos de botulismo alimentar ou associado a ferimentos, quanto menor a idade, melhor o prognóstico. De salientar que há casos descritos de fadiga crónica e de fraqueza muscular após um ano do diagnóstico.

Nas formas ligeiras a recuperação é total.

Tratamento

O tratamento de qualquer tipo de botulismo implica as seguintes medidas:

Suporte respiratório, nutricional, hidroelectrolítico e cuidados de enfermagem. Em cerca de 50% dos casos de botulismo infantil é necessária a assistência ventilatória/entubação orotraqueal, muitas vezes realizada de forma antecipada e profiláctica nas seguintes situações: reflexo da tosse diminuído e obstrução da via aérea com a acumulação de secreções.

A alimentação deve ser administrada por sonda nasogástrica ou nasojejunal até recuperação da força muscular e da coordenação necessárias à amamentação ou leite por tetina. O aleitamento materno deve ser mantido nas crianças com botulismo.

Deve promover-se o estado de hidratação e usar laxantes como a lactulose para melhorar os sintomas de obstipação.

Em pacientes com < 1 ano de idade: Antitoxina através de administração precoce (sem esperar pelo diagnóstico definitivo) de imunoglobulina humana específica intravenosa /IGIV (BabyBIG®), numa dose única de 50-100 mg/kg para neutralização da neurotoxina livre. Especialmente indicada na forma clínica de botulismo infantil causada pelas toxinas A ou B, os estudos mostram que esta abordagem reduz a gravidade, a duração e a mortalidade da doença. A referida imunoglobulina, com um custo de 45.000 dólares, não se encontra aprovada para uso na Europa. Em caso de necessidade deve ser importada dos EUA (California Department of Health Services): http://www.infantbotulism.org/contact/index.php).

Em pacientes com > 1 ano de idade ou no tipo de botulismo aerossolizado:

Antitoxina equina heptavalente (A-G), disponível nos EUA através dos CDC.

Notas importantes:

    • O uso de antibióticos não está recomendado no BI pelo risco de lise bacteriana no intestino com libertação e absorção de grandes quantidades de neurotoxina. Mais precisamente, há a salientar que os aminoglicosídeos, provocando bloqueio neuromuscular, estão contraindicados por agravamento da parésia.
    • É fundamental evitar o uso de sedativos ou depressores do SNC a fim de manter o impulso respiratório central eficaz.

Prevenção

No botulismo alimentar, a forma mais eficaz consiste no cumprimento das medidas de segurança alimentar e na sua divulgação junto dos agentes responsáveis, bem como na evicção dos alimentos considerados suspeitos. Nos casos de confecção e armazenamento em meio doméstico, os alimentos devem ser aquecidos, pelo menos a 85ºC durante mais de 5 minutos.

No BI, o único factor sobre o qual se pode intervir diz respeito à evicção do consumo de mel em crianças abaixo de um ano idade, uma vez que a inalação de esporos do solo ou poeira nem sempre é passível de prevenção.

No botulismo associado a ferimentos, a melhor prevenção é a evicção do uso de drogas ilícitas injectáveis e o tratamento precoce e adequado das feridas traumáticas com lavagem, desbridamento cirúrgico e insituição de antibioticoterapia adequada.

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TUBERCULOSE

Aspetos epidemiológicos e importância do problema

A tuberculose (TB) resulta da infecção por Mycobacterium tuberculosis (Mtb) ou bacilo de Koch (BK), uma micobactéria descoberta por Robert Koch em 1882. Mais de um século depois, a TB continua a ser uma das doenças infecciosas com maior morbimortalidade. Segundo estimativas da OMS, cerca de um terço da população mundial está infectada com Mtb. Desde o ano 2000 que globalmente a taxa de incidência de TB diminuiu, apenas cerca de 1,4% ao ano, mantendo-se como uma das 10 principais causas de morte a nível global.

A importância da TB como doença pode ser avaliada em termos de incidência – número de casos novos e de recidivas durante determinado período de tempo, geralmente um ano; prevalência – número de casos de TB em determinado ponto no tempo; e mortalidade – número de mortes por TB num determinado período de tempo, geralmente um ano. A taxa de letalidade é a relação entre o número de mortes por TB e o número total dos respectivos casos numa dada população.

Em 2015, segundo a OMS, ocorreram cerca de 10,4 (8,7-12,2) milhões de novos casos, o equivalente a 142 novos casos por 100.000 habitantes. Um milhão dos novos casos ocorreu em crianças. O maior número de casos registou-se na Ásia (61%) e em África (26%), enquanto a Europa representou apenas 3% do total de casos. Cerca de 11% (9%-14%) dos novos casos ocorreram em pessoas infectadas com VIH, sendo as taxas de coinfeção mais elevadas (até 50% em algumas regiões) registadas em África. O número de novos casos de tuberculose multirresistente (TBMR), resistente em simultâneo à isoniazida e rifampicina, foi de 480.000, e o de resistentes apenas à rifampicina, de cerca de 100.000. Apesar da diminuição de cerca de 22% do número de mortes entre 2000 e 2015, as estimativas apontam, ainda, para 1,4 milhões de óbitos em indivíduos seronegativos para VIH e de 0,4 milhões em indivíduos coinfetados com VIH. 

Em Portugal, as taxas de incidência têm diminuído progressivamente fixando-se, pela primeira vez, abaixo de 20 novos casos por 100.000 habitantes (18,6/100.000), em 2015; neste último ano foram notificados 2.089 casos, número que engloba 1.925 casos novos.

Em 2018, a taxa de notificação foi de 16,6 casos por 100 mil habitantes[i]. Os distritos de Porto e Lisboa são os distritos com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm acima dos 20 casos por 100 mil habitantes, 25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respetivamente.

Também, em 2018 a idade mediana dos doentes foi de 49 anos. Foram notificados 34 casos de tuberculose em crianças com menos de 6 anos de idade, correspondendo a uma taxa de incidência neste grupo etário de 6,59 casos/100 mil crianças dos 0 aos 5 anos. Foram identificados 4 casos de formas graves de tuberculose, todas em crianças sem BCG e 3 com critérios individuais para vacinação.

Em 2005 tinham sido notificados 3.543 casos. No entanto, a distribuição de casos notificados é bastante assimétrica, sendo os distritos mais afectados os de Lisboa (627), Porto (551), Braga (157), Setúbal (135) e Aveiro (108). O pico de incidência ocorreu no grupo etário dos 45-54 anos (418/2.089; 19,4%) sendo que apenas 22 casos (1%) foram notificados em crianças e adolescentes com menos de 15 anos. O número total de casos de tuberculose multirresistente (TB-MR) tem vindo a diminuir, tendo sido notificados 18 casos em 2015, em comparação com 40 casos em 2000. Os quatro casos de tuberculose extensivamente resistente (TB-XDR) foram todos notificados na região de Lisboa e Vale do Tejo. O “pico” de casos de TB-XDR verificou-se em 2004, com 13 notificações.

A Figura 1 mostra as taxas de notificação de Tuberculose em Portugal, por distrito, em 2018. Como se pode verificar, os distritos de Porto e Lisboa são aqueles com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm com valores acima dos 20 casos por 100 mil habitantes (25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respectivamente).

De entre as comorbilidades que configuram risco para tuberculose, devemos realçar a infecção por vírus de imunodeficiência humana (VIH). É reconhecida a necessidade de rastreio de todos os doentes com tuberculose para a infecção por VIH, dado o impacte desta comorbilidade no resultado de tratamento da tuberculose. O rastreio de infecção por VIH, foi efectuado em 87,9% dos doentes com tuberculose. Verificou-se que 8,8% dos doentes com tuberculose eram também VIH positivo.

Na população geral, importa referir outros factores de risco com doenças crónicas, nomeadamente diabetes (5,81%), doença neoplásica (6%), doença pulmonar obstrutiva crónica (4,23%).

Fonte: Direcção Geral da Saúde, 2020

FIGURA 1. Taxas de notificação de tuberculose em Portugal, ano 2018.

Os distritos de Porto e Lisboa são os distritos com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm acima dos 20 casos por 100 mil habitantes (25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respetivamente.

Etiopatogénese

As cinco micobactérias que integram o complexo M. tuberculosis são: M. tuberculosis hominis, M. bovis, M. africanum, M. microti e M. canetti. Os agentes patogénicos mais importantes para o Homem são M. tuberculosis e M. tuberculosis bovis. M. tuberculosis é um bacilo não móvel, não formador de esporos, aeróbio, cuja parede celular apresenta um elevado conteúdo de lípidos de alto peso molecular. Cora mal com o método de Gram e, quando corado com o método de Zhiel-Nielsen, resiste à descoloração com álcool e ácido; daí a designação de bacilo ácido-álcool resistente. As micobactérias crescem lentamente (três a seis semanas) em meio de cultura sólido específico, meio de Lowenstein. Os métodos radiométricos culturais (Bactec®, meio líquido) permitem diagnósticos mais precoces, em cerca de sete a 14 dias. Após o crescimento bacteriano em meio sólido ou líquido, a identificação da espécie pode efetuar-se através de provas de hibridização dos ácidos nucleicos. A infecção humana com M. bovis é rara nos países tecnicamente avançados, em que se procede à pasteurização do leite. Embora a transmissão se possa fazer, como no M. tuberculosis hominis por via inalatória, em regra, M. bovis é veiculado por produtos lácteos (via digestiva), podendo invadir os linfáticos da orofaringe ou penetrar na mucosa intestinal.

Tuberculose em idade pediátrica define-se genericamente como o processo mórbido infeccioso originado por micobactérias pertencentes ao complexo Mycobacterium tuberculosis (ver atrás) ocorrendo em indivíduos com menos de 18 anos de idade. A TB pediátrica é um “acontecimento-sentinela” que indicia o contacto da criança com um adulto ou adolescente que elimina e propaga bacilos: a transmissão do bacilo a partir de paciente bacilífero é eficaz se houver convivência estreita e mantida mais de 4 horas/dia no mesmo habitáculo fechado.

A designação de TB primária (ou primoinfecção tuberculosa) refere-se ao conjunto de manifestações biológicas e clínicas, que podem ou não ser demonstradas por imagem radiográfica, aquando da infecção por Mtb num indivíduo até então indemne da infecção.

Reiterando o que foi atrás referido, na maioria dos casos (> 95%) a contaminação faz-se por via respiratória. Com efeito, a transmissão da TB é inter-humana, por inalação de pequenas partículas aerossolizadas, de diâmetro inferior a 5 μm, provenientes de um indivíduo doente.

As partículas contendo Mtb atingem sobretudo alvéolos das áreas mais ventiladas dos pulmões (vértices pulmonares no adulto, porções basais na criança), desencadeando um processo inflamatório parenquimatoso que culmina na formação de granuloma classicamente chamado foco de Ghon. Os bacilos são rapidamente fagocitados pelos macrófagos alveolares continuando, no entanto, a multiplicar-se no interior dos mesmos.

Cerca de 4-8 semanas após a inalação de Mtb, os linfócitos T sensibilizados começam a libertar linfocinas, as quais activam os macrófagos e incrementam a destruição intracelular dos microrganismos inalados.

A resposta inflamatória resulta no recrutamento para o local da infecção de outras células mononucleares como monócitos, macrófagos e linfócitos. Os macrófagos diferenciam-se em macrófagos espumosos, macrófagos epitelióides e células gigantes multinucleadas delimitando o núcleo do granuloma, constituído por macrófagos infectados. Nesta fase, após indução da imunidade adaptativa, o granuloma está rodeado à periferia por uma camada constituída sobretudo por linfócitos T e B. Outras células como neutrófilos, células dendríticas, células natural killer e fibroblastos estão, também, presentes no granuloma.

Este equilíbrio entre a infecção e a resposta do hospedeiro pode persistir indefinidamente, ficando os bacilos confinados apenas ao centro do granuloma, não se desenvolvendo doença (infecção latente).

No entanto, se a infecção progredir, a destruição das células do granuloma origina a necrose caseosa que pode resultar na cavitação do referido granuloma com consequente libertação de bacilos na via aérea.

Macrófagos infectados do granuloma primário podem originar granulomas secundários, no pulmão ou outros órgãos, contribuindo para a disseminação da infecção. Os gânglios linfáticos regionais são atingidos por macrófagos infectados através dos vasos linfáticos, originando uma reação inflamatória local.

O conjunto do granuloma primário e dos gânglios hilares e paratraqueais aumentados de volume é designado por complexo primário tuberculoso. Na infecção primária pode verificar-se compressão brônquica por gânglio, erosão brônquica e disseminação da infeção por via endobrônquica (~ 3-9 meses depois), extensão parenquimatosa para áreas adjacentes do pulmão como a pleura (com derrame pleural; ~ 3-7 meses), disseminação linfática ou hematogénica (~ 1-3 meses a dois anos) com disseminação pulmonar (miliar) ou compromisso de outros órgãos, incluindo meninges, rins, medula óssea, cérebro e tracto gastrintestinal. As manifestações de doença óssea surgem, em regra, mais de um a três anos após a infecção primária e as de doença renal mais de cinco a sete anos depois. De salientar que poderá haver disseminação hematogénica multiorgânica.

Cerca de 8 a 12 semanas após a infecção primária pode detectar-se uma resposta de hipersensibilidade retardada às proteínas de Mtb demonstrável classicamente pela prova tuberculínica ou intradermorreacção de Mantoux evidenciando alergia/prova de Mantoux alérgica (ver adiante). Se anteriormente estava documentada anergia através desta prova, diz-se que ocorreu viragem tuberculínica.

Após a infecção primária, os focos de infecção contendo pequeno número de bacilos e em fase de não replicação (latentes) podem sofrer fibrose. No entanto, pode ocorrer reactivação destes focos, nomeadamente, em situações de: imunossupressão, mesmo que transitória, infecção por VIH, diabetes, insuficiência renal terminal, desnutrição, crianças com menos de cinco anos (especialmente lactentes) e infecção intercorrente (por ex. sarampo). O risco de desenvolvimento de doença após a infecção primária vai decrescendo com a idade, sendo maior nos primeiros dois anos.

Sob o ponto de vista da cronologia de eventos, sintetiza-se a evolução natural da infecção:

  1. Exposição – a criança teve contacto com um adulto ou adolescente com TB pulmonar bacilífera; a prova tuberculínica é negativa (mais propriamente, anérgica), a radiografia de tórax é normal e a criança não apresenta sinais ou sintomas de doença;
  2. Tuberculose infecção ou tuberculose latente – na grande maioria dos casos os bacilos mantêm-se em fase latente, não replicativa, sendo o risco de evolução determinado por circunstâncias do meio e do hospedeiro; nesta fase a prova tuberculínica/intradermorreacção de Mantoux(*) evidencia alergia ou é alérgica, ou as provas imunológicas IGRA (Interferon-Gamma Release Assay) são positivas, mas não se observam sinais ou sintomas de doença; (ver adiante)
  3. Tuberculose doença – as manifestações clínicas ou radiológicas causadas pela infecção por Mtb tornam-se evidentes, o que constitui um “fracasso” imunológico após infecção primária;
  4. Tuberculose latente não tratada – poderá evoluir para à tuberculose doença em ~ 43% das crianças de idade inferior a um ano, em ~ 24% das crianças entre um e cinco anos, e em ~ 5% a 15% dos adolescentes com idade superior a 15 anos.

(*) Nota: a prova tuberculínica ou intradermorreacção de Mantoux realiza-se do seguinte modo: injecção intradérmica de 0,1 mL de tuberculina PPD (Purified Protein Derivate) no 1/3 médio da região ântero-lateral do antebraço esquerdo, paralelamente ao eixo, com bisel da agulha (25-26G) para cima, até se obter pápula de 5-8 mm, e pele em “casca de laranja”. Verificação do tipo de reacção após 48-72 horas com medição da induração (não do eritema). Se não se verificar qualquer reacção, diz-que a prova foi anérgica. (ver Quadros 3 e 8)

Factores de risco

Por cada criança com TB há, pelo menos, um adulto a eliminar e propagar bacilos e, por cada adulto nestas condições, poderá haver uma ou mais crianças infectadas. Este é o conceito do binómio adulto-criança. Assim, o factor mais importante de infecção por Mtb na criança é o contacto com um adulto ou adolescente com infecção tuberculosa. A progressão para doença activa após um contacto depende da interacção entre factores do meio e do hospedeiro (Quadros 1 e 2).

QUADRO 1 – Factores do meio: características da fonte infectante e magnitude do inóculo.

    • Os adultos com exame directo positivo são mais contagiosos do que aqueles em que o Mtb é detectado apenas na cultura da expectoração.
    • As lesões cavitárias (cavernas) e a tosse aumentam o risco de disseminação.
    • O contacto íntimo e mantido com doente, e a coabitação de muitos indivíduos em espaço exíguo, aumentam o risco de infecção.
    • A co-infecção por VIH/SIDA condiciona situações de maior contágio, mesmo que não existam lesões cavitárias.

QUADRO 2 – Factores do hospedeiro: maior probabilidade de infecção e de progressão para doença activa.

    • O risco de progressão para doença activa é inversamente proporcional à idade.
    • A má-nutrição, a co-infecção com VIH, as doenças crónicas como insuficiência renal, hepática ou diabetes mellitus, a terapêutica com imunossupressores, ou doenças que se acompanham de imunossupressão temporária, como o sarampo, são factores que favorecem a evolução para tuberculose-doença.
    • O risco de progressão para tuberculose extrapulmonar (nomeadamente meníngea) é maior nas crianças de idade inferior a um ano.
    • O risco de progressão para tuberculose extrapulmonar (nomeadamente meníngea) é maior no primeiro ano após o início do processo de tuberculose-infecção.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos de TB, as manifestações consideradas clássicas como febre prolongada, pneumonia de evolução arrastada, anorexia, perda de peso, tosse persistente, hemoptise, etc. relacionam-se com doença de evolução avançada; nas crianças mais jovens existe maior probabilidade de sintomas vagos e inespecíficos, tais como tosse, febre, perda ou não progressão ponderal, mal-estar, adinamia, vómitos, diarreia e, raramente, hipersudorese noturna.

Em 27 doentes com TB internados na Unidade de Infecciologia do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, no período de dois anos (2004-2005) o diagnóstico de TB foi admitido como primeira hipótese em 15, tendo em conta o conhecimento da epidemiologia intrafamiliar. Dos restantes, os motivos de internamento foram diversos, tais como: febre, vómitos, diarreia, astenia, mau estado geral, alterações do estado de consciência, dificuldade respiratória e pneumonia. De salientar que sintomas vagos e persistentes em contexto epidemiológico sugerindo tuberculose, obrigarão à realização de exames complementares no sentido de excluir ou confirmar o diagnóstico.

Duas situações particulares, relacionáveis com fenómeno de hipersensibilidade mediada por células, poderão indiciar TB primária: o eritema nodoso e a ceratoconjuntivite flictenular.

O primeiro traduz-se pelo aparecimento de nódulos e placas de 1-5 cm de diâmetro, dispostos tipicamente e de modo grosseiramente simétrico sobretudo ao nível das regiões pré-tibiais, mas podendo surgir em outras localizações. (ver capítulo na Parte sobre vasculites)

A conjuntivite flictenular caracteriza-se por grupos de pequenos nódulos amarelo-acinzentados no limbo, na córnea ou na conjuntiva bulbar, persistindo por vários dias e, por vezes, com carácter recorrente. Podem causar lacrimejo intenso, fotofobia, dor e sensação de corpo estranho.

Neste capítulo são abordadas duas grandes formas clínicas de TB:

  1. TB torácica, subdividida, arbitrariamente, em pulmonar e extrapulmonar;
  2. TB extratorácica, ocorrendo em menos de 5% dos casos pediátricos, sendo que todos os órgãos podem ser atingidos.

1. Tuberculose torácica

Forma adenopática traqueobrônquica

Na idade pediátrica é a forma mais frequente, traduzida por compromisso ganglionar evidenciado em radiografia do tórax e/ou TC. O aumento de volume dos gânglios ao nível da bifurcação brônquica e mediastino poderá levar a compressão brônquica, com atelectasia ou enfisema se se verificar compressão associada a mecanismo valvular com retenção progressiva de ar. Outras possibilidades de evolução natural do componente ganglionar do complexo primário são esquematizadas em desenho na Figura 2. (Segundo Thomé Villar e Ducla Soares)

A Figura 3 mostra aspecto radiográfico da forma adenopática traqueobrônquica (radiografia do tórax PA e perfil): opacidade arredondada de limites bem definidos, confluente com o hilo pulmonar.

Notas importantes:

    • As lesões tuberculosas dos gânglios cicatrizam mais lentamente que as do foco de inoculação.
    • Conforme o estado do caseum quando se dá a perfuração do gânglio para o lume brônquico – elástico, desidratado ou líquido – podem resultar síndromas obstrutivas ou disseminação brônquica.
    • O tecido ganglionar no lume brônquico, e o tecido de granulação em torno da fístula adenobrônquica podem originar sequelas nas for- mas arrastadas (fibrose, estenose e calcificação).

FIGURA 2. Esquema das possibilidades de evolução natural do componente ganglionar do complexo primário (consultar texto).

FIGURA 3. Imagem radiográfica de adenopatia traqueobrônquica esquerda: A – Póstero-anterior; B – Perfil. (NIHDE)

Foco primário

Esta forma corresponde às manifestações resultantes da progressão do foco parenquimatoso pulmonar. Clinicamente é traduzida por quadro de bronquite e, radiologicamente, por foco de condensação (opacidade arredondada). As suas dimensões não ultrapassam em geral dois centímetros; poderá ser visualizado na radiografia do tórax concomitantemente com a adenopatia.

Disseminação brônquica

O quadro clínico de disseminação brônquica, quer a partir do gânglio, quer a partir do foco primário, é o de broncopneumonia caseosa de evolução subaguda ou crónica (formação de caseum, Figura 2). Tal situação poderá obrigar ao diagnóstico diferencial com quadro broncopneumónico relacionável com agentes infeciosos que não Mtb; a história clínica e os achados epidemiológicos associados ao resultado da prova tuberculínica ou testes IGRA contribuem para a destrinça. (Figura 4)

FIGURA 4. Disseminação broncogénica de caseum: imagens radiográficas nodulares dispersas, associadas a adenopatia hilar. (NIHDE) (ver Figura 2)

Tuberculose miliar

Trata-se duma forma grave de disseminação linfo-hematogénica a qual pode atingir qualquer órgão. Em geral, surge em crianças debilitadas e/ou desnutridas e manifesta-se por febre, mau estado geral, perda de peso, suores nocturnos, hepatosplenomegália, podendo associar-se a meningite. Existe um quadro de pneumonite bilateral que se traduz radiologicamente por infiltrados miliares/micronódulos de 1-2 mm, confluentes, dispersos em ambos os campos pulmonares (daí o nome de granúlia) e arredondados como grãos de milho (daí o nome de miliar). É notória a dificuldade respiratória que, nos pequenos lactentes pode partilhar sinais com a bronquiolite. Face ao estado de debilitação da criança, a prova tuberculínica poderá ser anérgica. (Figura 5)

FIGURA 5. Padrão radiográfico de tuberculose miliar. (NIHDE)

FIGURA 6. TAC torácica: lesões cavitárias de tuberculose. (NIHDE)

Tuberculose pulmonar reactivada

Esta forma, típica dos adolescentes e adultos, é muitas vezes designada por “tuberculose pulmonar tipo adulto”; corresponde à chamada tuberculose pós-primária, epifenómeno de reactivação endógena ou reinfecção exógena. Na forma de doença avançada surgem lesões cavitárias localizadas predominantemente nos segmentos apicais dos lobos superiores, correspondendo a zonas com maior pressão de oxigénio (Figura 6). A partir de tais lesões cavitárias verifica-se disseminação endobrônquica de bacilos, o que contribui para propagação de Mtb junto dos contactos. Os sintomas e sinais gerais são os referidos anteriormente, sendo que a tosse e hemoptise poderão indiciar cavitação e erosão brônquica.

Derrame pleural tuberculoso

O derrame pleural tuberculoso, de tipo serofibrinoso, que pode acompanhar a infecção primária, representa uma resposta imune ao Mtb. A prova tuberculínica é geralmente exuberante, e a resposta ao tratamento é em geral rápida quando coadjuvada por corticóides. Mais frequente na idade escolar e na adolescência tem início agudo com febre, dor torácica ou abdominal, agravando-se com a respiração e a tosse. A análise do líquido pleural evidencia linfócitos e elevado teor em proteínas, não contendo bacilos. A imagem radiológica do derrame pleural é sobreponível à associada a outras etiologias. (Figura 1 do Capítulo sobre Derrame Pleural-Parte XIV)

Pericardite tuberculosa

Esta forma de pericardite surge quando Mtb atinge o pericárdio por via hematogénica ou por contiguidade a partir da pleura ou pulmão. Se o processo inflamatório persistir com esta localização, poderá resultar resposta celular imune com ruptura de granulomas para o espaço pericárdico conduzindo ao desenvolvimento de pericardite constritiva.

2. Tuberculose extratorácica

Linfadenite superficial

A linfadenite superficial extratorácica surge sobretudo nas regiões cervical, supraclavicular e submaxilar, embora outras cadeias ganglionares possam ser atingidas. Trata-se da forma mais comum de TB extratorácica na idade pediátrica. Historicamente é relacionada com a ingestão de leite de vaca não pasteurizado veiculando M. bovis, o que ocorria cerca de seis meses a anos depois. Ao nível das regiões, inguinal, axilar e epitroclear pode associar-se a TB da pele ou sistema esquelético. Na região supraclavicular pode associar-se a extensão de lesão primária de segmentos superiores do pulmão ou abdómen. A tumefacção ganglionar uni ou bilateral, pode atingir grandes dimensões e originar a compressão de estruturas adjacentes. É acompanhada de sinais inflamatórios locais e regionais, com coloração eritematosa e violácea da pele, aderente aos planos profundos e tendência para a fistulização. Como sequela forma-se uma cicatriz quelóide designada habitualmente por escrófula.

Meningite tuberculosa

A meningite tuberculosa corresponde a cerca de 0,3% das infecções tuberculosas não tratadas em idade pediátrica. Manifesta-se na maioria dos casos no período de seis a 24 meses após infecção primária e em crianças com menos de cinco anos. Cerca de 40% a 50% das crianças com meningite tuberculosa têm outros focos de infecção tuberculosa, incluindo TB miliar. O início pode ser insidioso com sintomas vagos e inespecíficos como febrícula, cefaleia e alterações do comportamento, irritabilidade ou sonolência. O diagnóstico precoce é fundamental tendo em vista a redução da morbilidade e mortalidade, exigindo-se do clínico um elevado índice de suspeição. Classicamente, são descritos três estádios evolutivos, ao longo de três a quatro semanas:

  • Estádio I – febre, irritabilidade, sonolência;
  • Estádio II – alterações do comportamento, por vezes sinais focais; podem surgir sinais meníngeos e ocorrer convulsões;
  • Estádio III – delírio e coma; sinais meníngeos francos, sinais neurológicos focais. O processo inflamatório das meninges afecta sobretudo a base do encéfalo (meningite basilar), com repercussão significativa sobre os nervos cranianos, levando a hipertensão intracraniana, deterioração do estado mental e coma. A análise do líquido cefalorraquidiano revela aumento do número de leucócitos (50-500/mm3), sendo que na fase inicial poderão predominar, quer linfócitos, quer neutrófilos; hiperproteinorráquia e hipoglicorráquia. Embora o exame cultural seja o método de excelência para detecção de Mtb, os métodos de biologia molecular/reacção em cadeia da polimerase (PCR) específicos para Mtb são de grande utilidade para o diagnóstico.
Tuberculose osteoarticular

Esta forma clínica de início insidioso pode ocorrer após disseminação hematogénica ou por extensão directa a partir de gânglio regional caseoso. Inclui diversas entidades nosológicas: TB da coluna vertebral (mal de Pott), a forma mais frequente; artrite coxofemoral, com lesão destrutiva da cabeça do fémur e acetábulo; dactilite com compromisso dos dedos das mãos e pés. No mal de Pott os segmentos mais atingidos são, por ordem de frequência, o torácico inferior, o lombar e o cervical. Ocorre destruição da porção anterior do corpo vertebral, com compromisso contíguo de várias vértebras em diferentes fases de destruição e, com frequência, abcesso frio paravertebral extenso. Clinicamente, a criança encontra-se, regra geral, assintomática, com cifose acentuada.

Tuberculose abdominal

A etiopatogénese desta forma clínica relaciona-se, quer com a deglutição de material pulmonar infectado com bacilo humano (forma secundária), quer com a deglutição de produtos alimentares contaminados pelo bacilo bovino (forma primária). Trata-se duma forma relativamente rara nos países industrializados em que as medidas preventivas de medicina humana e veterinária contemplam, designadamente, a detecção da tuberculose bovina e a pasteurização do leite. A deglutição de Mtb origina ulceração da mucosa intestinal com compromisso dos gânglios mesentéricos, e especial predilecção pelos gânglios ao nível do íleo terminal (lesão caseosa com consequente erosão) (Figura 7); esta lesão pode levar a perfuração intestinal originando quadro de peritonite tuberculosa. Para além da ascite, poderá surgir sintomatologia diversa: dor abdominal, síndroma obstrutiva, diarreia crónica inflamatória, massas abdominais palpáveis, etc..

Tuberculose urogenital

Rara na idade pediátrica, ocorre por disseminação hematogénica, correspondendo a reactivação tardia. As manifestações incluem essencialmente piúria (estéril), hematúria e proteinúria. A suspeita implica a detecção específica de Mtb na urina.

FIGURA 7. Radiografia abdominal simples evidenciando adenopatia abdominal calcificada no contexto de tuberculose abdominal. (NIHDE)

Tuberculose congénita

É uma forma rara cuja etiopatogénese se relaciona, quer com transmissão por via transplacentar, formando-se o complexo primário no fígado, quer com aspiração ou deglutição de material infectado a partir do líquido amniótico ou do canal genital. As manifestações incluem quadros de sépsis, hepatosplenomegália, dificuldade respiratória precoce, com padrões radiográficos diversos (pneumonia de aspiração, simile granúlia, etc.).

Outras formas de tuberculose extratorácica

Sucintamente faz-se referência (por razões didácticas históricas) a outras formas de tuberculose extratorácica, raras:

  • Tuberculose cutânea traduzida por tubercúlides papulonecróticas, tuberculose verrucosa cútis, e eritema nodoso (já citado, por hipersensibilidade);
  • Tuberculoma cerebral originando sinais focais e de hipertensão intracraniana;
  • Laringite tuberculosa por fezes associada a tuberculose pulmonar;
  • Tuberculose nasofaríngea resultante de disseminação hematogénica ou secundária a expectoração de material pulmonar estendendo-se à nasofaringe;
  • Tuberculose oftálmica, rara, por disseminação hematogénica ou por propagação a partir dos tecidos circundantes; as formas clássicas, com valor histórico, hoje excepcionais, englobam a ceratoconjuntivite flictenular, já citada, a uveítes e a coroidite clássica agregando os chamados tubérculos coroideus, identificáveis por fundoscopia.

Diagnóstico de tuberculose

Aspectos gerais

Ao contrário do adulto, em que o diagnóstico de TB é directo, baseado na história clínica e confirmado por exames culturais, na criança o diagnóstico de TB é geralmente indirecto, baseando-se nas histórias clínica e epidemiológica valorizando o binómio adulto-criança, e na positividade da prova tuberculínica e/ou de uma prova imunológica/de imunodiagnóstico. (ver adiante)

No que respeita a resultados de exames complementares correntes, importa realçar que a fórmula sanguínea é em geral normal, a velocidade de sedimentação está aumentada e a proteína C reactiva evidencia em geral, também valores elevados. Contudo, estes resultados exprimem de modo inespecífico apenas repercussão de um processo inflamatório sobre o estado geral do organismo. O doseamento da adenosinadeaminase (ADA) no LCR ou líquido pleural poderá orientar no sentido de infecção por Mtb se os valores forem superiores a 40 U/L; no entanto, tal achado não é patognomónico, pois poderá verificar-se idêntica alteração, designadamente em casos de artrite reumatóide. Por fim, cita-se a realização de fundoscopia podendo identificar a presença de tubérculos coroideus e confirmar o diagnóstico.

Prova tuberculínica

A prova tuberculínica/intradermorreacção de Mantoux mantém a sua inegável importância no processo diagnóstico da TB; contudo, deverão ser interpretadas no contexto de eventual vacinação anterior e de parâmetros epidemiológicos, clínico-laboratoriais e radiológicos. O Quadro 3 pormenoriza aspectos importantes relacionados com este procedimento. A técnica de realização deste é descrita na caixa a seguir ao quadro.

QUADRO 3 – Interpretação da prova tuberculínica.

O BCG determina, em geral, reacção alérgica após prova tuberculínica evidenciando alergia (zona de induração 10 mm). No entanto, muitas crianças vacinadas apresentam resultados de provas tuberculínicas com induração de menores dimensões ou até anergia, sem que tal signifique menor protecção em relação às formas graves de TB.*

    • Se existir contexto epidemiológico, uma prova tuberculínica anérgica e induração até 10 mm não deverá excluir TB. Deverão ser efectuados exames radiológicos e laboratoriais.
    • Cerca de 10% das crianças com TB-doença evidenciam provas tuberculínicas anérgicas. Como causas desta situação destacam-se idade baixa, infecção tuberculosa grave em curso, má-nutrição e imunossupressão.
    • Uma prova tuberculínica com induração ≥ 10 mm deve ser sempre valorizada, caso exista contexto epidemiológico sugestivo e BCG administrada há mais de cinco anos.
    • Uma prova tuberculínica com induração ≥ 15 mm indica sempre TB-infecção ou TB-doença (excepto quando há história de TB anterior tratada: a prova tuberculínica continua a evidenciar resultado compatível com alergia após a infecção, mesmo nas situações de doença considerada tratada).
    • Num imunodeprimido, qualquer dimensão de induração deverá ser valorizada.
    • Reacção alérgica com induração ≤ 5 mm é considerada ~ anergia. Tal pode acontecer também nas 1as 6-10 semanas após início da infecção.
    • Reacção com induração de 6-9 mm poderá estar associada a infecção por micobactérias atípicas.
    • Nos vacinados com BCG a alergia poderá não ser permanente.

(*) Além da prova de Mantoux existem outras provas tuberculínicas, hoje em desuso pela fraca sensibilidade e especificidade (por exemplo, com micropunções, adesivo com tuberculina percutânea tipo Volmer, etc.), citados por razões históricas. Segundo alguns autores, a vacinação com BCG poderá dificultar o diagnóstico, por problemas de interpretação das provas tuberculínicas.

 

Técnica de realização da prova de Mantoux: – desinfecção da pele com álcool no terço médio do antebraço esquerdo; – seringa descartável de 1 mL (graduada em centésimos de mL) com agulha de calibre 26 e comprimento de 10 mm; – administração de 0,1 mL de tuberculina purificada (PPD RT 23) na localização referida; – injecção intradérmica de modo a criar pápula de 5 mm com bordos bem delimitados desaparecendo em 10-15 minutos.


Provas de imunodiagnóstico

Como alternativa e/ou complemento à prova tuberculínica recentemente foram desenvolvidas novas provas diagnósticas, como a IGRA, acrónimo do inglês Interferon-Gamma Release Assay, baseadas na detecção da secreção/libertação de interferão/IFN-gama pelos linfócitos T ao entrar em contacto com antigénios de M. Tuberculosis, o que não acontece com os antigénios da estirpe atenuada BCG.

Existem comercializadas duas técnicas IGRA, respectivamente T-SPOT.TB e QuantiFERON-TB Gold.

  • utilizando o teste T-SPOT.TB: na presença de tuberculosis (contendo antigénios específicos – ESAT-6, CFP-10 e TB7.7 – não existentes em M. bovis, nem no complexo M. avium) ocorre estimulação de linfócitos T no sangue periférico, permitindo a contagem do número de linfócitos T produtores de IFN-gama.
  • utilizando o teste QuantiFERON-TB Gold é medido o teor de IFN-gama.

As principais vantagens dos testes de detecção de IFN-gama relativamente às provas tuberculínicas são a maior especificidade devido à falta de reactividade cruzada com BCG e micobactérias atípicas, e maior sensibilidade para o diagnóstico nos casos de crianças com infecções por VIH e com síndromas de má-nutrição. Um resultado positivo dos testes IGRA confirma apenas um estado de infecção e não necessariamente de doença, mas um resultado negativo não exclui, nem doença, nem infecção. Os resultados dos testes IGRA são, por vezes, bastante discordantes com a prova tuberculínica, pelo que em algumas situações poderão ser usados ambos de forma sequencial. Em crianças com idade inferior a cinco anos os dados disponíveis são escassos e não consensuais, mas os resultados sugerem uma menor sensibilidade que em crianças mais velhas e adultos.

Pesquisa de M. tuberculosis (métodos convencionais)

A pesquisa de Mtb na idade pediátrica deve ser efectuada no suco gástrico, de manhã, em jejum, com a criança em decúbito mantido desde a véspera, e durante três dias (três amostras). Deve introduzir-se 20 a 50 ml de água destilada através de sonda de aspiração, à temperatura ambiente, recolher-se o aspirado e colocá-lo em recipiente estéril. O produto deve ser transportado à temperatura ambiente, devendo a entrega no laboratório e o processamento ser feitos nos 15 minutos seguintes; se tal não for possível dever-se-á congelar (-20ºC). O método mais económico e com maior percentagem de positividade no adulto é a cultura da expectoração, a qual é raramente positiva na criança, dado esta ser habitualmente paucibacilar. A positividade aumenta em crianças de idade superior a sete anos, colaborantes e com tuberculose endobrônquica ou parenquimatosa. Tal como com o suco gástrico, devem ser obtidas três amostras. Em qualquer idade, um exame directo negativo, em qualquer produto, não exclui tuberculose. A colheita de secreções brônquicas, líquido pleural, líquor ou urina deve ser ponderada caso a caso.

De acordo com estudos recentes provenientes da China (por Sun, et al), comprovou-se a vantagem (em termos de sensibilidade e rapidez do diagnóstico bacteriológico), da utilização do líquido de lavagem broncoalveolar, relativamente ao uso da expectoração, através do teste designado Xpert MTB/RIF.

Pesquisa de M. tuberculosis por técnica de amplificação do ácido nucleico

As técnicas de amplificação do ácido nucleico (TAAN) podem identificar directamente Mtb com a vantagem de não ser necessário crescimento em meio de cultura. No entanto, um resultado positivo nas TAAN não excluiu a realização de cultura, pela necessidade de efectuar os testes de sensibilidade aos antibacilares.

Outros exames complementares

Apesar de não haver um padrão radiológico específico da TB pulmonar na criança, a radiografia do tórax em incidências póstero-anterior e perfis é fundamental. A alteração mais frequente é a adenopatia mediastínica (hilar), que poderá ser responsável por atelectasia. Outros sinais radiológicos incluem a pneumonia, o derrame pleural, o padrão de disseminação miliar ou broncogénica e, nos adolescentes, as imagens sugestivas de cavitação (Figuras 2, 3 e 4). Quando são detectadas alterações radiológicas, deve ser efectuada tomografia computadorizada (TC), para melhor definição das características e extensão das lesões. A broncoscopia está indicada em situações específicas. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Indicações da broncoscopia.

    1. Perturbações da ventilação
    2. Imagens de disseminação broncogénica
    3. Adenomegália volumosa látero-traqueal ou traqueobrônquica direita
    4. Redução súbita de dimensões de adenomegália em radiogramas sucessivos
    5. Verificação de sinais de “escavação” ganglionar
    6. Hemoptises
    7. Doente VIH+


Em casos especiais de derrame pleural poderá estar indicada biópsia pleural para detecção de eventual granuloma. Igualmente, em função do contexto clínico, nalguns casos de tuberculose miliar/granúlia poderá estar indicada biópsia da medula óssea.

Nas formas extratorácicas deverão ser realizados exames de imagem (radiografia, ecografia, TC, RM, conforme indicado) para melhor caracterização das lesões, e biópsia para colheita de produtos, que devem ser sempre enviados para realização de exame directo por microscopia óptica, TANN e cultura.

Na meningite tuberculosa além dos exames de imagem já citados, que poderão evidenciar sinais de edema cerebral, hidrocefalia, ventriculomegália ou tuberculomas, deve ser efectuada punção lombar para colheita e análise do LCR, incluindo cultura (negativa em 30% dos casos), PCR/reacção da polimerase em cadeia, e pesquisa de Mtb por TANN.

Perante a suspeita de meningite ou granúlia, a realização de fundoscopia é fundamental, pois a presença de tubérculos coroideus pode confirmar o diagnóstico.

Diagnóstico diferencial

Apesar de Portugal ser actualmente um país de baixa incidência, o diagnóstico diferencial de TB deve ser efectuado em situações de pneumonia de evolução arrastada, meningoencefalite, síndroma febril prolongada e de origem não determinada; síndromas de etiopatogénese diversa associadas a derrame pleural, doença articular, adenopatia superficial, eritema nodoso, conjuntivite flictenular, etc..

Tratamento

Princípios gerais

O tratamento da TB inclui a administração de fármacos ao doente infectado e medidas de Saúde Pública para controlo da infecção a nível comunitário. As características de cada doente devem ser tidas em conta, designadamente, a idade, o local da infecção, assim como a eventualidade de estado de imunossupressão e de coinfecção com VIH.

Os Quadros 5 e 6 discriminam respectivamente fármacos antibacilares de 1ª e 2ª linhas actualmente utilizados.

QUADRO 5 – Posologia dos antibacilares de primeira linha.

Rifampicina 15 mg/kg/dia (10-20 mg/kg/dia); máx. 600 mg
Isoniazida 10 mg/kg/dia (7-15 mg/kg/dia); máx. de 300 mg
Pirazinamida 35 mg/kg/dia (30-40 mg/kg/dia)
Etambutol 20 mg/kg/dia (15-25 mg/kg/dia)

QUADRO 6 – Posologia de antibacilares de segunda linha.

Amicacina 15-22,5 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Canamicina 15-30 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Capreomicina 15-30 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Levofloxacina 15-20 mg/kg/dia (máx. 750 mg)
Moxifloxacina 15-20 mg/kg/dia (máx. 400 mg)
Etionamida 15-20 mg/kg/dia (máx. 1000); 2 tomas
Cicloserina 10-20 mg/kg/dia (máx. 1000 mg); 1-2 tomas
PAS (ácido para-amino-salicílico) em carteiras 150 mg/kg/dia (máx. 12.000 mg); 2-3 tomas
Linezolide 20 mg/kg/dia (máx. 1200 mg); 2 tomas

Logo após o início da terapêutica antibacilar tornou-se evidente que a emergência de resistência de Mtb se desenvolveria a uma taxa previsível se os sucessivos fármacos fossem usados em monoterapia.

Por conseguinte, uma vez que o tratamento tem por objectivo principal a erradicação de Mtb, dever-se-á usar sempre um esquema de politerapia que inclua fármacos bactericidas. Esta associação de fármacos impedirá o aparecimento de estirpes mutantes e reduzirá o tempo de tratamento; este, deverá, no entanto, ser suficientemente longo para permitir a esterilização das lesões.

Os esquemas-padrão de tratamento para as formas de TB torácica e para a maioria das formas de TB extratorácica, pressupõem seis meses de duração. Em determinadas situações poderão ser mais longos, com excepção das formas multirresistentes e extensivamente resistentes, não excedendo contudo um ano.

O tratamento com fármacos que actuam sobre bacilos em multiplicação activa é bastante eficaz. No entanto, para conseguir a esterilização das lesões na presença de bacilos em estado latente e/ou multiplicação lenta ou intermitente, o tratamento deve ser prolongado.

No adulto, a terapêutica intermitente (duas a três vezes/semana) tem interesse em situações de suspeita de má adesão ao tratamento diário ou em ambientes com dificuldades de acesso aos serviços de saúde, o que implica supervisão/vigilância rigorosas.

Em determinados contextos deverá adoptar-se a estratégia de toma observada direta (TOD), em que o profissional de saúde observa e confirma a toma dos antibacilares pelo doente.

Sendo a multiplicação do bacilo proporcional à pressão de oxigénio no meio, torna-se fácil compreender que as lesões poderão conter três tipos de populações microbianas distintas:

  • bacilos em multiplicação activa, nas paredes das lesões caseosas das cavernas;
  • população mais reduzida de bacilos, fagocitados pelos macrófagos (em meio ácido, sob o efeito de várias enzimas) com multiplicação lenta e ocasional;
  • bacilos extracelulares em focos caseosos sólidos com multiplicação intermitente.

De salientar que as micobactérias podem sobreviver durante anos em estado latente (de quiescência) quando o metabolismo é inibido por baixa pressão de oxigénio ou pH baixo.

Os testes de sensibilidade aos antimicrobianos são habitualmente efectuados em duas fases. Na primeira são testados os fármacos de 1ª linha que incluem isoniazida/INH, rifampicina/RIF, pirazinamida/PZA e etambutol/EMB. Se o microrganismo for multirresistente, são testados numa 2ª fase, os de 2ª linha.

Os testes de sensibilidade (dado o crescimento lento das micobactérias) demoram, em média, duas semanas para os de 1ª linha e duas a quatro semanas para os de 2ª linha.

A propósito do fenómeno das resistências a fármacos, os quais são administrados a pessoas doentes, importa proceder à seguinte sistematização:

*considerando o fármaco

      • Monorresistência – resistência apenas a um dos antibacilares de 1ª linha;
      • Polirresistência – resistência a mais do que um dos antibacilares de 1ª linha;
      • Multirresistência – resistência simultânea à INH e RIF a que se podem associar resistências a outros fármacos antibacilares;
      • Resistência extensiva – resistência simultânea a INH, RIF, qualquer quinolona e, no mínimo, a um dos três fármacos injectáveis de segunda linha.

*considerando o doente

      • Resistência inicial (primária) – resistência em doentes a submeter a um primeiro tratamento; trata-se dum indicador epidemiológico de excelência, reflectindo o reservatório de bacilos circulantes na comunidade;
      • Resistência adquirida (secundária) – resistência demonstrável em doentes já em tratamento (inicialmente sensíveis, tornando-se resistentes); traduz casos de falência terapêutica.

Esquemas de tratamento

Tuberculose infecção ou tuberculose latente

Não existe uniformidade de critérios para a terapêutica da tuberculose-infecção ou tuberculose latente (que, de facto corresponde ao conceito de quimioprofilaxia secundária – ver Glossário geral).

Em Portugal recomenda-se a administração de isoniazida durante seis a nove meses ou, em alternativa, isoniazida e rifampicina por um período de três meses. Se confirmada resistência à isoniazida recomenda-se rifampicina durante quatro meses.

Têm indicação para tratamento da infecção latente, crianças com idade inferior a cinco anos submetidas a terapêutica actual com fármacos imunossupressores, especialmente fármacos biológicos, infecção por VIH, desnutrição grave e doença depauperante.

Estudos recentes apontam, por mecanismo não completamente esclarecido, para uma melhoria do prognóstico da tuberculose nos pacientes com diabetes mellitus associada, submetidos a tratamento com metformina.

Tuberculose doença

Nas formas de TB pulmonar (esquema terapêutico inicial) recomenda-se a utilização de três ou quatro fármacos durante dois meses com pirazinamida, isoniazida, rifampicina e etambutol.

Após este período são mantidas a isoniazida e a rifampicina durante mais quatro meses. Em regiões com elevada resistência à isoniazida, ou no doente com baciloscopias positivas, doença pulmonar extensa, imunodeprimidos (infecção por VIH ou outra) e formas extrapulmonares graves, a terapêutica inicial deverá incluir sempre quatro fármacos.

Nota: A utilização de estreptomicina (citada no quadro) como primeira linha não é recomendada em nenhuma das formas de doença.

Na resistência isolada à isoniazida, esta deve ser substituída por uma quinolona (levofloxacina ou moxifloxacina), mantendo terapêutica durante seis a nove meses. Na resistência isolada à rifampicina recomenda-se um esquema de multirresistência com ou sem isoniazida.

O tratamento da TB-MR, deve ser orientado pelas susceptibilidades encontradas na criança e/ou na fonte infectante. Como regra geral, devem incluir pirazinamida e, no mínimo, quatro fármacos de segunda linha aos quais se julgue não haver resistência.

A duração do tratamento deve ser individualizada em função da resposta clínica e laboratorial.

Como regra geral recomenda-se uma fase inicial intensiva de oito meses e uma fase de consolidação, no mínimo, com três fármacos comprovadamente activos (duração de 12 meses).

O tratamento deve ser administrado, na totalidade, em sistema TOD. Todos os referidos fármacos podem causar reacções adversas importantes as quais poderão obrigar a modificação da terapêutica e/ou suspensão de alguns.

Nos casos de TB-MR e TB-XDR a monitorização bacteriológica deverá ser mensal até final do tratamento e repetida, respectivamente, 6 e 12 meses após suspensão da terapêutica.

Nos casos de TB pulmonar a radiografia de tórax deverá ser realizada de seis em seis meses e no final do tratamento. O doente deve ser observado por médico mensalmente durante o tratamento e, posteriormente, aos 3, 6 e 12 meses, no mínimo.

Outras formas de tuberculose

No tratamento da linfadenite tuberculosa poderá ser necessária a remoção cirúrgica do gânglio e da fístula à pele. A meningite tuberculosa, e a tuberculose osteoarticular obrigam sempre a terapêutica quádrupla inicial (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol) durante dois meses, seguida de dupla (isoniazida e rifampicina) no total de 12 meses.

Situações especiais
  • A corticoterapia está indicada em todas as situações em que o processo inflamatório causado pela infecção tuberculosa possa ser factor adjuvante para o estabelecimento de complicações e sequelas. O “desmame” dos corticóides deve ser muito lento, em quatro a seis semanas. O Quadro 7 elucida sobre as indicações universais e a ponderar.
  • A coinfecção por VIH, menos frequente na criança do que no adulto, obriga no entanto ao respectivo rastreio em todas as crianças com tuberculose-doença. A terapêutica da criança VIH positiva com TB é semelhante à da criança VIH negativa. Contudo, devem ser ponderados esquemas terapêuticos mais longos se a resposta inicial for lenta.
    A introdução dos fármacos antiretrovíricos inibidores da protease (IP; por ex. indinavir e nelfinavir) trouxe problemas adicionais na terapêutica antibacilar destes doentes, nomeadamente em relação à utilização das rifamicinas (rifampicina e rifabutina).
    Sendo as rifamicinas indutoras do citocromo P450 hepático, aceleram o metabolismo dos IP (a rifampicina é o indutor mais potente) condicionando concentrações séricas baixas e níveis infraterapêuticos dos referidos antiretrovíricos. Estes, por sua vez, ao retardarem o metabolismo das rifamicinas, elevam os seus níveis séricos com consequente risco de toxicidade. Assim, a rifampicina não deve ser utilizada conjuntamente com os IP actualmente disponíveis; contudo, a rifabutina poderá ser uma alternativa eficaz, desde que se efetcuem ajustes posológicos (redução da dose de rifabutina e aumento da referente aos IP).

QUADRO 7 – Corticoterapia na tuberculose.

Indicações universaisIndicações a ponderar
    • Granúlia/miliar
    • Meningite tuberculosa
    • Tuberculose endobrônquica
    • Pericardite tuberculosa
    • Derrame pleural
    • Perturbação da ventilação
    • Muito mau estado geral

Prevenção

A prevenção da tuberculose exige uma acção harmónica entre as várias estruturas da Saúde, com detecção precoce dos casos e seu tratamento eficaz, rastreio dos contactos, quimioprofilaxia e vacinação.

Quimioprofilaxia (primária)

Consiste na administração profiláctica de fármacos antibacilares a crianças ainda não infectadas e em contacto com doente que elimina e propaga bacilos, por conseguinte em risco de adquirirem a tuberculose (Quadro 8). Como regra, a quimioprofilaxia primária está indicada em crianças de idade inferior a cinco anos. No entanto, a quimioprofilaxia deverá ser ponderada, caso a caso, em todas as situações de maior risco de evolução para doença activa. Habitualmente, consiste na administração de isoniazida em monoterapia. Quando haja resistência da fonte infectante à isoniazida, alguns autores preconizam a administração de rifampicina, enquanto outros preferem a administração conjunta de isoniazida e rifampicina. Para além da prova tuberculínica e/ou testes IGRA, antes de iniciar a quimioprofilaxia deverá ser efectuada radiografia de tórax, de modo a excluir doença.

QUADRO 8 – Quimioprofilaxia (primária).

Indicações Duração No final
Contactos intrafamiliares ou muito próximos de doentes bacilíferos com:
    • Idade inferior ou igual a 5 anos (a ponderar caso a caso nas crianças com idade superior)
    • Imunodeficiência congénita ou adquirida
    • Doença grave
    • Terapêutica prolongada (superior a um mês) com corticóides em doses imunossupressoras
    • Outras terapêuticas imunossupressoras
Enquanto se mantiver o contacto infetante e mais três meses após este terminar Realizar prova tuberculínica ou teste IGRA
    • Prova tuberculínica anérgica e ausência de critérios de tuberculose-doença: suspender a terapêutica
    • Prova tuberculínica alérgica (TB-infecção ou TB-doença): Avaliar a situação e tratar em função do contexto clínico-epidemiológico

Vacinação

A vacinação com BCG segue as recomendações da OMS para países de elevada incidência de tuberculose. Trata-se duma vacina viva atenuada contendo estirpes de M. bovis. Os estudos efetuados sobre a efectividade da vacina não são concludentes; enquanto alguns atestam elevada protecção, outros referem ser escassa ou nenhuma. Algumas particularidades ajudam a explicar estes resultados: 1) não existem critérios universais para o diagnóstico de tuberculose, nomeadamente da tuberculose em idade pediátrica; 2) necessidade de estudos muito longos porque existe geralmente um grande intervalo entre a administração da vacina e a eclosão da doença; 3) grande variedade de estirpes da vacina, de diversos fabricantes; 4) mecanismo de acção não está, ainda, verdadeiramente esclarecido; 5) interferência imunológica por micobactérias não tuberculosas; 6) polimorfismos genéticos das populações.

A vacinação com BCG não determinou, de facto, a eliminação da tuberculose em nenhum país, nem tem tido qualquer efeito na epidemiologia mundial da tuberculose. No entanto, a principal vantagem relaciona-se com a possibilidade de redução de formas mais graves de tuberculose infantil como a meningite e a tuberculose disseminada. Como vacinação universal a vacina foi retirada do PNV português em 2015, passando a ser vacinados, à semelhança de outros países, apenas os grupos de risco conforme Norma 6/2016 da DGS. (Quadro 9)

Quadro 9 – Crianças de idade inferior a seis anos, elegíveis para vacinação com BCG – Grupos de risco.1

1A partir dos 12 meses de idade há indicação para realização de prova tuberculínica ou de IGRA antes da vacinação com BCG. Se houver antecedentes de contacto com caso de tuberculose activa (possível ou confirmada), ou outras circunstâncias que levem a suspeitar que a criança teve ou tem uma probabilidade elevada de ter contraído infecção, deve ser submetida a rastreio em articulação com o PNT. Após prova tuberculínica/IGRA negativo a vacina BCG pode ser administrada nos três meses seguintes.
2Dependendo de uma avaliação do risco, caso a caso.

Crianças sem registo de BCG/sem cicatriz vacinal e: Situações abrangidas
Provenientes de países com elevada incidência de tuberculoseEstadia de, pelo menos, três meses
Que terminaram o processo de rastreio de contactos e/ou esquema de profilaxiaA avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose (PNT) e Centros de Diagnóstico Pneumológico (CDP)
Cujos pais, outros coabitantes ou conviventes apresentem →
    • Infeção VIH/SIDA, após exclusão de infeção VIH na criança, se mãe VIH+
    • Dependência de álcool ou de drogas
    • Naturalidade de país com elevada incidência de TB2
    • Antecedentes de tuberculose
Pertencentes a comunidades com risco elevado de tuberculoseA avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose e CDP
Viajantes para países com elevada incidência de tuberculose2
    • Estadia de, pelo menos, três meses
    • Pode ser ponderada a vacinação para estadias mais curtas, se for considerado um elevado risco de infeção

As vacinas actualmente incluem diversas modalidades:

  • vacinas de subunidades que utilizam proteínas de Mtb;
  • vacinas contendo DNA de Mtb usando vectores víricos;
  • BCG recombinante; – utilização de estirpes mutantes de Mtb; e
  • vacinas inactivadas e atenuadas contendo micobactérias não-tuberculosas.

As novas vacinas deverão ser acessíveis aos países mais pobres, onde o peso da doença é mais significativo e os sistemas de saúde mais débeis.

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