DISLIPOPROTEINÉMIAS

Introdução

A não solubilidade aquosa dos lípidos (colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos, exceptuando-se os fosfolípidos) implica um sistema de transporte plasmático constituído pela associação daqueles a diversas proteínas específicas (apoproteínas ou simplesmente apo) mediante ligações covalentes, formando-se macromoléculas complexas, designadas lipoproteínas.

As dislipoproteinémias definem-se como afecções caracterizadas essencialmente por valores elevados ou baixos das várias classes de lipoproteínas major adiante sistematizadas (quilomicrons, lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL), de baixa densidade (LDL) e alta densidade (HDL).

O metabolismo das lipoproteínas pode resultar, quer da mutação de um único gene, quer, mais frequentemente, de múltiplos genes, com influência no metabolismo das lipoproteínas.

Importa referir, contudo, a possibilidade da actuação concomitante de diversos factores ambientais (tais como a ingestão excessiva de gordura e o sedentarismo), contribuindo também para o surgimento de dislipoproteinémias.

Nosologia

As doenças hereditárias relacionadas com defeitos do metabolismo dos lípidos integram classicamente os seguintes subgrupos:

  1. Alterações da β-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos;
  2. Alterações do metabolismo dos ácidos gordos de cadeia muito longa;
  3. Doenças de armazenamento de lípidos; e
  4. Doenças por anomalias do metabolismo e transporte das lipoproteínas (dislipoproteinémias).

Tendo os principais tópicos que integram as alíneas 1-, 2-, e 3- sido abordados nos dois capítulos anteriores (incluídos nas doenças dos organelos), o objectivo deste capítulo é proceder a uma descrição sucinta das disliproteinémias (alínea 4-), patologia que por sua vez tem afinidades com a doença aterosclerótica, incluída no 1º volume.

1. GENERALIDADES SOBRE LÍPIDOS

Lípidos e aterosclerose

Os estudos de investigação em lipidologia têm demonstrado a associação entre hipercolesterolémia, doença aterosclerótica e doença cardíaca coronária.

Os progressos realizados em técnicas laboratoriais sofisticadas permitindo identificar e separar subclasses de partículas lipídicas, assim como medir determinados marcadores de inflamação da parede arterial, têm permitido melhor compreensão da aterogénese e da ruptura da placa de ateroma conduzindo à síndroma coronária aguda.

Recorda-se, a propósito, que a aterosclerose afecta as artérias em geral e, com especial ênfase, as artérias coronárias, as artérias carótidas e as dos membros inferiores.

Admite-se que a fase inicial do desenvolvimento da aterosclerose corresponde a um processo de disfunção endotelial com espessamento da íntima e média ocorrendo na fase da pré-adolescência, com maior intensidade se existirem factores de risco como obesidade e hipercolesterolémia familiar.

De acordo com um estudo realizado em estudantes de Medicina de raça caucasiana nos EUA (The Johns Hopkins Precursors Study), verificou-se que a incidência de coronariopatia pelos 30-40 anos de idade era directamente proporcional aos valores de hipercolesterolémia na idade pediátrica.

A propósito dos factores de risco da aterogénese, cabe recordar os resultados de diversos estudos epidemiológicos abordados no capítulo sobre origens fetais de doenças no adulto (volume 1):

  • Maior incidência de coronariopatia no adulto com antecedentes de baixo peso de nascimento;
  • Maior risco de síndroma metabólica (resistência à insulina, diabetes mellitus de tipo 2, obesidade, coronariopatia) na idade adulta se houver antecedentes de ambiente intrauterino adverso, designadamente relacionável com diabetes e obesidade maternas.

Retomando o que foi referido no capítulo sobre doença aterosclerótica, reitera-se que o processo de penetração lipídica na íntima se pode dever a um conjunto de factores adversos, salientando-se o papel das partículas lipídicas LDL oxidadas e altamente tóxicas (ver adiante).

Linfócitos e monócitos, penetrando no endotélio lesado, evoluem para macrófagos “carregados“ com partículas LDL e, ulteriormente para células espumosas. Tal acumulação poderá, até certo ponto, ser contrabalançada por partículas HDL com capacidade de remoção dos lípidos da parede vascular.

Para a formação das placas fibrosas é fundamental a existência de processo inflamatório (testemunhado por elevação da PCR) em que participam macrófagos. A deposição de lípidos na camada subendotelial da parede arterial traduz-se macroscopicamente pelo aparecimento das estrias gordas que, até certo ponto, poderão ser reversíveis.

Numa fase mais tardia do desenvolvimento da placa, surge ruptura das células musculares lisas da parede arterial, o que é facilitado pela libertação de citocinas teciduais e de factores de crescimento.

A placa de ateroma (estrias gordas e placas fibrosas) é composta por uma parte central ou núcleo de substância gorda separada do lume por colagénio e tecido muscular liso. O crescimento da placa pode conduzir a isquémia dos tecidos cuja vascularização depende da artéria com parede lesada.

A inflamação crónica no interior do ateroma, possivelmente causada por agentes microbianos como Chlamydia pneumoniae, poderá conduzir a instabilidade da placa e a ruptura subsequente; se consequentemente surgir ruptura do endotélio, verifica-se fenómeno de agregação e adesão de plaquetas com formação de coágulo no local da ruptura.

Lipoproteínas

Tipos e estrutura dos lípidos

Os lípidos são ésteres, ou seja, a combinação de um ácido com um álcool; os ácidos constituintes dos lípidos chamam-se ácidos gordos. Os álcoois mais frequentemente encontrados nos lípidos são o glicerol e o colesterol.

Os principais lípidos existentes no organismo são classificados do seguinte modo:

  • Triglicéridos: em que as funções álcool do glicerol são esterificadas por três ácidos iguais ou diferentes;
  • Fosfolípidos: contendo na sua estrutura uma molécula de ácido fosfórico; são de 2 tipos:
    • glicerofosfolípidos e aglicerofosfolípidos ou esfingolípidos; os glicerofosfolípidos mais importantes são as lecitinas e as cefalinas,
    • esfingolípidos, lípidos predominantes no sistema nervoso, têm um álcool (a esfingosina), diferente do glicerol;
  • Ésteres do colesterol: resultam da esterificação da função álcool do colesterol por um ácido.

Sobre o sistema de transporte plasmático dos lípidos (designadamente do colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos), importa salientar que os mesmos estão envolvidos por proteínas, com um pólo solúvel nos lípidos, e outro, solúvel na água, orientando-se o pólo solúvel nos lípidos para o interior, e o pólo solúvel na água para o exterior. [não solubilidade aquosa dos lípidos (colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos, exceptuando-se os fosfolípidos]. Formam-se assim compostos/ partículas designados lipoproteínas.

O centro das referidas partículas contém macromoléculas hidrofóbicas incluindo triglicéridos e ésteres de colesterol, enquanto a superfície é composta de moléculas hidrofílicas como fosfolípidos e colesterol.

As apolipoproteínas (designadamente as Apo B-100, Apo B-48, Apo A-I) são necessárias para a integridade estrutural e servem como ligantes ou co-factores para enzimas específicas.

Com base no princípio de que os lípidos têm baixa densidade, e as proteínas densidade mais elevada, foi possível separar por ultracentrifugação aqueles dois componentes e sistematizar quatro classes de partículas lipoproteicas por ordem decrescente de dimensões, e crescente de densidade (Figura 1):

  • As Quilomicron (Qm), cuja apoproteína é a Apo B-48, transportam triglicéridos do intestino para os tecidos periféricos, quer para consumo energético, quer para deposição nas células adiposas; não são aterogénicos.
  • As Lipoproteínas segregadas pelo fígado (de densidade muito baixa), o segundo transportador de triglicéridos com a sigla VLDL (do inglês, very low density lipoproteins contendo Apo B-100, C e E), são aterogénicas e precursoras das lipoproteínas de densidade baixa.
  • As Lipoproteínas de densidade baixa, o principal transportador de colesterol, com a sigla LDL (do inglês, low density lipoproteins) contendo somente Apo B) são aterogénicas.
  • As Lipoproteínas de densidade intermédia (intermediate density lipoproteins/IDL) derivam das VLDL.
  • As Lipoproteínas de densidade elevada, com a sigla HDL (do inglês, high density lipoproteins, contendo Apo A, exercem efeito protector no que respeita à formação do ateroma.

FIGURA 1. Separação de lipoproteínas por ultracentrifugação.

Acentua-se que:

  • As LDL constituem o principal transportador de colesterol;
  • As Qm e as VLDL transportam predominantemente triglicéridos; e
  • As HDL transportam predominantemente fosfolípidos;
  • A proporção de colesterol associado às HDL é superior à das VLDL e inferior à das LDL.

Uma referência especial merece a chamada lipoproteína (a), abreviadamente Lp(a), a qual partilha características com determinados factores de coagulação: possui elevado conteúdo em hidratos de carbono e integra duas apoproteínas: Apo B-100 e Apo(a), esta última muito semelhante ao plasminogénio.

Metabolismo e transporte das lipoproteínas

Existem dois órgãos com papel crucial na biossíntese e secreção das partículas lipoproteicas: o intestino e o fígado (Figura 2).

O sistema de transporte das lipoproteínas compreende três vias: endógena, exógena e de transporte reverso.

O primeiro passo na biossíntese do colesterol é a formação de 3-hidroxi-3-metilglutaril CoA (HMG-CoA) a partir de acetil-CoA; a HMG-CoA, por acção da HMG-CoA redutase leva à formação de mevalonato e, em passos seguintes, a isoprenóides activados e lanosterol, este último, o principal esteróide precursor de colesterol.

FIGURA 2. Vias metabólicas do colesterol. (consultar texto)

→ Pela via endógena, o colesterol e os triglicéridos, sintetizados no fígado (HDL e VLDL) e noutros tecidos, são transportados a outros territórios, quer para utilização como fonte energética, quer para formação de reservas ou depósitos.

As HDL captam o colesterol das células, esterificando-o, e as VLDL transportam os triglicéridos endógenos formados no hepatócito.

As partículas HDL encontram-se em diferentes subfracções designadas com numeração (por ex. HDL1, HDL 2, HDL 3), sendo geradas principalmente pelo metabolismo dos Qm e pela interacção com VLDL.

→ Pela via exógena, o colesterol e os triglicéridos absorvidos ao nível do intestino são transportados a outros tecidos, nomeadamente fígado, músculo e tecido adiposo. A mucosa intestinal sintetiza, imediatamente a seguir à ingestão de alimentos, os Qm a partir das gorduras ingeridas e VLDL, quer no período de digestão, quer nos respectivos intervalos (via exógena).

As Qm e as VLDL são formadas nos microssomas das células da mucosa duodenal e hepatócitos, respectivamente. Neste passo do metabolismo desempenha papel importante uma proteína microssómica de transferência de VLDL para o retículo endoplásmico.

A Apo C-II tem um papel importante na cisão das Qm e VLDL como co-factor da lipoproteína-lipase, ou glicoproteína ligada ao endotélio (ver adiante), a qual desdobra o triglicérido em glicerol e ácidos gordos, para ulterior metabolismo na célula. Os remanescentes das Qm são absorvidos pelo fígado (via receptor de Apo E) e metabolizados.

A VLDL evolui para IDL (intermediate density lipoprotein) e, após remoção de todos os lípidos, transforma-se finalmente em partículas LDL ricas em colesterol. Não sendo estas necessárias nos tecidos periféricos, são absorvidas novamente pelo fígado via receptor de LDL.

A LDL é encontrada em diferentes subfracções (LDL àLDL 6); LDL 6 é descrita como uma partícula pequena, densa e altamente aterogénica. As mesmas partículas LDL ligando-se, via Apo B-100, ao receptor de LDL, são captadas por endocitose e cindidas no lisossoma, principalmente através da acção da lipase ácida.

O colesterol, quando libertado, inibe a actividade da HMG-CoA sintetase e é armazenado via acil-CoA colesterol-aciltransferase (ACAT) nas células sob a forma de “gotículas lipídicas”.  

→ Pela via de transporte reverso o colesterol não esterificado é transportado dos tecidos extra-hepáticos, de novo, para o fígado com a participação das HDL, o que tem efeito vasoprotector.

Através da Apo A-I e Apo A-IV, as HDL activam a lecitina-colesterol-acil-transferase ou LCAT, induzindo a formação de ésteres de colesterol. Estes podem ser trocados por triglicéridos de outras lipoproteínas através da proteína de transferência CETP ou cholesteryl ester transfer protein.

Por este mecanismo, a maioria do colesterol contido nas HDL é metabolizada através da via das LDL.

O Quadro 1 sintetiza as principais funções das apoproteínas.

QUADRO 1 – Principais funções das apoproteínas.

LipoproteínaApolipoproteína (Apo)Função
Quilomícrons

A-I, A-IV, C-I, C-II, C-III, E, B-48

Transporte de triglicéridos exógenos, vitaminas solúveis em gordura e drogas
VLDLCI-III, E, B-100Transporte de triglicéridos endógenos
IDLC-II, E, B-100Produto de remoção de triglicéridos VLDL
LDLB-100Produto da remoção de triglicéridos IDL; transporte de colesterol para tecido extra-hepático; regulação da biossíntese de colesterol
HDL

A-I, A-II, A-IV, C-I, C-III, D, E

Principalmente modificação de outras lipoproteínas, transporte de colesterol para o fígado
Lipoproteína (a)B-100, Apo (a)Incerta, possivelmente para reparação vascular; factor de risco de aterosclerose

Receptores

Para melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes das anomalias hereditárias do metabolismo das lipoproteínas, torna-se útil sintetizar alguns aspectos relacionados com o papel dos receptores a nível ultra-estrutural.

O conceito de receptores para as lipoproteínas deve-se a Goldstein e Brown (Pémio Nobel) ao estudarem o mecanismo de transporte do colesterol dentro das células. Utilizando como modelo os fibroblastos em culturas, demonstraram que, na sua maioria, as LDL só se catabolizavam após fixação a receptores na membrana celular.

Posteriormente, verificou-se que, para lá destes receptores que reconhecem as apoproteínas B e E (receptores BE) e fixam as LDL, há no fígado receptores apenas para as apo E (receptores E). O número de receptores B e E é máximo no RN e diminui com a idade. Existem também receptores para as HDL.

Os receptores cuja estrutura é esquematizada na Figura 3 são glicoproteínas cujos aminoácidos estão distribuídos em 5 domínios. Os seus precursores são sintetizados nos ribossomas, migrando para o aparelho de Golgi; a síntese destes receptores é regulada por gene no cromossoma 19.

O receptor na membrana celular, aparecendo à superfície da membrana cerca de 45 minutos após a sua síntese, capta as LDL formando-se, entretanto, vesículas de endocitose revestidas por clatrina. Estas vesículas perdem rapidamente a clatrina e fundem-se com outras para formar grandes vesículas de contorno irregular, os endossomas ou receptossomas.

FIGURA 3. Representação esquemática da estrutura do receptor BE.

Quando o pH desce a 6,5 as LDL separam-se dos receptores, voltando o receptor à superfície (reciclagem dos receptores). Na fase seguinte as LDL são captadas pelos lisossomas, sendo as proteínas hidrolisadas em aminoácidos por acção de proteases, e os ésteres de colesterol em colesterol livre, por acção de esterases.

A captação do colesterol pelos receptores celulares tem por objectivo fornecer à membrana celular o colesterol de que ela necessita para a sua estabilidade. Compreende-se, assim, que o metabolismo do colesterol seja regulado para que seja fornecida à membrana uma quantidade necessária, mas não excessiva.

Assim, a captação do colesterol provoca:

  • Acções sobre a HMG-CoA redutase
    • repressão da síntese da enzima como se comprova pela diminuição do seu RNA-m,
    • aceleração do seu catabolismo,
    • inibição da sua actividade por inibição alostérica pelo colesterol em excesso;
  • Aumento da actividade de acil-CoA-colesterol aciltransferase (ACAT), enzima que esterifica o excesso de colesterol que ficará depositado no citoplasma como gotículas;
  • Repressão da síntese dos receptores.

As Figuras 4 e 5 sintetizam os mecanismos de captação das LDL e os mecanismos de regulação desencadeados pelo colesterol em excesso.

A actividade dos receptores é regulada por um conjunto de factores, cujos mecanismos de acção (alguns demonstrados apenas em estudos experimentais) poderão, em situações especiais, ser aplicados na prática clínica em várias estratégias de terapêutica das anomalias do metabolismo. Eis alguns exemplos mais relevantes:

  • A insulina aumenta o número de receptores nos fibroblastos em cultura;
  • A adrenalina diminui a fixação, internalização e degradação das LDL;
  • O cortisol diminui a internalização das LDL sem afectar o número de receptores;
  • O cálcio é necessário para a interacção LDL- receptores no fibroblasto, sendo a sua acção menos nítida no hepatócito; de referir que os bloqueantes dos canais do cálcio estimulam o catabolismo das LDL;
  • Inibidores da HMG-CoA redutase aumentam o número de receptores, do mesmo modo que as resinas catiónicas como a colestiramina e colestipol; certos fibratos, idem.

O órgão com maior número de receptores é o fígado (cerca de 75% relativamente aos restantes órgãos). A actividade específica mais elevada foi encontrada no córtex suprarrenal e corpo amarelo, o que se pode explicar pelo facto de o colesterol ser o precursor das hormonas esteróides.

Um aspecto particular diz respeito às células endoteliais cujos receptores podem captar as LDL, mas não promovendo a sua endocitose, exceptuando nos casos de lesão endotelial.

2. DISLIPOPROTEINÉMIAS

As dislipoproteinémias (de acordo com o que foi referido no início, consideradas como anomalias qualitativas ou quantitativas, por excesso ou por defeito, na repartição das lipoproteínas plasmáticas e/ou apoproteínas), quer primárias ou hereditárias, quer secundárias, têm tendência a prevalecer na idade adulta. Por isso, torna-se imperioso detectar tal patologia tão precocemente quanto possível.

Antes da abordagem das principais dislipoproteinémias primárias ou hereditárias, discriminam-se as principais entidades nosológicas que poderão constituir causas secundárias (Quadro 2).

Em suma, reforça-se a necessidade de atitude preventiva de actuação precoce em ambas as situações pelas implicações práticas importantes na perspectiva de redução do risco de aterogénese.

FIGURA 4. Consequências do excesso de colesterol celular.

FIGURA 5. Visão global do metabolismo dos receptores.

QUADRO 2 – Causas secundárias de dislipoproteinémia.

Hipercolesterolémia
Síndroma nefrótica, hipotiroidismo, colestase, isotretinoína, tiazidas, contraceptivos orais, beta-bloqueantes, imunossupressores, inibidores das proteases no tratamento das infecções por VIH, carbamazepina, progesterona, ciclosporina, etc..

Hipertrigliceridémia
Obesidade, diabetes mellitus tipo 2, álcool, insuficiência renal, sépsis, estresse, síndroma de Cushing, gravidez, hepatite, inibidores da protease, beta-bloqueantes, estrogénios, tiazidas, etc..

Diminuição de colesterol-HDL
Obesidade, hábitos de tabaco, diabetes mellitus tipo 2, má-nutrição, beta-bloqueantes, anabolisantes, etc..

Hipercolesterolémias

Hipercolesterolémia familiar (HF)

A hipercolesterolémia familiar constitui uma das dislipoproteinémias monogénicas primárias mais frequentes com transmissão hereditária de tipo autossómico co-dominante. A HF autossómica dominante é a dislipoproteinémia hereditária mais comum. Descrevem-se formas homozigóticas e heterozigóticas.

Os estudos moleculares identificaram cinco classes de mutações de genes afectando a capacidade de o colesterol-LDL se ligar ao receptor de LDL. Estão descritas mais de 900 mutações; algumas destas resultam em falência da síntese do receptor LDL (a que correspondem fenótipos mais graves – formas homozigóticas, com actividade de receptor LDL < 2%), enquanto outras resultam, quer em deficiência de ligação ou de libertação na interface lipoproteína-receptor, quer em número reduzido de receptores de LDL – formas heterozigóticas, com actividade de receptor de LDL ~ 25%.

A HF monogénica causada por mutações nos genes LDLR, APOB ou PCSK9 está associada a doença cardiovascular aterosclerótica de início precoce/ prematura e a morte antes dos 60 anos por doença cardiovascular.

Importa salientar, contudo, que a introdução das estatinas há cerca de três décadas (ver adiante) alterou significativamente a história natural da HF, conduzindo a redução da mobilidade e mortalidade.

Está indicado o rastreio da doença através de análise de sangue do cordão umbilical nos casos de antecedentes familiares de HF.

Forma homozigótica

Na forma homozigótica, com uma prevalência aproximada de 1/ 160.000 indivíduos, são herdados dois alelos mutantes de receptores de LDL resultando em valores de hipercolesterolémia, em regra, superior a 600 mg/dL. Os níveis de C-HDL estão ligeiramente diminuídos e os de triglicéridos ligeiramente elevados ou normais.

Nos casos de indivíduos de idade inferior a 18 anos com colesterolémia total > 270 mg/dL e/ou C-LDL ~200 mg/dL, existe probabilidade ~90% de HF; e, se existir familiar em 1º grau com a doença, o diagnóstico pode considerar-se muitíssimo provável.

As manifestações clínicas na forma homozigótica, muito precoces, traduzem-se em aterosclerose prematura atingindo a aorta e coronárias desde a infância; outros sinais são xantomatose precoce [essencialmente xantomas tuberosos (Figura 6), não observáveis na forma heterozigótica e que podem ser notórios desde os primeiros anos de vida] nos tendões (designadamente do tendão de Aquiles), nas regiões palmares e na pele da superfície de extensão dos antebraços, pálpebras (xantelasma), etc.. Pode estar presente o arco corneano (gerontoxon), habitualmente antes dos 10 anos.

Há antecedentes de doença cardiovascular familiar prematura, designadamente com coronariopatia e enfarte do miocárdio nos progenitores e familiares jovens, com risco de morte súbita.

A etiopatogénese da doença pode ser determinada pela análise das mutações, e a gravidade, pelo estudo da actividade dos receptores de LDL em linfócitos.

Como se pode depreender, o prognóstico é reservado sem tratamento, o que compromete a sobrevivência até à idade adulta.

FIGURA 6. Xantomas no contexto de hipercolesterolémia familiar homozigótica. (NIHDE)

Forma heterozigótica

A HF heterozigótica é uma das mais frequentes formas de doença aterosclerótica com coronariopatia associada a mutações de um único gene.

A sua prevalência, oscilando entre 1/250 a 1/300 indivíduos (mais de 10 milhões em todo o mundo), explica mais de metade dos óbitos em indivíduos no Ocidente.

Salienta-se que a HF heterozigótica é um dos defeitos genéticos mais frequentemente observados na idade pediárica; em comparação, a sua frequência é muito superior à doutras afecções do foro genético como a fibrose quística (1/2.500) e doença falciforme (1/700).

Trata-se duma situação de hereditariedade co-dominante, com uma penetrância da ordem de 50% nos familiares em 1º grau de indivíduos afectados, e de 25% nos familiares em 2º grau. Na sua etiopatogénese interagem factores genéticos e ambientais, o que explica a variabilidade de expressão fenotípica entre povos de diferentes regiões do globo, traduzida pelos valores do colesterol-LDL (valor médio na China ~170 mg/dL e, no Canadá, ~290 mg/dL).

Podem verificar-se arco corneano, xantomas tendinosos ou xantelasma, em geral a partir da adolescência. Os sintomas de doença coronária iniciam-se pelos 45 anos no sexo masculino, e uma década mais tarde no sexo feminino.

No desconhecimento de antecedentes familiares/ eventuais casos familiares não diagnosticados e, sem estudo de genética molecular prévio, o diagnóstico provável de HF heterozigótica poderá ser admitido com base nas seguintes noções epidemiológicas: com valores de colesterolémia total ~310 mg/dL, sem antecedentes familiares em 1º grau, existe probabilidade de 4% de HF heterozigótica; havendo antecedentes familiares em 1º grau de HF, a probabilidade será já de 95%.

Nota importante: para confirmação do diagnóstico de HF, os valores de colesterol-LDL devem ser determinados pelo menos duas vezes no intervalo de 3 meses.

Os aspectos fundamentais do tratamento das HF são abordados na parte final do capítulo, em alínea especial, integrando as entidades clínicas descritas.

Deficiência de Apo B-100 familiar

A deficiência de Apo B-100 familiar, com uma frequência aproximada de 1/700 nos indivíduos de cultura ocidental, é uma doença autossómica dominante, com características muito semelhantes às da HF heterozigótica, por vezes indistinguível desta.

Trata-se dum defeito estrutural em que a mutação de um gene leva a substituição de um aminoácido (glutamina por arginina) no codão 3500 da Apo B-100. De tal resulta redução da capacidade de ligação das LDL ao receptor, e elevação do colesterol-LDL, estando os triglicéridos em nível normal.

Somente foram descritas formas heterozigóticas a que correspondem situações clínicas de expressão semelhante à da HF heterozigótica: xantomas tendinosos e coronariopatia prematura.

Como na prática o perfil clínico e bioquímico, e atitude terapêutica semelhantes aos da HF heterozigótica, somente em estudos de investigação está indicada a destrinça por biologia molecular.

Sitosterolémia (ou fitosterolémia)

Esta dislipoproteinémia rara, autossómica recessiva, resulta de absorção excessiva de esteróis de plantas (sito ou fitosteróis) por mutações de genes responsáveis pelo respectivo sistema de transporte dependente de ATP (que limita a absorção no intestino delgado e promove a excreção biliar da parcela absorvida). O resultado é a elevação de colesterolémia, aparecimento de xantomas e aterosclerose prematura.

O diagnóstico faz-se pela determinação da colesterolémia e sitosterolémia, que são elevadas.

Hipercolesterolémia autossómica recessiva

Esta forma é muito rara, salientando-se a maior prevalência na ilha da Sardenha e no Líbano. A etiopatogénese relaciona-se com defeito do processo de internalização/ endocitose das LDL nos lisossomas, sem que a captação das LDL pelos receptores esteja comprometida; a consequência é a elevação sanguínea de LDL (níveis intermédios entre HF homo e heterozigótica).

A coronariopatia surge menos precocemente do que na HF homozigótica.

Hipercolesterolémia poligénica

A maioria dos casos de hipercolesterolémia (cerca de 85%) resulta de elevação primária de colesterol-LDL de causa poligénica, sendo que o papel de muitos genes com escassa influência no fenótipo é fortemente influenciado pelo ambiente (regime de sobrecarga alimentar).

Este tipo de hipercolesterolémia verifica-se em famílias que partilham estilos de vida comuns sem obedecerem ao padrão hereditário segundo o qual “ao defeito de um gene corresponde um defeito de lipoproteína”.

Hipercolesterolémia associada a hipertrigliceridémia

Compreende duas formas:

Hiperlipémia familiar combinada (HFC)

Trata-se duma situação AD – a mais frequente dislipoproteinémia surgindo na proporção ~1/200 – caracterizada por elevação moderada de colesterol-LDL e de triglicéridos, com diminuição do nível de colesterol-HDL. Embora não tenha sido descrito qualquer processo específico de aterogénese relacionado com esta forma clínica, em cerca de 20% dos indivíduos com doença coronária pelos 60 anos de idade verifica-se HFC.

O perfil clínico e bioquímico desta afecção pode traduzir-se do seguinte modo:

  • História familiar de doença cardíaca prematura;
  • C-LDL > percentil 90;
  • C-LDL e trigliceridémia > percentil 90;
  • Triglicéridos > percentil 90.

O diagnóstico de HFC implica que, em pelo menos dois familiares em 1º grau do caso a investigar, se verifique, no mínimo, 1 dos 3 parâmetros laboratoriais. Uma das características é a variação do fenótipo ao longo do tempo (dislipoproteinémia variável). Não surgem xantomas. A elevação de Apo B associada à detecção de pequenas partículas densas LDL suporta o diagnóstico.

Do quadro clínico da HFC em crianças e adultos faz parte a chamada síndroma metabólica que é sugerida pela verificação de adiposidade, hipertensão e hiperinsulinémia.

De acordo com o NCEP (National Cholesterol Education Program), a referida síndroma integra como componentes principais: obesidade abdominal, dislipidémia aterogénica, hipertensão arterial, resistência à insulina, com ou sem intolerância à glucose, evidência de inflamação vascular e hipercoagulabilidade. Estima-se que cerca de 30% dos indivíduos adultos com excesso de peso preenchem os critérios de diagnóstico de síndroma metabólica, incluindo 2/3 dos casos de HFC.

O mecanismo pelo qual a adiposidade visceral se associa a síndroma metabólica e a DM2 não está completamente esclarecido. Admite-se que a obesidade origina estresse ao nível do retículo endoplásmico, levando a supressão do receptor da insulina e resistência a esta.

Por outro lado, na HFC, a associação de hipertrigliceridémia a hipercolesterolémia confere risco aterogénico. Tal como foi referido a propósito da doença aterosclerótica, a acumulação de gordura intra-abdominal avaliada por RM (em investigação) constitui seguramente o marcador mais importante da adiposidade com risco aterogénico.

Disbetalipoproteinémia familiar (DBLF)/ Hiperlipoproteinémia tipo III

Esta doença rara, que surge com uma frequência ~1/10.000 indivíduos, é causada por mutações no gene da apo E; traduz-se por elevação de colesterol e triglicéridos com valor normal de HDL na sequência de exposição a factores ambientais tais como regime hipercalórico com elevado teor em gorduras e ingestão de álcool.

A expressão da doença é facilitada em presença de diabetes, obesidade, doença renal e hipotiroidismo.

Há uma acumulação de IDL evidenciada na electroforese pela existência de uma banda β e pré-β beta (broad beta). Recorda-se que os remanescentes são captados no fígado pelos receptores E e que o gene da Apo E polimórfica se expressa em 3 isoformas: Apo E3, Apo E2, e Apo E4; este último é o alelo “normal” presente na maioria da população.

Assim, as alterações moleculares da Apo E impedem a captação dos remanescentes. É o que se passa com a Apo E2 com uma capacidade de ligação ao receptor deficiente, ao contrário das Apo E3 e E4. Em cerca de 1% da população existe homozigotia para Apo E2/E2; a mutação mais comum é associada a DBLF, mas só se expressa a doença numa minoria de casos. Curiosamente, a homozigotia Apo E4/E4 predispõe para doença de Alzheimer.

Na adolescência e idade adulta, surgem xantomas tuberosos nos joelhos, cotovelos, nádegas, e coloração amarela nas pregas das palmas das mãos. Pela 4ª ou 5º década de vida surge quadro de doença aterosclerótica vascular periférica.

O diagnóstico é confirmado por electroforese – banda broad beta (ver atrás), discriminativa em 50% dos casos; e por determinação das VLDL por ultracentrifugação.

As ratio colesterol/ triglicéridos no soro < 3,0 e colesterol/ triglicéridos nas VLDL < 0,02 são indicações úteis, mas não conclusivas. A verificação do polimorfismo das Apo E constitui critério a favor da doença.

Hipertrigliceridémias 

Este tópico inclui diversas dislipoproteinémias de gravidade e frequência diversas.

Quilomicronémia familiar/ Hiperlipoproteinémia tipos I ou V

Trata-se duma situação muito rara, AR (frequência ~1/1 milhão, explicada por mutação de um gene, do que resulta depuração defeituosa das lipoproteínas contendo Apo B. A deficiência ou ausência da lipoproteína lipase (LPL), ou do seu cofactor apoC-II que facilita a lipólise pela LPL, origina: aumento de quilomicron (tipo I) ou; aumento de QM e de triglicéridos/VLDL (tipo V). Os níveis de C-HDL estão diminuídos.

A testemunhar o excesso de Qm por depuração defeituosa (no tipo I) está o aspecto do soro após 24 horas de repouso a +4ºC: sobrenadante leitoso ou cremoso num soro límpido (Figura 7). No tipo V, o aspecto do soro é diverso: sobrenadante cremoso devido aos Qm, e infranadante turvo devido às VLDL.

De salientar que a quilomicronémia causada por deficiência de LPL está associada a hipertrigliceridémia mais modesta do que a relacionada com ausência ou carência de Apo C-II.

Um dos quadros de apresentação clínica é o de dores abdominais recorrentes e de pancreatite aguda. Pode verificar-se hepatosplenomegália e xantomatose eruptiva com as localizações habituais já referidas a propósito doutras dislipoproteinémias. Não existe risco aterogénico.

FIGURA 7. Soro de criança com hiperlipoproteinémia do tipo I.

Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)/ Hiperlipoproteinémia tipo IV

A HTGF é uma doença AD de etiologia desconhecida, ocorrendo com uma frequência ~1/500 indivíduos. Traduz-se por elevação dos triglicéridos (> percentil 90, em geral entre 500 e 1.000 mg/dL); pode ser acompanhada por elevação ligeira do colesterol total com C-HDL baixo. De acordo com a experiência de vários centros, somente em cerca de 20% dos casos as manifestações surgem na idade pediátrica; ao contrário da HFC, não parece ser significativamente aterogénica (não se verifica o desenvolvimento de xantomas, nomeadamente).

As suas causas não são uniformes, pelo que não se trata de um grupo homogéneo de dislipoproteinémias. Fundamentalmente, a etiopatogénese pode relacionar-se com:

  • Síntese aumentada de VLDL, devida provavelmente a uma resistência periférica à insulina, com hiperinsulinismo secundário; esta modalidade encontra-se associada a síndroma metabólica (ver atrás-HFC);
  • Diminuição da destruição das VLDL, provavelmente por carência em Apo C-II, ou pela existência de variantes desta apoproteína.

Para o diagnóstico torna-se essencial que haja, pelo menos, um familiar em 1º grau com hipertrigliceridémia; o diagnóstico diferencial faz-se com a HFC e com a DBLF.

Nota: em geral, os valores de trigliceridémia na hiperlipoproteinémia de tipo V são muito superiores (> 1.000 mg/dL) aos dos verificados na HTGF.

Deficiência de lipase hepática

Esta afecção, muito rara, AR, resultante de défice de lipase hepática (LH) traduz-se por elevação de colesterol e de triglicéridos no plasma, em geral associada a elevação de c-HDL.

Recorda-se, a propósito, que a LH hidrolisa os triglicéridos e fosfolípidos em VLDL remanescentes e IDL, impedindo a conversão em LDL. A confirmação diagnóstica consiste em medir a actividade da LH em plasma heparinizado.

Antes da análise doutras dislipoproteinémias não necessariamente hiperlipémicas ou até normolipémicas, na perspectiva do diagnóstico diferencial, importa para o clínico a lista das principais hiperlipidémias secundárias, não hereditárias, em que deve ser considerado igualmente risco aterogénico (ver atrás- Quadro 2).

Alterações do metabolismo das HDL

Hipoalfalipoproteinémia primária

Esta dislipoproteinémia, a mais comum alteração do metabolismo das HDL e muitas vezes ocorrendo segundo o modo de transmissão AD, pode surgir na ausência de história familiar.

Define-se pelo padrão biológico: colesterolémia-HDL baixa (< percentil 10 para o género e idade) associada a C-LDL e trigliceridémia normais.

A etiopatogénese relaciona-se com diminuição da síntese de Apo A-I e aumento do catabolismo de HDL. Desconhecendo-se, com os dados disponíveis, o papel da doença na aterogénese, impõe-se o diagnóstico diferencial com outras afecções, como deficiência de LCAT, doença de Tangier e síndroma metabólica.

Hiperalfalipoproteinémia familiar

Trata-se duma situação rara que diminui o risco de aterosclerose e de coronariopatia, e probabilidade de sobrevida aumentada. Os níveis de colesterol-HDL excedem 80 mg/dL.

Défice da proteína de transferência colesterol-éster

A etiopatogénese relaciona-se com deficiência da proteína de transferência colesterol-éster (CETP) por mutações no respectivo gene localizado no cromossoma 16Y21. Tal facto traduz-se fundamentalmente numa desregulação do processo de transporte do colesterol para o fígado e ulterior excreção pela bílis. Na forma homozigótica (mais frequente no Japão), os valores de C-HDL poderão ser > 150 mg/dL.

Deficiência familiar de Apo A-I

Surge como resultado de mutações no gene da Apo A-I, determinando valores baixos ou vestigiais de HDL. Como consequência surge um quadro de gravidade variável em função das referidas mutações, caracterizado na maioria dos casos, por aterosclerose prematura, xantomatose, opacidade corneana e, ocasionalmente, associação a amiloidose.

O perfil laboratorial inclui diminuição de C-HDL e de Apo A-I no plasma.

Doença de Tangier

É uma doença autossómica co-dominante em que os valores de C-HDL são inferiores a 5 mg/dL. A etiopatogénese relaciona-se com mutações no gene ABCA1 de uma proteína implicada na ligação do colesterol celular à Apo A-I. A consequência é a acumulação de colesterol livre no SER, traduzida clinicamente pelos seguintes sinais e sintomas: neuropatia periférica intermitente, hepatosplenomegália, hipertrofia amigdalina com coloração alaranjada por acumulação de colesterol nas células de Schwann.

Deficiência de lecitina-colesterol aciltransferase familiar (LCAT)/ Doença fish-eye

A etiopatogénese desta doença rara relaciona-se com mutações nos genes que expressam a LCAT com deficiência total ou parcial desta enzima. Tal interfere com o processo de esterificação do colesterol e impede a formação de partículas de HDL e promove catabolismo de Apo A-I. Clinicamente verifica-se opacificação corneana (dado isolado na forma clínica designada por doença eye fish, em que a deficiência é parcial), anemia hemolítica e insuficiência renal progressiva a partir da adolescência e adultícia. Admite-se que não é aterogénica.

Para confirmação diagnóstica, os exames laboratoriais evidenciam diminuição de c-HDL, de Apo A-I, aumento de triglicéridos e relação colesterol livre/ colesterol total > 0,7.

Hipocolesterolémias

As situações associadas a alterações do metabolismo do colesterol intracelular das lipoproteínas com Apo B acompanham-se de hipocolesterolémia.

Abetalipoproteinémia

Esta anomalia rara, AR, origina-se por mutações no gene que codifica uma proteína microssómica de transporte de triglicéridos para o retículo endoplásmico, a qual é deficiente; como consequência, há produção deficiente de lipoproteínas contendo Apo B, necessárias para a transferência de lípidos no intestino delgado para as Qm nascentes e, no fígado, para as VLDL.

As manifestações clínicas incluem má absorção de gorduras com diarreia, carência de vitamina E, hipocrescimento, e sinais neurológicos (degenerescência espinocelular, hiporreflexia, ataxia, espasticidade na idade adulta, retinite pigmentar). Muitos dos sinais são o resultado de má absorção de vitaminas lipossolúveis. Os sinais neurológicos implicam o diagnóstico diferencial com a ataxia de Friedreich.

O perfil laboratorial inclui: ausência de Qm, VLDL, LDL e Apo B, com valores baixos de colesterol e triglicéridos; e disfunção eritrocitária (acantocitose).

Hipobetalipoproteinémia familiar

Esta doença familiar autossómica co-dominante, relacionada com mutações no gene que codifica a síntese de Apo B-100, na forma homozigótica evidencia sintomatologia semelhante à da abetalipoproteinémia.

Distingue-se da abetalipoproteinémia pelo facto de os progenitores heterozigóticos nos casos da doença em epígrafe evidenciarem diminuição do colesterol-LDL, de triglicéridos e de Apo B.

Doença de Anderson

Esta doença, com fenótipo sobreponível aos da abetalipoproteinémia e hipobetalipoproteinémia homozigótica, deve-se à incapacidade de secreção de Apo B-48 no intestino delgado.

A não absorção de Qm origina esteatorreia e carência de vitaminas lipossolúveis. O perfil bioquímico evidencia valor sanguíneo normal de Apo B-100 como resultado da sua secreção normal pelo hepatócito.

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO)

A etiopatogénese desta síndroma rara (incidência oscilando entre 1/20.000 – 1/60.000 RN caucasianos) está relacionada com mutações no gene DHCR7, do que resulta deficiência da enzima microssómica DHCR7 (7-di-hidrocolesterol redutase), a qual se traduz em défice da síntese de colesterol na sua fase final.

Desconhece-se até que ponto a síntese deficitária de colesterol poderá contribuir para a patogénese de defeitos congénitos, embora se conheça o papel importante da mielina no neurodesenvolvimento.

Recorda-se que as manifestações clínicas da SSLO integram em mais de metade dos casos anomalias craniofaciais, esqueléticas, genitais e do desenvolvimento; ao nível dos órgãos internos, podem estar afectados o SNC (holoprosencefalia, agenésia do corpo caloso, etc.), o sistema cardiovascular (canal atrioventricular, etc.), o tracto urinário (hipoplasia ou aplasia renal, etc.), tubo digestivo (doença de Hirschprung, etc.), sistema respiratório (hipoplasia pulmonar, anomalia dos lobos), sistema endócrino (insuficiência suprarrenal, etc.) e sindactilia cutânea (2º – 3º dedos do pé > 97%).

Nos casos de colesterolémia inferior a 20 mg/dL, a sobrevivência é improvável. O diagnóstico definitivo pode ser levado a cabo através da identificação de precursores do colesterol através da técnica de cromatografia gasosa e da análise mutacional.

Alterações do metabolismo intracelular do colesterol

Recorda-se que os ácidos biliares, sintetizados no fígado a partir do colesterol, são essenciais para a absorção lipídica no intestino, regulam a síntese do colesterol hepático e são necessários para a produção adequada de bílis.

Xantomatose cerebrotendinosa

Esta doença AR pode manifestar-se no RN como icterícia colestática (hepatite autolimitada). Em geral surge sintomatologia no fim da adolescência: inicialmente insuficiência mental, seguindo-se cataratas e deterioração neurológica progressiva, diarreia e aparecimento de xantomas tendinosos pelos 20-40 casos.

Outro dado clínico é o aparecimento de aterosclerose prematura podendo levar à morte por enfarte do miocárdio.

Segundo alguns autores, incluída no capítulo sobre perturbações da síntese dos ácidos biliares por mutação de gene, a referida xantomatose resulta em défice da enzima esterol-27 hidroxilase, necessário para a síntese mitocondrial de ácidos biliares no fígado. O resultado é a acumulação de colestanol e colesterol, sobretudo no sistema nervoso.

O diagnóstico faz-se pela demonstração de colestanol (e, por vezes, colesterol) elevado no plasma, assim como de álcoois biliares específicos na urina, também elevados. A deficiência enzimática pode demonstrar-se em fibroblastos; em certas populações, a análise de ADN pode ser um método rápido de diagnóstico.

Doença de Wolman

De transmissão AR, deve-se à falta da lipase ácida lisossómica, com consequente acumulação de ésteres de colesterol nas células por falência de hidrólise (doença de armazenamento).

As manifestações clínicas incluem hepatosplenomegália, esteatorreia, hipocrescimento; a morte surge em geral antes do 1 ano. O prognóstico é muito reservado (fatal).

Doença de Niemann-Pick tipo C

Trata-se duma esfingolipidose (doença AR) caracterizada pela acumulação de colesterol e esfingomielina no SNC e SRE. É devida, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu co-factor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída do colesterol do lisossoma, com consequente depósito de esfingomielina).

O prognóstico é reservado, com morte durante a 2ª infância ou adolescência.

Actualmente, é possível o tratamento com miglustat evidenciando resultados promissores.

Nota: os tipos A e B desta doença dos organelos foram tratados no capítulo sobre doenças do metabolismo dos organelos, incluído nesta Parte do livro.

Hiperlipoproteinémia (a) [Lp(a)]

A lipoproteína (a) [Lp(a)] tem constituição lipídica muito semelhante à das LDL. Identificada em 1963, o seu metabolismo não está completamente esclarecido na actualidade.

Contém uma molécula de apolipoproteína B-100 (como todas as LDL) ligada à apoproteína (a). Ou seja, é um tipo de LDL em que há adição doutra molécula, a Apo(a), o que lhe confere diferentes características e funções. Por sua vez, a estrutura molecular da Apo(a) é muito semelhante à do plasminogénio, uma proteína fundamental no processo de fibrinólise. Por outro lado, é mais aterogénica do que a LDL pelas suas propriedades pró- inflamatórias e pró-trombogénicas.

O gene da Apo(a), designado por LPA, localiza-se no cromossoma 6 e apresenta vários polimorfismos que determinam a concentração de Lp(a) no sangue. É reconhecida pelos receptores para Apo B e Apo E (receptores BE).

Demonstrou-se que existe uma relação inversa entre o tamanho da Apo(a) e os níveis sanguíneos ou plasmáticos da Lp(a) avaliados por métodos imunoquímicos.

Admite-se que concentrações de Lp(a) superiores a 50 mg/dL sejam relacionados com factores hereditários e comportem risco elevado de doença cardiovascular aterosclerótica prematura nalgumas famílias. Trata-se dum factor de risco independente.

O Expert Panel on Integrated Guidelines for Cardiovascular Health and Risk Reduction in Children and Adolescents da AHA (USA) não recomenda a determinação dos níveis de Lp(a) como rotina nos rastreios em jovens, excepto nos casos de antecedentes AVC isquémico ou hemorrágico não explicável pelos factores de risco clássicos.

A niacina constitui o único tratamento susceptível de promover diminuição dos valores de Lp(a). Desconhece-se se a diminuição dos níveis elevados de Lp(a) contribui para prevenir futura ou recorrente doença cardiovascular.

Avaliação do risco e tratamento das hiperlipidémias

Avaliação do risco associado

Em todas as crianças e jovens com dislipidémia devem ser avaliados os níveis de risco (risco elevado e risco moderado) em função de determinados parâmetros associados, o que tem implicações nas estratégias de actuação:

  • Risco elevado: hipertensão arterial/HTA requerendo tratamento com fármacos (PA > percentil 99 + 5 mmHg), hábitos tabágicos, IMC > percentil 97, diabetes mellitus dos tipos 1 ou 2, doença renal crónica, status pós-transplante cardíaco e/ou pós-Kawasaki com aneurismas;
  • Risco moderado: HTA não requerendo tratamento com fármacos, IMC entre percentis 95 e 97, colesterol-HDL < 40 mg/dL, status pós-Kawasaki sem aneurismas, doença inflamatória crónica, infecção por VIH, síndroma nefrótica.

A intervenção terapêutica propriamente dita compreende medidas gerais (algumas já referidas a propósito da doença aterosclerótica) dirigidas predominantemente às situações acompanhadas de hipercolesterolémia) e farmacoterapia.

Medidas gerais

  • Modificação do estilo de vida e exercício físico mantidos, como prioridade
    Este procedimento (idealmente a aplicar em toda e qualquer criança ou jovem saudável, sem dislipidémia), deverá ter lugar, durante pelo menos 6 meses, antes de outras medidas a aplicar eventualmente.
  • Regime alimentar
    Fazendo parte do estilo de vida saudável e considerando o parâmetro percentagem do valor calórico total para a quantificação do suprimento alimentar, nas situações de dislipidémia, tal medida diz respeito:
    • à redução do suprimento em gorduras: inferior a 30% (sendo gorduras saturadas inferior a 7-10%, poli-insaturadas 10% e mono-insaturadas 10-15 %),
    • à ingestão de alimentos com teor de colesterol inferior a 200-300 mg/dia,
    • ao incremento da ingestão de hidratos de carbono (50-60%, aumentando o teor em hidratos de carbono complexos e reduzindo o teor de açúcares) e de proteínas (15-20%).

    A restrição dietética somente deverá ser posta em prática em crianças com mais de dois anos, exceptuando nos casos de HF homozigótica (e ponderada nas formas heterozigóticas).
    O regime deverá igualmente ter suprimento rico em fibras, frutos e vegetais.
    Relativamente ao suprimento em fibras solúveis, o mesmo deve ser calculado em gramas (gramas a administrar = idade em anos + 5 a 10 até à idade de 15 anos) até máximo de 25 gramas por dia). Com esta estratégia é possível a diminuição da colesterolémia em cerca de 10-15%.

  • Exames clínicos planeados
    A avaliação clínica global periódica, incluindo a do peso e altura para determinação do IMC (índice de massa corporal) é fundamental, designadamente nos casos associados a hipertrigliceridémia, com tendência para obesidade.

Farmacoterapia

De acordo com as recomendações gerais do NCEP/USA (National Cholesterol Education Program) o tratamento farmacológico das hiperlipémias está indicado nas crianças com idade de 10 anos ou superior, após período mínimo de 6 meses de regime alimentar dietético e de mudança para estilo de vida mais saudável sem terem sido atingidos os objectivos terapêuticos.

Assim, para além das medidas gerais – que deverão continuar – deve ser considerada a administração de fármacos nas seguintes circunstâncias:

  • manutenção do colesterol-LDL > 190 mg/dL;
  • manutenção do colesterol-LDL > 160 mg/dL associado a 1 ou mais factores de risco elevado e/ou a 2 ou mais factores de risco moderado;
  • manutenção do colesterol-LDL > 130 mg/dL associado a 2 ou mais factores de risco elevado; ou a 1 factor de risco elevado + 2 ou mais factores de risco moderado, ou evidência de coronariopatia.

Estas normas, que têm vigorado ao longo de mais de 20 anos com algumas modificações, baseiam-se na probabilidade estatística de o caso em questão poder corresponder a uma forma hereditária de dislipoproteinémia, tal como HF. A idade de 10 anos foi seleccionada por corresponder à idade em que se tem verificado, em estudos, a formação das estrias gordas nas artérias coronárias e aorta.

De acordo com os peritos do NCEP, está previsto que, em casos específicos, correspondendo a valores muito elevados de colesterol, a terapêutica com fármacos possa ser antecipada.

Assim, por exemplo, a partir dos 3-4 anos poderão utilizar-se resinas fixadoras de ácidos biliares, como a colestiramina (entre 4-32 gramas/dia) em duas tomas ou o colestipol (5-40 gramas/dia), associados ao ácido fólico (5 mg 1 vez por semana).

Com a utilização de fármacos, é possível redução dos valores da colesterolémia cerca de 30%.

Não está indicada a intervenção farmacológica nos casos de hipertrigliceridémia isolada, devendo ser ponderada se os valores de triglicéridos ultrapassarem > 1.000 mg/dL no período pós-prandial pelo risco de pancreatite.

Os principais fármacos a utilizar no contexto das dislipoproteinémias em geral distribuem-se pelos seguintes grupos (Quadro 3):

QUADRO 3 – Farmacoterapia nas dislipoproteinémias.

Estatinas (Inibidores da HMG-CoA redutase): diminuem a síntese do colesterol e de VLDL; indicadas perante elevação das LDL; dose iniciais entre 5 e 80 mg/dia
Resinas fixadoras de ácidos biliares (colestiramina e colestipol): estimulam a função dos receptores hepáticos de LDL e a excreção biliar; indicadas perante elevação de LDL; doses iniciais entre 4 e 40 mg/dia
Ácido nicotínico/Niacina: diminui a síntese das VLDL hepáticas; indicado perante elevação de TG e LDL; diminuição de Lp(a); doses iniciais – 100-2000 mg 3x/dia
Fibratos/Gemfibroxil: estimulam a LPL e diminuem as VLDL; indicados perante elevação de TG; doses iniciais de 600 mg 2x/dia
Óleos de peixe: diminuem a produção de VLDL; indicados perante elevação de TG; doses iniciais entre 3 e 10 g/dia
Inibidores da absorção do colesterol/Exetimibe: diminuem a absorção do colesterol; indicados perante elevação das LDL; doses iniciais de 10 mg/dia
Inibidores da PCSK9/Inclisiran: promovem maior captação de LDL pelos seus respectivos receptores nos hepatócitos, com redução dos níveis de LDL. (*)

(*) A PCSK9 é uma proteína que promove a degradação de receptores hepáticos de LDL, levando à hipercolesterolémia. Os inibidores dessa proteína (anticorpos monoclonais) aumentam a disponibilidade dos receptores de LDL. Quando a PCSK9 é inibida, ocorre uma maior captação de LDL pelos respectivos receptores presentes nos hepatócitos, com redução de níveis séricos e plasmáticos de LDL.

Medidas específicas

Para além das medidas gerais explanadas antes e a aplicar em todas as situações de dislipoproteinémias em geral, são especificadas outras medidas a aplicar nas doenças descritas.

Hipercolesterolémia familiar homozigótica
  • Aférese das LDL.
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, eventualmente associadas a ezetimibe como forma de bloqueio da absorção intestinal do colesterol ou a resinas fixadoras de ácidos biliares como a colestiramina ou o colestipol.
  • Transplante hepático, ponderando as complicações associadas.
  • Terapêutica génica.
Hipercolesterolémia familiar heterozigótica e deficiência de Apo B-100 familiar
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, eventualmente associadas a ezetimibe como forma de bloqueio da absorção intestinal do colesterol, ou a resinas fixadoras de ácidos biliares como a colestiramina ou o colestipol.
    Na idade pediátrica há estudos que demonstram maior eficácia da colestiramina e colestipol em comparação com ezetmibe.
  • Inibição da PCSK9 (pró-proteína convertase subtilisina/kexina tipo 9) como forma de promover uma maior captação de LDL pelos respectivos receptores presentes nos hepatócitos, com redução de níveis séricos e plasmáticos de LDL. Com os inibidores de PCSK9 (PCSK9i) consegue-se promover uma redução adicional podendo atingir 60% nos níveis de LDL em comparação com as estatinas.
Hipercolesterolémia autossómica recessiva
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, com resposta escassa.
Sitosterolémia
  • Ezetimibe ou resinas fixadoras de ácidos biliares (colestiramina ou colestipol)

Nota: as estatinas são ineficazes.

Hipercolesterolémia poligénica
  • Têm cabimento as medidas gerais, eficazes. A farmacoterapia é raramente necessária.
Hiperlipémia familiar combinada (HFC)
  • Nos casos de C-LDL > 160 mg/dL, deverá ser considerada a farmacoterapia.
Disbetalipoproteinémia familiar (DBLF)
  • Embora as medidas gerais sejam suficientemente eficazes, a alternativa é a associação a farmacoterapia (estatinas, ácido nicotínico e fibratos).
Quilomicronémia familiar
  • Reforçando-se a noção de as medidas gerais incluírem suplemento de vitaminas lipossolúveis, nesta doença estão indicados óleos de peixe ou TCM, estes últimos absorvidos directamente para o sistema venoso porta. Há que evitar administração hormonal (esteróides, estrogénios), a qual é agravante.
Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)
  • Tal como foi referido em Medidas Gerais, apenas está indicada farmacoterapia (fibratos, nicotinamida, óleo de peixe) se os valores de TG ultrapassarem 1.000 mg/dL, pelo risco de pancreatite.
Alterações do metabolismo das HDL
  • O tratamento é sintomático, devendo evitar-se outros factores de risco de aterosclerose.
Hipocolesterolémias
  • Na abetalipoproteinémia está indicado o suplemento precoce com vitamina E (100 mg/kg/dia), assim como com outras vitaminas lipossolúveis A, D e K por via IM.
  • Na síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO), para além do tratamento sintomático geral, está indicada alimentação com elevado teor em colesterol (por ex. incluindo colesterol liofilizado e gema de ovo) e a administração de estatinas para prevenir a síntese de precursores tóxicos formados a montante do bloqueio enzimático; nesta circunstância, os resultados são contraditórios.
Alterações do metabolismo intracelular do colesterol
  • Na xantomatose cerebrotendinosa, o tratamento precoce com ácido chenodeoxicólico reduz os níveis de colesterol e previne o surgimento de sintomas.
Hiperlipoproteinémia (a)
  • Perante antecedentes de AVC na criança e jovem e elevação do teor em Lp(a) está indicada a niacina/ácido nicotínico (ver atrás).

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DOENÇAS MITOCONDRIAIS

Introdução

O metabolismo da mitocôndria, muito complexo, compreende a produção de energia necessária a diversos processos metabólicos sob a forma de Adenosina trifosfato/ TriPhosphate/ ATP) através da fosforilação oxidativa, oxidação do piruvato, ciclo de Krebs, beta-oxidação de ácidos gordos, catabolismo dos aminoácidos e apoptose. Nesta perspectiva, a disfunção de tal mecanismo pode verificar-se em numerosas situações.

Enquanto uma maior parcela da energia (ATP) advém da fosforilação oxidativa (OXPHOS) obtida através da cadeia respiratória (CR), uma menor parcela da energia é obtida através dos restantes processos atrás citados, sendo que nas respectivas vias metabólicas está envolvida uma multiplicidade de enzimas sob controlo genético.

Às doenças decorrentes de alterações no metabolismo energético mitocondrial [em relação com defeitos de enzimas ou de complexos enzimáticos, interferindo nas vias metabólicas que conduzem à geração de energia] tem sido dado o nome de doenças mitocondriais (DM). Dado que o cérebro e o músculo são muito dependentes do sistema OXPHOS/CR, a sintomatologia neurológica e muscular é muito comum. Assim, surgiu o termo encefalopatia mitocondrial como sinónimo de DM, conceito que abrange um largo espectro de doenças multissistémicas.

A este propósito, importa reter as seguintes noções:

  • As DM são causadas por mutações em genes do DNA mitocondrial (DNAmit – a que correspondem cerca de 40 genes) ou do DNA nuclear (DNAn – a que correspondem cerca de 1500 genes). De salientar que os defeitos do genoma nuclear são responsáveis pela maioria (80-90%) das doenças mitocondriais que se manifestam na idade pediátrica;
  • Tal patologia, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/10.000 nados-vivos e a que corresponde um grupo nosológico de enorme heterogeneidade, integra as formas mais comuns de alterações neurológicas hereditárias;
  • A sintomatologia das DM, evidenciando várias combinações de sintomas, traduz a disfunção de órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina.

A mitocôndria possui o seu próprio sistema DNA (DNAmit), o qual está fortemente dependente do genoma nuclear para a produção de inúmeros factores essenciais a diversas funções das mesmas mitocôndrias, como transcrição, tradução, replicação.

Assim, cada célula contém centenas de mitocôndrias, ou seja milhares de cópias do DNAmit, e de genes que as codificam.

Notas importantes:

    1. Anteriormente, considerava-se que as doenças mitocondriais (DM) eram afecções caracterizadas exclusivamente por disfunção primária da cadeia respiratória mitocondrial (CR) ou sistema OXFOS com a consequente diminuição da produção de energia pela fosforilação oxidativa, na forma de ATP.
    2. Na actualidade, o conceito DM é mais amplo, dizendo respeito (para além da disfunção na cadeia respiratória), a outras disfunções da mitocôndria relacionadas com vias metabólicas em que participam processos bioquímicos, enzimas e complexos enzimáticos, interdependentes, como: complexo da piruvato-desidrogenase (c PDH), ciclo da carnitina, β-oxidação dos ácidos gordos (β-OXAG), oxidação de acetilCoA no ciclo tricarboxílico, cetogénese, cetólise, síntese e transporte da creatina, ciclo de Krebs, homeostase do cálcio, apoptose, estresse oxidativo, etc. (ver adiante).
    3. As DM na sua grande maioria dizem respeito a situações de base hereditária genética, as quais constituem o objecto de estudo deste capítulo (DM primárias).
    4. Com efeito, a par desta maioria, existe uma minoria de situações adquiridas (DM secundárias) em que se comprova disfunção mitocondrial, tais como síndroma metabólica, isquémia-reperfusão após acidente vascular cerebral, doenças neurodegenerativas, etc.

 

Neste capítulo são abordados tópicos essenciais das doenças mitocondriais de base hereditária/ genética, dando ênfase aos defeitos/ às disfunções da CR, da oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como aos defeitos da biossíntese e transporte da creatina.

Em certos livros de texto, os tópicos relacionados com a oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como os defeitos da biossíntese e transporte da creatina, são abordados no âmbito do metabolismo dos lípidos e dos aminoácidos.

1. DISFUNÇÃO DA CADEIA RESPIRATÓRIA (Sistema OXPHOS)

Complexos e funções da cadeia respiratória (CR)

A fosforilação oxidativa (OXPHOS) é obtida através da cadeia respiratória (CR) formada por cinco complexos.

A CR, localizada na membrana interna da mitocôndria, merece assim uma referência especial, designadamente quanto a complexos que integra e suas funções; a mesma está dependente de dois genomas diferentes: o DNAn e o DNAmit, ao nível dos quais se podem verificar mutações (ver caixas seguintes, realçando-se a importância de uma das suas funções – fosforilação oxidativa – na produção de energia/ ATP).

CRcomplexos

    • complexo I (CI): NADH-CoQ- oxido-redutase que contém mais de 40 subunidades codificadas pelo DNA nuclear (DNAn), e apenas 7 pelo DNAmit;
    • complexo II (CII): Succinato-CoQ-oxido-redutase com 4 subunidades codificadas apenas e só pelo DNAn;
    • complexo III (CIII): Ubiquinol-citocromo c-oxido-redutase, com dez subunidades codificadas pelo DNAn, e uma pelo DNAmit;
    • complexo IV (CIV): Citocromo c-redutase (oxidase) com dez subunidades do DNAn, e três codificadas pelo DNAmit; e
    • complexo V (CV): ATP-sintetase com catorze subunidades do DNAn, e apenas duas do DNAmit. Portanto: das 80-90 proteínas da CR, apenas 13 são codificadas pelo DNAmit.

CRfunções

    • a reoxidação do NADH e FADH oriundos do ciclo do ácido cítrico (CAC) e da b-OXAG;
    • a transferência de electrões para o O2; e
    • a fosforilação oxidativa do ADP em ATP (Fig. 1).

A reoxidação dos referidos substratos liberta energia [E] que serve para bombear protões da matriz da mitocôndria para o espaço intermembranar; o gradiente electroquímico gerado é utilizado pelo CV para a síntese de ATP (Fig. 2, esquematizando apenas os aspectos fundamentais).


Os defeitos ou disfunções da CR podem surgir em qualquer idade. O desenvolvimento intrauterino pode ser afectado gravemente, o que se traduz em defeitos congénitos, designadamente do SNC (necrose neuronal, alteração da migração axonal originando por ex. dismorfia craniofacial); nas crianças mais pequenas predomina a patologia encefalopática, intermitentemente progressiva, enquanto em adolescentes e adultos predomina a patologia miopática.

FIGURA 1. Funções da cadeia respiratória mitocondrial.

FIGURA 2. Complexos da CR e formação de ATP.

Genética

Para melhor compreensão da clínica das DM, importa relembrar algumas noções fundamentais de genética referente à mitocôndria e ao núcleo:

  1. O DNAmit é herdado da mãe;
  2. As moléculas do DNAmit existem em múltiplas cópias na célula (poliplasmia);
  3. As mutações patogénicas afectam, no geral, uma certa proporção do DNAmit (heteroplasmia);
  4. Apenas acima de uma percentagem mínima crítica de DNA que sofreu mutação surgem alterações significativas da fosforilação oxidativa e sintomatologia (efeito limiar);
  5. O grau de heteroplasmia, nas gerações seguintes de células, pode alterar-se (segregação replicativa), podendo mudar o quadro clínico;
  6. Os defeitos enzimáticos da CR podem ser: isolados (um só complexo afectado), ou combinados, sendo que qualquer defeito enzimático da CR, independentemente da sua localização, poderá afectar gravemente o metabolismo;
  7. As mutações do DNAn que podem afectar o metabolismo energético são ainda pouco conhecidas, mas o seu número cresce progressivamente;
  8. Na fertilização, todo o DNAmit provém do ovócito, pelo que o padrão de transmissão do DNAmit (e mutações patogénicas) é radicalmente diferente do da hereditariedade mendeliana (nuclear). Assim, uma mãe com mutação pontual no DNAmit transmite-a a todos os seus filhos de ambos os sexos, mas só as filhas a transmitirão à descendência (hereditariedade materna);
  9. O fenótipo é assim determinado pela proporção relativa entre o DNA em que se verificou mutação e o DNA normal, que é variável nos diferentes tecidos, e pode alterar-se ao longo da vida.

Na perspectiva da relação entre alterações genéticas e entidades clínicas, pode estabelecer-se a seguinte sistematização:

Alterações primárias do DNAmit

As doenças resultantes de tais alterações associam-se a hereditariedade mitocondrial.

Podem surgir deleções simples, duplicações (estas últimas podendo coexistir), e mutações pontuais. As deleções simples, apresentando-se geralmente de forma esporádica, determinam determinadas síndromas como: de Pearson, de Kearn-Sayre (KSS), PEO (oftalmoplegia externa progressiva), diabetes e surdez. Ocasionalmente pode haver transmissão materna.

No que respeita às mutações pontuais (cerca de 200) poderão decorrer de hereditariedade materna e ser multissistémicas, ou esporádicas e específicas de tecido; o seu número tem crescido, sugerindo-se, para actualização, a consulta do sítio – http://infinity.gen.emory.edu/mitomap. html.

Nas encefalomiopatias de transmissão materna há fundamentalmente 4 síndromas mais importantes a destacar: MELAS, MERFF, NARP/MILS e LHON.

Para além destas formas sindromáticas (e outras, como veremos adiante), bem definidas e caracterizadas, estão descritas inúmeras associações de sinais/ sintomas devidas a mutações do DNAmit. Os órgãos ou sistemas mais frequentemente afectados são, entre outros, os relacionados com: visão, audição, sistemas endócrino, cardiovascular, digestivo, renal, etc..

Alterações do DNAn

As doenças resultantes de tais alterações associando-se a hereditariedade nuclear, mendeliana, especificamente dependem de mutações em genes que codificam proteínas da CR e defeitos da sinalização intergenómica.

Das várias dezenas de polipéptidos que constituem a CR, apenas 13 são codificados pelo DNAmit, sendo todos os outros pelo DNAn.

Eis alguns exemplos: mutações que codificam subunidades do CI e CII dando origem:

  • a formas autossómicas recessivas (AR) de síndroma de Leigh; ou
  • a defeitos predominantemente miopáticos, encefalopáticos ou generalizados do CoQ10; ou
  • a mutações nos genes que codificam proteínas necessárias à “reunificação” dos diferentes complexos da CR, como: SURF1, SCO2, COX10, COX15, SCO1 associadas a formas de Leigh, a formas infantis miltissistémicas fatais, a encefalopatia e cardiomiopatia (SCO2, COX15), a nefropatia (COX10), a hepatopatia (SCO1).

Nota: É importante mencionar, a propósito, o defeito primário de CoQ10: primeiros casos descritos em 1989 em 2 irmãos com fadiga progressiva, fraqueza proximal, crises de mioglobinúria, presença de RRF (ver adiante) e lípidos no músculo. A actividade enzimática dos complexos da CR era normal, mas diminuída a dos CI+III e II+III. Outros doentes podem apresentar encefalomiopatia sem mioglobinúria, ou fenótipo de Leigh, com início na idade adulta.

No que se refere aos defeitos da sinalização intergenómica, importa salientar que as mutações nos genes nucleares podem provocar alterações qualitativas ou quantitativas no DNAmit.

  • Alterações qualitativas: deleções múltiplas do DNAmit (AD ou AR) com: oftalmoplegia externa progressiva (PEO) associada a variados sinais/ sintomas; ou mutações no gene da timidina fosforilase (TP) originando a síndroma MNGIE (encefalomiopatia neurogastrintestinal mitocondrial); ou mutações no gene de uma isoforma do transportador do nucleótido adenina (ANT1) com PEO (AD); ou mutações no gene da polimeraseg (POLG) com PEO (AD ou AR); ou no gene Twinkle (helicase).
  • Alterações quantitativas: deplecções acentuadas a parciais do DNAmit com formas congénitas ou juvenis de miopatia ou hepatopatia (AR). Estão identificados 2 genes na síndroma de depleção do DNAmit: gene da timidina-quinase 2 (TK2) com depleção do DNAmit e miopatia isolada; e gene da deoxiguanosina-quinase (δ GK) com formas sistémicas de depleção, frequentemente com miopatia e compromisso hepático.

Têm sido descritos recentemente mais genes nucleares patogénicos, como: o gene da síndroma de Barth (tafazina), e os genes nucleares do CI: NDUFV1, NDUFV2, NDUFS1, NDUFS3, NDUFS4, NDUFS6, NDUFS7. A investigação nesta área está em franco progresso.

Resumindo:

    • As DM podem resultar, quer de mutações no genoma mitocondrial ou nuclear, quer de defeitos da comunicação intergenómica;
    • As DM evidenciam quadros clínicos muito variados resultantes do compromisso de numerosas funções em órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina: combinações de sinais e sintomas envolvendo sistemas diferentes e independentes.

Manifestações clínicas de suspeita de DM

Como regra geral, deve suspeitar-se de DM quando ocorrer uma associação inexplicável (isto é sem relação aparentemente funcional ou embriológica) de dois ou mais sintomas, geralmente com curso rapidamente progressivo ou persistente. É característico observar-se um número crescente de órgãos/tecidos afectados em que o SNC acaba por estar envolvido nas fases avançadas.

A sintomatologia inicial pode persistir ou agravar-se ou, por vezes, melhorar ou desaparecer, à medida que outros órgãos vão sendo afectados.

    • As DM podem surgir em qualquer idade, com qualquer tipo de sintomas, atingir qualquer órgão ou sistema, e com qualquer tipo de hereditariedade.
    • Para além de um alto grau de suspeição, é crucial realizar uma anamnese detalhada e um exame físico o mais completo possível.

São descritos a seguir determinados sinais e sintomas clínicos de suspeição em função de diferentes idades:

Período neonatal

  • Cardíacos: cardiomiopatia;
  • Digestivos: hepatopatia, hipoglicémia refractária, insuficiência hepatocelular grave;
  • Multissistémicos: alterações multiorgânicas e acidose láctica, alterações hematológicas como anemia e pancitopénia;
  • Neurológicos: dificuldade respiratória e acidose láctica marcadas, grave hipotonia isolada, verificação de lesões quísticas na imagiologia cerebral sem história de asfixia perinatal.

A causa mais frequente da sintomatologia neurológica é a depleção do DNAmit por mutações em DNAn.

Período pós-neonatal

  • Metabólicos: coma com cetoacidose, crises de acidocetose e hiperlacticidémia em períodos febris, morte súbita, síndroma de Reye;
  • Gastrintestinais: não progressão ponderal, vómitos recorrentes, diarreia crónica, atrofia das vilosidades intestinais, hipocrescimento, insuficiência hepática grave, hepatomegália progressiva, falência hepática devida ao valproato, disfunção pancreática exócrina, pseudo-obstrução intestinal;
  • Cardíacos: cardiomiopatia, geralmente hipertrófica (concêntrica), síndroma de hiperexcitabilidade, bloqueios de condução;
  • Hematológicos: anemia sideroblástica, pancitopénia com medula aplástica, neutropénia e trombocitopénia, anemia macrocítica refractária e dependente de múltiplas transfusões;
  • Endócrinos: hipoglicémia recorrente, diabetes mellitus insulinodependente, diabetes insípida, hipocrescimento, atraso da idade óssea, hipotiroidismo, hipoparatiroidismo, deficiência de hormona de crescimento, insuficiência suprarrenal, hiperaldosteronismo, insuficiência ovárica ou disfunção hipotalâmica com infertilidade;
  • Renais: raquitismo vitaminorresistente, hipercalciúria, insuficiência renal, nefrite tubulointersticial, síndroma de Toni-Debré-Fanconi, de Bartter, nefrótica, hemolítica-urémica;
  • Musculares: hipotonia e fraqueza musculares, instabilidade cérvico-cefálica, hipomobilidade espontânea, atrofias musculares, fadiga fácil, miopatia, intolerância ao exercício com mialgias, mioglobinúria recorrente, distonia;
  • Neurológicos: atraso ou paragem do desenvolvimento psicomotor, ataxia cerebelosa, epilepsia resistente ou que se agrava com valproato, epilepsia mioclónica, síndroma de West, polineuropatia sensitivo-motora, pés cavos, amiotrofia muscular, leucodistrofia;
  • Oftalmológicos: ptose palpebral, atrofia óptica, retinite pigmentar, degenerescência retiniana, retinopatia “sal e pimenta”, motilidade ocular alterada, oftalmoplegia externa, cataratas, opacidades da córnea, diplopia;
  • ORL: surdez neurossensorial progressiva, ototoxicidade provocada por aminoglicosídeos;
  • Dermatológicos: pigmentação marmoreada, pigmentação de áreas expostas à luz, cabelo fraco, quebradiço, tricotilodistrofia, exantemas;
  • Dismórficos: fácies simile síndroma alcoólica fetal, com ou sem agenésia do corpo caloso;
  • Outros: lipomatose simétrica múltipla, paraganglioma hereditário.

Formas clínicas

Para além da vastidão do perfil clínico, destacam-se formas sindromáticas particulares (algumas designadas por siglas do inglês) que importa conhecer.

Síndroma de Leigh

Esta síndroma, com especial interesse na idade pediátrica, reflecte as consequências da alteração do metabolismo energético no desenvolvimento do cérebro. Demonstrou-se associação, quer a outras alterações relacionadas com DNAmit e DNAn, quer a defeitos do metabolismo do piruvato.

Também chamada encefalomielopatia necrosante subaguda, caracteriza-se por lesões bilaterais, simétricas, de espongiose, proliferação vascular e astrocitose, afectando os gânglios da base, tronco cerebral e medula.

A evolução faz-se por crises com regressão psicomotora, episódios frequentes de apneia e problemas de deglutição por alteração do tronco cerebral.

É frequente a verificação de: vómitos, recusa alimentar, paralisia oculomotora, atrofia óptica, nistagmo, movimentos involuntários (e/ou síndroma extrapiramidal), síndroma piramidal por vezes com reflexos osteotendinosos ausentes.

Menos frequentes: proteínas elevadas no LCR, diminuição da velocidade de condução nervosa, leucodistrofia.

Foram identificadas mutações em cerca de 75% dos genes nucleares com padrão de hereditariedade AR ou ligada ao X. Em cerca de 25% dos casos existem mutações do DNAmit.

A imagiologia cerebral é fundamental para documentar as alterações referidas.

Síndroma de Pearson

Surge habitualmente no primeiro ano de vida com compromisso multiorgânico variável, anemia macrocítica refractária, com ou sem neutropénia, e trombocitopénia.

Na medula óssea: vacuolização dos precursores eritróides e mielóides, hemossiderose, sideroblastos em anel. É frequente observar-se disfunção pancreática exócrina.

Trata-se de síndroma geralmente fatal durante a infância; nos sobreviventes regista-se evolução para síndroma de Kearn-Sayre.

Através da genética molecular são identificadas grandes deleções simples do DNAmit de novo.

Síndroma de Kearns-Sayre (KSS)

Esta síndroma integra um qaudro multissistémico definido pela tríade: início habitual antes dos 20 anos, oftalmoplegia externa progressiva e retinite pigmentar; por outro lado, os doentes afectados têm pelo menos um dos seguintes sinais: bloqueio cardíaco, ataxia cerebelosa ou proteínas no LCR > 100 mg/dL.

Outras manifestações incluem: demência, diabetes, hipoparatiroidismo, baixa estatura por défice da hormona de crescimento, presença de RRF (tradução de Red Rough Fibres, fibras vermelhas rasgadas ou defeituosas) no músculo.

A nível genético foram identificadas mais de 150 deleções simples diferentes no DNAmit.

Síndroma de Barth

Nesta afecção, com hereditariedade ligada ao cromossoma X, salientam-se cardiomiopatia dilatada, neutropénia crónica grave, miopatia e acidúria 3-metilglutacónica (tipo II).

Síndroma de Alpers ou Alpers-Huttenlocher

Ocorrendo habitualmente entre 1-4 anos de idade, tem as seguintes manifestações: regressão psicomotora e crises mioclónicas refractárias, microcefalia, poliodistrofia rapidamente progressiva com perda neuronal, astrocitose, espongiose e hepatopatia (insuficiência hepatocelular).

Síndroma de depleção do DNAmit

São descritas várias formas:

  • Encefalopática com hepatopatia: ocorrendo desde o período de RN até aos 2 anos de vida, com hipotonia generalizada, grave encefalopatia, acidose láctica, hipocrescimento, morte precoce e hepatopatia fatal. Pode verificar-se epilepsia mioclónica e cardiomiopatia;
  • Miopática: no RN e lactente jovem, com hipotonia generalizada, miopatia progressiva, acidose láctica, tubulopatia frequente, distrofia e atrofia musculares progressivas. A histologia do músculo pode ser normal ou evidenciar RRF (ver atrás). O EMG evidencia padrão miopático.

MELAS (Mitochondrial Encephalomyopathy, Lactic Acidosis, Stroke-like episodes)

Esta síndroma caracteriza-se pela seguinte tríade: episódios simile AVC, encefalopatia com convulsões e/ou demência e acidose láctica ou presença de RRF evidenciadas em biópsia muscular (ver atrás) geralmente antes dos 40 anos.

Outras manifestações incluem crises epilépticas focais ou generalizadas, cefaleias recorrentes (tipo enxaqueca), vómitos, hipocrescimento/ baixa estatura, surdez neurossensorial, oftalmoplegia externa progressiva, diabetes não insulinodependente, polineuropatia. Pelo exame do LCR: proteinorráquia (~50% dos casos). Pela imagiologia: calcificações nos gânglios. A mutação mais comum é a A3243G.

MERRF (Myoclonic Epilepsy Ragged Red Fibres)

Síndroma multissistémica (com nome derivado de abreviaturas em inglês: evidenciando mioclonias, por vezes o primeiro sinal de epilepsia mioclónica com presença de RRF. Por vezes, demência, surdez neurossensorial, atrofia óptica, e neuropatia sensitiva. Mutação mais típica: A8344G.

NARP (Neuropathy, Ataxia, Retinitis Pigmentosa)

Síndroma caracterizada essencialmente por neuropatia, ataxia, retinite pigmentar e fraqueza muscular proximal, em combinações variáveis. Também, atraso psicomotor, epilepsia e atraso mental.

LHON ou neuropatia óptica de Leber

Mais frequente no sexo masculino (4 a 5 vezes), o quadro clínico inclui: perda de visão aguda ou subaguda devida a atrofia óptica bilateral, neuropatia retrobulbar, tortuosidade dos vasos retinianos e edema do disco óptico, síndroma cerebelosa, piramidal, neuropatia periférica e alterações da condução cardíaca.

MNGIE (Mitochondrial Neuro-Gastro-Intestinal Encephalopathy)

Encefalopatia mio-neuro-gastrintestinal que ocorre com diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução intestinal, miopatia com RRF, oftalmoplegia externa progressiva, neuropatia periférica, leucodistrofia e caquexia.

Síndroma de Wolfram (DIDMOAD)

Esta forma clínica, muito rara (prevalência global de 1/770.000 nados vivos), é conhecida também pelo acrónimo assinalado (em inglês ) significando combinação de sinais e sintomas, respectivamente: diabetes insípida, diabetes mellitus, atrofia óptica (optical atrophy) e surdez neurossensorial (deafness).

Trata-se de patologia progressiva, década a década da vida: na idade adulta, surgimento de complicações renais e neurológicas (ataxia cerebelosa e mioclonias).

Diagnóstico

O diagnóstico definitivo das DM exge um trabalho complexo, necessitando, dum modo geral, da conjugação de parâmetros clínicos, bioquímicos, anatomopatológicos e genéticos. De acordo com os resultados respectivos, o diagnóstico poderá ser considerado: confirmado, provável, possível, ou refutado.

Tal complexidade resulta do facto de a clínica e as alterações bioquímicas não serem específicas do defeito metabólico, o que poderá levar a resultados inconclusivos. Na literatura científica é realçada uma “verdadeira odisseia” relacionada com uma exigência de raciocínio clínico laborioso conducente ao diagnóstico.

Por outro lado, se os resultados forem normais, tal não invalida o diagnóstico de DM. Por consequência, são necessárias, por vezes, provas dinâmicas que ponham em evidência a alteração do metabolismo energético subjacente, provas que implicam padronização com o objectivo de uma mais correcta interpretação.

Assim, frequentemente, o diagnóstico bioquímico/ genético só é concretizado após uma longa série de estudos bioquímicos e moleculares, em diferentes tecidos, de preferência os mais afectados clinicamente. É crucial, pois, existir um diálogo contínuo entre o clínico, o bioquímico e o geneticista para uma interpretação integrada de todos os dados recolhidos.

De salientar que devem ser evitadas as provas/ estudos desnecessários, chamando-se a atenção para a necessidade do consentimento informado e esclarecido.

Para o diagnóstico de DM torna-se necessário persistência, humildade e, não raras vezes, aguardar pela evolução do quadro clínico.

O fluxograma da Figura 3 poderá ser útil.

FIGURA 3. Doenças mitocondriais – marcha diagnóstica.

SUSPEITA DE DOENÇA MITOCONDRIAL
Atingimento de órgãos sem aparente relação com evolução clínica progressiva
Acidose metabólica no momento da descompensação aguda
Padrão simile AVC (stroke-like)
Atingimento dos gânglios basais
Alteração da substância branca

Exames bioquímicos basais (iniciais)

Análise basal de metabólitos

Doseamento de: lactato (L), piruvato (P), razão L/P, 3-hidroxibutirato (3OHB), acetoacetato (AcAc), razão 3OHB/AcAc, e glicémia e AG livres, em jejum e 1 hora após refeição, se possível ao longo de 24 horas.

Fundamental para o diagnóstico: hiperlacticidémia (L > 4 mmol/L); frequentemente a razão L/P e, também, a razão 3OHB/AcAc estão elevadas; cetonémia paradoxal após refeição: é sugestiva.

Tais relações reflectem, indirectamente, o potencial redox do citoplasma (L/P), e da mitocôndria (3OHB/AcAc).

Deve ser colhido sangue venoso ou arterial em tubo com fluoreto de sódio, não usando garrote e evitando, quanto possível, designadamente, a agitação (movimentos) e o choro. É útil recordar a correspondência: Lactato em mmol/L <> mg/dL x 0,11.

Outros metabólitos: CPK, ácido úrico, amónia, CoQ10, AA (alanina), carnitina total, livre e acilcarnitinas no plasma e urina; aminoácidos (AA) e ácidos orgânicos (AO) urinários. Se possível: tocoferol e biotinidase.

Se houver sintomas gastrintestinais (GI) predominantes, deve dosear-se a timidina no sangue para o diagnóstico de MNGIE.

Nota: se os doseamentos evidenciarem resultados normais no sangue, mas existirem sinais de compromisso do SNC, deve proceder-se aos seguintes doseamentos no LCR: glucose, proteínas, L, P, L/P, AA e folatos.

Provas dinâmicas

  • Prova de sobrecarga com glucose: 2 g glucose/kg, com doseamento no sangue (imediatamente antes e 60 minutos após a toma) de: glicémia, L, P, 3OHB e AcAc, respectivas razões; e, na urina, os AO. A prova procura revelar uma alteração do metabolismo energético mitocondrial não evidente nas condições basais, como seja um L ou alanina elevados. Trata-se duma prova ideal para crianças.
  • Prova de esforço: em crianças maiores colaborantes, adolescentes e adultos. Dosear no sangue: CPK, L, P, L/P, AA (alanina), e AO (urina), antes e após o esforço. Interpretação por vezes difícil.
Outros estudos

Cita-se a análise do consumo de O2 (polarografia) em mitocôndrias a fresco, só possível em laboratórios especializados muito experientes.

Outros exames complementares

Todos os órgãos-alvo devem ser explorados cuidadosamente.

  • Olhos: fundoscopia, acuidade visual, campimetria, motilidade ocular. A retinite pigmentar está presente em 75% dos casos.
  • Sistema nervoso: EMG e velocidade de condução nervosa; potenciais evocados auditivos e visuais; ERG; EEG (vigília e sono) com poligrafia. RM-CE convencional: possível detecção de lesões hiperintensas nos núcleos da base e tronco (Leigh); lesões vasculares agudas (MELAS), alterações difusas da substância branca central (KSS, defeito do CII); RM-CE com espectroscopia: estudo do pico de L, mielinização, perda neuronal, medição de picos de outros metabólitos como: creatina, colina, acetil-aspartato; TAC-CE para detecção de calcificações (MELAS, KSS). Com estes exames de neuroimagem podem ser observadas alterações em 80% dos doentes, dependendo, contudo, do tempo de evolução da doença.
  • Sistema cardiovascular: para detecção de cardiomiopatia, bloqueios de condução, síndroma de hiperexcitabilidade, etc..
  • ORL: audiometria (detecção de surdez neurossensorial, frequente).
  • Sistema endócrino: detecção de diabetes, hipoparatiroidismo (Pearson, KSS, MELAS). Prova com ACTH e outros estudos se existir baixa estatura.
  • Rim: função renal completa, glomerular e tubular, urina de 24 horas. Avaliação sobre eventualidade de síndroma de Fanconi ou outras alterações até ao momento não evidenciadas (Pearson, KSS, MELAS).
  • Sangue: alterações podem afectar as três séries; se suspeitar de Pearson, há que proceder a punção da medula óssea.
  • Sistema digestivo: frequentes os problemas alimentares e RGE, particularmente nos mais jovens; valorizar vómitos frequentes, diarreia crónica, hipocrescimento, disfunção pancreática exócrina (Pearson), episódios de pseudobstrução intestinal; valorizar os sintomas do foro hepático como hepatomegália, insuficiência hepática induzida pelo valproato, disfunção hepática aguda (depleção do DNAmit).
  • Sistema muscular: poderá ser necessário estudar o metabolismo energético da mitocôndria com RM e espectroscopia com 31P, e determinar a relação fosfocreatina/ fósforo inorgânico no estado de repouso, exercício e na recuperação. Nos doentes, a relação é baixa no repouso, desce mais ainda no exercício e, na recuperação, verifica-se subida lenta, sendo que a técnica é difícil de aplicar em crianças.
  • Sistema cognitivo: uma avaliação cognitiva cuidadosa é, obviamente, importante.

Nota importante: deverá proceder-se a registos audiovisuais: fotos e videoimagens, para estudo evolutivo.

Exame histológico

Os estudos histológicos são muito importantes para o diagnóstico de DM. O achado ultra-estrutural de fibras vermelhas rasgadas (RRF) (Figura 4) corresponde a fibras musculares com acumulação subsarcolémica de mitocôndrias alteradas quanto ao seu número, disposição, forma e estrutura interna. Tal achado foi considerado como marcador inequívoco de DM, mas actualmente não é aceite, pois poderá ser observado noutras doenças não mitocondriais como a distrofia muscular, polimiosite, dermatomiosite, ou até em pessoas idosas.

Por outro lado, pode verificar-se DM sem padrão RRF, designadamente nas formas LHON e síndroma de Leigh, em relação com mutações no gene da ATPase 6.

Nos estudos histológicos usam-se actualmente diferentes técnicas: morfológicas (como o teste tricrómio Gomorri modificado); histoquímicas (succinato desidrogenase, citocromo c-oxidase, ou ambas); de fluorescência (catiões lipofílicos fluorescentes); imuno-histoquímicas (anticorpos), ou de hibridação in situ (sondas específicas). No músculo dos doentes é frequente a observação de depósitos de gordura e de glicogénio.

As alterações mitocondriais são mais difíceis de interpretar noutros tecidos, como hepatócitos, células tubulares renais, miocárdio, músculos extraoculares, etc..

FIGURA 4. Aspecto ultra-estrutural RRF (fibras musculares rasgadas, defeituosas ou Ragged Red Fibers). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exame bioquímico ulterior

Após a realização dos estudos bioquímicos iniciais, e perante a suspeita de DM, deve proceder-se ao doseamento da actividade dos complexos da CR, o qual pode ser efectuado em diferentes tecidos:

  • Cultura de fibroblastos através de biópsia de pele; ou
  • Biópsia do músculo.

As biópsias devem ser executadas nas condições mais adequadas, cumprindo regras essenciais:

    • No caso da biópsia de pele, a amostra deve ser colocada em meio especial (ex. Hans), conservada e enviada à temperatura ambiente até ao limite de 48 horas, para o laboratório especializado;
    • No caso da biópsia do músculo e para estudos a fresco (métodos polarográficos), os mesmos deverão ser feitos obrigatoriamente no mesmo dia da biópsia, o que implica a realização desta no próprio centro especializado. Se tal não acontecer, deve dividir-se a amostra de músculo em 2 porções, conservadas a -80º C:
      → uma para estudo da actividade enzimática e DNA; e
      → outra para estudos histológicos. Chama-se a atenção para a importância do doseamento de CoQ10 no músculo, porquanto a doença por defeito de CoQ10 é tratável.

 

Em suma, o uso de amostras congeladas é a prática mais comum, ainda que não a ideal. É aconselhável medir a actividade enzimática individual dos complexos da CR, mas também a actividade do I+III e II+III.

Deve padronizar-se a actividade de cada complexo pela actividade da citrato-sintetase, para garantia da validade e estado de conservação da amostra.

Nota importante: uma actividade enzimática normal dos complexos da CR não afasta o diagnóstico de DM. Com efeito, poderá acontecer que o tecido estudado não expresse a doença ou, no caso de a expressar, que exista um mosaicismo celular.

Exame genético

O exame genético é, por vezes, decisivo para diagnóstico de DM.

Assim, numa primeira fase, deve proceder-se do seguinte modo:

  • Investigar as mutações do DNAmit e DNAn (estas últimas ainda pouco conhecidas);
  • Escolher o(s) tecido(s) mais afectado(s) clinicamente a que possivelmente corresponderá uma proporção maior de DNA que sofreu mutação;
  • Estudar: mutações pontuais, deleções, duplicações e deplecção do DNAmit;
  • Técnicas: colheita de sangue: 5-10 mL em tubo EDTA; colheita de tecidos: fibroblastos, músculo, fígado, outros.

É útil fazer o estudo genético do(a) filho(a) e da mãe, se houver suspeita de mutações do DNAmit e hereditariedade materna; ou no doente e em ambos os progenitores, se se suspeitar de mutações nucleares e hereditariedade mendeliana.

Se houver suspeita de determinada síndroma clínica em concreto, como por exemplo: MERRF, MELAS, NARP, Leigh, etc., deve fazer-se a detecção prévia das alterações genéticas conhecidas do DNAmit; se o estudo mutacional for negativo, deve proceder-se a biópsia muscular para estudos bioquímicos, histológicos e moleculares.

Se a situação configurar uma associação de sintomas e sinais não conhecida, mas evocadora de uma DM, deve proceder-se a biópsia muscular e a outros estudos neste tecido.

Tratamento

Específico

Pela ausência de grandes séries de doentes, não há estudos conclusivos quanto ao efeito dos múltiplos tratamentos experimentados. A terapêutica farmacológica específica revela apenas alguma melhoria em casos raros, geralmente sem efeito nas formas precoces e multissistémicas. Como excepção devem ser citados os seguintes fármacos:

  • A ubiquinona-10 ou CoQ10, potente antioxidante, eficaz no defeito primário do CoQ10;
  • A idebenona: similar à ubiquinona mas muito mais solúvel; pode atravessar a barreira hemato-encefálica, e pode ser útil na doença de Friedrich;
  • Outros (sendo referida entre parênteses a entidade clínica para a qual é dirigido): vitamina C (def. CIII); vitamina K3, menadiona (def. CIV provavelmente); vitamina B2, riboflavina (def. CI); vitamina B1, tiamina (útil apenas no def. PDH); citocromo c (KSS provavelmente); mono-hidrato de creatina (crises agudas do MELAS); histidinato de cobre (a tentar nas formas graves de encefalomiocardiopatia do lactente com defeito de COX – mutação SCO2); carnitina (útil nas deficiências secundárias); dicloroacetato (útil nas acidoses lácticas graves no defeito PDH, mas por períodos curtos); bicarbonato (melhoria da hiperventilação); ácido fólico (útil no KSS e anomalias da mielinização); ácido folínico (por vezes alguma melhoria em situações de alteração da substância branca cerebral); corticóides (por vezes útil nas crises do MELAS e na insuficiência suprarrenal no MELAS e KSS); L-arginina, precursora do óxido nítrico (vasodilatador), com acção inconstante nas crises de AVC no MELAS.

Nota importante: não devem ser usados fármacos que inibam a CR e/ou o metabolismo da mitocôndria: valproato de sódio, fenobarbital, hidantoína, tetraciclinas, ciprofloxicina, aminoglicosídeos (especialmente nos doentes com a mutação A1555G, que têm surdez), anestésicos vários, analgésicos (como o fentanil).


Os transplantes hepático, renal ou cardíaco deverão ser cuidadosamente ponderados em casos muito seleccionados, dadas as características evolutivas das DM.

Medidas gerais

Reforça-se o papel importante de certas medidas de suporte, a saber:

  • Evicção/correcção de descompensações metabólicas agudas, tendo em atenção a correcção sintomática em função de sinais de compromisso de diferentes órgãos;
  • Suprimento energético adequado, não excessivo: evicção do jejum prolongado, promovendo refeições com intervalos regulares;
  • Dieta cetogénica somente com indicação no def. PDH, e no Leigh, com resultados contraditórios;
  • Evicção de situações que exijam elevada necessidade energética: administração de antipiréticos em casos de febre (não ácido acetilsalicílico, preferindo ibuprofeno), evicção de ambientes muito quentes, abstenção de álcool;
  • Reidratação IV em situações de desidratação;
  • Diálise se insuficiência renal ou nos casos de MNGIE (se timidina muito elevada no sangue);
  • Fomento do exercício físico aeróbico controlado, sempre que possível para melhorar a tolerância à fadiga;
  • Correcção da acidose: bicarbonato; nos casos de acidose láctica grave, poderão estar indicadas diálise peritoneal ou hemodiálise;
  • Apoio psicológico e/ou psiquiátrico aos doentes e familiares, quando necessário (aspecto fundamental, a não descurar).

Nota importante:

    1. Apesar de não existir tratamento curativo para as DM, ante a mínima suspeita deve proceder-se à administração de cofactores para melhorar a função da CR. No caso específico de MELAS, em todos os doentes deve administrar-se suplemento com arginina e citrulina durante os surtos de “AVC” e na fase de manutenção.
    2. Abundam controvérsias acerca dos resultados e benefícios de muitas das terapêuticas citadas.

2. DOENÇAS POR DEFEITOS DA OXIDAÇÃO MITOCONDRIAL DOS ÁCIDOS GORDOS E DA CETOGÉNESE

Etiopatogénese e nosologia

A oxidação dos ácidos gordos (AG) na mitocôndria é crucial para a produção de energia. Nos estádios tardios de jejum, os AG fornecem ~80% das necessidades totais de energia pela síntese hepática de corpos cetónicos e por oxidação directa noutros tecidos.

Os ácidos gordos de cadeia longa (AGCL: C16-C20) constituem a fonte energética essencial para o músculo esquelético durante o exercício prolongado e a fonte preferida pelo miocárdio.

A oxidação de AG integra quatro componentes:

  1. Ciclo da carnitina;
  2. Ciclo da beta-oxidação;
  3. Via de transferência de electrões; e
  4. Síntese dos corpos cetónicos (ver adiante).

A via de transferência de electrões transfere uma parcela da energia libertada na beta-oxidação para a cadeia respiratória, daí resultando síntese de ATP.

No fígado, parte importante da acetil-CoA derivada do ciclo da beta-oxidação é utilizada para a síntese de corpos cetónicos: 3-hidroxibutirato e acetoacetato. Estes corpos cetónicos são então exportados para os tecidos para a oxidação final (principalmente para o cérebro), poupando glicose.

Noutros tecidos, como o músculo, a acetil-CoA entra no ciclo de Krebs para a produção de ATP.

Os AG livres, libertados com o concurso das lipases, dos triglicéridos armazenados no tecido adiposo, circulam ligados à albumina. A sua oxidação nos tecidos periféricos poupa o consumo de glucose, e a necessidade da conversão das proteínas do corpo em glucose.

Por sua vez, o fígado, utilizando AG, fornece energia para a gluconeogénese e para a síntese de ureia.

As doenças principais que decorrem de anomalias ao nível dos quatro componentes atrás referidos ( 1 -, 2 -, 3 – , 4 – ) podem ser assim sistematizadas (ver caixa):

    • defeito do transportador da carnitina (CTD) – deficiência primária de carnitina e deficiência de captação de carnitina;
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 1 (CPT1);
    • deficiência de carnitina/acilcarnitina-translocase (CACT);
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 2 (CPT2);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia muito longa (VLCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia média (MCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia curta (SCAD);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia longa (LCHAD);
    • deficiência de proteína trifuncional mitocondrial (MTP);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia curta (SCHAD);
    • deficiência de 3-cetoacil-CoA tiolase da cadeia média (MCKT);
    • deficiência de desidrogenases de múltiplas acil-CoA (acidúria glutática tipo 2) ou de ETF/ETF-DH (flavoproteínas de transferência de electrões);
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase conduzindo a defeito da cetogénese;
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) liase conduzindo a defeito da cetogénese.


Dois aspectos com implicações clínicas importantes a reter são:

  • A produção insuficiente de corpos cetónicos, associada à inibição da gliconeogénese pelos baixos níveis de acetil-CoA durante os estados catabólicos (por ex. jejum prolongado, infecção, procedimento cirúrgico, etc.), poderá causar coma hipoglicémico hipocetótico típico, acompanhado por sinais de insuficiência hepática e hiperamoniémia;
  • A acumulação tóxica de acilcarnitinas de cadeia longa, especialmente nas perturbações de oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa, poderá causar acidose láctica grave no RN e lactente, cardiomiopatia e hepatopatia.

Como consequência do que foi referido, os defeitos da ß-oxidação dos AG são actualmente considerados um grupo major de doenças neurometabólicas. As respectivas manifestações clínicas levantam problemas de diagnóstico diferencial com defeitos da CR.

Manifestações clínicas

As perturbações da oxidação de ácidos gordos e da cetogénese, evidenciando grande variabilidade de manifestações, apresentam-se na maioria dos casos, em 3 formas principais: hepáticas, cardíacas, e musculares.

Em geral, as manifestações ocorrem no lactente jovem com episódios potencialmente fatais de coma com hipoglicémia hipocetótica induzidos por jejum ou doença febril, por vezes em associação a falência hepática e hiperamoniémia.

O compromisso hepático é o mais comum e revelador (qualquer que seja o defeito): hepatomegália, esteatose, aumento do valor das transaminases, síndroma de Reye, colestase e falência hepática. A esteatose é um indicador seguro, mas não específico, que deverá conduzir à suspeita e estudo destas patologias.

Quanto ao compromisso extra-hepático, há a referir, no RN e lactente: sinais hemodimâmicos/ cardíacos, designadamente cardiomiopatia (CM), taquicardia ventricular e arritmia hipoglicémia hipocetótica.

Em crianças mais velhas é comum observar-se: fraqueza e dor musculares, rabdomiólise recorrente induzida pelo exercício ou CM aguda ou crónica.

Na LCHAD pode observar-se retinopatia ou neuropatia periférica e síndroma HELLP materna.

Os defeitos (def.) da cetogénese: def. de HMG-CoA sintetase e def. de HNG-CoA liase podem apresentar-se, precoce ou tardiamente, no contexto de infecção ou de estresse metabólico.

A descompensação pode levar a encefalopatia, vómitos, alterações da consciência, em associação frequente a hepatomegália, hipoglicémia hipocetótica. Na deficiência de liase, em que é possível a complicação de pancreatite, alguns pacientes podem estar assintomáticos durante anos ou evoluir para sequelas neurológicas.

A MCAD é, no geral, o defeito mais frequente, seguindo-se LCHAD, VLCAD e os defeitos do ciclo da carnitina (CPT1, CPT2, CACT). Em Portugal a MCAD é frequente na etnia cigana.

Salienta-se que a deficiência de CACT é frequentemente sintomática nas horas a seguir ao parto.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em:

Exames laboratoriais

  • Perfil das acilcarnitinas no plasma ou urina por espectrofotometria de massa em tandem;
  • Doseamento da carnitina total no plasma, sendo que todas estas doenças (excepto a CPT1) têm concentrações de carnitina baixa ou muito baixa;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina, a qual poderá evidenciar acidúria dicarboxílica específica durante o jejum ou doença;
  • Acilglicinas urinárias;
  • Doseamento de ácidos gordos plasmáticos.

Também relevantes para o diagnóstico: hiperamoniémia moderada (mais comum no RN), acidose metabólica moderada, hiperlactacidémia (que diminui com a idade). Os valores de ALT, AST e GGT são raramente superiores 2-3 vezes em relação aos valores de referência.

Por vezes são necessárias outras análises, in vitro ou in vivo, para estudo da via de oxidação dos ácidos gordos.

Estudo histológico hepático

O estudo histológico hepático na fase aguda pode evidenciar sinais de esteatose hepática micro ou macrovesicular que, nos intervalos das crises, podem normalizar.

Pode existir fibrose hepática (VLCAD) e alteração cirrótica (LCHAD).

Nas formas musculares poderá verificar-se quadro de miopatia lipóide/ acumulação de gordura.

Avaliação da actividade enzimática

A avaliação da actividade enzimática é possível nos fibroblastos e linfoblastos.

Diagnóstico molecular

O diagnóstico molecular pode ser de utilidade nas seguintes doenças, para pesquisa de mutações (designadas entre parênteses): MCAD (A985G), LCHAD (G1528C) e CPT2 na sua forma miopática (S113L).

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico pré-natal é possível em todas estas doenças usando amniócitos ou vilosidades coriónicas, excepto na deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase.

Há que admitir a possibilidade de defeito de beta-oxidação de AG perante hipoglicémia, miopatia ou cardiomiopatia não explicadas.

Tratamento

Fase aguda

  • Deve promover-se elevado suprimento de glucose IV (10 mg/kg/minuto ou superior) de imediato, estando proscritos lípidos por via IV;
  • Manter a glicémia > 100 mg/dL (> 5,5 mmol/L), com o objectivo de estimular a secreção de insulina, suprimir a oxidação de AG no fígado e músculo, e bloquear a lipólise;
  • Riboflavina:100 mg/dia (alguns doentes com SCAD e ETF/ETF-DH respondem bem):

A recuperação, não imediata, pode demorar 1-2 dias.

Fase de manutenção

  • Deve evitar-se o jejum prolongado na tentativa de evitar a utilização de AG como fonte energética;
  • Nos casos mais graves, especialmente nos doentes com fraqueza muscular e/ou CM, deve evitar-se o jejum, procedendo-se à alimentação intragástrica contínua nocturna, dar-se amido cru como meio libertador lento de glucose, e restringir-se o suprimento de gorduras;
  • TCM/ triglicéridos de cadeia média: nos defeitos de beta-oxidação da AG de cadeia longa e na LCHAD são de grande utilidade; de utilidade discutível nos SCAD, SCHAD e defeitos da cetogénese e; contraindicados nos casos de deficiência MCAD; no defeito VLCAD podem ter utilidade episodicamente antes do exercício físico;
  • Triglicérido C7 (tri-heptanoína) em formas seleccionadas, por ex. VLCAD, suprindo 30-35% do VCT; melhoria sobretudo em situações de hipoglicémia, rabdomiólise, fraqueza muscular e CM;
  • Carnitina: a sua utilização, se os respectivos níveis estiverem diminuídos, é crucial na forma CTD (defeito do transportador da carnitina); deve ser cautelosa ou evitada noutras formas;
  • Fórmulas especiais com redução da gordura: Monopen, Basic-f, úteis nos VLCAD e CPT2;
  • Ácidos gordos essenciais/ AGE, designadamente óleos de noz, de soja, de trigo, incorporando ácidos linoleico (ómega-6), linolénico (ómega-3) nos casos de restrição de AGCL muito severa;
  • Ácido docosa-hexanóico (DHA) na LCHAD;
  • Bezafibratos – a investigação em curso configura boas expectativas.

Nota final – os níveis séricos de vitaminas lipossolúveis devem ser vigiados.

Evolução

Com o rastreio neonatal alargado e o diagnóstico precoce das situações descritas, de acordo com estudos de grandes séries, a mortalidade, anteriormente rondando cerca de 48%, baixou significativamente. Como exemplos – no MCAD, anteriormente 20%, baixou para 0-4%; LCHAD e VLCAD, de 60% para 0%.

3. DOENÇAS POR DEFEITOS DA CETÓLISE

Etiopatogénese e nosologia

Os corpos cetónicos (cc): acetoacetato e 3-hidroxibutirato são metabólitos derivados dos ácidos gordos/ AG e dos aminoácidos/ AA cetogénicos, como a leucina.

A situação de cetose esporádica surge como resposta ao jejum, estado catabólico ou dieta cetogénica. A cetose permanente, rara, poderá traduzir defeito da cetólise.

A cetose, se associada a outras anomalias metabólicas, poderá traduzir: alterações do metabolismo mitocondrial, tais como acidúrias orgânicas e perturbações da cadeia respiratória; e, também, diabetes mellitus. A cetonúria no RN constitui, como regra, doença metabólica primária.

Após jejum prolongado os cc podem oferecer cerca de 2/3 da energia necessária para o cérebro.

Nas doenças por defeitos da cetólise verifica-se falência do processo de utilização dos corpos cetónicos sintetizados no fígado, originando cetoacidose grave e hipoglicémia hipercetótica.

Na prática clínica identificam-se duas entidades relacionadas com defeitos da cetólise:

  • Deficiência de succinil-CoA 3-oxoácido CoA-transferase (SCOT);
  • Deficiência de 3-oxotiolase ou beta-cetotiolase (acetoacetil-CoA tiolase mitocondrial), também envolvida no catabolismo da isoleucina.

Trata-se de doenças passíveis de bom prognóstico clínico se o diagnóstico e tratamento forem precoces e correctos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As perturbações da cetólise traduzem-se fundamentalmente por episódios recorrentes de cetoacidose grave potencialmente fatais, taquipneia, hipotonia e coma (na SCOT) e também por episódios de náuseas e vómitos, com sinais neurológicos de expressão variável (na deficiência de 3-oxotiolase), raramente com apresentação neonatal.

Nalguns doentes poderá desenvolver-se insuficiência mental, ataxia ou distonia.

→ Na SCOT a função hepática não está afectada e não existe hepatomegália. Verifica-se elevação pemanente de cc – acetoacetato e 3-hidroxibutirato – no soro e urina.
Deve fazer-se o diagnóstico diferencial, designadamente com a hipoglicémia cetótica idiopática e a glicogenose tipo 0.
O diagnóstico deve ser confirmado por estudo enzimático em linfócitos, trombócitos e fibroblastos (essencial) em cultura.

→ Na deficiência de 3-oxotiolase para além da elevação acetonas (D-3-hidroxibutirato e acetoacetato) no soro e urina, verifica-se hipo ou hiperglicémia. Na urina salienta-se a elevação de metabólitos da isoleucina como a 2-metil-3 hidroxibutirato, 2-metilacetoacetato e tiglilglicina.
A elevada concentração de acetoacetato no sangue e urina pode originar resultados falsos positivos no teste dos salicilatos.

Através da RM poderão ser evidenciadas anomalias dos gânglios basais.

Tratamento

As bases fundamentais da actuação têm em conta que os doentes com defeitos da cetólise podem sofrer descompensação rápida já na primeira infância, o que poderá dar origem a sequelas neurológicas irreversíveis.

A actuação compreende os seguintes passos:

  • Devem ser evitados períodos de jejum, propiciando elevado suprimento em fluidos com elevado teor de hidratos de carbono desde a verificação do mínimo sinal de doença (designadamente intercorrências acompanhadas de estresse metabólico como infecções) ou em caso de intervenções cirúrgicas;
  • Hospitalização caso se comprove cetonúria; em tal circunstância deve ser aplicada perfusão IV de glucose para tentar interromper o estado catabólico (~10 mg/kg/minuto <> 60 kcal/kg/dia) e incorporando bicarbonato se a acidose for grave (pH<7,1);
  • Na fase aguda da descompensação deve ser evitado o suprimento de proteínas e gorduras;
  • Monitorização rigorosa do balanço hidroelectrolítico, prevenindo e/ou combatendo a desidratação, tendo em conta que a hipernatrémia poderá ser fatal;
  • Após melhoria está indicado suprimento de baixo teor em gorduras (não ultrapassando 1 g/kg/dia de lípidos IV);
  • Poderá estar indicado suplemento em carnitina se os respectivos níveis séricos forem baixos.

4. DOENÇAS POR DEFEITOS DA BIOSSÍNTESE e TRANSPORTE da CREATINA

Etiopatogénese e nosologia

O sistema creatina/ creatina-fosfato tem papel importante de reserva energética no cérebro e músculo.

A creatina (Cr) é sintetizada num processo que envolve duas enzimas: arginina-glicina amidinotransferase (AGAT) e guanidinoacetato metiltransferase (GAMT).

A S-adenosilmetionina (SAM) serve como dador do grupo metilo.

A creatina é sintetizada primariamente no rim e pâncreas (ambos ricos em AGAT), e no fígado (rico em GAMT). A creatina e a creatina-fosfato são convertidas, não enzimaticamente, em creatinina (Crn), que é excretada especialmente na urina.

Para que a Cr seja captada ao nível dos tecidos cerebral e muscular torna-se necessário um transportador da Cr (CRTR).

Nesta perspectiva, são identificadas três entidades relacionadas com defeitos da biossíntese ou do transporte de Cr, levando a concentrações baixas desta no SNC:

  • Deficiência de GAMT;
  • Deficiência de AGAT;
  • Deficiência de CRTR (ou def. SLC6A8) ligada ao cromossoma X.

A GAMT é a forma mais grave, a CRTR a forma mais comum, sendo a sua prevalência alta entre os doentes do sexo masculino com insuficiência mental ligada ao sexo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

No que respeita a manifestações clínicas salienta-se que nas três afecções referidas, verifica-se atraso no neurodesenvolvimento, com especial relevância na área da fala (grave), epilepsia por vezes refractária (verificando-se anomalias no EEG), sinais extrapiramidais (na GAMT), autismo e alterações do comportamento.

Através da RM com espectrometria é possível comprovar-se as concentrações baixas/ muito baixas de Cr no cérebro (o órgão mais afectado) nas três entidades anteriormente referidas constituem um dado fundamental para o diagnóstico. O cérebro é, aliás, o órgão mais afectado.

O diagnóstico bioquímico faz-se pelo doseamento simultâneo de: creatina, creatinina, ácido guanidinoacético (AGA) no plasma, e pela razão Cr/Crn na urina. Para os resultados importa consultar a caixa seguinte.

A concentração muito elevada (e tóxica) do AGA, é marcador da GAMT. A ratio Cr/Crn elevada na urina é marcador de CRTR, especialmente no sexo masculino. Assim:

AGAT → AGA baixo (urina, plasma e LCR); Cr no plasma no limite do normal; Crn moderadamente baixa na urina.
GAMT → AGA muito elevado (tecidos e fluidos) – achado quase patognomónico -, e Cr baixa.
CRTR → AGA dentro do normal.

      • No sexo masculino: Cr elevada na urina; Crn baixa na urina; ratio Cr/Crn elevada na urina.
      • No sexo feminino: ratio Cr/Crn no limite do normal, ou elevada na urina.

A confirmação diagnóstica faz-se através de estudos enzimáticos, moleculares e funcionais de captação da Cr nas células em cultura, para o CRTR.

O estudo molecular, disponível para as três entidades, deve ser feito em todos os doentes.

Os doentes portugueses com GAMT apresentam a mutação c.59G>C (p.W20S), geralmente em homozigotia. A CRTR é diagnosticada em crianças e adultos; as mulheres heterozigotas, em 50% dos casos, apresentam dificuldades de aprendizagem e alterações do comportamento.

O tratamento inclui essencialmente a administração oral de mono-hidrato de creatina (300-400 mg/kg/dia), com suplemento de ornitina, e redução de arginina na GAMT, com melhoria de prognóstico e evolução.

Na AGAT a administração de mono-hidrato de creatina pode levar a melhoria dramática do desenvolvimento, se iniciada na fase pré-sintomas.

Aliás, se a terapia for instituída precocemente nos assintomáticos com AGAT e GAMT, poderá evitar-se o surgimento das manifestações clínicas.

A Cr tem efeitos neuroprotectores (in vivo e in vitro).

Recentemente foram propostas novas terapias:

  1. Suplemento de S-adenosilmetionina, a qual atravessa a barreira hemato-encefálica;
  2. Suplementos de ácido fólico, vitaminas B6 e B12 a fim de se promover o incremento da síntese de metionina e a redução da S-adenosil-homocisteína (que inibe a GAMT);
  3. Análogos lipofílicos de Cr, que atravessam a barreira hematoencefálica, são independentes do CRTR, e evidenciam efeitos promissores na experimentação animal.

Quanto ao defeito de CRTR (SLC6A8), a administração isolada do mono-hidrato de Cr não é eficaz. Foi proposto juntar suplementos de arginina e glicina (precursores da Cr), com resultados incertos ou não mantidos: em certos casos tem-se assistido a melhoria da epilepsia ou dos sintomas musculares, enquanto noutros se tem verificado agravamento do quadro clínico com a introdução da glicina.

No geral, salienta-se que os doentes com “pico” residual de Cr no cérebro beneficiam com o suplemento oral de Cr, mais eficazmente se iniciado em fase precoce.

Como conclusão prática pode afirmar-se:

  1. Perante uma situação de insuficiência mental ligada ao cromossoma X deverá admitir-se: síndroma do X-frágil; e defeito de CRTR.
  2. O rastreio destas doenças da creatina está indicado em doentes de ambos os sexos, com insuficiência mental não específica associada a: – comportamento autista ou outros sintomas psiquiátricos e; – convulsões ou hipotonia.

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DOENÇAS DO METABOLISMO DOS ORGANELOS

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

As células do organismo humano possuem diversos organelos interligados funcionalmente:

  • Lisossomas
  • Peroxissomas
  • Retículo endoplásmico
  • Aparelho de Golgi
  • Mitocôndrias

Os processos fisiopatológicos verificados a este nível permitem a individualização de determinadas nosologias do foro metabólico e hereditário e uma melhor compreensão dos problemas clínicos que as integram.

Lisossomas

Os lisossomas, organelos que contêm hidrolases em meio ácido, são fundamentais para a cisão intracelular de moléculas e compostos de diversas dimensões. Certas enzimas lisossómicas, sendo captadas através de endocitose por outras células, poderão ser identificadas nos fluidos orgânicos.

Como consequência de defeitos em genes que codificam as referidas enzimas lisossómicas, haverá acumulação de substratos incompletamente catabolisados nos organelos de diversos sistemas e órgãos (por ex. órgãos sólidos, tecido conjuntivo, sistema osteoarticular, sistema nervoso, etc.), cuja tradução clínica é o surgimento de organomegálias e outras disfunções de carácter progressivo.

No âmbito das doenças dos lisossomas são consideradas diversas entidades clínicas assim discriminadas:

  • Mucopolissacaridoses (MPS);
  • Oligossacaridoses;
  • Mucolipidoses (ML);
  • Esfingolipidoses;
  • Doenças lisossómicas de armazenamento ou depósito de lípidos (incluindo as lipofuscinoses), e de glicogénio (glicogenose tipo II ou doença de Pompe, já abordada);
  • Doenças por defeito de transporte lisossómico.

Neste capítulo, é dada ênfase às primeiras quatro entidades clínicas (MPS, Oligossacaridoses, ML e Esfingolipidoses), respectivamente nas alíneas 1, 2, 3, 4, adiante sistematizadas.

Na sua globalidade, as doenças lisossómicas, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/7.700, compreendem mais de 50 entidades clínicas.

Peroxissomas

Os peroxissomas são organelos celulares que possuem funções anabólicas e catabólicas, sintetizam fosfolípidos (plasmalogénios, importantes constituintes das membranas celulares), a mielina; intervêm na beta-oxidação dos ácidos gordos de cadeia muito longa e alfa-oxidação do ácido fitânico (ácido gordo 3-metil) e na formação dos ácidos biliares; e promovem o catabolismo da lisina e do glioxilato.

Muitas reacções dependentes do oxigénio verificam-se nos peroxissomas para proteger a célula dos radicais livres, sendo que o H2O2 produzido é metabolizado pela catalase peroxissómica. Salienta-se que, para a biossíntese dos peroxissomas e transporte transmembranar, se torna fundamental o concurso das chamadas peroxinas codificadas pelo gene PEX.

Neste contexto, as doenças dos peroxissomas podem ser sucintamente sistematizadas em:

  • Defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Defeitos do metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Neste capítulo, a alínea 5. (ver adiante) aborda sucintamente o metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Retículo endoplásmico e Aparelho de Golgi

Citam-se outros organelos com importância na etiopatogénese de um grupo de doenças hereditárias do metabolismo:

  • O retículo endoplásmico (RE) – estrutura do citoplasma celular constituída por um conjunto de sáculos e de túbulos achatados cuja função está associada a outro organelo, o aparelho de Golgi;
  • O aparelho de Golgi (AG) – microestrutura com pequenas bolsas e vesículas, com função importante nos processos de secreção e absorção da célula.

Para melhor compreensão das doenças relacionadas com alteração do metabolismo destes organelos RE e AG, importa recordar as seguintes noções:

  • Muitas enzimas e proteínas de membrana e de transporte, assim como certas hormonas, requerem glicosilação (glicosilação proteica) para que se tornem funcionais, formando-se glicoproteínas; salienta-se que existe também a modalidade de glicosilação lipídica;
  • Tal processo requer a participação mais de 50 enzimas localizadas nos referidos organelos (RE e AG);
  • As perturbações ao nível de múltiplos passos metabólicos relacionados com a glicosilação originam uma diversidade de síndromas designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês – congenital defects of glycosylation).

Tais perturbações são abordadas adiante neste capítulo, integrando a alínea 6. , com o título: defeitos da glicosilação (síndromas CDG).

Mitocôndrias

Uma das principais funções das mitocôndrias, organelo em forma de grão, bastonete ou filamento, é o fornecimento de energia sob a forma de ATP através da oxidação dos ácidos gordos, a oxidação de acetilCoA no ciclo do ácido tricarboxílico e a fosforilação oxidativa na cadeia respiratória. Tal processo implica o concurso de mais de 50 enzimas e complexos enzimáticos compostos por número variável de polipéptidos.

As doenças do metabolismo energético mitocondrial, ou simplesmente doenças mitocondriais, decorrem de perturbações de enzimas ou complexos enzimáticos directamente envolvidos na geração de energia química pela fosforilação oxidativa; incluem o complexo piruvato desidrogenase (PDH), o ciclo do ácido tricarboxílico, a cadeia respiratória e a ATP sintetase.

Este tópico é abordado separadamente no próximo capítulo.

1. MUCOPOLISSACARIDOSES (MPS)

Definição e etiopatogénese

AS MPS são doenças lisossómicas de sobrecarga, resultantes de deficiência de enzimas lisossómicas (hidrolases ácidas), com consequente degradação incompleta dos glicosaminoglicanos (com a abreviatura de GAG, sinónimo do termo antigo de mucopolissacáridos), os quais se depositam nos órgãos e tecidos.

Os GAG (que constituem a matriz extracelular das membranas celulares dos tecidos conjuntivo e cartilagíneo, das paredes vasculares e fluidos articulares) são açúcares de cadeia longa aminoacetilados ou sulfatados em ligação a estrutura proteica.

Trata-se de doenças crónicas, progressivas e multissistémicas, de transmissão AR, exceptuando no caso da MPS II (doença de Hunter), que é ligada ao cromossoma X. Nas formas moderadas ou atenuadas, o fenótipo e a esperança de vida aproximam-se da normalidade. O diagnóstico pré-natal é possível para todos os tipos.

Os bebés afectados têm geralmente aparência normal ao nascer, com o tempo definindo-se o fenótipo; se este for sugestivo logo ao nascer, é mais provável que a situação em causa se relacione com mucolipidose tipo II ou I-cell disease, ou gangliosidose GM1, ou doenças de aramazenamento de ácido siálico (ver adiante).

Manifestações clínicas gerais

As manifestações clínicas mais relevantes das MPS podem ser sistematizadas como se segue:

  • Dismorfia facial (fácies grotesca)
  • Alterações esqueléticas (disostose múltipla)
  • Hepatosplenomegália
  • Hérnia umbilical e inguinal
  • Rigidez articular como regra, exceptuando na doença de Mórquio
  • Hipocrescimento de grau variável (nanismo na antiga nomenclatura)
  • Surdez, opacidade da córnea
  • Deterioração mental e alterações neurológicas progressivas (variáveis)
  • Defeitos cardíacos (lesões valvulares)
  • Pele áspera e hirsutismo
  • Infecções respiratórias frequentes.

Nosologia

O Quadro 1 resume a classificação das MPS, dando ênfase a aspectos clínicos característicos.

QUADRO 1 – Síntese classificativa das MPS.

Designação dos tipos de MPS: I-Hurler; II-Hunter; III-Sanfilippo; IV-Mórquio; VI-Maroteaux-Lamy; VII-Sly. (  )=variável.
TipoDismorfia facial         Disostose múltipla         Atraso mental         Opacidade da córnea           Coração
I+++++++++
II+++(++)+++
III+++++
IV+++(+)
VI+++++
VII++(+)+(+)


O tipo IX (Natowicz) contou durante longo tempo com um caso apenas. Contudo, até 2015 foram descritos vários casos na mesma família considerados “artrite idiopática juvenil”, e correspondendo a fenótipo limitado às articulações.

Em síntese, as MPS podem ser caracterizadas do seguinte modo:

  • Síndroma dismórfica e hipocrescimento (Hurler, Hunter e Maroteaux- Lamy, Sly) (Figuras 1-A, B, C; 2; 3; 4);
  • Deficiência mental com regressão das capacidades e alterações do comportamento (Sanfilippo) (Figura 5);
  • Displasia óssea grave com inteligência normal (Mórquio) (Figura 6).

FIGURA 1A. MPS-I (Hurler): Nanismo, fácies grosseira, organomegália, mão bota. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 1B. MPS-I (Hurler): Fácies grosseira, opacidade da córnea/ tapada, pescoço curto, hirsutismo.

FIGURA 1C. MPS-I (Hurler): Aspecto das mãos, dedos grosseiros. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 2. MPS-II (Hunter): Atraso mental, fácies grosseira, organomegália, dificuldade de extensão articular. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 3. Maroteaux-Lamy (MPS-VI): Fácies grosseira, alterações esqueléticas, hérnia umbilical, dificuldade de extensão articular, nanismo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 4. Sly (MPS-VII): Fácies grosseira, hipertrofia gengival, organomegália, alterações esqueléticas, hidrocele. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 5. Sanfilippo (MPS-III): hirsutismo, fácies grosseira. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 6. Mórquio (MPS-IV-A): 2 irmãos com a doença; nanismo severo, ausência de rigidez articular e inteligência normal. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se:

  • Na detecção urinária e caracterização dos GAG parcialmente degradados (QUADRO 2);
  • Na análise (no soro, leucócitos ou fibroblastos) da actividade das enzimas específicas (QUADRO 3);
  • Na análise molecular (estudo mutacional);
  • No estudo radiológico (FIGURAS 7 a 11).

O cuidadoso estudo radiológico pode contribuir para o diagnóstico, valorizando as seguintes alterações: escafocefalia, sela turca alargada; costelas alargadas e grosseiras com afilamento proximal (costelas em remo); corpos vertebrais em anzol com esporão ântero-inferior, gibosidade, cifose dorsal, lordose lombar; metacárpicos com afilamento proximal; alteração dos ossos da bacia (grandes asas do ilíaco, como na doença de Mórquio), cavidades cotiloideias fugidias e irregulares, etc. (Figuras 7 a 11).

QUADRO 2 – Glicosaminoglicanos(•) patológicos na urina em diferentes MPS.

(•) Anteriormente designados mucopolissacáridos (GAG/MPS) e pesquisados como triagem; probabilidade de falsos negativos nos tipos III e IV.

( ) = varável; n = normal

 

Normal

Mucopolissacaridose

Achados clínicos típicos, sistemas orgânicos afectados

 

 

I

II

III

IV

VI

VII

 

Sulfato de dermatano

 

++

++

  

++

+

Esqueleto + órgãos internos

Sulfato de heparano

 

+

+

+

  

n/+

Atraso mental

Sulfato de queratano

    

+

  

Esqueleto

Sulfato de condroitina

+

   

(+)

 

+

 

QUADRO 3 – Mucopolissacaridoses e défices enzimáticos específicos.

MPS I (Hurler-Scheie) → alfa-L-iduronidase

MPS II (Hunter) iduronato-2-sulfatase

MPS III (Sanfilippo) quatro enzimas (A, B, C, D, E) do metabolismo do sulfato de heparano, respectivamente: heparano N sulfatase, N-ac-glucosaminidase, Ac-CoA-glucosamina-N-acetiltransferase, N-ac-glucosamina-6-sulfato sulfatase

MPS III E → arilsulfatase G

MPS IV (Mórquio) duas enzimas (A, B) do metabolismo do sulfato de queratano, respectivamente: N-ac-galactosamina-6-sulfatase (Mórquio A), beta-galactosidase (Mórquio B)

MPS VI (Maroteaux-Lamy) N-acetilgalactosamina-4-sulfatase (arilsulfatase B)

MPS VII (Sly) beta-glucuronidase

MPS IX (Natowicz) hialuronidase ou hialuronoglucosidase I (Hyal I)

FIGURA 7. MPS: aspecto radiológico de costelas em remo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 8. Aspecto radiológico de MPS; vista lateral da coluna vertebral: costelas alargadas, grosseiras; alteração dos corpos vertebrais (vértebras em “anzol”) com esporão anteroinferior; retrolistese. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 9. MPS: padrão radiológico (pormenor de vértebra em anzol). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 10. MPS: radiografia do 1/3 inferior dos antebraços e das mãos: metacárpicos grosseiros, com afilamento proximal; metacárpicos em “favo de mel”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 11. Radiografia do crânio de MPS: vista lateral do crânio com sela turca alargada em “tamanco”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Tratamento

Apesar dos recentes avanços, o tratamento definitivo ou curativo na maioria das afecções que atingem o cérebro ainda não é possível. Para além do tratamento sintomático, salienta-se a importância de certas medidas que poderão retardar a progressão da doença:

  • Terapêutica enzimática de substituição (TES), disponível para alguns tipos de MPS (I, II, IV-A e VI -perfusão IV semanal de enzima recombinante);
  • Transplante de células estaminais/ stem-cells hematopoiéticas (TSCH) eventualmente associada a terapêutica enzimática; como a enzima administrada por via IV não atravessa a barreira hematoencefálica, a terapia de eleição na MPS I severa é o tratamento combinado com terapia enzimática de substituição (TES);
  • Transplante de medula óssea: nalguns casos de MPS tipos I (especialmente), II e VI tem sido realizado este procedimento com resultados variáveis, menos notórios quanto às alterações esqueléticas e oculares.

Seguimento

Dada a natureza progressiva das MPS, torna-se necessária uma avaliação clínica seriada e rigorosa abrangendo várias funções: audição, visão, cardiovascular, pulmonar, articular, neurológica, qualidade do sono, etc.. Nesta perspectiva, impõe-se a colaboração de equipas multidisciplinares para a actuação específica em determinadas situações como hidrocefalia comunicante, opacidade da córnea, degenerescência da retina, surdez, rigidez articular, síndroma do canal cárpico, profilaxia da endocardite bacteriana, da compressão medular, etc.. Há também que ter a maior atenção à anestesia a realizar nos casos de doença de Mórquio A.

2. OLIGOSSACARIDOSES

Definição e etiopatogénese

As oligossacaridoses são doenças de armazenamento lisossomial, autossómicas recessivas, resultantes da deficiência de enzimas que fazem a degradação das cadeias oligossacarídicas das glicoproteínas; daí serem também chamadas glicoproteinoses. A deficiência enzimática específica origina acumulação intracelular de glicoproteínas e/ou de oligossacáridos, parcialmente degradados, com consequente excreção aumentada na urina.

A sua frequência, inferior à das MPS, é elevada contudo em certas regiões do mundo, como é o caso da fucosidose em Itália, e da aspartilglicosaminúria na Finlândia.

Existe grande heterogeneidade clínica, em parte explicada pela vasta heterogeneidade alélica. O mesmo defeito enzimático pode dar origem a formas clínicas diferentes, com idade de início, gravidade e envolvimento de órgãos, muito variáveis, sendo responsável tanto pelas formas precoces como pelas de começo tardio. Partilham muitos aspectos clínicos com as mucolipidoses (ML), e outras doenças lisossomais, mas em particular com as mucopolissacaridoses (MPS), designadamente no que respeita a alterações esqueléticas e fácies grosseira. Dum modo geral as manifestações das oligossacaridoses surgem mais precocemente do que as das MPS (RN ou primeira infância).

Nosologia

As oligossacaridoses integram as seguintes entidades clínicas:

  • Manosidoses
  • Fucosidoses
  • Doença de Schindler
  • Aspartilglicosaminúria
  • Sialidoses e
  • Galactossialidoses, descritas de modo sucinto a seguir.

Alfa-Manosidose (McKusick 248500)

Esta doença é devida à deficiência da alfa-manosidase que causa acumulação de oligossacáridos e glicoproteínas ligadas a resíduos de manose em vários tecidos e tipos de células, incluindo neurónios. Existem mais de 60 mutações, sendo a R750W a mais comum.

As manifestações clínicas são de largo espectro, desde formas perinatais, geralmente fatais, a formas oligossintomáticas, na idade adulta. São frequentes: fácies grosseiro (simile-Hurler), disostose múltipla, atraso psicomotor, surdez, cataratas, opacidade da córnea, hepatosplenomegália e hérnias. As infecções bacterianas são comuns, possivelmente em relação com deficiência imunitária. Por vezes surgem: ataxia progressiva e hidrocefalia comunicante. A pesquisa de linfócitos com vacúolos é habitualmente positiva.

São descritos dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), ocorrendo antes do 1 ano de idade com: fácies grosseira, hipertrofia gengival, macroglossia, organomegália, surdez, atraso psicomotor evoluindo para atraso mental grave. A morte ocorre entre 3-10 anos de idade;
  • Tipo 2 (Juvenil/ Adulto), mais moderado, com início mais tardio, da infância à idade adulta, com disostose múltipla, atraso mental moderado, surdez progressiva e sintomas psiquiátricos. Os angioqueratomas são raros.

O tratamento, requerendo apoio multidisciplinar, é de suporte e preventivo das complicações. O transplante de medula óssea (TMO) ou TMO/TSCH, se efectuados precocemente, poderão estabilizar a deterioração neurológica. Em estudos experimentais de investigação animal verificou-se melhoria da ataxia com TES.

Beta-Manosidose (McKusick 248510)

Devida à deficiência da beta-manosidase, é muito menos frequente do que a doença anterior.

Como manifestações clínicas descrevem-se: graves dificuldades de aprendizagem, alterações graves de comportamento, surdez e infecções frequentes.

O fenótipo simile-Hurler tem menor incidência. A disostose múltipla é mais rara e a organomegália é inconstante. Por vezes surgem angioqueratomas.

Mais frequentemente surgem: atraso mental que pode estar associado a neuropatia periférica, convulsões, surdez e atraso de crescimento. O início surge por volta dos 1-2 anos, podendo alguns doentes viver até à idade adulta.

Fucosidose (McKusick 230000)

É devida à deficiência da alfa-L-fucosidase, com consequente acumulação de glicoesfingolípidos, glicolípidos e glicoproteínas contendo fucose em vários tecidos, originando grave doença neurodegenerativa, convulsões frequentes, e moderada disostose múltipla. Estão descritas mais de 20 mutações.

As manifestações clínicas iniciam-se-se em geral entre as idades de 1-2 anos, podendo verificar-se sobrevivência até à idade adulta. No geral verifica-se: fácies grosseira, atraso mental, infecções respiratórias frequentes, deterioração neurológica, alterações esqueléticas, hepatosplenomegália. Alguns doentes apresentam angioqueratomas proeminentes.

Estão descritos dois tipos:

  • Tipo 1, de início precoce (3-18 meses) com compromisso do SNC e medula espinal, deterioração progressiva com convulsões, rigidez de descerebração terminal, atraso mental, atraso de crescimento, disostose múltipla, alterações vertebrais, cardiomegália, hepatosplenomegália, hérnias, destacando-se o prognóstico muito reservado e morte na primeira década de vida; neste tipo 1 os doentes apresentam concentração de NaCl elevada no suor;
  • Tipo 2, de início mais tardio e curso mais lento, com angioqueratomas (aspecto típico), sendo a concentração de NaCl no suor normal.

Em ambos os tipos podem observar-se linfócitos no sangue periférico, com vacúolos.

O tratamento é de suporte, verificando-se melhoria se o TMO for efectuado precocemente.

Doença de Schindler (McKusick 104170)

Trata-se de doença muito rara resultante de deficiência de α-N-acetilgalactosaminidase que provoca acumulação anormal de glicoesfingolípidos, glicopéptidos e oligossacáridos em vários tecidos. Descrevem-se dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), de início por volta do 1 ano de idade, em crianças até aí aparentemente normais; depois verifica-se deterioração neurológica com convulsões, hipotonia axial, espasticidade, atrofia óptica, nistagmo, surdez e atraso psicomotor grave.

Tipicamente há pois um quadro de distrofia neuroaxonal e crises mioclónicas sem alterações viscerais, as quais são típicas noutras doenças dos lisossomas. Outros doentes apresentam síndroma piramidal e cerebelosa; alguns têm hiperacúsia, oftalmoplegia e estrabismo.
Nas fases terminais: cegueira, espasticidade, mioclonias, postura de descorticação, atraso psicomotor profundo, contracturas em flexão e imobilidade.
Através da neuroimagem demonstra-se atrofia do córtex cerebral, cerebelo e tronco: a electromiografia evidencia sinais de degenerescência axonal e o electrorretinograma é normal. O EEG evidencia sinais de compromisso cerebral difuso, e de irritabilidade multifocal, especialmente nas regiões central, parietal e occipital.
A mutação E25K é a mais comum nesta forma grave, especialmente em homozigotia.

A marca anátomo-patológica evidencia axónios terminais e pré-terminais esferóides:

  • Tipo 2 (Adulto), ou doença de Kansaki; todos os doentes apresentam telangiectasias, angioqueratomas, vasos sanguíneos tortuosos nas conjuntivas, atraso mental ligeiro e degenerescência axonal periférica; por vezes, fácies grosseira e lábios grossos. Os sinais clínicos mais chamativos são a ausência da fala e de interactividade com o ambiente, o que leva muitas vezes ao diagnóstico de autismo.

Pela neuroimagem comprovam-se sinais de enfartes lacunares sem atrofia cortical. O electromiograma permite evidenciar redução de amplitude e velocidade de condução normal. Não ocorre degenerescência progressiva. Estão descritos quadros intermédios sem organomegália ou alterações ósseas. Existe discrepância genótipo-fenótipo admitindo-se que outros factores contribuam para o quadro neurológico tão grave das formas precoces.

Aspartilglicosaminúria (McKusick 208400)

Trata-se duma doença causada pela deficiência da aspartilglicosaminidase que leva ao armazenamento de aspartilglicosamina nos tecidos, e à sua excreção elevada na urina. É frequente na Finlândia (1/17.000), e rara noutras regiões.

Como manifestações clínicas destacam-se: atraso do neurodesenvolvimento, diminuição da coordenação dos movimentos finos, atraso da linguagem (dado fundamental), alterações psiquiátricas, hiperactividade, infecções recorrentes nos primeiros anos de vida, diarreia e hérnias.

Salientam-se atraso da linguagem, alterações do comportamento, dismorfias, cifose, baixa estatura, fraqueza ligamentar, macroglossia, voz rouca, acne, fotossensibilidade, angioqueratomas e telangiectasias.

O desenvolvimento motor é menos afectado do que a fala e as capacidades intelectuais.

Contudo, estas últimas vão-se deteriorando com a idade.

A hepatomegália é rara, excepto nos doentes finlandeses. No adolescente pode surgir macrorquidismo. A disostose é ligeira e não há alterações visuais (excepto, por vezes, um ponteado semelhante a cristal na córnea).

Alguns autores referem um aspecto facial característico: hipertelorismo, nariz pequeno e grosseiro, pavilhões auriculares com lobos pequenos ou ausentes e lábios grossos. A morte pode ocorrer na terceira década, fase em que o adulto emite já poucas palavras, tem marcha atáxica e incoordenação motora.

Alguns doentes podem apresentar microcefalia, opacidade da córnea, espasticidade, hipotonia, hipertrofia das válvulas cardíacas e sinais de artrite inflamatória.

A marca anátomo-patológica é a extensa vacuolização celular em vários órgãos como o cérebro; no sangue periférico podem ser observados linfócitos com vacúolos. Na Finlândia a mutação mais frequente é a C163S.

O tratamento com o TMO permite normalização bioquímica e ligeira melhoria da capacidade intelectual; contudo, poderão surgir complicações; para o tratamento das convulsões utiliza-se a carbamazepina.

Sialidoses (McKusick 256550)

As sialidoses são devidas à deficiência da α-neuraminidase responsável pela remoção dos resíduos de ácido siálico dos sialoconjugados, com consequente excreção urinária elevada de sialoligossacáridos. O espectro clínico é amplo, desde formas precoces com hidropisia fetal, até formas de progressão lenta de síndroma mioclónica e mancha cor de cereja ou cherry-red spot detectável por fundoscopia.

Descrevem-se dois tipos principais:

  • Tipo 1, de início na infância/ adolescência, com perda visual progressiva, cherry-red spot na mácula (constante), convulsões, mioclonias de difícil controlo, que se agravam com os estímulos emocionais/ sensoriais e ataxia. Mais tarde: atrofia óptica, opacidade punctiforme da córnea e cegueira. Não ocorrem: dismorfias, alterações esqueléticas nem atraso mental significativo.

Em geral, nas 2-3 primeiras décadas de vida, os doentes podem apresentar desenvolvimento e aspecto físico normais, embora com marcha anómala.

Pela neuroimagem detecta-se atrofia cerebral e do cerebelo. Por vezes são observados linfócitos vacuolizados no sangue periférico.

  • Tipo 2, de início muito mais precoce, com fácies grosseira, disostose múltipla e hepatosplenomegália.
    Este tipo integra duas formas:
    • Congénita, com hidropisia fetal, ascite, hérnias, displasia óssea, opacidade da córnea e telangiectasias; a morte é precoce (pré-natal ou nas primeiras semanas de vida); e
    • Infantil, com grave atraso do desenvolvimento neurológico, hepatosplenomegália; edema; a ascite pode observar-se ao nascer ou mais tarde; o fenótipo like-Hurler vai-se acentuando; são comuns: cherry-red spot na mácula, opacidade punctiforme na córnea e cristalino, surdez, convulsões, atraso de crescimento e disfunção motora; pode verificar-se macrocefalia nalguns casos.

Os doentes podem sobreviver até à segunda década, mas, geralmente a morte ocorre na infância (1-7 anos). Como achados radiológicos destacam-se: disostose múltipla que pode ser grave e sinis de condrodisplasia puntacta epifisária.

Verifica-se intensa vacuolização dos leucócitos em diferentes tecidos e órgãos, incluindo fígado e cérebro. O diagnóstico pode ser difícil: por defeito isolado da neuraminidase, ou por defeito combinado com a deficiência da β- galactosidase.

Para confirmação, devem ser usados de preferência tecidos frescos (fibroblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas); leucócitos ou tecidos congelados não devem ser usados.

Galactossialidoses (McKusick 256540)

Trata-se de doenças devidas a defeito combinado da neuraminidase e da β-galactosidase, o qual é causado por falta duma proteína protectora, a catepsina A, responsável pela estabilidade do complexo enzimático dentro dos lisossomas.

Há vários sialoligossacáridos excretados pela urina.

As manifestações clínicas são dominadas por fácies grosseira, cherry-red spot na mácula, e alterações ósseas. O exame do esfregaço do sangue periférico evidencia linfócitos vacuolizados.

Distinguem-se três tipos:

  • Tipo infantil precoce, com as seguintes manifestações, já no RN: hidropisia fetal, ou edema, ascite, hérnia inguinal, fácies grosseira, fígado e baço aumentados, insuficiência renal com proteinúria maciça, cardiomegália, e telangiectasias. A morte é precoce por insuficiência cardíaca e renal;
  • Tipo infantil tardio, manifestando-se até aos 2 anos por fácies grosseira, hepatosplenomegália, hérnia inguinal, disostose múltipla, cherry-red spot e opacidade da córnea e, por vezes, convulsões. Como complicações descreve-se insuficiência cardíaca devida ao encerramento das válvulas aórtica e mitral. Nalguns doentes verificam-se macrocefalia e surdez neurossensorial;
  • Tipo juvenil/ adulto, ocorrendo com maior incidência no Japão e em idade média de início aos 15 anos. Neste tipo são evidentes: fácies grosseira, opacidade da córnea, angioqueratomas, envolvimento cardíaco e alterações da coluna vertebral (platispondilia); nalguns casos são verificados: deterioração neurológica progressiva com ataxia, mioclonias, convulsões, sinais piramidais, insuficiência mental e ausência de visceromegália.

Estão descritos quadros atípicos em que se verificam crises de dor neuropática e ausência de sialoligossacaridúria.

Para confirmar o diagnóstico procede-se:

  • À execução de cromatografia da urina em camada fina a qual evidenciará excreção elevada de sialoligossacáridos;
  • À determinação da actividade enzimática da neuraminidase e da beta-glucosidase.

Como complemento destes exames pode dosear-se a catepsina A e proceder-se à análise mutacional.

Não existe tratamento específico; apenas é possível executar medidas de suporte.

O transplante renal, a fazer-se em caso de insuficiência renal, não impede a progressão da doença. O TMO nesta patologia está em fase de investigação experimental.

Diagnóstico diferencial, definitivo e pré-natal

Do ponto de vista clínico, as oligossacaridoses partilham muitos sinais e sintomas, não só com as mucolipidoses (ML) II e III como, principalmente, com as mucopolissacaridoses (MPS). Os pacientes portadores destas últimas, contudo, excretam na urina GAG (mucopolissacáridos) e não oligossacáridos.

Assim, perante um doente com fácies grosseira (semelhante à da síndroma de Hurler), alterações esqueléticas, com (ou sem) atraso mental, torna-se fundamental proceder, de imediato, a cromatografia em camada fina em urina de 24 horas (a única prova de rastreio útil e fiável para pesquisa de oligossacáridos e mucopolissacáridos).

Se se comprovar mucopolissacaridúria, tal apontará, em princípio, para MPS; se se verificar oligossacaridúria, há que admitir a possibilidade de oligossacaridose, ou de doenças relacionadas, como ML, ou ainda doutras doenças lisossomais que apresentam oligossacaridúria como: GM1, GM2, e doença de armazenamento de ácido siálico infantil.

Chama-se a atenção para o facto de outras doenças, não metabólicas poderem apresentar alteração na excreção de oligossacáridos, tais como: síndromas de: Coffin-Lowry, Coffin-Siris, displasia frontometafisária, Sotos, Williams, Costello, e outras, não esquecendo o hipotiroidismo congénito.

Será importante dosear, no plasma, a quitotriosidase, que está elevada não só na doença de Gaucher, mas também nas doenças: GM1, Krabbe, MPS IV-B, NP-B, NP-C, doença de armazenamento de ésteres do colesterol, Wolman, fucosidose, galactosialidose e glicogenose IV.

A pesquisa de linfócitos vacuolizados no sangue periférico, quando positiva, constitui um elemento adjuvante da suspeição clínica.

O exame radiológico dos ossos, particularmente da coluna vertebral, em dois planos, é fundamental para provar (ou não) a existência de disostose múltipla.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade das enzimas lisossómicas específicas nos leucócitos, fibroblastos, linfoblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas, e raramente no plasma. Nas sialidoses e galactosialidoses não devem ser usados, para esse fim, os leucócitos, sendo preferível a cultura de células. Na galactossialidose é possível determinar a actividade da catepsina A nos fibroblastos.

A análise do DNA está disponível para todas estas patologias.

Para o diagnóstico pré-natal podem ser usadas as vilosidades coriónicas em todas as doenças, excepto na sialidose e galactossialidose (para as quais se dá preferência, respectivamente, ao líquido amniótico e à cultura de células).

Tratamento e prognóstico das oligossacaridoses

Para o tratamento das oligossacaridoses, como já foi referido, torna-se fundamental o apoio multidisciplinar de centros especializados em doenças hereditárias do metabolismo.

Deve ser dada atenção às possíveis perturbações do sono e do comportamento, assim como às situações que necessitem de anestesia. A dismorfia facial, a displasia esquelética, a obstrução das vias aéreas superiores podem dificultar grandemente as manobras de anestesia.

O transplante de células estaminais hematopoiéticas (TSCH), a terapêutica enzimática de substituição (TES), e de redução do substrato estão em evolução.

O transplante de medula óssea (TMO) tem sido realizado em número reduzido de casos, não sendo a sua eficácia definida com exactidão: na alfa– manosidose parece favorável quando realizado muito precocemente; na fucosidose os resultados têm sido inconclusivos, referindo-se que alguns doentes finlandeses com aspartilglicosaminúria tiveram importantes complicações após o referido TMO.

O êxito da TES na doença de Gaucher, na doença de Fabry e nalgumas MPS, faz prever que as oligossacaridoses possam vir a beneficiar dessa terapêutica, assim como da terapia génica.

3. MUCOLIPIDOSES (ML)

As mucolipidoses (ML), outro tipo de doenças lisossómicas, partilham características clínicas e bioquímicas das MPS e das esfingolipidoses.

Nosologia

As ML integram os seguintes tipos: ML I (sialidose do tipo II), ML II (doença da célula-I ou I-cell disease), ML III (distrofia pseudo-Hurler), e a ML IV.

A ML I, considerada por alguns como oligossacaridose, é devida a deficiência da enzima lisossómica alfa-neuraminidase. As manifestações clínicas são variáveis: hidropisia fetal, défice visual, convulsões mioclónicas, alterações da marcha, fundoscopia evidenciando mancha cor de cereja e disostose múltipla.

As ML II e ML III são devidas a deficiência da enzima: N-acetilglicosamil fosfotransferase.

A ML II, por defeito completo da enzima N-acetilglicosamil fosfotransferase é semelhante à doença de Hurler, mas com início muito precoce e com evolução grave: dismorfia facial, macroglossia, cifoscoliose, gibosidade lombar, visceromegália, cardiomiopatia, coronariopatia, rigidez articular, hipertrofia gengival, atraso psicomotor em geral grave e morte precoce (2-8 anos). É frequente a ocorrência de hidropisia fetal.

A ML III, por defeito parcial da mesma enzima – N-acetilglicosamil fosfotransferase-, comportando maior sobrevivência, evidencia quadro clínico menos exuberante, embora alguns doentes evidenciem displasia óssea progressivamente incapacitante; outras manifestações: escassos ou nenhuns problemas de aprendizagem, dores articulares por vezes intensas, e limitação motora semelhante à verificada na artrite reumatóide juvenil; compromisso das vávulas cardíacas; e sobrevivência até à idade adulta.

Na ML II e III existe vacuolização em vários tipos de células de vários órgãos. Existem também inclusões citoplásmicas nos fibroblastos [daí o nome de célula i (I) ].

Estas doenças resultam do defeito na captação e localização intracelular das enzimas lisossómicas por falta do marcador do reconhecimento – a manose-6-fosfato; por esta razão, os doentes têm elevada concentração no plasma de várias enzimas lisossómicas, e baixa concentração intracelular das mesmas enzimas, aspecto importante para o diagnóstico. O doseamento da N-acetilglicosamil fosfotransferase faz-se nos leucócitos ou fibroblastos.

 

A ML IV, devida a deficiência de mucolipidina 1 (proteína de canal do cálcio com papel importante na endocitose) caracteriza-se fundamentalmente por alteração progressiva do neurodesenvolvimento, opacidade da córnea e elevação da gastrina na maioria dos casos (parâmetro que poderá ser utilizado como triagem).

Tratamento

O tratamento das ML é sintomático. Quanto a TMO, se for precoce, pode ser benéfico. O TCSH está em estudo. Por vezes está indicada intervenção cirúrgica ortopédica em patologia da articulação coxofemoral; nos casos de dor óssea e hipomobilidade consequente pode utilizar-se o pamidronato.

4. ESFINGOLIPIDOSES

Definição e etiopatogénese

As esfingolipidoses são doenças dos lisossomas afectando um ou mais órgãos através da acumulação de esfingolípidos, por deficiência primária de enzimas ou de proteínas activadoras envolvidas no respectivo catabolismo.

Os esfingolípidos, localizados predominantemente no sistema nervoso, estão distribuídos por todo o organismo. Incluem fundamentalmente:

  • Os galactocerebrosídeos, sulfatídeos e esfingomielina, componentes essenciais das camadas de mielina; e
  • Os gangliosídeos, encontrados particularmente na substância cinzenta do cérebro.

Deste modo, as esfingolipidoses surgem como doenças primárias do SNC ou periférico; contudo, as manifestações também poderão decorrer da acumulação de esfingolípidos no sistema reticuloendotelial (SRE) ou noutras células.

Manifestações clínicas gerais

Como manifestações clínicas gerais das esfingolipidoses citam-se: atraso progressivo do neurodesenvolvimento, epilepsia, ataxia e/ou espasticidade. Poderá verificar-se hepatosplenomegália, sendo que alterações esqueléticas e dismórficas são raras (excepto na GM1 – ver adiante).

Outros achados incluem: o aspecto fundoscópico de mancha cor de cereja na mácula, medula óssea com células espumosas, e linfócitos vacuolados.

Nosologia

As entidades clínicas que fazem parte das esfingolipidoses são:

  • Doença de Gaucher
  • Doença de Niemann-Pick A e B
  • Gangliosidoses GM1
  • Gangliosidoses GM2
  • Doença de Krabbe
  • Leucodistrofia metacromática
  • Doença de Fabry
  • Doença de Farber
  • Doença de Niemann-Pick C
  • Defeito da prosaposina.

Todas, excepto a doença de Fabry (recessiva, ligada ao X), são doenças autossómicas recessivas.

Seguidamente, procede-se à abordagem sucinta das primeiras quatro doenças citadas.

Doença de Gaucher

É uma das doenças lisossómicas mais comuns.

A etiopatogénese da doença de Gaucher (DG) relaciona-se a deficiência de beta-glucosidase (ou glucocerebrosidase). Embora se admita hoje que existe um espectro clínico contínuo e diversificado, a tradicional subdivisão em 3 fenótipos é útil e tem cunho didáctico:

  • Tipo 1 (doença não neuropática ou tipo adulto), mais frequente, correspondendo a 80-90% dos casos de doença de Gaucher;
  • Tipo 2 (doença neuropática aguda ou infantil); e
  • Tipo 3 (doença neuropática subaguda, crónica ou juvenil).

Todos os tipos são pan-étnicos, realçando-se que o tipo 1 é particularmente prevalente nos judeus Ashkenazi (1/450).

DG do tipo 1: conquanto seja geralmente diagnosticada na idade adulta, pode aparecer em qualquer idade, com manifestações muito variáveis, desde formas assintomáticas a formas extremamente incapacitantes. Salientando-se que não ocorrem, em geral, alterações neurológicas significativas, cabe referir que os sintomas prevalentes são viscerais, hematológicos e ósseos.

Na criança surge esplenomegália, geralmente acompanhada de hepatomegália, anemia, trombocitopénia, tendência hemorrágica, crises agudas de dor abdominal (estas últimas, relacionadas com enfartes esplénicos), crises dolorosas ósseas (por enfartes medulares nos ossos longos). O envolvimento ósseo é, nos mais velhos, uma causa maior de morbilidade; a necrose asséptica da cabeça do fémur e as fracturas espontâneas são comuns. Poderá ocorrer infiltração pulmonar e, nos adultos, poderá surgir quadro de hipertensão pulmonar.

DG do tipo 2: a sintomatologia torna-se notória na infância precoce com disfunção do tronco cerebral, disfagia, alteração da motilidade ocular (oftalmoplegia), espleno-hepatomegália, retroflexão do pescoço, espasticidade marcada, hipocrescimento e caquexia. A evolução é geralmente rápida: poucos doentes sobrevivem até aos 2 anos de idade, sendo que outros têm curso mais lento e sobrevivem até aos 5 anos. Estão descritas variantes fetais e neonatais com elevada incidência de óbitos por hidropisia. Estas formas clínicas são por vezes descritas como de “bébé colódio”.

DG do tipo 3: é muito heterogénea. As manifestações clínicas mais frequentes e mais graves traduzem compromisso do SNC (tronco cerebral): paralisias dos músculos oculares (compromisso da motilidade para cima e horizontal), surdez e, por vezes, atraso do neurodesenvolvimento. Pode haver quadro de epilepsia mioclónica progressiva com demência e morte. Em doentes mais velhos pode surgir sintomatologia simile doença de Parkinson. Pode também verificar-se compromisso cardíaco e esplenomegália.

Salienta-se que nos casos de DG:

    • é comum o surgimento de gamapatias e malignidade, como mieloma múltiplo, linfoma, leucemia linfoblástica, etc.;
    • a qualidade de vida dos doentes e da família é muito precária.


O diagnóstico assenta essencialmente:

  • Na demonstração de células de Gaucher em esfregaço da medula óssea;
  • Na verificação de níveis elevados de quitotriosidase (igualmente importante para a monitorização do tratamento);
  • Na demonstração da deficiência enzimática ~30% do normal (em leucócitos, linfócitos, fibroblastos, células do fígado e baço;
  • Na análise mutacional (sendo que mais de 300 mutações já foram identificadas).

Actualmente existem dois tipos fundamentais de tratamento:

  • A terapêutica enzimática de substituição (TES); e
  • A terapêutica de redução do substrato (TRS).

A TES com administração IV lenta de enzima recombinante foi já usada em milhares de doentes, tendo-se comprovado eficácia e segurança, especialmente na DG do tipo 1.

Alguns centros têm utilizado com resultados promissores a alglucerase, a imiglucerase, a velaglucerase e a taliglucerase, medicamentos já autorizados na União Europeia. No geral a TES é eficaz no controlo dos sintomas clássicos – organomegália, trombocitopénia, anemia – mas menos satisfatória nos casos com manifestações ósseas, em que o miglustat é muito útil.

A TRS é uma terapêutica oral (miglustat) que pretende reduzir a acumulação de células de Gaucher nos vários tecidos, incluindo o ósseo. Pode usar-se isoladamente ou em associação a TES. Estão ainda disponíveis algumas drogas-órfão para a TRS e uso de chaperones farmacológicos.

Doença de Niemann-Pick (tipos A e B)

Esta entidade clínica engloba um grupo heterogéneo de doenças, actualmente divididas em dois subgrupos:

  • Os tipos A e B, em que existe deficiência da enzima lisossómica esfingomielinase (mais acentuada no tipo A), com consequente acumulação progressiva de esfingomielina e colesterol não esterificado nos órgãos sistémicos e no cérebro (menos acentuada no tipo B); e
  • O tipo C devido, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu cofactor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída de colesterol do lisossoma com consequente depósito de esfingomielina).

O tipo A é uma forma neuropática aguda e mais prevalente nos judeus Ashkenazi; o tipo B é uma forma não neuropática com incidência étnica mais alargada.

Quanto a manifestações clínicas e laboratoriais, importa salientar:

O tipo A clássico caracteriza-se fundamentalmente pelo surgimento dos primeiros sintomas nas primeiras semanas de vida com vómitos e/ou diarreia e estabilização do crescimento. Pode surgir icterícia colestática neonatal raramente.

Antes dos 3-4 meses verifica-se hipotonia e fraqueza musculares, hepatosplenomegália e linfadenopatias progressivas. Pelos 6 meses torna-se evidente atraso do neurodesenvolvimento. Entretanto, a par do quadro de hipotonia axial inicial, que é substituído por espasticidade e rigidez, surge frequentemente caquexia.

Por fundoscopia, em cerca de 50% dos casos verifica-se a presença de mancha cor de cereja na mácula.

A deterioração motora e cognitiva é progressiva, ocorrendo em geral a morte entre os 18 e 36 meses. Estão descritos, no entanto, quadros clínicos de gravidade intermédia, com início do quadro neurológico no período infantil tardio, juvenil, ou até na idade adulta.

O tipo B corresponde a uma doença crónica que tipicamente se inicia com esplenomegália ou hepatosplenomegália na infância, mas que pode ocorrer em qualquer idade. Existe raramente doença hepática grave.

Os achados mais comuns são: infiltração reticulonodular no pulmão e doença pulmonar intersticial com repercussão funcional variável. Os doentes evidenciam também um perfil lipídico anormal, transaminases elevadas e trombocitopénia. No adulto a fibrose pulmonar com sintomatogia acompanhante leva à necessidade de oxigenoterapia. Nos casos “puros” de tipo B não se verificam alterações neurológicas nem défice cognitivo (Figura 12).

FIGURA 12. Criança do sexo feminino com doença de Niemann-Pick do tipo B em cujo quadro sobressai hepatosplenomegália; ausência de défice cognitivo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

O curso da doença é marcado por hiperesplenismo progressivo (implicando raramente esplenectomia), perfil lipídico aterogénico e deterioração da função pulmonar. Nalguns casos a esperança de vida é quase normal.

No tipo C verifica-se grande heterogeneidade de manifestações clínicas. Em cerca de metade dos doentes surge icterícia colestática neonatal prolongada, desaparecendo espontaneamente nos primeiros 3 meses de vida; noutra metade existe quadro de doença hepática grave. É comum haver insuficiência mental, epilepsia e cataplexia; embora o neurodesenvolvimento seja inicialmente normal, surge regressão ulteriormente. Um sinal típico não habitual no início da doença, é “paralisia do olhar para cima”. Hepatosplenomegália inconstante.

Nas formas de início tardio, os sinais principais são ataxia e demência lentamente progressiva.

O diagnóstico pode ser suspeitado pela verificação de histiócitos esponjosos na medula óssea (células de Niemann-Pick), de histiócitos “azul-marinho”, e pela determinação da concentração do biomarcador quitotriosidase, moderadamente aumentada.

O diagnóstico definitivo baseia-se na determinação da actividade enzimática nos fibroblastos (de preferência, pela maior confiabilidade), ou nos leucócitos. Nos fibroblastos em cultura demonstra-se esterificação do colesterol deficiente. O estudo mutacional é importante.

No âmbito do tratamento, a experiência com o transplante de medula óssea (TMO), limitada, não parece trazer benefícios para os doentes do tipo A. A esplenectomia pode ter efeitos deletérios nos casos de doença pulmonar. Está disponível a terapêutica enzimática de substituição (TES) com enzima humana recombinante para o tipo B. A oxigenoterapia nos doentes com doença pulmonar crónica faz parte das medidas de tratamento sintomático.

O miglustat pode melhorar os sintomas neurológicos e em especial a ataxia. Nos casos de cataplexia: clomipramina. Recentemente têm-se tentado a ciclodextrina e a “heat shock protein 70” humana recombinante.

Gangliosidose GM1

Trata-se duma esfingolipidose devida a defeito da enzima lisossómica beta-galactosidase, com manifestações fenotípicas muito diversas. A enzima normal catalisa, não só glicoconjugados, gangliósidos GM1 e outros glicosfingolípidos, mas também oligossacáridos contendo galactose, e o sulfato de queratano. Deste modo, as formas mais graves são uma combinação de aspectos observados nas neurolipidoses, MPS e oligossacaridoses.

A deficiência da enzima vem associada a duas doenças clinicamente distintas:

  • As gangliosidoses GM1 (com anomalias que as aproximam mais das esfingolipidoses) e – a doença de Mórquio B, com anomalias que a torna mais próxima das MPS.

Em Portugal esta patologia é frequente na etnia cigana.

Quanto a manifestações clínicas, distinguem-se 3 tipos de GM1:

  • Tipo 1: neste tipo (infantil-precoce) verifica-se hipotonia nos primeiros dias/ semanas de vida, instabilidade cérvico-cefálica, estabilização do neurodesenvolvimento pelos 3-6 meses, dificuldade alimentar, hipocrescimento e, por vezes, edema da face e periférico.

As características dismórficas poderão ser notórias logo ao nascer, ou paulatinamente ao longo do tempo: fácies grosseira, edema palpebral, macroglóssia, hipertrofia gengival, achatamento da raiz nasal e filtro longo.

A hepatosplenomegália está quase sempre presente, assim como a cifoscoliose. Com o tempo surge défice visual, nistagmo pendular, sendo que em cerca de 50% dos casos por fundoscopia observa-se a cherry-red spot ou mancha cor de cereja da mácula.

Por outro lado, a hipotonia dá lugar a espasticidade e verifica-se deterioração neurológica pelos 12 meses com evolução fatal até cerca dos 2 anos de idade. Uma variante mais grave de expressão fetal/ neonatal inclui hidropisia e cardiomiopatia. As alterações esqueléticas dos ossos longos e coluna têm tradução radiológica semelhante às das MPS (Hurler) (Figura 13);

FIGURA 13. Criança de etnia cigana com gangliosidose GM1. Fácies grosseira, edema da face, achatamento da raiz nasal e filtro longo. Hipotonia e atraso psicomotor. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

  • Tipo 2 (infantil-tardio), cujas manifestações surgem em geral entre os 12-18 meses, com disfunção motora, sobretudo no sentar-se, pôr-se de pé, dificuldades da marcha, ataxia, etc.. A breve trecho surge tetraparésia espástica e quadro de convulsões. Não há sinais dismórficos, nem alterações visuais ou visceromegália;
  • Tipo 3 (crónico, tipo adulto, de início tardio), com início de manifestações no final da infância, adolescência, ou na idade adulta, a evolução é muito lenta: disartria e distonia frequentes, inteligência normal ou ligeiramente afectada. Não existem anomalias oculares.

O diagnóstico da GM1 baseia-se na presença de linfócitos com vacúolos no sangue periférico e de histiócitos espumosos na medula óssea, assim como de alterações radiológicas ósseas. Como foi referido, no caso da GM1 do tipo 1, tais alterações são semelhantes às que se associam à MPS (Hurler).

Através de fundoscopia pode ser detectado o já referido sinal de mancha cor de cereja na mácula nas GM1 do tipo 1.

Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental determinar a actividade enzimática nos leucócitos. O doseamento da neuraminidase em leucócitos ou fibroblastos deve ser feito sistematicamente em todos os casos de deficiência de beta-galactosidase para se excluir galactossialidose.

O tratamento inclui a utilização do fármaco miglustat, administrado por via oral com o objectivo de redução do substrato.

Gangliosidose GM2

Distinguem-se três subtipos desta esfingolipidose:

  • Doença de Tay-Sachs (mais comum, por deficiência da beta-hexosaminidase A);
  • Doença de Sandhoff (por deficiência da beta-hexosaminidase A e B); e
  • Deficiência do activador GM2, subtipo raro.

Em todos os subtipos existe alteração do catabolismo dos gangliósidos GM2 nos lisossomas, acumulando-se nos neurónios.

A forma clássica da doença de Tay-Sachs (T-S) tem elevada incidência entre judeus Ashkenazi; uma variante especial de T-S (variante B1) tem elevada incidência no norte de Portugal e sul da Europa.

No que respeita a cronologia das manifestações clínicas, qualquer dos subtipos pode evidenciar formas infantis, formas infantis tardias ou juvenis e formas crónicas ou do adulto.

As formas infantis dos 3 subtipos têm uma apresentação similar: por volta dos 4-6 meses de idade nota-se fraqueza muscular e hipotonia, assim como típica resposta de sobressalto aos sons com hiperextensão dos membros superiores (reacção por hiperacúsia).

À medida que a hipotonia se acentua, verifica-se de modo progressivo regressão das capacidades psicomotoras, dificuldades de deglutição, convulsões, deficiência visual progressiva com amaurose, tetraplegia espástica e macrocefalia, com descerebração pelos 3 anos. A mancha cor de cereja na mácula é inconstante. Na doença de Sandhoff pode verificar-se hepatosplenomegália.

Nas formas infantis tardias ou juvenis, particularmente T-S, o início dos sintomas tem lugar entre os 2 e 10 anos com ataxia, disartria, involução psicomotora, espasticidade e convulsões. A mancha cor de cereja é inconstante.

As formas crónicas ou do adulto apresentam-se de modo muito diverso: distonia, ataxia, atetose, psicose (em 30-50% dos adultos doentes), síndroma do neurónio motor inferior, disfunção espinocerebelosa com oftalmoplegia supranuclear, disfunção autonómica, etc..

Quanto ao diagnóstico, quer na forma infantil, quer na forma infantil tardia ou juvenil, está indicada a fundoscopia para detecção da mancha cor de cereja na mácula que, conforme foi referido, é inconstante.

Torna-se igualmente fundamental a determinação da actividade enzimática nos leucócitos ou fibroblastos. O estudo anátomo-patológico ultraestrutural da pele ou conjuntiva pode contribuir para o diagnóstico através da identificação de corpos lamelares concêntricos nas terminações nervosas.

Para o diagnóstico definitivo é importante o estudo genético; por exemplo, a mutação R178H em homozigotia é frequente na forma juvenil da variante B1.

Tal como no caso da GM1, tem sido utilizado o miglustat oral como tratamento para restrição de substrato.

5. DEFEITOS DO METABOLISMO DOS PEROXISSOMAS

Manifestações clínicas gerais

Os defeitos do metabolismo dos peroxissomas causam, em geral, doenças multissistémicas progressivas e graves.

As doenças do peroxissoma podem ser reconhecidas por um conjunto de manifestações clínicas, traduzidas fundamentalmente por sinais dismórficos, anomalias neurológicas, disfunção hepática, gastrintestinal e por vezes renal, a saber:

  • Dismorfia craniofacial, anomalias esqueléticas, encurtamento proximal (rizomélico) dos membros, calcificações das epífises, etc.;
  • Encefalopatia, convulsões, neuropatia periférica, marcha anormal, hipotonia;
  • Anomalias auditivas e oculares (retinopatia, cataratas, desmielinização do nervo óptico, cegueira);
  • Doença hepática com hepatomegália, icterícia e colestase;
  • Nefrolitíase, nefrocalcinose;
  • Alteração do comportamento e deterioração cognitiva;
  • Falência do crescimento.

Em função da idade, os sintomas e sinais podem ser assim discriminados:

  1. RN: hipotonia, hipoactividade, convulsões, dismorfia craniofacial, alterações esqueléticas, e icterícia colestática (prolongada);
  2. 1-6 meses: hipocrescimento, hepatomegália, icterícia prolongada, anomalias gastrintestinais, hipocolesterolémia, défice de vitamina E, e anomalias visuais;
  3. > 6 meses – 4 anos: hipocrescimento, problemas neurológicos, atraso no neurodesenvolvimento, deficiência visual e auditiva, osteoporose;
  4. > 4 anos: alterações do comportamento, deterioração cognitiva, sinais de desmielinização da substância branca, paraparésia espástica, deficiência visual e auditiva, neuropatia periférica, anomalias da marcha; sintomas psiquiátricos no adolescente e adulto.

Nosologia

O Quadro 4 resume a classificação das doenças do peroxissoma.

QUADRO 4 – Classificação das doenças dos peroxissomas.

Defeitos da biogénese dos peroxissomas

    • Síndroma de Zellweger (ZS)
    • Adrenoleucodistrofia neonatal (NALD)
    • Doença de Refsum infantil (IRD)
    • Condrodisplasia punctata rizomélica tipo 1 (RCDP1)

Defeitos enzimáticos isolados

    • Adrenoleucodistrofia ligada ao X (X-ALD)
    • Adrenomieloneuropatia (AMN)
    • Pseudoadrenoleucodistrofia neonatal
    • Deficiência da proteína D-bifuncional
    • RCDP tipo 2 e tipo 3
    • Deficiência de 2-metilacil-CoA racemase
    • Doença de Refsum do adulto
    • Hiperoxalúria tipo 1
    • Acidémia glutárica tipo 3
    • Acatalasémia
    • Nanismo de Mulibrey


Seguidamente são descritas algumas das formas clínicas mais representativas das doenças dos peroxissomas.

Síndroma de Zellweger-ZS (ou cérebro-hepato-renal)

As principais manifestações clínicas desta afecção incluem: fácies peculiar (simile Down), fronte elevada, epicanto, fontanela anterior muito grande, hipotonia muscular acentuada, convulsões neonatais, anomalias oculares (glaucoma, catarata, retinopatia pigmentar, displasia do nervo óptico), pavilhões auriculares displásicos, surdez neurossensorial, doença hepática, quistos renais, calcificações epifisárias.

A morte ocorre habitualmente no primeiro ano de vida.

Adrenoleucodistrofia neonatal-NALD

Nesta situação, em que se verifica progressiva alteração da substância branca, os achados dismórficos podem estar ausentes ou ser menos acentuados que na ZS. Alguns doentes exibem fenótipo sugestivo de doença de Werdnig-Hoffman. No RN são habituais convulsões e hipotonia. Não se verificam calcificações epifisárias e a morte surge em geral na infância tardia.

Doença de Refsum infantil-IRD

Trata-se da forma mais ligeira do espectro de Zellweger, com sobrevivência possível até à idade adulta. Os doentes poderão evidenciar início tardio de sintomas e ausência, quer de anomalias de migração neuronal, quer de doença progressiva da substância branca. A dismorfia facial, ligeira (ou inconstante), é semelhante à que se verifica na ZS. O desenvolvimento cognitivo e motor é muito variável, desde quadro muito severo a moderada dificuldade de aprendizagem com surdez, deficiência visual devida a retinopatia.

A síndroma de Zellweger (ZS), a adrenoleucodistrofia neonatal (NALD) e a doença de Refsum infantil (IRD) constituem, em continuum, o chamado espectro Zellweger, ou seja, diversidade de manifestações duma mesma entidade, desde a forma mais grave à mais ligeira.

Condrodisplasia punctata rizomélica clássica (RCDP)

Esta condrodisplasia caracteriza-se por encurtamento dos segmentos proximais dos membros, dismorfia facial típica, calcificações epifisárias que podem desaparecer depois dos 2 anos, contracturas, cataratas, atraso psicomotor grave, restrição de crescimento e, por vezes, ictiose.

No fenótipo estão implicados muitos genes, o que determina grande heterogeneidade na tipologia clínica (por exemplo, tipos 1, 2 e 3, indistiguíveis no plano clínico). As variantes mais moderadas devem ser destrinçadas de outras formas de condrodisplasia punctata como a forma AD de Conradi-Hunermann (sem atraso mental), e as formas AR e ligadas ao X (recessivas ou dominantes).

Lembra-se, a propósito, que uma forma de condrodisplasia, de etiopatogénese desconhecida, foi documentada no âmbito do capítulo desta obra sobre osteocondrodisplasias (Parte XXIV-volume 2).

Doença de Refsum clássica

Nesta doença, que tem início na idade escolar ou adolescência, ou mais tardiamente na 5ª década de vida, os aspectos clínicos mais relevantes são: retinopatia, neuropatia periférica, ataxia cerebelosa. O sintoma mais precoce parece ser cegueira nocturna na idade escolar.

Sem tratamento, verifica-se deterioração do quadro clínico. Menos frequentemente: surdez neurossensorial, alterações cutâneas, anósmia, anomalias esqueléticas e cardíacas. Não se observam dismorfias, disfunção hepática, nem atraso mental.

Existe hiperproteinorráquia sem aumento do número de células no LCR.

Nalguns casos poderá ser sugerido o diagnóstico de doença de Charcot-Marie-Tooth.

Adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X (X-ALD)

Esta doença manifesta-se com grande variabilidade clínica, inclusivamente dentro da mesma família. A forma cerebral da criança constitui o fenótipo mais grave: início de sintomas entre os 5 e 12 anos, levando a estado vegetativo e morte em poucos anos.

Os rapazes afectados poderão apresentar como primeiras manifestações: défice da atenção, alterações comportamentais, mau aproveitamento escolar, deficiência visual-espacial e/ou surdez. Posteriormente: deficiência visual e auditiva graves, quadriplegia, ataxia cerebelosa, convulsões e, por vezes, hipertensão intracraniana.

Sintomas de insuficiência suprarrenal (hipoglicémia, crises de perda de sal, pigmentação cutânea) poderão preceder, coexistir ou seguir o quadro neurológico.

Adrenomieloneuropatia (AMN)

Pode considerar-se uma variante da X-ALD. Afecta cerca de 60% dos homens com ALD entre os 20 e 50 anos e 60% das mulheres heterozigóticas com mais de 40 anos. Em ambos os sexos a doença apresenta-se com paraparésia espástica progressiva e, nalguns homens, desenvolve-se posteriormente desmielinização cerebral lentamente fatal, o que não acontece no sexo feminino.

Diagnóstico

No âmbito do diagnóstico das doenças do metabolismo dos peroxissomas, para além de exames de imagem do SNC (TAC, RM, etc.) em todas as doenças deste foro, está indicada a realização sistemática do doseamento do colesterol total (normal ou baixo), da bilirrubinémia total e conjugada (existe hiperbilirrubinémia conjugada) e das provas de função hepática (resultados indicadores de disfunção).

Quanto a análises específicas (doseamentos) cabe referir as seguintes:

  • Ácidos gordos de cadeia muito longa (AGCML) no plasma – análise fundamental: valores elevados nas doenças com deficiência de beta-oxidação nos peroxissomas; valores normais na doença de Refsum, deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase e RCDP;
  • Plasmalogénios eritrocitários: valor baixo aponta para doenças do espectro Zellweger e RCDP;
  • Ácido fitânico no soro e LCR: aumentado nos defeitos de biogénese e na doença de Refsum;
  • Ácido pristânico no soro: aumentado nas doenças em que está afectada a beta-oxidação nos peroxissomas; elevação isolada indica deficiência de alfa-meti-acil-CoA racemase;
  • Intermediários dos ácidos biliares (soro, urina): elevados na deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase, e normais ou elevados nos defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Glioxalato, oxalato e glicolato urinários: excreção elevada na hiperoxalúria primária tipo 1;
  • Ácido pipecólico: os valores determinados permitem fazer a destrinça das várias formas;
  • Exame do LCR: hiperproteinorráquia sem aumento de células (LCR) na doença de Refsum clássica.

Após estas análises:

  • Estudo enzimático (fibroblastos); e
  • Análise mutacional.

O exame ultraestrutural do fígado evidencia ausência de peroxissomas na ZS.

Tratamento

As bases essenciais do tratamento das doenças do metabolismo dos peroxissomas incluem dieta com restrição de ácido fitânico (proibição de carnes de ruminantes e de gorduras), com ou sem plasmaférese na doença de Refsum clássica.

Na ALD ligada ao X, o transplante de células hematopoiéticas (TCSH) pode estabilizar, ou até reverter, a desmielinização cerebral, desde que realizado muito precocemente e em doentes seleccionados.

Não existe tratamento eficaz para a forma inflamatória cerebral de ALD.

O óleo de Lorenzo (mistura na proporção respectiva de 4/1 de trioleato de gliceril e de trierucato de gliceril) parece não ter efeito curativo nem preventivo.

Na hiperoxalúria tipo I alguns centros têm experiência com a realização de transplante renal e hepático.

6. DEFEITOS DA GLICOSILAÇÃO (SÍNDROMAS CDG)

Definição e etiopatogénese

Reiterando o que atrás foi referido no início do capítulo, a glicosilação [um passo metabólico ocorrendo no retículo endoplásmico (RE) e no aparelho de Golgi (AG)] consiste no processo de síntese de glicanos (oligossacáridos) e na sua ligação covalente a outros compostos, designadamente, proteínas (produzindo as glicoproteínas).

Salientando-se que o processo de glicosilação se pode verificar igualmente nos lípidos, neste capítulo é dada ênfase à glicosilação proteica.

 

Cerca de metade das proteínas corporais [tais como muitas proteínas do soro (transferrinas, factores de coagulação, etc.), de membrana, intracelulares como enzimas e também hormonas] são glicoproteínas que requerem glicosilação para serem glicoproteínas funcionais.

Em diversos passos do processo metabólico de glicosilação intervêm mais de 100 enzimas conhecidas, localizadas nos referidos organelos (RE e AG).

As perturbações ao nível de diversos passos metabólicos em relação com defeitos enzimáticos comprometendo a glicosilação proteica originam uma diversidade de afecções multissistémicas, genéticas familiares, designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês- congenital defects of glycosylation).

Do vasto leque de doenças (em expansão crescente acompanhando com o tempo a investigação) destaca-se a seguinte tipologia: as anomalias estruturais e de funções em distintas combinações, o compromisso neurológico e o espectro de gravidade muito variável.

Manifestações clínicas de alerta

Seguidamente são referidas algumas manifestações clínicas sugestivas de CDG:

  • Distribuição anormal da gordura corporal e/ou mamilos invertidos;
  • Ictiose; cutis laxa;
  • Diarreia crónica; fibrose hepática;
  • Cataratas e/ou coloboma;
  • Sinostose rádio-cubital;
  • Surdez neurossensorial;
  • Síndroma neurológica e grupo sanguíneo bombay; síndroma cerebrocostomandibular;
  • Síndroma neurológica e hipertermia episódica;
  • Anemia diseritropoiética congénita ii;
  • Cardiomiopatia sindrómica;
  • Infecções recorrentes com hiperleucocitose.

Outra sintomatologia específica, associada a certas formas clínicas, é descrita na alínea Nosologia.

Genética

Quanto a padrões genéticos, importa salientar:

  • Todas as CDG conhecidas são doenças autossómicas recessivas;
  • Com excepção da EXT1/EXT2-CDG, já citada, que é autossómica dominante, e a MAGT1-CDG que é ligada ao cromossoma X, e apresenta atraso mental puro, e um padrão normal na focagem isoeléctrica da transferrina sérica (ver adiante).

Nosologia

A primeira CDG foi descrita por Jaak Jacken em 1980. A nomenclatura existente até 2009, usando números romanos e letras árabes (por ex: CDG-Ia a Ip, CDG-IIa a IIL) tornou-se, devido ao número crescente de novas doenças e ao melhor conhecimento da etiopatogénese.

Foi então proposta uma classificação mais simples que englobasse os defeitos da N- e O-glicosilação, e também os defeitos da glicosilação dos lípidos e da glicofosfatidilinositol.

Actualmente cada CDG é identificada pelo nome do gene envolvido, seguido pelo “sufixo” CDG (a designação clássica que se mantém); alguns exemplos: PMM2-CDG (antiga CDG-Ia), e PMI-CDG (antiga CDG-Ib), em que PMM2 significa fosfomanomutase 2, e MPI fosfomanose-isomerase.

Assim, a nova classificação das CDG (de 2009), de acordo com o defeito da glicosilação, é a seguinte (Quadro 5):

  1. Defeitos da N-glicosilação proteica;
  2. Defeitos da O-glicosilação proteica;
  3. Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI);
  4. Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias.

QUADRO 5 – Defeitos congénitos da glicosilação segundo a nova nomenclatura.*

Def <> Defeitos

 *Adaptado de Theodore M & Morava E, 2011

Def N-glicosilação proteica Def O-glicosilação proteicaDef glicosilação lipídica e GPIDef múltiplos glicosilação
PMM2-CDG (CDG-Ia)
MPI-CDG (CDG-Ib)
ALG6-CDG (CDG-Ic)
ALG3-CDG (CDG-Id)
ALG12-CDG (CDG-Ig)
ALG8-CDG (CDG-Ih)
ALG2-CDG (CDGIi)
DPAGT1-CDG (CDG-Ij)
ALG1-CDG (CDG-Ik)
ALG9-CDG (CDG-IL)
RFT1-CDG (CDG-In)
ALG11-CDG (CDG-Ip)
TUSC3-CDG
MAGT1-CDG
MGAT2-CDG (CDG-IIa)
GCS1-CDG (CDG-IIb)
EXT1/EXT2-CDG
B4GALT7-CDG
GALNT3-CDG
SLC35D1-CDG
POMGNT1-CDG
SCDO3-CDG
B3GALTL-CDG
DK1-CDG (CDG-Im)
SIAT9-CDG
PIGM-CDG
PIGV-CDG
DPM1-CDG (CDG-Ie)
DPM3-CDG (CDG-Io)
MPDU1-CDG (CDG-If)
GNE-CDG
B4GALT1-CDG (CDG-IId)
SLC35A1-CDG (CDG-IIf)
SLC35C1-CDG (GDG-IIc)
SRD5A3-CDG (CDG-Iq)
COG-CDG (COG1,4-8)
ATP6V0A2-CDG
SEC23B-CDG

I- Defeitos da N-glicosilação proteica

As CDG resultantes de defeitos da N-glicosilação proteica são o grupo mais comum (só em 2013 foram descritas mais oito novas CDG).
Na N-glicosilação estão envolvidos três compartimentos celulares: citosol, retículo endoplásmico (RE) e o aparelho de Golgi (AG).
Trata-se de doenças fenotipicamente muito diversas, afectando múltiplos sistemas e funções, como o SNC, as funções musculares, de transporte, de regulação, a imunidade, o sistema endócrino, a coagulação, e outros.

Alguns doentes podem ter uma sobrevivência longa, e outros apenas uma deficiência intelectual sem sinais dismórficos como a TUSC3-CDG.

II- Defeitos da O-glicosilação proteica

Já os defeitos da O-glicosilação proteica são geralmente específicos de tecido e clinicamente diferentes das doenças da N-glicosilação, como:
EXT1/EXT2-CDG (exostoses cartilagíneas múltiplas); a B4GALT7-CDG (variante da síndroma de Ehlers-Danlos simile progéria); a POMTI-CDG (síndroma de Walker-Warburg); a POMGNT1-CDG (doença músculo-olho-cérebro, e o espectro da distrofia muscular congénita; a GALNT3-CDG (calcinose tumoral familiar); a SLC35D1-CDG (displasia de Schneckenbecken); a FKTN-CDG (distrofia muscular congénita de Fukuyama) e outras.

III- Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI)

Os defeitos da glicosilação dos lípidos (o primeiro foi descrito em 2004) são, em termos clínicos, semelhantes ao fenótipo da N-glicosilação, como a SIAT9-CDG (epilepsia infantil Amish);
Os defeitos do glicofosfatidilinositol incluem algumas síndromas conhecidas como a doença de Mabry ou a hemoglobinúria paroxística nocturna, com apresentação específica de órgão ou tecido.

Nota importante: Um grupo crescente de doentes com padrão alterado de glicosilação, mas ainda sem defeito enzimático ou molecular definido, constitui o tipo CDGx, admitindo-se assim que muitas formas de CDG estão ainda por descobrir.

IV- Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias

No grupo dos defeitos múltiplos da glicosilação e outras vias estão actualmente incluídas algumas CDG anteriormente classificadas como Ie, If, Im, Io, Iq, IIc, IId, IIf e outras, como os defeitos do complexo COG (conserved oligomeric Golgi): COG1, COG4, COG5, COG6, COG7 e COG8.
O COG é um complexo oligomérico do aparelho de Golgi, constituído por 8 unidades; o defeito de qualquer delas pode produzir alteração em ambas as vias de glicosilação no aparelho de Golgi, porquanto o complexo é crucial no controlo da N- e O- glicosilação e na ligação entre o RE e o aparelho de Golgi.

 

Nesta alínea, é dada ênfase a duas formas mais frequentes, sendo a última tratável

  • PMM2-CDG
  • PMI-CDG

PMM2-CDG (antiga CDG Ia)

Esta doença, a forma mais comum no âmbito dos defeitos em análise (identificados mais de 550 casos), é devida à deficiência de fosfomanomutase 2 (PMM2).

Os sintomas e sinais são distintos consoante a idade, salientando-se que o SNC está afectado na generalidade dos casos, sendo o compromisso doutros órgãos variável.

No feto surge hidropisia detectável por ecografia pré-natal; no RN são notórios derrame pericárdico e ascite. Pode ocorrer falência multiorgânica e morte.

No lactente, verifica-se distribuição anómala da gordura subcutânea, mamilos invertidos, estrabismo, aracnodactilia, hipotonia axial (podendo desaparecer mais tarde), hipocrescimento, dificuldade alimentar (vómitos, diarreia, anorexia), atraso no neurodesenvolvimento, ataxia, hiporreflexia, hepatomegália, diátese hemorrágica, doença tromboembólica, etc.. Alguns doentes evidenciam sinais de renomegália, derrame pericárdico e/ou cardiomiopatia. A mortalidade ocorre em cerca de 25% dos casos por insuficiência hepática, cardíaca ou renal.

Na segunda infância e adolescência, são evidentes alterações neurológicas, endócrinas, insuficiência mental, disfunção cerebelosa, retinite pigmentar, convulsões ou AVC recorrentes. Poderão também surgir anomalias esqueléticas e osteopénia.

No adulto, surge ataxia, insuficiência mental não progressiva, neuropatia periférica e alterações esqueléticas (tórax e coluna) com impotência funcional obrigando ao recurso a cadeira de rodas. No geral, os doentes são extrovertidos e alegres. É frequente o hipogonadismo hipergonadotrófico -puberdade ausente – no sexo feminino.

Estão descritas formas ligeiras, sem dismorfismo e com atraso psicomotor moderado.

PMI-CDG (antiga CDG Ib)

Esta forma, devida a deficiência de fosfomanose-isomerase (PMI), é fundamentalmente dominada por sintomatologia do foro hepatointestinal. São frequentes enteropatia com perda de proteínas, fibrose hepática congénita, coagulopatia, e doença trombótica. Alguns doentes evidenciam vómitos persistentes, e/ou sinais de hipoglicémia com hiperinsulinismo.

Não existem alterações neurológicas nem sinais dismórficos, e o neurodesenvolvimento é em geral normal.

Nota importante: O diagnóstico de síndroma CDG deverá ser considerado em todo e qualquer quadro clínico sem explicação etiopatogénica aparente, multissistémico ou não, com ou sem compromisso neurológico.

Exames complementares e diagnóstico

Perante uma suspeita de CDG está indicada como rastreio a electroforese da transferrina sérica por focagem isoeléctrica (FIE), tandem MS, ou por electroforese capilar. Para a colheita de sangue não devem ser usados tubos EDTA.

Os padrões anormais da FIE são de dois tipos:

  • Padrão tipo 1- aumento da disialotransferrina e/ou da assialotransferrina, e diminuição da tetrasialotransferrina; e o
  • Padrão tipo 2: aumento da trisialotransferrina, di-, mono- e/ou assialotransferrina.

Uma vez detectado um padrão anormal são necessários, conforme os casos, estudos adicionais:

  • Análise dos oligossacáridos por HPLC, enzimologia, imunocitoquímica, espectrometria de massa com electrospray e estudos mutacionais para confirmação diagnóstica.

Um padrão normal da FIE das transferrinas não exclui síndroma CDG, porquanto o mesmo resultado ocorre nas seguintes situações: GCSI-CDG (CDG-IIb), SLC35C1 (CDG-IIc), SLC35A1 (CDG IIf), TUSC3-CDG e, ainda por vezes, em doentes adolescentes e adultos.

Poderá estar indicado fazer-se a FIE utilizando outras glicoproteínas como: haptoglobina, tiroglobulina e alfa-1-antitripsina.

Quanto a diagnóstico diferencial, importa referir que padrões relacionados com alterações secundárias da glicosilação podem ser detectados noutras afecções como galactosémia, intolerância hereditária à frutose, hepatite e alcoolismo crónico.

Algumas doenças da O-glicosilação podem ser detectadas:

  • No soro, pela FIE da apolipoproteína CIII no soro (casos da síndroma de Walker-Warburg);
  • No músculo através de biópsia, por coloração apropriada do complexo da alfa-distroglicano nos casos de síndroma músculo-olho-cérebro.

O dois tipos de CDG descritos [PMM2 e PMI-CDG] apresentam um padrão do tipo 1 da FIE da transferrina sérica.

São comuns as alterações da coagulação:

  • Em todos os casos de CDG: défice do Factor XI
  • Nalguns casos de CDG: défice das proteínas C, S, antitrombina III-AT III, hipoalbuminémia, elevação de ALT e AST, hipocolesterolémia e proteinúria tubular.

A imagiologia do SNC na PMM2-CDG evidencia sinais de hipoplasia cerebelosa (constante), hipoplasia cerebral (inconstante), e de hipomielinização do SN periférico (frequente); no fígado são observados sinais de fibrose e esteatose.

O doseamento da actividade enzimática da PMM2 pode efectuar-se nos leucócitos ou fibroblastos.

O estudo mutacional (mais de 70 mutações identificadas) é fundamental; a mutação mais frequente é a Rl41H, letal em homozigotia.

Na PMI-CDG podem ser comprovadas as seguintes alterações: hipoglicémia com hiperinsulinismo e alterações bioquímicas e da coagulação já descritas na PMM2-GDG.

O doseamento da actividade da PMI pode realizar-se nos leucócitos e fibroblastos.

Tratamento

No caso da PMM2-CDG não existe tratamento específico.

Discute-se o interesse da dieta cetogénica. Para além do tratamento anticonvulsante, importa ter em conta a prevenção dos AVC com ácido acetilsalicílico na dose de 0,5-1 mg/kg/dia. Se surgirem fracturas frequentes, estão indicados os bifosfonatos.

Recentemente tem sido feita a proposta de terapia com chaperones farmacológicos.

Quanto à PMI-CDG, é essencial o diagnóstico precoce, pois existe tratamento disponível com manose oral em doses elevadas; com efeito, os sintomas regridem rapidamente, embora o padrão alterado das transferrinas leve alguns meses a melhorar ou a normalizar.

A terapia com heparina parece eficaz para a enteropatia com perda de proteínas. Será de encarar o recurso ao TH nos doentes resistentes ao tratamento com manose que apresentem icterícia hemolítica, fibrose hepática progressiva, dispneia acentuada e intolerância ao exercício (por envolvimento pulmonar); após o TH muitas destas manifestações melhoram dramaticamente.

Para além desta CDG tratável, algumas outras, a seguir discriminadas, têm actualmente algum tipo de terapia:

  • A SLC35C1 (antiga CDG-iic) por défice de transportador GDP-fucose pode ser parcialmente tratada com fucose, que é eficaz nas típicas infecções recorrentes com hiperleucocitose;
  • Na PIGM-CDG (convulsões intratáveis e trombose venosa, portal e hepática) a administração de butirato parece controlar;
  • As convulsões;
  • Na DPAGT1-CDG, o tratamento com colinesterase melhora a fraqueza muscular;
  • Na PCM1-CDG, com deficiente galactosilação, a terapia com galactose oral:
    • melhora a função hepática, a hepatomegália e a hipoglicémia;
    • normaliza a coagulação; e
    • pode permitir uma puberdade normal nas raparigas com hipogonadismo hipogonadotrópico.

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DOENÇAS DO METABOLISMO DO ÁCIDO NUCLEICO E DO HEME

*Revisão de Aguinaldo Cabral

1. DOENÇAS DO METABOLISMO DAS PURINAS E PIRIMIDINAS

Introdução

A propósito do tema-base deste capítulo, e para uma melhor compreensão do mesmo, importa recordar certas noções essenciais relacionadas.

As purinas (adenina e guanina ou guanidina) e as pirimidinas (tiamina, citosina e uracilo) são bases azotadas, componentes essenciais dos nucleótidos.

Os nucleótidos são compostos constituídos por um açúcar (ribose ou desoxirribose) ligado ao ácido fosfórico sob a forma de éster e combinado com uma base púrica ou com uma base pirimídica. Os referidos nucleótidos são constituintes essenciais de todas as células vivas, sob a forma de ácidos nucleicos ou de fosfatos destes ácidos. Certos nucleótidos actuam como transportadores de energia em diversas reacções enzimáticas.

A propósito de ácidos nucleicos, citam-se o ácido ribonucleico (ARN ou RNA) e o ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA).

O RNA é um ácido nucleico cujo açúcar é a ribose, o qual é um constituinte do citoplasma e núcleo das células.

O DNA tem como açúcar uma ribose que perdeu oxigénio (daí a designação do prefixo desoxi). Os DNA são igualmente constituintes dos núcleos celulares, os quais incorporam cromossomas contendo genes. Em suma, os genes, partículas elementares dos cromossomas, são constituídos essencialmente por DNA.

Metabolismo das purinas e pirimidinas

Abordar sucintamente o metabolismo das purinas e pirimidinas implica uma descrição breve da síntese dos ácidos nucleicos; esta faz-se a partir da ribose-5-fosfato que, sob a acção da fosfo-ribosil-pirofosfato sintetase (PRPS) origina a P-5-ribose-pirofosfato (PRPP) de que derivam dois tipos de compostos: precisamente, as purinas (ou bases purínicas) e as pirimidinas (ou bases pirimídicas).

A biossíntese das purinas decorre duma via complexa implicando diversas enzimas e mecanismos de retrocontrolo, resultando em inosina monofosfato (IMP), que é convertida em adenosina monofosfato e guanosina monofosfato (AMP, GMP). As purinas são catabolisadas via transformação hipoxantina → xantina → ácido úrico.

A biossíntese das pirimidinas faz-se por junção à PRPP de ácido orótico proveniente do aspartato e do carbamil fosfato. Forma-se assim o ácido orótico e o ácido uridílico, precursores das bases pirimídicas dos ácidos nucleicos, o que implica – tal como na via das purinas – a intervenção de diversas enzimas e mecanismos de retrocontrolo que podem estar ausentes, deficitários ou disfuncionantes (por ex. hiperactividade).

As doenças hereditárias do metabolismo das purinas e pirimidinas, traduzem as perturbações em diversos passos das vias metabólicas, com implicações clínicas.

Manifestações clínicas gerais

No seu conjunto, a clínica poderá integrar:

  • manifestações renais: infecções recorrentes do tracto urinário, nefrolitíase, insuficiência renal;
  • manifestações neuropsíquicas: atraso psicomotor, epilepsia, espasticidade, distonia, ataxia, coreoatetose, autismo, automutilação, surdez, cegueira congénita, dismorfias, etc.;
  • artrite e gota;
  • baixa estatura;
  • cãimbras e fraqueza musculares, hipotonia;
  • imunodeficiência e infecções recorrentes, etc..

Diagnóstico

Para o diagnóstico torna-se fundamental valorizar um conjunto de parâmetros, a saber:

  • determinação do nível de ácido úrico no soro e na urina de 24 horas;
  • determinação da relação ácido úrico/ creatinina na urina da manhã;
  • detecção de cristais urinários;
  • estudo das purinas e pirimidinas na urina de 24 horas, evitando nas 24 horas precedentes e durante a colheita, a ingestão de xantinas (veiculadas pelo chá, café, cacau, licores, etc.);
  • determinação do ácido orótico na urina.

Nosologia

As doenças resultantes de alteração do metabolismo das purinas e pirimidinas integram um conjunto muito heterogéneo, com formas de apresentação diversa. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças das purinas e pirimidinas.

PURINAS

    • Hiperactividade da fosfo-ribosil-pirofosfato sintetase
    • Deficiência da adenilsuccinase
    • AICA-ribosidúria
    • Deficiência de AMP deaminase muscular (miodenilato desminase)
    • Deficiência de adenosina deaminase (ADA)
    • Hiperactividade da ADA
    • Deficiência de nucleosídeo fosforilase (NP)
    • Deficiência de xantina – oxidase (ou desidrogenase)
    • Síndoma de Lesch-Nyhan
    • Deficiência de adenina-fosfo-ribose-transferase
    • Deficiência de deoxiguanosina cinase

PIRIMIDINAS

    • Acidúria orótica hereditária
    • Deficiência de di-hidropirimidina de-hidrogenase
    • Deficiência de di-hidropirimidinase
    • Deficiência de pirimidina 5’-nucleotidase
    • Hiperactividade da 5’-nucleotidase citosólica
    • Deficiência de timidina fosforilase (síndroma MNGIE)
    • Deficiência de timidina cinase

Principais doenças do metabolismo das purinas

Seleccionam-se, como exemplos mais representativos, as seguintes:

Deficiência de adenosina deamidase (ADA)

Sucintamente, esta afecção integra um quadro de imunodeficiência combinada grave, múltiplas infecções recorrentes, diarreia, hipocrescimento, sinais neurológicos progressivos, hipogamaglobulinémia, linfopénia e elevação da adenosina e deoxiadenosina. O tratamento consiste em transplante da medula óssea, salientando-se que é possível a terapêutica de reposição enzimática.

A terapêutica génica é controversa.

Nefropatia hiperuricémica familiar juvenil

Trata-se dum quadro possivelmente relacionado com defeito de transporte renal. Manifestando-se a partir da puberdade, é caracterizado por gota, insuficiência renal precoce e antecedentes familiares de idêntica patologia.

Comprova-se, por exame laboratorial, hiperuricémia, excreção renal diminuída de ácido úrico, e relação elevada ácido úrico/ creatinina.

Síndroma de Lesch-Nyhan

Esta síndroma, de transmissão ligada ao cromossoma X, decorre de regeneração deficiente de IMP a partir de hipoxantina, e de GMP, a partir de guanina, com implicação da enzima HPRT (hipoxantina/ guanina fosfo-ribosil transferase). As manifestações clínicas, que podem manifestar-se a partir dos 3-4 meses, integram atraso motor, hipotonia muscular, distonia, coreoatetose, espasticidade com hiperreflexia, epilepsia, automutilação compulsiva, gota, cálculos de ácido úrico e insuficiência renal.

Nos primeiros meses é notada a presença de cristais cor de laranja nas fraldas.

Estão descritas formas de mais discreta expressão clínica, quer articular, quer neurológica. (Figura 1)

Existe hiperuricémia, aumento da relação ácido úrico/ creatinina na urina da manhã e aumento da hipoxantina. O tratamento, sem efeito na sintomatologia neurológica, inclui regime alimentar com restrição de purinas e administração de alopurinol.

FIGURA 1 – Síndroma de Lesch-Nyhan: criança com distonia; são visíveis as marcas de automutilação na mão esquerda. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Outras doenças do metabolismo das purinas

Salientam-se, entre outras:

  • a hiperactividade da fosfo-ribosil pirofosfato sintetase (PRPS), ligada ao X, cursando com hiperuricémia, hiper ou hipoxantinémia e quadro de gota, associando-se nefrolitíase e surdez neurossensorial; e
  • a xantinúria por défice da xantina-oxidase ou xantina-desidrogenase cursando com nefrolitíase e artromiopatia, hematúria, hipouricémia, hiperxantinémia e hiper-hipoxantinémia.

Ambas requerem dieta restrita em purina e alopurinol.

Principais doenças do metabolismo das pirimidinas

Citam-se, entre outras, duas entidades:

Acidúria orótica hereditária

Esta afecção, resultante do défice de uridina-monofosfato sintetase, pode manifestar-se já no RN e lactente com um quadro de hipocrescimento, atraso no neurodesenvolvimento e anemia megaloblástica refractária ao tratamento. O achado laboratorial mais notório é a elevação maciça de ácido orótico na urina. O tratamento consiste na administração de uridina (25 a 150 mg/kg/dia) em função do resultado do doseamento urinário de ácido orótico.

Deficiência de timidina fosforilase (TP)

A principal característica clínica desta doença, em geral com início de manifestações entre os 5 e 15 anos, é a chamada encefalopatia mitocondrial (mio-neuro-gastrintestinal – sigla MNGIE) acompanhada de diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução, neuromiopatia com RRF, oftalmoplegia externa crónica progressiva (CPEO), neuropatia periférica e caquexia. Como achado laboratorial ressalta-se a elevação do teor de timidina na urina.

2. DOENÇAS DO METABOLISMO DO HEME: AS PORFÍRIAS

Introdução

A síntese da hemoglobina, em cuja fórmula química entra o heme (constituído por núcleo tetrapirrólico e ferro), é um fenómeno muito complexo. Classicamente, podem ser esquematizados os seguintes passos na respectiva via metabólica: combinação dos ácidos succínico e glicínico resultando o ácido α-amino- β-ceto-adípico que imediatamente se transforma por descarboxilação em ácido δ-amino-levulínico; da polimerização deste último forma-se porfobilinogénio, passo fundamental da sucessiva formação de porfirinas (uroporfirina III, coproporfirina III e protoporfirina III). Finalmente introduz-se o ferro no interior do núcleo da protoporfirina, produzindo-se o heme.

No âmbito da abordagem sucinta do metabolismo do heme, é importante recordar, para melhor compreensão dos problemas clínicos a ele ligados, que a biossíntese daquele se processa a partir da glicina e succinil-CoA, principalmente na medula óssea (~80%) e no fígado, com o concurso de oito enzimas. O heme é metabolizado em bilirrubina, com ulterior excreção biliar.

As porfírias são doenças monogénicas, frequentemente de transmissão autossómica dominante (AD) caracterizadas pela acumulação e excreção excessivas de porfirinas e de seus precursores. Cada uma das porfírias é consequência do defeito de uma enzima da via de síntese do heme. Os défices de actividade enzimática rersultam de mutações dos genes correspondentes a cada enzima.

Descrevem-se dois grupos de porfírias tendo em conta os tecidos em que o defeito metabólico primariamente se expressa:

  1. Hepáticas
  2. Eritropoiéticas

A definição geral de porfíria exige que, além da eliminação de porfirina ou dos seus precursores, exista um quadro clínico imputável à acção tóxica das porfirinas (síndroma cutânea, abdominal, neurológica ou psíquica).

A única excepção é a intoxicação por chumbo, actualmente inexistente, citada apenas por razões histórias e pedagógicas.

Manifestações clínicas gerais

Sob o ponto de vista clínico consideram-se duas formas:

  1. aguda neurovisceral; e
  2. cutânea.

As manifestações clínicas das anomalias do metabolismo do heme integram fundamentalmente sintomas abdominais, neurológicos e dermatológicos, os quais estão relacionados com níveis elevados de porfirinas e seus precursores no sangue, sua acumulação nos tecidos, e ulterior excreção pela urina e fezes.

Nas porfírias eritropoiéticas a fotodermatose das partes expostas à luz é característica.

Nas formas agudas constuem características: dor abdominal crónica, náuseas, vómitos, obstipação e sintomas psiquiátricos.

Nas formas não agudas predominam as manifestações dermatológicas.

Diagnóstico

Para o diagnóstico torna-se fundamental valorizar um conjunto de parâmetros, a saber:

  • detecção de porfobilinogénio na urina (provas de Hoesch, de Watson-Schwartz), havendo suspeita de porfíria hepática aguda;
  • detecção de coproporfirina e protoporfirina nas fezes;
  • detecção de coproporfirina e porfirinas (uro, hepta-, hexa-, penta-) na urina;
  • detecção de precursores da porfirina (ácido delta-aminolevulínico e porfobilinogénio) na urina nos casos de suspeita de porfíria hepática e doença de Gunther;
  • detecção da actividade enzimática eritrocitária em situações específicas (sobretudo na protoporfíria): por ex. deidratase do ácido delta-aminolevulínico, sintetase do uroporfirinobilinogénio III, etc..

Nosologia

O Quadro 2, adaptado de Saudubray, sintetiza a classificação das porfírias relacionando as diversas entidades clínicas com os respectivos defeitos enzimáticos.

QUADRO 2 – Porfírias e defeitos enzimáticos.

Doença/ Porfíria Enzima Classificação
Hepática Eritropoiética Aguda Cutânea
De-hidratase ácida 5-aminolevulínica De-hidratase ácida 5-aminolevulínica  ?X  X
Aguda intermitente Desaminase porfobilinogénio  X  X
Congénita eritropoiética Co-sintetase uroporfirinogénio III X X
Tardia cutânea Descarboxilase uroporfirinogénio X X
Hepatoeritropoiética Descarboxilase uroporfirinogénio X X X
Coproporfíria hereditária Oxidase coproporfirinogénio X X X
Variável Oxidase protoporfirinogénio X X X
Protoporfíria ertitropoiética Ferroquelatase X X

Alguns exemplos de porfírias

Foram seleccionadas as seguintes entidades:

Porfíria eritropoiética congénita (doença de Gunther)

Esta afecção, manifestando-se desde idades muito precoces (período neonatal), com transmissão autossómica recessiva (AR), é muito rara. Só é patente nos homozigotas.

A etiopatogénese relaciona-se com defeito enzimático correspondente à co-sintetase uroporfirinogénio III (10q25.2-q26.3). Na ausência de metabolizção, os porfirinogénios são oxidados, dando origem a hiperprodução de uro- e coproporfirina I, compostos fotoactivos responsáveis pela fotossensibilidade.

As manifestações clínicas caracterizam-se por fotossensibilidade grave, levando a fotodermatose, por vezes mutilante (nariz, lábios, orelhas e mãos) associada a crises hemolíticas explicadas por acção dos raios solares sobre os eritrócitos circulando nos capilares subcutâneos.

Os dentes e escleróticas podem ter coloração avermelhada e fluorescerem com a luz de Wood. Outras manifestações oculares incluem blefarite, ectropion cicatricial, conjuntivite e opacificação da córnea, podendo levar a cegueira.

A urina pode ter coloração rosada devido à eliminação de porfirinas.

O tratamento inclui evitar a radiação solar, usando roupa e óculos com protecção UV, e chapéu de abas largas. A administração de beta-caroteno tem utilidade limitada. A hemólise poderá estabelecer a indicação de transfusão sanguínea. Alguns autores aconselham a administração de alfa-tocoferol (vitamina E) e de vitamina C como captadores e inibidores de radicais livres, tentando prevenir a fototoxicidade cutânea induzida pelas porfirinas acumuladas na pele e eritrócitos.

Porfíria hepática intermitente aguda

É a porfíria mais comum. Mais frequente no sexo feminino, manifesta-se na adolescência e idade adulta mediante a acção de desencadeantes como fármacos indutores enzimáticos, fome, estresse, álcool, barbitúricos, hormonas contraceptivas, menstruação, etc..

Trata-se de doença de transmissão autossómica dominante (AD); a mesma  resulta de défice da enzima porfobilinogénio desaminase (11q23) avaliada nos eritrócitos.

Os precursores das porfirinas acumulam-se e são responsáveis pelas seguintes manifestações clínicas: vómitos, cólicas abdominais, quadro simile abdómen agudo, polineuropatia periférica, taquicardia, hipotensão, tremores, e sudorese aumentada; e ainda, dores generalizadas (cabeça, pescoço, tórax), fraqueza muscular, disúria, convulsões por hiponatrémia e manifestações do foro psiquiátrico.

As crises graves e prolongadas podem ser fatais por paralisia bulbar. Existe risco aumentado de hepatocarcinoma, depressão e suicídio.

De acordo com os exames laboratoriais importa salientar:

  • os precursores porfobilinogénio [PBG] e ácido 5-aminolevulínico evidenciam subida da sua concentração na urina;
  • nas fezes a concentração de porfirinas é normal ou está ligeiramente aumentada; este dado é importante para o diagnóstico diferencial com outras porfírias.

O tratamento tem como objectivo essencial inibir a síntese de heme e a produção de precursores de porfirinas, adoptando-se a seguinte actuação:

  • nas crises agudas, para além da evicção de desencadeantes, está indicada analgesia (clorpromazina, opiáceos), anti-emese (promazina) e glicose a 10% IV (4-6 g/kg/dia) e hematina (3-4 mg/kg/dia) em administração IV lenta de curta duração, durante 4 dias;
  • se não for possível esta actuação, é necessário providenciar elevado suprimento de hidratos de carbono (300-500 g/dia). Nas crises agudas a hospitalização é frequente.

O tratamento das convulsões é problemático: podem ser administrados brometos, gabapentina e vigabatrim.

Protoporfíria eritropoiética-hepática

Esta doença, de transmissão AD, tem como base etiopatogénica défice de descarboxilase uroporfirinogénio. Como manifestações clínicas, essencialmente registam-se fotossensibilidade, fotodermatose (urticária solar de repetição) e, nalguns pacientes, doença hepática que poderá culminar em insuficiência hepática.

Para além dos marcadores atrás referidos a propósito do diagnóstico laboratorial das porfírias em geral, cabe referir o teor elevado de protoporfirina livre nos eritrócitos, plasma e fezes.

O tratamento inclui fotoprotecção, administração de beta-carotenos, cisteína, colestiramina e ácidos biliares nas complicações hepáticas. O transplante hepático é controverso e o transplante de medula óssea poderá trazer benefícios.

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DEFEITOS DO METABOLISMO DOS HIDRATOS DE CARBONO

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

A glicose é para as células dos mamíferos a fonte primária de energia, podendo ser armazenada na forma macromolecular como glicogénio para uso ulterior. A galactose e a frutose também constituem fontes de energia, embora em menor grau que a glucose.

Assim, os hidratos de carbono com implicações clínicas mais relevantes nas doenças hereditárias do metabolismo (DHM) compreendem três monossacáridos (glucose, galactose e frutose), três dissacáridos (lactose<>galactose+glucose, isomaltose<>glucose+glucose, e sacarose<>frutose+glucose), e um polissacárido (o já referido glicogénio).

A galactose entra na composição de certos glicolípidos, glicoproteínas e glicosaminoglicanos.

O suprimento contínuo de glucose a partir da alimentação, gluconeogénese e glicogenólise mantém a normalidade do nível de glucose no sangue.

Recorda-se que:

    • o metabolismo da glucose gera ATP pela via da glicólise (conversão da glucose ou glicogénio em piruvato), fosforilação oxidativa mitocondrial (conversão do piruvato em dióxido de carbono e água), ou ambas; e
    • as fontes dietéticas da glucose provêm dos polissacáridos ingeridos, amidos e dissacáridos.

As alterações do metabolismo dos hidratos de carbono mais importantes são: os defeitos hereditários do metabolismo da galactose e frutose, defeitos da neoglucogénese, doenças de armazenamento de glicogénio (glicogenoses), defeitos do metabolismo do glicerol, do metabolismo das pentoses, do transporte da glicose, e o hiperinsulinismo congénito.

Neste capítulo são abordadas, pela sua maior frequência, as glicogenoses, a galactosémia e a intolerância hereditária à frutose.

1. GLICOGENOSES

Introdução

As glicogenoses são afecções hereditárias relacionadas com defeitos genéticos originando défice congénito de determinadas enzimas intervindo no metabolismo do glicogénio e caracterizadas pela acumulação do mesmo, de estrutura normal ou anormal (em quantidade e qualidade ou ambas) nas células de diferentes tecidos.

O resultado final das alterações do metabolismo do glicogénio (essencialmente dizendo respeito a glicogénese, glicogenólise e respectiva regulação) é o surgimento de um largo espectro de doenças de grande heterogeneidade genética e clínica.

Tais afecções constituem uma das formas das chamadas doenças de armazenamento (tesaurismoses) – neste caso, do glicogénio, distinguindo-se as formas hepáticas, musculares e generalizadas.

Metabolismo do glicogénio e nosologia

Para a compreensão da patogénese e fisiopatologia das glicogenoses, importa sintetizar alguns tópicos sobre o metabolismo do glicogénio.

A formação do glicogénio ocorre a partir da glicose (glicogénese) em praticamente todos os órgãos e tecidos, mas principalmente no fígado e músculo.

A glicogenólise (no citoplasma e nos lisossomas), processo inverso da glicogénese, consiste na degradação do glicogénio.

A glicose pode sofrer dois diferentes destinos: – ser degradada (glicólise); ou -sair da célula e ser utilizada.

A regulação do metabolismo do glicogénio faz-se essencialmente através de duas enzimas fundamentais: a glicogénio-sintetase e a fosforilase. O AMP cíclico desempenha um papel fundamental na regulação destas enzimas pois, mediando a fosforilação destas enzimas, inibe a sintetase e estimula a fosforilase com consequente glicogenólise.

A regulação do metabolismo do glicogénio do músculo é do tipo hormonal, através da adrenalina e da insulina. Tal regulação ao nível do fígado faz-se através da glucagina (ou glucagom), do cálcio, da insulina e da própria glucose.

Os aspectos fundamentais da síntese e degradação do glicogénio estão resumidos na Figura 1.

Figura 1. Metabolismo do glicogénio.

São conhecidas actualmente mais de 12 glicogenoses que podem ser: predominantemente hepáticas, preferencialmente musculares, ou generalizadas.

As glicogenoses hepáticas compreendem os seguintes tipos: I (Ia e I não a), III, IV, VI, IX, XI e O.

As glicogenoses musculares mais frequentes são tipo V e VII, não esquecendo o envolvimento muscular, por vezes muito relevante, nas glicogenoses III e IX, e na forma juvenil/ adulto da glicogenose tipo II; outras: defeito da fosfogliceratoquinase, fosfogliceratomutase, defeito da desidrogenase láctica, defeito da frutose-1, 6-difosfato aldolase A, defeito da isoforma muscular da piruvatoquinase, e defeito da fosfogluco-isomerase.

A glicogenose generalizada é essencialmente a glicogenose tipo II (doença de Pompe), embora se reconheça carácter sistémico à glicogenose tipo IV.

Glicogenose tipo I

Como foi referido, é uma das mais frequentes glicogenoses (cerca de 1/4 de tais afecções); distinguem-se dois subtipos, resultantes respectivamente:

  • do defeito da subunidade catalítica da glucose-6-fosfatase (tipo Ia ou doença de von Gierke); e
  • do defeito da translocase da glucose-6-fosfato (tipo I não-a ou tipo Ib).

Quanto às manifestações clínicas em relação com a etiopatogénese, há a salientar: hipoglicémia recorrente (de jejum curto), convulsões por hipoglicémia, hepatomegália, acidose láctica e hiperventilação. Outros sinais frequentes são: baixa estatura, fácies de boneca, obesidade do tronco, abdómen saliente por grande hepatomegália, postura lordótica, musculatura hipotrófica, hipotonia, equimoses e epistaxes. O coração tem tamanho normal e os rins estão simetricamente aumentados. (Figura 2)

O tipo Ib, menos frequente, apresenta ainda: esplenomegália, infecções bacterianas ou fúngicas recorrentes devidas a neutropénia, anomalias fagocitárias e outras anomalias da imunidade. Neste tipo é também frequente a doença inflamatória intestinal (semelhante à doença de Crohn), diarreia prolongada, anemia e artrite ocasional. A morte pode ocorrer por sépsis.

FIGURA 2. Fenótipo de crianças com glicogenose do tipo Ia (von Gierke). Fácies de boneca, grande distensão abdominal por hepatomegália importante e obesidade. (NIHDE)

No que respeita ao diagnóstico, este deve basear-se na clínica, e nos resultados de análises bioquímicas e genéticas (mutacionais). Os achados de hepatomegália, hipoglicémia de jejum curto, acidose láctica, hiperlipidémia e hiperuricémia são altamente sugestivos. Poderá ser necessário realizar uma prova de tolerância à glucose oral (2 g/kg, até máximo de 50 g, com colheitas de sangue aos 30, 60, 90, 120 e 180 minutos) para destrinça diagnóstica: na glicogenose de tipo I (Ia ou Ib) verifica-se diminuição da lactacidémia, enquanto nas outras glicogenoses se verifica aumento.

A prova do glucagom (500 µg ou 30-100 µg/kg IM com determinação da glicémia aos 15, 30, 45 e 60 minutos) mostrará falta de resposta hiperglicémica (ausência de incremento de 25 mg/dL em 45 minutos e marcada elevação da lactacidémia), salientando-se que poderá surgir neste contexto hipoglicémia ou acidose grave. Só raramente será necessário proceder a biópsia hepática para o estudo enzimático (fígado fresco, idealmente não congelado).

Sob o ponto de vista de novas tecnologias aplicadas à semiologia, com implicações práticas importantes no tratamento, cita-se um novo sensor que, para além da monitorização contínua subcutânea da glicémia, permite igualmente proceder em 1 minuto à determinação do nível plasmático de lactato (Lactate-Pro).

Nas glicogenoses tipo I, os objectivos do tratamento são evitar a hipoglicémia e alterações metabólicas secundárias, promover o crescimento normal e prevenir a nefropatia. Assim, torna-se fundamental propiciar um suprimento exógeno de glucose continuamente, dia e noite, a um ritmo que mantenha a glicemia acima do limiar dos mecanismos de contrarregulação.

Salienta-se, a propósito, que as necessidades diárias de glucose vão diminuindo com a idade: 0-12 meses à 7-9 mg/kg/minuto; >1-3 anos (A) → 6-8 mg/kg/minuto; > 3-6 A → 6-7 mg/kg/minuto; > 6-12 A → 5-6 mg/kg/minuto; adolescente → 5 mg/kg/minuto; adulto → 3-4 mg/kg/minuto.

O valor calórico total (VCT) deverá ser repartido do seguinte modo: hidratos de carbono à 60-70%; gorduras à 20-30%, substituindo as gorduras saturadas por insaturadas; proteínas à 10-15%.

As necessidades são cobertas por refeições frequentes, ricas em hidratos de carbono durante o dia e, durante a noite, com a chamada alimentação contínua nocturna (ACN) de acordo com o seguinte esquema: duração ~12 horas até aos 6 anos, cobrindo ~50-35% do VCT; duração ~10 horas após os 6 anos até ao fim da adolescência (~30% do VCT); e duração ~8 horas no adulto (~25% VCT).

Para evitar a hipoglicémia, a ACN deve iniciar-se, no máximo, 1 hora após a última refeição do dia; e, na manhã seguinte, deve iniciar-se a alimentação do doente cerca de 15-30 minutos depois de terminada a ACN. Após 1 ano de idade emprega-se o amido cru: de 4-4 horas até aos 2 anos de idade; e, depois, de 6-6 horas.

Nos casos em que não é possível a ACN, está indicada a administração de alimentos ricos em hidratos de carbono a intervalos regulares, de 2-2, 3-3, ou 4-4 horas, também durante a noite.

Quanto aos hidratos de carbono de absorção rápida, salienta-se a necessidade de restringir a lactose e evitar a sacarose.

Em função do contexto clínico de cada caso, poderá ser necessário recorrer a terapêuticas complementares dirigidas a situações específicas, como: hiperlipidémia, proteinúria mantida, nefrocalcinose, nefrolitíase, hiperuricémia, osteopénia, osteoporose, restrição do crescimento (a hormona de crescimento/GH não traz benefícios) etc..

Por vezes é necessário recorrer a transplantes: hepático, de hepatócitos, e renal.

Como novas terapias, citam-se a dieta rica em ácidos gordos de cadeia média, e novo amido modificado proporcionando melhor tolerância em jejum.

Nos doentes com mau controlo metabólico, não explicado por deficiente adesão às orientações médicas, é fundamental avaliar a função tiroideia pelo risco de hipotiroidismo. Efectivamente, a intensa terapia com hidratos de carbono, alterando o padrão alimentar, poderá originar carências nutricionais específicas, designadamente em vitamina B12, cálcio e selénio.

Na glicogenose do tipo Ib o tratamento é semelhante ao do tipo Ia; contudo, face às respectivas manifestações clínicas (ver atrás) existem certas particularidades:

  • a gastrostomia está contraindicada;
  • precaução com o suprimento de amido cru, susceptível de exacerbar doença inflamatória intestinal;
  • a utilização de antbióticos profilácticos deverá ser ponderada;
  • a utilização de G-CSF (factor estimulante do crescimento dos granulócitos), não glicosilado que, aumentando significativamente o número de neutrófilos (se neutropénia < 1.500/mmc), contribui para a diminuição da frequência e gravidade das infecções, a melhoria da cicatrização de abcessos e úlceras, e a melhoria da doença inflamatória intestinal;
  • a utilização de IECA diminui a hiperfiltração, a proteinúria e a hipertensão arterial;
  • eventualidade de esplenectomia nos casos de esplenomegália irreversível, resultante do tratamento com G-CSF.

Novas propostas de tratamento incluem: adalimumab (anticorpo monoclonal cujo alvo é o factor alfa de necrose tumoral); suplementação com vitamina E (antioxidante); terapia nutricional com dieta polimérica suplementar com TGF-Beta2 (Modulen-IBD):

Como complicações da glicogenose do tipo I há a referir: adenoma hepático, que pode evoluir para carcinoma hepatocelular; doença renal que se inicia precocemente e pode levar à necessidade de transplante renal; gota; cálculos renais; pancreatite; anemia; osteopénia; ovários poliquísticos; hipertensão pulmonar; hipocrescimento; atraso pubertário; tendência hemorrágiaca; e envolvimento neurológico. O atraso mental é raro.

Glicogenose tipo II (doença de Pompe)

Esta forma de glicogenose, mais rara que as de tipo I (incidência estimada em ~1/50.000 nados-vivos, correspondendo nas estatísticas de vários centros a 1/5 de todas as glicogenoses), resulta do défice da enzima maltase ácida lisossomal (alfa-1,4 glucosidase ácida) cujo gene estrutural está localizado no cromossoma 17q25.2. Importa salientar que foram identificadas diversas mutações.

Estão descritas duas formas principais: neonatal/ infantil (mais frequente) e juvenil/ adulto, conforme a data de início de manifestações; contudo existem formas com início em diversas idades e de evolução lenta caracterizadas essencialmente por miopatia.

Na forma neonatal/ infantil – início nas primeiras semanas ou nos primeiros meses de vida ou já no RN – são notórios hipotonia generalizada (floppy baby) com massas musculares de volume normal, perturbações da deglutição, macroglóssia (por vezes o primeiro sinal que chama a atenção), cardiomegália exuberante e progressiva/ cardiomiopatia hipertrófica, e insuficiência cardiorrespiratória que pode conduzir à morte nos primeiros meses (< 1-2 anos). Não existe hepatomegália ou a mesma é discreta. O ECG, muito típico na forma infantil, revela encurtamento de P-R e complexos QRS de alta voltagem. (Figuras 3 e 4)

Existe uma variante muscular com início nos primeiros 6 meses de vida, com sintomatologia muscular predominante, geralmente sem compromisso cardíaco.

A forma juvenil caracteriza-se fundamentalmente por fraqueza muscular proximal, sobretudo nos membros inferiores e tronco, incapacidade progressiva e impossibilidade da marcha autónoma ao longo dos anos, com desfecho fatal em idade variável, em geral por volta dos 30 anos. O EMG revela sinais de irritabilidade eléctrica.

No adulto simula outras miopatias. A miopatia proximal é lentamente progressiva sem atingimento cardíaco, ou mínimo.

Os achados laboratoriais são semelhantes nas duas formas: demonstração de vacúolos nas células (musculares, leucócitos, fibroblastos) que se coram para o glicogénio, e elevação da fosfatase ácida, CK e, por vezes de ALT e AST. A glicémia, a lactacidémia, a prova de tolerância à glucose oral e a do glucagom são normais.

Outros exames:

  • EMG com padrão miopático em todos os fenótipos;
  • Avaliação da função pulmonar, evidenciando marcada diminuição da capacidade vital e fadiga diafragmática precoce.

A confirmação do diagnóstico faz-se:

  • Pela demonstração do défice enzimático; e
  • Por análise mutacional, segundo a metodologia já referida para outras doenças hereditárias do metabolismo (biópsia muscular, fibroblastos, etc.).

FIGURA 3. Lactente com hipotonia generalizada (floppy baby) no contexto de glicogenose tipo II (doença de Pompe). (NIHDE)

FIGURA 4. Sinais radiológicas de cardiomegália em criança com doença de Pompe. (NIHDE)

É possível o diagnóstico pré-natal.

O tratamento tem uma base multidisciplinar (dietética, suporte ventilatório e fisioterapia) enquanto não se inicia a terapêutica enzimática de substituição (TES):

  • Dietaelevado suprimento proteico (20-30% do VCT) com ou sem misturas de AA ramificados e suprimento calórico adedquado;
  • Suporte ventilatório – por vezes há que recorrer a traqueostomia e ventilação mecânica;
  • Fisioterapiaé importante o treino dos músculos inspiratórios;
  • TES procede-se a terapia endovenosa semanal, geralmente com boa tolerância: diminui a dependência do ventilador, melhoria da CM, motora e da função respiratória.

2. GALACTOSÉMIA

Metabolismo da galactose e nosologia

A galactosémia é uma doença hereditária traduzindo-se por valor elevado de galactose no sangue e integrando três formas clínicas associadas, respectivamente, a deficiência de três diferentes enzimas que integram o metabolismo da galactose.

Tais enzimas são: a galactose-1-fosfato-uridil transferase (GALT), a galactoquinase (GALK) e a uridina difosfato galactose-4-epimerase (GALE ).

A designação de galactosémia, embora apropriada para qualquer das deficiências enzimáticas referidas, na generalidade é atribuída à forma clássica (GALT), mais prevalente, em que se verifica deficiência completa da enzima GALT.

A propósito do metabolismo da galactose, cabe recordar que a lactose, dissacárido constituído por glicose e galactose, é o principal hidrato de carbono do leite. Ao ser ingerida, a lactose é hidrolisada no intestino por acção da lactase, em glicose e galactose; a galactose é depois fosforilada em galactose-1-fosfato (Gal-1-P) pela galactoquinase (GALK).

Outra enzima, a galactose-1-P-uridil transferase (GALT) converte a Gal-1-P e a uridina difosfato glicose (UDP glucose) em uridina difosfato galactose-4-epimerase (GALE ou UDP-galactose) e em glucose-1-P, sendo esta metabolizada em glucose-6-P, a partir da qual se formam glicose, piruvato e lactato. [UDP <> Uridina Di Fosfato] [F<>Phosphate].

A galactose pode ser também convertida em galactitol (causa primária das cataratas) por acção da aldolase redutase; por sua vez, a UDP glicose pode ser convertida em UDP galactose pela UDP galactose epimerase.

A UDP galactose é utilizada na síntese de glicoconjugados e intervém nas vias de síntese de novo, isto é, de produção endógena de galactose, facto que parece explicar muitas complicações tardias da galactosémia; a produção endógena, que é contínua, da ordem de 0,53-1,05 mg/kg/hora, pode conduzir a verdadeira intoxicação do SNC.

A fonte principal de galactose é o leite e produtos lácteos, existindo livre nas frutas e vegetais.

Aspectos epidemiológicos e genética

A galactosémia, doença autossómica recessiva, surge com incidência na Europa entre 1/18.000 e 1/60.000 na sua forma clássica, mais frequente na Irlanda. A mesma resulta da deficiência completa de GALT, com consequente acumulação de galactose-1-fosfato (Gal-1-P), exercendo acção lesiva nas células parenquimatosas do rim, fígado e cérebro.

De realçar que outras variantes derivam de graus diversos de deficiência parcial de GALT, como a variante Duarte que, em homozigotia, tem uma actividade enzimática de 50%.

A deficiência GALK, rara, com consequente acumulação nos tecidos de galactitol, tem sido descrita com maior incidência na Roménia. A deficiência GALE é a mais benigna, descrevendo-se o incremento de UDP-galactose nos tecidos e apenas deficiência enzimática ao nível de leucócitos e eritrócitos, sem desregulação metabólica noutros tecidos.

O gene para a transferase GALT localiza-se no cromossoma 9p13. Relativamente à forma GALK foram descritos dois genes: GK1 no cromossoma 17q24 e GK2 no cromossoma 15. O gene para a epimerase (GALE) localiza-se no cromossoma 1p-35-36.

Manifestações clínicas

A forma clássica (GALT), mais grave, tem início de forma aguda por volta da 1ª semana de vida após ingestão de leite, incluindo leite materno: vómitos, diarreia, perda ponderal, letargia, hipotonia, icterícia por hiperbilirrubinémia não conjugada ou mista, hepatomegália, disfunção hepática, hemorragias; tais manifestações podem ser fatais. As cataratas podem estar presentes desde os primeiros dias de vida ou observar-se mais tarde.

Na sua forma crónica verifica-se, em geral, anorexia persistente, vómitos frequentes, restrição do crescimento e alterações do desenvolvimento. (Figura 5)

Uma constelação de achados clínicos no RN e lactente, como doença hepática, diátese hemorrágica, icterícia, vómitos recorrentes, não progressão do peso, etc. devem levantar a suspeita diagnóstica de galactosémia, sendo que o diagnóstico de sépsis é muitas vezes o primeiro a ser sugerido. Por outro lado, há que ter em atenção que a septicémia por E. coli surge com frequência nos doentes com galactosémia.

Quanto às manifestações clínicas da forma GALK, dentro da raridade, citam-se: catarata e sinais de pseudotumor cerebri causados pelo galactitol.

FIGURA 5. Lactente com galactosémia: icterícia, desnutrição e distensão abdominal notórias. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exames laboratoriais

Como achados laboratoriais há a realçar acidose metabólica, glicosúria, galactosúria, albuminúria, e aminoacidúria relacionáveis com disfunção tubular renal.

A positividade de substâncias redutoras na urina, embora não seja um achado muito sensível, pode fortalecer a suspeita.

Obtém-se maior sensibilidade e maior especificidade com o chamado teste de Beutler (fluorescent spot test), realizado com amostra de sangue total: não se observa fluorescência em caso de deficiência de GALT; esta análise só deverá ser executada 120 dias após eventual transfusão de sangue.

O resultado positivo apontará para suspeita diagnóstica de galactosémia, a confirmar mediante:

  • Análise mutacional, genética, pesquisando mutações: no nosso país, a mais prevalente é a Q188R;
  • Determinação da actividade enzimática nos eritrócitos “método padrão de ouro” (só após 120 dias de transfusão).

Na forma GALK o diagnóstico final é feito demonstrando actividade normal de GALT e ausência de actividade de GALK nos eritrócitos.

Diagnóstico precoce

O diagnóstico precoce (antes das manifestações clínicas) pode ser feito após o nascimento. O rastreio alargado para a galactosémia clássica é feito na Europa apenas em 10 países (dados de 2014). A este propósito, importa referir que foi introduzida nova estratégia para diminuir os resultados falsos positivos: nos casos em que a actividade enzimática é < 15% faz-se o teste da galactose-desidrogenase, avaliado por fluorescência com radiação ultravioleta.

Tratamento

O tratamento baseia-se na exclusão da galactose e lactose da alimentação. Assim, em caso de suspeita de doença, deve excluir-se de imediato a galactose da alimentação, designadamente interrompendo:

  • O aleitamento materno e/ou fórmulas convencionais (derivadas do leite de vaca); e
  • Os produtos lácteos e derivados.

Na fase aguda é importante a administração de vitamina K e plasma fresco; a fototerapia raramente é necessária.

A dieta específica levará em geral a uma melhoria rápida, especialmente da função hepática e da doença tubular renal e, mais tardiamente, das cataratas.

Ultrapassada a fase aguda, o único tratamento específico é a dieta. Contudo, não é possível prevenir as complicações neurológicas tardias.

Deve proceder-se à administração de suplementos de cálcio, escolhendo cautelosamente os preparados sem lactose.

A falência ovárica evidencia-se por hipogonadismo hipergonadotrófico, o qual atinge cerca de 90% das mulheres doentes; são comuns a puberdade atrasada, a amenorreia e a oligomenorreia. As mulheres galactosémicas grávidas devem continuar a dieta sem lactose durante a gravidez.

O marcador mais importante para monitorizar o tratamento é a medição da Gal-1-P nos eritrócitos, admitindo-se como valor no limite superior aceitável: 150 µmol/L.

Os doentes com galactosémia necessitam de seguimento especializado, com especial atenção para o desenvolvimento na área da fala e para a vertente endocrinológica (em relação com início de tratamento hormonal – anticoncepção – nas raparigas, pelos 12-13 anos).

A forma GALE não necessita de tratamento. Nas formas assintomáticas, identificadas em programas de rastreio, aconselha-se, não dieta livre de galactose, mas apenas restrição, dado o papel importante da galactose no desenvolvimento do sistema nervoso.

Complicações

Mesmo nos doentes tratados poderão surgir complicações tardias frequentes como moderada restrição do crescimento, atraso da fala, dispraxia (movimentos “desajeitados e descoordenados” – incluindo ao nível dos músculos que intervêm na fala – sem que haja parésia ou ataxia), hipotonia, tremor, deficiência psíquica, deficiência da visão e percepção, disfunção ovárica conduzindo a infertilidade, ataxia, etc.. Por isso, o prognóstico final poderá ser problemático, tendo em conta designadamente que o QI diminuindo durante a infância, sofrerá progressivo agravamento com a idade.

3. INTOLERÂNCIA HEREDITÁRIA À FRUTOSE

Metabolismo da frutose e nosologia

A intolerância hereditária à frutose (IHF) é uma afecção causada por deficiência da actividade da aldolase B (frutose1,6 – difosfato) no fígado, rim e intestino. É explicável por mutações no gene da aldolase B no cromossoma 9q22.3.

A aldolase B catalisa a hidrólise da frutose 1,6 difosfato em triose fosfato e gliceraldeído fosfato; hidrolisa igualmente a frutose-1-fosfato (F-1-P).

Quando se verifica ingestão de frutose, o resultado do défice enzimático é o surgimento de sintomas por acumulação de frutose 1-fosfato com acção tóxica tecidual, devida a redução do ATP intracelular e inibição da glicogenólise.

A frutose é importante fonte dietética de hidratos de carbono, encontrando-se no mel, vegetais, leguminosas, frutos, sacarose, sorbitol (este último, poliálcool que resulta da redução enzimática da glicose). Dum modo geral, um adulto consome diariamente cerca de 100 gramas de frutose, consumo que, infelizmente, está em crescendo.

Distinguem diversas entidades clínicas, entre elas:

  • A frutosúria essencial ou benigna, assintomática, resultante de défice da frutoquinase (que catalisa a fosforilação da frutose em frutose-1-fosfato), com incidência ~1/120.000; e
  • A intolerância hereditária à frutose (IHF) por défice da aldolase B [ou aldolase da frutose 1,6-difosfato (F-1,6 DP)] ao nível do fígado, rim e intestino delgado, com uma incidência aproximada de 1/23.000.

Neste capítulo é dada ênfase à IHF.

Manifestações clínicas

Como regra geral, os indivíduos de qualquer idade com a anomalia não evidenciam sintomatologia até ingerirem alimentos contendo frutose ou sacarose (açúcar de mesa). Os RN e lactentes alimentados exclusivamente com leite materno estão assintomáticos.

Existem formas de apresentação aguda e crónica. O modo mais frequente corresponde ao início da diversificação alimentar com a introdução de fruta ou sacarose: palidez, vómitos, diarreia, hipoglicémia, sudorese, tremor, choque, icterícia, diátese hemorrágica, apatia, coma, edema, ascite, oligoanúria, hepatomegália e, por vezes, esplenomegália, insuficiência hepática aguda e disfunção tubular renal que podem ser fatais. (Figura 6) A sintomatologia inicial é semelhante à da galactosémia.

A sensibilidade à frutose é variável: enquanto certos doentes exibem sintomas com pequenas doses de frutose, outros poderão tolerarar até 250 mg/kg/dia; dum modo geral, a exuberância de manifestações é directamente proporcional ao teor de frutose ingerido.

FIGURA 6. Imagem de histologia hepática: lactente com IHF, sendo notórias alterações cirróticas no contexto de hepatomegália em regressão com dieta. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Poderá desenvolver-se aversão aos doces e hábitos alimentares peculiares, o que tem efeito protector pela menor ingestão do nutriente: típica ausência de cárie).

Poderá haver atraso do diagnóstico correcto, conhecendo-se casos em que tal é somente realizado na idade adulta. Deve reforçar-se a ideia de que os doentes não identificados estão em risco de vida.

Havendo suspeita da doença, deve proceder-se a um conjunto de exames laboratoriais:

  • Análise de urina (incluindo pesquisa de substâncias redutoras); os achados clássicos em caso de intolerância à frutose são: frutosúria, glicosúria, fosfatúria, proteinúria, aminoacidúria testemunhando disfunção tubular renal;
  • Análise de sangue: pH, fósforo, potássio, glicose diminuídos; e lactato, ALT, AST elevados; alteração dos factores de coagulação;

NB- a hipoglicémia verificada num tempo curto após exposição à frutose poderá escapar à detecção.

 

  • Análise de ADN permite confirmação diagnóstica em mais de 95% dos casos), pesquisando a mutação prevalente na Europa (A149P);
  • Análise – medição da actividade enzimática, de preferência nas células hepáticas ou, como alternativa, no intestino delgado (biópsia), havendo dúvidas; salienta-se que tal medição não deve ser realizada nas células do sangue nem nos fibroblastos, os quais somente expressam a aldolase A.

Notas importantes:

    • não se deve proceder à prova de sobrecarga com frutose oral (envolvendo risco); somente, e se for considerado indispensável, se pode realizar a prova de sobrecarga com frutose IV de forma lenta, em 4 horas, com 200 mg/kg de frutose; no caso de IHF verifica-se: diminuição do fosfato, hipoglicémia a seguir, e elevação subsequente de ácido úrico e magnésio.
    • o diagnóstico deve ser sempre transmitido à equipa de saúde, quer no contexto de consulta, quer no de serviço de urgência.

Tratamento

O tratamento consiste em prescrever para toda a vida um regime alimentar isento de frutose, assim como de seus precursores como sacarose e sorbitol. Uma vez ultrapassada a fase aguda, o cumprimento de tal dieta permite, em geral, um curso benigno.

As fórmulas infantis não devem conter frutose nem sacarose.

Alguns autores preconizam a suplementação de vitamina C e de folatos.

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DEFEITOS DO METABOLISMO DOS AMINOÁCIDOS E PROTEÍNAS

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Sistematização

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM) dos aminoácidos compreendem diferentes situações clínicas como: hiperfenilalaninémias (incluindo fenilcetonúria); tirosinémia dos tipos I, II e III; alcaptonúria, hawkinsinúria; acidémias/acidúrias orgânicas de cadeia ramificada (leucinoses, acidémias propiónica, metilmalónica, isovalérica e outras); doenças do ciclo da ureia; doenças dos aminoácidos sulfurados (incluindo homocistinúria e outras); hiperornitémias, síndroma HHH; acidúrias orgânicas “cerebrais” e doenças do catabolismo da lisina (incluindo a acidúria glutárica tipo I, a L2-hidroxiglutárica, a D2 – hidroxiglutárica, a acidúria N-acetilaspártica ou doença de Canavan); hiperglicinémia não cetótica; doenças do metabolismo da prolina e da serina; defeitos do transporte dos aminoácidos através das membranas celulares (cistinúria, intolerância proteica lisinúrica, doença de Hartnup) e muitas outras.

Etiopatogénese

As deficiências de determinadas enzimas envolvidas no metabolismo dos aminoácidos conduzem frequentemente a sinais e sintomas de intoxicação aguda ou crónica por acumulação de metabólitos e lesão tecidual. Os órgãos mais frequentemente afectados são o sistema nervoso central, o fígado e os rins.

A expressão clínica e da gravidade dependem fundamentalmente do grau de deficiência enzimática e, particularmente, da ingestão proteica e da produção endógena decorrente do catabolismo proteico.

Manifestações clínicas

A idade de apresentação é variável.

No período neonatal, geralmente após um intervalo livre que pode ser inferior a 24 horas, depois do início da alimentação, ocorrem os seguintes sinais, por vezes associados: recusa alimentar, sucção pobre, episódios de apneia, vómitos, não ganho de peso, hipotonia, letargia, convulsões, hipotermia, coma, alterações do tono muscular, mioclonias e, por vezes, odor anómalo.

Após o período neonatal, as formas de apresentação podem ser: crises agudas ou recorrentes de coma, vómitos crónicos, acidose, hipoglicémia, ataxia, alterações do comportamento, neuropatia, deterioração neurológica e/ou mental progressiva, autismo, etc..

Na primeira infância, coincidindo com a diversificação alimentar, poderão surgir febre, anorexia ou vómitos.

Na puberdade, o crescimento e eventuais alterações do foro endócrino poderão constituir factores desencadeantes de estresse metabólico.

Exames complementares

Perante a suspeita de doença relacionável com defeitos do metabolismo dos aminoácidos, e paralelamente às análises em amostras de sangue, urina e LCR, discriminadas no capítulo anterior, devem ser feitas outras análises mais específicas em laboratório especializado, a partir das referidas amostras:

  • Cromatografia dos aminoácidos no sangue e urina;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina;
  • Cromatografia dos aminoácidos no LCR se suspeita de encefalopatia metabólica;
  • Perfil de acilcarnitinas no plasma.

Outros exames a solicitar dependerão da suspeita diagnóstica específica (ver adiante).

Tratamento de emergência

Em muitas destas situações verifica-se descompensação aguda directamente relacionada com incremento da ingestão proteica ou com estado catabólico, factor altamente deletério.

Assim, as principais linhas de actuação incluem:

  • Interromper o estado catabólico: propiciando um suprimento energético aumentado, geralmente soluto glicosado endovenoso (excepcionalmente por sonda nasogástrica), se necessário associando a administração de insulina por via endovenosa.
  • Interromper o suprimento proteico: propiciando a chamada “nutrição de emergência” através de nutrição (entérica ou parentérica de acordo com a situação clínica) à custa de hidratos de carbono, lípidos, NaCl, KCl, gluconato de cálcio e água durante 24-48 horas.
    Após este período, o suprimento proteico é iniciado cautelosamente de modo progressivo com leite materno, se possível, ou com fórmula; se a via entérica não for viável, procede-se à nutrição parentérica com solução de aminoácidos em incrementos progressivos; nesta última circunstância, com a melhoria do quadro clínico, procede-se à transição para a alimentação entérica, geralmente dentro do período de 4-5 dias.
  • Propiciar suprimento hídrico e electrolítico adequados. Níveis séricos de sódio dentro dos limites da normalidade reduzirão o risco de edema e lesão cerebrais.
  • Terapêutica medicamentosa específica ou vitamínica (cofactores enzimáticos) dependendo da patologia em causa (por exemplo, biotina na acidúria propiónica, hidroxicobalamina na acidúria metilmalónica, carnitina nas acidúrias orgânicas, glicina na acidúria isovalérica, etc.), e fármacos que promovem a eliminação da amónia (benzoato de sódio, fenilbutirato de sódio nas doenças do ciclo da ureia).
  • Meios de depuração dependendo da patologia, estado clínico e achados laboratoriais: diurese forçada, diálise peritoneal, hemodiálise, hemofiltração, exsanguinotransfusão, etc..

Tratamento de manutenção

  • Dietético: dieta hipoproteica, e suplemento de mistura específica aminoácidos (não contendo os aminoácidos cuja via metabólica está bloqueada) associado a oligoelementos e sais minerais.
    De referir que a utilização de mistura de aminoácidos é crucial nos casos de fenilcetonúria, leucinose, tirosinémia, homocistinúria, e no defeito da ornitina-aminotransferase; noutras situações, como as acidúrias orgânicas, a mistura de aminoácidos é mais controversa, especialmente na fase aguda, podendo contribuir para elevação da amónia. No entanto, cabe referir que a restrição proteica excessiva pode levar a catabolismo.
  • Medicamentoso: aplicam-se as noções referidas a propósito do tratamento de emergência que contribuam para a desintoxicação, por exemplo, nas doenças do ciclo da ureia, tirosinémia tipo I, etc..

Avaliação regular do crescimento, desenvolvimento e parâmetros laboratoriais

Chama-se a atenção para o risco de má-nutrição e de deficiências nutricionais diversas como resultado do regime dietético restritivo.

De acordo com as patologias em causa, para além das análises para avaliação global, haverá que incluir o ionograma sérico, ureia no sangue e urina, determinação de proteínas totais e fracções, amoniémia, aminoácidos urinários e plasmáticos e ácidos orgânicos na urina. Importa igualmente a avaliação nutricional.

Educação da família

A família deve ser instruída sobre as características principais da doença em causa, sobre a sintomatologia nas crises de descompensação, sobre critérios de gravidade e sobre medidas emergentes a tomar. Torna-se, assim, fundamental que a família aprenda a contactar de imediato o centro especializado de tratamento a que a criança deve recorrer nas situações graves.

No âmbito deste capítulo é feita uma referência especial à fenilcetonúria, à tirosinémia do tipo I, à homocistinúria, à leucinose, às acidúrias orgânicas clássicas e às doenças do ciclo da ureia.

1. FENILCETONÚRIA

Esta doença, vulgarmente designada nos países de língua inglesa pela sigla PKU (de phenylketonuria), pertence ao grupo das hiperfenilalaninémias.

A PKU na sua forma clássica surge com uma frequência estimada entre 1/10.000 e 1/20.000 RN; em Portugal, até final do ano de 2005, em 2.590.890 RN foi encontrada prevalência ~1/11.000 e, em 2015, ~1/12.150.

A mesma resulta do défice total ou parcial da enzima fenilalanina – hidroxilase hepática (PAH) originando níveis elevados de fenilalanina e seus metabólitos no sangue; o gene que codifica a fenilalanina-hidroxilase localiza-se no cromossoma 12q24.1, descrevendo-se uma diversidade de mutações (mais de 500). A maioria dos doentes corresponde a heterozigotias para dois diferentes alelos mutantes.

De referir que em cerca de 1-3% dos casos com valores elevados de fenilalanina no sangue, a anomalia é explicada por défice duma das enzimas necessárias para a produção ou renovação do cofactor tetra-hidro-biopterina (BH4); trata-se das chamadas formas malignas de hiperfenilalaninémia, ou mais correctamente, hiperfenilalaninémias por defeito de BH4, muito graves, não respondendo à dieta hipoproteica isolada.

Quanto a manifestações clínicas, salienta-se que a criança afectada é assintomática na data do nascimento mas, caso não se verifique qualquer intervenção (o que acontecia na era pré-rastreio) verifica-se atraso do neurodesenvolvimento progressivo e grave: atraso psicomotor, da locomoção, da fala, hiperactividade frequente, comportamento autista, negativismo, etc.. Pode igualmente verificar-se quadro de hipsarritmia (“espasmos infantis”), hipertonia e hiperreflexia osteotendinosa; sem tratamento, surge deterioração neurológica e mental progressiva.

Os fenilcetonúricos podem apresentar, de modo inconstante, um fenótipo clínico particular: pele clara, dermatose aparentando eczema, cabelos loiros e olhos azuis; trata-se dum pseudo-albinismo secundário.

O tratamento dietético é fundamental: consiste numa dieta hipoproteica, semi-sintética, suplementada com aminoácidos apropriados, sendo o suprimento em fenilalanina reduzido e controlado.Tal regime deve ser mantido durante toda a vida.

O leite materno pode ser usado durante os primeiros meses de vida, sob rigorosa vigilância do centro especializado de tratamento.

A vigilância metabólica é feita com o doseamento regular do nível sérico da fenilalanina, o qual deve ser mantido entre 3-6 mg/dL. Chama-se, a propósito, a atenção para o facto de dietas extremamente restritivas, originando valores séricos < 3 mg/dL, poderem conduzir a quadros de défice de fenilalanina (que é um aminoácido essencial) traduzido por hipocrescimento, letargia, anemia, alterações ósseas e até, morte.

Estão descritas formas de hiperfenilalaninémia moderada, benigna, com valores de fenilalaninémia ligeiramente elevados, até 6-6,5 mg/dL, com dieta normal. Nestes casos o prognóstico parece ser bom, sem necessidade de regime alimentar restritivo, sendo, no entanto, prudente o seguimento clínico (com atenção especial ao exame neurológico) e a vigilância laboratorial periódica.

Alguns centros utilizam um biomarcador independente dos níveis sanguíneos fenilalanina: a ADMA (dimetilarginina assimétrica). Na prática, utiliza-se a ratio ADMA/creatinina, com interesse sobretudo para detectar casos de pacientes com dieta eventualmente não balanceada, susceptível de efeitos negativos a longo prazo.

Se o indivíduo afectado atingir a idade adulta e, no sexo feminino, a idade de procriar, há que atender a que níveis elevados de fenilalanina durante a gravidez podem ter efeito lesivo sobre o feto (aborto frequente, baixo peso de nascimento, restrição do crescimento fetal, defeitos cardíacos, microcefalia e outras anomalias congénitas). É necessário, pois, que a mulher com hiperfenilalaninémia cumpra dieta muito rigorosa antes da concepção e durante toda a gravidez, de modo a manter níveis séricos de fenilalanina entre 1-3 mg/dL.

As novas terapias incluem:

  • Suplementação de aminoácidos neutros, os quais competem com o transporte da fenilalanina/Phe;
  • Administração de BH4 (sapropterina di-hidrocloreto- Kuvan) em doentes seleccionados. A resposta/sensibilidade ao BH4 necessita da presença de alguma actividade residual da PAH. Permite aumentar, duas a três vezes, a tolerância alimentar à PHE, com menores ou nulas restrições dietéticas;
  • Terapia enzimática com PAL (fenilalanina – amónia – liase), proteína que converte a Phe em excesso em metabólito não tóxico;
  • Administração de glicomacropeptídeo, proteína natural derivada da caseína resultante do fabrico de queijo. Está presente no soro do leite e, na forma pura, não contém Phe. Os alimentos preparados a partir desta proteína são boa alternativa à mistura de aminoácidos sintéticos;
  • Alimentos hipoproteicos de nova geração e novas apresentações de misturas de aminoácidos em barras, saquetas, comprimidos, líquidos são resultado dos enormes progressos da tecnologia;
  • Terapia génica, que se tem desenvolvido na procura de correcção duradoira ou permanente do fenótipo PKU.

2. TIROSINÉMIA DO TIPO I

A tirosinémia do tipo I (ou tirosinémia hepatorrenal) é uma doença autossómica recessiva rara, provocada por défice da enzima fumaril-aceto-acetato-hidrolase originando elevação da tirosina sérica e acumulação de metabólitos tóxicos intermediários.

Como consequência surge compromisso grave ao nível do fígado, rim e nervo.

A doença raramente tem início no período neonatal; dum modo geral, surge a partir da 4ª-5ª semana de vida e, mais frequentemente, nos primeiros meses.

Trata-se duma doença hepática grave, com insuficiência hepática aguda que pode ser fatal. Os sinais clínicos poderão ser desencadeados por doença intercorrente levando a estado catabólico (por ex. febre).

Caracteriza-se por icterícia, hepatosplenomegália, edema, diátese hemorrágica, ascite, hipoglicémia, e, por vezes, odor a “couve cozida”. Pode existir disfunção tubular renal complexa, raquitismo de causa renal, e, raramente, sinais de polineuropatia periférica aguda (simile porfíria). Os doentes estão em risco de sofrer de hepatocarcinoma, o qual pode aparecer precocemente. (Figura 1)

No âmbito da avaliação laboratorial do quadro sindrómico de hepatopatia e diátese hemorrágica, cabe referir níveis elevados de ALT e AST traduzindo citólise, e níveis baixos dos factores de coagulação II, VII, IX, XI, XII.

O diagnóstico diferencial faz-se fundamentalmente com a galactosémia e intolerância hereditária à frutose pela hepatopatia, diátese hemorrágica e tubulopatia.

O diagnóstico baseia-se na demonstração de níveis elevados de tirosina e de alfa-fetoproteína (no sangue), de ácido aminolevulínico (ALA) (na urina), e da presença de succinilacetona (SA) na urina e sangue.

FIGURA 1. Lactente com quadro clínico de tirosinémia tipo I: hepatosplenomegália, sinais de raquitismo, e desnutrição com hepatocarcinoma aos 11 meses de idade. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Salienta-se que esta última constitui melhor marcador para o diagnóstico do que a hipertirosinémia, a qual pode acompanhar outros tipos de hepatopatias agudas adquiridas.

Progressos recentes relacionados com o PNDP alargado permitem diagnóstico mais rápido com a medição da SA no sangue fresco.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade da enzima acima referida em amostras de biópsia hepática, de culturas de fibroblastos, e ainda através de estudo genético (análise mutacional).

O tratamento consiste essencialmente:

  1. numa dieta hipoproteica com suprimento reduzido e controlado de fenilalanina e tirosina, suplementado com mistura apropriada de aminoácidos; e
  2. na utilização imediata do fármaco NTBC (nitro-triflurometil-benzoil-cicloexanediona), tricetona que inibe a hidroxifenil-piruvato dioxigenase, bloqueando a montante o catabolismo da tirosina, e evitando a acumulação de metabólitos tóxicos para o fígado, rim e nervo, o que se traduz numa melhoria dramática.

Trata-se duma terapêutica de primeira linha em qualquer idade, inclusivamente no RN em coma. Se não houver resposta ao NTBC (o que pode ocorrer em cerca de 10% dos casos) e/ou houver suspeita de malignidade hepática, o transplante do fígado impõe-se com urgência.

3. HOMOCISTINÚRIA

A homocistinúria clássica ou de tipo I, devida a deficiência da cistationina-beta-sintetase (CBS), é o erro inato do metabolismo da metionina mais frequente. Tal deficiência, relacionada com gene localizado no cromossoma 21q.22.3, leva à acumulação nos tecidos de metionina, homocistina e derivados, com perda de cistationina e baixa concentração de cistina.

No que respeita a manifestações clínicas, cabe referir que a doença está associada a anomalias graves em quatro órgãos ou sistemas: o olho (luxação do cristalino, miopia, glaucoma, etc.), o esqueleto (dolicostenomélia, aracnodactilia, escoliose, osteoporose, fracturas patológicas, mobilidade articular diminuída, etc.), o sistema nervoso central (insuficiência mental, AVC, sintomas psiquiátricos, etc.) e o sistema vascular (tromboembolismo das artérias e veias, a principal causa de morbilidade e mortalidade).

A acumulação de homocistina é provavelmente determinante do dano vascular generalizado e complicações tromboembólicas.

A criança é assintomática ao nascer, mas, se não for tratada, surgirá progressivamente o quadro clínico completo, incluindo o fenótipo semelhante ao da síndroma de Marfan (estatura elevada, ossos longos finos e alongados) e aracnodactilia na transição para a puberdade. Contudo, a restrição da mobilidade articular contrasta com a laxidão da autêntica síndroma de Marfan. As anomalias surgem significativamente mais cedo nos doentes não respondentes à piridoxina (vitamina B6). Casos moderados poderão ser reconhecidos após o surgimento de complicações tardias como os AVC.

O diagnóstico inicial assenta no perfil típico da cromatografia dos aminoácidos no plasma: elevação da metionina e homocistina, baixo nível de cistina, e não aumento de cistationina. A determinação da homocisteína total (tHcy) no plasma (p) é de grande valor diagnóstico, considerando-se valor normal de tHcy p: < 15 µmol/L; os doentes não tratados têm valores > 200 µmol/L.

O diagnóstico definitivo far-se-á determinando a actividade enzimática nos fibroblastos e hepatócitos (biópsia hepática) e por análise mutacional.

O tratamento tem como objectivo reduzir os níveis elevados de homocistina para valores próximos do normal, mantendo um ritmo de crescimento normal. O mesmo consiste em dieta com suprimento de metionina reduzido, e de cistina elevado, associando piridoxina, ácido fólico, vitamina C, vitamina B12 e betaína, em várias combinações; por vezes é necessária uma mistura específica de aminoácidos isenta de metionina.

Cerca de 50% dos doentes respondem, por vezes parcialmente, a doses altas de vitamina B6 (mas sempre < 1 grama/dia). Salienta-se igualmente a importância do tratamento antitrombótico. A ausência de resposta à piridoxina poderá estar relacionada com a carência em folato.

4. LEUCINOSES

As leucinoses são doenças do catabolismo dos aminoácidos de cadeia ramificada (AACR): leucina, isoleucina e valina, por deficiência do complexo da desidrogenase dos α-cetoácidos de CR (BCKD), complexo composto por três unidades catalíticas e duas enzimas reguladoras, codificadas por 6 loci genéticos diferentes: E1 (E1α e E1β), E2, E3, e as reguladoras BCKD-fosfatase e cinase.

Sobre a etiopatogénese, importa referir que a deficiência da BCKD origina uma elevação marcada dos AACR e dos seus cetoácidos no plasma, urina e LCR. Da isoleucina elevada forma-se, por racemização não enzimática, a alo-isoleucina, cuja presença é sistemática nos doentes com leucinose. Os AACR representam aproximadamente 40% das necessidades em AAE (essenciais).

O excesso de AACR e dos seus cetoácidos interfere com o metabolismo do sistema neurónio/astrócito, o que afecta a biossíntese das aminas biogéneas e altera o equilíbrio dos ciclos leucina/glutamato e glutamato/glutamina, no cérebro. A leucina e o ácido 2-cetoisocapróico elevados provocam disfunção cerebral: são os metabólitos mais neurotóxicos.

No que respeita à genética e epidemiologia, importa referir que se trata duma doença AR, pan-étnica, com incidência de 1/120.000 a 1/500.000 na Europa, sendo no Mundo à volta de 1/185.000 nados-vivos. Em Portugal é frequente nas comunidades ciganas, especialmente no sul do país.

Existem 6 formas de apresentação clínica: 1- Forma clássica: grave, de início neonatal; 2- Forma intermédia; 3- Forma intermitente; 4- Forma sensível à tiamina; 5- Forma por deficiência de E3; e 6- Formas assintomáticas, estas últimas na actualidade mais frequentemente diagnosticadas através da realização do rastreio alargado.

A Forma clássica, representando 80% das leucinoses, é caracterizada por encefalopatia + cetose. No geral, trata-se de um RN de termo que nasce bem, mas que, após um intervalo livre, seja entre o 4º e o 7º dia, evidencia sucessivamente: sucção débil, recusa alimentar, letargia, soluços, hipotonia, bradicardia, crises de apneia, hipotonia axial com hipertonia dos membros, movimentos de boxage e pedalagem, por vezes elevação lenta dos membros (espontânea ou após estimulação), tremores, opistótono, mioclonias, fontanela anterior hipertensa, um odor especial da urina (açúcar/ caramelo). Os abalos mioclónicos podem ser interpretados como convulsões; o EEG pode registar um padrão periódico (do tipo burst suppression).

A alimentação com leite materno pode atrasar os sintomas para a segunda semana de vida.

O odor característico (com algum valor na suspeição) pode surgir em RN alimentado com leite materno no contexto de mãe lactante tendo ingerido caril, especiarias, condimentos, ou de o coto umbilical ter sido limpo com iodopovidona.

Sem tratamento, rapidamente surge o coma e morte precoce. Durante o coma podem ser observados sinais neurológicos focais, hemiplegia aguda, hemianópsia e sinais de edema cerebral.

Para o diagnóstico, torna-se fundamental a realização dum conjunto de exames, predominantemente bioquímicos e, complementarmente, imagiológicos.

A cromatografia de aminoácidos (CAA) no plasma, sangue, urina e LCR mostra valores elevados de AACR (especialmente de leucina), dos respectivos cetoácidos (em especial do 2-cetoisocapróico) e de alo-isoleucina.

O teste DNPH (di-nitro-fenil-hidrazina) na urina, método colorimétrico detectando os cetácidos de CR, é positivo na fase aguda.

A presença de alo-isoleucina no plasma e urina é patognomónica, mas poderá não surgir até ao 6º dia de vida.

Existe cetonúria acentuada e a amónia pode estar elevada, embora com valor < 130 µmol/L). Mais raramente pode ocorrer acidose e hipoglicémia. A razão alo-isoleucina/ isoleucina > 0,6 é típica da Forma Clássica.

Com valores de leucina plasmática > 800 µmol/L, a encefalopatia torna-se evidente.

Através da imagiologia cerebral (TAC, RM) podem ser observados sinais de edema cerebral generalizado e de alterações da substância branca profunda: cerebelo, pedúnculos e cápsula interna. Salienta-se, pois, que a leucinose é uma doença da substância branca.

Para a confirmação diagnóstica procede-se à determinação da actividade enzimática nos fibroblastos/ linfoblastos em cultura, ou a estudos de biologia molecular.

O diagnóstico pré-natal é possível.

As complicações são frequentes: edema cerebral, sobretudo no RN e lactente; nos doentes mais velhos poderá surgir compressão do tronco cerebral e morte súbita (atenção à reidratação vigorosa). Outras complicações: desmielinização, alopécia, descamação cutânea, ulcerações da córnea, pancreatite e desnutrição; esta última poderá ser reversível com dieta correcta e continuada.

I – O tratamento do RN sintomático com a forma clássica é uma emergência médica.

Ia – Na fase aguda

Os objectivos são: reduzir rapidamente os níveis plasmáticos de AACR; combater o catabolismo; fomentar o anabolismo; providenciar o suprimento adequado de nutrientes. Assim:

  • fluidoterapia IV (soro fisiológico se necessário), mantendo valores plasmáticos de Na > 140 mEq/L e Osmol > 290 mOsm/L, com atenção ao edema cerebral, e evitando glicémia > 150-200 mg/dL;
  • métodos dialíticos (HFvv, HD – sendo que os AACR têm baixa depuração/ clearance renal), de acordo com os seguintes critérios: sintomas neurológicos graves, leucina (p) > 1500 µmol/L, intolerância gástrica (frequente), descida de leucina (s) < 500 µmol/L após 24 horas de dieta específica, ausência de melhoria clínica;
  • paragem de proteína natural (24-48 horas); suprimento energético > 100 kcal/kg/dia;
  • introdução de mistura de aminoácidos (Mx AA) livre de AACR para aumentar a síntese proteica;
  • suplementos de valina e isoleucina, ao 2º-3º dia de terapia, na dose 300-400 mg/dia de cada, para fomentar a síntese proteica e evitar a sua deficiência precoce, visto se eliminarem mais rapidamente do que a leucina; a dieta será administrada, consoante os casos, por sonda nasogástrica ou por alimentação parentérica total;
  • tiamina: 100-500 mg/dia, particularmente nas formas sensíveis à vitamina B1; alguns centros advogam uma terapia dietética apenas (evitando a diálise), mas somente se o diagnóstico for precoce (antes do 3º-7º dia de vida) e em doentes assintomáticos.
  • após as 24-48 horas sem proteínas naturais, deve iniciar-se um suprimento cauteloso das mesmas, incluindo de leucina, até à tolerância do doente.

Ib – Na fase de manutenção

Os objectivos são: manter o equilíbrio metabólico e alcançar um bom estado nutricional, de crescimento e de desenvolvimento. Assim:

  • dieta hipoproteica, semissintética, regularmente ajustada, para toda a vida. Os suprimentos de leucina são monitorizados de acordo com os respectivos níveis plasmáticos;
  • manter a ingestão de Mx de AA livre de AACR, que é crucial (pode fornecer-se na proporção de ~90% da proteína total);
  • manter o suplemento de valina e isoleucina até ser necessário;
  • manter o suplemento de tiamina (é prática comum);
  • suprimentos de leucina cerca de 300-400 mg/dia (60 a 110 mg/kg/dia) até aos 6 meses de idade. Crianças maiores de 3 anos, adolescentes e adultos podem tolerar até 500-700 mg/dia;
  • vigiar/corrigir possíveis deficiências de: isoleucina, valina, cálcio, magnésio, zinco, selénio e outros, e também de ácidos gordos (AG) essenciais;
  • usar tabelas de equivalentes: 1 parte é igual ao peso em gramas de um alimento que forneça 50 mg de leucina. Muito útil na confecção diária das dietas: evita monotonia alimentar e melhora o estado nutricional.

Nota importante:
A restrição excessiva de leucina pode ser tão devastadora como a sua acumulação
.

    • Níveis plasmáticos de AACR desejáveis:
    • Leucina: 80-200 µmol/L; Isoleucina: 40-90 µmol/L; Valina: 200-425 µmol/L, em sangue colhido 2-3 horas pós-prandial. Alguns centros preconizam níveis mais altos de isoleucina e valina, entre 200-400 µmol/L, no pressuposto de que tais valores elevados vão competir com a leucina, na entrada para o cérebro.
    • As crises de descompensação metabólica são potencialmente fatais.
    • Deve dar-se atenção à vacinação, pelo risco de descompensação nos 8-10 dias subsequentes.

Ic – Durante as intercorrências

Se no decurso da terapia ocorrerem situações febris, vómitos, diarreia (que aumentam o catabolismo), os níveis plasmáticos dos AACR e cetoácidos podem atingir níveis neurotóxicos em poucas horas, surgindo então sinais de alarme: apatia, ataxia, alucinações, anorexia, convulsões, alterações do equilíbrio e do comportamento.

Os pais devem procceder de imediato à realização do teste DNPH na urina para detectar a cetonúria, reduzir/ suprimir o suprimento de proteína natural, fornecer mais energia, manter os suplementos de Mx de AA, de valina e de isoleucina. Se houver intolerância gástrica, e ao mínimo sinal de alteração da consciência, deve contactar-se prontamente o centro de referência hospitalar.

II– Outras terapias

  • transplante hepático: já executado com êxito: o risco de descompensação em eventos catabólicos parece abolido;
  • transplante de hepatócitos: o interesse nos humanos está em avaliação;
  • fenilbutirato: reduz a concentração plasmática dos AACR e cetoácidos, parecendo aumentar a activiade residual da BCKD;
  • recentemente: introdução de fórmulas enriquecidas em vários AA que competem no transporte dos AACR através da BHE, diminuindo a entrada da leucina no cérebro;
  • uso de norleucina: potente competidor da leucina ao nível da BHE, diminuindo a sua entrada e acumulação, e especialmente do 2-cetoisocapróico, no cérebro. É um isómero da leucina e isoleucina.

Nas variantes moderadas, se assintomáticas, não é clara a necessidade de terapêutica de longo prazo; contudo, os doentes e famílias devem saber evitar/ corrigir hipotéticas crises.

Nos casos de leucinose materna: dieta hipoproteica rigorosa; deve manter-se concentração de leucina entre 100-300 µmol/L, e de valina e isoleucina, normal a ligeiramente elevada. É possível o nascimento de filho saudável. Todavia, há que ter em atenção o puerpério: risco de descompensação metabólica da mãe até 6 a 8 semanas após o parto.

Sobre a evolução e prognóstico, há a salientar os seguintes factos:

  • nos sobreviventes poderão surgir sequelas neurológicas graves, insuficiência cognitiva, espasticidade e cegueira cortical;
  • actualmente verificam-se menor morbilidade, menor mortalidade e mais baixa proporção de hospitalizações. Mais de 1/3 dos doentes com a forma clássica alcançarão QI > 90, e 1/3 entre 70-90. Os doentes que apresentam espasticidade, quadriplegia, regra geral, têm pior prognóstico intelectual.

5. HIPERGLICINÉMIA NÃO CETÓTICA

A glicina é o aminoácido mais pequeno que existe, não essencial, actuando como neurotransmissor inibidor no SNC.

A doença mais representativa em relação com este aminoácido é a hiperglicinémia não cetótica a qual se deve a um defeito no complexo multienzimático encarregado de metabolizar a glicina e diminuir a sua concentração no organismo.

Existem duas formas de apresentação clínica:

  1. precoce, mais grave e frequente; e
  2. tardia.

A forma precoce (neonatal) cursa com encefalopatia grave e deterioração neurológica progressiva (hipotonia generalizada, convulsões e ulterior espasticidade); o prognóstico é muito reservado.

A forma tardia, podendo surgir em qualquer fase da infância ou no adulto, traduz-se essencialmente por movimentos paroxísticos coreicos, confusão mental e alterações do comportamento.

A glicina está elevada no plasma (p) e no LCR, com razão LCR/p elevada

(normal = < 0,02; na situação em análise: proporção muito elevada = > 0,08).

O tratamento com dextrometorfan, benzoato de sódio e folatos é de sucesso limitado.

6. ACIDÚRIAS ORGÂNICAS

SISTEMATIZAÇÃO

As acidúrias orgânicas (AO) são devidas a deficiências enzimáticas no metabolismo mitocondrial dos ácidos carboxílicos activados pela CoA, muitos dos quais resultam do catabolismo dos aminoácidos (AA).

São devidas, não só à acumulação de intermediários tóxicos, mas também à alteração do metabolismo energético mitocondrial e da homeostase da carnitina.

Incluem-se nas AO a deficiência de biotinidase ou de holocarboxilase sintetase levando a deficiência múltipla de carboxilases.

O termo mais correcto é acidúria, e não acidémia, porquanto se trata de doenças essencialmente detectadas pela análise da urina.

As AO mais conhecidas, ditas clássicas, incluem as seguintes nosologias:

Grupo I

  • Acidúria propriónica (AP);
  • Acidúria metilmalónica (AMM); e
  • Acidúria isovalérica (AIV).

Grupo II

  • Acidúria metilmalónica (AMM) e homocistinúria (forma especial de AMM).

Como exemplos de AO mais raras, não abordadas neste capítulo, citam-se:

3-metil-crotonil-glicinúria;
3-metilglutacónica I; deficiência de desidrogenase da Acil-CoA de CC;
2-metil-3-hidroxibutiril-CoA desidrogenase;
isobutiril-CoA desidrogenase, 3-hidroxi-isobutírica;
acidúria malónica;
e defeitos do metabolismo da biotina, já referidos.

Grupo I

As AP, AMM e AIV, ditas clássicas, são causadas por defeitos do catabolismo dos AACR (leucina, isoleucina, valina).

Formas de apresentação

  • Forma de início neonatal, grave;
  • Forma de início tardio, aguda, intermitente;
  • Forma crónica, progressiva;
  • Formas assintomáticas.

A forma de início neonatal comporta-se como encefalopatia metabólica de “tipo intoxicação” que surge após um intervalo livre de sintomas.

O início é marcado por deterioração (sem causa aparente e sem resposta à terapia sintomática). Primeiros sinais: recusa alimentar e sonolência, a que se seguem coma, desregulação neurovegetativa (dificuldade respiratória, soluços, episódios de apneia, bradicardia, hipotermia).

No coma é frequente ocorrerem alterações do tono muscular e movimentos involuntários, episódios de hipertonia generalizada com opistótono, movimentos de pedalagem e boxage, e outras manifestações de intoxicação central como hipotonia axial com hipertonia dos membros, tremores e espasmos mioclónicos. No EEG é comum um padrão periódico (burst-suppression). A desidratação é frequente, assim como hepatomegália moderada. Na AIV é dado importante o odor a pés suados.

As características bioquímicas incluem: acidose metabólica, cetose, hiato aniónico com valor elevado, hiperamoniémia de grau variável (se > 500 µmol/L poderá induzir alcalose respiratória e a suspeita errada de doença do ciclo da ureia), hipocalcémia, glicémia normal, baixa ou elevada (se elevada poderá induzir suspeita errada de coma diabético), neutropénia, anemia, trombocitopénia, pancitopénia (podendo induzir suspeita errada de sépsis) e, por vezes, valor do lactato elevado.

A forma de início tardio, de modo agudo e intermitente, surge geralmente após intervalo livre longo (por vezes superior a um ano), ou mesmo até na adolescência e na idade adulta.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas traduzem-se por crises recorrentes, intercaladas por períodos assintomáticos, como regra.

A crise inicial pode ser fatal; as recorrentes ocorrem, em geral, no contexto de infecção, estado catabólico, suprimento alimentar rico em proteínas, ou sem causa aparente. São comuns situações de coma recorrente (de todos os tipos) e crises recorrentes de ataxia e letargia.

Os doentes poderão apresentar sinais neurológicos focais, sintomatologia de edema cerebral (sugerindo erradamente encefalite, AVC ou tumor cerebral).

Outra apresentação traduz-se por um quadro similar ao da síndroma de Reye.

De salientar que a neutropénia e trombocitopénia podem ser sinais inaugurais.

A forma crónica, progressiva pode manifestar-se por anorexia persistente, vómitos crónicos, má progressão ponderal e osteoporose. Tal sintomatologia poderá levar à suspeita errada de: refluxo gastresofágico, intolerância às proteínas do leite de vaca, doença celíaca, ou de estenose pilórica tardia.

Noutros casos, verifica-se hipotonia, fraqueza muscular e massas musculares pobres sugerindo miopatia ou doenças neurológicas congénitas; noutros ainda, atraso de desenvolvimento não específico, atraso psicomotor progressivo, insuficiência mental, convulsões e patologia dos movimentos.

Frequentemente, os doentes permanecem por longo tempo sem diagnóstico correcto até à ocorrência de crise neurológica aguda e coma; nestas circunstâncias poderá então surgir a suspeita de DHM.

As formas assintomáticas, descritas cada vez com maior frequência como resultado do rastreio alargado, podem ser representadas pela AIV associada a mutação C932T (A282V), geralmente em heterozigotia, e com fenótipo bioquímico moderado. Tais formas assintomáticas de AO levantam dúvidas quanto à necessidade de tratamento dietético contínuo e ao prognóstico a longo prazo.

Complicações

As complicações das AO clássicas são várias: sindroma extrapiramidal aguda ou progressiva, envolvimento ou mesmo necrose dos gânglios basais, atrofia cerebral, atraso de mielinização e alterações da motilidade.

Na AMM, de modo especial: falência renal que pode ocorrer pelos 10 anos de idade e progredir até à insuficiência renal terminal, necessitando de diálise e/ou TR; as lesões cutâneas são também comuns: descamação, alopécia, úlceras da córnea, geralmente devidas a má-nutrição proteica e deficiência de isoleucina.

Na AIV salienta-se: pancreatite aguda ou crónica que pode ser o quadro inaugural nos casos tardios, e ainda, cardiomiopatia.

Na AP pode surgir igualmente cardiomiopatia, a qual poderá estabelecer a indicação para transplante.

Diagnóstico

Quanto ao diagnóstico, importa referir que se torna fundamental a realização, entre outros, dos seguintes exames laboratoriais:

  • cromatografia de AA plasmáticos (CAA);
  • cromatografia de ácidos orgânicos urinários (CAO) podendo evidenciar o perfil específico de cada patologia;
  • doseamento no plasma da carnitina total, livre e acilcarnitinas, amónia e lactato.

A acilcarnitina anómala na AP e AMM é a propionilcarnitina (C3), e na AIV a isovalerilcarnitina (C5).

A marca bioquímica típica das AO Clássicas é: acidocetose e hiperamoniémia secundária.

O diagnóstico deve ser confirmado por estudos enzimáticos ou por estudo genético mutacional.

Tratamento

O tratamento das AO clássicas (AP, AMM e AIV) inclui procedimentos diversos na fase aguda e na fase de manutenção

Na fase aguda
  • combater o catabolismo com altas doses endovenosas de glucose (mais insulina, se necessário); corrigir a acidose e tratar a infecção e a anemia;
  • interromper o suprimento de proteínas (máximo: 24-48 horas) a par de suprimento energético normal/ elevado;
  • administrar carnitina em todas as AO, e carnitina + glicina nas formas graves de AIV;
  • descontaminação intestinal com metronidazol (20 mg/kg) para reduzir a produção de propionato pelo microbioma intestinal (AP, AMM);
  • administrar vit B12 (AMM) e biotina (AP);
  • promover a remoção dos metabólitos tóxicos com métodos dialíticos: HD (hemodiálise), HF (hemofiltração) ou HDF (hemodiafiltração); a DP (diálise peritoneal) é menos eficaz, especialmente nas situações muito graves, com hiperamoniémia grave (frequente na AP).
    Na AMM, como a clearance renal do ácido metilmalónico é alta, se a amoniémia não for muito elevada, poderá ser suficiente a reidratação, a promoção do anabolismo e a dieta hipoproteica;
  • benzoato de sódio e carbamilglutamato em casos de amónia elevada; se o lactato estiver muito elevado (o que poderá ocorrer na AP) por deficiência de tiamina, deve esta ser suplementada.
Na fase de manutenção
  • dieta hipoproteica, por vezes suplementada com Mx de AA isenta dos AA cujo metabolismo está afectado;
  • administar sempre carnitina, e carnitina + glicina (AIV);
  • descontaminação intestinal intermitente (com metronidazol) durante 10 dias em cada mês, ou contínua com metronidazol (1 mês), trimetroprim (1 mês), amoxicilina (1 mês) e assim sucessivamente (na AP e AMM);
  • administar hidroxicobalamina (AMM) e biotina (AP) nas formas sensíveis;
  • por vezes é necessário recorrer ao TH (AP), ou TH e/ou TR na AMM;
  • vigilância dos desequilíbrios dos AA plasmáticos, especialmente dos AA essenciais, e do nível dos AG essenciais, podendo ser necessário suplemento de ácido docosa-hexanóico;
  • alimentação entérica nocturna sistemática, nos mais jovens (qualquer que seja o apetite); por vezes, devido às dificuldades alimentares, tão comuns nas AO, há que recorrer à alimentação por sonda nasogástrica ou gastrostomia.

Grupo II

Uma forma especial de AMM pelas suas características e tratamento particulares é a acidúria metilmalónica associada a homocistinúria. Trata-se de um defeito da síntese intracelular da adenosilcobalamina e da metilcobalamina, cofactores, respectivamente, da metilmalonil-CoA mutase e da metionina sintetase.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas podem iniciar-se in utero: restrição de crescimento fetal, dismorfias moderadas, microcefalia e cardiomiopatia dilatada fatal.

Após o nascimento são descritas duas formas:

Forma infantil: de início precoce, mais frequente e grave, multissistémica, progressiva.

Como alterações mais típicas, citam-se: restrição do crescimento, microcefalia, dificuldades alimentares e de ganho ponderal, hipotonia, hidrocefalia, deterioração neurológica, anemia megaloblástica, alterações maculares e síndroma hemolítica urémica.

Forma tardia: sintomatologia mais evidente após os 4 anos de idade – regressão neurológica, sintomas neuropsiquiátricos, encefalopatia progressiva, degenerescência da espinhal medula, anemia megaloblástica, complicações tromboembólicas.

Diagnóstico

O diagnóstico desta forma especial depende dos resultados dum conjunto de exames laboratoriais: – cromatografia de AA plasmáticos (CAA); – cromatografia de ácidos orgânicos urinários (CAO); – doseamento do ácido metilmalónico e de homocisteína total (tHcy) no plasma; e perfil das acilcarnitinas no plasma.

O perfil bioquímico desta forma clínica inclui: ácido metilmalónico e homocisteína elevados, cistationina e metionina baixos; os níveis de vitamina B12 dentro do normal e de acilcarnitina C3 elevados constituem o padrão clássico.

Tratamento

O tratamento inclui administração diária parentérica de hidroxicobalamina (não a cianocobalamina) parentérica, betaína, ácido folínico e carnitina oral. Está em estudo o uso de hidroxicobalamina intranasal; a administração por via oral é ineficaz.

A dieta hipoproteica é controversa, porquanto as proteínas dietéticas têm muito pouca homocisteína. Podendo ser necessários suplementos de metionina, não deve administrar-se Mx de AA sem metionina (usadas na AMM) pelo risco de hipometioninémia grave.

Estão ainda indicadas:

  • dose antiagregante plaquetária de ácido acetilsalicílico;
  • monitorização regular da concentração de tHcy no plasma.

Como medida pré-natal importante cita-se a necessidade de reduzir as concentrações dos metabólitos tóxicos na mãe, o que parece ter impacte nas complicações de longo prazo.

Complicações

As complicações são variadas por atingirem diversos sistemas: SNC, olhos, sangue, vasos sanguíneos, rim, coração. A melhor estratégia para as evitar e ou conter diz respeito à administração de doses correctas diárias de hidroxicobalamina parentérica + betaína.

Na forma infantil pode ocorrer perda progressiva de visão até à cegueira (primeira década de vida). As complicações vasculares determinam maior morbilidade e mortalidade.

Salienta-se que no contexto de analgesia/ anestesia/ cirurgia não deve ser usado o óxido nitroso por ser potencialmente tóxico nesta doença.

Recomenda-se, se possível, o uso limitado das Mx de AA específicas, o que poderá facilitar o ajuste individualizado do suprimento de proteínas naturais. O doseamento da ureia e da creatinina na urina de 24 horas será de grande utilidade para esse cálculo. Assim, se o doente estiver medicado com Mx de AA, a razão ureia/ creatinina urinária será elevada, geralmente > 30, o que significa que muitos dos aminoácidos da Mx são excretados pela urina, sem qualquer efeito; se a ureia urinária (que reflecte o catabolismo proteico) for muito baixa e o doente não estiver a tomar a Mx de AA, pode-se, com alguma segurança, aumentar o suprimento proteico, fundamental para o equilíbrio metabólico, nutricional e o crescimento.

Estão em estudo:

    • o uso de vitamina E, vitamina C e creatina para melhorar o estado mitocondrial e as defesas antioxidantes, alterados nas AO; e
    • a administração de determinados precursores para “recarregar” os metabólitos deficientes no ciclo de Krebs.

Abreviaturas: Mx <> misturas

7. DOENÇAS DO CICLO DA UREIA

ETIOPATOGÉNESE

O ciclo da ureia ou de Krebs-Henseleit que, na sua forma completa, tem lugar somente no fígado, constitui a principal via metabólica comum para a excreção do azoto. A sequência de reacções que o integram, em parte na mitocôndria, em parte no citosol, converte (sobretudo a partir da glutamina e do glutamato) a amónia tóxica e outros compostos nitrogenados em produto não tóxico – a ureia – excretada através da urina.

Aos diferentes defeitos genéticos responsáveis por deficiência de uma ou mais enzimas que intervêm no ciclo (em número de oito – Figura 2) – correspondem diversas entidades clínicas adiante discriminadas em que se verifica hiperamoniémia. De referir, no entanto, que defeitos enzimáticos noutras vias metabólicas poderão secundariamente bloquear qualquer passo do ciclo da ureia.

FIGURA 2. Ciclo da ureia e vias alternativas de excreção de azoto. 1) Carbamil fosfato sintetase; 2) Ornitina transcarbamilase; 3) Arginino-succinato sintetase; 4) Arginino-succinato liase; 5) Arginase; 6) N-acetilglutamato sintetase; 7) Glutamina sintetase; 8) Citrina (transportador mitocondrial de aspartato-glutamato).

As vias alternativas de excreção do azoto, nomeadamente a conjugação da glicina com o benzoato, e da glutamina com o fenilacetato poderão ser aproveitadas como meio de tratamento dos doentes com défice de formação de ureia e hiperamoniémia.

Aspectos epidemiológicos

As doenças do ciclo da ureia (DCU) correspondem aos erros metabólicos hereditários dos mais frequentes (incidência cumulativa de 1/8.000).

Descrevem-se as seguintes entidades clínicas:

  • deficiência de ornitina transcarbamilase (OTC);
  • deficiência de arginino-succinato sintetase (AS) ou citrulinémia (vários tipos);
  • deficiência de arginino-succinato liase (AL);
  • deficiência de arginase ou hiperargininémia;
  • deficiência de glutamina-sintetase (GS);
  • dficiência de carbamil fosfato sintetase (CPS);
  • deficiência de N-acetilglutamato sintetase (NAGS); e
  • defeito da citrina.

Com excepção da deficiência da ornitina transcarbamilase ou OTC (de transmissão hereditária ligada ao cromossoma X e a forma mais comum de todas as doenças do ciclo da ureia), os outros defeitos são de transmissão autossómica recessiva. Como regra geral, os homozigotos com OTC do sexo masculino têm formas mais graves que os heterozigotos do sexo feminino; por outro lado, os heterozigotos do sexo feminino podem ter formas ligeiras, sendo que cerca de 75% são assintomáticos.

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações clínicas das doenças do ciclo da ureia são extremamente variáveis:

No RN aparentemente saudável com peso adequado à idade, após um intervalo livre por vezes inferior a 24 horas, ou de alguns dias, surge anorexia, recusa alimentar, vómitos, letargia, e/ou irritabilidade e taquipneia. Verifica-se deterioração rápida com alterações neurológicas, alterações do tono muscular, hiporreflexia, instabilidade vasomotora, hipotermia, apneia e convulsões, podendo seguir-se coma profundo e morte.

As complicações são: hemorragia cerebral e pulmonar; e, como sequela: grave atraso do neurodesenvolvimento. O diagnóstico inicial sugere habitualmente septicémia, sendo que a presença de alcalose respiratória, associada às manifestações descritas, poderá ser a chave para o diagnóstico.

A ureia plasmática muito baixa (1-2 mg/dL) é um dado relevante; portanto:

    • num RN gravemente doente com ureia de valor muito baixo, há que admitir doença do ciclo da ureia;
    • num RN em presença de alcalose respiratória, com hiato iónico normal e glicémia normal, sem cetoacidose, há igualmente que admitir doença do ciclo da ureia.

Após o período neonatal, as manifestações poderão ser menos agudas e mais variáveis: anorexia, letargia, vómitos, hepatomegália, má progressão ponderal, atraso do neurodesenvolvimento, episódios de irritabilidade; diplegia, tetraplegia espástica na deficiência da argininase (argininémia); alterações do cabelo (tricorexis nodosa) na deficiência da arginino-succinato liase.

No adolescente e no adulto: habitualmente verificam-se sintomas neurológicos e/ou psiquiátricos crónicos, com alterações do comportamento, por vezes bizarro, com desorientação, letargia, alterações do estado de consciência, e quadro de psicose. As referidas doenças poderão também manifestar-se por encefalopatia recorrente, geralmente associada a ingestão de elevado teor de proteínas, infecção, estresse, anestesia, estado catabólico ou, por vezes, sem causa aparente.

Na hiperargininémia, o quadro poderá ser diferente, caracterizando-se fundamentalmente por diplegia espástica, (por vezes interpretada como fazendo parte de paralisia cerebral), hiperactividade, ataxia, atetose, distonia e, raramente, coma e convulsões refractárias ao tratamento anticonvulsante.

Diagnóstico

O Quadro 1 mostra situações que, não sendo doenças do ciclo da ureia, podem cursar com hiperamoniémia.

QUADRO 1 – Situações que apresentam hiperamoniémia.

    • Deficiências de enzimas do ciclo da ureia (UCD)
    • Insuficiência hepática
    • Doenças dos ácidos orgânicos
    • Defeitos de oxidação dos ácidos gordos
    • Síndroma de Reye
    • Terapêutica com valproato
    • Choque hipovolémico
    • Hiperamoniémia transitória do RN
    • Síndroma HHH (hiperornitinémia, hiperamoniémia, homocitrulinúria)
    • Infecção por vírus Herpes simplex
    • Síndroma de hiperamoniémia e hiperinsulinismo
    • Miopatias mitocondriais, deficiência de piruvato carboxilase, deficiência de piruvato desidrogenase
    • Intolerância proteica lisinúrica
    • Asfixia perinatal
    • Insuficiência cardíaca congestiva
    • Tratamento com asparaginase
    • Infecção por bactérias urease positivas

 

Salienta-se que, das hiperamoniémias não devidas a artefactos, cerca de 2/3 correspondem efectivamente a DCU.

No que respeita ao diagnóstico das doenças do ciclo da ureia, é importante rever algumas definições, dando ênfase aos exames analíticos.

Assim, fala-se de hiperamoniémia quando o valor da amónia no sangue é > 80 µmol/L no RN, e > 50 µmol/L após os 28 dias de vida. Na prática, consideram-se valores normais, respectivamente os valores < 50 µmol/L no RN, e < 35 µmol/L após o período neonatal.

Num RN sem doença deste foro, mas com patologia relacionada com septicémia ou asfixia, raramente a amónia é > 180 µmol/L; se o valor for > 200 µmol/L há que suspeitar de doença metabólica, sendo que nas doenças do ciclo da ureia, e designadamente neste grupo etário, são atingidos valores de amónia > 1.500 µmol/L, sem cetoacidose e, geralmente, sem hipoglicémia.

Salienta-se, a propósito, que a hiperamoniémia é uma emergência médica.

Nas situações de suspeita clínica de doença do ciclo da ureia torna-se fundamental realizar de imediato um conjunto de análises básicas obedecendo a rigorosas condições técnicas de colheita e transporte (designadamente amostras de sangue e urina em recipientes acondicionados em gelo); no sangue – amónia, electrólitos, pH e gases, hiato iónico, lactato, glucose, ureia, creatinina, provas de função hepática e factores de coagulação; na urina – análise sumária.

Como análises especiais (em laboratório especializado) estão indicados os seguintes doseamentos: aminoácidos plasmáticos e urinários, ácidos orgânicos urinários, ácido orótico na urina, e perfil da carnitina e acilcarnitinas no plasma. Na deficiência de OTC verifica-se: aumento importante de ácido orótico na urina. Em todas as DCU há acumulação de glutamina (excepto na deficiência de glutamina sintetase/GS) e de alanina.

Os resultados obtidos quanto ao padrão de aminoácidos plasmáticos poderão ter valor diagnóstico para as entidades clínicas a seguir discriminadas: deficiência de arginino-succinato-sintetase (AS), de arginino-succinato liase (AL), de arginase, e de glutamina-sintetase (GS).

O diagnóstico pode ser confirmado, quer por estudo enzimático (leucócitos, fibroblastos, hepatócitos), quer por análise mutacional.

Salienta-se que o doseamento urgente da amónia no sangue deve fazer parte da investigação básica obrigatória em todos os doentes com encefalopatia não esclarecida, em qualquer idade.


Reiterando que a hiperamoniémia implica tratamento emergente, há no entanto que atender a uma eventual situação de coma hiperamoniémico com duração superior a 2-3 dias: a equipa médica responsável deverá discutir com os pais do paciente as opções a tomar.

Tratamento

O tratamento de emergência compreende:

  • interrupção imediata do suprimento proteico durante 24-48 horas;
  • aplicação imediata de sonda cânula ou cateter IV para suprimento energético elevado à base de soluto de glucose (a 10% se em veia periférica ou a 10-25% se em veia central); contudo, está indicada restrição de fluidos se houver suspeita de edema cerebral;
  • se os vómitos forem persistentes, pode usar-se ondansetron IV na dose de 0,15 mg/kg em 15 minutos, podendo repetir-se até 3 doses diárias;
  • introdução imediata de drogas eliminadoras de amónia:
    *benzoato de sódio até 500 mg/kg/dia, PO ou IV em 2 doses (1ª de 250 mg/kg em 2-4 horas; 2ª de 250 mg/kg nas próximas 20-22 horas);
    *fenilbutirato de sódio até 600 mg/kg/dia, PO ou IV em 2 doses (1ª de 250 mg/kg em 2-4 horas; 2ª de 350 mg/kg nas próximas 20-22 horas);
    *L-arginina PO ou IV (até 700 mg/kg/dia na citrulinémia e acidúria arginino-succínica); até 150 mg/kg/dia nas deficiências de ornitina transcarbamilase/ OTC, de carbamilfosfato-sintetase/CPS e de N-acetilglutamato-sintetase/ NAGS; também se usa o carbamil-glutamato nos defeitos de NAGS e CPS, o qual é activador da CPS, primeira enzima do ciclo da ureia – dose inicial de 100 mg/kg/dia, ulteriormente até 300 mg/kg/dia;
    *L-carnitina PO ou IV na dose de 200 mg/kg/dia, se o doente estiver submetido a tratamento com benzoato de sódio e emulsão de lípidos (AP);
  • técnicas de diálise; se a amoniémia for muito elevada (> 400 µmol/L), o doente estiver em coma, a amoniémia não descer significativamente nas primeiras 4 horas do tratamento atrás indicado, ou houver falência multiorgânica, estão indicadas técnicas de diálise: HD (hemodiálise), HF (hemofiltração) ou HDF (hemodiafiltração); em alternativa, diálise peritoneal, menos eficaz; não se deve fazer exsanguinotransfusão; o recurso à ECMO é muito eficaz;
  • introdução cautelosa da dieta de emergência sem proteínas nas primeiras 24-48 horas através de alimentação entérica (AE) e/ou alimentação parentérica (AP) consoante a gravidade da encefalopatia aguda, e intolerância digestiva;
  • após 24-48 horas sem proteínas, início de suprimento de proteínas- 0,5 g/kg/dia (na AP, sob a forma de aminoácidos) ou na AE através de fórmula infantil adequada à restrição proteica;
  • se surgirem convulsões, não usar valproato nem corticóides; os riscos nesta fase são hiperidratação, edema cerebral e má-nutrição;
  • se for necessário proceder a transfusão, usar apenas sangue fresco;
  • evitar a toxicidade de drogas; sendo impossível o respectivo doseamento sérico, utilizar o valor do hiato iónico: se > 15 mEq/L ou incremento de 6 mEq/L em relação a valor anterior, é provável o estado de toxicidade.

O tratamento de manutenção baseia-se em:

  • dieta hipoproteica com restrição de proteína natural de acordo com o tipo de doença, idade, peso, e tolerância individual, suplementada com mistura apropriada de aminoácidos;
  • administração de fármacos eliminadores de amónia, per os, como o fenilbutirato de sódio e/ou benzoato de sódio, cloridrato de arginina (excepto no defeito da arginase); na deficiência de arginina-succinato-liase (AL) a dose de arginina deverá ser muito mais baixa do que a usada na fase aguda (manutenção da arginina entre 50-200 µmol/L;
  • suprimento adequado de vitaminas, minerais e oligoelementos;
  • os fármacos devem ser administrados durante as principais refeições para rendibilizar a remoção da amónia.

Os objectivos do tratamento são:

  • manter amoniémia < 80 µmol/L, e glutamina < 800-1.000 µmol/L;
  • manter ausência de ácido orótico na urina;
  • manter a normalidade dos níveis plasmáticos de proteínas totais, de albumina e pré-albumina, de aminoácidos essenciais (manter Isol > 25 µmol/L – valor baixo é marcador de má-nutrição proteica) e de carnitina total (> 30 µmol/L).

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INTRODUÇÃO À CLÍNICA DAS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Importância do problema

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM), embora raras, estão associadas a morbilidade e mortalidade significativas em relação, sobretudo, com o atraso no diagnóstico e a aplicação de medidas terapêuticas indicadas, já no período neonatal.

Muitas destas doenças são provocadas por mutações em genes que codificam proteínas específicas; o resultado final de tais anomalias será o compromisso variável da capacidade funcional daquelas (enzimas, receptores, proteínas de transporte, componentes da membrana celular ou de outras estruturas celulares como ácidos nucleicos, lisossomas, peroxissomas, aparelho de Golgi, mitocôndrias, etc.) originando quadros clínicos de expressão diversa.

Até à actualidade, foram identificados mais de seis centenas de defeitos enzimáticos responsáveis por tais doenças hereditárias. Foram mapeados, clonados, isolados e sequenciados muitos dos genes envolvidos e catalogado um enorme número de mutações responsáveis por heterogeneidade bioquímica e genética.

Também os progressos impressionantes no diagnóstico e terapêutica contribuiram para mudar o perfil e o prognóstico deste tipo de patologia.

Na sua maioria (cerca de 60%), trata-se de doenças de transmissão autossómica recessiva, sendo cerca de 20% de transmissão autossómica dominante, 12% ligadas ao cromossoma X e 8% com padrão de hereditariedade mitocondrial. Salienta-se que podem ocorrer em qualquer idade, desde a vida fetal até à idade adulta.

Como se depreende, tais patologias deverão ser assistidas e orientadas inicialmente em centros especializados de referência, embora o seu seguimento se possa realizar em instituições menos diferenciadas, mas sempre em estreita ligação com aqueles.

Rastreio

A detecção no período neonatal de algumas patologias através do rastreio universal, visando a identificação de diversas situações, tem sido realizada ao longo de várias décadas. Com os avanços da tecnologia, muitas doenças genéticas/metabólicas podem ser diagnosticadas ainda antes do início das manifestações clínicas. É este o conceito de diagnóstico precoce.

A escolha das doenças a rastrear implica a obediência a um conjunto de condições básicas:

  • a possibilidade de diagnóstico confiável numa fase precoce da vida, quando os sinais são inespecíficos, inexistentes ou raros; e
  • a existência de uma terapêutica considerada eficaz.

Um rastreio implica, igualmente, a ponderação de um conjunto de questões de ordem prática, relacionadas, nomeadamente, com:

  • a tecnologia a utilizar;
  • o controlo laboratorial de qualidade; e
  • a garantia das condições, a sua realização de forma ininterrupta ao longo do tempo.

Uma vez rastreados os casos de possível doença, devem os mesmos ser encaminhados para centros de referência para confirmação diagnóstica e tratamento específico.

O Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) é um programa de saúde pública que teve o seu início em 1979 no âmbito do Instituto de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães com o rastreio da fenilcetonúria (doença hereditária do metabolismo-DHM) e, posteriormente, em 1981, com o do hipotiroidismo congénito.

A partir de 2004 passaram a ser incluídas progressivamente no Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) outras doenças hereditárias do metabolismo (rastreio alargado), utilizando a espectrofotometria de massa em tandem, sendo em 2008 já rastreadas 26 patologias (25 metabólicas e o hipotiroidismo congénito). Como dados globais nacionais importa referir que até final de 2015 foram rastreados mais de três milhões de recém-nascidos.

De acordo com o Relatório do PNDP de 2015, o painel de rastreio das DHM em Portugal abrange as seguintes doenças:

  1. Aminoacidopatias/Doenças do ciclo da ureia
    Fenilcetonúria/hiperfenilalaninémias
    Tirosinémia tipo I
    Tirosinémia tipos II/III
    Leucinose (MSUD)
    Homocistinúria clássica
    Hipermetioninémia (def. MATI/III)
    Citrulinémia tipo I
    Acidúria arginino-succínica
    Hiperargininémia
  2. Acidúrias orgânicas
    Acidúria propiónica (PA)
    Acidúria metilmalónica (MMA, Mut-)
    Acidúria isovalérica (IVA)
    Acidúria 3 – hidroxi-3-metilglutárica (3-HMG)
    Acidúria glutárica tipo I (GA I)
    3-Metilcrotonilglicinúria (def. 3-MCC)
    Acidúria malónica
  3. Doenças da Beta-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia curta (SCHAD)
    Def. desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia média (MCAD)
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia longa (LCHAD)/TFP
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia muito longa (VLCAD)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase I (CPT I)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase II (CPT II)/CACT
    Def. múltipla das desidrogenases dos ác. gordos (MADD)/Acidúria glutárica tipo II
    Def. primária em carnitina (CUD)

Em Portugal, desde o início do PNDP até final de 2015, foram identicadas DHM com a prevalência de de 1/2.333.

No ano de 2015, em 85.058 recém-nascidos rastreados foram identificadas 30 DHM fazendo parte do painel (prevalência de 1/2.835) assim distribuídas:

  • MCAD…..12;
  • PKU/Hiperfenilalaninémia…..7;
  • MSUD…..3;
  • MAT I/III…..3;
  • MADD…..1;
  • VLCAD….1;
  • CACT…..1;
  • TIR II/III…..1;
  • MMA…..1;

Manifestações clínicas gerais

Poderá suspeitar-se de DHM nas seguintes circunstâncias:

  • no período pré-natal, existindo antecedentes familiares de doença e de mortes inexplicadas;
  • no período neonatal, verificando-se:
    • letargia, hipotonia, convulsões, deterioração neurológica, coma
    • hepatosplenenomegália, hipoglicémia, falência hepática, icterícia
    • cardiomiopatia, falência cardíaca, morte súbita, hidropisia não imune
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • acidose metabólica grave, cetose, hiperamoniémia, hiperlactacidémia
    • sinais dismórficos
    • doença grave inexplicada;
  • no período pós-neonatal, verificando-se:
    • dismorfia facial, alterações esqueléticas
    • vómitos intermitentes inexplicados
    • atraso do desenvolvimento psicomotor/sensorial
    • ataxia recorrente
    • letargia
    • coma recorrente (metabólico, neurológico ou hepático)
    • convulsões
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • icterícia
    • hepatomegália
    • acidose metabólica
    • luxação do cristalino
    • cabelo anormal
    • hipopigmentação
    • cálculos renais, etc..

Como se disse, estas doenças podem manifestar-se em qualquer idade, chamando-se a atenção para formas clínicas de apresentação tardia, no adulto, por vezes interpretadas erroneamente como processos degenerativos, vasculares, etc..

Exames laboratoriais

A suspeita de DHM com base em dados obtidos pelo clínico (anamnese e exame objectivo) implica a realização de análises laboratoriais (sempre que possível, antes de qualquer terapêutica) em regime hospitalar para avaliação de determinados parâmetros em simultâneo no sangue e urina (e LCR perante contexto clínico de encefalopatia): uma colheita, quer para estudo imediato, quer para eventual estudo ulterior mais sofisticado a que adiante se fará referência.

No sangue estão indicadas, de imediato, as seguintes análises: hemograma, ionograma, hiato iónico, glicemia, provas de função hepática, provas de função renal, estudo da coagulação, pH e gases, ácido úrico, amónia e lactato; e na urina: pesquisa de cetonúria, anotação da cor, odor e pH.

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