DOENÇA POR VÍRUS ÉBOLA

Definição e importância do problema

Descrito pela primeira vez em 1976, o vírus Ébola é altamente contagioso, patogénico e associado a elevada taxa de letalidade. Esta última, combinada com a ausência de tratamento e vacinação específicos, tornam-no uma ameaça para a saúde pública; por outro lado, tal agente microbiano constitui uma potencial arma de bioterrorismo.

Aspectos epidemiológicos

O vírus Ébola foi descoberto em 1976 em doentes com quadro de febre hemorrágica em dois locais próximos: inicialmente, no sul do Sudão e, depois, no norte do Zaire (actual República Democrática do Congo). O agente identificado foi nomeado de acordo com um rio no norte da República Democrática do Congo, o rio Ébola.

A posteriori foi reconhecido que as epidemias haviam sido provocadas por estirpes diferentes, a estirpe Sudão e Zaire, respectivamente.

Em 1994 foi identificada pela primeira vez a terceira espécie de vírus Ébola, a estirpe Côte d’Ivoire ou Tai Forest, isolada num etnólogo. Este tinha trabalhado na floresta Tai, na Costa do Marfim e realizado a autópsia de um chimpanzé originário de região onde tinham falecido vários pacientes afectados por febre hemorrágica.

A quarta espécie, a espécie Bundibugyo, isolada no Uganda em 2007, é geneticamente semelhante à estirpe Côte d’Ivoire. Por último, a espécie Reston, foi descrita em 1989 em Reston, nos Estados Unidos da América do Norte, em macacos importados das Filipinas; relativamente à mesma, não são conhecidos, até à data, casos de doença em seres humanos.

Desde a sua descoberta em 1976 até 2012, foram registados 2.387 casos de infecção por vírus Ébola e 1.590 mortes (taxa de letalidade 66,6%), designadamente, na África equatorial (Gabão, Sudão, República Democrática do Congo e Uganda), em que o vírus Ébola é endémico.

No final de 2013 a doença pela estirpe Zaire ebolavirus foi identificada pela primeira vez na África ocidental, mais precisamente na Guiné-Conacri, tendo sido confirmada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Março de 2014.

Atingindo posteriormente os países vizinhos (Libéria, Serra Leoa, Nigéria, Senegal e Mali), segundo dados da OMS a infecção por vírus Ébola passou a ser considerada a maior epidemia da história da doença, tendo-se contabilizado, até Março de 2016, 28.608 casos confirmados, suspeitos e prováveis, incluindo 11.305 mortes.

O aparecimento da doença pela primeira vez numa zona urbana, a elevada densidade populacional dos países atingidos, o vasto movimento de pessoas entre estes, os rituais religiosos praticados e os precários cuidados de saúde são apontados como os principais factores causais da elevada magnitude da epidemia.

Na idade pediátrica registaram-se mais de 5.000 casos, com uma mortalidade de 80% em crianças abaixo dos 5 anos (e 95% abaixo de um ano de idade); estes valores são superiores aos registados nos adultos (faixa etária 15-44 anos, com mortalidade de 70,8%). De salientar que mais de 16.000 crianças ficaram órfãs.

Curiosamente, é baixa a proporção de crianças doentes (17%), não sendo conhecido o motivo pelo qual as crianças são menos atingidas do que os adultos. Equaciona-se que a incidência referida esteja relacionada, não só com uma menor susceptibilidade à infecção, mas também, e sobretudo, com uma menor exposição à doença.

Etiopatogénese

O género Ebolavirus é composto por vírus RNA de cadeia única, não segmentado, com 80 nm de diâmetro e comprimento variável que pode atingir 14.000 nm. Juntamente com o género Marburgvirus, constitui a família Filoviridae (do latim “filum”, filamentoso). (Figura 1)

Trata-se de vírus citoplasmáticos intracelulares que atingem principalmente as células endoteliais e os macrófagos (target cells). Sendo resistentes ao frio, e susceptíveis à radiação solar, à luz artificial, ao calor e a químicos como sabão, álcool e outros antissépticos, a sua sobrevivência depende do hospedeiro.

Vírus Ébola e Marburgo, embora antigenicamente distintos, causam doença semelhante, anteriormente classificada como “Febre hemorrágica”. Contudo, esta designação actualmente é considerada incorrecta para a Doença por Vírus Ébola (DVE), uma vez que, apenas numa baixa percentagem de doentes se desenvolve hemorragia significativa, habitualmente já na fase terminal.

Como referido anteriormente, são conhecidas cinco estirpes de vírus Ébola, apelidadas de acordo com a região onde foram identificadas pela primeira vez: Zaire, Sudão, Costa do Marfim (Tai forest ebolavirus), Bundibugyo e Reston.

FIGURA 1. Estrutura do vírus Ébola (In Center for Disease Control and Prevention).

Destas, apenas a estirpe Reston não provoca doença conhecida no humano. A mais virulenta é a estirpe Zaire, com taxas de mortalidade 55%-85%, seguindo-se a estirpe Sudão, com taxas de 50%, e a Bundibugyo, com 30%. A estirpe Côte d’ Ivoire infectou apenas uma pessoa, que sobreviveu.

O vírus Ébola infecta apenas mamíferos, sendo a doença considerada uma zoonose. O principal reservatório animal é o morcego, cuja infecção é assintomática, ao contrário do que acontece nos restantes mamíferos. Sequências do genoma de Ebolavirus foram encontradas em três espécies de morcegos: Myonycteris torquata, morcego da fruta, implicado no surto de Ébola da África Ocidental, e dois morcegos da fruta, mais raros, o Hepomops franquetti e o Hypsignathus monstrosus, habitando na floresta da África central.

O vírus é transmitido ao Homem através do contacto com animais infectados, como morcegos, macacos e várias espécies de roedores. Por sua vez, o caso index transmite facilmente o vírus, atendendo à sua rápida replicação celular e elevada carga vírica no sangue e fluídos corporais.

O contágio faz-se através do contacto com órgãos, sangue ou outros fluidos corporais (saliva, urina, vómito) de doentes infectados, cadáveres ou materiais contaminados, não estando ainda esclarecidas outras possíveis vias de contágio em que o vírus foi identificado (leite materno e aerossóis).

Manifestações clínicas

Após um período de incubação, em média, de quatro a sete dias (limites ~ 2-21 dias), a doença manifesta-se de forma abrupta e inespecífica através de febre, astenia, mialgias, cefaleia frontal intensa e odinofagia (fase prodrómica com duração média de 10 dias).

Cinco a sete dias após o início dos sintomas, surge exantema maculopapular não pruriginoso no tronco e membros superiores, que se generaliza, tornando-se frequentemente hemorrágico e, posteriormente, descamativo. O exantema é acompanhado de enantema do palato duro, conjuntivite e edema das mucosas.

Na segunda fase da doença surge envolvimento gastrintestinal traduzido por anorexia, náuseas, dor abdominal, vómitos e diarreia, que poderão provocar desidratação, hipotensão e choque. Pode ocorrer ainda envolvimento neurológico, incluindo meningoencefalite ao 10º dia (alteração do estado de consciência, convulsões, rigidez da nuca), e envolvimento ocular com uveíte ao 14º dia (fotofobia e visão “turva”).

Em mais de metade dos casos surgem sinais e sintomas de discrasia hemorrágica prolongada (sobretudo, diarreia com sangue, epistaxe, hematemese, petéquias, equimoses), traduzindo habitualmente a fase final de doença, com falência multiorgânica, coma e morte.

Diagnóstico

Caso suspeito

A OMS define como caso suspeito o que preenche os critérios descritos no Quadro 1

FONTE: Orientação da OMS nº 012/2014, actualizada a 13/11/2015, pela DGS: Doença por vírus Ébola. Definição de Caso e Procedimentos Gerais

Critérios clínicos

e

Critérios epidemiológicos

Febre associada ou não aos seguintes sintomas/sinais:

    • Náuseas, vómitos, diarreia, anorexia, dor abdominal
    • Mialgias, astenia, cãibras, odinofagia
    • Cefaleia, estado de confusão, prostração
    • Conjuntivite, faringe hiperemiada
    • Exantema maculopapular, predominante no tronco
    • Tosse, dor torácica, dificuldade respiratória e/ou dispneia;
    • Hemorragias

Em estádios mais avançados da doença poderá ocorrer insuficiência renal e hepática, distúrbios da coagulação, entre os quais coagulação intravascular disseminada (CIVD) e evolução para falência multiorgânica.

Estadia (viagem ou residência) em área afectada num período de 21 dias antes do início dos sintomas.

ou

Contacto de proximidade com doente nos últimos 21 dias.

Caso provável

  • Doente preenchendo os critérios de caso suspeito e tenha sido validado por profissional de saúde;
  • Caso suspeito falecido no qual não tenha sido possível recolher produtos biológicos para análise, mas que tenha tido ligação epidemiológica comprovada com um caso confirmado, ou ligação epidemiológica a uma área afectada e sintomatologia compatível com doença por vírus Ébola.

Caso confirmado

Caso provável com confirmação laboratorial.

Exames complementares

Os resultados dos exames laboratoriais evidenciam: leucopénia (linfopénia e, posteriormente, neutrofilia; granulócitos imaturos e linfócitos anormais); trombocitopénia; elevação das transaminases; coagulopatia (tempo de protrombina e tempo parcial de tromboplastina prolongados, D-dímeros aumentados); insuficiência renal aguda (creatinina e ureia séricas aumentadas); proteinúria; distúrbios hidro-electrolíticos (hiponatrémia, hipocaliémia, hipomagnesiémia e hipocalcémia).

O diagnóstico é confirmado pela detecção de ARN, no sangue ou noutros fluidos corporais, por ensaio imunoenzimático, ou por teste de ácidos nucleicos (polymerase chain reaction ou PCR). Esta última técnica, com sensibilidade e especificidade elevadas, permite diagnóstico com rapidez; contudo, é dispendiosa.

Durante a epidemia de 2014-2015, foram usados testes rápidos para diagnóstico, através da identificação de sequências específicas de ARN no sangue do doente pela técnica de PCR (Rapid Test PCR). Na maioria dos casos, a infecção é detectada por este método, o qual permite identificar ARN do vírus três dias depois do início dos sintomas. A repetição do teste poderá ser necessária quando o mesmo tiver sido efectuado antes deste período de tempo. A doença é excluída se o resultado da PCR for negativo, passadas mais de 72 horas após o início dos sintomas.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da DVE faz-se com gripe, malária, febre tifóide, sarampo, dengue, febre de Lassa, doença meningocócica e doença de Marburgo.

Actuação perante caso suspeito

Na presença de um doente que tenha estado até 21 dias antes em país atingido pelo surto de Ébola, e que apresente febre ou outra sintomatologia sugestiva (caso suspeito), deve: – evitar-se o contacto físico com outras pessoas; – manter-se uma distância mínima de dois metros; e – permanecer em área de isolamento com máscara cirúrgica. Cabe ao profissional de saúde calçar luvas e validar o caso suspeito através de linhas de apoio da DGS.

Caso se confirme que se trata, de facto, de um caso suspeito, este deve ser transferido para um dos hospitais de referência, onde ficará internado em quarto de isolamento com pressão negativa.

Somente os profissionais com formação específica e treinados podem ter contacto directo com o doente, e todo o material (de equipamento e de terapêutica) deve ser guardado no quarto. Todos os procedimentos, limitados ao necessário de forma a minorar a exposição à doença, devem ser efectuados utilizando o Equipamento de Protecção Individual (EPI).

Os produtos biológicos são posteriormente enviados em condições de segurança para o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) para realização de PCR, habitualmente entre o 3º-10º dias após o início dos sintomas.

Deve ser realizado em simultâneo diagnóstico diferencial com infecção por vírus Marburgo e Lassa, e por Plasmodium sp.

 Tratamento

Medidas gerais

Todos os doentes devem ser internados em isolamento para monitorização cardiorrespiratória, balanço hidroelectrolítico e tratamento de suporte. Este deve ser iniciado o mais precocemente, com o objectivo de evitar a depleção de volume intravascular, corrigir distúrbios como hiponatrémia, hipocaliémia, hipomagnesiémia e hipocalcémia) e evitar complicações do choque.

Volumes maciços de solutos cristalóides (soro fisiológico ou lactato de Ringer) poderão ser necessários. Outras medidas sintomáticas incluem analgésicos e antipiréticos, antieméticos, e derivados de sangue, em caso de coagulopatia ou hemorragia.

Sendo o vírus transmitido através do contacto directo ou indirecto com sangue ou outros fluidos corporais (incluindo urina, fezes, vómito, suor, lágrimas, sémen, leite materno e saliva), gotículas ou órgãos de doentes, reitera-se que todos os profissionais de saúde devem usar material de protecção adequado (EPI) e cumprir protocolos de prevenção da infecção no âmbito da assistência a estes doentes. A colocação e remoção correctas do EPI tem elevada importância. Salientando que o momento de remoção está associado a maior risco de contaminação, conclui-se que o mesmo deverá ser supervisionado por outro profissional treinado.

O EPI deve cobrir toda a pele e mucosas, deve ser impermeável, de uso único, e composto por: fato de bloco operatório, fato de protecção integral, bata, cogula, touca, óculos de protecção, viseira de protecção facial total, protecção respiratória (máscara FFP3), luvas e protecção de calçado.

 Tratamento específico

Até à data, não estão aprovados fármacos específicos, quer para o tratamento de doentes infectados, quer para profilaxia pós-exposição. Importa referir que estão em estudo o favipiravir (análogo nucleósido que inibe a replicação de vírus ARN, disponível para crianças com idade superior a 1 ano) e o frincidofovir (análogo acíclico nucleósido em fase III de investigação, usado no tratamento de infecções porcitomegalovírus, poxvírus e outros vírus ADN).

Plasma e sangue de doentes convalescentes foram amplamente usados durante o surto da África ocidental. Porém, o seu benefício continua controverso dada a escassez de estudos aleatorizados duplamente cegos e de estudos que avaliem a sua eficácia enquanto tratamento isolado. Trata-se de uma terapêutica segura, sem efeitos secundários a curto prazo, prática, e com a vantagem de conferir anticorpos contra a estirpe do vírus em circulação durante um surto. Contudo, de acordo com os resultados dos estudos realizados nesta área, não se verificou diminuição da mortalidade com a sua utilização, excepto em crianças com menos de 5 anos e em grávidas. Por outro lado, existe a possibilidade de o plasma e o sangue administrados ter proveniência de convalescentes com coinfecções, eventualmente não detectadas quando a técnica não é realizada em condições adequadas, ou quando os dadores não são correctamente seleccionados. De salientar que este possível “cenário” poderá verificar-se em países em desenvolvimento durante um surto.

Vários estudos têm comprovado protecção contra o vírus em mamíferos não-humanos com a utilização de anticorpos monoclonais, em especial com ZMapp; este composto, resultando de uma combinação de três diferentes anticorpos monoclonais específicos do vírus Ébola, deve ser administrado em 3 doses (dias 0, 3 e 6). Tendo sido demonstrada a eficácia de tal terapêutica nas seguintes circunstâncias:

  • No tratamento de macacos infectados sintomáticos; e
  • Em dois profissionais de saúde que contraíram a doença durante o surto de 2015, poderá concluir-se que a mesma tem vantagens em relação à administração de plasma e sangue de doentes convalescentes. Contudo, não está disponível.

Prognóstico

Os doentes que sobrevivem, habitualmente mostram sinais de melhoria entre o 6º e 10º dias de doença, altura em que a virémia diminui e os resultados das serologias específicas evidenciam positividade (IgM e IgG). Nestes casos, a OMS recomenda a alta hospitalar dos doentes assintomáticos com dois testes negativos pela técnica PCR, com intervalo de 48 horas.

São considerados factores de mau prognóstico: idade superior a 45 anos; presença de manifestações gastrintestinais (diarreia), hipoxémia, hipotensão e choque; e carga vírica ≥ 10 milhões de cópias/mL.

Durante o surto da África Ocidental, foram identificadas várias sequelas de início precoce durante a recrudescência, admitindo-se estarem relacionadas com uma elevada carga vírica durante a infecção. As manifestações mais frequentes são: articulares (artralgia em 76% dos casos, sobretudo oligoarticular e bilateral), oftalmológicas em 60% (visão “turva” 38%, uveíte 18%) e auditivas (24%, sendo mais frequentes os acufenos e diminuição subjectiva da acuidade auditiva).

Nas crianças e adolescentes, a prevalência de sequelas precoces é mais baixa, de acordo com estudo realizado na Serra Leoa: uveíte – 20%, e restantes manifestações oculares – 22%; sequelas auditivas – 22%, e artralgias – 20%.

Recorrência e reactivação

O vírus pode persistir em locais imunologicamente protegidos, como leite humano, sémen, fluidos vaginais, urina, suor e humor aquoso, levando ao reaparecimento de sintomas em sobreviventes, isto é, à recorrência. O potencial de infecção é confirmado através de exame cultural, e não por PCR, esta última negativando mais tardiamente. A persistência do vírus nestes locais tem como risco a transmissão do mesmo a partir de indivíduos assintomáticos ou em recrudescência, bem como o risco de reactivação da DVE.

O fenómeno de reactivação foi pela primeira vez comprovado numa médica, na qual se desenvolveu uveíte nove semanas após DVE (situação clínica associada a vírus viável no humor aquoso). Posteriormente, o fenómeno de reactivação verificou-se também: – em doentes com meningite e vírus Ébola viável no LCR; e – em grávidas com virémia negativa, mas com carga vírica persistente no líquido amniótico, placenta e no feto. Esta última situação tem como implicações práticas a necessidade de protecção durante o parto.

A transmissão da DVE através de fluidos de doentes assintomáticos que recuperaram da DVE ainda não é certa, tendo sido comprovada apenas num caso em que houve contágio por via sexual, 6 meses depois, verificando-se similitude do perfil genético da estirpe identificada nos dois doentes. O reconhecimento desta via de transmissão é de elevada importância para a Pediatria, pelo risco de transmissão vertical e pelas opções relativamente ao aleitamento materno.

Para além da persistência crónica do vírus, há também risco de reinfecção, ou seja, de susceptibilidade para novas infecções por vírus Ébola em sobreviventes. Este aspecto é controverso pois, apesar de se considerar imune um doente que tenha tido DVE, na verdade sabe-se que perante elevada carga vírica, pode haver reinfecção. Este risco é muito variável, mas alerta para a necessidade de indivíduos, que tenham tido DVE, continuarem a usar meios de protecção ao contactar com doentes, especialmente profissionais de saúde.

Notas importantes:

1 – O nível de anticorpos necessário para conferir protecção ainda não está determinado; 2 – A carga vírica necessária para haver reinfecção também ainda não está determinada.

Prevenção

  • O cumprimento de medidas de prevenção e controlo da doença, bem como o uso de equipamentos de protecção pessoal pelos profissionais de saúde, são essenciais para o controlo do surto.
  • Por outro lado, todos os indivíduos assintomáticos, que tenham sido expostos ao vírus, devem ser vigiados durante 21 dias após o último contacto com o doente de forma a identificar precocemente sinais e sintomas da doença.
  • A transmissão assintomática por outros fluidos, nomeadamente leite materno e por via sexual, continua controversa, obrigando a medidas de protecção após recuperação clínica por um período de tempo ainda indeterminado.
  • O vírus Ébola permanece no leite materno até 15 dias após o início dos sintomas; todavia, até à data, não está comprovado que o aleitamento com leite humano seja uma via de transmissão.
  • Ainda assim, mães com suspeita de infecção não devem amamentar até exclusão da doença. Contudo, a OMS alerta para o risco-benefício desta medida em países em desenvolvimento, uma vez que o risco de desnutrição e de infecções é superior ao risco de contágio.
  • Relativamente à via sexual, devem ser usados métodos barreira durante 12 meses após a cura, uma vez que o vírus permanece em fluidos corporais (no sémen até nove meses e em secreções vaginais até um mês), mesmo na ausência de virémia.
  • Tal como já referido anteriormente, devem ser usados meios de protecção durante o parto de grávidas que tenham tido DVE.
  • Por fim, apesar de não ter sido provado cientificamente em oito estudos publicados que o vírus está presente na saliva, vómito e expectoração durante a fase de convalescença, são necessários mais estudos para confirmar este facto.
  • Várias vacinas encontram-se em fase experimental, não tendo sido aprovada nenhuma até à actualidade.
  • Demonstrou-se que duas das referidas vacinas são seguras e imunogénicas:
    • uma, incluindo adenovírus tipo 3 de chimpanzé (ChAd3) com glicoproteínas de superfície da estirpe Zaire ebolavirus; e
    • outra, que usa o vírus da estomatite vesicular (VSV) com glicoproteínas
  • Relativamente a esta última (em fase III de estudo), admite-se que possa prevenir a doença quando administrada após exposição.
Em artigo recente da revista Lancet, era publicada a seguinte afirmação. “On Nov 12, 2019, WHO announced the first prequalification of an Ebola vaccine.”

BIBLIOGRAFIA

Bouazza N. Favipiravir for children with Ebola. Lancet 2015;14:603-604

Bray M. Epidemiology and pathogenesis of Ebola virus disease. Up to Date. Waltham MA: Wolters Kluwer, 2019

Bray M, Chertow D. Treatment and prevention of Ebola virus disease. Up to Date. Waltham MA: Wolters Kluwer, 2019

Bray M, Chertow D. Clinical manifestations and diagnosis of Ebola virus disease. Up to Date. Waltham MA: Wolters Kluwer, 2019

Burki T. Ebola virus vaccine receives prequalification. Lancet 2019;394:1893. www.thelancet.com

Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ, Hotez P (eds). Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014

Chughtai AA, Barnes M, Macintyre CR. Persistence of Ebola virus in various body fluids during convalescence: evidence and implications for disease transmission and control. Epidemiol Infect 2016;1:9-11

Feldmann H, Sprecher A, Geisbert TW. Ebola. NEJM 2020;382:1832-1842

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gavotto A, Muanza B, Delion F, et al. Chikungunya disease among infants in French West Indies during the 2014 outbreak. Arch Pédiatr 2019;26:259-262

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman – Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Gostin L, Phelan A, Coutinho AG, et al. Ebola in the Democratic Republic of the Congo: time to sound a global alert? Lancet 2019;393:617-620

Henwood PC. Imaging an outbreak-ultrasound in an Ebola treatment unit. NEJM 2019;381:6-9

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw Hill Education, 2018

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kourtis AP. Ebola Virus Disease – Focus on Children. Pediatr Infect Dis J 2015;34:893-897

Lamontagne F, Clément C, Kojan R, et al. The evolution of supportive care for Ebola virus disease. Lancet 2019;393:620-621

MacIntyre CR, Chughtai AA. Recurrence and reinfection- a new paradigm for the management of Ebola virus disease. Int J Infect Dis 2016;43:58-61

Mattia JG, Vandy MJ, Chang JC, et al. Early clinical sequelae of Ebola virus disease in Sierra Leone: a cross-sectional study. Lancet Infect Dis 2016;16:331-338

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nina J. Ebolavirosis: a 2014 Review for clinicians. Acta Med Port 2014;27:625-633

Olupot-Olupot P. Ebola in children. Epidemiology, clinical features, diagnosis and outcomes. Pediatr Infect Dis J 2015;34:314-316

Regules JA, Beigel JH, Paolino KM, et al. A Recombinant vesicular stomatitis virus Ebola vaccine-preliminary report. N Engl J Med 2015. online. DOI: 10.1056/NEJMoa1414216.

Trapido J. Ebola: public trust, intermediaries, and rumour in the DR Congo. Lancet Infect Dis 2019;19:457-458

Uyeki TM, Mehta AK, Davey RT, et al. Clinical management of Ebola virus disease in the United States and Europe. N Engl J Med 2016;374:636-646

van Griensven J, Edwards T, de Lamballerie X, et al. Evaluation of convalescent plasma for Ebola virus disease in Guinea. N Engl J Med 2016;374:33-42

van Griensven J, De Weiggheleire A, Delamou A, et al. The use of Ebola convalescent plasma to treat Ebola virus disease in resource-constrained settings: a perspective from the field. Clin Infect Dis 2016;62:69-74

World Health Organization, Ebola Data and Statistics, March 2016. Geneva: WHO ed, 2016

World Health Organization Ebola Response Team, Agua-Agum J, Ariyarajah A, et al. Ebola virus disease among children in West Africa. N Engl J Med 2015;372:1274-1277

DENGUE E OUTRAS ARBOVIROSES TROPICAIS

Introdução

Entre as arboviroses tropicais, surgem três entidades clínicas de grande importância epidemiológica e de saúde pública, sobretudo na América Latina, transmitidas pelo mosquito Aedes. Trata-se da Dengue, da Doença por vírus Chikungunya e da Doença por vírus Zica. A Dengue, depois da Malária, é considerada a mais importante doença transmitida por vector na actualidade. Recorda-se, a propósito, a definição de Arbovírus <> abreviatura do termo em Inglês-arthropod-borne virus.

Neste capítulo é dada ênfase à Dengue, e à Doença por vírus Chikungunya. A Doença por vírus Zica é abordada no Capítulo sobre Infecção Congénita, na Parte sobre Perinatologia e Neonatologia (XXXI).

DENGUE

Definição

A dengue, incluída no grupo das chamadas febres hemorrágicas víricas, é uma doença infecciosa aguda transmitida ao homem pela picada do mosquito, vector do género Aedes infectado com o vírus da dengue, vírus de RNA da família Flaviridae, género Flavivirus, com 4 serótipos, DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4.

Frequentemente autolimitada e benigna, a doença pode, no entanto, assumir formas graves e fatais, com número crescente da forma clínica chamada dengue grave, na actual nomenclatura, com uma mortalidade ~ 2,5%.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A nível mundial estima-se que ocorram anualmente 50 a 100 milhões de novos casos, englobando cerca de 500 mil novos casos de dengue grave. Cerca de 2.500 milhões de pessoas no mundo encontram-se em situação de risco de padecer da doença, o que é explicável sobretudo pelo crescimento populacional, pela urbanização não planificada, pelo inadequado ordenamento ambiental, pela migração e turismo, e pelas alterações climáticas.

A doença é endémica em mais de 100 Países distribuídos predominantemente pelas grandes regiões do globo – África, América do Sul, Mediterrâneo Oriental, Sueste Asiático e Pacífico Oeste. Em 2010, de acordo com dados da OMS, surgiram em todo o mundo cerca de 390 milhões de casos de dengue. No Brasil, num surto ocorrido em 2013, foram notificados 1,5 milhões de casos, 7.000 dos quais corresponderam a formas graves.

Na Europa, em 10 países, têm sido descritos casos importados, sobretudo do Sueste Asiático, realçando-se o primeiro caso fatal surgido no Reino unido em 1997. No continente europeu têm sido relatados anualmente entre 100 e 170 casos importados, quase metade originados no Sueste Asiático.

Quanto a casos autóctones na Europa, importa referir o seu surgimento recente na França e Croácia.

Em Portugal, na Região Autónoma da Madeira (RAM), o vector Aedes aegypti foi detectado pela primeira vez em 2004; o primeiro surto, notificado em 2012, manteve-se até 2013, tendo sido identificado o serótipo DEN-1 com origem na Venezuela, Colômbia e Norte do Brasil.

Até à data, em Portugal Continental ainda não foram identificados mosquitos do género Aedes, pelo que não parece existir o risco de emergência de casos autóctones.

Refira-se que o Aedes aegypti e o vírus da dengue são endémicos em todos os continentes excepto na Europa e na Antártida; a dengue grave ocorre preferencialmente na Ásia e Américas. (Figura 1)

Etiopatogénese

A doença é causada por qualquer dos serótipos do vírus anteriormente descritos (DEN 1, 2, 3 e 4). Actualmente já se conhecem mutantes, mas o respectivo impacte clínico não está ainda estabelecido.

A infecção por um serótipo produz imunidade específica permanente e, ainda que não imunidade cruzada para os outros serótipos, pode verificar-se imunidade cruzada heterotípica, a qual se pode manter entre 2 e 12 meses.

Os vírus são transmitidos por um eficiente vector existente em extensas áreas do Globo, particularmente em regiões tropicais e subtropicais. O mosquito/artrópode Aedes aegypti, mais frequente nas Américas e a principal espécie responsável pela transmissão a nível mundial, tem hábitos diurnos, domésticos e preferência por recipientes com água onde deposita ovos e larvas; um único mosquito infectado pode transmitir o vírus a vários indivíduos numa pequena área.

Importa referir que o artrópode a seguir, em importância, é o Aedes albopictus (Figura 2), confinado ao Sueste Asiático. Noutras regiões têm papel mais reduzido o Aedes polynesiensis e o Aedes scutellaris (Figura 3).

A transmissão do vírus da dengue por picada do artrópode infectado (originando virémia) depende da estirpe do mesmo vírus, do vector, da susceptibilidade da população e dos factores ambientais já descritos anteriormente.

Pode verificar-se transmissão vertical se a picada se verificar na grávida (durante a fase virémica da doença), com potencial impacte no recém-nascido. Em diversos estudos não foram notados efeitos lesivos, designadamente quanto a baixo peso e/ou defeitos congénitos.

O ciclo biológico é iniciado quando a fêmea do mosquito ingere o sangue da pessoa infectada em fase de virémia; esta ingestão leva à infecção do epitélio do intestino médio do mosquito e disseminação pela hemolinfa atingindo outros órgãos, como as glândulas salivares e o sistema reprodutivo do mesmo.

Geralmente decorrem 7 a 10 dias entre a ingestão do sangue contaminado e a eliminação do vírus pela saliva, sendo esta fase designada por período de incubação extrínseco. A duração deste período é inversamente proporcional à temperatura ambiente; aduza-se que, uma vez infectado, o mosquito carrega o vírus até ao fim da sua vida.

Uma vez transmitido o vírus ao humano por picada do mosquito infectado (vírus na saliva do mosquito), existe um período de incubação intrínseco sem sintomas com a duração média de 4-7 dias e limites entre 2-14 dias: surgindo então replicação vírica no órgão-alvo, atingimento dos leucócitos e tecidos linfáticos, a que se segue a virémia.

FIGURA 1. Aedes aegypti.

FIGURA 2. Aedes albopictus.

FIGURA 3. Epidemiologia da infecção pelo vírus da dengue.

Trata-se, pois, dum processo de transmissão homem-mosquito-homem.

A transmissão do vírus entre mosquito e primatas não humanos foi demonstrada na Ásia e África, mas não está provado que desta transmissão a primatas não humanos resulte potencial reservatório para a transmissão a humanos. Cabe referir que há relatos de transmissão através do sangue e de exposição mucocutânea.

Sobre a patogénese importa salientar que a dengue é uma doença sistémica, com atingimento de vários órgãos e sistemas, largo espectro de manifestações, desde formas assintomáticas e oligossintomáticas, a formas graves que podem ser fatais.

Devido à sua característica hepatotrófica, o vírus exerce acção citopática mais acentuada ao nível dos hepatócitos, replicando-se nas células de Kupffer (que fazem parte do sistema mononuclear fagocítico), do que resulta citólise com aumento das aminotransferases, directamente proporcional à magnitude do dano. A hepatomegália é frequente, podendo verificar-se insuficiência hepática.

Outros órgãos atingidos são o coração (por mecanismo imunomediado), o pulmão (sede de edema pulmonar) e o sistema nervoso central. As manifestações neurológicas podem ter como substracto diversos quadros, tais como, de encefalite, síndroma de Guillain-Barré, mielite transversa, etc..

As manifestações hemorrágicas surgem de modo esporádico e em grau variável. A este propósito, importa referir que a clássica designação de “dengue hemorrágica” passou a ser considerada errónea, por levar a pensar que a hemorragia era sinal cardinal de gravidade: na verdade, a principal causa de mortalidade é, sim, a extravasão de plasma por aumento da permeabilidade capilar, levando a choque. De facto, reforça-se a noção de que, o que diferencia as formas graves das mais ligeiras, é a verificação do aumento da permeabilidade capilar nas primeiras.

Demonstrou-se que o efeito duma segunda infecção (infecção secundária) tem efeito patogénico 100 vezes superior ao verificado durante um primeiro episódio da infecção (infecção primária). Ou seja, a exposição prévia do hospedeiro a um serótipo heterólogo predispõe a forma grave, o que poderá ser explicado pela teoria da imunopotenciação mediada por anticorpos (ADE, antibody dependent enhancement). Esta teoria postula o seguinte:

  • Aquando dum estímulo antigénico inicial (primeira infecção ou infecção primária) verifica-se sensibilização do sistema imune envolvendo linfócitos T e B;
  • Os pacientes sensibilizados a determinado serótipo do vírus desenvolvem anticorpos incapazes de neutralizar os outros serótipos, mas facilitando o ingresso do vírus no monócito;
  • Os anticorpos heterólogos correspondentes ao serótipo da dengue pré-existente (infecção primária) reconhecem de forma cruzada o novo vírus infectante, doutro serótipo (infecção secundária), não o neutralizando; aliás, formam complexos antigénio-anticorpo, os quais se ligam ao receptor Fc para imunoglobulina nos macrófagos, facilitando assim o ingresso do vírus na célula, onde se vai replicar;
  • Aquando duma segunda infecção ou infecção secundária, verifica-se uma rápida activação e proliferação das células T e monócitos previamente sensibilizados (resposta imunitária ampliada), com lise dos monócitos infectados pelos vírus da dengue, libertação de mediadores inflamatórios e procoagulantes como interleucinas, factor de necrose tumoral, factor activador das plaquetas, interferão gama, e consequente aumento da permeabilidade vascular com extravasão de plasma, hipovolémia e hipotensão.

Comprovou-se que os linfócitos T têm um papel preponderante no processo descrito devido a resposta aberrante.

A imunidade é duradoura, mas serótipo-específica. A resposta humoral é vigorosa: são detectados anticorpos específicos da classe IgM (contra o serótipo infectante) após o quarto dia de início dos sintomas; os referidos anticorpos atingem níveis elevados cerca de 7-8 dias após o início dos sintomas, declinando lentamente e passando a não ser detectáveis após alguns meses.

Quanto à IgG específica, os seus níveis elevam-se após o quarto dia de sintomas, atingindo altos teores em duas semanas, passando a ser detectáveis por vários anos (Figura 4).

Para além da importância de se tratar de infecção primária e infecção secundária, na patogénese há ainda que considerar os seguintes factores:

  • Factores relacionados com os vírus. Demonstrou-se que o serótipo 2, o mais virulento de todos, está ligado às formas graves acompanhadas de choque, frequentes no Sueste Asiático; ainda há que atender aos factos de: – determinado serótipo poder incluir diversos genótipos; e de – haver variação importante entre as estirpes de determinado serótipo;
  • Particularidades quanto a serótipos infectantes. Em estudos epidemiológicos verificou-se que a gravidade da doença é maior quando o serótipo 1 é seguido do serótipo 2;
  • Outros factores patogénicos incluem: – susceptibilidade do foro genético do hospedeiro, variável; – idade do paciente, sendo que o prognóstico é mais reservado em crianças com < 5 anos e gravidade, e menor gravidade após os 12 anos; – género feminino, mais susceptível; -doença crónica de base associada a pior prognóstico.

Manifestações clínicas e laboratoriais

A dengue é uma doença sistémica cujo espectro inclui formas graves e não graves. Na idade pediátrica, parcela significativa de pacientes pode apresentar-se sob a forma oligossintomática, o que torna difícil o diagnóstico diferencial com outras doenças víricas comuns nesta faixa etária.

Após o período de incubação variável – como média entre 5 e 10 dias – (ver atrás) a doença apresenta-se abruptamente e pode manifestar-se em 3 fases: 1- febril; 2- crítica; 3- de recuperação ou convalescença.

Fase febril: manifesta-se com febre de início abrupto, em geral durando 2 a 7 dias.

Fase crítica: febre desaparecendo em lise (defervescência). Nesta fase, os doentes poderão melhorar ou piorar. Os que melhoram, evidenciam quadro designado por dengue sem sinais de alarme; os que pioram, correspondem aos casos de dengue com sinais de alarme.

Fase de recuperação ou convalescença: produz-se a reabsorção gradual dos fluidos do espaço extravascular nas 48-72 horas seguintes. Verifica-se estabilização hemodinâmica, melhoria da diurese e diminuição do hematócrito por reabsorção dos fluidos. Seguidamente, elevação do número dos leucócitos e das plaquetas. (Figura 5)

Classificação da dengue

De acordo com a última revisão da classificação da OMS (de 2009), são consideradas as seguintes formas clínicas: Dengue sem sinais de alarme; Dengue com sinais de alarme; e Dengue grave.

FIGURA 4. Evolução clínica e resposta imunitária ao vírus da dengue.

FIGURA 5. Diagnóstico e manifestações clínicas da dengue.

Dengue sem sinais de alarme

Nesta forma clínica poderão surgir os seguintes sinais e sintomas: febre, letargia, hiperestesia cutânea, injecção conjuntival, cefaleia frontal e/ou retro-orbitária intensificando-se com o movimento dos olhos; mialgia generalizada, mais intensa na região lombar; linfadenopatia cervical; exantema morbiliforme em cerca de 50% dos casos atingindo face, tronco, e membros, não poupando plantas dos pés e palmas das mãos; pode surgir hiperémia difusa com áreas esbranquiçadas arredondadas de pele normal, prurido e sensação de “calor”; a prova de Rumpell-Leed é positiva (aparecimento de 20 ou mais petéquias numa área de 2,5 cm2 após insuflação de braçadeira de esfigmomanómetro no braço com valor da média aritmética das pressões sistólica e diastólica durante 5 minutos).

Em zonas endémicas ou nos casos em que se verificou viagem para as mesmas, suspeitar-se-á de dengue ante a presença de febre associada a dois ou mais dos seguintes critérios: náuseas, vómitos, exantema, artralgias, petéquias ou prova de Rumpell-Leed positiva e leucopénia.

Dengue com sinais de alarme

Num doente: – que esteja febril ou, – que esteja na fase de defervescência, e se verifique um dos sinais de alarme descritos a seguir, tal significa que se trata de situação acompanhada de aumento da permeabilidade capilar nesse momento.

Descrevem-se os seguintes sinais de alarme:

  • Dor abdominal intensa e contínua, por vezes localizada ao hipocôndrio direito, correspondendo a sinal de líquido extravasado para zonas renais e perirrenais;
  • Vómitos persistentes ( > 3 em 1 hora, ou > 5 em 6 horas);
  • Hemorragias das mucosas (gengivorragias, epistaxes, hematúria, hematemeses, melenas, hemorragias vaginais);
  • Alteração da consciência (agitação ou letargia, escala de Glasgow < 15);
  • Aumento do hematócrito com diminuição brusca do número de plaquetas;
  • Hepatomegália (> 2 cm abaixo do rebordo costal);
  • Acumulação de líquidos/derrames cavitários (derrame pleural, ascite, derrame pericárdico detectados clinicamente ou por ecografia, não associados a dificuldade respiratória nem a compromisso hemodinâmico.

Dengue grave

Esta forma clínica é definida pela verificação dos seguintes critérios:

  • Choque por extravasão de plasma e/ou acumulação de líquidos, associado a dificuldade respiratória;
  • Hemorragia grave;
  • Atingimento grave de órgãos (fígado: citólise, elevação de ALT e AST > 1.000 U/mL, insuficiência hepática; SNC: encefalite, alterações sensitivas; coração: miocardiopatia).

O choque, que pode ser precedido por sinais de alarme e a principal causa de morte, surge quando desaparece a febre, entre o 4º e 5º dia de doença. A gravidade deste quadro de dengue poderá também integrar, com incidência baixa, síndroma de Reye, síndroma de dificuldade respiratória tipo adulto.

Exames complementares

Em contexto de epidemia, o exame clínico rigoroso é em geral suficiente para diagnosticar a maioria dos casos. Noutras circunstâncias, dada a variedade de sintomas, em geral inespecíficos, associados a esta entidade, o diagnóstico clínico não é muito confiável. Nesta perspectiva, há que recorrer a exames complementares.

Os principais métodos diagnósticos são: o isolamento do vírus, a identificação de serótipos, a detecção de ácido nucleico, a detecção de antigénios e a enzimoimunoanálise (ELISA) para provas serológicas.

Em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) é o laboratório de referência para o diagnóstico laboratorial da dengue, que se faz através de:

  • Pesquisa de anticorpos específicos: detecção de IgM por ELISA na fase aguda da doença (no sangue ou SNC) presentes após o quinto dia de início do quadro clínico ou subida de 4 vezes do título de IgG entre a data da amostra colhida logo após o princípio dos sintomas, e uma segunda, obtida cerca de duas semanas depois (2 mL de sangue em tubo seco ou 1 mL de líquor);
  • Pesquisa de componentes víricos/ácidos nucleicos a realizar até ao 5º dia da doença por meio da reacção em cadeia da polimerase com transcriptase reversa (RT-PCR) no sangue ou LCR (2 mL de sangue em tubo com EDTA);
  • Todas as amostras positivas colhidas em laboratórios públicos ou privados devem ser enviadas (refrigeradas no próprio dia ou mantidas no frigorífico se não for possível) para o INSA, acompanhadas por formulário preenchido para estudo epidemiológico e virológico. Os casos devem ser notificados à Direcção-Geral da Saúde (dengue@dgs.pt).

No que respeita à avaliação laboratorial podem ainda ser úteis os exames complementares e procedimentos a seguir descritos:

  1. Hemograma: é um exame importante a ser feito aquando da primeira observação. A verificação de leucopénia reforça o diagnóstico provável de dengue. Uma diminuição do número de plaquetas, associada a uma elevação do hematócrito, sugere extravasamento de plasma. Se o hematócrito não tiver sido registado no início deve ser efectuado o cálculo da variação do seu valor utilizando os valores de referência da população geral, ajustados à idade e sexo;
  2. Transaminases: elevação de AST e ALT, observada em 30% dos pacientes com dengue em geral, e em cerca de 90% dos casos de dengue grave;
  3. Ecografia: útil para identificar a presença de líquido livre em cavidade abdominal ou espaço pleural, ou ainda para detectar derrame pericárdico ou sinais de espessamento da parede da vesícula biliar.

Diagnóstico diferencial

A dengue pode confundir-se com diversas infecções bacterianas, parasitárias e víricas, tais como doença meningocócica, choque séptico, febre tifóide, escarlatina, sarampo, rubéola, gripe, doenças por enterovírus, herpes vírus, parvovírus B19, leptospirose, hepatite, malária, febre amarela, febre e outras infecções por Flavivirus. Obviamente que no âmbito raciocínio clínico importa valorizar a região onde decorreu o caso.

A dor abdominal intensa poderá ser confundida com apendicite aguda, colecistite aguda e perfuração intestinal. A febre, a polisserosite, a hemoconcentração, a trombocitopénia e a ausência de compromisso renal permitem estabelecer a destrinça entre dengue e outras febres hemorrágicas.

Para finalizar o tópico sobre diagnóstico diferencial, importa uma referência a três infecções víricas transmitidas por artrópodes tal como a dengue, ocorrendo noutras latitudes (África, Ásia, América Latina, Estados Unidos e Médio Oriente). São consideradas pela patogénese e pelas afinidades quanto às manifestações clínicas, doenças simile dengue; trata-se: – da febre Chikungunya, por Togavirus, transmitida por Aedes aegypti e Aedes albopictus; – da infecção por vírus ZICA (ZICV), da família Flaviviridae, transmitida por Aedes aegypti e Aedes albopictus; – da febre O’nyong-nyong, por Togavirus, transmitida por Anopheles funestus; e – da febre do Nilo/West Nile, por Flavivirus, transmitida por Culex molestus ou Culex univittatus.

Tratamento

Não existe tratamento específico. A doença deve ser tratada com medidas sintomáticas; o tratamento da febre deverá ser feito apenas com paracetamol, estando o ibuprofeno e outros AINE contraindicados.

Na dengue grave a perda de líquidos para o espaço extravascular é o determinante fisiopatológico mais importante, sendo fundamental iniciar precocemente a reposição de volume (com hidratação venosa vigorosa) quando se verifica esta situação.

Sobre o tratamento da reidratação e do choque aconselha-se a consulta de capítulos próprios abordando estas temáticas.

Prevenção

A prevenção deve ser feita:

  • Pelo controlo do vector, destruindo-o na fase larvar do ciclo de vida dos mosquitos e eliminando-o na fase adulta dos mosquitos; – por educação ambiental, eliminando locais de águas estabilizadas e detritos urbanos, utilizando repelentes com N-dieSl-metatoluamida (DEET), usando vestuário apropriado (roupas frescas, claras, que cubram a maior área possível), optando por alojamentos com ar condicionado e redes mosquiteiras;
  • Por estratégias de comunicação/informação às populações, com utilização de diferentes meios de divulgação, informação precisa e concisa, não alarmista, sobre medidas que potenciem a diminuição da densidade de mosquitos e medidas a tomar nas viagens/estadias/residência, educação para a saúde nas escolas de ensino básico e secundário;
  • Outras medidas de controlo incluem identificação de locais propícios para criadouros e larvas, identificação das empresas registadas como estando a trabalhar na actividade de desinfestação, recenseamento dos locais de cultivo de plantas para exportação, identificação de residências abandonadas/devolutas ou não habitadas em permanência que contenham criadouros de mosquitos;
  • Por vacinação: o método ideal, incluindo os 4 serótipos, conferindo imunidade perene ainda não se encontra disponível; uma vacina viva atenuada recombinante CYD-TDV – está actualmente na fase II de investigação.

DOENÇA POR VÍRUS CHIKUNGUNYA

Definição e aspectos epidemiológicos

Esta doença, provocada pelo vírus Chikungunya (CHKV), também conhecida por febre Chikungunya (palavra que significa “aqueles que se dobram” num dialecto da Tanzânia, fazendo referência ao andar curvado das pessoas acometidas por essa doença que “provoca dores”), foi descoberta pela primeira vez em 1953 na Tanzânia durante uma epidemia de doença febril. Verificando-se posteriormente várias epidemias intervaladas entre 2 e 20 anos na África e Ásia, a partir de 2004 adquiriu características de expansão global afectando milhões de pessoas até à actualidade.

Uma das epidemias mais conhecidas ocorreu na Ilha da Reunião em 2005, afectando mais de 300.000 casos, com 219 mortes. Posteriormente foram registados surtos na Itália, França, Canadá, Brasil, Estados Unidos e Guiana. Mais recentemente, em 2013, na Ilha de San Martin, Caraíbas, comprovou-se a existência de casos autóctones.

Determinados factores predisponentes, tais como as condições climáticas, a presença de artrópode vector e uma população susceptível sob o ponto de vista imunológico influenciaram a disseminação da doença no continente americano.

Etiopatogénese

Trata-se duma arbovirose produzida por um vírus ARN pertencente ao género Alphavirus e uma das 29 espécies da família Togaviridae. Após a picada do mosquito (especialmente da família Aedes) infectado pelo vírus, este transmite-se aos fibroblastos e macrófagos dérmicos, replicando-se nesta localização. Disseminando-se ulteriormente pelos nódulos linfáticos, passam para a circulação originando virémia. Seguidamente, com nova disseminação, são atingidos os órgãos periféricos, designadamente, os músculos, o baço, continuando a replicação.

Neste processo, foram identificadas diversas fases: aguda, subaguda e crónica. Estão documentadas infecções pré-natal, perinatal e formas atípicas da doença.

Para além da transmissão do vírus pelo mosquito, estão descritos casos de transmissão através de transfusões de sangue.

O Homem é o reservatório principal; secundariamente, alguns vertebrados.

Manifestações clínicas

O período de incubação oscila entre 3 e 7 dias. A percentagem de casos assintomáticos varia entre 3% e 28%. Nos indivíduos sintomáticos as manifestações mais típicas na fase aguda são: febre alta de início abrupto podendo durar 7 dias, poliartralgias simétricas, frequentemente incapacitantes, sobretudo ao nível das mãos e pés, zonas proximais, e exantema maculopapular pruriginoso atingindo as palmas das mãos e plantas dos pés.

Têm sido descritos outros sinais e sintomas, tais como: astenia, cefaleia, mialgias, dores torácicas, náuseas, vómitos, conjuntivite, faringite e linfoadenopatias.

Poderá surgir uma fase subaguda ou pós-aguda, iniciada após os 21 dias e prolongando-se por 2 a 3 meses, rara na idade pediátrica, caracterizada essencialmente por poliartralgias incapacitantes associadas a tenossinovites.

Descreve-se ainda uma fase crónica, com artralgias acentuadas e incapacitantes, de duração superior a 3 meses, também rara em idade pediátrica.

Existe uma forma clínica de infecção perinatal por CHIKV: quando uma mãe está sintomática no período periparto (entre 4 dias antes e 1 dia após o parto), o risco de transmissão vertical do vírus é de 50%. Em tal circunstância, as manifestações clínicas no RN surgem em geral cerca de 4 a 9 dias após o parto: febre, edema nas extremidades, irritabilidade, prostração, recusa alimentar e exantema. A médio e longo prazo poderá verificar-se alteração no neurodesenvolvimento, convulsões, e paralisia cerebral.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em critérios clínicos, epidemiológicos e laboratoriais. Os critérios clínicos e epidemiológicos permitem identificar, respectivamente, caso possível e caso provável

Critérios clínicos: febre de início abrupto > 38,5ºC e artrite ou artralgia acentuada; nesta circunstância faz-se o diagnóstico diferencial com dengue, malária endémica ou doença com artrite (caso possível).

Critérios epidemiológicos: residência em, ou visita a, área endémica dentro do período de 15 dias precedendo o início de sintomas (caso provável).

 Critérios laboratoriais: fundamentalmente, importa avaliar os seguintes parâmetros: isolamento do vírus, presença de ARN vírico, anticorpos (IgM específica e IgG com títulos determinados seriadamente em períodos separados 2 a 3 semanas. Bastará a positividade de apenas 1 (caso confirmado).

Quanto às provas laboratoriais como instrumento de avaliação citam-se: PCR-RT (reacção em cadeia da polimerase com transcriptase inversa) para identificação de virémia, a realizar nos primeiros 5-7 dias após início dos sintomas; provas serológicas para IgM e IgG, sendo de anotar que com as provas serológicas se poderá verificar reactividade antigénica cruzada com outros arbovírus.

Diagnóstico diferencial

Faz-se com as seguintes situações: dengue, zica, malária, leptospirose, influenza, febre amarela, sépsis, rubéola, sarampo, e infecções por alfaviroses (vírus Mayaro, Ross River, Barmah Forest, O´nyong e Sindbis).

Prevenção e tratamento

Como medidas preventivas gerais citam-se as seguintes:

  • Evitar picadas de mosquitos, limitando a exposição aos mesmos;
  • Restringir as viagens a áreas endémicas, incluindo, claro, das grávidas;
  • Usar vestuário protector e repelentes de insectos;
  • Providenciar ambiente interior com ar condicionado.

Quanto ao tratamento, perante a inexistência de fármacos anti- CHIKV, são adoptadas medidas gerais de suporte. A hospitalização está indicada perante: febre alta > 5 dias, sintomatologia neurológica, irritabilidade, vómitos, oligúria, quadro clínico em RN e presença de comorbilidade.

INFECÇÃO POR VÍRUS ZICA

Consultar Capítulo “Infecção Congénita” na Parte sobre Perinatologia e Neonatologia (XXXI).

BIBLIOGRAFIA

Alves JGB, Ferreira OS, Maggi RRS, Correia JB. Fernando Figueira Pediatria (eds). Rio de Janeiro: Medbbok Editora, 2011

Biswal S, Reynales H, Saez‐Llorens X, et al. Efficacy of a tetravalent dengue vaccine in healthy children and adolescents NEJM 2019;381:2009-2019. DOI:10.1056/NEJMoa1903869

Castro L, Marçal F, Gonçalves J, Oliveira J, et al. Dengue em Portugal – Experiência da Região Autónoma da Madeira. Acta Pediatr Port 2014;45:198-203

Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ, Hotez P (eds). Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014

Deseda CC. Epidemiology of Zica. Curr Opin Pediatr 2017;29:97-101

Direcção Geral da Saúde/DGS. Abordagem de casos de Dengue. Orientação da DGS nº 14/2012.http: // www.dgs.pt/upload/membro. id/ficheiros/i017887.pdf

Direcção Geral da Saúde/DGS. Casos de dengue na Região Autónoma da Madeira – actualização 10/10/ 2012. Comunicado nº 46.03.v1. http://www.dgs.pt

Elling R, Henneke P, Hatz C, et al. Dengue fever in children: where are we now? Pediatr Infect Dis J 2013;32:1020-1022

Farhat CK, Carvalho LHFR, Succi RCM. Infectologia Pediátrica. São Paulo: Atheneu, 2008;569-580

Gabaglia CR. Zica virus and diagnosis. Curr Opin Pediatr 2017;29:107-113

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gjenero-Margan I, Aleraj B, Krajcar D, et al. Autochthonous dengue fever in Croatia, August–September 2010. Euro Surveill. 2011;16(9):pii=19805

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman – Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Halstead SB. Controversies in dengue pathogenesis. Pediatr Int Child Health 2012;32 (Suppl 1):5-9

Harapan H, Michie A, Mudatsir M. et al. Chikungunya virus infection in Indonesia: a systematic review and evolutionary analysis. BMC Infect Dis 19, 243 (2019). https://doi.org/10.1186/s12879-019-3857-y

Honein MA, Cetron MS, Meaney-Delman D. Endemic Zika virus transmission: implications for travellers. Lancet Infect Dis 2019;19:349-351

Jelinek T. Trends in epidemiology of dengue fever and their relevance for importation to Europe. Euro Surveill. 2009;14(25):pii=19250

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw Hill Education, 2018

La Ruche G, Souarès Y, Armengaud A, et al. First two autochthonous dengue virus infections in metropolitan France. Euro Surveill 2010;15(39):pii=19676

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Martins KA, Gregory MK, Valdez SM, et al. Neutralizing antibodies from convalescent Chikungunya virus patients can cross-neutralize Mayaro and Una viruses. Am J Trop Med Hyg 2019;100:1541-1544. doi: 10.4269/ajtmh.18-0756

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Oeser C, Ladhani S. An update on Zika Virus and congenital Zika Syndrome. Paediatr Child Health 2019;29:34-37

Pawitan JA. Dengue virus infection: predictors for severe dengue. Acta Med Indones 2011;43:129-135

Poland GA, Ovsyannikova IG, Kennedy RB. Zika vaccine development: current status. Mayo Clin Proc 2019;94:2572-2586

Ranjit S, Kissoon N. Dengue hemorrhagic fever and shock syndromes. Pediatr Crit Care Med 2011;12:90-100

Ritz N, Hufnagel M, Gerardin P. Chikungunya in children, Pediatr Infect Dis J 2015;34:789-791

Rolph FJ, Rulli NE, et al. Diagnostic criteria for chikungunya virus fever. Lancet 2012;379:662-668

Rothman AL, Srikiatkhachorn A, Kalayanarooj A. Clinical presentation and diagnosis of dengue virus infections. http//www.uptodate.com.

Rothman AL. Epidemiology of dengue virus infections. http://www.uptudate.com.

Secretaria de Estado de Saúde/SES do Rio de Janeiro. Dengue: cenário epidemiológico e perspectiva para o ano de 2016. R Janeiro: SES, 2015

Simmons CP, Farrar JJ, Nguyen VV, et al. Dengue. N Engl J Med 2012;366:1423-1432

Weaver S, Lecuit M. Chikungunya virus and the global spread of a mosquito-borne disease. N Engl J Med 2015;372:1231-1239

Wichit SHamel RZanzoni A, et al. SAMHD1 enhances Chikungunya and Zika virus replication in human skin fibroblasts. Int J Mol Sci 2019 Apr 5;20(7). pii: E1695. doi: 10.3390/ijms20071695

Wichmann O, Jelinek T. TropNetEurop: Surveillance of imported dengue infections in Europe. EuroSurveill 2003;7(32):pii=2271

World Health Organization/ WHO. Dengue: guidelines for treatment, prevention and control. Geneve: WHO, 2009

Yacoub S, Mongkolsapaya J, Screaton G. The pathogenesis of dengue. Curr Opin Infect Dis 2013;26:284-289

PAROTIDITES

Definição

Qualquer processo que curse com inflamação e tumefacção dolorosa da glândula tem o nome de parotidite (vulgo papeira). As causas infecciosas são as mais frequentes. (Quadro 1)

Neste capítulo, é dada ênfase à chamada parotidite epidémica, doença sistémica vírica autolimitada, com predilecção pelos tecidos glandulares (predominantemente parótida, mas também as restantes glândulas salivares) e pelo sistema nervoso. Tal patologia foi descrita pela primeira vez por Hipócrates no século V antes de Cristo. A etiologia vírica foi comunicada por Johnson & Goodpasture em 1934.

Recorda-se que a parótida, ou glândula parotídea, é a maior das glândulas salivares. Localizada por baixo e à frente do pavilhão auricular, tem o seu limite inferior imediatamente acima do ângulo da mandíbula. Relaciona-se com os músculos da mastigação cuja contracção promove a secreção de saliva; esta é excretada através do canal parotídeo (canal de Stenon ou de Stensen), o qual drena ao nível do segundo dente molar superior.

Aspectos epidemiológicos

Tratando-se duma doença típica da idade escolar em sujeitos não vacinados (5-14 anos), importa referir que, com o advento da vacinação sistemática, actualmente grande parte dos casos verificam-se sobretudo em indivíduos com idade superior a 15 anos.

A parotidite epidémica continua, pois, a ser mais relevante nos países sem vacinação eficaz. Mais recentemente, em países industrializados verificaram-se surtos localizados explicáveis por perda de imunidade de grupo devida aos “movimentos anti-vacinação”. Em Portugal, segundo os dados do último relatório de doenças de declaração obrigatória, entre 2009 e 2012 foram declarados menos de 200 casos/ano de parotidite epidémica.

Nalguns países têm sido descritas epidemias relacionadas com a administração de vacinas pouco imunogénicas. Por outro lado, importa assinalar que se têm observados casos em populações vacinadas, o que sugere perda da imunidade com o tempo.

Em Portugal, a parotidite epidémica é uma doença de declaração obrigatória, com indicação para evicção escolar por um período mínimo de 9 dias após o aparecimento de tumefacção glandular.

Etiopatogénese

O vírus da parotidite epidémica é um vírus ARN pertencente ao género Rubulavirus, da família Paramyxoviridae. O único hospedeiro é o Homem. Com diferentes genótipos, admite-se que exista apenas um fenótipo.

A referida parotidite é uma doença com elevada infecciosidade, transmitindo-se através da saliva, aerossóis, ou das gotículas da orofaringe. Com um período de incubação oscilando entre 2 a 4 semanas, o período de contágio situa-se entre 3 dias antes e 4 dias depois do início dos sintomas.

Surge virémia desde que o vírus atinja a via respiratória e se verifique replicação no epitélio da nasofaringe e nos gânglios linfáticos regionais (cabeça e pescoço) Tal determina que, com a disseminação do vírus, sejam atingidos diversos tecidos e órgãos, sobretudo, glândulas salivares, meninges, pâncreas, ovários e testículos; e, menos frequentemente, próstata, tiroideia, interstício do rim, miocárdio, fígado, sinovial articular, medula óssea, sistema excretor lacrimal e glândulas de Bartholin.

Posteriormente, o vírus elimina-se com a urina.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Na sua forma clássica, em cerca de 30% dos casos, a doença é assintomática ou manifesta-se por sintomas inespecíficos simulando quadro gripal.

Importa salientar um período prodrómico de 24 a 48 horas com febre, em geral não elevada, cefaleia, vómitos, mialgia e mal-estar geral; sucede-se a tumefacção da glândula parótida, que começa por ser unilateral, sendo evidente a bilateralidade em 70%-90% dos casos.

Em cerca de 10% dos casos, outras glândulas salivares podem ser atingidas: a submaxilar, palpando-se sob a mandíbula, anteriormente ao ângulo mandibular, e/ou a sublingual, que origina tumefacção da língua e do pavimento bucal.

Ao nível da cavidade bucal, verifica-se que os orifícios de saída do canal de Stenon (da glândula parótida) e do canal de Wharton (da glândula submaxilar) estão eritematosos e edematosos. Com menos frequência pode surgir edema pré-esternal, relacionável com obstrução dos vasos linfáticos por aumento das dimensões das glândulas salivares.

A doença é geralmente autolimitada, com duração média de duas semanas.

Outras manifestações (consideradas por alguns autores como complicações) estão relacionadas com os locais atingidos pelo vírus, sendo mais frequentes a meningite com características de toda e qualquer meningite vírica (5%-10% dos casos), a orquite (30%-40%), e a ooforite (5%). Poderá detectar-se pleocitose (cerca de 50% dos casos) sem sinais de meningite. Por sua vez, a meningite pode ocorrer antes, durante, ou depois da tumefacção das parótidas.

Nos casos de meningite, poderão surgir convulsões em cerca de 20% dos casos. Para além da pleocitose (200-1.000 células/uL), já citada, o LCR, no contexto de meningite estabelecida, pode evidenciar predomínio de linfócitos, associado a glicose e proteínas normais; em fases iniciais da doença pode haver predomínio de polimorfonucleares e glicorráquia inferior a 40 mg/dL.

Habitualmente, o quadro neurológico regride em duas semanas, sem sequelas. Em casos raros (0,5-5/100.000 casos) pode ocorrer surdez neurossensorial.

O quadro de encefalite, com mortalidade ~ 1,4%, hoje raro, era descrito, reportado à era pré-vacinal, na proporção de 1 para cada 400-6.000 casos. Eram também descritos casos de cerebelite, síndroma de Guillain-Barré, paralisia facial e mielite transversa.

A orquite (ou melhor, epidídimo-orquite) é frequente sobretudo na idade pós-púbere, sendo unilateral em cerca de 70% dos casos. Surge em geral cerca de 4-10 dias após o início da parotidite, com evidência de edema do escroto, dor e edema testiculares, e febre. Pode igualmente manifestar-se como manifestação isolada da infecção. Ainda que possa ocorrer atrofia testicular, a esterilidade é muito rara pelo facto de aquela ser segmentar.

A infecção, atingindo outros órgãos, é susceptível de originar uma diversidade de quadros infecciosos, variando de paciente para paciente: pancreatite, tiroidite, prostatite, hepatite, dacriocistite, nefrite intersticial, bartolinite, miocardite, sinovite, púrpura trombocitopénica, etc..

No contexto de infecção da grávida, embora não se tenha demonstrado o efeito teratogénico do vírus, existe o risco de abortamento.

Diagnóstico

O diagnóstico da parotidite epidémica deve ser suspeitado em face de história clínica compatível (incluindo tumefacção parotídea bilateral) em doentes não vacinados, sem PNV actualizado com VASPR, ou em caso de surto epidemiológico.

Os resultados de exames laboratoriais evidenciam tipicamente leucopénia, linfocitose e elevação da amilasémia.

Nos casos de tumefacção parotídea unilateral, ou inexistente, o diagnóstico poderá ser mais difícil, obrigando ao recurso a estudo serológico, o método laboratorial mais usado.

O procedimento mais adequado é a identificação de anticorpos específicos anti-parotidite IgM no soro, plasma, LCR, ou saliva, por análise enzimo-imunológica a partir dos 7 dias de evolução clínica; isto porque anteriormente há a probabilidade de resultados falsos-negativos.

Nas populações imunizadas o diagnóstico por serologia é mais difícil, uma vez que a resposta humoral com IgM pode ser mais curta; assim, nas populações imunizadas um valor de IgM negativo não exclui o diagnóstico.

Em alternativa, poderá obter-se o diagnóstico, pesquisando a seroconversão, através do doseamento de anticorpos IgG, demonstrada pela elevação do título destes, pelo menos quatro vezes, ao cabo de 2-3 semanas.

Outro método de diagnóstico da parotidite epidémica consiste na cultura vírica na saliva, urina ou LCR, sendo que a sensibilidade é inferior a 50%.

Uma alternativa à cultura vírica é o estudo do material genético em amostras de urina, saliva ou LCR por técnicas de reacção em cadeia da polimerase em tempo real (PCR). Estas amostras devem recolher-se nos primeiros 3 dias de doença, e não para além dos 7 dias de evolução.

Diagnóstico diferencial

Abordando o diagnóstico diferencial das parotidites, importa ainda salientar uma noção semiológica – estabelecer a destrinça entre tumefacção parotídea e adenomegália laterocervical; no caso desta última, a sua localização é mais posterior, tem limites mais definidos e não apaga o ângulo mandibular.

O diagnóstico diferencial da parotidite epidémica faz-se com outros tipos de parotidite, os quais são discriminados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial das parotidites em idade pediátrica.

A etiologia por fungos não é descrita na criança (Candida albicans e Cryptococcus isolados em adultos imunodeprimidos)
INFECCIOSA
VÍRUS
Paramyxoviridae (parotidite epidémica). VEB, CMV, VHH6, Adenovírus, Parainfluenza 1, 2 e 3, Parvovírus B19, Enterovírus e VIH*
BACTÉRIAS

Parotidite supurativa
Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes, Streptococcus viridans, Peptostreptococcus spp, Prevotella spp, Porphyromonas sp, Fusobacterium nucleatum, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae, Moraxella catarrhalis, Pseudomona aeruginosa, Pseudomona pseudomallei, Escherichia coli, Proteus spp, Salmonella spp, Klebsiella spp, Actinomyces spp*

Parotidite granulomatosa*
Mycobacterium tuberculosis
Micobactérias atípicas
Bartonella henselae
Actinomyces spp**
IDIOPÁTICA
Parotidite recidivante idiopática
AUTOIMUNE
Síndroma de Sjögren*, Sarcoidose*, LES, Doença mista do tecido conjuntivo
NEOPLÁSICA
Formas benignas (adenoma pleiomórfico, hemangioma e linfangioma) e malignas (carcinoma mucoepidermóide, adenóide-cístico e de células acínicas e rabdomiossarcoma)
OUTRAS
Sialolitíase, defeitos congénitos, traumatismos, radioterapia, doenças infiltrativas, má-nutrição, doenças metabólicas crónicas, fármacos, etc.
VIH – Vírus da Imunodeficiência Humana; VEB – Vírus de Epstein-Barr; CMV – Citomegalovírus; VHH6 – Vírus Herpes Humano 6; LES – Lúpus Eritematoso Sistémico.
* Parotidite habitualmente crónica. ** Consoante o microbioma concomitante, o curso da doença pode ser agudo, subagudo ou crónico.

 

  1. Parotidites de etiopatogénese infecciosa, (exceptuando a relacionada com os vírus da família Paramyxoviridae); destacam-se as seguintes situações:
    • Parotidite associada a hiperplasia linfóide devida a infecção por VIH.
      Em cerca de 1%-10% dos casos de infecção por VIH desenvolve-se um quadro de parotidite crónica caracterizado pelo aumento progressivo e indolor da glândula parotídea, geralmente bilateral, podendo ser acompanhado de adenomegálias cervicais ou generalizadas.
      O diagnóstico é feito com base no quadro clínico, serologia para VIH positiva e caracterização imagiológica das lesões por ecografia (exame de primeira linha), tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM). (consultar capítulo sobre Imunodeficiências Adquiridas)
    • Parotidite por Mycobacterium tuberculosis
      Trata-se duma situação extremamente rara, mesmo nas áreas de elevada incidência de tuberculose. O respectivo diagnóstico etiológico é difícil pela escassez de sinais e sintomas para além da tumefacção e inespecificidade dos estudos imagiológicos. O diagnóstico é feito por estudo microbiológico adequado de uma amostra obtida por biópsia.
    • Parotidite por Actinomyces spp (Parotidite granulomatosa)
      Os agentes Actinomyces são bactérias Gram-positivas anaeróbias que fazem parte do microbioma oral na espécie humana. A infecção provocada por estes agentes, rara, muitas vezes relacionada com deficiente higiene oral ou a estado de imunodepressão, na sua maioria está associada a outros agentes – trata-se duma infecção polimicrobiana (sigla HACEK incluindo, designadamente, Haemophilus aphrophilus, Aggregatibacter ou Actinobacillus, Cardiobacterium hominis, Eikenella coorodens e Kingella kingae). É caracterizada por doença granulomatosa crónica, com agudizações, supurativa com tendência para ultrapassar “barreiras anatómicas”, predominantemente na região cérvico-facial, incluindo região parotídea. A estase salivar por tumefacção da glândula e tecidos envolventes constitui um factor predisponente da infecção.
    • Parotidite por Bartonella henselae
      Esta entidade clínica foi abordada no capítulo sobre “Doença do arranhão do gato”.
N.B. 🡪 De acordo com estudos epidemiológicos na idade pediátrica demonstrou-se etiologia vírica da parotidite em 14% dos casos, com a seguinte distribuição: VEB- 7%; Parainfluenzae– 4%; Adenovírus- 3%; e – VHHC6 em criança com menos de 6 anos.

 

  1. Parotidites de etiopatogénese não infecciosa. Importa uma referência a outras situações susceptíveis de originar inflamação e tumefacção da parótida:
    1. Acção de fármacos (fenilbutazona, tiouracilo, iodetos e tiazidas).
    2. Doenças metabólicas crónicas (cirrose hepática, diabetes mellitus e urémia).
    3. Parotidite obstrutiva, mais frequentemente provocada por sialolitíase, e caracterizada por episódios pós-prandiais de edema glandular e dor, com regressão espontânea em 3-4 horas. Qualquer que seja o insulto inicial, este promove estase salivar, o que facilita a contaminação bacteriana. Tanto a estase salivar como a contaminação bacteriana promovem fenómenos subsequentes de metaplasia ductal, com agravamento da estase e surgimento de infecção secundária, fibrose, atrofia glandular e formação de mucoceles.
      O diagnóstico é sugerido pela história clínica, com especial relevo na relação com o período pós-prandial, e confirmado por ecografia, ou RM evidenciando sinais de dilatação do canal parotídeo.
    4. Parotidite recidivante, processo de causa desconhecida, que se manifesta por episódios autolimitados e habitualmente unilaterais de tumefacção dolorosa da parótida, durando cerca de 2-3 semanas, acompanhados ou não de febre, com regressão após a puberdade. De relevar o risco de ulterior fibrose e insuficiência glandular em função do número e duração dos episódios (os quais poderão surgir em número ~ 20/ano).
    5. Síndroma de Sjögren, de etiopatogénese autoimune, traduzida por inflamação crónica das glândulas exócrinas, sobretudo salivares e lacrimais (infiltrado de linfócitos e plasmócitos com consequente destruição epitelial) em sujeitos geneticamente predispostos, como consequência de exposição a factores ambientais (por ex. infecções víricas). Na idade pediátrica, o sinal mais frequente e precoce é a tumefacção parotídea, associando-se a xerostomia (secura da boca por diminuição da secreção salivar) e, mais tardiamente, xeroftalmia (diminuição da secreção lacrimal) e xerodermia (secura da pele).
      As manifestações extraglandulares podem ser tipificadas por fenómeno de Raynaud, sintomatologia simile LES, e por problemas respiratórios diversos.
      A resposta autoimune a células epiteliais da pele e mucosas traduz-se analiticamente na positividade de anticorpos antinucleares (ANA) e de factor reumatóide em 50%-85% dos casos, e de anticorpos anti-Ro/SSA e anti-La/SSB em 60%-90%.
      A cintigrafia com tecnécio-99 permite avaliar a função das glândulas salivares e a ecografia, a arquitectura anormal das mesmas.
    6. Sarcoidose
      Trata-se duma doença granulomatosa multissistémica de causa desconhecida, extremamente rara, geralmente manifestada pelo aumento bilateral crónico e indolor da parótida. Outra apresentação da doença, correspondendo à síndroma de Heerfordt-Waldenstrom, associa parotidite a: febre, uveíte e paralisia do nervo facial. O diagnóstico baseia-se na identificação dos granulomas característicos da doença por biópsia.
    7. Tumores da parótida
      Os tumores da glândula parótida apresentam-se como massas de crescimento progressivo, nodulares, indolores, podendo ser móveis ainda que os tumores malignos sejam mais frequentemente imóveis. Pode verificar-se perda de peso, mal-estar geral, xerostomia, paralisia do nervo facial ou episódios de parotidite aguda supurativa.
      Os tumores benignos mais frequentes abaixo do ano de idade são os hemangiomas e linfangiomas; nos restantes grupos etários, predominam o adenoma pleiomórfico, com potencialidade de degenerescência maligna. O tumor maligno mais frequente é o carcinoma mucoepidermóide, seguindo-se os cistoadenocarcinomas.

Os exames complementares imagiológicos são determinantes para o diagnóstico. A ecografia, pela sua acessibilidade e ausência de radiação ionizante, constitui o meio de primeira linha; contudo, as lesões suspeitas devem ser mais bem caracterizadas por TC ou RM. As características imagiológicas sugestivas de malignidade são:

  • Margens mal definidas com invasão dos tecidos adjacentes; e
  • Sinais de metástases ósseas ou linfáticas.

Tratamento

O tratamento da parotidite epidémica, assim como o das complicações, é sintomático, utilizando o paracetamol ou o ibuprofeno em doses habituais.

No que respeita às restantes situações mencionadas, importa particularizar alguns procedimentos relativamente às seguintes:

  • Nas parotidites bacterianas, fúngicas ou por outros vírus está indicado o tratamento antimicrobiano dirigido;
  • Nas parotidites de etiologia neoplásica, para além da ressecção cirúrgica, total ou parcial, são utilizados certos fármacos antineoplásicos, salientando-se a importância da actuação especializada em centros de referência;
  • Nas formas obstrutivas, designadamente em relação com sialolitíase ou defeitos congénitos, o tratamento é cirúrgico; tratando-se de remoção de cálculo, poderá utilizar-se a técnica cirúrgica clássica ou a endoscopia para litotrícia;
  • Na parotidite recidivante, alívio dos sintomas durante as crises com analgesia, massagem parotídea e fármacos sialogogos; havendo suspeita de sobreinfecção bacteriana sem repercussão sistémica está indicada antibioticoterapia oral com amoxicilina/ácido clavulânico como primeira linha; os casos mais graves devem ser orientados em centros de referência, em que são aplicadas diversas terapêuticas: escleroterapia intraductal, nevrectomia do ramo timpânico do nervo facial, endoscopia dilatadora ou paratiroidectomia;
  • Na parotidite associada a sarcoidose, não se torna necessário qualquer tratamento específico para além do tratamento-base.

Prevenção da parotidite epidémica

  1. Primeiramente, adopção de medidas de isolamento do paciente para evitar a transmissão a sujeitos susceptíveis/não vacinados. Está indicado manter tais medidas durante 5 dias depois do início dos sintomas.
  2. Vacinação anti-parotidite (associada a anti-sarampo e anti-rubéola) <> VASPR em duas doses, aos 12 meses e 5 anos, segundo o PNV 2017. No caso de não vacinação anterior, sugere-se que o leitor consulte o capítulo sobre Vacinas.
  3. Em caso de surto epidémico, está preconizada a vacinação dos contactos com mais de seis meses que não tenham qualquer dose de vacina, com duas doses de vacina intervaladas de, pelo menos, 28 dias.
  4. Nos casos de aos contactos ter sido aplicada apenas uma dose da vacina, deve ser administrada uma segunda dose se o surto afectar crianças em idade pré-escolar, ou adultos com capacidade de transmissão a grande parte da comunidade.
  5. Na hipótese de a vacinação não ser possível, a criança deve manter o evitamento escolar durante 26 dias após o último caso de parotidite.

BIBLIOGRAFIA

Barskey AE, Juieng P, Whitaker BL, et al. Viruses detected among sporadic cases of parotitis, United States, 2009–2011. J Infect Dis 2013;208:1979-1986

Brook I. The Bacteriology of salivary gland infections. Oral Maxillofacial Surg Clin N Am 2009;21:269-274

Davidkin I, Jokinen S, Paananen A, et al. Etiology of mumps-like illnesses in children and adolescents vaccinated for measles, mumps, and rubella. J Infect Dis 2005;191:719-723

Dayan GH, Rubin S. Mumps outbreaks in vaccinated population: are available mumps vaccines effective enough to prevent outbreaks? Clin Infect Dis 2008;47:1458-1467

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Hviid A, Rubin S, Muhlemann K. Mumps. Lancet 2008;371:932-944

Kimberlin DW (ed). Red Book 215 Report of the Committee on Infectious Diseases. American Academy of Pediatrics: Elk Grove Village, IL: American Academy of Pediatrics 2015:74-88, 564-568, 856-857

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw Hill Education, 2018

Lennon P, Silvera V, Perez-Atayde A, et al. Disorders and tumours of the salivary glands in children. Otolaryngol Clin N Am 2015;48:153-173

Lewnard JA, Grad YH. Vaccine waning and mumps re-emergence in the United States. Sci Transl Med 2018;Mar 21:10(433). Pii: eaao5945. Doi: 10.1126/scitranslmed.aao5945

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

Macartney K, Gidding HF, Trinh L, et al. Evaluation of combination measles-mumps-rubella-varicella vaccine introduction in Australia. JAMA Pediatr 2017;171:992-998

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Makhoul J, Lorrot M, Teissier N, et al. Acute bacterial parotitis in infants under 3 months of age: a retrospective study in a pediatric tertiary care center. Arch Pédiatrie 2011;18:1284-1289

Sodhi KS, Bartlett M, Prabhu, NK. Role of high resolution ultrasound in parotid lesions in children. International J Pediatric Otorhinolaryngol 2011;75:1353-1358

INFECÇÕES POR Enterovírus (excluindo Poliovírus)

Nomenclatura e importância do problema

Os Enterovírus (EV) pertencem à família Picornaviridae e englobam grande número de patogénios responsáveis por um espectro alargado de doenças. São constituídos por RNA de cadeia simples, rodeado por uma cápside que compreende 60 cópias de 4 proteínas víricas designadas respectivamente por VP1, VP2, VP3 e VP4, sem invólucro lipídico.

Anteriormente, a sua classificação era baseada no potencial patogénico observado em humanos e ratos, integrando 5 grupos diferentes: Poliovirus (serótipos 1-3), Coxsackievirus A (serótipos 1-22 e 24), Coxsackievirus B (serótipos 1-6), Echovirus (serótipos 1-9, 11-21, 24-27, 29-33) e Enterovirus (serótipos 68-71).

Actualmente, a classificação dos EV tem em conta as propriedades moleculares, antigénicas e biológicas dos vírus, resultando assim respectivamente em 5 diferentes espécies de EV Humanos: Poliovirus, Human Enterovirus-A (HEV-A), HEV-B, HEV-C e HEV-D. De referir que os primeiros Para-Echovirus Humanos (HPeV) foram descritos anteriormente como Echovirus 22 e 23, pertencendo ao género EV. Na actualidade estão descritos mais de 10 HPev, pertencentes a um género próprio.

Os tipos dos enterovírus distinguem-se por diferenças quanto a antigénios e quanto a sequências genéticas. Embora tenham sido identificados mais de 100, a maioria dos casos de doença é explicada por 10-15 dos mesmos. Diferentes tipos de EV estão associados a determinadas manifestações clínicas.

Algumas das suas mais importantes características físicas e biológicas incluem a capacidade de actuar perante um grande espectro de pH (3 a 10), resistência ao éter e etanol, e inactivação a temperaturas superiores a 50ºC.

As infecções por EV, muito frequentes na idade pediátrica, são habitualmente responsáveis por sintomas ligeiros, como doença das vias respiratórias superiores ou exantema febril.

No entanto, podem também ser responsáveis por um quadro clínico com gravidade, principalmente no período neonatal.

Surtos de infecção por EV têm sido descritos, tais como:

  • O surto de EV-D68, que causou um elevado número de casos de insuficiência respiratória em crianças nos Estados Unidos em 2014; e
  • O surto de EV-71, que tem vindo a causar inúmeras mortes por rombencefalite e disfunção multiorgânica no Sueste Asiático nos últimos 40 anos.

Aspectos epidemiológicos

Os enterovírus têm uma distribuição mundial. Nos climas temperados ocorrem surtos de infecções sobretudo no Verão e início do Outono. Nos trópicos não se verifica incidência sazonal.

As respectivas infecções são responsáveis por cerca de 30%-60% das doenças febris agudas, e por cerca de 50% dos casos hospitalizados com suspeita de sépsis, de acordo com dados estatísticos de países americanos e europeus.

São considerados factores de risco: idades mais baixas, deficientes condições de higiene e saneamento, baixo nível socioeconómico e aglomerados de pessoas e crianças em infantários, escolas, e deficientes condições de habitação em geral.

A transmissão dos EV ocorre predominantemente por via directa ou indirecta de contacto fecal-oral com pessoas infectadas com o vírus.

Por exemplo, o contacto directo com fezes ocorre em actividades simples como mudar a fralda.

A transmissão indirecta pode ocorrer por más condições sanitárias e inclui água contaminada e superfícies. Pode também haver transmissão através de secreções respiratórias, mais frequente em alguns serótipos, nomeadamente Coxsackievirus A21.

O período de incubação é difícil de determinar com precisão, podendo variar de acordo com a apresentação clínica e com o vírus. Nos casos de doença febril aguda, é geralmente de 3 a 5 dias, exceptuam-se os casos de conjuntivite hemorrágica, de 24-72 horas.

A excreção do vírus pelo tracto respiratório superior em doentes infectados permanece durante cerca de 1 a 3 semanas e, pelas fezes, durante cerca de 3 a 8 semanas.

O período de maior contágio verifica-se provavelmente nas primeiras duas semanas após infecção aguda.

Etiopatogénese

Muito do que se sabe da etiopatogénese dos enterovírus foi extrapolado de estudos da infecção por poliovírus. Após a aquisição do vírus, a replicação inicial ocorre na faringe e íleo terminal. A ausência de invólucro lipídico favorece a sobrevivência no tracto gastrintestinal.

Por outro lado, diversas macromoléculas da superfície celular funcionam como receptores para o vírus: receptor para Adenovirus-Coxsackievirus, molécula intercelular de adesão 1 (ICAM-1), antigénio VLA-2 e proteína DAF/CD55.

A replicação inicial na faringe e intestino é seguida por uma virémia minor que possibilita a disseminação do vírus por via hematogénica para os tecidos linfóides (amígdalas, placas de Peyer e gânglios regionais).

A resposta imune do hospedeiro poderá limitar a replicação e progressão para além do sistema retículo-endotelial, do que resultará infecção subclínica.

Nos casos em que não se verifica o processo de limitação da replicação, a multiplicação subsequente faz com que haja uma virémia major, coincidente com o início da sintomatologia, sendo atingidos o SNC, coração e pele (forma sintomática).

De salientar que o tropismo para determinados órgãos-alvo é determinado em parte pelo serótipo.

Uma vez atingidos os órgãos-alvo (SNC, coração, fígado, pulmões, pâncreas, rins, músculo, pele), os mesmos são lesados em função de processo de necrose local (citólise) e de resposta inflamatória imunomediada, sendo que a resposta inflamatória poderá passar à cronicidade, sem a presença do vírus, após a sua eliminação. Como resultado da persistência possível de certos Enterovirus (por ex. Coxsackie B) poderá surgir cardiomiopatia dilatada.

A resposta imune ao EV é específica para cada um dos seus diferentes serótipos e, como tal, a reinfecção por um determinado serótipo é, em regra, assintomática.

A imunidade humoral tem um papel fundamental, não só na resposta à infecção aguda, mas também na prevenção da reinfecção; contudo, isoladamente, não é suficiente para bloquear a replicação in vitro.

A proteína da cápside VP1 é o alvo preferencial do anticorpo neutralizante, o qual confere imunidade duradoura para a doença provocada pelo mesmo serótipo.

O papel dos macrófagos na infecção por EV é essencial para a depuração do vírus, ao contrário da resposta celular mediada por linfócitos T, que não parece contribuir significativamente para a eliminação do vírus.

Certos hospedeiros são mais susceptíveis a infecções graves, nomeadamente:

  • No período neonatal: recém-nascidos infectados pelas suas mães no período perinatal, ou ainda;
  • Portadores de imunodeficiências congénitas ou adquiridas que poderão originar situações de infecção crónica;
  • Pacientes padecendo de agamaglobulinémia: possibilidade de a infecção por EV poder cursar com meningoencefalite crónica devastadora.

Manifestações clínicas

Em cerca de 90% dos casos as infecções são subclínicas; quando sintomáticas, cursam geralmente com síndroma febril ou doença respiratória inespecífica. Nos pacientes sintomáticos, o espectro e a gravidade da doença dependem do serótipo de EV assim como de factores do hospedeiro, como a idade, o sexo e o respectivo tipo de resposta imunológica, a ausência ou presença de memória imunológica. A probabilidade de doença sintomática é tanto maior quanto menor a idade da criança.

Apenas numa pequena proporção de casos se verificam manifestações clínicas graves como miocardite, meningoencefalite, rombencefalite ou sépsis. No que respeita à gravidade, ela será provavelmente maior nos extremos da faixa etária pediátrica (RN e adolescentes).

De referir contudo que, mesmo nos casos ligeiros ou assintomáticos se pode verificar excreção do vírus, o que constitui fonte de disseminação da infecção.

Tendo sido referido antes que este capítulo não incluía o Poliovirus, como complemento, sugere-se a leitura do capítulo sobre doenças neuromusculares, o qual aborda, de modo sucinto, aspectos clínicos da poliomielite na alínea relacionada com o diagnóstico diferencial.

Seguidamente são sistematizadas as principais formas clínicas das infecções por enterovírus. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Manifestações clínicas associadas à infecção por Enterovírus.

Quadro clínico Particularidades
S. febril inespecíficaTodos os serótipos de enterovírus
ParalisiaMais comum com poliovírus, mas também enterovírus, especialmente enterovírus 71
MeningiteTodos os enterovírus, sobretudo antes dos 5 anos de idade
Encefalite/meningoencefalite RombencefaliteGeneralizada ou focal, associada a meningite (na maioria dos casos, recuperação sem défice neurológico)
Doença mão-pé-bocaCoxsackie A16, A5, A7, A9, A10, e B2, B5, e enterovírus 71 (formas mais graves)
HerpanginaGeralmente por coxsackie A; por vezes enterovírus 71
Pleurodinia epidémica (doença de Bornholm)Por coxsackie B3, B5, B1, B2, ECHO vírus 1 e 6, e enterovírus 71 (formas mais graves)
Miocardite

Sobretudo por coxsackie B. Pode surgir no período neonatal com elevada taxa de mortalidade.

No adulto raramente é fatal

ExantemaPor diversos tipos de coxsackie A, B, e ECHO vírus
Infecção neonatalAlguns serótipos de coxsackie B e ECHO vírus. A transmissão ocorre durante o parto e os sinais são variáveis (desde intercorrência febril até doença multissistémica fulminante e morte)
Conjuntivite hemorrágicaVários serótipos de enterovírus (sobretudo coxsackie A24 e enterovírus 11, 19 e 70)
Pancreatite/diabetesPor coxsackie B

Doença “mão-pé-boca” (hand-foot-mouth)

Muito comum em idade pediátrica (especialmente crianças com menos de 5 anos), caracteriza-se por febre, vesículas na cavidade oral (Figura 1), mucosa bucal, palato, língua e lábios. Nas mãos e pés predominam vesículas (de 3-7 mm), sobretudo na palma e planta. Após ulceração das vesículas, observa-se pequena “cratera” amarelada (de 4-8 mm) com orla vermelha. (Figura 2)

Nas nádegas predominam as lesões exantemáticas maculopapulosas (não incluem vesículas), progredindo para as coxas e podendo originar confusão, por vezes com o padrão morfológico encontrado na púrpura de Henoch-Schonlein.

A Figura 3 mostra aspecto de exantema por enterovírus, ao nível da face, tronco, membros e dorso das mãos.

O período de incubação é, geralmente, de 3 a 5 dias e a doença habitualmente resolve-se em 2 a 3 dias sem outras complicações. Coxsackievirus A (nomeadamente A16, na Europa) são responsáveis pela maior parte dos casos descritos.

A doença é moderadamente contagiosa e o vírus pode persistir no organismo durante várias semanas após a fase aguda, permitindo que o vírus se continue a transmitir.

Nos últimos anos têm sido descritos casos de “doença mão-pé-boca” atípica: febre mais elevada, maior duração, envolvimento cutâneo mais extenso, com lesões vesículo-bolhosas atingindo também a face dorsal das mãos e pés, e superfícies extensoras dos membros e períneo.

Nas crianças com eczema atópico pode haver atingimento preferencial das zonas de eczema (eczema coxsackium). Em muitos casos ocorre descamação palmo-plantar e onicomadese (separação da unha a nível proximal do leito ungueal) 2-6 semanas após o quadro agudo. Na sua maioria, tal forma clínica é associada ao vírus Coxsackievirus A6.

Herpangina

Nesta forma clínica verifica-se início súbito de febre elevada, odinofagia e lesões na faringe posterior acompanhadas de anorexia; nas crianças mais velhas há queixas de cefaleias, cervicalgias, vómitos, dor abdominal e disfagia.

No exame objectivo destacam-se lesões papulovesiculares na orofaringe, nomeadamente pilares anteriores das amígdalas, véu do paladar e úvula. Estas pequenas vesículas (1-2 mm) ulceram em 2-3 dias, ampliando-se as lesões ulcerosas para 3-4 mm; rapidamente, as úlceras podem atingir 10 mm de diâmetro com halo vermelho circundante. A herpangina é, em regra, uma doença benigna.

Meningite

A meningite asséptica afecta frequentemente crianças com idades inferiores a um ano de idade. Em mais de 90% dos casos, os enterovírus são o agente responsável, sendo que a grande maioria pertence ao Coxsackievirus B e Echovirus.

As manifestações clínicas dependem do grupo etário. Nos recém-nascidos, manifesta-se habitualmente com febre acompanhada de outros sinais inespecíficos (diminuição da ingesta alimentar, vómitos, diarreia) e fontanela abaulada. Em crianças mais velhas predomina febre, irritabilidade, cefaleias, náuseas, vómitos, fotofobia e rigidez da nuca.

A doença é autolimitada, observando-se recuperação entre 3 a 7 dias após o início da sintomatologia.

Encefalite

Os enterovírus são agentes pouco frequentes de encefalite aguda (responsáveis por cerca de 5% de todos os casos). Vários serótipos já foram implicados na etiologia desta doença, sendo que os Coxsackievirus dos tipos A9, B2 e B5 e os Echovirus dos tipos 6 e 9 correspondem aos serótipos mais frequentemente associados. A encefalite por enterovírus ocorre em todas as idades mas tem maior incidência em crianças e jovens adultos; o seu prognóstico é mais favorável do que o da encefalite causada por outros agentes (HSV, arbovirus).

A meningoencefalite por vírus foi abordada anteriormente, em capítulo próprio, no grupo “Síndromas infecciosas”.

Pleurodinia (Doença de Bornholm)

Esta forma de apresentação de infecção por enterovírus, podendo ocorrer tanto de modo esporádico como epidémico, caracteriza-se por dor tóraco-abdominal paroxística devida a miosite, atingindo os músculos da parede torácica e abdominal.

Nas crianças pequenas as dores abdominais assemelham-se a cólicas. Acompanhada de mal-estar, cefaleia e febre, a doença agrava-se com a tosse, movimentos respiratórios, expiração forçada ou outros movimentos. Em geral evoluindo durante 3-6 dias, pode manifestar-se de modo intermitente (padrão bifásico) durante semanas, pode estar associada a miocardite, pericardite, orquite e meningite.

O serótipo mais frequentemente envolvido nesta apresentação é o Coxsackievirus grupo B, sendo também descritos outros serótipos de forma esporádica como o Echovirus 1, 6, 9 e 19, e ainda, Coxsackievirus A 4, 6, 9 e 10.

FIGURA 1. Estomatite. (NIHDE)

FIGURA 2. Lesões maculopapulosas nas palmas das mãos e plantas dos pés. (NIHDE)

FIGURA 3. Exantema da face, tronco e membros. (NIHDE)

Conjuntivite hemorrágica

A conjuntivite hemorrágica aguda é outra forma de manifestação de infecção por EV, que consiste em dor ocular, edema palpebral e hemorragia subconjuntival. Surge depois exsudado, inicialmente seroso, passando a mucopurulento por sobreinfecção bacteriana.

A febre é rara, mas pode verificar-se associação a faringite (a chamada febre faringoconjuntival, também presente nas infecções por Adenovírus).

O processo na sua evolução natural dura cerca de 10 dias. Apesar de exuberante, tal evolução é geralmente autolimitada e com percurso benigno.

Em casos mais graves, pode persistir ceratite por várias semanas e, se o agente etiológico for o Enterovirus D70, podem existir complicações intracranianas. As formas associadas a Enterovírus 11 e 19 comportam maior risco de complicações: ceratite, coriorretinite, uveíte, retinite ou glaucoma.

Miopericardite

Esta doença é mais frequente no pequeno lactente, nomeadamente no recém-nascido. A sua gravidade varia desde casos assintomáticos até a insuficiência cardíaca fulminante e morte. Os EV mais frequentemente responsáveis são os Coxsackievirus grupo B.

Rombencefalite

Esta forma clínica (encefalite do tronco cerebral associada ao enterovírus/ EV-A71) é considerada actualmente um problema emergente de saúde pública, sobretudo na Ásia, onde é responsável por epidemias recorrentes. Pode surgir na sequência de herpangina ou de “doença mão-pé-boca”, seguindo-se o atingimento do tronco cerebral e instalação por fases de um quadro clínico grave:

  1. Abalos mioclónicos associados a tremor e/ou ataxia;
  2. Mioclonias transitórias associadas a compromisso dos nervos cranianos, seguindo-se dificuldade respiratória por edema pulmonar neurogénico, cianose, choque, coma e apneia;
  3. Forma mais grave comportando mortalidade ~ 70% com sintomatologia semelhante à descrita em I e II, mas associada a diplegia facial, ataxia, disartria, oftalmoplegia internuclear e apneia de causa central e sequelas graves tais como tetraplegia espástica.

O prognóstico da rombencefalite é extremamente reservado. Nos últimos anos foram já descritos inúmeros casos de síndroma mão-pé-boca por EV-A71 na Europa e recentemente já houve casos de rombencefalite por este agente nalguns países Europeus (incluindo Portugal).

Pneumonia e paralisia flácida

No Verão de 2014 houve nos Estados Unidos da América um surto de pneumonia com insuficiência respiratória aguda que atingiu todos os estados. Este surto, causado pelo Enterovirus D68, partilha muitas das características dos Rhinovirus (sobrevivência a temperaturas de 33ºC, intolerância a ambientes ácidos); assim, não se estranha que apresente tropismo especial pelo aparelho respiratório.

No decorrer deste surto, foi identificado um aumento exponencial do número de casos de crianças com quadro agudo de paralisia flácida e disfunção de pares cranianos. Apesar de não se ter identificado Enterovírus D68 no SNC, foi estabelecida uma relação causal.

De referir que a paralisia flácida aguda devida a enterovírus não pólio é mais ligeira do que a provocada pela infecção por poliovírus.

Exames complementares e diagnóstico

Apesar de o diagnóstico ser, em regra, clínico, o diagnóstico laboratorial de uma infecção por EV pode ser obtido por isolamento e identificação do vírus em cultura celular, detecção do RNA do vírus por PCR (reacção em cadeia da polimerase), ou por métodos serológicos.

  1. A identificação do EV em cultura celular é conseguida com base no efeito citopatogénico directo produzido pelo vírus em células cultivadas; tal identificação pode ser efectuada em diversos produtos biológicos (sangue, LCR, fezes, secreções respiratórias).
    Trata-se dum método relativamente sensível, permitindo a realização de serotipagem para estudos clínicos e epidemiológicos; contudo, é demorado (3-8 dias), dispendioso e não se encontra disponível em todos os centros.
    Actualmente, a cultura celular não se justifica para diagnóstico clínico; por outro lado tem interesse para determinação de serótipos de enterovírus identificados previamente em amostras de produtos biológicos pelo método molecular PCR.
  2. No âmbito das técnicas de amplificação genómica, cabe salientar que a PCR constitui a técnica mais útil sob o ponto de vista clínico, designadamente por permitir maior rapidez na obtenção do resultado, estando disponível na maioria dos laboratórios.
    Podendo aplicar-se a uma grande variedade de amostras (LCR, soro, urina, fezes e exsudado e secreções da nasofaringe ou conjuntiva), obtém-se positividade quanto à identificação do vírus com sensibilidade entre 92% e 100%, e especificidade entre 97% e 100%. Tem como limitação o facto de não permitir a identificação dos serótipos.
  3. Quanto às provas serológicas importa referir que a microneutralização é a técnica mais utilizada para identificação de anticorpos anti-enterovírus. Ao tratar-se duma técnica específica de serótipo, a sua utilidade na prática clínica é limitada, sobretudo tendo em conta a grande variedade de serótipos existentes. Outra limitação diz respeito à baixa sensibilidade e ao tempo requerido para se obter o resultado final por ser necessário obter amostras de soro na fase aguda e na fase de convalescença.

Complicações e prognóstico

O prognóstico na maioria das formas clínicas é bom. Como regra, pode estabelecer-se que a morbilidade e mortalidade se associam a formas clínicas acompanhadas de miocardite, doença neurológica e infecção perinatal.

Tratamento

Sendo em geral as infecções por EV autolimitadas, está indicado apenas o tratamento sintomático.

No entanto, nas formas clínicas de maior gravidade, apresentando-se com quadros de miocardite, meningite, em recém-nascidos e em doentes imunocomprometidos, poderá estar indicada terapêutica específica.

A administração de imunoglobulina endovenosa poderá constituir uma opção para estes doentes, nomeadamente nos recém-nascidos com miocardite.

O pleconaril oral (antivírico eficaz in vitro dirigido a Enterovírus) nos casos de infecção grave com miocardite associada, foi recentemente suspenso pelas acções secundárias. Presentemente está em estudo um fármaco a administrar por via nasal.

Prevenção

Medidas de higiene simples, tais como lavagem cuidadosa das mãos (prevenção da transmissão oral-fecal) e outras medidas clássicas universais de higiene básica (desinfecção de objectos contaminados, higiene de lugares públicos como piscinas, de locais de confecção de alimentos, etc.) são de extrema importância para a prevenção da transmissão de EV.

As mulheres grávidas, principalmente no terceiro trimestre, devem ser informadas que se deverão manter afastadas de qualquer doente com provável infecção por EV.

Inúmeros esforços têm sido feitos para se encontrar um antivírico ou uma vacina eficazes contra o Enterovirus 71. Inúmeras vacinas inactivas contra o genótipo C4 do Enterovírus 71 parecem ser promissoras, seguras e sem efeitos adversos graves. No entanto, não conferem protecção para outros genótipos, o que limita a sua utilização.

BIBLIOGRAFIA

Bergelson JM, Shah SS, Zaoutis TE. Pediatric Infectious Diseases. The Requisites in Pediatrics. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2008

Chang LY, Huang LM, Gau SSF, et al. Neurodevelopment and cognition in children after enterovirus 71 infection. NEJM 2007;356:1226-1234

Chang LY, Tsao K, Hsia S, et al. Transmission and clinical features of enterovirus 71 infections in household contacts in Taiwan. JAMA 2004;291:222-227

Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ, Hotez P (eds). Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014

Fowlkes AL, Honarmand S, Glaser C, et al. Enterovirus-associated encephalitis in the California encephalitis project, 1998-2005. J Infect Dis 2008;198:1685-1688

Freund MW, Kleinveld G, Krediet TG, et al. Prognosis for neonates with enterovirus myocarditis. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2010;95:F206-F208

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman – Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Greninger AL, Naccache SN, Messacar K, et al. A novel outbreak enterovirus D68 strain associated with acute flaccid myelitis cases in the USA (2012-14): a retrospective cohort study. Lancet Infect Dis 2015;15:671-674

Holm-Hansen CC, Midgley SE, Fischer TK. Global emergence of enterovirus D68; a systematic review. Lancet Infect Dis 2016;16:e64-e75

Kao SJ, Yang FL, Hsu YH, Chen HI. Mechanism of fulminant pulmonary edema caused by enterovirus 71. Clin Infect Dis 2004;38:1784-1788

Khan F. Enterovirus D68: acute respiratory illness and the 2014 outbreak. Emerg Med Clin North Am 2015;33:e19-e32

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw Hill Education, 2018

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Messacar K, Schreiner TL, Maloney JA, et al. A cluster of acute flaccid paralysis and cranial nerve dysfunction temporally associated with an outbreak of enterovirus D68 in children in Colorado, USA. Lancet 2015;385:1662-1664

Modlin JF. Enterovirus déjà vu. NEJM 2007;356:1204-1205

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Noor A, Krilov LR. Enterovirus infections. Pediatr Rev 2016;37:505-513

Pevear DC, Tull TM, Seipel ME, Groarke JM. Activity of pleconaril against enteroviruses. Antimicrob Agents Chemother 1999;43:2109-2112

Ventarola D, Bordone L, Silverberg N. Update on hand-foot-and-mouth disease. Clin Dermatol 2015:340-346

INFECÇÕES POR Parvovírus B19

Importância do problema

O microrganismo Parvovírus B19 (PVB19), vírus ADN e de cadeia única, pertence, como único membro, à família Parvoviridae e ao género Erythrovirus. A designação deste microrganismo deriva do facto de o mesmo se replicar unicamente nos precursores hematopoiéticos.

Foi inicialmente descoberto em 1975 no soro de dadores de sangue saudáveis. Durante muitos anos após a sua descoberta, admitiu-se que a infecção por PVB19 era assintomática ou associada a doença febril inespecífica.

Em 1980 chamou-se a atenção para o papel central do referido vírus na patogénese das crises aplásticas no contexto de anemia hemolítica crónica. Ulteriormente, concluiu-se que a entidade clínica denominada muitos anos antes Eritema Infeccioso (ou 5ª doença dos antigos) era a manifestação mais comum de infecção pelo mesmo vírus. Mais tarde associou-se o PVB19 a patologia diversa durante a gravidez, sendo a hidropisia fetal de causa não imune a mais conhecida.

As infecções por este vírus estão associadas a um espectro amplo de manifestações clínicas. Outros parvovírus são patogénicos para animais como o cão e o gato.

Aspectos epidemiológicos 

As infecções por PVB19, distribuídas em todo o mundo, são mais prevalentes na idade escolar (~ 70% dos casos entre os 5 e 15 anos), com picos sazonais na transição do Inverno para a Primavera. Trata-se do único membro da família Parvoviridae que causa doença na espécie humana.

A seroprevalência aumenta com a idade, tendo sido provado, em estudos epidemiológicos, que cerca de 40%-60% dos adultos já tiveram a infecção.

A transmissão de pessoa a pessoa faz-se sobretudo por via respiratória através das gotículas de secreções nasofaríngeas; contudo, pode fazer-se igualmente através do sangue ou derivados, facto documentado em doentes com hemofilia.

Poderão surgir infecções pelo PVB19 associadas aos cuidados de saúde/nosocomiais, com possibilidade de afectar os profissionais de saúde.

Por outro lado, pode verificar-se segundo episódio de doença no mesmo indivíduo, com probabilidade entre 10% e 60%.

Etiopatogénese

A infecção experimental com PVB19 em voluntários saudáveis revelou que a mesma constitui uma doença bifásica.

  • Cerca de 7-11 dias após a inoculação surge virémia acompanhada de febre, mal-estar, rinorreia e eliminação do vírus pelas secreções nasofarígeas. Concomitantemente, verificou-se que havia diminuição muito acentuada dos reticulócitos, atingindo-se níveis indetectáveis, a par de discreta diminuição da hemoglobina sérica. Com o surgimento de anticorpos específicos, a sintomatologia regrediu e a hemoglobina sérica voltou ao normal.
  • Cerca de 17-18 dias após a inoculação, nalguns indivíduos surge exantema associado a artralgia.

Nesta perspectiva, concluiu-se que na patogénese da doença infecciosa por PVB19 estão implicados dois mecanismos correspondentes a duas fases da mesma:

  1. A primeira fase (infecciosa), resultante da acção directa do vírus (citotoxicidade com efeito sobre as  células susceptíveis em divisão); e
  2. A segunda fase (pós-infecciosa), relacionada com a resposta imune.

Pormenorizando:

1ª Fase (infecciosa)Citotoxicidade directa sobre as células precursoras eritróides, (fase infecciosa).

O alvo primário do PVB19 é a linha celular eritróide, particularmente pronormoblastos e normoblastos em divisão. A infecção vírica (e replicação) produz lise celular com consequente depleção progressiva dos precursores eritróides e a inibição transitória da eritropoiese. O vírus não tem efeito aparente sobre a linha celular mielóide.

O tropismo para as células eritróides é explicado pela existência do chamado antigénio P (Ag P) dos grupos de sangue nas células eritróides, o qual constitui o receptor celular primário para o vírus; importa salientar:

      • Que tal receptor também se encontra ao nível das células endoteliais, renais, placentárias e miocárdicas fetais; e
      • Que indivíduos sem a proteína P são resistentes à infecção.

Importa especificar que a patogénese de anomalias muitas vezes observadas também, tais como trombopénia e neutropénia, não têm explicação na base dos conhecimentos actuais. Somente se comprovou in vitro que as proteínas do PVB19 têm acção citotóxica sobre os megacariócitos.(#)

Ocasionalmente o vírus pode infectar os leucócitos (especialmente os neutrófilos), sendo que in vitro as proteínas do PVB19 têm acção citotóxica sobre os megacariócitos. Muito embora a infecção se possa manifestar como um quadro de pancitopénia, o vírus não constitui factor etiológico desencadeante de verdadeira anemia aplástica.

2ª Fase (pós-infecciosa)Resposta imune do hospedeiro. Nesta fase (pós-infecciosa), em que se verifica a formação de imunocomplexos, o quadro clínico é variável, em função de diversos factores: estado geral anterior do paciente infectado por PVB19, idade, eventual verificação de imunocompetência, de alteração da imunidade humoral e/ou de doença hematológica (designadamente anemia hemolítica crónica).

      1. Nas situações imunocompetência ou normalidade dos mecanismos do sistema imune, verifica-se que 25% dos infectados estão assintomáticos, 50% evidenciam sintomatologia inespecífica (febre, mialgia, cefaleia), e 25% apresentam manifestações cutâneas do tipo exantema (mais frequentes até aos 10 anos), e articulares (sobretudo em adolescentes e adultos). Os indivíduos imunocompetentes produzem anticorpos específicos (IgG e IgM contra o vírus).
      2. Nos indivíduos padecendo de anemia hemolítica crónica e doutras doenças hematológicas caracterizadas por turnover elevado de eritrócitos existe especial vulnerabilidade face a perturbações, mesmo ligeiras, da eritropoiese. A infecção por PVB19, levando a inibição transitória da eritropoiese, provoca diminuição significativa da hemoglobina (Hb), requerendo muitas vezes transfusão. Em tal circunstância verifica-se igualmente diminuição acentuada dos reticulócitos, traduzindo lise dos precursores eritróides infectados.
        Neste contexto, a normalidade da imunidade humoral é crucial para controlo da infecção (como mecanismo natural de resposta). Assim, como resultado do mecanismo de compensação funcionante/normal, surge imunoglobulina específica (Ig)M dentro de 1-2 dias após a infecção, seguindo-se elevação de IgG anti-PVB19, conduzindo a controlo da infecção, restauração da reticulocitose e a elevação da Hb.
      3. Nos indivíduos com alteração da imunidade humoral existe risco aumentado de infecções por PVB19 mais graves e persistentes, traduzindo-se por aplasia eritrocitária crónica, por vezes acompanhada de neutropénia, trombocitopénia e insuficiência medular. Nas crianças submetidas a quimioterapia no contexto de leucemia ou outras formas de cancro, submetidas a transplantes, assim como em situações de imunodeficiência congénita ou adquirida (incluindo SIDA) verifica-se risco elevado de infecções crónicas por PVB19.

O papel da imunidade celular na recuperação da doença não é conhecido, muito embora alguns doentes em que se desenvolve infecção persistente evidenciem défice de células T bem como outras alterações do sistema imune.

Notas importantes:
Considerando como referência o período de incubação de 7 dias, poder-se-á estabelecer a seguinte cronologia de eventos mais importantes, relacionados com a patogénese:
🡪 Virémia e sinais inespecíficos persistindo entre o 7º e o 14º dia;
🡪 Descida dos reticulócitos e Hb a partir do 6º-7º dia e persistindo cerca de 4 semanas;
🡪 Ac IgM específicos anti-PVB19 desenvolvendo-se rapidamente após o início da virémia (entre 4-10 dias após a infecção) com pico pelas 2-3 semanas e persistindo durante tempo superior a 6-8 semanas (podendo desaparecer pelos 3-6 meses); constituem o melhor marcador de infecção aguda/recente;
🡪 Ac IgG específicos a partir do 14º dia ou terceira semana após a infecção; (marcadores de infecção passada ou de imunidade, detectáveis durante toda a vida);
🡪 Exantema e artropatia pela 3ª-4ª semana;
🡪 O aparecimento de erupção cutânea, coincidindo, como se referiu, com o desenvolvimento de Ac IgG, ocorre após a virémia, não havendo, nesta fase, risco de transmissão da doença. O aparecimento de Ac IgG anti-PVB19 indicia infecção dominada, restabelecimento da normalidade no número de reticulócitos e elevação da concentração de Hb.

 

Manifestações clínicas

O período de incubação deste tipo de infecção varia entre 4 e 14 dias, podendo atingir 20 dias.
As manifestações clínicas são muito variadas, desde quadros específicos exantemáticos (eritema infeccioso) até apresentações graves (crises aplásicas) em doentes com factores de risco imunológicos e hematológicos.
No indivíduo aparentemente saudável, a infecção pode ser assintomática, salientando-se que a manifestação mais comum é o já referido eritema infeccioso.
Nos casos de imunodepressão (em regime de quimioterapia ou de tratamento com drogas imunossupressoras, síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida) poderá desenvolver-se infecção persistente, causa frequente de anemia crónica.
A hidropisia fetal e a morte fetal são complicações da infecção fetal.
Outras manifestações menos comuns de infecção por PVB19 incluem: púrpura trombocitopénica idiopática, miocardite, vasculite, glomerulonefrite, meningoencefalite, dermatomiosite juvenil e pseudoapendicite; tal sintomatologia pode surgir isoladamente ou como complicação do eritema infeccioso.
Seguidamente procede-se à descrição das formas clínicas mais típicas.

Eritema infeccioso (Quinta doença ou megaleritema epidémico)

É mais comum nas crianças entre os 4-10 anos. O curso clássico do eritema infeccioso pode ser dividido em três estádios distintos (Figuras 1 e 2):

Estádio 1
  • Período de transmissão possível (precedendo o exantema).
  • Doença prodrómica leve (mal-estar, rinorreia, cefaleia, mialgia).
  • Virémia (início cerca de 7 dias após a infecção).
  • Depleção das células progenitoras eritróides.
  • Desenvolvimento de Ac IgM específicos.

FIGURA 1. Criança de 4 anos, hospitalizada com quadro febril, queilite, erupção tipo “face esbofeteada” e erupção maculopapulosa difusa. Detecção de Ac IgM específicos para PVB19 e sinais laboratoriais de compromisso renal.

FIGURA 2. A mesma criança da Figura 1 evidenciando quadro morfológico cutâneo compatível com PPGSS (papular-purpuric gloves and socks syndrome).

Estádio 2
  • Exantema facial semelhante a “cara esbofeteada”.
  • Desaparecimento da virémia.
  • Desenvolvimento de Ac IgG específicos (anti-PVB19).
Estádio 3
  • Exantema eritematoso maculopapuloso das extremidades e tronco. Mais proeminente nas superfícies de extensão, poupando as palmas das mãos e plantas dos pés.
  • Curso evanescente do exantema em 1-3 semanas.
  • Artropatia.

O exantema, um dos mais comuns da infância, é muito típico, evoluindo em três fases.

Após 5-7 dias do início da doença, surge erupção cutânea avermelhada, brilhante, nas bochechas (face como que esbofeteada), seguida de erupção de tipo “rendilhado ou reticulado difuso” do tronco, por vezes purpúrica, estendendo-se gradualmente para as extremidades. Por vezes surge eritema multiforme, ou prurido na planta dos pés. Outras vezes ainda: eritema purpúrico com lesões papulares e distribuição em luva (glove) e meia (sock) originando a sigla em inglês: PPGSS (papular-purpuric gloves and socks syndrome).

Esta síndroma, relacionada sempre com infecção por PVB19, é rara no adulto, e mesmo, na criança. Um exantema residual associado ao PVB19 pode reaparecer até várias semanas ou meses após a infecção inicial, podendo ser exacerbado por alterações térmica (banho quente) e luz solar. 

Infecção por PVB19 durante a gravidez e infecção fetal

Na mulher grávida, a infecção materna primária por PVB19 pode resultar em hydrops foetalis, aborto e morte fetal, particularmente quando se verifica antes das 20 semanas de gestação (em 10% dos fetos cujas mães se infectam durante a gravidez).

A hidropisia fetal gera-se no contexto de anemia e miocardite fetais, levando a insuficiência cardíaca congestiva. A este respeito, importa salientar o efeito citopático/citotóxico do PVB19 quer sobre a hematopoiese extramedular (hepática e esplénica em fase precoce da gravidez, desde a 6ª semana), quer sobre a medular, a partir do 4º mês.

Nos Estados Unidos a etiologia mais comum da hidropisia fetal é precisamente a infecção por PVB19.

Há resultados controversos de estudos relativamente à possibilidade (ou não) de anomalias congénitas atribuíveis à infecção in utero.

No decurso da gravidez importa avaliar o hematócrito fetal através de colheita de sangue do cordão por via percutânea. Poderá estar indicada transfusão eritrocitária intrauterina.

Na data do parto está indicado o estudo do sangue do cordão ou do sangue do RN para a detecção de vírus e IgM.

O diagnóstico diferencial da anemia congénita causada por este tipo de infecção faz-se fundamentalmente com a anemia hipoplástica congénita (síndroma de Diamond-Blackfan).

Artropatia

Desde há alguns anos que se tornou clara a associação de PVB19 com artrite e artralgias. É mais comum nos adultos, particularmente na mulher; este tipo de patologia afecta principalmente as pequenas articulações das mãos e dos pés, joelhos, tornozelos e punhos, com distribuição simétrica.

Em cerca de 50% dos casos poderá verificar-se a presença de sinais gerais associados (astenia, adinamia, mialgias, cefaleias, febre, etc.), sendo que em apenas 1/3 se verifica exantema concomitantemente.

A relação entre infecção por PVB19 e artrite reumática juvenil, artrite reumatóide e doença de Still tem sido estudada exaustivamente.

Crise aplástica transitória

Em doentes com anemia hemolítica crónica, nos quais a duração da sobrevida eritrocitária está diminuída, a acentuada reticulocitopénia resultante da infecção por PVB19 conduz a diminuição da concentração de hemoglobina a níveis críticos (crise hipoplástica).

Nos doentes com drepanocitose pode haver associação da crise aplástica (compromisso de todas as séries precursoras) com síndroma torácica aguda, crises vasoclusivas e sequestração esplénica.

A infecção por PVB19 não resulta invariavelmente em crise aplástica no doente hemolítico crónico; com efeito, nalgumas situações, tal complicação poderá não surgir se tiver havido transfusão recente, o que se explica:

  • pelo efeito protector dos anticorpos anti-PVB19 transfundidos (~ 40%-60% dos dadores são imunes);
  • pela substituição dos eritrócitos do dador, de vida média normal, por eritrócitos de vida média encurtada; ou
  • pelos dois mecanismos.

Nesta forma clínica de infecção por PVB19, ao contrário do que acontece nos doentes com eritema infeccioso, existe febre, mal-estar geral, letargia e sinais e sintomas associados a anemia de gravidade variável (palidez, taquicárdia, taquipneia, etc.).

Síndromas de imunodeficiência

Os doentes com alterações diversas da imunidade humoral têm maior risco de infecção crónica por PVB19, manifestada predominantemente por anemia crónica, em geral associada a neutropénia, trombocitopénia e aplasia medular. Outras situações de risco de infecção incluem patologia em que está indicada terapia imunossupressora ou quimioterapia (tumores sólidos, leucemia linfocítica aguda, etc.).

Uma das complicações neste contexto é a síndroma hemofagocitária.

Miocardite

As infecções por PVB19 podem originar miocardite em fetos, RN, crianças, adolescentes e adultos. A este propósito, cabe referir que as células do miocárdio exprimem o antigénio P, o que já foi referido antes.

O diagnóstico etiológico pode ser realizado através do estudo do ADN.

Diagnóstico

Os Ac IgM específicos anti-PVB19, desenvolvendo-se rapidamente após o início da virémia (entre 4-10 dias após a infecção) com pico pelas 2-3 semanas, persistem durante tempo superior a 6-8 semanas. Podendo desaparecer pelos 3-6 meses, constituem o melhor marcador de infecção aguda/recente.

Os Ac IgG específicos surgem a partir do 14º dia ou terceira semana após a infecção; são marcadores de infecção passada ou de imunidade, detectáveis durante toda a vida.

A seroconversão de IgG anti-PVB19 também serve de marcador de infecção recente (aumento do título 4 vezes em duas amostras de soro com duas semanas de intervalo). De salientar que a demonstração de IgG, mesmo com títulos elevados, na ausência de IgM, não é diagnóstica de infecção recente.

A detecção do vírus no sangue ou tecidos realiza-se pela técnica da reacção em cadeia da polimerase (PCR). Este método será reservado para situações de imunodeficiência em que a resposta de anticorpos, por ser deficiente (com baixo nível de ADN no soro), não é identificada por métodos convencionais.

Com efeito, o vírus pode ser detectado mediante PCR até vários meses após a fase aguda da infecção ainda que, nos pacientes imunocompetentes, os níveis caiam rapidamente depois da fase aguda. Nos pacientes imunodeprimidos ou nos diagnosticados de crise aplásica antes do desenvolvimento da resposta imunológica, esta prova é crucial para o diagnóstico.

O método de hibridação de ácidos nucleicos permite identificar positividade somente durante 2-4 dias após o início da doença.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial das infecções por PVB19 com exantema faz-se com outras doenças exantemáticas. Nos casos de exantema e artropatia há que admitir patologia do foro da Reumatologia.

Tratamento

Não existe terapêutica específica antivírica.

Nas situações de aplasia medular induzida por PVB19, nas formas persistentes e nas formas graves nos pacientes imunodeprimidos, está indicada IGIV na dose de 200 mg/kg/dia durante 5 dias; ou 1 g/kg/dia durante 3 dias. A IGIV não está indicada nas formas acompanhadas de artropatia.

Quando se suspeita de anemia, com base na ecografia, é fundamental a monitorização fetal incluindo a determinação do hematócrito através de colheita de amostra de sangue da veia umbilical por via percutânea. Poderá estar indicada a transfusão intrauterina para prevenção da morte fetal por anemia.

Em medicina materno-fetal, o diagnóstico de hidropisia e anemia fetais implica transferência da grávida para centro especializado perante a provável indicação de transfusão fetal.

Nos quadros febris e dolorosos estão indicados antipiréticos e analgésicos como paracetamol ou ibuprofeno.

Qualquer mulher grávida não imunizada e exposta ao PVB19 deve ser observada em consulta de obstetrícia. Havendo antecedentes de hidropisia fetal, independentemente do tratamento pré-natal efectuado, a criança deve ser submetida a vigilância rigorosa no sentido de detectar qualquer anomalia e ou sequelas.

Prevenção

Não existe vacina disponível para PVB19. Está a ser investigada uma vacina composta por proteínas da cápside do vírus.

A prevenção é difícil uma vez que o vírus é transmitido antes do aparecimento de sintomas no caso índice. Por isso, não se torna necessário isolamento nem evicção escolar.

Nos casos de aplasia medular estão indicadas medidas de isolamento do doente, dado o risco de sobreinfecção.

Nota: As fotos incluídas neste capítulo fazem parte da iconografia do Departamento de Pediatria do Hospital Fernando Fonseca, Amadora-Sintra.

BIBLIOGRAFIA

American Academy of Pediatrics (AAP). Red Book 2006. Report of the Committee on Infectious Diseases: Parvovirus, erythema infectiosum, and pregnancy. Elk Grove Village, IL: AAP, 2006.

Barah F, Vallely PJ, Chiswick ML et al. Association of human parvovirus B19 infection with acute meningoencephalitis. Lancet 2001;358:729-730

Bassols AC. Parvovirus B 19 and the new century. Clin Infect Dis 2008;46:537-539

Bock CT, Klingel K, Kandolf R. Human Parvovirus B19 – associated myocarditis. NEJM 2010;362:1248-1249

Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ, Hotez P (eds). Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014

De Jong EP, Walther FJ, Kroes ACM, et al. Parvovirus B19 infection in pregnancy: new insights and management. Prenat Diagn 2011;31:419-425

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Heegaard ED, Brown KE. Human parvovirus B19. Clin Microbiol Rev 2002;15:485-505

Hsieh MY, Huang PH. The juvenile variant of papular-purpuric gloves and socks syndrome and its association with viral infections. Br J Dermatol 2004;15:201-206

Kimberlain D, Brady M, Jackson M, Long S (eds). Red Book. Elk Grove Village, IL: American Academy of Pediatrics, 2015

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw Hill Education, 2018

Lindblom A, Isa A, Norbeck O. Et al. Slow clearance of human parvovirus B19 viremia following acute infection. Clin Infect Dis 2005;41:1201-1203

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Smith-Whitley K, Zhao H, Hodinka RL, et al. Epidemiology of human parvovirus B19 in children with sickle cell disease. Blood 2004;103:422-427

Whitley KS, Zhao H, et al. Epidemiology of human parvovirus B19 in children with sickle cell disease. Blood 2004;103:422-427

Young NS, Brown KE. Parvovirus B19. NEJM 2004;350:586-597

INFECÇÕES POR VÍRUS Herpes (Varicela-Zóster, Citomegalovírus e Epstein-Barr)

1. VARICELA-ZÓSTER

Definição

As infecções pelo vírus da varicela-zóster (VVZ) são doenças contagiosas exantemáticas vesicobolhosas, de distribuição universal, geralmente benignas e autolimitadas em doentes imunocompetentes.

Importância do problema e etiopatogénese

O vírus da varicela–zóster (VVZ) pertence a um dos 8 membros da família dos Herpesvirus, subfamília Herpesviridae, género Varicelavirus; de grandes dimensões em comparação com outros vírus, com uma estrutura icosaédrica e um núcleo de DNA, cresce dificilmente em cultura de laboratório. Tem semelhanças com o vírus Herpes simplex, que também é um herpes vírus-alfa.

É causa de duas doenças distintas:

  • Varicela, correspondente à infecção primária ou primoinfecção; e
  • Zona ou herpes-zóster, correspondente a reactivação do vírus latente.

O Homem é o único hospedeiro natural do vírus.

Do ponto de vista clínico, este vírus tem três características muito importantes:

  • A sua alta contagiosidade, sendo o único vírus herpes que se transmite por disseminação aérea (aerossóis). A varicela é uma das doenças mais contagiosas na idade pediátrica (taxa de transmissão de 61%-100%);
  • A infecção latente dos gânglios das raízes sensoriais, com capacidade de reactivação sob a forma de zona ou herpes-zóster; (ver adiante)
  • A presença de sintomas no decurso da infecção primária, em contraste com os outros vírus herpes (nomeadamente VEB e CMV) cuja primoinfecção é muitas vezes assintomática.

A transmissão surge por contacto directo de pessoa a pessoa, ou por intermédio de gotículas de muco ou de saliva eliminadas pelo doente infectado; existe ainda a possibilidade de transmissão por líquidos das vesículas de doentes com herpes-zóster.

O período de incubação é cerca de 15 dias, podendo variar de 10 a 21.

Durante a primeira parte deste período verifica-se replicação do vírus no tecido linfóide local, a que se segue breve período de virémia subclínica (1ª virémia) que veicula o vírus para o SRE. As lesões cutâneas disseminadas ocorrem durante uma 2ª virémia que dura 3-7 dias. As células sanguíneas mononucleares transportam vírus, gerando o aparecimento de novas vesículas durante este 2º período de virémia.

O VVZ é também transportado “de retorno” à mucosa das vias respiratórias superiores na parte final do período de incubação, permitindo a disseminação do vírus a contactos susceptíveis antes do aparecimento do exantema.

Em condições de resposta imune normal (indivíduos saudáveis) há possibilidade de o organismo limitar a replicação do vírus, facilitando a cura. Pelo contrário, nos indivíduos imunodeprimidos (sobretudo em situações associadas a defeitos congénitos de linfócitos T ou a síndroma de imunodeficiência adquirida), a replicação do vírus continua, podendo surgir infecção disseminada com repercussões em vários órgãos.

O vírus é transportado de modo retrógrado através dos neurónios sensoriais/espinhal-medula para os gânglios das raízes dorsais paravertebrais, onde fica em estado latente.

A reactivação subsequente causa herpes-zóster, quadro caracterizado por erupção vesicular distribuída em dermátomo, sendo que a supressão da imunidade celular aumenta o risco de reactivação do VVZ.

Aspectos epidemiológicos

Antes da introdução da vacina antivaricela nos EUA há mais de 14 anos, a maior parte das crianças adquiria infecção até aos 15 anos. Cerca de uma década depois verificou-se declínio de hospitalizações da ordem de 75%, em relação com varicela complicada. Igualmente se verificou diminuição acentuada da mortalidade entre as idades de 1 e 9 anos (menos 90% de óbitos).

No que respeita à idade de manifestação da infecção por VVZ há essencialmente 2 padrões:

  • O padrão dos climas temperados, em que se inclui a Europa, com contacto precoce com o vírus; nesta circunstância é, como a varicela, uma doença da idade pediátrica, com pico de incidência no final do Inverno/início da Primavera. Em populações não vacinadas, > 90% dos casos ocorrem antes da adolescência.
  • O padrão dos climas tropicais, com infecção protelada até à adolescência e idade adulta, idade com maior probabilidade de evolução mais grave e de aparecimento de complicações.

Em relação à prevalência da infecção, em Portugal, o Segundo Inquérito Serológico Nacional Portugal Continental 2000-2002 revelou que 86,8% da população estudada é seropositiva para VVZ e, tal como noutros países europeus, a infecção por este vírus ocorre predominantemente em crianças. Dos 15 aos 19 anos a seropositividade é 94,2%, após o que se verifica um aumento gradual para 99,3%. Neste estudo, verificou-se também que apenas 2,8% das mulheres nos períodos de maior fertilidade (20-29 anos e 30-44 anos) são susceptíveis.

De acordo com o mesmo inquérito, concluiu-se que a varicela ocorre predominantemente na infância: 41,3% das crianças entre os 2 e os 3 anos já se infectaram com o vírus, aumentando para o dobro dos 6 aos 7 anos.

Num estudo prospectivo, nacional, de Janeiro 2006 a Julho 2007 (19 meses), através de notificação pela Unidade de Vigilância Pediátrica (UVP) de crianças e adolescentes internados por varicela ou zona, identificaram-se 158 casos com uma incidência de complicações de 5,8/100.000/ano. No mesmo estudo concluiu-se que:

  • A maioria dos internamentos por complicação da varicela ocorreu em crianças saudáveis (89%), sem factor de risco de varicela grave;
  • As complicações mais frequentes foram sobreinfecção bacteriana (49%); neurológicas (8,2%); respiratórias (8,2%); digestivas (5,7%) e hematológicas (0,02%); Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus foram os agentes mais frequentemente isolados, nas sobreinfecções;
  • Não houve óbitos.

A varicela é um problema de saúde pública e em vários países foram demonstrados benefícios com a introdução da vacina nos programas nacionais de vacinação. Em Portugal, uma vez que a doença não é de notificação obrigatória, não existe uma informação precisa sobre o impacte da doença na comunidade.

Manifestações clínicas

1 – Na VARICELA da criança não existe habitualmente período prodrómico, ao contrário do que acontece com o adolescente e o adulto. Este período caracteriza-se por febre, cefaleia, sensação de mal-estar, 1 a 2 dias antes do aparecimento do exantema. Este evolui rapidamente de mácula para vesícula de conteúdo transparente (que se rompe facilmente) e, posteriormente, para crosta, com distribuição crânio-caudal e centrípeta. As crostas destacam-se espontaneamente em cerca de 8 a 15 dias.
É típica a presença de lesões nos vários estádios numa mesma área anatómica. As mucosas podem ser igualmente atingidas, com ulcerações superficiais no palato e vulva. O prurido intenso acompanha geralmente o estádio vesicular do exantema da varicela. Pode verificar-se o aparecimento de linfadenopatias generalizadas. (Figura 1, evidenciado manifestações de exantema muito exuberante)
Os doentes são contagiosos desde cerca de 48 horas antes do início do exantema até à fase em que todas as vesículas se apresentam na forma de crosta (5 a 10 dias).
A varicela é uma doença de evicção escolar obrigatória.

2 – A ZONA surge por reactivação do VVZ, o qual ficou latente nos gânglios das raízes sensoriais a seguir a infecção aguda; ocorre raramente (em cerca de 5% dos casos de varicela anterior: ~ 5% até aos 15 anos, e ~ 10%-15% na idade adulta); manifesta-se sobretudo nas seguintes circunstâncias:

  • Infecção primária in utero;
  • Quadros clínicos com imunossupressão (como foi referido antes, sobretudo défice da imunidade celular), em que há probabilidade de herpes-zóster mais exuberante e mais grave, com risco de disseminação cutânea, compromisso visceral e tendência para a cronicidade. A incidência é cerca de 15% nas crianças que já tiveram leucemia, e ~ 30% nos receptores de transplante medular e nos infectados pelo VIH;
  • Envelhecimento, a partir dos 50 anos; se um indivíduo viver até aos 80 anos aumenta a probabilidade de adquirir infecção zóster, que é tanto mais grave quanto mais tardio o seu aparecimento. (ver atrás)

Esta forma clínica caracteriza-se por uma erupção unilateral, por vezes acompanhada de linfadenopatia regional. Na fase de pré-erupção existe dor, mal-estar, febre, hiperestesia, sensação de “queimadura” ao longo de uma área limitada de pele de trajecto mais ou menos rectilíneo, suprida por nervos sensitivos de um ou dois gânglios das raízes dorsais, (dermátomo); no adolescente e adulto a dor relaciona-se com neurite aguda.
Surge, ao cabo de alguns dias, a erupção de pápulas que rapidamente se transformam em vesículas segundo um trajecto mais ou menos rectilíneo (ou paralelamente, em dois trajectos se estiverem em causa dois dermátomos), progredindo até à fase de crosta em cerca de 5 a 7 dias. Em cerca de um terço dos casos poderá verificar-se a ocorrência de vesículas “vizinhas” que ultrapassam o limite do dermátomo.
Embora raramente, poderá a zona ter localização ao nível do trajecto do nervo trigémio, acompanhando-se as lesões cutâneas de conjuntivite, ceratite e iridociclite. Outro possível nervo craniano afectado é o facial. Neste caso a tradução clínica mais típica é paralisia facial e aparecimento de vesículas no canal auditivo externo (síndroma de Ramsay-Hunt).
A nevralgia pós–zóster, mantida por vezes 2 a 3 meses, é rara em idade pediátrica.

FIGURA 1. A) Varicela – predomínio de vesículas visualizando-se algumas crostas; B) Varicela confluente com predomínio de vesículas; zona nadegueira protegida da luz, menos exuberante em lesões (fotoprotecção). (NIHDE)

FIGURA 2. A) Herpes-zóster: lesões na área do trigémio; B) Herpes-zóster de localização torácica; lesões de trajecto rectilíneo ao longo dos nervos intercostais acompanhando a direcção das costelas. (NIHDE)

Factores de gravidade

No que se refere à gravidade da doença verifica-se um aumento da morbilidade e mortalidade na mulher grávida susceptível, e no feto. A síndroma da varicela congénita caracteriza-se por lesões do SNC, globo ocular (cegueira), cicatrizes cutâneas permanentes e defeitos dos membros, com incidência de 2% nas primeiras vinte semanas de gravidez.

Esta situação é distinta da varicela perinatal, surgindo no recém-nascido quando a mãe contrai varicela no período entre 5 dias antes do parto e 5 dias depois. A varicela perinatal é geralmente muito grave pois, para além da imaturidade imunológica do recém-nascido, nesta fase não houve ainda passagem transplacentária de anticorpos maternos que seriam um factor de protecção. A terapêutica com imunoglobulina específica e aciclovir tem melhorado muito o prognóstico destes doentes.

Para além destes dois quadros clínicos, há um risco acrescido de complicações para a mulher e para o feto na varicela contraída no último trimestre, respectivamente pneumonia e disseminação da doença.

A gravidade da varicela é maior no adulto, com maior morbilidade e mortalidade: o número de lesões é maior, os sintomas sistémicos mais duradouros e as complicações mais frequentes, tendo sido verificado nalguns estudos que a encefalite é sete vezes mais frequente que na criança, e a mortalidade vinte e cinco vezes maior.

O risco de varicela grave é também maior nas síndromas acompanhadas de imunodeficiência, especialmente nos casos de doença maligna sob quimio ou radioterapia, no caso de corticoterapia em altas doses e nos defeitos da imunidade celular.

Por este motivo, as complicações da varicela passaram a ser mais frequentes à medida que maior número de crianças com doença maligna, transplantação de órgãos ou asma grave, foi sendo tratado com sucesso. Igualmente nos casos de SIDA, têm sido descritos casos graves e fatais. Doentes submetidos a terapêutica prolongada com salicilatos também têm maior risco de doença grave e complicações.

A infecção congénita é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Complicações

A partir da década de 90 passou a verificar-se aumento de complicações na criança saudável e sem factores de risco prévios, nomeadamente cutâneas, respiratórias e neurológicas.

No que se refere às complicações cutâneas, especialmente na varicela, salienta-se o papel de Streptococcus pyogenes, responsável por situações muito graves como a fascite necrosante. É controverso se as complicações cutâneas e sistémicas estão associadas a toma prévia de anti-inflamatórios não esteróides como nimesulido e ibuprofeno, pelo que estas drogas não devem ser prescritas no decurso da varicela. A medicação com salicilatos antes e durante a doença relacionou-se com o aparecimento de síndroma de Reye.

Outras complicações descritas na literatura em relação com infecções por VVZ em geral, incluem: meningite asséptica, síndroma de Guillan-barré, encefalite (nalguns casos em relação com o próprio vírus), ataxia cerebelar (por mecanismo imunológico, sem acção directa do vírus), púrpura trombocitopénica concomitante com a doença aguda ou de aparecimento a posteriori.

Exames complementares

Na prática, em situações correntes, o diagnóstico é essencialmente clínico-epidemiológico. Em situações especiais ou em casos complicados poderá estar indicada a realização de exames complementares: por microscopia electrónica para estudo citológico (pesquisa de corpos de inclusão, células gigantes) e isolamento do vírus no fluido das vesículas ou nos produtos de raspagem das lesões.

A pesquisa de DNA por PCR (reacção em cadeia da polimerase), mais sensível que a imunofluorescência, pode ser feita no raspado das lesões cutâneas, saliva e líquido céfalo-raquidiano cutâneas, saliva e LCR. Também pode ser utilizada para diferenciar a estirpe selvagem da estirpe vacinal (OKA). O isolamento através de cultura de células é pouco utilizado.

Para confirmar a infecção poderão utilizar-se provas serológicas como provas de fixação do complemento, pesquisa de anticorpos fluorescentes para os antigénios de membrana, métodos ELISA, radioimunoensaio, etc..

Para confirmar o estado de imunidade relativamente à varicela após vacina, pode recorrer-se ao estudo serológico. Nalguns centros, para confirmar o estado de imunidade relativamente à varicela procede-se a uma prova intradérmica utilizando a estirpe OKA inactivada do vírus. Tal prova evidenciou sensibilidade e especificidade ~ 95%, comparável à obtida com o estudo serológico com pesquisa de anticorpos fluorescentes.

Tratamento

O tratamento da maioria dos casos é sintomático.

O doente internado com varicela deve ser isolado, com precauções de transmissão de contacto e via aérea.

Se a criança estiver febril, deve ser administrado paracetamol, não devendo ser administrados salicilatos nem anti-inflamatórios não esteróides.

Os banhos de amido são, regra geral suficientes para o bem-estar da criança. Igualmente não se utiliza a aplicação de tópicos. Em relação ao prurido, a terapêutica com anti-histamínicos pode ser administrada.

Os pais e mais directos responsáveis pelos cuidados a prestar à criança doente devem ser instruídos no sentido de procederem ao corte das unhas e de correcta lavagem das mãos de modo a diminuir o risco de sobreinfecção bacteriana.

As roupas devem ser de algodão e fáceis de despir, sem traumatizar a pele. Os banhos estão indicados, com a água à temperatura habitual, mas deverão ser rápidos, tendo o cuidado de secar a criança sem friccionar o corpo com a toalha.

As crianças com varicela não complicada podem regressar à escola após todas as lesões estarem em fase de crosta.

A terapêutica com aciclovir não é recomendada para uso generalizado na criança saudável com varicela. Quando indicada, deve ser iniciada o mais precocemente possível (idealmente nas primeiras 24 horas, logo após início do exantema; é inútil após o 3º dia de evolução da doença).

O aciclovir oral (20 mg/kg/dose até máximo de 800 mg/dose, em 4 tomas diárias durante 5 dias) está indicado em crianças com risco aumentado de doença grave: adolescentes; doenças crónicas dermatológicas ou pulmonares; terapêutica mantida com salicilatos; terapêutica com corticóides, de curta duração, intermitente ou por aerossóis; casos secundários num agregado familiar (os casos secundários são geralmente mais graves). O valciclovir (20 mg/kg/dose, máximo 1000 mg, 3x dia, 5 dias) também pode ser utilizado, em crianças dos 2-18 anos. O aciclovir endovenoso está indicado nos doentes imunodeprimidos (5-10 mg/kg/dose de 8-8 horas durante 7 a 10 dias) ou em complicações graves, como encefalite por VZV.

No herpes-zóster o aciclovir abrevia a cura das lesões cutâneas, reduz o tempo de evolução da neurite aguda, assim como o risco de nevralgia pós-fase aguda. Está igualmente indicado nos casos de doentes com imunodepressão, contribuindo para diminuir o risco de disseminação visceral.

O tratamento das infecções cutâneas secundárias é abordado noutros capítulos.

Prevenção

Imunização passiva – Imunoglobulina humana antivaricela zoster (IgVZ)

A imunoglobulina antivaricela zóster (IgVZ) deve ser administrada para prevenir a varicela em doentes que não têm imunidade para o vírus e que apresentam risco de complicações graves se adquirirem a infecção. A IgVZ deve ser administrada o mais precocemente possível após exposição, com limite máximo de 96 horas para a forma endovenosa, e 72 horas para a forma intramuscular; e, de preferência, nas primeiras 48 horas. A varicela após IgVZ é, regra geral, mais benigna mantendo-se, contudo, contagiosa.

A decisão de administrar IgVZ deve fundamentar-se em três parâmetros: susceptibilidade à doença; probabilidade de a exposição resultar em infecção; risco de complicações graves.

Aos indivíduos com risco de complicações graves, com exposição continuada ao vírus, deve ser feita uma segunda administração de IGVZ passadas três semanas.

Os doentes sob terapêutica mensal com altas doses de IGIV estarão muito provavelmente protegidos se a última administração tiver ocorrido menos de 3 semanas antes da exposição. A IgVZ interfere com a resposta imunológica às vacinas vivas, especialmente VASPR nos 5 meses subsequentes à sua administração, razão pela qual o calendário vacinal da criança a quem foi administrada IgVZ deve ser adaptado a esta circunstância.

Se não for respeitado o intervalo entre IgVZ e VASPR deve proceder-se à titulação dos anticorpos para VASPR, um mês após a vacinação.

A IgVZ não é recomendada para indivíduos já vacinados contra a varicela.

A IgVZ não deve ser usada indiscriminadamente já que condiciona apenas uma protecção temporária de cerca de 3 semanas (um caso de varicela numa enfermaria não implica a prescrição alargada de IGVZ baseada apenas na susceptibilidade à doença).

Vacina antivaricela

A propósito desta medida de prevenção, sugere-se a consulta do Capítulo sobre Imunizações e Vacinas.

Considera-se actualmente que a administração de duas doses confere uma maior protecção.

Estão descritos casos de varicela surgindo algum tempo após a vacinação, por falência vacinal secundária devida a uma perda progressiva, ao longo do tempo, da imunidade contra o vírus (breakthrough disease). Esta eventualidade poderá ser minorada com o esquema vacinal de duas doses.

2. CITOMEGALOVÍRUS

Definições e aspectos epidemiológicos

O citomegalovírus humano (CMV) é um vírus ADN da família Herpesviridae, ubiquitário na comunidade. A prevalência da infecção por CMV aumenta com a idade, é mais elevada nos países em desenvolvimento e nos estratos socioeconómicos mais precários.

Na maioria, as infecções por CMV são assintomáticas; contudo, o espectro de manifestações é amplo, entre infecções ligeiras e fatais. Certos grupos populacionais são considerados de risco, como os recém-nascidos e os imunodeprimidos, nomeadamente as imunodeficiências primárias com disfunção das células T e NK, transplantados e os portadores de infecção por VIH. Em indivíduos imunocompetentes a infecção por CMV poderá apresentar-se como mononucleose infecciosa.

A infecção congénita é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Considera-se infecção primária a que ocorre num indivíduo susceptível, seronegativo. Infecção recorrente é a que surge por reactivação de infecção latente ou por reinfecção de hospedeiro imune-seropositivo. Doença por CMV poderá resultar de infecção primária ou recorrente, sendo que no primeiro caso existe maior probabilidade de quadro clínico mais grave.

Em países em desenvolvimento, a maioria das crianças é infectada até aos 3 anos de idade; em países desenvolvidos, a infecção ocorre geralmente na infância e adolescência, sendo que 60%-80% da população já teve a infecção quando chega à idade adulta.

Etiopatogénese

Da família Herpesviridae fazem parte também outros vírus: Epstein-Barr (VEB), herpes simplex 1 e 2, varicela-zoster, e herpesvirus 6, 7 e 8. Como qualquer herpesvírus, tem a característica de se manter latente no organismo, o que condiciona a possibilidade de reactivação. (ver atrás)

Estão descritos diversos modos de transmissão:

  • Congénita: via placentária. A incidência de infecção congénita por CMV varia de 0,2%-2,4%;
  • Perinatal: secreções vaginais (parto), leite materno (incidência de 10%-60% nos primeiros seis meses de vida), urina, saliva ou por transfusão;
  • Crianças: saliva, lágrimas, leite materno, urina (taxa de infecção de 50%-80%); sobretudo na infância; as creches contribuem para a disseminação da doença nesta faixa etária;
  • Adolescentes: sémen, secreções vaginais; durante este período ocorre um segundo pico de infecção devido à transmissão sexual;
  • Outros: intrafamiliar, transfusões de sangue e derivados (infecção por resíduos de leucócitos no derivado), transplante de órgãos.

A doença clínica resulta fundamentalmente dos seguintes factores:

  • Depressão da imunidade celular (sobretudo de células T e NK); a imunidade humoral não parece ser tão importante, sendo a presença de anticorpos contra CMV indicador de infecção prévia ou recente e não um marcador de imunidade por si;
  • Replicação vírica intensa com consequente aumento da respectiva carga; alguns genótipos estão associados a doença mais grave
  • Compromisso multiorgânico por efeito citopático directo dos vírus, sobretudo em determinados órgãos-alvo.

O vírus induz reacção inflamatória com infiltração celular focal por células mononucleadas. Os órgãos mais afectados são o pulmão, fígado, rins, aparelho gastrintestinal, glândulas salivares e outras glândulas exócrinas. Pode surgir necrose focal no cérebro e fígado, acompanhada de granulomas com calcificações.

A presença de CMV intracelular e a replicação do vírus incrementa a expressão de mediadores inflamatórios como citocinas e quimocinas; as células infectadas aumentam de tamanho e podem conter inclusões (grandes, intranucleares, e mais pequenas, intracitoplásmicas) podem conter inclusões que são patognomónicas da infecção por CMV (doença de inclusões citomegálicas).

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações clínicas são variáveis e influenciadas pelo momento em que ocorre a transmissão da doença (congénita, perinatal ou pós-natal), idade do doente e concomitância, ou não, de imunodeficiência.

Uma vez que a infecção perinatal é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia, é dada ênfase às manifestações pós-neonatais.

Na sua maioria, as crianças imunocompetentes com infecção por CMV são assintomáticas; em cerca de 10% dos casos surge febre, tosse, cefaleia, dor abdominal com diarreia, artralgias, mialgias; por vezes, exantema petequial ou morbiliforme, linfadenopatias e hepatoesplenomegália. Em crianças mais velhas e adolescentes, o quadro é semelhante à mononucleose infecciosa, com elevação de ALT e AST, e linfocitose atípica, febre, fadiga, faringite, adenopatia (sobretudo cervical) e hepatite. Podem surgir manifestações ou complicações pouco frequentes em doentes previamente saudáveis. Nos doentes imunocomprometidos (sobretudo em casos de SIDA e de doentes transplantados) existe risco aumentado de infecção primária ou recorrente, incluindo febre isolada, leucopénia, pneumonite intersticial, miocardite, hepatite, coriorretinite, doença gastrointestinal (ulcerações submucosas, pancreatite, colecistite, colite), e compromisso do sistema nervoso central, com meningoencefalite ou síndroma de Guillain-Barré.

Diagnóstico

Antes da abordagem desta alínea, importa recordar conceitos: o conceito de infecção é biológico e o conceito de doença é clínico, traduzindo, em princípio, a presença de sintomatologia.

Assim, é importante diferenciar entre infecção e doença por CMV:

  • Infecção por CMV define-se como evidência de replicação de CMV independentemente da existência ou não de sinais ou sintomas;
  • Doença por CMV define-se como evidência de infecção por CMV com sinais e sintomas acompanhantes.

As modalidades diagnósticas disponíveis incluem serologia, PCR CMV qualitativa e quantitativa, antigenémia pp65, exame cultural e exame histopatológico.

O diagnóstico de infecção primária em indivíduos imunocompetentes baseia-se na detecção de IgM CMV (surgindo nas primeiras 2 semanas após o aparecimento dos sintomas e podendo persistir até 6 meses após o início dos sintomas), ou na detecção simultânea de IgM e IgG de baixa avidez, ou na seroconversão (um aumento 4 vezes do título de IgG com 2-4 semanas de intervalo). Durante as primeiras semanas após infecção primária, a avidez funcional dos anticorpos da classe IgG é muito baixa, atingindo o pico 4-5 meses depois. Os anticorpos IgG geralmente só são detectados 2-3 semanas após o início da sintomatologia e persistem por toda a vida. Os imunocomprometidos graves podem ser seronegativos, apesar de infectados.

A cultura vírica convencional é morosa e demora algumas semanas, mas pode ser utilizada em várias amostras.

As técnicas de amplificação de ácidos nucleicos existem em vários laboratórios e são sensíveis para detectar o DNA do CMV, determinar a carga vírica e monitorizar a resposta à terapêutica, sobretudo nos doentes imunodeprimidos.

A biópsia de tecidos é útil para o diagnóstico de doença invasiva tecidual por CMV, sobretudo em imunodeprimidos. O exame histopatológico pode evidenciar a presença de corpos de inclusão, tipicamente inclusões intranucleares basófilas, embora também se possam observar inclusões no citoplasma dos eosinófilos. A sensibilidade deste teste pode ser melhorada com coloração imuno-histoquímica.

O exame cultural, laborioso, necessita de várias semanas para o vírus crescer.

No paciente em estado de imunossupressão, quando não é possível a biópsia tecidual, o aumento da carga vírica no sangue pode fundamentar o diagnóstico.

Nalgumas amostras, a detecção do vírus por exame cultural ou PCR (este último, muito sensível) não confirma doença activa por CMV, pois pode haver excreção do vírus pela urina, secreções respiratórias e fezes por períodos prolongados de tempo, mesmo na ausência de doença clínica.

A distinção entre reactivação de vírus endógeno e reinfecção com estirpe diferente de CMV requer técnicas especiais com análise do ADN do vírus (com enzimas de restrição ou determinação de anticorpos específicos para epitopos do CMV, por ex. glicoproteína H).

Como nota final, cabe referir que nos doentes imunocomprometidos é habitual haver excreção aumentada de CMV, mesmo em presença de títulos elevados de IgG e de IgM, o que pode dificultar a destrinça entre infecção primária e recorrente.

Tratamento

No hospedeiro imunocompetente não está indicada qualquer terapêutica específica.

No contexto de doentes com imunossupressão utiliza-se o ganciclovir associado ou não à IGIV standard ou à IGIV hiperimune-CMV. Um dos esquemas utilizado é o seguinte:

  • ganciclovir IV (5 mg/kg/dose 12/12h ev durante 2-3 semanas, seguido de manutenção 5 mg/kg em dias alternados ou 5 dias/semana) + IGIV/CMV (400 mg/kg/dia, em esquemas diferentes).

Verifica-se, como resultado desta terapêutica, diminuição da carga vírica CMV dentro de 1 semana em 70%-80% dos doentes. Na ausência de resposta clínica ou virológica deve suspeitar-se de resistência ao fármaco antivírico.

Outros antivíricos podem ser usados: foscarnet (menor experiência em crianças) e cidofovir.

Nas formas ligeiras de infecção por CMV pode utilizar-se valganciclovir oral (16 mg/kg/dose 12/12h oral).

O ganciclovir tem diversos efeitos tóxicos, nomeadamente supressão medular, alterações hepáticas, redução da espermatogénese; e cancerígeno e potencialmente teratogénico.

O ganciclovir e valganciclovir têm excreção renal.

Prevenção

Na prevenção devem ser consideradas as seguintes medidas:

  • Medidas de protecção pessoal;
  • Vacina (ainda em estudo);
  • Esterilização do leite de mães seropositivas para RN pré-termo;
  • IGIV no período pré-transplante de órgãos (visto que o doente transplantado comporta risco acrescido de aquisição de infecção grave por CMV);
  • Utilização de sangue e derivados de dadores com anticorpos negativos para CMV a RN pré-termo e doentes imunocomprometidos (sobretudo pós-transplante e com infecção por VIH); se tal não for possível, utilização de sangue desleucocitado;
  • Se possível, utilização de órgãos de dadores livres de CMV.

Prognóstico

O prognóstico é variável consoante a data da infecção. No caso de infecção congénita, geralmente surgem sequelas neurossensoriais graves como surdez (5%-10%), coriorretinite (3%-5%), microcefalia, atraso mental ou motor. A infecção no período perinatal raramente origina sequelas.

A maioria dos doentes imunocompetentes recupera completamente. Como regra, nos imunodeprimidos o prognóstico é variável consoante a doença de base e o grau de imunossupressão.

3. VÍRUS de EPSTEIN-BARR (VEB)

Aspectos epidemiológicos

O vírus de Epstein-Barr (VEB) tem uma distribuição mundial. Nos países em vias de desenvolvimento, a infecção é geralmente muito precoce e assintomática. Nos países desenvolvidos a infecção surge habitualmente na adolescência e no adulto jovem, sendo a mesma frequentemente sintomática.

Cerca de 85% a 95% dos adultos têm anticorpos anti-VEB. Portugal segue o padrão dos países desenvolvidos de acordo com estudos do INSA/Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. A incidência anual varia, de acordo com diversas estatísticas, grupos etários e regiões do globo, entre 20 a 70/ 100.000 indivíduos. A infecção por VEB pode ser assintomática ou comportar-se como uma infecção vírica ligeira e inespecífica.

A entidade clínica conhecida por mononucleose infecciosa (MNI) tem como causa mais frequente a primoinfecção por VEB, síndroma associada ao desenvolvimento de linfomas de células B e T, linfoma de Hodgkin, linfomas primários do SNC em doentes com SIDA e carcinomas nasofaríngeos. Salienta-se que existem outras causas de “síndromas mononucleósicas”.

Etiopatogénese

O vírus de Epstein-Barr (VEB) é um vírus de DNA pertencente à família dos Herpesviridae.

A transmissão faz-se pela saliva, sangue e, possivelmente, por contacto sexual. O vírus penetra na cavidade oral, invade as células epiteliais e as glândulas salivares, causando virémia, infecção dos linfócitos B e sistema reticuloendotelial (SRE), estimulando uma resposta imune e a formação de linfócitos atípicos (linfócitos T CD8+ que aumentam em valor absoluto e relativo).

Nos adultos, este aumento de linfócitos T CD8+ resulta numa inversão transitória da relação normal de 2/1 de linfócitos T CD4+/CD8+ ou (helper/supressor), sendo menos marcada nas crianças.

Pondo em contacto secreções da orofaringe de doentes afectados por mononucleose infecciosa com linfócitos B humanos, estes são transformados espontaneamente por acção do vírus em linhas celulares linfoblastóides; por isso se chama a este vírus o agente transformador de linfócitos.

Após infecção primária, o VEB permanece latente em múltiplos epissomas dos núcleos dos linfócitos B, o que corresponde, de facto, a um estado de infecção de longa duração, clinicamente inaparente. Para além da capacidade de latência, o agente infeccioso tem capacidade de reactivação e de incorporação genómica nas células do hospedeiro, o que se repercute nas características genéticas destas últimas.

Pode, pois, considerar-se que a infecção por VEB corresponde a uma doença linfoproliferativa, já que representa uma “guerra civil linfocitária” em que os linfócitos T activados, que correspondem aos linfócitos atípicos do sangue periférico, tentam destruir os linfócitos B infectados pelo vírus, sendo esta reacção imunológica a principal responsável pelas diversas manifestações da doença.

Nos gânglios e baço verifica-se uma reacção inflamatória inespecífica com hiperplasia das células do SRE e predomínio de linfócitos normais e atípicos. No fígado podem ser evidentes sinais de necrose e distensão dos espaços porta por exsudado inflamatório constituído sobretudo por linfócitos, sem alterações, e atípicos.

Após descrição sucinta de aspectos epidemiológicos e etiopatogénese da infecção por VEB em geral, procede-se à abordagem clínico-laboratorial específica das formas clínicas: 3.1, 3.2 e 3.3.

Por fim, são focados aspectos genéricos do diagnóstico, tratamento e prognóstico das infecções por VEB em geral.

3.1 MONONUCLEOSE INFECCIOSA

Definição e manifestações clínicas

A mononucleose infecciosa (MNI) clássica é uma síndroma clínica aguda de causa infecciosa que tem como agente etiológico mais frequente o vírus de Epstein-Barr. O período de incubação varia entre 4-6 semanas, podendo o início ser agudo ou insidioso. É caracterizada essencialmente por febre, adinamia, amigdalite frequentemente exsudativa, faringite, e linfadenopatia cervical ou generalizada. Conforme o predomínio de um ou de outro sinal ou sintoma, poderão ser descritas formas febris, amigdalinas, ou ganglionares.

Podem surgir também dor abdominal, náuseas, vómitos, dificuldade respiratória, edema palpebral, esplenomegália e hepatomegália, petéquias no palato e exantema maculopapular ou morbiliforme.

O exantema pode estar associado à administração de ampicilina (ou amoxicilina), sobretudo nos adultos. A fadiga pode ser proeminente.

A designação popular de doença do beijo” e de “doença dos noivos sublinha o facto de o agente da doença se poder transmitir muitas vezes pela saliva. A designação antiga de febre ganglionar traduz a comparticipação do sistema linfóide nesta entidade clínica.

Em suma, a tríade linfadenopatias, faringoamigdalite exsudativa e muito dolorosa, e esplenomegália num doente febril é típica – conquanto não patognomónica – de MNI.

Exames complementares

A leucocitose (10.000-20.000/mm3) é mais frequente do que a leucopénia; observa-se, regra geral, predomínio de linfócitos, com linfócitos atípicos pleomorfos, que correspondem aos linfócitos T activados.

A trombocitopénia ligeira é referida na literatura (20.000-50.000/mm3) em mais de 50% dos doentes; habitualmente comprova-se uma elevação ligeira a moderada das transaminases (ALT e AST).

Diagnóstico diferencial

Apesar de, tal como foi referido, o agente etiológico mais frequente da síndroma de mononucleose infecciosa ser o VEB, há que considerar outros agentes causais da referida síndroma, nomeadamente citomegalovírus (CMV), Toxoplasma gondii, vírus das hepatites A, B e C (VHB, VHC) e, por vezes, VIH.

As situações acompanhadas de leucocitose muito acentuada põem problemas de diagnóstico diferencial com leucemia aguda. Quando a elevação das transaminases predomina há que considerar a hipótese de hepatite aguda por vírus. A amigdalite da infecção por VEB deve ser distinguida da amigdalite estreptocócica (se bem que por vezes haja co-infecção por estes dois agentes), da diftérica e de outras amigdalites por outros agentes víricos como adenovírus.

3.2 INFECÇÃO PRIMÁRIA por VEB

Em crianças pequenas, a infecção por VEB é frequentemente assintomática. Quando existe sintomatologia, as manifestações são variáveis: otite média, diarreia, queixas abdominais, infecção das vias respiratórias superiores, e quadro semelhante ao descrito para a entidade clínica “mononucleose infecciosa”.

A infecção primária por VEB pode causar dum modo geral diversas manifestações, por vezes com complicações graves:

  • Alterações hematológicas (anemia hemolítica, trombocitopénia, anemia aplásica, púrpura trombótica trombocitopénica, síndroma hemolítica-urémica, coagulação intravascular disseminada;
  • Ruptura esplénica (mais frequente durante a segunda semana de doença, embora possa surgir como apresentação clínica inicial;
  • Sintomas neurológicos (meningoencefalite, paralisia do nervo facial, síndroma de Guillain-Barré, meningite asséptica, mielite transversa, neurite periférica e neurite óptica);
  • Pneumonia, ou outras complicações respiratórias com obstrução das vias aéreas por hiperplasia do tecido linfóide;
  • Miocardite ou pericardite;
  • Pancreatite, adenite mesentérica ou hepatite fulminante;
  • Glomerulonefrite;

Como particularidades de algumas formas de infecção primária citam-se:

  • Sobreinfecção bacteriana, sobretudo por Streptococcus-hemolítico do grupo A, abcessos cervicais ou periamigdalinos;
  • Associação a síndroma de Gianotti-Crosti (constando de exantema simétrico pápulo-eritematoso podendo confluir em placas, com a duração de 15-20 dias e localização predominante nas extremidades e nádegas). Este quadro imita a dermatite atópica.

3.3 OUTRAS FORMAS CLÍNICAS de INFECÇÃO por VEB

Estão descritas alterações genéticas hereditárias determinando resposta anómala traduzida por maior gravidade ou tendência para a cronicidade da infecção por VEB. Como exemplos, são referidas mutações de genes SAP ou XIAP, ITK, MAGT1 (XMEN). (ver adiante)

Nesta perspectiva são descritas as seguintes formas clínicas:

  • Forma crónica activa: os sintomas são persistentes por mais de 6 meses, os títulos de IgG VCA são elevados (ver adiante), há evidência histológica de envolvimento focal e a virémia é elevada;
  • Síndroma hemofagocítica ou linfo-histiocitose hemofagocítica (HLH): esta situação, pouco frequente, é caracterizada por febre, hepatoesplenomegália, pancitopénia, hipertrigliceridémia e/ou hipofibrinogenémia, com fagocitose das células sanguíneas e seus precursores, actividade deficiente das células T/NK e produção anárquica de citocinas. Devem ser excluídas as formas familiares de HLH, associadas a mutação da perforina, MUNC13-4 e UNC13D;
  • Doenças linfoproliferativas: a infecção por VEB pode ser considerada um “cancro abortado”, tendo-se demonstrado que o referido vírus possui um elevado potencial oncogénico. Exemplos dessas patologias são a doença linfoproliferativa ligada ao X ou síndroma de Duncan (por mutação SAP ou XIAP), linfoma de Burkitt, carcinoma nasofaríngeo, linfomas de células B ou T e a doença de Hodgkin.
    O poder oncogénico do vírus expressa-se de modo diferente consoante as regiões geográficas. Por exemplo, o linfoma de Burkitt predomina na África Equatorial, entre o Trópico de Capricórnio e o Trópico de Câncer, e ainda na Papua Nova Guiné; o cofactor mais importante para o aparecimento desta patologia é a malária, nomeadamente por Plasmodium falciparum: a exposição contínua à malária actua como mitogénico dos linfócitos B infectados pelo vírus, diminuindo, por efeito sobre a imunidade celular, o controlo exercido pelas células T.
    A doença de Hodgkin tem um pico de incidência na infância nos países em desenvolvimento, enquanto nos países desenvolvidos a incidência é maior no adulto jovem, o que coincide com o perfil da infecção por VEB nesses países;
  • Doença linfoproliferativa pós-transplante: resulta da ausência de vigilância imune efectiva contra o VEB, pela imunossupressão. Surge habitualmente febre e infiltração linfomatosa disseminada (gânglios, fígado, baço, rim, pulmão, SNC e intestino). É mais frequente nas situações decorrentes do transplante de órgão sólido, sobretudo intestino e pulmão.

Diagnóstico

O diagnóstico de infecção por VEB pode ser suspeitado pelos dados clínicos e por certos achados laboratoriais característicos.

A confirmação do diagnóstico de infecção por VEB baseia-se na demonstração de diversos tipos de anticorpos específicos anti-VEB: VCA (viral capside antigen) IgG e IgM, EBNA (nuclear antigen), EA (early antigen); cada tipo de anticorpo é detectável em fases diferentes da infecção:

  • VCA-IgM – anticorpo surge na fase precoce da doença aguda (geralmente nas primeiras duas semanas de infecção); desaparece após vários meses de infecção; nesta fase há ausência de anticorpos EBNA. A existência de factor reumatóide pode causar um resultado falso positivo;
  • VCA-IgG – persiste durante toda a vida após infecção inicial;
  • EA – associa-se à replicação vírica; presente em 70%-80% casos de doença aguda, desaparece após 6 meses;
  • EBNA – tardio, surge cerca de 6-12 semanas após infecção, persiste para o resto da vida.

Em suma, a detecção de VCA-IgM e IgG constitui a prova serológica mais valiosa e específica para o diagnóstico de infecção por VEB, na ausência de EBNA, sendo geralmente suficiente para confirmar o diagnóstico de infecção aguda.

Como provas qualitativas de aglutinação, citam-se:

  • Prova de Paul-Bunnell-Davidsohn, em que se pesquisa a aglutinação de eritrócitos de espécies diferentes (carneiro, cavalo, etc.), empregando soro do doente contendo anticorpos/aglutininas que se formam no decurso da MNI; como aglutinam eritrócitos de outras espécies, tais anticorpos são chamados heterófilos;
  • Monospot test, que constitui uma variante da metodologia descrita antes.

Estas provas evidenciam habitualmente valores falsos positivos em menos de 10% dos casos e elevado número de resultados falsos negativos em crianças pequenas.

A detecção de DNA do VEB por técnicas moleculares no sangue, LCR e noutros produtos biológicos, tem utilidade nos doentes imunossuprimidos, em que a resposta imunológica poderá estar ausente, e em situações clínicas mais complexas. Embora por vezes difícil de avaliar, a monitorização da carga vírica do VEB no sangue é importante na síndroma linfoproliferativa pós-transplante e em doenças malignas.

Diagnóstico diferencial

Apesar de, tal como foi referido, o agente etiológico mais frequente da síndroma de mononucleose infecciosa ser o VEB, há que considerar outros agentes causais originando síndromas mononucleósicas nomeadamente citomegalovírus (CMV), Toxoplasma gondii, vírus das hepatites B e C (VHB, VHC) e, por vezes, VIH. As situações acompanhadas de leucocitose muito acentuada põem problemas de diagnóstico diferencial com leucemia aguda.

Quando a elevação das transaminases predomina há que considerar as hepatites agudas por vírus. A amigdalite da infecção por VEB deve ser distinguida da amigdalite estreptocócica (se bem que por vezes haja co-infecção por estes dois agentes), da diftérica e de outras amigdalites por outros agentes víricos como adenovírus.

Tratamento

Não existe tratamento específico para a síndroma de mononucleose infecciosa. O tratamento é geralmente de suporte, visto que a doença é autolimitada. Se existir fadiga debilitante aconselha-se repouso no leito. Os desportos de contacto devem ser evitados enquanto houver esplenomegália ou alterações da coagulação devido ao risco de ruptura esplénica.

A terapêutica com aciclovir, ganciclovir ou foscarnet diminui a replicação vírica e a disseminação orofaríngea durante o período de administração, mas não reduz a gravidade ou duração dos sintomas, nem altera o prognóstico, pelo que não é aconselhado.

Pequenos cursos de corticosteróides poderão ter utilidade nos casos de complicações da doença, nomeadamente nos casos de dificuldade respiratória por inflamação amigdalina marcada, miocardite, anemia hemolítica, trombocitopénia grave ou síndroma hemofagocítica.

Prognóstico

O prognóstico de MNI é geralmente bom, sendo as complicações pouco frequentes. Os sintomas principais podem durar entre quatro semanas a 10 meses, seguindo-se uma recuperação gradual. Um estado de fadiga pode permanecer durante mais tempo (meses). Na doença linfoproliferativa a mortalidade é elevada, atingindo os 50%.

BIBLIOGRAFIA

American Academy of Pediatrics. Varicella-zoster infections. In Pickering LK (ed). Red Book 2003. Report of the Committee on Infectious Diseases. Elk Grove Village, Il: AAP, 2003;672-680

Arvin AM, Fast P, Myers M, et al. Vaccine development to prevent cytomegalovirus disease: Report from the National Vaccine Advisory Committee. Clin Infect Dis 2004;39:233-239

Balfour HH Jr, Holman CJ, Hokanson KM, et al. A prospective clinical study of Epstein – Barr virus and host interactions during acute infectious mononucleosis. J Infect Dis 2005;192:1505-1511

Bergelson JM, Shah SS, Zaoutis TE. Pediatric Infectious Diseases. The Requisites in Pediatrics. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2008

Chaves SS, Gargiullo P, Zhang JX, et al. Loss of vaccine-induced immunity to varicella over time. NEJM 2007;356:1121-1129

Cherry J, Demmler-Harrison GJ, Kaplan SL, Steinbach WJ, Hotez P (eds). Feigin and Cherry’s Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014

Crawford DH, Macsween KF, Higgins CD, et al. A cohort study among university students: identification of risk factors for Epstein–Barr virus seroconversion and infectious mononucleosis. Clin Infect Dis 2006;43:276-282

Demmler GJ. Screening for congenital cytomegalovirus infection: a tapestry of controversies. J Pediatr 2005;146:162-164

Detrick B, Hamilton RG, Folds JD (eds). Manual of Molecular and Clinical Laboratory Immunology. Washington,DC: American Society for Microbiology, 2006

Direcção Geral da Saúde (DGS). Doenças de Declaração Obrigatória (2010-2013). Lisboa: DGS, 2016

Direcção Geral da Saúde (DGS). Segundo inquérito serológico nacional: Portugal Continental 2001-2002 – Avaliação do programa nacional de vacinação e melhoria do seu custo de efectividade. Lisboa: DGS, 2004;213-225

Dunmire SK, Verghese PS, Balfour HHJr. Primary Epstein-barr virus infection. J Clin Virol 2018;102:84-92

Feder HM Jr, Hoss DM. Herpes zoster in otherwise healthy children. Pediatr Infect Dis J 2004;23:451-457

Feigin RD, Cherry JD, Demmler GL, Kaplan SL (eds). Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2014

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Harris D, Redhead J. Should acyclovir be prescribed for immunocompetent children presenting with chickenpox? Arch Dis Child 2005;90:648-650

Heininger U, Seward JF. Varicella. Lancet 2006;368:1365-1376

Hsu BS, Smith JP, Griese ER. Varicella Zoster virus. Pediatr Rev 2019;40:375-377

Imashuku S. Treatment of Epstein-Barr virus-related hemophagocytic lymphohistiocytosis (VEB-HLH), update 2012. J Pediatr Hematol Oncol 2011;33:35-39

Jenson H. Acute complications of Epstein Barr virus infectious mononucleosis. Curr Opin Pediatr 2000;12:263-268

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw Hill Education, 2018

Leça A. Complicações da varicela – experiência hospitalar. Simpósio UCB/Pharma Aventis Pasteur MSD 2004/Livro de resumos.Congresso Nacional de Pediatria. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Pediatria(SPP), 2004

Leça A. Vacina da Varicela – os prós. Livro de resumos. XXXI Jornadas Nacionais de Pediatria. Braga: SPP, 2005

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

Lopez AS, Zhang J, Brown C, Bialek S. Varicella-related hospitalizations in the United States, 2000-2006: the 1-dose varicella vaccination era. Pediatrics 2011;127:238-245

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

McIntosh N, Helms P, Smyth R, Logan S (eds). Forfar and Arneil’s Textbook of Pediatrics. London: Churchill Livingstone, 2008

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nigro G, Adler SP, La Torre R, et al. Passive immunization during pregnancy for congenital cytomegalovirus infection. NEJM 2005;353:1350-1362

Oxman MN, Levin MJ, Johnson GR, et al. A vaccine to prevent herpes zoster and postherpetic neuralgia in older adults. NEJM 2005;352:2271-2284

Patel RA, Binns HJ, Shulman ST. Reduction in pediatric hospitalizations for varicella-related invasive group A streptococcal infections in the varicella vaccine era. J Pediatr 2004;144:68-74

Pierik JC, Gums PD, Fortanier SA, et al. Epidemiological characteristics and societal burden of varicella zoster in the Netherlands. BMC Infect Dis 2102;12:110-113

Pineda V, Pérez Benito AM. Síndrome mononucleósico. Infectologia Básica. Manual de la Sociedad Española de Infectología. Madrid: Panamericana, 2012

Remington JS, Klein JO (eds). Infectious Diseases of the Fetus and Newborn Infant. Philadelphia: Saunders, 2005

Somekh E, Bujanover Y, Tal G, et al. An intradermal skin test for determination of immunity to varicella. Arch Dis Child 2001;85:484-486

Thompson SK, Doerr TD, Hengerer AS. Infectious mononucleosis and corticosteroids. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2005;131:900-904

Vasquez M, La Russa PS, Gershon AA, et al. Effectiveness over time of varicella vaccine. JAMA 2004;291:851-855

Williams H, Macsween K, McAuley K, et al. Analysis of immune activation and clinical events in acute infectious mononucleosis. J Infect Dis 2004;190:63-71