TRANSPORTE DO RECÉM-NASCIDO

Importância do problema

Como é referido no capítulo 1, o desenvolvimento em Portugal dum plano de assistência perinatal levado a cabo nos últimos trinta anos englobando, entre outras medidas, a regionalização de cuidados e a criação dum sistema nacional de transporte neonatal inter-hospitalar, contribuiram decisivamente para francos progressos que se traduziram em melhoria das taxas de mortalidade infantil e perinatal.

Do plano de cuidados pré-natais faz parte a avaliação do risco e a transferência atempada da grávida para um centro de referência, quer por causas maternas, quer por causas fetais; o objectivo é proporcionar um nível de cuidados mais adequados à situação clínica, em obediência a um conceito clássico validado por estudos científicos.

Trata-se do conceito de “transporte in utero” segundo o qual “a melhor incubadora de transporte é o útero materno”.

Porém, em cerca de 10 a 20% dos RN sem antecedentes de risco pré-natal poderão surgir problemas clínicos graves com indicação de transferência. Daí a importância da existência dum sistema organizado de transporte permitindo que os RN doentes beneficiem de cuidados especializados prestados por neonatologista/intensivista pediátrico e enfermeira especialista, antes e durante a transferência para uma unidade de nível de cuidados mais diferenciado ou terciária (UCIN), onde existam recursos técnicos e humanos adequados à gravidade e especificidade da respectiva situação clínica.

Em Portugal, o modelo em funcionamento há mais de três décadas tem recebido reconhecimento internacional face aos resultados obtidos.

Princípios gerais

No âmbito do sistema de transporte do RN – que pressupõe organização, estruturas próprias e esquema coordenado – há que atender a um conjunto de princípios gerais tendo em vista a eficácia, eficiência e efectividade dos cuidados a prestar.

Assim, torna-se fundamental:

  1. Preferir, sempre que possível, o transporte pré-natal (já mencionado);
  2. Transferir o RN de modo seguro;
  3. Garantir que durante o transporte as condições assistenciais técnológicas e humanas sejam semelhantes ou melhores do que as praticadas na instituição que solicita a transferência; tal pressupõe a utilização de ambulância de tipo “medicalizado” (com médico e enfermeiro com competências diferenciadas em medicina intensiva), equipada com diverso material para reanimação, designadamente, incubadora, ventilador e equipamento portátil de monitorização;
  4. Assegurar que os benefícios da transferência ultrapassem os riscos inerentes à mesma;
  5. Diminuir a morbilidade e mortalidade neonatais através dos cuidados prestados pela equipa de saúde responsável pelo transporte;
  6. Haver boa relação custo-benefício, equacionando a decisão;
  7. Comunicar prévia e bidireccionalmente utilizando diversos meios tais como, via telefónica, videotelefónica, correio electrónico ou outro; tal pressupõe o funcionamento pleno e coordenado de três polos de comunicação, em obediência à ponderação sobre a alínea 6 (ver atrás):
    • equipa da instituição que decide sobre a transferência,
    • equipa móvel, de transporte,
    • equipa da instituição receptora de modo a ponderar e decidir a necessidade e benefícios da transferência, a qual deve ser comunicada e explicada aos pais;
  8. Actuar de modo humanizado, o que implica, entre outras atitudes, promover o contacto prévio mãe/pai – filho RN; em condições ideais: a mãe deve acompanhar o filho e à mesma (ou aos pais) devem ser entregues folha informativa com contactos da instituição de saúde que vai receber a criança e, sempre que possível, também uma fotografia do RN;
  9. Promover sempre a estabilização clínica do RN no hospital de origem antes do início do transporte.

Indicações

As principais indicações de transferência de RN para unidades com nível mais diferenciado de cuidados são:

  1. RN de peso < 1.500 gramas e/ou idade gestacional < 32 semanas;
  2. RN com dificuldade respiratória e/ou crises de apneia, estando indicada ventilação mecânica;
  3. RN com defeitos congénitos graves, estando indicada intervenção cirúrgica e terapia intensiva;
  4. RN em estado crítico com patologia diversa (metabólica, infecciosa, neurológica, hematológica, etc.);
  5. RN com encefalopatia hipóxico-isquémica com indicação de tratamento atendendo à eventual necessidade de terapia por hipotermia induzida.

Requisitos durante o transporte

A manutenção dos cuidados durante o transporte obriga a um conjunto de requisitos:

  • Manuseamento cuidadoso (com especial relevância nos casos de imaturidade) evitando lesões traumáticas;
  • Colocação de rolos e ninhos de contenção para melhor posicionamento e conforto;
  • Colocação de cintos de segurança;
  • Temperatura adequada, evitando, quer a hipotermia, quer a hipertermia (RN em incubadora de transporte ou berço aquecido) (Figura 1);
  • Oxigenação adequada, evitando, quer a hiperóxia, quer a hipóxia (importância do oxímetro de pulso);
  • Suprimento energético e hidroelectrolítico adequados (fluidos, electrólitos, alimentação parentérica, etc.);
  • Assépsia rigorosa tentando evitar a colonização microbiana e a infecção.

FIGURA 1. RN com capuz e envolvido em saco à base de estanho (material isolador) para evitar o arrefecimento.

Organização

Em Portugal continental existem três centros de coordenação dependentes de hospitais centrais em rotatividade por períodos variáveis, respectivamente: Lisboa (apoio à zona sul), Coimbra (apoio à zona centro), e Porto (apoio à zona norte). Efectua-se, na grande maioria das vezes, transporte por via terrestre utilizando a ambulância devidamente equipada para o grupo etário neonatal/pediátrico. (ver adiante)

Nas regiões autónomas (Açores e Madeira), e em situações especiais no continente, é possível utilizar a via aérea (helicóptero ou avião) quando a distância ou a situação clínica assim o exigirem.

A equipa (constituída por médico neonatologista/intensivista, enfermeira especializada, e técnico de ambulância de emergência/TAE) é recrutada de diversos hospitais e maternidades, em geral de zonas próximas do centro de coordenação, ou do próprio centro, segundo escala pré-determinada, garantindo apoio permanente 24 horas/dia, durante todo o ano.  

Na zona sul, adaptando o sistema já existente na zona norte e centro, passou a haver desde Janeiro de 2012 apenas uma equipa e uma ambulância para efectuar transporte simultaneamente neonatal e pediátrico, designada por TIP – transporte inter-hospitalar pediátrico (pertencente ao INEM – Instituto Nacional de Emergência Médica), adaptada, possuindo incubadora com ventilador (geminado), para recém-nascidos, e maca com ventilador pediátrico (portátil) para crianças em idade pediátrica.

A decisão sobre a instituição receptora depende das vagas existentes nas unidades da região e do tipo de patologia do RN que é transportado. O esclarecimento sobre as referidas vagas pode ser obtido permanentemente através de contacto por telefone móvel entre os hospitais e a equipa da ambulância que procede à evacuação.

A gestão e manutenção de todo o material da ambulância, incluindo consumíveis, assim como a organização de escalas rotativas de médicos e enfermeiros está a cargo do centro de coordenação do hospital/maternidade da respectiva região.

Trata-se, pois, dum modelo organizativo de parceria entre o INEM (cedendo ambulância equipada e TAE) e hospitais centrais do Serviço Nacional de Saúde (cedendo serviço organizativo e recursos humanos).

Noutros países existem outros modelos (por ex. organização de toda a logística a partir duma única instituição dando apoio à respectiva zona de influência).

Equipamento

Não cabendo, no âmbito desta obra, especificações técnicas sobre ambulâncias para o transporte de RN, é feita apenas uma resenha do material existente na ambulância de transporte neonatal e dos principais medicamentos indispensáveis.

Material

  • Estetoscópio e termómetro convencional;
  • Incubadora de transporte com sistema de aquecimento por convecção, com fonte de luz e bateria recarregável, e ainda sistema de regulação de temperatura servocontrolado;
  • Monitores electrónicos (de temperatura, cardiorrespiratório, de pressão arterial, oxímetro de ambiente/FiO2, oxímetro de pulso, etc.);
  • Sonda temperatura rectal (monitorização da temperatura central no transporte de doentes com indicação para hipotermia induzida);
  • Sistema de aspiração de secreções com sondas de aspiração estéreis, de calibres CH 5, 6, 8, 10;
  • Fonte de oxigénio e ar comprimido (cilindros com capacidade para 1.000 litros);
  • Balão tipo Ambu para ventilação manual com IPPB ou balão auto-insuflável;
  • Sistema para CPAP nasal;
  • “Máscaras” para ventilação, aplicáveis a RN de termo e pré-termo;
  • Material para entubação traqueal/tubos traqueais de diversos diâmetros → 2,5 (RN < 1.000 gramas); → 3 (RN com 1.000-1999 gramas); → 3,5 (RN com 2.000-2999 gramas); → 3,5 a 4 (RN > 3.000 gramas); laringoscópio de lâmina recta para RN com pilhas carregadas e sobresselentes;
  • Máscara laríngea;
  • Material para drenagem torácica;
  • Ventilador geminado com a incubadora permitindo ventilação por volume, por pressão ou ventilação de alta frequência oscilatória;
  • Sistema para administração de NO (óxido nítrico inalado);
  • Material para canalização arterial e venosa – artério e venoclise (cânulas, conjunto de agulhas tipo “borboleta”, agulha para injecção intraóssea, agulhas 18, 19, 20, seringas (tipo insulina de 1 mL, de 5 e 10 mL), material para cateterismo umbilical;cateteres venosos e arteriais umbilicais de diferentes calibres;
  • Sistemas de torneira de três vias;
  • Bomba de perfusão com seringa;
  • Material de pequena cirurgia;
  • Fitas reactivas para micrométodos (determinações no sangue capilar e urina, por ex. glicémia e glicosúria);
  • Sistema portátil para gasometria.

Fármacos

Soro fisiológico, glucose em água a 5% e 10%, bicarbonato de sódio molar (1 mL<>1 mEq), cloreto de potássio, cloreto de sódio a 10% e 20%, gluconato de cálcio a 10%, adrenalina a 1/1.000, diazepam, vitamina K1 (ampolas de 0,5 e 1 mg), fenobarbital, difenil-hidantoína, furosemido, dopamina, dobutamina, prostaglandina E1, gentamicina, ampicilina, lidocaína, surfactante, etc..

Miscelânea

Bata, máscaras, avental de plástico, óculos de protecção, luvas esterilizadas, sacos colectores de urina, etc..

Procedimentos

Antes do transporte

Aspectos gerais

Ao ser solicitado o transporte, a equipa do hospital de origem deverá transmitir previamente à equipa de transporte todos os dados da história clínica (eventualmente por via electrónica), sem prejuízo da informação clínica convencional, como resultados de exames complementares de diagnóstico que deverão acompanhar sempre o doente.

Eis alguns aspectos práticos:

  • Há que informar sobre o estado clínico do RN, o peso, dados fundamentais para o cálculo de doses de fármacos e fluidos a administrar;
  • É obrigatório discutir, aconselhar e programar o plano de transferência do RN;
  • Há que coordenar com o hospital emissor a hora aproximada de chegada;
  • Há que contactar o hospital receptor, confirmar a vaga, e transmitir dados clínicos do doente;
  • Há que mostrar disponibilidade por parte da equipa de transporte para aconselhar/orientar a equipa do hospital de origem.

Em suma, os bons resultados do paciente em relação ao transporte inter-hospitalar dependem fundamentalmente das medidas a tomar antes do início da viagem com o objectivo de garantir a estabilização clínica – estabilizar antes de transportar. O transporte deve ser seguro, quer para o RN, quer para a equipa.

É essencial a correção prioritária de determinadas situações a cargo da equipa médica do hospital de origem (implicando formação básica em cuidados especiais e em ventilação mecânica de curta duração), até à chegada da ambulância com a equipa de transporte.

As medidas essenciais de estabilização prévia dizem respeito a:

  • Acesso vascular para suprimento de fluidos, electrólitos, glucose e fármacos (garantia de normovolémia, normoglicémia, normopressão arterial, equilíbrio hidroelectrolítico, etc.;
  • Correcção da acidose;
  • Sedação e analgesia em função do contexto clínico;
  • Manutenção da normotermia corporal (~ 36,5ºC) monitorizando a temperatura rectal, e/ou cutânea, com sensor electrónico ao nível do hipocôndrio direito (RN sob fonte de calor, envolvimento do RN em saco de PVC exceptuando a face, etc.); para atingir tal temperatura cutânea (~ 36,5ºC), deverá providenciar-se ambiente de termoneutralidade na incubadora (garantindo a temperatura central do organismo com menor consumo de oxigénio);  

Se o RN estiver vestido e/ou ou no interior de concentrador de calor (“túnel” de perspex), por sua vez dentro da incubadora, a temperatura do ambiente desta pode ser inferior à referida atrás: peso ~ 1.000 gramas → 32ºC; peso ~ 2.000 gramas → 28ºC; peso ~ 3.000 gramas → 27ºC.

  • Administração de prostaglandinas (medicamento armazenado a 4ºC) a iniciar se houver suspeita de cardiopatia cianótica, pressupondo indicações dadas pela equipa de cardiologia pediátrica após contacto prévio, ou experiência do pediatra neonatologista.

   A dose de prostaglandina E1 (Prostin®) é:

    • inicial → 0,05-0,1 mcg/kg/minuto IV,
    • de manutenção 0,01-0,05 mcg/kg/minuto IV,
    • devido ao risco de apneia, está indicada nestes casos a entubação traqueal para início de ventilação mecânica, monitorizando a saturação transcutânea em O2 (SpO2);
    • Ventilação artificial de apoio com ventilador por pressão, utilizando os seguintes parâmetros:
      • PIP: 20 cm H2O,
      • PEEP: 3 cm H2O,
      • Relação I/E : 1/1,
      • FiO2: 50-60%,
      • Tempo inspiratório: 0,4 segundos;
  • Administração de surfactante se comprovada SDR por imaturidade pulmonar;
  • Ventilação por volume garantido ou ventilação de alta frequência consoante a situação clínica de base do RN;
  • Assistência ventilatória não invasiva – CPAP (ver adiante capítulo sobre “problemas respiratórios do RN”).
Situação especial
Indução da hipotermia em casos de encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI)

Desde que os RN preencham critérios de selecção para efectuar esta terapêutica, a iniciar no hospital de origem segundo directivas do hospital receptor, idealmente a criança deverá chegar ao hospital receptor até 6 horas após o início do quadro de EHI (período designado “janela terapêutica” para tentar garantir a eficácia da medida e o melhor prognóstico.

A hipotermia passiva deve manter-se durante o transporte com o objectivo de se atingir a temperatura considerada neuroprotetora de 34,5ºC rectal o mais rapidamente possível.

Situações do foro cirúrgico
Onfalocele e gastrosquise
  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Não administrar alimentação per os;
  • Prescrição de antibioticoterapia nos casos de gastrosquise e de onfalocelo rota;
  • Fluidoterapia IV com suprimento duplo ou triplo correspondente às necessidades de manutenção;
  • Protecção das vísceras expostas (gastrosquise ou onfalocelo rota);
Atrésia do esófago e obstrução intestinal

(atrésia duodenal, atrésia jejuno-ileal, anomalia anorrectal, íleo meconial, doença de Hirschprung, enterocolite necrosante)

  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre (aspiração contínua com pressão negativa ~ 10-20 cm H2O nos casos de atrésia do esófago);
  • Não administrar alimentação per os;
  • Fluidoterapia IV em todas as situações. Como particularidade, nos casos de enterocolite necrosante, suprimento duplo ou triplo das necessidades de manutenção, e suporte inotrópico para incrementar a perfusão mesentérica.
Anomalias congénitas das vias aéreas inferiores

(hérnia diafragmática de Bochdalek, enfisema lobar congénito, sequestro pulmonar, anomalia adenomatóide quística)

  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Entubação traqueal para início de ventilação mecânica;
  • Sedação e analgesia;
  • Detecção de possível quadro de hipertensão pulmonar (aplicação de dois oxímetros de pulso para avaliação da SpO2, num dos membros inferiores e no membro superior direito, respectivamente pós e pré-ductal.
Obstrução das vias aéreas superiores

(atrésia dos coanos, sequência de Pierre Robin, etc.)

  • Na atrésia dos coanos: colocação de tubo de Guedel (tamanho 0 ou 00) por via oral, fixando-o;
  • Na sequência de Pierre Robin, colocação do RN em decúbito ventral e, eventualmente, entubação traqueal.
Teratoma sacrococígeo
  • Manipulação cuidadosa evitando a compressão da região sacrococígea;
  • Colocação de sonda orogástrica em drenagem livre;
  • Antibioticoterapia de largo espectro abrangendo nomeadamente anaeróbios e Gram-negativos;
  • Decúbito ventral ou lateral envolvendo o tumor em compressas esterilizadas e secas.
Defeitos do tubo neural
  • Protecção da região afectada colocando o RN em decúbito ventral e imobilizando-o pela região axilar e coxas;
  • Não manipulação da área medular eventualmente exposta, humidificando-a e aplicando gotas de soro fisiológico frequentemente;
  • Não utilização de luvas com látex.

Notas:

    • Salienta-se a necessidade de garantir manuseamento do RN em condições de assépsia.
    • Outros procedimentos inerentes a situações específicas são abordados nos capítulos respectivos.
    • O RN deverá ser acompanhado de amostra de cerca de 10 mL de sangue materno sem anticoagulante.
    • Reitera-se a necessidade de informação clínica (escrita convencional ou enviada por via electrónica).

Durante o transporte

O RN somente deverá ser colocado na incubadora de transporte (previamente aquecida e ligada à corrente eléctrica do hospital) uma vez verificada a estabilização clínica.

Antes de iniciar viagem, a incubadora passará a estar ligada à bateria, e o RN à fonte de gases da ambulância.

Durante o transporte, com a equipa à cabeceira do doente, deverá proceder-se a:

  • Verificação da permeabilidade das vias aéreas, da permeabilidade da venoclise, da expansão da caixa torácica, do funcionamento da bomba de perfusão;
  • Monitorização da temperatura, das frequências respiratória e cardíaca, da SpO2, e da pressão arterial.

Na eventualidade de intercorrências durante a viagem (por ex. paragem cardiorrespiratória, obstrução das vias aéreas, extubação traqueal, pneumotórax, etc.) a ambulância deve efectuar paragem para facilitar a actuação emergente.

No caso de suspeita de pneumotórax, deve proceder-se, em condições de assépsia e após desinfecção da pele com solução antisséptica, a punção diagnóstica de emergência com seringa de 20 mL e agulha 21G, intercalando torneira de 3 vias; a punção deve fazer-se ao nível do IIº espaço intercostal na linha médio-clavicular do lado afectado, aspirando a seguir (seringa contendo soro fisiológico quando se efectua a operação pela primeira vez após punção; havendo ar ectópico no espaço pleural, observa-se “o borbulhar”). O ar aspirado é esvaziado em operações sucessivas rodando de cada vez a torneira para as posições de aspirar e esvaziar.

Este procedimento de emergência implica ulteriormente (na ambulância ou na UCIN) a eventual aplicação de drenagem permanente subaquática com dreno apropriado (II-IIIº espaço intercostal-linha axilar anterior ou Vº-VIº na linha axilar posterior) ligado a tubo de vidro passando através de tampa de frasco com líquido/soro fisiológico ou água estéreis, colocado em plano inferior ao doente; o comprimento do tubo em cm mergulhado abaixo do “nível de água” dá o valor da pressão negativa criada, em cm de H2O.

No caso de paragem cardiorrespiratória, há que proceder a manobras de reanimação neonatal (como no bloco de partos) implicando eventual re-entubação e ventilação manual com balão Ambu ou balão auto-insuflável, massagem cardíaca e administração de fármacos. (ver capítulo sobre “reanimação do RN”)

Admissão na UCIN

Trata-se do momento de “passagem de testemunho” da equipa de transporte à equipa do hospital receptor, havendo, em tal circunstância, oportunidade para:

  1. Relatar todos os eventos ocorridos durante o transporte, entregar a nota de transferência e resultados dos exames complementares de diagnóstico, caso existam e;
  2. Comentar aspectos relatados no relatório informativo de transferência que acompanha o doente.

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CUIDADOS PALIATIVOS NEONATAIS E PEDIÁTRICOS

Introdução

A área dos Cuidados Paliativos (CP), enquanto especialidade médica estruturada, teve início na década de 60 do século XX no Reino Unido com o trabalho generoso e persistente de Cicely Saunders. Deve-se a esta personalidade ímpar, enfermeira, assistente social e médica, a criação em 1967 do Hospício de S. Cristóvão, primeiro local especificamente preparado para receber crianças e jovens com doenças graves, em fase avançada ou em fim de vida, adoptando uma filosofia extrapolada dos adultos e promovendo a formação de profissionais de saúde para a tarefa de melhorar a qualidade de vida daqueles.

E, tratando-se de um sistema assistencial com um âmbito alargado (designadamente abrangendo os períodos pré- e perinatal, da infância, adolescência e juventude pré-adultícia), com um modelo de cuidados que hoje está altamente organizado e funcionando com base científica, a Organização da Nações Unidas (ONU) passou a considerar os CP como um direito humano e uma prioridade. 

Para tentar enquadrar o tema, importa referir alguns números, que são expressivos:

    • Cerca de 10 em cada 10.000 crianças e jovens sofrem de doenças que limitam ou ameaçam as suas vidas;
    • 1 em cada 10.000 crianças com os referidos problemas morre cada ano.

Conceitos básicos

Para se compreender o valor e o significado desta prática médica no âmbito da área da Pediatria, torna-se necessário:

  1. Revisitar a base etimológica da palavra paliativo: derivada da palavra paliar, que significa aliviar, atenuar ou suprimir os sintomas, tais como dor, sofrimento, angústia sem efeito directo na etiopatogénese no processo mórbido que os provoca;
  2. Mencionar certos conceitos associados à morte (pela associação de ideias, por vezes distorcida, que por vezes se faz com cuidados paliativos):
    1. a distanásia ou obstinação terapêutica, envolvendo meios extraordinários e desproporcionados ao benefício esperado; e
    2. a eutanásia ou procedimento que tende a pôr termo à vida em situação desesperada e irreversível, evitando o sofrimento.

Definições

Uma das definições mais consensuais é a que deriva da Association for Children with Life-threatening or Terminal Conditions and their Families:

Sistema de cuidados activos totais incidindo sobre o corpo, a mente e o espírito da criança, incluindo também o apoio à família:

  • Iniciando-se quando se diagnostica uma doença complexa, potencialmente fatal ou limitante da sua vida e;
  • Continuando para além do período em que a criança deixa de receber tratamento específico para a doença em causa.

Pode concluir-se globalmente que tal modalidade de cuidados (atenuação ou prevenção de diversas formas de estresse provocados pela doença física ou psíquica, com o objectivo de melhoria da qualidade de vida) é centrada, não na patologia, mas sim nas pessoas (no doente, na família e nos profissionais envolvidos no processo assistencial).

Tal atitude pressupõe, pois, providenciar resposta humanizada, individualizada e continuada a necessidades e problemas vários, respeitando vínculos, valores e o princípio da autonomia.

Por outro lado, importa salientar duas ideias basilares: 1- paliar não significa prestação de cuidados exclusivamente em fim de vida e; 2 – dado considerando que as medidas a aplicar não são dirigidas à etiopatogénese da doença, paliar não significa abandono do doente.

Tipologia das indicações para cuidados paliativos

A Association for Children with Life Threatening or Terminal Conditions and their Families distingue quatro categorias de doenças com indicação para cuidados paliativos:

  1. Doenças curáveis, embora com possibilidade de falência terapêutica: o cancro é o paradigma desta categoria;
  2. Doenças cuja cura não é possível, embora a terapêutica possa modificar a respectiva evolução natural e prolongar a vida: a fibrose quística e a distrofia muscular de Duchenne são exemplos;
  3. Doenças incuráveis, mesmo com terapêutica apropriada: são exemplos as doenças hereditárias do metabolismo;
  4. Doenças não progressivas cujas sequelas podem constituir uma ameaça de vida para o doente: é exemplo paradigmático a encefalopatia na sequência de asfixia perinatal grave; embora posteriormente a doença não progrida, as suas consequências incluem sintomatologia diversa e devastadora, incluindo designadamente convulsões, pneumonia de aspiração, escoliose progressiva, perturbações cardiorrespiratórias, etc..

Nesta perspectiva, e quanto ao planeamento e execução dos cuidados paliativos pediátricos/CPP (incluindo neonatais/CPN) à semelhança do que acontece com os adultos, podem ser discriminados diferentes níveis de actuação:

  • Nível 1 (básico) – De carácter universal, estendendo-se a todas as pessoas que cuidam de crianças, incluindo, claro, os profissionais de saúde. Exige formação básica sobre o tema em análise para que os cuidadores em geral possam sentir-se sensibilizados, quer para o alívio da dor e doutros sintomas do paciente, quer para o alívio do sofrimento psicológico e emocional das famílias;
  • Nível 2 (generalista) – Inclui o apoio de profissionais com interesse especial em cuidados paliativos (com ou sem formação nesta área) nos casos em que as necessidades paliativas são frequentes; por exemplo, pacientes assistidos em unidades de neonatalogia, de oncologia, e de neurologia;
  • Nível 3 (especialista) – Inclui a prestação de cuidados por especialistas com formação avançada em cuidados paliativos pediátricos, em dedicação exclusiva e colaborando concomitantemente em acções de formação e em investigação.

Nalgumas situações, perante um diagnóstico fetal de tempo de vida limitado ou de patologia potencialmente fatal, o reconhecimento das necessidades paliativas poderá preceder o momento do nascimento. Em tais circunstâncias, exigindo-se uma resposta diferenciada, poderá haver necessidade de cooperação entre as equipas da Neonatologia e da Obstetrícia.

Especificidades

  1. Ao contrário do que se passa no adulto, no grupo etário pediátrico em diversos períodos (desde o recém-nascido e lactente ao jovem e adolescente) há a salientar características únicas relacionadas designadamente com o desenvolvimento, maturidade biológica e emocional, e certas realidades psicossociais (comunidade, escolaridade, etc.).
    Relativamente a tais características, importa relevar os seguintes aspectos: – enorme diversidade diagnóstica, frequentemente associada à incerteza prognóstica; – trajectória de doença longa, por vezes de décadas, desde a infância à idade adulta; – a circunstância de pais e familiares em geral, assumindo-se como os primeiros cuidadores, implicar a inclusão da família na equipa de cuidados paliativos.
  1. Por outro lado, relativamente ao período de recém-nascido, que comporta uma especificidade acrescida, importa relevar os seguintes aspectos: – os cuidados paliativos neonatais são frequentemente prestados em meio hospitalar, fruto das exigências tecnológicas da população assistida; – o local preferencial de cuidados deve ser ponderado individualmente, de acordo com os recursos disponíveis e num modelo culturalmente adequado; – tanto quanto possível, e sempre que desejado pelos pais, devem ser exploradas outros locais, por exemplo: como alojamento conjunto no serviço de obstetrícia, zonas requalificadas na unidade de cuidados intensivos neonatais, unidades pediátricas independentes, ou domicílio.
  1. A questão das especificidades dos Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) foi abordada num importante documento da Organização Mundial de Saúde (OMS), focando, a propósito, os seguintes aspectos:
    • Representam um cuidado global ao corpo e espírito, incluindo o apoio à família;
    • Começam com o diagnóstico da doença e continuam, independentemente de o tratamento para a doença continuar ou não;
    • Os profissionais de saúde devem avaliar as necessidades e aliviar o sofrimento (físico, psicológico e social), tanto do paciente como da família;
    • Exigem uma abordagem multidisciplinar, incluindo a família e utilizando os recursos comunitários disponíveis, eventualmente escassos;
    • Podem ser iniciados em diversos ambientes e circunstâncias: nos hospitais, nos cuidados de saúde primários e nos domicílios.

A equipa de cuidados paliativos

A equipa de cuidados paliativos (pediátricos e neonatais) englobando obrigatoriamente um líder/coordenador, compreende um conjunto de intervenientes com especificidades (fundamentalmente, profissionais e técnicos ou especialistas no âmbito da saúde, mas também familiares do paciente) e está envolvida em tomadas de decisão complexas e dolorosas de forma holística, integrada e interdisciplinar. Pressupõe-se que a equipa, não individualmente, mas como um todo, é responsável pelas decisões que toma.

Como suas funções gerais, citam-se:

  • Assegurar a comunicação interna;
  • Promover a reflexão e o diálogo entre os profissionais;
  • Manter uma disponibilidade permanente para responder às necessidades;
  • Promover o apoio emocional e psicológico ao doente e familiares;
  • Manter actualizado o nível científico.

Sob o ponto de vista organizativo, existe consenso quanto à necessidade de a equipa elaborar um documento escrito conhecido como plano geral, antecipado, de cuidados e, para cada paciente, um plano individual de intervenção específica (personalizado, humanizado).

Todas as intervenções deverão ter em conta o supremo bem e os superiores interesses da criança e jovem, salientando-se que algumas situações clínicas poderão implicar a decisão de não continuidade ou suspensão de determinados procedimentos.

 

A competência para comunicar constitui um aspecto fundamental da formação de todos os intervenientes. Com efeito, para além da aprendizagem técnica básica, a comunicação deverá ser objecto de prática constante utilizando diversas estratégias ensino-aprendizagem, tais como a de role-playing. (ver adiante)

No âmbito da comunicação, a desenvolver por todos os elementos da equipa, no sentido de diminuir o sofrimento parental (físico, psicológico, social, espiritual), há determinados aspectos que devem ser realçados:

  • Dever imperioso de escutar os pais/família com angústias e garantir que as mensagens transmitidas foram compreendidas;
  • Saber dar “más notícias” segundo metodologia correcta; subentende-se aqui o “lado humano” e subjectivo da clínica, fundamental para se estabelecer confiança multidireccional entre todos os intervenientes no processo);
  • A comunicação em geral (e a de más notícias, em especial) deve ser planeada pela equipa e realizada em reunião multiprofissional, o mais precocemente possível; idealmente, tal comunicação deve ser transmitida sempre pelo mesmo elemento.

Notas importantes:

    1. Quando a morte se torna iminente, é fundamental:
      • assegurar à família que o agravamento da situação não se deveu às escolhas, mas sim ao progresso natural da doença, e;
      • que irão ser mantidas todas as intervenções que promovam a qualidade de vida pelo tempo necessário.
    2. Outro aspecto delicado diz respeito à forma como se aborda uma ordem de não reanimação. Em geral, é sugerido por especialistas que se tenha uma conversa com os pais sobre a legitimidade de permitir uma morte natural, colocando a tónica numa acção positiva que previne o sofrimento (conforto), enfatizando o respeito pela pessoa (dignidade) e realçando o compromisso de um acompanhamento diferenciado e permanente (ver atrás o conceito de distanásia).

Tratamento da dor e doutros sintomas

O tratamento “da dor e doutra sintomatologia” susceptível de comprometer o mal-estar dos pacientes constitui um dos princípios fundamentais da filosofia dos cuidados paliativos. Para a sua detecção precoce é necessária aplicação de escalas de avaliação da dor, o que pressupõe destreza do profissional na interpretação neuro-comportamental da resposta do recém-nascido.

Todos os profissionais envolvidos na prestação dos cuidados em análise, devem conhecer estratégias não farmacológicas para controlo da dor e fomentar a sua aplicação; eis as principais: promoção da sucção não nutritiva, sacarose oral, posicionamento adequado, toque de contenção, voz suave (preferencialmente da mãe), redução da estimulação ambiental, promoção do método canguru e amamentação.

Nas unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN), sendo grande a frequência de intervenções dolorosas (inserção de cateteres, colheita de sangue, punções, etc.), deve atender-se a estes momentos, sendo a analgesia determinante para o bem-estar do paciente. Tanto quanto possível, os procedimentos devem ser planeados de forma a respeitar uma manipulação mínima e os períodos de sono/repouso do recém-nascido.

Em conformidade com as noções gerais referidas, transcreve-se um fluxograma de actuação, definido por peritos (Carragner e McNamara) e adoptado em diversas instituições:

  1. Identificação rigorosa, precoce, dinâmica das necessidades paliativas;
  2. Consenso multiprofissional (obstetrícia/neonatologia);
  3. Comunicação de más notícias aos pais (disponibilizar todas as opções, incluindo cuidados paliativos);
  4. Conhecimento dos desejos dos pais (apoiar independentemente da escolha);
  5. Plano inicial de intervenção (acordado com a família, dinâmico, bem documentado, partilhado entre todos os profissionais);
  6. Avaliação interdisciplinar dinâmica das opções/necessidades;
  7. Planeamento dos cuidados antecipatórios (gravidez, parto, período neonatal);
  8. Cuidados em fim de vida;
  9. Luto.

Sem formação (aprendizagem e treino) não será possível identificar e satisfazer, na medida do possível, as necessidades espirituais, emocionais, psicossociais e físicas dos pais e familiares. Por outro lado, a falta de formação dos profissionais e dos familiares para compreenderem as diversas etapas dos cuidados paliativos constituem uma forte barreira para a prestação de cuidados de qualidade.

(ver Capítulos sobre: Analgesia e Sedação na Parte XXVIII e Dor no RN na Parte XXXI).

Prevenção do esgotamento da equipa

Cuidar de doentes graves e em risco de vida, bem como apoiar as famílias nas suas múltiplas necessidades, podem levar os profissionais de saúde, e em particular os médicos, a uma situação caracterizada por esgotamento, mal-estar e perda de autoconfiança; se tal perda não for identificada nem acompanhada, poderá levar a sérias consequências para a saúde física e emocional dos mesmos profissionais.

Assim, a sobrecarga emocional mal controlada pode levar ao estado de exaustão física, emocional e mental, conduzindo a um progressivo sentimento de inadequação, impotência e fracasso.

Enfim, a equipa deve estar ciente das capacidades de cada um dos seus membros para superar a sobrecarga de trabalho, evitando o envolvimento exagerado, mantendo uma comunicação aberta entre pares, e pedindo ajuda quando necessário. A equipa deve, pois, autocuidar-se.

Apoio ao luto

O luto é definido como um processo reactivo a uma perda com uma duração e complexidade variáveis de acordo com a personalidade e narrativa de cada um dos progenitores. Trata-se duma resposta adaptativa à experiência de uma perda inevitável. Muitas perdas são vivenciadas à medida que o doente e a sua família se movimentam através das etapas da doença que levará à morte.

Perante uma família que sofreu uma perda perinatal ou neonatal, todos os membros da equipa devem cooperar no apoio através da compaixão, do empenhamento na ajuda, no respeito pela integridade dos seus membros e na partilha de informação de forma honesta e rigorosa. O trabalho em equipa deve prevalecer sobre o domínio de qualquer dos seus elementos.

Em suma, o apoio ao luto representa, pois, uma componente importante dos cuidados paliativos.

Cuidados paliativos pediátricos e neonatais em Portugal

Os cuidados paliativos pediátricos não são ainda uma realidade funcional, não só em Portugal, como também noutros Países. Existe, contudo, de há muito, sensibilidade para o cuidar em fim de vida, e alguns exemplos de boas práticas, destacando-se alguns que nos chegam de Institutos de Oncologia, Neuropediatria e Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais.

Em 2013, a Sociedade Portuguesa de Neonatologia elaborou um documento nesta área intitulado – Consenso em Cuidados Paliativos Neonatais e em Fim de Vida, resultado de um estudo Delphi que contou com a colaboração de 41% dos neonatalogistas nacionais e reuniu as considerações consensuais no painel.

O documento refere que os cuidados paliativos neonatais (CPN), visam a promoção da qualidade de vida do recém-nascido (RN) e família, e a diminuição do seu sofrimento ao longo de uma doença grave, potencialmente fatal ou limitadora do tempo de vida. Os critérios adoptados são os que vigoram internacionalmente através do documento da Association for Children with Life Threatening or Terminal Conditions, anteriormente citado. É dada ênfase seguidamente aos pontos principais do referido documento:

  1. Os CPN são importantes para o RN com doenças progressivas, sem opção curativa, na qual o tratamento é paliativo desde o diagnóstico. São exemplos as seguintes situações:
    • recém-nascido no limiar da viabilidade,
    • determinadas cardiopatias complexas, síndromas polimalformativas major, determinadas doenças metabólicas, doenças genéticas (trissomia 13 e 18),
    • doenças neurodegenerativas, encefalopatia hipóxico-isquémica grave com mau prognóstico,
    • defeitos congénitos graves do sistema nervoso central ou quadros clínicos caracterizados por graves sequelas neurológicas;
  1. Os CPN são importantes para RN em que o tratamento curativo não constitui solução para o problema, ou em que a morte é previsível, mas obrigando a internamentos longos e complexos. Temos como exemplos:
    • síndroma de aspiração meconial muito grave,
    • septicémia com falência multiorgânica e sem melhoria clínica,
    • hérnia diafragmática muito grave e sem melhoria clínica ou situações de intestino curto com graves problemas de absorção.

OS CPN são igualmente importantes em situações de doenças irreversíveis não progressivas, acompanhadas de incapacidade grave. Assim, o prognóstico relacionado com a qualidade de vida futura ajuda também a determinar se o RN poderá beneficiar de CPN. É o caso de situações de paralisia cerebral muito grave, com necessidades complexas de saúde, ou RN com graves sequelas pulmonares.

Barreiras à instituição dos cuidados paliativos pediátricos

Em Portugal, os cuidados paliativos pediátricos (incluindo os perinatais e os neonatais) são já referidos em legislação, em documentos reguladores centrais e em recomendações de peritos. Contudo, à semelhança do que acontece noutros países, existem diversos obstáculos à instituição desta modalidade assistencial:

  • Incerteza no prognóstico;
  • Dificuldade da família em reconhecer e/ou aceitar que a criança tem uma doença incurável;
  • Dificuldades de comunicação, tempo limitado dos médicos e falta de recursos humanos;
  • Escassez de formação dos profissionais de saúde para a prestação de cuidados paliativos;
  • Conflitos entre familiares e entre os profissionais e familiares sobre os objectivos dos cuidados e do plano de intervenção.

Importa referir que os pais valorizam a comunicação sensível e cuidadosa, incluindo uma conversa aberta e franca que os ajude a acompanhar o seu filho ao longo de todo o processo de doença, incluindo os cuidados em fim de vida e o processo de morrer.

Num estudo efectuado por Meyer e colaboradores, os pais identificaram as seguintes prioridades a atender na prestação dos cuidados paliativos:

  • Informação honesta e rigorosa;
  • Acesso fácil aos profissionais que cuidam do seu filho;
  • Uma boa comunicação e coordenação de cuidados;
  • Apoio emocional por parte da equipa;
  • Preservação da integridade da relação pais-filho e;
  • Espiritualidade.

As circunstâncias, sistematizadas a seguir, podem tipificar, directa ou indirectamente, certas barreiras à aplicação dos cuidados paliativos:

  1. Muitos pais sentem necessidade de ser escutados, respeitados e incluídos no processo de decisão, e de não ficarem sujeitos a juízos morais por parte dos profissionais;
  2. Embora a maioria dos profissionais assuma atitudes paliativas a nível individual, nem todos dispõem de competências em comunicação, de capacidade de empatia, de disponibilidade para a escuta activa, nem de capacidade para ajudar os pais na procura de um sentido que lhes permita ultrapassar os dias difíceis que vivem durante a doença;
  3. A doença grave de um recém-nascido leva muitos pais a fazerem um luto de antecipação de perda, originando problemas emocionais e psicológicos para os quais é necessária atenção e orientação apropriada; assim, os cuidados paliativos neonatais têm o seu centro no recém-nascido, mas devem igualmente dedicar toda a atenção aos pais, não apenas durante o internamento, mas também durante a ocorrência do óbito e no apoio ao luto.

Concluindo, todos os elementos da equipa devem ter formação adequada, actualizada e sustentável no tempo, de modo a manter a qualidade dos serviços prestados, evitando a criação de barreiras.

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DOR NO RECÉM-NASCIDO

Definição e importância do problema

A dor é definida como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesão tecidual. Trata-se, pois, dum fenómeno subjectivo demonstrável no RN, já a partir das 24 semanas de gestação; efectivamente, os elementos do SNC necessários para a transmissão do estímulo doloroso ao córtex cerebral estão presentes desde aquela idade gestacional, conquanto a maturação funcional e estrutural do sistema neurossensorial progrida durante a vida pós-natal.

O reflexo doloroso característico do primeiro trimestre é exagerado e hipersensível, devido a proliferação e diferenciação das células nervosas e ao aumento do número de receptores. Esta situação mantém-se até o início do período neonatal. Neste período, a resposta ao estímulo doloroso torna-se mais específica e localizada devido ao desenvolvimento, da actividade neural, factores tróficos, marcadores e formação de sinapses específicas.

O desenvolvimento cognitivo é determinante na reacção ao estímulo doloroso o que significa que, em cada faixa etária, a reação à dor pode variar. Apesar da existência de recursos relativamente reduzidos para a analgesia no período neonatal, existem alternativas seguras e eficazes para o tratamento doloroso neste grupo etário. Salienta-se que a indicação da analgesia deverá ser individualizada e sempre considerada em recém-nascidos portadores de doença potencialmente dolorosa e/ou submetidos a cirurgia ou manobras invasivas.

De acordo com estudos epidemiológicos, em média, cada RN hospitalizado em UCIN é sujeito a cerca de 8-10 procedimentos dolorosos por dia nas primeiras semanas de vida; no caso dos RNMBP tal acontece cerca de 500 ou mais vezes durante o respectivo internamento. Entre as múltiplas “agressões” associadas aos cuidados contam-se estímulos intensos auditivos, visuais, tácteis/manuseamentos intempestivos, punções, entubações, ventilação mecânica e aspiração de secreções. Nos doentes do foro cirúrgico assume importância a dor provocada por manobras cruentas ao nível de vários territórios.

Nesta perspectiva, em todas as unidades neonatais existe a preocupação de reduzir ao mínimo a dor, a qual se exprime de modo peculiar no RN.

Cabe referir, a propósito do combate à dor (analgesia ou conjunto de medidas que suprimem ou atenuam a dor) que por vezes o mesmo é utilizado em associação a outro tipo de medida (sedação ou conjunto de medidas de acalmia); o objectivo final é, minorando o estresse, proporcionar o máximo de bem-estar à criança, o que tem repercussões funcionais positivas ao nível de diversos órgãos e sistemas.

Etiopatogénese

Face a estímulo doloroso, o RN apresenta uma resposta global de estresse traduzida por alterações de tipo cardiovascular, respiratório, imunológico, hormoral, metabólico e comportamental.

Com efeito, a dor activa determinados mecanismos compensatórios do sistema nervoso autónomo. As alterações fisiopatológicas resultantes da percepção de dor (nocicepção) podem ser sistematizadas do seguinte modo: taquicárdia, elevação da pressão arterial sobretudo à custa da pressão sistólica, taquipneia ou bradipneia/apneia, variação da pressão intracraniana, hipoxémia, hipercápnia, libertação de mediadores como renina, endorfinas, catecolaminas, e cortisol ou seus precursores.Verifica-se igualmente catabolismo proteico, consumo de gorduras e hiperglicémia. Embora a especificidade e a sensibilidade destes “indicadores” variem muito, tais sinais e fenómenos são de fácil aplicação e estão disponíveis nas unidades de cuidades intensivos neonatais.

O estímulo doloroso prolongado pode ter consequências a médio prazo, tais como hemorragia intracraniana e leucomalácia periventricular. A longo prazo, demonstrou-se que o referido estímulo poderá ter repercussão sobre a estrutura (neurónios e sinapses) do próprio sistema nervoso central. Torna-se assim compreensível que o manejo inadequado do estresse num recém-nascido seja susceptível de ter impacte negativo na criança, predispondo no futuro a problemas de ordem cognitiva e comportamental.

Avaliação da dor

A avaliação e medição da dor na criança que não possui linguagem falada coloca problemas complexos pela dificuldade na concepção de um instrumento sensível e válido, e de fácil aplicação na prática clínica.

Em complemento do que foi referido antes, cumpre salientar os parâmetros fisiológicos que podem ser “medidos” para avaliar ou “objectivar” a dor, com a noção de que se trata de medidas fisiológicas objectivas, mas pouco específicas: frequência cardíaca (elevação), frequência respiratória (maior variabilidade, elevação ou apneia), pressão arterial sistólica (elevação), sudorese palmar (aumento), pressão transcutânea ou saturação transcutânea em O2 (diminuição) e hormonas de estresse.

De facto, podem ser obtidas reacções ou sinais orgânicos similares como resultado de estímulos desagradáveis (de desconforto), mas não dolorosos. Por outro lado, a avaliação da dor no RN pré-termo e no RN em estado crítico levanta problemas particulares, pois as manifestações encontradas poderão corresponder às manifestações da própria doença de base, sendo a dificuldade maior nos casos de disfunção cerebral.

A avaliação comportamental baseia-se na modificação de determinadas expressões comportamentais desencadeadas pelo estímulo doloroso; as que têm sido mais estudadas são: a resposta motora à dor (alterações do tono e movimentos do corpo), mímica facial, choro e padrão de sono-vigília.

O choro, considerado o método primário de comunicação dos recém-nascidos (RN), é por isso pouco específico; nos casos dos recém-nascidos de extremo baixo peso, na maioria das vezes entubados, tal dado não poderá ser avaliado.

A actividade motora isolada parece ser um método sensível, pois os RN pré-termo e de termo evidenciam classicamente um repertório organizado de movimentos após a estimulação sensorial.

A expressão facial fornece informações válidas, específicas e sensíveis sobre a intensidade da dor e permite uma comunicação eficaz entre o RN e os respectivos prestadores de cuidados.

Em comparação com os parâmetros fisiológicos, os parâmetros comportamentais são mais específicos, embora menos objectivos, dependendo da interpretação de cada observador.

Na prática clínica são utilizadas as chamadas escalas (ou valorização de modo estruturado de determinados parâmetros fisiológicos ou comportamentais), atribuindo-se pontuação aos referidos parâmetros; assim, é possível chegar-se a pontução total ou somatório dos pontos atribuídos a cada parâmetro isoladamente.

Tendo como base tal critério, a avaliação da dor poderá ser feita de modo sistematizado pela equipa assistencial, designadamente nas seguintes circunstâncias:

  • Procedimentos cirúrgicos;
  • Manobras invasivas;
  • RN submetidos a ventilação mecânica;
  • RN com lesões traumáticas, incluindo traumatismos de nascimento;
  • RN com enterocolite necrosante;
  • Queimaduras da pele;
  • Abrasão causada por sensores transcutâneos, monitores ou dispositivos de contacto.

Entre várias escalas, cabe salientar quatro, de aplicação relativamente fácil:

  • NFCS (Neonatal Facial Coding Scale) ou escala de avaliação da mímica facial – presença ou ausência de 8 parâmetros observáveis na fronte e face (Quadro 1);
  • NIPS (Neonatal Infant Pain Scale) ou escala de avaliação da dor para recém-nascidos – englobando presença ou ausência de parâmetros comportamentais e fisiológicos de dor (Quadro 2);
  • CRIES (Crying, Requiring O2 for saturation > 90%, Increased vital signs, Expression, and Sleeplessness), escala utilizada para a avaliação da dor pós-operatória de RN (Quadro 3);
  • PIPP (Premature Infant Pain Profile), a escala mais adequada para avaliação da dor em RN pré-termo (Quadro 4).

A escala CRIES integra cinco parâmetros; a cada um é atribuída a pontuação de 0 a 2, obtendo-se a pontuação máxima de 10. A determinação faz-se cada 2 a 4 horas no período de 48 horas após intervenção cirúrgica. Se a pontuação for igual ou superior a 5, está indicada analgesia.

Como limitações há referir, por exemplo, a dificuldade de avaliação do choro e da mímica facial em doentes submetidos a ventilação mecânica.

A escala de PIPP é a mais indicada para avaliação da dor neste grupo etário por considerar as alterações próprias desta faixa de pacientes. Salienta-se que a mesma foi validada quanto à sua aplicabilidade em situações de pós-operatório.

QUADRO 1 – NFCS (Neonatal Facial Coding Scale).

Se a pontuação for superior a 3 está indicada analgesia
Parâmetro Pontuação 0
(ausência)
Pontuação 1
(presença)
Fronte saliente  
Pálpebras contraídas  
Sulco nasolabial mais acentuado  
Lábios entreabertos  
Boca esticada/protusão labial  
Lábios franzidos  
Língua tensa  
Tremor do mento  

QUADRO 2 – NIPS (Neonatal Infant Pain Scale).

Se a pontuação for superior a 3 está indicada analgesia
ParâmetroPontuação 0Pontuação 1Pontuação 2
Estado de alertaA dormir e/ou calmoDesconfortável e/ou calmo
Membros superioresRelaxadosFlectidos/estendidos
Membros inferioresRelaxadosFlectidos/estendidos
RespiraçãoRegularIrregular
ChoroAusenteQueixosoVigoroso
Expressão facialRelaxadaContraída

QUADRO 3 – CRIES (Escala de avaliação da dor no pós-operatório).

Parâmetro                                    Pontuação (0), (1), (2)
Choro → Ausente (0), Forte (1), Inconsolável (2)
FiO2 para SpO2 > 90% → 21% (0), 21-30% (1), > 30% (2)
FC e PA → Não > FC e PA (0), Até > 20% FC ou PA (1), >20% FC ou PA
Mímica facial → Relaxada (0), Careta esporádica (1), Contraída (2)
Sono/vigília → Normal (0), Intervalos curtos (1), Ausente (2)
PA=pressão arterial; FC=frequência cardíaca
Se pontuação 5 está indicada analgesia

QUADRO 4 – Escala do perfil de dor, do recém-nascido prematuro (PIPP).

Pontuação igual ou inferior a 6 →  indica ausência de dor; entre 6 e 11 → indica dor leve;  se superior ou igual a 12 → dor moderada a intensa.

PIPPIndicadores0123
 IG (semanas)36 ≥ semanas  e 6 dias32 a 35 semanas e 6 dias28 a 31 semanas e 6 dias< 28 semanas
Observar RN por um período 15mEstado de alerta Activo
Acordado
Olhos abertos
Movimentos faciais presentes
Quieto
Acordado
Olhos abertos
Sem mímica
Activo
Dormindo
Olhos fechados
Movimentos faciais presentes
Quieto
Dormindo
Olhos fechados
Sem mímica facial
Registar FC e Sat. em O2 (SpO2)
(% ou grau de diminuição)
FC máxima
Saturação mínima
↑0 a 4 bpm
↓ 0 a 2,9%
↑ 5 a 14 bpm
↓ 2,5 a 4,9%
↑15 a 24
↓5 a 7,4%
↑≥ 25 bpm
↓≥ 7,5 %
Observar o RN por 30 segundosTesta  franzida
Olhos “espremidos”
Sulco naso labial
Ausente
(0-9% do tempo de observação)
Ausente
Ausente
Mínima
(10 a 39% do tempo de observação)
Mínimo
Mínimo
Moderado
(40 a- 69% do tempo de observação)
Moderado
Moderado
Máximo
(+ de 70% do tempo de observação)
Máximo
Máximo

Actualmente é possível a utilização de tecnologia (algesímetro) que permite, de modo objectivo, medir quantitativamente as alterações fisiopatológicas resultantes do estímulo doloroso (resposta nociceptiva atrás referida) com base nas propriedades de condutância da pele. Em Portugal este tópico foi investigado por L. Pereira-da-Silva na UCIN do Hospital Dona Estefânia.

Prevenção

A prevenção da dor no RN passa pela aplicação dum conjunto de medidas que promovem o conforto e reduzem o estresse, tais como: diminuir o ruído (alarmes, diálogos, etc.), assim como a incidência da luz intensa, (protecção das incubadoras com cobertor, utilização de luz com focos de intensidade variável, etc.), manutenção de ciclos de sono dia/noite preservando períodos livres para o contacto com os pais. Nesta perspectiva, o balanceio e o uso de colchões de água poderão contribuir para regular o estado de alerta e diminuir o estresse.

Outras medidas incluem manipulação mínima, boa gestão dos cuidados concentrando determinados procedimentos para a mesma hora no sentido de evitar estimulação excessivamente frequente do RN (colheitas de sangue, aspiração traqueal, posição confortável em flexão sempre que possível utilização dos chamados “ninhos ou lençóis /fraldas enrolados em torno do corpo, etc.) e reduzir ao mínimo indispensável a utilização de fitas adesivas sobre a pele.

Tratamento

Para o alívio ou inibição da dor (analgesia), podem ser utilizadas medidas não farmacológicas e medidas farmacológicas.

A dor também pode ser aliviada ou inibida através da diminuição ou extinção da sensibilidade dolorosa em determinada região do organismo; é o conceito de anestesia local, que se pode considerar uma forma de analgesia. A este propósito, é importante realçar que o conceito de que a “infiltração com fins anestésicos é tão dolorosa quanto a própria agulha utilizada como procedimento com fins terapêuticos” não parece ser verdadeira de acordo com os resultados de estudos científicos.

Os anestésicos tópicos actuam por bloqueio dos canais de sódio nas terminações nervosas nociceptivas responsáveis pela condução do estímulo doloroso à medula-espinhal.

Medidas analgésicas não farmacológicas

  • Contacto pele com pele
    Esta medida, preconizada em RN aparentemente saudáveis necessitando de procedimento que provoca dor (como por ex. punção capilar, punção venosa, injecção IM, etc.) pode ser concretizada pelo contacto físico mãe-filho durante a realização daquele.
  • Amamentação
    Colocando o lactente ao peito, verifica-se alívio da dor enquanto se realiza o procedimento. Estudos interessantes demonstraram, com efeito, que a amamentação bloqueia impulsos aferentes ao nível da medula-espinhal e, ao mesmo tempo, estimula a libertação de endorfinas.
  • Sucção não nutricional
    Em função do contexto clínico poderá utilizar-se esta medida através de colocação de chupeta na boca; demonstrou-se, com efeito, que durante os movimentos rítmicos de sucção se atenua a dor, a qual retorna quando há interrupção da sucção.
  • Solução de sacarose
    As soluções ligeiramente doces têm efeito analgésico demonstrado em diversos estudos; na prática utiliza-se solução de sacarose a 24% (24 gramas de sacarose/100 mL de água) na dose de 0,05 a 1,5 mL colocada na porção anterior da língua cerca de 2 minutos antes do procedimento a realizar (punções, aplicação de linhas IV, etc.).

Medidas analgésicas farmacológicas (gerais)

No âmbito das medidas farmacológicas podem ser utilizados fundamentalmente dois tipos de fármacos: analgésicos não opióides e analgésicos opióides. São referidos os mais frequentemente utilizados em Portugal.

Analgésicos não opióides

*Paracetamol

No período neonatal, dentro deste grupo de fármacos, emprega-se quase invariavelmente o paracetamol, o analgésico não opióide mais investigado e mais seguro no período neonatal.

As doses a utilizar são:

  • No RN de termo (10-15 mg/kg/dose cada 6 ou 8 horas);
  • No RN pré-termo (10 mg/kg/dose cada 8 ou 12 horas).

O início de acção é lento, cerca de 1 hora, pouco efectivo para processos muito dolorosos. Deve ser administrado por via oral, sendo que a absorção rectal é irregular (dose rectal: ~ 15-25 mg/kg cada 8 ou 12 horas). Poderá utilizar-se a via parentérica IV, sendo útil como coadjuvante na analgesia pós-operatória, por não interferir na agregação plaquetar. O paracetamol está contraindicado nos casos de crianças com défice enzimático eritrocitário de G-6PD (desidrogenase da glucose -6 fosfato); apesar da sua hepatotoxicidade, ela é baixa nesta faixa etária.

Analgésicos opióides

Nos RN submetidos a terapia intensiva são utilizados com maior frequência estes fármacos, os quais constituem a mais importante arma de analgesia. O fundamento da sua acção baseia-se no facto de existirem receptores opióides dispersos no SNC; tais receptores, uma vez activados, inibem a transmissão do estímulo doloroso aos centros superiores.

*Morfina

Potente analgésico e um eficaz sedativo, a morfina pode ser utilizada através das vias IV, SC ou IM. Em bólus a dose a aplicar é: 0,05-0,15 mg/kg/dose IV em 5 minutos; ou em alternativa, a mesma dose por via IM ou SC. Pode ser repetida após 4 horas.

Em perfusão contínua IV:

      • RN de termo à 5-10 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 10-20 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN pré-termo à 2-5 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 5-10 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN acordado e sem ventilação mecânica, poderá utilizar-se a dose de infusão contínua de 3 a 8 mcg/kg/hora.

Como efeitos colaterais (frequentes em todos os opióides) citam-se: depressão respiratória, íleo paralítico, náuseas, vómitos, retenção vesical, hipersudorese, etc..

Tendo em conta a libertação de histamina que provoca, pode surgir broncospasmo, facto a ter em consideração nos doentes com DBP.

Pela supressão do tono adrenérgico que origina, poderá surgir hipotensão arterial. Para combater a depressão respiratória emprega-se o antagonista naloxona, que é um agente antagonista não selectivo de opióides, extremamente potente. Como possui uma semivida curta, a maioria dos pacientes poderá necessitar de doses repetidas.

Nos casos de tratamento com morfina poderá verificar-se fenómeno de tolerância e, consequentemente, ulterior síndroma de abstinência aguda (convulsões, hipertensão, alterações do foro digestivo, entre outras manifestações). Tal poderá evitar-se, em certa medida, procedendo à redução gradual da dose (diariamente, cerca de 25-50% da dose previamente instituída).

Caso se comprove tal síndroma, está indicado o emprego de naloxona como antagonista efectivo da morfina (embora contraindicada nos lactentes de mãe toxicodependente e nos submetidos a tratamento com morfina durante mais de 6 dias), salientando-se que o período em que poderá ser utilizado em segurança para reversão da síndroma de abstinência é curto (apenas dentro do período < 6 dias de tratamento prévio com morfina).

*Fentanil

Em bólus a dose a aplicar é 1-3 mcg/kg/dose IV, cada 2 a 4 horas.

Em perfusão contínua IV (de preferência):

      • RN de termo à 0,5-1 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 1-2 mcg/kg/hora (se dor intensa);
      • RN pré-termo à 0,5 mcg/kg/hora (se dor moderada) ou à 1 mcg/kg/hora (se dor intensa).

Também com o fentanil, poderá surgir fenómeno de tolerância, sobretudo quando se utiliza infusão contínua (obrigando eventualmente à necessidade de doses crescentes para obter efeito.

Como efeito colateral poderá observar-se bradicárdia. Se o tratamento for superior a 3 dias, deverá providenciar-se redução gradual da dose para evitar síndroma de abstinência.

Como antagonista emprega-se também a naloxona: dose de 0,01 mg/kg para reversão da depressão respiratória. A naloxona está contraindicada no RN de mãe toxicodependente. Doses elevadas de morfina > 5 mcg/kg, injectadas rapidamente, poderão levar a rigidez muscular sobretudo a nível torácico, com compromisso ventilatório.

*Meperidina

Actualmente está praticamente proscrita. Apresenta um metabólito tóxico a normeperidina, e pode diminuir o limiar convulsivo principalmente em RN com insuficiência renal.

*Tramadol

Trata-se dum opióide sobre o qual ainda existem aspectos não esclarecidos quanto a farmacocinética, farmacodinâmica e segurança. Cabe apenas referir que, de acordo com estudos realizados, este fármaco evidenciou excelentes propriedades analgésicas com efeitos acessórios irrelevantes – em comparação com a morfina – no que se refere a obstipação e depressão respiratória.

Em perfusão IV tem sido utilizado para a dor moderada, na dose de 0,10-0,25 mg/kg/hora, sem relato de efeitos adversos importantes.

Medidas analgésicas farmacológicas (locais)

Considerando os vários anestésicos locais disponíveis no mercado, a mistura eutética de prilocaína (25%) e lidocaína (25%) sob penso adesivo, com a marca registada EMLA® (sigla de eutectic mixture local anesthetics) produz analgesia em pele intacta durante cerca de 60-90 minutos após a aplicação; pode ser usada em RN de termo e pré-termo com idade gestacional superior a 32 semanas e idade pós-natal superior a 7 dias.

Como resultado da sua aplicação poderão surgir eritema, vesículas e petéquias. Estudos recentes demonstraram que a aplicação de EMLA® é um método seguro desde que a área de aplicação não ultrapasse 100 cm2 e sejam evitadas aplicações repetidas (risco de metemoglobinémia, mais marcado se se associar o paracetamol).

Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se lidocaína a 0,5%, sem adrenalina, na dose de 5 mg/kg, por via SC. O início do efeito deste último fármaco é quase imediato e a sua duração é de 30 a 60 minutos após a infiltração.

Sedativos

Os sedativos são agentes farmacológicos (não analgésicos), utilizados como complemento dos analgésicos; agem diminuindo a actividade, ansiedade e agitação do paciente, podendo levar à amnésia de eventos dolorosos ou não dolorosos.

Tais fármacos têm indicações muito restritas: realização de procedimentos diagnósticos que implicam certo grau de imobilidade do doente (por ex.TAC, RM, ECG, EEG, etc.) em situações acompanhadas de dor, tratadas com analgésicos.

Por outras palavras, a utilização continuada de sedativos deve ser desencorajada, pois comporta certos riscos como por ex.: prolongamento do período de ventilação mecânica, HIPV e LPV, entre outros.

Além disso, cabe ao clínico, antes da sua prescrição, excluir outras causas de agitação ou irritabilidade, como hipoxémia, ou a própria dor.

Os sedativos mais frequentemente utilizados com os objectivos descritos são:

Midazolam

Em bólus a dose a aplicar é 0,05-0,15 mg/kg/ dose IV, cada 2 a 4 horas.

Em perfusão contínua IV (de preferência): 10-60 mcg/kg/hora.

Como nota importante há que realçar a necessidade de reajustamento (diminuição) de dose se se utilizar em associação com morfina ou fentanil, para evitar depressão respiratória e hipotensão. É um fármaco com boa actividade sedativa hipnótica, sendo 2 a 4 vezes mais potente que o diazepam.

Hidrato de cloral

Utiliza-se em procedimentos terapêuticos ou de diagnóstico de curta duração a dose de 25-75 mg/kg, podendo ser repetida cada 6 ou 8 horas (vias oral ou rectal). Em RN pode levar a hiperbilirrubinémia (directa e indirecta) e acidose metabólica. Em RN pré-termo o efeito residual da droga pode manter-se até 64 horas após a administração.

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RECÉM-NASCIDO DE MÃE TOXICODEPENDENTE

Definições e importância do problema

A utilização abusiva de drogas e determinadas substâncias, por vezes em associação (marijuana, morfina, cocaína, heroína, álcool, metadona, etc.), atingiu nas últimas décadas proporção de verdadeira epidemia com repercussão na grávida e no feto – futuro RN – pela exposição crónica aos referidos compostos.

Para melhor compreensão do problema importará definir fundamentalmente três conceitos interligados:

  1. Toxicodependência ou toxicomania: estado de intoxicação periódica ou crónica provocado pelo consumo repetido de uma substância (natural ou sintética), o qual é acompanhado por um desejo invencível ou pela necessidade de continuar a consumir a substância e de a obter por todos os meios, com tendência para aumentar as doses e para dependência psíquica, e frequentemente também física, em relação aos efeitos da mesma substância;
  2. Síndroma de abstinência (ou de privação): conjunto de sinais e sintomas específicos resultantes da suspensão ou redução do consumo da substância que criou dependência (sensação de a pessoa “não poder passar sem a mesma”), sendo que os referidos sinais e sintomas desaparecem com a administração da própria substância ou de um seu sucedâneo, como a metadona no caso da morfina; cabe referir, a propósito, que no contexto de utilização abusiva de substâncias, as acções verificadas podem ser o oposto das acções características das mesmas;
  3. Síndroma de abstinência neonatal (SAN): como se poderá deduzir, no feto (futuro RN), por efeito da exposição crónica aos referidos compostos, poderá surgir também dependência, acarretando ulterior quadro de manifestações clínicas (síndroma de abstinência neonatal) de duração variável, por privação brusca do efeito da substância a partir do momento da laqueação do cordão umbilical; descreve-se ainda uma SAN iatrogénica em situações que requereram sedação para realização de procedimentos invasivos ou intervenções cirúrgicas; saliente-se que o SAN não se define pela necessidade de terapêutica farmacológica.

A administração abusiva de substâncias e drogas (legais e ilegais) constitui um verdadeiro problema de saúde pública. Os efeitos adversos da toxicodependência na gravidez são variados e relacionam-se com cuidados pré-natais inadequados, risco aumentado de prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, morte in utero, risco de síndroma de abstinência e toxicidade, risco de doenças infecciosas de transmissão vertical, risco social (emprego precário, situação económica débil, capacidade parental reduzida com negligência dos filhos) e risco de perturbação do neurodesenvolvimento da criança.

Dados estatísticos dos EUA (National Survey on Drug Use and Health, 2011) estimam que entre cerca de 5% das grávidas, tomam medicamentos não recomendados no referido período, incluindo as chamadas substâncias ilícitas. A análise retrospectiva de uma amostra representativa dos EUA revelou que entre 2000 e 2009 a taxa de RN com SAN aumentou de 1,2 para 3,39 por 1.000 nascimentos hospitalares por ano. Em Portugal, em diversos estudos epidemiológicos realizados em diferentes décadas foram apuradas “relações de casos por mil nados-vivos” entre 2,7/1.000 e 10/1.000 (entre 1990 e 2006), testemunhando o aumento da prevalência e a importância da toxicodependência na mulher portuguesa em idade fértil.

Na grávida toxicodependente (TD), sobretudo nos casos de consumo de heroína, poderão surgir episódios de síndroma de abstinência cujas consequências poderão ser fundamentalmente o aborto, a morte fetal, a restrição de crescimento fetal e o parto pré-termo.

A terapêutica de substituição na grávida, realizada com metadona ou buprenorfina, parece reduzir as complicações na gravidez, não evitando, contudo, a SAN. Uma referência especial à marijuana cuja utilização nos EUA em 2006 atingiu a cifra superior a 11 milhões de utilizadores entre os 18 e 25 anos e com uma frequência nas grávidas, variando conforme as regiões, entre 5-35%.

Um dos factores mais pejorativos no grupo de grávidas toxicodependentes é a concomitância de determinadas infecções classicamente ligadas a comportamentos de risco, tais como, por VHB, VHC, HPV, VIH, etc., contribuindo para comorbilidade com repercussões no feto e RN.

Etiopatogénese

Os efeitos de drogas e substâncias sobre o feto/RN dependem de diversos factores: idade gestacional em que a substância actua; duração da exposição fetal; tipo de droga consumida, via de administração e concentração sanguínea atingida; estilo de vida da grávida.

Os mecanismos pelos quais as substâncias actuam são diversos: acção teratogénica; acção carcinogénica; interferência com a diferenciação de tecidos e órgãos; depressão ou sedação do feto/RN; dependência e ulterior síndroma de abstinência (privação brusca do efeito após laqueação do cordão umbilical).

Importa distinguir duas situações resultantes da exposição a determinadas substâncias in útero:

  • Toxicidade aguda, resultante da exposição directa à droga e que acarreta alterações neurocomportamentais semelhantes a SAN, mas que melhoram à medida que a substância é eliminada e;
  • Toxicidade não aguda, com agravamento à medida que ocorre a metabolização e a excreção da droga.

As substâncias que mais frequentemente são consumidas pela grávida são sistematizadas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Substâncias de consumo abusivo pela grávida

Analgésicos narcóticos (opiáceos)

    • Heroína
    • Meperidina
    • Morfina
    • Propoxifeno
    • Metadona
    • Pentazocina
    • Codeína

Simpaticomiméticos (estimulação do SNC)

    • Anfetamina
    • Fenmetrazina
    • Metanfetamina
    • Cocaína
    • Dextroanfetamina

Hipnóticos e sedativos (depressão do SNC)

    • Barbitúricos (efeitos de curta ou longa duração)
    • Glutetimida
    • Fenotiazinas
    • Hidrato de cloral
    • Álcool
    • Sedativos e tranquilizantes menores (diazepam, clorodiazepóxido, etc.)
    • Alcalóides da beladona (escopolamina, atropina)
    • Hidrocarbonetos voláteis (gasolina, tolueno, etc.)

Alucinógenos

    • Dietilamida do ácido lisérgico (LSD)
    • Mescalina
    • Marijuana (Cannabis sativa L) – por vezes considerada em grupo à parte
    • Fenilciclidina-hidrocloreto (“pó de anjos”)


Os opiáceos ligam-se aos receptores de opiáceos do SNC. Algumas das manifestações clínicas de privação resultam de hipersensibilidade alfa-2 adrenérgica, particularmente ao nível do locus ceruleus. No caso da cocaína, tal tipo de manifestações pode explicar-se do seguinte modo: a cocaína previne a recaptação de neurotransmissores (epinefrina, norepinefrina, dopamina e serotonina) nas terminações nervosas, resultando em hipersensibilidade ou resposta exagerada aos neurotransmissores ao nível dos órgãos efectores.

Os referidos opiáceos constituem a causa mais frequente de SAN. Em cerca de 90% dos RN nestas circunstâncias surgem manifestações clínicas de grau variável. Destes, em mais de metade (50-75%), a sintomatologia necessita de tratamento. A incidência e a gravidade de SAN é superior nos RN expostos a metadona comparativamente aqueles expostos à heroína e à buprenorfina.

Seguidamente são descritos de modo sucinto os efeitos de algumas das substâncias atrás discriminadas, reservando para a alínea “Manifestações clínicas” o quadro relacionado com a síndroma de abstinência neonatal.

Heroína

A heroína pode originar restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento; um dos efeitos biológicos é a elevação do magnésio sérico fetal e neonatal. Um fenómeno não completamente explicado é o aumento do número de casos de síndroma de morte súbita do lactente. Curiosamente, pela indução da glucuronil-transferase e das enzimas responsáveis pela produção de surfactante pulmonar, verifica-se respetivamente menor incidência de hiperbilirrubinémia e de DMH.

Morfina

O abuso de morfina na gravidez não está associado a anomalias congénitas.

Metadona

A metadona é um analgésico opiáceo sintético com uma semi-vida longa (16 a 25 horas no período neonatal). A sua indicação mais frequente (no contexto do tema que se apresenta) é a de substituir outras substâncias utilizadas no regime de abuso pela mãe durante tempo prolongado, num processo lento de retirada para evitar síndroma de abstinência materna. Nos fetos submetidos de modo prolongado à acção da metadona não se verifica incidência aumentada de anomalias congénitas, sendo que o respectivo peso de nascimento médio é superior ao verificado, por exemplo, nos fetos submetidos à acção da heroína. No entanto, o perímetro cefálico médio (não necessariamente acompanhado de restrição de crescimento fetal) é inferior ao verificado em fetos não expostos à droga. O mecanismo destas alterações é desconhecido. De salientar que a metadona administrada à grávida com fins terapêuticos de substituição poderá, por sua vez, originar síndroma de abstinência neonatal se o parto ocorrer ainda durante o processo de “desmame” da mesma. Alguns estudos têm descrito que a metadona afecta menos os prematuros que os recém-nascidos de termo, necessitando os primeiros de doses menores de opiáceos, menor duração do tratamento e do internamento (relacionado com o SAN). Admite-se que esta situação seja explicada pela imaturidade dos sistemas de metabolização, menor desenvolvimento das conexões nervosas, menor duração da exposição ao opiáceo e menor transmissão durante o 3º trimestre.

Anfetaminas

Admite-se que esta substância não tenha efeitos teratogénicos. Pode verificar-se restrição do crescimento fetal, parto prematuro, descolamento da placenta e sofrimento fetal. A existência de SAN secundário à exposição a anfetaminas é controversa. Um estudo retrospectivo refere que apenas 4% dos RN com sintomas atribuíveis a SAN por anfetaminas necessitaram de terapêutica. Não existem dados prospectivos que suportem a existência de SAN a anfetaminas.

Cocaína

Como resultado do consumo crónico deste composto (inalado, fumado, aspirado, por via IV, etc.), assim como de um seu derivado designado por crack, verifica-se maior risco de aborto, hipoperfusão placentar com consequente hipoxia crónica, descolamento da placenta, ruptura prematura das membranas e parto prematuro, entre outras repercussões. A mortalidade neonatal é mais elevada e relacionável fundamentalmente com restrição de crescimento fetal, difícil adaptação à vida extrauterina, anomalias congénitas e morte súbita. Alguns autores consideram mesmo, pelo seu efeito teratogénico, a individualização dum quadro de embriofetopatia cocaínica. Tendo sido demonstrado que a actividade da colinesterase, uma das enzimas de degradação da cocaína, está diminuída na grávida e feto, existindo nestes, maior susceptibilidade à referida droga.

Fenobarbital

O fenobarbital é utilizado frequentemente como droga de abuso em todas as classes socioeconómicas. Na mãe poderá verificar-se a ocorrência de síndromas de abstinência recorrentes (traduzidas por convulsões), com acção deletéria sobre a própria mãe e feto. Este fármaco atravessa a placenta distribuindo-se rapidamente por todos os órgãos do feto, com maior concentração no baço e encéfalo. Os efeitos da exposição in utero traduzem-se essencialmente por fenómenos hemorrágicos e anomalias congénitas menores. Os RN de mães dependentes de fenobarbital são geralmente de termo, sem compromisso do crescimento intrauterino. A incidência de síndroma de abstinência por fenobarbital não é conhecida.

Álcool

O álcool é teratogénico, se consumido nas primeiras 10-12 semanas após a concepção, sendo os efeitos mais acentuados com a absorção de cerca de 30-50 gramas de álcool absoluto por dia. Um quadro dismorfológico (embriofetopatia alcoólica) integrando defeitos congénitos, por vezes associados e de expressividade variável, pode ser identificado no RN: defeitos cardíacos e nefro-urológicos, fissura palpebral pequena, ptose palpebral, estrabismo, prega do epicanto, microftalmia, orelhas em abano, nariz pequeno, filtro longo, lábio superior fino, retrognatismo, lábio leporino, fenda palatina, microcefalia, etc..

No período neonatal precoce são notórios sinais de restrição de crescimento intrauterino, hipotonia, irritabilidade, sendo o prognóstico reservado, designadamente em termos de neurodesenvolvimento.

Alguns estudos chamaram a atenção para o papel da associação deletéria álcool-nicotina/cotinina do fumo do tabaco. A nicotina/cotinina na gestação está associada a aborto espontâneo, prematuridade, restrição do crescimento fetal e baixo peso de nascimento. Um maço de cigarros fumado por dia conduz a decréscimo de aproximadamente 300 gramas do peso de nascimento num RN de termo. Os efeitos tóxicos podem ser explicados, quer pelo monóxido de carbono (CO), quer pelo vasospasmo induzido pela nicotina.

Diazepam

A exposição a este fármaco está associada a restrição de crescimento fetal, defeitos cardíacos e hemangiomas. No RN duas ordens de problemas neonatais no período pós-parto imediato poderão surgir:

  1. Síndroma relacionada com efeito do próprio fármaco, manifestada por hipotonia, letargia e dificuldade de sucção;
  2. Síndroma de abstinência: tremores, irritabilidade, hipertonia, diarreia, sucção vigorosa, etc..

LSD (dietilamida do ácido lisérgico)

Relativamente ao LSD importa referir a elevada incidência de anomalias congénitas associadas, sobretudo do globo ocular (catarata, microftalmia, displasia retiniana, etc.). Muito utilizada por adolescentes na década de 60, existe hoje nos EUA tendência para reincidência do seu abuso.

Marijuana e seus derivados (haxixe)

A marijuana é um extracto da planta Cannabis sativa contendo mais de 420 compostos, muitos dos quais biologicamente activos. Pela sua elevada lipossolubilidade, atravessa facilmente a placenta exercendo efeito directo e prolongado nas células fetais, tendo uma eliminação demorada (cerca de 4 semanas) e uma semi-vida de cerca de 1 semana.

Admite-se também que, pela elevação do nível de CO (muito mais elevado do que acontece com nicotina/cotinina), origina hipóxia fetal crónica. Partilha com a cocaína o efeito de elevação da pressão arterial na grávida e redução do leito vascular.

Outros efeitos descritos são: parto prematuro, maior incidência de eliminação de mecónio in utero, baixo peso de nascimento, etc.. Como efeitos a médio e longo prazo no RN, lactente e criança citam-se: alteração do padrão do sono, atraso da maturação do sistema visual, défice de atenção, etc..

Outras substâncias

Uma referência a outras substâncias como:

  • Pentazocina, analgésico não narcótico que pode originar restrição de crescimento fetal e síndroma de abstinência;
  • Substâncias inaladas (tolueno ou 1,1,1-tricloro-etano, gás butano, óxido nitroso, etc.) que, durante a gravidez poderão levar a restrição de crescimento fetal, prematuridade e síndroma malformativa semelhante à embriofetopatia alcoólica;
  • Ecstasy, com acções similares à anfetamina e mescalina, tem efeitos estimulantes e psicadélicos durando cerca de 3-6 horas; os estudos disponíveis não têm referido incidência aumentada de aborto ou de anomalias congénitas.

Manifestações clínicas de abstinência (SAN) e diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas relacionadas com SAN, assim como a data do seu aparecimento, são variáveis e não dependem exclusivamente do tipo de substância consumida pela mãe. Admite-se que estejam relacionados com as seguintes condições:

  • Exposição materna: tipo de substância, frequência, dose, medicação concomitante (particularmente fármacos psicotrópicos), outras drogas (incluindo álcool e tabaco) e idade gestacional em que ocorre o consumo;
  • Factores maternos: nutrição, infecções, estresse, comorbilidades (incluindo psiquiátricas);
  • Metabolismo opióide placentário;
  • Factores genéticos (maternos e do feto);
  • Factores relacionados com o recém-nascido: prematuridade, infecções, taxa de metabolismo e excreção da droga;
  • Factores ambientais: capacidade dos cuidadores em dar resposta às necessidades do RN e ambiente físico.

Globalmente, tais manifestações traduzem repercussões da privação ao nível dos sistemas nervoso central e autónomo, e digestivo, as quais podem ser assim sintetizadas:

  1. Irritabilidade, hiperexcitabilidade, tremores, hipertonia, hiperreflexia osteotendinosa, choro de tonalidade aguda, reflexo de Moro vivo, abalos mioclónicos, convulsões (2-11%), diminuição do período de sono, etc.;
  2. Hipersudorese, instabilidade térmica, febre, obstrução nasal, crises esternutatórias, taquipneia, etc.;
  3. Dificuldades alimentares, incoordenação da sucção-deglutição, vómitos, diarreia, perda de peso excessiva, desidratação, recusa alimentar, etc..
Nesta perspectiva, pode concluir-se que, o diagnóstico provisório de SAN é essencialmente clínico, sendo fundamental a elaboração de anamnese perinatal e exame objectivo rigorosos, no pressuposto de elevado índice de suspeita clínica.

 

Para o estudo evolutivo durante o internamento hospitalar existem diversos instrumentos e escalas disponíveis (por exemplo a escala de Lipsitz, a escala de Finnegan, etc.). O objetivo é permitir avaliar a gravidade do SAN, sendo utilizadas para iniciar, ajustar e desmamar a terapêutica farmacológica. Apesar de não existirem provas científicas que suportem a utilização de uma escala em detrimento de outra, em Portugal, tal como na maioria dos países, utiliza-se mais frequentemente a Escala de Finnegan, a aplicar de 4/4 horas. Esta escala integra um conjunto de parâmetros clínicos aos quais se atribui determinada pontuação, sendo que se pode considerar a situação em vias de melhoria à medida que a pontuação final diminui. (Quadro 2)

Seguidamente são referidas algumas particularidades das manifestações em função da substância em causa.

QUADRO 2 – Escala de Finnegan.

Sinais de SANPontuação(Registos de 4-4 horas)
Choro gritado excessivo2 
Choro gritado excessivo contínuo3 
Sono pós-prandial
1 hora3 
2 horas2 
3 horas1 
Reflexo de Moro hiperactivo2 
Reflexo de Moro marcado3 
Tremor após estimulação, ligeiro1 
Tremor após estimulação, acentuado2 
Hipertonia ligeira3 
Hipertonia  marcada6 
Convulsões8 
Sudação1 
Temperatura rectal 37,8 ºC-38,3 ºC2 
Temperatura rectal > 38,3ºC2 
Bocejos > 3-4 vezes por cada 4 horas 1 
Escoriações
nariz1 
joelhos1 
dedos dos pés1 
Obstrução nasal1 
Espirros1 
Adejo nasal1 
FR > 601 
Retracção costal2 
Sucção “frenética”1 
Recusa alimentar1 
Regurgitação1 
Vómitos em jacto1 
Fezes moles2 
Fezes líquidas3 
Pontuação final  

Opiáceos, barbitúricos e benzodiazepinas

A SAN ocorre em cerca de 60-90% dos RN expostos, na maioria dos casos cerca dos 2-3 dias de vida; no entanto, o quadro clínico pode verificar-se desde o pós-parto imediato até 1-2 semanas. No caso da heroína a sintomatologia inicia-se habitualmente nas primeiras 24 a 48 horas de vida. A metadona condiciona SAN nas primeiras 48 a 72 horas de vida (semivida mais prolongada com declínio lento dos níveis), podendo ainda surgir somente entre as 2-4 semanas de vida (SAN tardia). Nos RN expostos a buprenorfina o início dos sintomas ocorre cerca das 40 horas de vida. Sinais como agitação, tremores, sono entrecortado e intolerância alimentar poderão prolongar-se durante cerca de 3-6 meses. Nos dias e semanas seguintes poderão surgir alterações neuro-comportamentais. De salientar que as convulsões surgem em cerca de 8% de RN de mães submetidas a tratamento com metadona, e em cerca de 2% de RN de mães abusando de heroína. No caso dos barbitúricos o SAN inicia-se entre o 1º e o 14º dia (pico aos 4-7 dias); outros sedativos hipnóticos têm SAN mais tardio (diazepam até aos 12 dias e cloradiazepóxido até aos 21 dias).

Cocaína

No caso da cocaína cabe particularizar os seguintes sinais (mais de intoxicação do que de SAN): irritabilidade, tremores, choro gritado, hiperreflexia, recusa alimentar, obstrução nasal, taquipneia e alteração dos padrões do sono. A criança pode evidenciar alterações neuro-comportamentais que podem ultrapassar o período neonatal.

Marijuana

Os RN de mães consumidoras de marijuana evidenciam geralmente alterações neuro-comportamentais a curto, médio e longo prazo.

O quadro clínico compatível com SAN, pela sua inespecificidade, sobretudo quando oligossintomático, obriga a estabelecer o diagnóstico diferencial com determinadas situações tais como, infecções, problemas metabólicos (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia), hipertiroidismo, hemorragia do SNC, EHI e outras.

Exames complementares

De acordo com a história clínica (salientando-se que a anamnese realizada à mãe é muitas vezes não concludente), está indicada a realização de determinados exames complementares na tentativa de esclarecimento da situação.

As amostras biológicas podem ser obtidas (com consentimento esclarecido) a partir da mãe ou do RN: urina, mecónio, líquido amniótico, vernix caseosa, cabelo, unhas, etc.. No entanto, todos os testes apresentam limitações clinicamente significativas e nalguns casos apenas estão disponíveis no contexto de investigação. De salientar que a presença da droga, ou de metabólitos de certa droga, no mecónio ou cabelo, permite deduzir administração dos mesmos durante o 2º e 3º trimestres, e exposição fetal prolongada. Os testes toxicológicos na urina do RN têm baixa sensibilidade (taxa elevada de falsos negativos) permitindo apenas a detecção se a exposição à droga for recente. A pesquisa de drogas numa amostra de urina ou mecónio, nos casos em que for justificada a sua realização, deve ser efectuada o mais precocemente possível porque a metabolização e excreção da maioria das drogas é rápida. A metadona, buprenorfina e oxicodona não são detectadas nos kits habitualmente utilizados.

Aspectos técnicos específicos relacionados com a realização de tais análises ultrapassam os objetivos do livro.

Tratamento

O tratamento tem como principais objectivos estabilizar as manifestações clínicas e restaurar a atividade normal do RN, nomeadamente estabelecer um ganho ponderal consistente e manter padrões de sono e alimentação adequados. A abordagem inclui medidas gerais e farmacológicas.

Medidas gerais

Estas medidas, que deverão ser individualizadas em função do contexto clínico, são: estimulação sensorial mínima (ambiente calmo, com pouca luz), posição em flexão, de preferência, com imobilização suave e almofadada, prevenção do choro excessivo recorrendo a carícias suaves e à chupeta, etc.. A utilização de luvas no RN poderá evitar escoriações que resultam da actividade excessiva do RN.

Se houver antecedentes maternos de regime com metadona deve providenciar-se aleitamento materno. Este está contraindicado se houver antecedentes de seropositividade para VIH, abuso materno de álcool, anfetaminas, heroína, cocaína, etc..

O regime alimentar deverá ser semelhante ao indicado em condições normais, respeitando o apetite da criança, muitas vezes com refeições pequenas e frequentes. Caso a progressão ponderal seja insuficiente deverá incrementar-se o suprimento energético com fórmulas hipercalóricas (150-250 kcal/kg/dia). Pode agravar a diarreia.

O rooming-in ou alojamento comum mãe/RN está indicado nos casos em que não há necessidade de terapêutica farmacológica, promovendo desta forma as competências parentais.

Quer durante a hospitalização, quer após a alta para o domicílio, das medidas gerais fazem parte ainda o apoio por equipa multidisciplinar (incluindo apoio pela família e pelo serviço social) e estímulo da interacção mãe-filho, reconhecendo-se à partida, as dificuldades no seguimento das crianças filhas de mãe TD.

Medidas farmacológicas

A decisão de iniciar tratamento farmacológico deverá fundamentar-se num sistema objetivo de avaliação da gravidade de SAN, como a Escala de Finnegan. Nestes casos o RN deverá ser internado na Unidade de Neonatologia.

As indicações para tratamento farmacológico podem ser assim sistematizadas:

  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 8 em três avaliações consecutivas; ou
  • Escala de Finnegan com pontuação ≥ 12 em duas avaliações consecutivas; ou
  • Convulsões.

De salientar, no entanto, que cada caso deverá ser ponderado para decisão de iniciar farmacoterapia, nomeadamente, valorizando agravamento clínico progressivo com repercussão importante no RN (irritabilidade progressiva, dificuldade alimentar e perda de peso significativa).

A escolha do fármaco a utilizar depende sobretudo da droga consumida pela mãe. Em Portugal, de acordo com a Secção de Neonatologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria, o enquadramento das diferentes situações é o seguinte:

SAN aos opiáceos

A morfina é a droga de primeira linha. A metadona é uma alternativa, mas a sua semi-vida é muito prolongada e variável no RN tornando difícil a avaliação da sua eficácia. O fenobarbital pode ser utilizado como segunda droga nos casos em que os sintomas não estão controlados com as doses máximas de morfina ou metadona. A buprenorfina mostrou-se segura e eficaz, bem como a clonidina (em monoterapia ou em associação a opiáceos), mas ambas as drogas necessitam de mais estudos para serem recomendadas para uso regular.

SAN aos não opiáceos

O fenobarbital constitui a droga de 1ª linha.

Durante a terapêutica é fundamental a monitorização cardiorrespiratória e a vigilância dos efeitos secundários, nomeadamente depressão respiratória, hipotensão, retenção urinária e atraso no esvaziamento gástrico.

Do ponto de vista prático, inicia-se a terapêutica com uma dose baixa e que se aumenta progressivamente até ao controlo dos sintomas (Índice de Finnegan consistentemente < 8). Após 72 horas de controlo sintomático inicia-se a redução progressiva até à suspensão. A vigilância deve ser mantida por mais 72 horas após interromper a farmacoterapia.

Em Portugal os fármacos mais frequentemente utilizados são:

*Morfina

  • Dose inicial 0,04 mg/kg a cada 3-4h, aumento de 0,04 mg/kg/dose até à dose máxima de 0,2 mg/kg/dose;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 48h, com suspensão quando atingir 0,1-0,12 mg/kg/dia.

*Metadona

  • Dose inicial 0,05-0,1 mg/kg a cada 6-12h, aumento de 0,05 mg/kg/dose até obter efeito, passando então a cada 12-24 horas;
  • Desmame: 0,05 mg/kg/dia, com suspensão quando atingir uma dose inferior a 0,05 mg/kg/dia.

*Fenobarbital

  • Dose inicial 15 mg/kg oral ou ev, seguindo-se a dose de manutenção de 5 mg/kg/dia (2 administrações), com dose máxima de 8 mg/kg/dia;
  • Desmame: 10% da dose diária a cada 72h. Se associado a morfina, esta deve ser suspensa antes de iniciar a redução do fenobarbital. Suspender quando a dose for inferior a 2 mg/kg/dia.

*Clonidina

  • Dose inicial 0,5-1 mcg/kg a cada 3-6h, com dose máxima de 1 mcg/kg a cada 3h;
  • Desmame: 0,25 mcg/kg a cada 6h.

Critérios para alta

  • Na ausência de SAN recomenda-se vigilância em internamento durante, pelo menos, 7 dias se a mãe estiver em programa de metadona, e 5 dias se a mãe for consumidora de outras drogas;
  • Na presença de SAN protelar a alta até 72 horas sem terapêutica farmacológica e livre de sintomas;
  • RN clinicamente estável, sem dificuldades alimentares e com aumento ponderal consistente;
  • Adequação dos pais na prestação de cuidados;
  • Avaliação e orientação pela assistente social;
  • Visitas domiciliárias com marcação prévia.

Prognóstico e prevenção

Os dados que permitem estabelecer o prognóstico dependem da possibilidade de seguimento completo das crianças filhas de mãe TD, seguimento que é difícil se não existir um programa estruturado de apoio multidisciplinar domiciliário, incluindo, claro está, a vertente preventiva. Tal dificuldade decorre designadamente do ambiente desorganizado em que vive a mãe ou a família, e tanto mais quanto mais jovem for aquela (frequentes faltas às convocatórias, mudanças frequentes de residência, institucionalização das crianças por deficiente apoio familiar, etc.).

De acordo com os dados disponíveis da literatura nacional e internacional (seguimento até aos 6 anos de idade) podem ser sintetizados os seguintes desfechos:

  • Má progressão ponderal/hipocrescimento;
  • Dificuldades nas áreas de percepção e cognição;
  • Défice de concentração, atenção e memória;
  • Alterações comportamentais;
  • Alterações neurológicas (sobretudo do tono muscular e coordenação), etc.;
  • Maior probabilidade de SMSL.

Estes achados são mais prevalentes se houver antecedentes de TD à heroína e à metadona.

O problema da toxicodependência, com enorme carga social, é muito complexo e multifactorial; por isso, a sua prevenção deverá incidir sobre múltiplas frentes cuja abordagem, pela sua magnitude, ultrapassa o âmbito deste capítulo.

Considerando como tópico central a díade mãe-filho, cabe salientar o papel importante dum sistema eficaz e sistemático de visitas domiciliárias a cargo de equipa multidisciplinar (envolvendo fundamentalmente médicos de família, pediatras, equipas de enfermagem, técnicos de acção social, psiquiatras comunitários, etc.) para apoio das famílias em risco numa perspectiva proactiva, quer de prevenção primária da toxicodependência, quer de desintoxicação em idade pré-concepcional.

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EMBRIOFETOPATIA DIABÉTICA

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

A ocorrência de diabetes mellitus (DM) durante a gravidez, nas suas diversas formas – diabetes pré-gestacional (DPG) tipos 1 e 2 e diabetes gestacional (DG) – pode condicionar distúrbios de índole diversa no feto e no recém-nascido, em dependência directa do controlo glicémico das grávidas, e com repercussões a médio e a longo prazo.

Anteriormente, a DPG era predominantemente do tipo 1, insulinodependente. Nos últimos anos, em especial nos países industrializados, 1/3 de todas as DPG são do tipo 2 frequente e erradamente interpretadas como gestacionais, ainda que detectadas no 1º trimestre de gravidez.

A prevalência e a incidência da DPG variam consideravelmente dependendo de factores étnicos e raciais e de fenómenos migrantes. Com o incremento relativo da diabetes tipo 2, o diagnóstico está de certo modo condicionado pelo rastreio em função de critérios de saúde pública para populações de risco.

Na generalidade, considerando embora as assimetrias populacionais, calcula-se que cerca de 1,1% são DPG. A incidência de DG, talvez até mais do que a DPG, depende, entre outros factores, da existência ou não de rastreios universais e sistemáticos durante a gravidez, da data do aparecimento e da metodologia do diagnóstico. Em geral, estima-se que entre 3%-7% de gravidezes são complicadas por DG.

Na experiência dos autores, num período de 2 anos, numa população não seleccionada de 5207 grávidas, a incidência de DG foi de 6,4%, atingindo 14,9% nas mulheres com antecedentes obstétricos de DG. Dois terços (66%) das mulheres com DG tinham uma história familiar de DM tipo 2, e 20% tinham obesidade pré-concepcional (IMC > 30%), versus 4% na população de controlo.

A idade média na data do parto foi de 32 anos, comparativamente aos 30 anos para uma população de controlo de mulheres com filhos grandes para a idade gestacional (GIG) não-diabéticas. Cerca de um terço (31,3%) das mulheres com DG necessitaram de insulinoterapia, nomeadamente nos casos com história familiar de diabetes, obesidade pré-concepcional e com DG em gravidezes prévias (33,4%, 45,8% e 36,2% respectivamente).

Reconhecendo a importância deste enorme problema de Saúde Pública, já em 1989 a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Diabetes (FID) propuseram, na Declaração de St. Vincent, o objectivo, a concretizar em 5 anos, de os resultados de uma gestação complicada de diabetes deverem aproximar-se dos da grávida não diabética. No entanto, e apesar de em centros de referência se ter observado uma redução significativa no número de abortamentos, de nados-mortos, de anomalias congénitas e de mortes no período neonatal relacionados com a diabetes na gravidez, a situação persiste.

Com efeito, mesmo nos países de desenvolvimento socioeconómico mais privilegiado, a incidência de abortamentos pode atingir 17%, a taxa de nados-mortos chega a ser 5 vezes superior, a de anomalias congénitas 4 a 10 vezes maior; a mortalidade perinatal atinge valores 5 vezes superior, a mortalidade neonatal até 15 vezes mais; relativamente à taxa de mortalidade infantil, esta poderá triplicar em relação à das gestações sem diabetes. De destacar que, com a possível excepção de maior incidência de defeitos congénitos nas DPG, todos estes maus resultados são também observados na DG.

Tendo em conta as assimetrias relacionadas com a assistência dispensada à grávida, importa reconhecer a etiopatogénese da embriofetopatia diabética e identificar os aspectos passíveis de intervenção, por forma a que os objectivos preconizados pela Declaração de St. Vincent não sejam apenas uma manifestação de intenções não concretizadas, passados mais de 25 anos.

ETIOPATOGÉNESE

A patogénese e todo o espectro da embriofetopatia diabética resultam fundamentalmente do excesso de glicose transferido da mãe para o feto, induzindo à hiperglicemia fetal – responsável primário pelas anomalias congénitas – e à consequente hipertrofia dos ilhéus pancreáticos e hiperplasia das células-β, de acordo com o diagrama representado na Figura 1.

O resultante hiperinsulinismo fetal crónico, integrando uma cascata de alterações metabólicas, é responsável pelo quadro clínico da embriofetopatia diabética, de consequências imediatas no período neonatal, podendo predispor à síndroma metabólica do adulto.

A desregulação do metabolismo glucídico materno justifica, neste modelo teórico, todo o início e manutenção da cascata da embriofetopatia diabética. No entanto, é possível que outros substratos metabólicos, para além da glicose materna, atravessem a barreira placentar contribuindo para alterações do meio fetal; as respectivas consequências dependem, não só do metabólito em si, mas dos estádios críticos do desenvolvimento em que tais alterações ocorram.

Esta hipótese é corroborada:

  • Por modelos experimentais subscrevendo o contributo de outros substratos, nomeadamente corpos cetónicos e produtos da peroxidação lipídica na patogénese das anomalias congénitas e;
  • Pela verificação em animais de laboratório de que a suplementação de determinados factores, em especial ácido araquidónico e mioinositol, “depuradores” de radicais livres de oxigénio e antioxidantes, reduz a taxa de defeitos congénitos em filhos de diabéticas. A utilidade de tais medidas e a sua aplicação na prática clínica constituem questões em aberto.

FIGURA 1. A embriofetopatia: aspetos da embriopatogénese.

Manifestações clínicas, interpretação fisiopatológica e actuação prática

Diabetes pré-gestacional (DPG)

As potenciais e múltiplas complicações evidenciam-se in utero: abortamento, morte fetal, anomalia congénita, restrição do crescimento fetal/intrauterino (RCIU) e macrossomia. O hiperinsulinismo fetal crónico, com o resultante aumento do metabolismo e consumo de oxigénio, levando à hipoxémia, para além da taxa aumentada de mortes fetais e prematuridade, constitui mais outro factor para a asfixia neonatal, frequentemente observada nos RN de mães diabética.

Embora a maioria destas complicações se relacione com o mau controlo metabólico da grávida, outras, no entanto, ocorrem mesmo em casos de diabetes bem controladas, pondo em causa metodologias e definições, intervenções e seu cumprimento e, provavelmente, outros substratos, que não apenas a glicose. Com toda esta constelação de problemas e complicações não é surpreendente que o recém-nascido de mãe diabética (RNMD) constitua uma população sujeita a taxas de internamento superiores às da população em geral.

Anomalias congénitas

Ao longo das últimas décadas tem sido postulado que, para além dos hidratos de carbono (glucose, galactose e manose) outros substractos metabólicos estariam igualmente envolvidos na etiopatogénese das malformações congénitas, desde que presentes em níveis elevados durante períodos críticos do desenvolvimento. Entre os possíveis metabólitos implicados salientam-se os corpos cetónicos em excesso, a deficiência de zinco, ácido araquidónico e mioinositol e alterações da peroxidação lipídica com produção de radicais oxigenados livres. (Figura 2)

Apesar de terem sido descritas inúmeras anomalias congénitas afectando diversos órgãos e sistemas na DPG, tanto do tipo 1 como do tipo 2, a associação é mais frequente para algumas anomalias, nomeadamente do pavilhão auricular e do foro óculo-aurículo-vertebral. Síndromas de regressão caudal são também mais frequentes, em particular a agenesia do sacro (risco 200-600 vezes superior ao da população controlo), defeitos do tubo neural e defeitos vários do SNC (desde anencefalia – risco 3 vezes maior, holoprosencefalia – risco 40-400 vezes mais elevado).

Considerando as cardiopatias, ocorrem com maior frequência defeitos do septo auricular e ventricular, transposição dos grandes vasos e persistência do canal arterial (4 a 6 vezes mais frequente). A nível nefro-urológico, anomalias como agenesia renal e duplicação ureteral têm igualmente prevalência aumentada na gravidez acompanhada de diabetes. Importa referir que a generalidade destas anomalias surge na diabetes com mau controlo metabólico durante a gravidez, com cuidados pré-concepcionais sofríveis ou nulos, em aparente correlação directa com os níveis de HbA1C, sendo a incidência de defeitos semelhante à da população de controlo nas grávidas com HbA1C < 6,9% desde que mantidos, pelo menos, durante 6-12 meses pré-concepção. Contudo, e apesar de um bom controlo metabólico (cuidados pré-concepcionais e valores adequados de HbA1C), a taxa corrigida de anomalias relacionadas com a DPG é superior à da restante população. Será pertinente questionar se os métodos utilizados para definir um “bom controlo metabólico” serão os mais adequados ou não, sendo a hiperglicemia o único agente teratogénico, qual o contributo que, isoladamente ou como adjuvante, os outros substratos possam ter na patogénese da embriofetopatia diabética. A detecção de anomalias congénitas deverá iniciar-se no primeiro trimestre por ecografia transabdominal e transvaginal, e repetida no segundo trimestre. No período pós-natal, os exame subsidiários a realizar deverão estar de acordo com os achados clínicos.

Macrossomia

Da mesma forma que para as anomalias congénitas, outros agentes teratogénicos metabólicos se propõem, que não apenas os açúcares; com efeito, a macrossomia parece resultar também de fenómenos multifactoriais interdependentes, entre eles corpos cetónicos, ácidos gordos livres, aminoácidos selectivos, e possivelmente IGF-1 e -2 a nível periférico. Os anticorpos insulínicos maternos e as hormonas contrarreguladoras da insulina são outros contributos suspeitos na etiopatogénese. A frequência da macrossomia varia entre 17%-50% nos RN de mães com DPG, consoante as séries. Contudo, importa diferenciar dois conceitos: RN grande para a idade gestacional (GIG) e macrossómicos. De facto, apesar de partilharem aspectos comuns, os verdadeiros macrossómicos evidenciam algumas particularidades decorrentes de uma distribuição anormal da sua gordura corporal, nomeadamente a nível da cintura escapulo-umeral. A questão não é meramente académica e assume, desde logo, importância prática para o obstetra, em termos de diagnóstico pré-natal e quanto à via do parto. Para o neonatologista a distinção é também importante porque apesar de ambos, GIG e macrossómicos, apresentarem uma tendência superior para hipoglicémia, policitémia, hipocalcémia e hiperbilirrubinémia; os verdadeiros macrossómicos têm ainda um risco acrescido de asfixia intraparto, de tocotraumatismo, em especial de paralisia do plexo braquial, e de cardiomiopatia. Para definir e identificar macrossomia, em vez da habitual referência a um determinado e arbitrário peso, ou à relação entre o peso de nascimento (PN) e a idade gestacional, outros parâmetros têm sido propostos, nomeadamente, razão perímetro braquial/cefálico, perímetro da coxa/cefálico, peso/perímetro cefálico, espessura de pregas cutâneas, etc., de discutível aplicação prática. Em recém-nascidos de termo, segundo a experiência dos autores, é preferível utilizar o índice ponderal (IP=peso/comprimento3 x 100) para distinguir o verdadeiro macrossómico de um GIG, por ser de maior exequibilidade na prática clínica diária. Este ponto é importante, designadamente pelas implicações quanto ao prognóstico a longo prazo.

FIGURA 2. Etiopatogénese das anomalias congénitas

Hipoglicémia

No período neonatal a hipoglicémia é um problema comum e multifactorial, devido ao hiperinsulinismo mantido e à ausência de respostas hormonais de contrarregulação conduzindo à diminuição da gluconeogénese hepática, da lipólise e a um aumento da captação periférica de glicose. Contudo, o termo hipoglicémia carece de uniformidade de critério quanto à definição. Desde logo, ao estabelecer-se um valor de glicose abaixo do qual se considera existir hipoglicémia, é fundamental referir em que produto biológico a determinação foi efetuada: sangue venoso, sangue capilar ou plasma, dado que a concentração de glicose no sangue total é cerca de 10% a 15% inferior à do plasma. Atendendo ao valor geralmente elevado do hematócrito dos RNMD, o valor a ter em conta deverá ser o plasmático e não o sérico: a determinação em sangue total é afectada pelo hematócrito (valores de glicémia sucessivamente decrescentes no sangue arterial-capilar-venoso). Porém, outras questões se colocam: que ”baixo nível de glicose” se deve considerar nocivo? Será que para o mesmo valor de hipoglicémia a repercussão a nível cerebral será diferente consoante a presença ou não de sintomatologia? Será que o RN poderá utilizar outros substractos em alternativa à glicose, nomeadamente lactato, piruvato, corpos cetónicos, etc., para o seu metabolismo cerebral? Ainda que o RN no pós-parto imediato possa utilizar lactato como substracto energético, o hiperinsulinismo mantido, inibindo a lipólise, indisponibiliza a utilização de corpos cetónicos; assim, será prudente manter a glicémia em níveis ≥ 2,6 mmol/L (~ 48 mg/dL), quaisquer que sejam as idades gestacional e pós-natal do RN. Na prática (Figura 3), importa promover a alimentação entérica precoce e, caso ela não seja exequível ou contraindicada, administrar glicose por via endovenosa (ev) ao débito de 5-6 mg/kg/min, a ajustar de acordo com as necessidades, frequentemente até ritmos de 8-10 mg/kg/min e, raramente, de 12 mg/kg/min.

FIGURA 3. Actuação perante hipoglicémia.

Perante hipoglicémia sintomática, em particular de neuroglicopénia, deve providenciar-se a administração de glicose em bólus ev na dose de 0,25-0,5 g/kg, seguida de perfusão ao ritmo necessário à manutenção da euglicémia. Deve ser iniciada a alimentação entérica com leite materno ou com fórmula logo que possível, com redução gradual da perfusão venosa por forma a evitar a ocorrência de hipoglicémia reactiva. Raramente, em emergências ou com hipoglicémias refractárias, será necessário a administração de glucagon (200-300 µg/kg) para fomentar a gluconeogénese e promover a oxidação hepática de ácidos gordos.

Hipocalcémia

A homeostasia do cálcio é conseguida através de um equilíbrio entre a sua absorção intestinal e a sua excreção renal, num processo hormonodependente. A paratormona (PTH) mobiliza o ião a partir do tecido ósseo, aumenta a sua reabsorção tubular renal e estimula a produção de 1,25-di-hidroxivitamina D. Esta, por sua vez, aumenta a absorção intestinal de cálcio e fosfato e facilita a sua mobilização óssea induzida pela paratormona. Além disso, a hipocalcémia constitui um estímulo para a libertação de paratormona.

No sangue, o cálcio circula sob duas formas: ligado a proteínas séricas (especialmente à albumina) e a iões (por ex. citrato), e sob a forma livre ou ionizada, esta última a forma fisiologicamente relevante, representando 40%-50% do cálcio total. O equilíbrio entre a deposição e a mobilização do cálcio no osso determina, em grande parte, a concentração de cálcio ionizado no sangue. Durante a gestação, o cálcio é transferido da circulação materna para a circulação fetal através de um gradiente de transporte activo transplacentar regulado pelo péptido relacionado com a paratormona (PTHrP) (parathyroid hormone-related peptide).

A paratormona e a vitamina D maternas praticamente não atravessam a placenta. Desta forma, a concentração plasmática fetal de cálcio é mantida num nível superior ao da mãe (particularmente no terceiro trimestre, quando a concentração de cálcio total no RN é de cerca de 10-11mg/dL e a do cálcio ionizado de 6 mg/dL), encontrando-se as glândulas paratiroideias fetais num estado de baixa actividade. Com o nascimento, ocorre uma suspensão súbita da transferência materno-fetal de cálcio, com subsequente diminuição da sua concentração plasmática para níveis de 8-9 mg/dL de cálcio total e de 4,4-5,4 mg/dL da forma ionizada, evidente pelas 24 horas de vida. Em resposta, ocorre uma estimulação das glândulas paratiroideias e, pela segunda semana de vida, os níveis séricos do ião atingem o nível considerado normal para crianças e adultos. A definição de hipocalcémia, em função do peso, considera cálcio total < 8 mg/dL e/ou ionizado < 4,4 mg/dL (RN ≥ 1500 g); e cálcio total < 7 mg/dL e/ou ionizado < 4,0 mg/dL (RN < 1500 g). Salienta-se que a calcémia total está dependente dos níveis séricos de albumina e do pH, sendo que, por cada variação de 1 g/dL da albuminémia, há variação no mesmo sentido de 0,8 mg/dL de cálcio total, e que a acidose eleva os níveis do cálcio ionizado, ao contrário da alcalose. Em cerca de 50% dos RN de mãe diabética ocorre hipocalcémia, tipicamente entre as 24 e as 72 horas após o parto, e em geral acompanhada de hiperfosfatémia e/ou de hipomagnesiémia, possivelmente por atraso adaptativo das glândulas paratiróides ao ambiente extrauterino. Decorridas as primeiras 72 horas de vida, as paratiróides apresentam maior actividade, pelo que nos RNMD a hipocalcémia é geralmente precoce e transitória.

A hipocalcémia correlaciona-se com a gravidade e duração da diabetes materna, sendo sobretudo prevalente em RN com doença pulmonar e/ou asfixia periparto.

A hipocalcémia neonatal nos RNMD, embora frequente, é na maioria dos casos assintomática e autolimitada, pelo que não se justifica a determinação do cálcio sérico de modo rotineiro.

A hipocalcémia sintomática, manifestada por tremor e irritabilidade, convulsões, hipersudorese, letargia, apneia, taquipneia e alterações electrocardiográficas na fase de repolarização, com prolongamento do intervalo QTc (intervalo QT corrigido para a frequência cardíaca), superior a 0,4 segundos, obriga à determinação da calcémia e à sua correção com 1-2 mL/kg/dose de gluconato de cálcio a 10% (◊ 9-18 mg/kg de cálcio elementar), – administração endovenosa lenta em 5 a 10 minutos – com monitorização electrocardiográfica pelo risco de bloqueio cardíaco, bradicárdia refractária e hipotensão.

Se necessário, deve manter-se a correcção com dose de 2-7 mL/kg/dia (máximo: 200 mg/kg em 10 minutos). A hipocalcémia é susceptível de correcção em 3 a 4 dias e, até à normalização dos valores, o cálcio sérico deve ser determinado com intervalos regulares, habitualmente de 12-12 horas. Sublinha-se que uma hipocalcémia persistente pode dever-se à coexistência de hipomagnesiémia, a qual deve ser corrigida. A correcção da hiperfosfatémia, quando presente, deve preceder a correcção da hipocalcémia, pois se o produto [Ca2+] x [PO4- ] for > 80, poderá ocorrer calcificação dos tecidos moles.

Policitémia

Policitémia define-se por hematócrito > 65% no sangue venoso em RN com ou sem sintomas. A sua incidência varia entre 0,4%-12% em RN saudáveis e deve-se ao facto de os eritrócitos fetais terem um maior volume globular médio e serem menos deformáveis que os eritrócitos mais maduros, conduzindo a hiperviscosidade sanguínea. No caso dos RNMD, mais de 30% são afectados. A sua etiopatogénese relaciona-se directamente com o hiperinsulinismo fetal crónico levando sequencialmente a um aumento do metabolismo e consumo de oxigénio, hipoxémia fetal, por sua vez determinando produção acrescida de eritropoietina e policitémia.

As consequências da policitémia são múltiplas: morte fetal, SDR, insuficiência cardíaca, hipertensão pulmonar, sinais neurológicos (tremor, irritabilidade, convulsões, apneia), trombose, gangrena e acidente vascular cerebral. O tratamento padrão, abordado com mais pormenor noutro capítulo, consiste na substituição parcelar do sangue do doente por sangue com valor de eritrócitos mais baixo e viscosidade normal, o que se consegue com diversas estratégias. A Figura 4 mostra aspecto geral do fenótipo de RNMD, ressaltando as características de macrossomia e plétora, e paralisia do plexo braquial, situação traumática a abordar noutro capítulo, adiante.

Icterícia

A imaturidade hepática presente no período neonatal é responsável pela chamada icterícia fisiológica que surge em 60%-70% dos RN (valores de bilirrubinémia em geral < 13 mg/dL); no entanto, esta icterícia só se torna importante (bilirrubinémia total ≥ 13 mg/dL) em cerca de 5% dos casos de RN termo saudáveis versus 30% dos casos de RNMD. À deficiência transitória da enzima glucuroniltransferase, com aumento consequente da circulação êntero-hepática, somam-se outros fatores, que justificam a mais elevada incidência em RNMD: prematuridade, policitémia, aumento da hemólise e macrossomia.

FIGURA 4. Fenótipo de RNMD com paralisia do plexo braquial* (URN-HDE)

*Trata-se duma fotografia histórica referente a época em que eram mais frequentes as paralisias braquiais e se usava faixa abdominal, hoje obsoleta.

Tem sido sugerido que a bilirrubina, em concentrações fisiológicas, exerce um efeito protector sobre os eritrócitos neonatais contra o estresse oxidativo. Porém, em concentrações patológicas prevalecem os efeitos citotóxicos e a hiperbilirrubinémia deve ser controlada. A avaliação clínica é pouco fidedigna e corre o risco de subestimar níveis significantes de icterícia neonatal. Os bilirrubinómetros transcutâneos mais recentes são preferíveis devido à sua capacidade de corrigir os valores de bilirrubina excluídos os efeitos da melanina e da hemoglobina e correlacionando-se favoravelmente com os valores estimados pelo laboratório (diferenças de 2-3 mg/dL com bilirrubinas < 15 mg/dL – 250 µmol/L).

Síndroma de dificuldade respiratória

Múltiplos factores, por vezes associados, contribuem para o aparecimento da síndroma de dificuldade respiratória (SDR) no RNMD. O parto pré-termo, outras condições associadas à própria diabetes, em especial a policitémia e hiperviscosidade concomitantes, a hipóxia e hipertensão pulmonar, a insuficiência cardíaca ocasional, e a alta taxa de cesarianas electivas condicionando atraso da reabsorção e eliminação do líquido pulmonar fetal (síndroma de taquipneia transitória ou “pulmão húmido”), são alguns do referidos factores.

A própria doença da membrana hialina (DMH), causada pela diminuição e/ou inibição da produção de surfactante face ao hiperinsulinismo fetal é mais frequente em RNMD, em qualquer idade gestacional.

Em gravidezes normais, com a administração antenatal de corticóides, tem-se verificado diminuição do risco de DMH. No entanto, pelo seu efeito hiperglicémico fetal e materno, o seu uso na diabética grávida não é consensual, obrigando a sua eventual administração a um controlo glicémico rigoroso, aplicando vários esquemas insulínicos, aparentemente com bons resultados. Particulamente importante, a diabetes bem controlada na gravidez não deve ser uma razão para um parto de pré-termo, efectivamente, com bons cuidados pré-natais, a gestação pode levar-se até termo, frequentemente após as 38 semanas sendo então o risco de SDR significativamente reduzido.

Cardiomiopatia hipertrófica

Em cerca de 30%-50% de diabetes tipo 1, de 25%-33% em tipo 2 e baixo risco na diabetes gestacional verifica-se cardiomiopatia reversível, com hipertrofia do septo interventricular e de uma ou ambas as paredes ventriculares, originando uma cardiopatia obstrutiva. O mecanismo deste tipo de patologia não está completamente esclarecido, embora se tenha comprovado a comparticipação da abundância em receptores para a insulina no miocárdio; como consequência, existe afinidade aumentada do miocárdio para a insulina levando a maior síntese de proteínas, glicogénio e gordura, e respectiva hipertrofia e hiperplasia.

Na fase pós-natal, com consequente diminuição da insulinémia, o número de receptores diminui, atenuando-se paralelamente a hipertrofia miocárdica. Ainda que cerca de 90%-95% dos casos sejam assintomáticos, nos restantes observa-se sinais de cardiopatia obstrutiva com baixo débito e/ou falência cardíaca.

O ecocardiograma pode confirmar o diagnóstico de cardiomiopatia obstrutiva enquanto os marcadores bioquímicos de disfunção miocárdica, nomeadamente CKMB, troponina I e pro-BNP necessitam de validação. Se for necessária terapêutica os β-bloqueadores (propranolol) poderão temporariamente diminuir a obstrução; de referir que a digoxina está contraindicada por redução do débito, aumento da própria obstrução e eventualmente exacerbando a falência cardíaca. Os sintomas resolvem-se habitualmente nas primeiras 2-4 semanas e as alterações ecocardiográficas nos primeiros 2-12 meses.

Síndroma do cólon esquerdo hipoplásico

A etiopatogénese, particularmente complexa e provavelmente multifactorial, deve-se com grande probabilidade aos episódios de hipoglicémia fetal induzidos por mau controlo diabético. As consequências desta hipoglicémia serão a libertação de glucagon e a concomitante diminuição da actividade simpática a nível da porção intestinal pré-esplénica, ambas contribuindo para a redução da motilidade do jejuno e do cólon esquerdo.

O resultado será um cólon de dimensões reduzidas e uma obstrução funcional. Este fenómeno de hipomobilidade poderá ser agravado pelo uso materno de drogas psicotrópicas com efeitos anticolinérgicos e a administração de magnésio durante a gravidez.

A apresentação clínica é a de uma obstrução intestinal orgânica ou funcional, e o diagnóstico será feito por ecografia ou radiografia simples do abdómen, por vezes com enema contrastado, que revelará as imagens características de dilatação colónica proximal, adelgaçamento em cone ao nível do ângulo esplénico com distensão pós-estenótica do cólon descendente e do sigmóide.

A terapêutica é conservadora: aspiração gástrica contínua, fluidoterapia endovenosa e, na ausência de perfuração intestinal, o próprio enema contrastado para além de confirmação diagnóstica poderá também ter efeitos terapêuticos. A cirurgia deve reservar-se para os casos de perfuração ou obstrução refractária recorrente sem resposta à terapêutica médica.

Diabetes gestacional (DG)

Grávida

Com o decorrer da gravidez, sobretudo a partir da segunda metade, o aumento do metabolismo materno exige maiores necessidades de insulina. Caso o limiar de metabolização da glicose seja ultrapassado, surge hiperglicémia. Todas as manifestações clínicas perinatais anteriormente descritas a propósito da DPG, são aplicáveis à DG, com a possível excepção das anomalias congénitas fetais, na situação presente, com menor prevalência do que na DPG. Contudo, determinados estudos apontem para uma alta taxa de defeitos congénitos na DG, provavelmente por corresponderem a casos de DPG, somente diagnosticados durante a gravidez. De facto, na última década nos países industrializados a DG tipo 2, constitui já 1/3 de todas as DPG.

Na população com diabetes gestacional, segundo a experiência dos autores, não se registaram mortes maternas, fetais ou perinatais; as intercorrências da gravidez, designadamente hipertensão gravídica, pré-eclâmpsia, oligo-hidrâmnio e RCIU, surgiram com menor incidência em relação a outras séries, sublinhando-se o bom controlo metabólico levado a cabo. Contudo, registou-se uma taxa de cesarianas de 43,9% versus 36,4% na população de controlo – mães com filhos GIG, não diabéticas.

Recém-nascido

A idade média na data do nascimento foi de 38 semanas, com um peso médio de 3,121 g (± 424 g) e um comprimento médio de 48,55 cm (± 1,77 cm). Os principais problemas clínicos são discriminados no Quadro 1, que estabelece a comparação entre RNMD e RN grandes para a idade gestacional (GIG) de mães não diabéticas. De salientar que, ao considerarmos a relação peso de nascimento/idade gestacional superior ao percentil 90 nos RNMD, esta percentagem foi extremamente baixa (2,9%); porém, ao aplicarmos o índice ponderal (IP > P90), essa percentagem sobe para 16,1%, o que se torna ainda mais evidente com o avançar da idade gestacional (22% e 25% às 39 e 40 semanas gestacionais, respetivamente). Tal facto sugere uma população de lactentes pequenos e obesos, em contraste com a de RN GIG de grávidas não diabéticas. Como tal, propomos que se utilize o IP como melhor indicador de macrossomia e não apenas a relação PN/IG.

Nesta coorte de RNMD registámos 10,3% de RN LIG (leves para a idade gestacional), em flagrante contraste com o diagnóstico obstétrico de restrição de crescimento fetal/intrauterino (RCIU) de apenas 0,9%, questionando a capacidade da avaliação obstétrica deste parâmetro há uma dezena de anos. A elevada taxa de cesarianas observada (43,9% versus 36,4% na população de controlo) não pode ser atribuída à macrossomia per se, pondo em causa induções electivas e fracassadas, agravando os problemas respiratórios destes neonatos com síndroma de adaptação pulmonar após cesarianas em RN de termo (síndroma de taquipneia transitória ou “pulmão húmido”).

Em suma, não se tendo registado quaisquer mortes maternas ou neonatais, resultados que suplantam muitas das séries publicadas, a morbilidade neonatal da DG, superior à da população em geral, continua a representar um importante problema de Saúde Pública.

QUADRO 1 – Morbilidade neonatal em RNMD e em GIG de mães não diabéticas.

Abreviaturas: RNMD: Recém-nascido de mãe diabética; GIG: RN Grande para a idade gestacional.

 RNMDGIGX2
 (n=211)(%)(n=157)(%)(p)
Fractura da clavícula4295,40,79
Paralisia do plexo braquial10,521,20,47
Anomalias congénitas94,394,70,582
Prematuridade2110,2116,60,959
Hipoglicémia63,142,40,663
SDR84,142,40,342
Icterícia6331,62816,8< 0,001
Policitémia73,695,40,437
Hipocalcémia94,721,20,054

Prognóstico

Se no 1º trimestre de gravidez as principais consequências da DPG se traduzem em anomalias congénitas e abortamentos, no final do 2º trimestre, período em que se verifica um aumento da diferenciação e maturação cortical cerebrais, um ambiente intrauterino desfavorável pode resultar em compromisso de vários tipos: cognitivo, psíquico e sensorial.

Factos provados cientificamente sugerem que estas crianças filhas de diabéticas apresentam défice psicomotor e psicossocial ligeiros a moderados, ainda que incidentes pós-natais possam igualmente contribuir para este prognóstico menos favorável.

Durante o 3º trimestre, devido à proliferação de adipócitos, células musculares e células-β dos ilhéus, as alterações metabólicas ocorridas poderão ter repercussões a longo prazo na idade adulta, nomeadamente quanto à incidência de obesidade, intolerância à glicose e diabetes não insulinodependente, de acordo com a hipótese de Barker: origem fetal de doenças com manifestações a partir da 4ª e 5ª décadas de vida. Este aspecto faz parte de um capítulo do livro (Volume 1- Parte IX).

Particularmente importante, do ponto de vista pediátrico, é determinar se a síndroma metabólica do adulto começa a manifestar-se precocemente e quais as características de apresentação. Nesta perspectiva, alargámos o leque de crianças filhas de mãe com DG para 335 e tomámos como população de controlo 295 crianças dos mesmos estratos sócio-económicos e da mesma área de distribuição geográfica.

Os resultados encontrados estão documentados nos quadros 2 e 3. Ainda que o IP, pelo menos para RN de termo ou próximo de termo, seja mais adequado para definir a composição corporal, neste estudo utilizámos o IMC na data do nascimento como parâmetro de comparação com as curvas de IMC no seguimento até à entrada para a escola (idade média 72 meses).

Pela análise do quadro 2, verificamos que a idade gestacional média dos filhos de mãe diabética insulinodepente (FMD ID) é significativamente inferior à dos filhos de mãe diabética não insulinodepente (FMD NID) e que à da população de controlo, em ambos os sexos. O IMC ao nascimento dos três grupos analisados é semelhante entre si; porém, há que ter em conta a diferença de idades gestacionais, sendo que, nos RNMID se verifica uma idade gestacional para um mesmo IMC semelhante aos restantes grupos.

No estudo de seguimento aos 72 meses de idade média (Quadro 3), verificamos um cruzamento ascendente de percentis de IMC transversal a todos os grupos, denotando o panorama preocupante actual de crianças com excesso de peso e de algumas, obesas. Esta tendência é particularmente acentuada nas raparigas FMD ID (Percentil IMC 15-50 ao nascimento versus 85-97 ao resultado do estudo de seguimento). Da mesma forma, as pressões arteriais sistólicas (PAS) são sempre mais elevadas nestas mesmas raparigas FMD IN, ainda que sem significado estatístico.

O peso relativo da carga genética, em confronto com noxas intrauterinas e pós-natais, não está completamente esclarecido. No entanto, pelo menos em modelos animais, a prevenção da hiperglicémia na gravidez reduz significativamente a prevalência de diabetes em futuras gerações. Os dados por nós documentados sublinham estas preocupações e confirmam que, apesar da Declaração de St. Vincent de 1989, este desidrato está longe de ter sido conseguido.

QUADRO 2 – Dados ao nascimento de filhos de mães diabéticas e população controlo.

Sexo feminino
 DG (n=160)Não-DG (n=138)
 ID (n=50)NID (n=110)  
Id. gestacional (X±Dp)37,7±0,8338,2±1,16p=0,00239,3±3,57p=0,001
IMC (X±Dp)
Percentil
13,1±1.49
15-50
13,2±1.25
15-50
p=0,41613,2±1.50
15-50
p=0,491
Sexo masculino
 DG (n=175)Não-DG (n=151)
 ID (n=55)NID (n=120)  
Id. gestacional (X±Dp)37,8±0,5638,0±1,49p=0,01739.07±1,14p=0,001
IMC (X±Dp)
Percentil
13,2±1.09
15-50
13,0±1.33
15-50
p=0,62313,3±1.03
15-50
p=0,154

 

QUADRO 3 – Dados do estudo de seguimento de filhos de mães diabéticas e da população controlo.

Sexo feminino
 DG (n=119)Não-DG (n=138)
ID (n=32)NID (n=87)  
Idade (Meses±dp)70±5.872±6.0p=0,17473±6.1p=0,029
IMC (X±dp)
Percentil
17.4±2.80
85-97
16.6±2.18
50-85
p=0,17616,6±2.53
50-85
p=0,541
PAS (mmHg±dp)101.4±10.6398.5±8.63p=0,05999,65±10,65p=0,289
PAD (mmHg±dp)54.7±8.8052.6±8.02p=0,18654,08±8.62p=0,343
Sexo masculino
 DG (n=135)Não-DG (n=151)
ID (N=44)NID (N=91)  
Idade (Meses±dp)72±5.971±9.2p=0,36274±6.8p=0,001
IMC (X±dp)
Percentil
16.5±2.25
50-85
16.7±3.33
50-85
p=0,57616.7±2.15
50-85
p=0,326
PAS (mmHg±Sd)102.1±9.0898.8±9.66p=0,14797,68.0±11,40p=0,090
PAD (mmHg±Sd)53.0±9.4152.6±7.72p=0,87354,9±10,39P=0,230

Estratégias possíveis de intervenção

De acordo com estudos de medicina baseada na evidência, segundo os quais um bom controlo metabólico pode alterar favoravelmente o panorama da diabetes na gravidez, porque é que, mesmo em países desenvolvidos, a generalidade dos resultados deixa tanto a desejar?

Em parte, porque muitos destes resultados reflectem cuidados pré-concepcionais e gestacionais muito heterogéneos e frequentemente insatisfatórios. Ainda que a carga genética possa ser desfavorável e ainda que outros substractos metabólicos para além da glicose, actuando em diferentes fases do desenvolvimento, possam contribuir para a etiopatogénese desta síndroma, de momento, contudo, a prioridade reside nos cuidados pré-concepcionais intensivos às mulheres diabéticas e na identificação das mulheres com risco de desenvolverem DG.

Nesta perspectiva, tais situações, uma vez diagnosticadas, deveriam beneficiar de um programa de controlo adequado, com redobrada atenção aos FMD não apenas no período neonatal incentivando, entre outras medidas, o aleitamento materno exclusivo e um estudo evolutivo de seguimento rigoroso com eventual controlo analítico de parâmetros precoces de síndroma metabólica do adulto com início na idade pediátrica.

Agradecimentos: Os autores, muito reconhecidamente, agradecem a colaboração da Professora Cláudia Silva da Faculdade de Ciências da Saúde/Universidade Fernando Pessoa, Porto, responsável pela análise estatística dos dados constantes deste capítulo.

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RECÉM-NASCIDOS DE GESTAÇÃO MÚLTIPLA

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Durante milénios, a gestação múltipla foi quase sinónimo de bigemelaridade (encarada como uma excepção frequente) e apenas ocasionalmente como trigemelaridade (uma raridade). Em contextos de elevadas taxas de fecundidade, natalidade e mortalidade infantil (particularmente neonatal), a gestação múltipla era essencialmente um problema obstétrico, devido sobretudo à muito frequente apresentação não cefálica de um ou dois dos fetos, condicionante de maior morbilidade e/ou mortalidade perinatal e puerperal.

A redução da fecundidade e da natalidade na segunda metade do século XX acompanhou-se de maternidades mais tardias e do desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida. A disseminação destas técnicas provocou no final do século XX uma verdadeira “epidemia de multigemelaridade”, assistindo-se inclusivamente a gestações múltiplas de alto grau (quádruplas, quíntuplas, mesmo até séptuplas), de morbilidade desconhecida até então.

Em Portugal, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), desde meados da década de 1980, tem-se assistido ao aumento da frequência da gestação múltipla, não apenas em número absoluto, mas sobretudo em número relativo. O peso das gestações trigemelares, em particular, aumentou significativamente (em número absoluto de 8 em 1987, para 41 em 2001 versus respectivamente no que respeita a gestações duplas: 952 para 1277) em concomitância com o decréscimo da natalidade.

Do mesmo INE, relativamente ao período entre 2001 (correspondendo a 112.774 nados-vivos) e 2014 (ano em que foram registados 82.367 nados-vivos), através da publicação Estatísticas Demográficas, extraímos os seguintes achados: “- o número de nados-vivos resultante de partos gemelares aumentou de 2,4% para 2,7% do total de nados-vivos, entre 2001 e 2006; – a proporção de nados-vivos gemelares foi mais evidente nas mães com idades mais elevadas; – a proporção de nados-vivos gemelares de mães com menos de 30 anos de idade, face ao total de nados-vivos de mães no mesmo grupo etário, rondou os 2% no período 2001-2006 (2,1% em 2006), enquanto a mesma relação nas mães com idades iguais ou superiores a 30 anos oscilou entre os 2,8% (em 2001) e os 3,4% (em 2004), situando-se nos 3,2% em 2006; – entre 2009 e 2014, a proporção de nados-vivos resultantes de partos gemelares aumentou de 3,0% para 3,2% do total de nados-vivos, assumindo em 2014 valores superiores nas idades acima dos 30 anos.”

Enfim, na viragem para o século XXI, tem havido uma grande reflexão sobre o problema das gestações múltiplas de alto grau e a sua prevenção, no sentido de evitar a morbilidade e mortalidade inerentes, e elaborar novos protocolos. Este propósito tem suscitado questões éticas, ainda longe de estar superadas. Actualmente, parece que este ciclo “epidémico” está a chegar ao fim, tendo a Medicina Reprodutiva tirado ilações com base nos resultados de estudos epidemiológicos e em certas restrições impostas pela legislação, designadamente quanto ao número de embriões implantados.

Fisiopatologia e risco fetal na gestação múltipla

A gestação múltipla espontânea (não devida a aplicação de técnicas de concepção assistida) deve-se a um de dois mecanismos:

  • A fertilização e implantação de mais do que um óvulo libertado no mesmo ciclo ovulatório; ou
  • A duplicação do embrião resultante da fertilização de um único óvulo, ocorrida nos estádios precoces do seu desenvolvimento (pré ou pós-implantação).

Do primeiro processo, resultam gémeos dizigóticos (ou polizigóticos); do segundo, gémeos monozigóticos.

As gestações múltiplas induzidas por apoio médico para a concepção (ou iatrogénicas) correspondem à implantação simultânea de mais do que um embrião, resultantes da fertilização de mais do que um óvulo, qualquer que seja o método de fertilização assistida utilizado (indução da ovulação ou implantação de embriões obtidos por fertilização in vitro). É possível que ocorra a separação espontânea de embriões após a sua implantação artificial, mas é uma ocorrência muito rara.

Os gémeos polizigóticos possuem quase sempre placentas independentes, pois cada embrião implanta-se separadamente no endométrio. São, pois, gémeos pluricoriónicos. Existem, no entanto, relatos de fusão da camada externa do trofoblasto de dois embriões dizigóticos, levando à formação de uma gestação monocoriónica biamniótica.

Os gémeos monozigóticos podem partilhar uma única placenta ou possuir placentas individuais, o mesmo acontecendo com os amnion (sacos amnióticos), conforme o momento da separação dos dois embriões duplicados.

Os gémeos monozigóticos podem, portanto, ser mono ou policoriónicos e gémeos monocoriónicos podem ou não partilhar um mesmo saco amniótico. Caso a separação ocorra até ao 3º dia após a fertilização, terão dois amnion (mesmo que a implantação muito próxima das placentas no endométrio possa sugerir uma única placenta) e dois corion; as separações entre o 4º e o 7º dia levam a gestações monocoriónicas biamnióticas e, após o 7º dia, a gemelaridades monocoriónicas monoamnióticas.

Os gémeos monozigóticos em que a separação dos embriões é incompleta, por ser ainda mais tardia (após o 12º dia), são denominados “gémeos siameses”; trata-se de gémeos, sempre monocoriónicos e monoamnióticos.

Em suma, e em termos práticos de classificação, a bigemelaridade pode classificar-se sob os pontos de vista genético e morfológico:

  • geneticamente, como monozigótica ou di/polizigótica;
  • morfologicamente, como bicoriónica biamniótica (2 placentas e 2 sacos, ou fusão palcentar e 2 sacos), monocoriónica biamniótica (1 placenta e 2 sacos), ou monocoriónica monoamniótica (1 placenta e 1 saco).*

*Em termos de “prevalência global de gémeos” podem ser estabelecidos os seguintes dados: monozigóticos ~ 30%; dizigóticos ~ 70%; monocoriónicos ~ 10%; bicoriónicos ~ 90%; mesmo género 65%; género diferente ~ 35%. Os monocoriónicos são do mesmo género; os bicoriónicos podem ser do mesmo género ou de géneros diferentes.


Estas duas classificações não são totalmente sobreponíveis; isto é, embora possa ser quase certo que gémeos monocoriónicos monoamnióticos são monozigóticos, a multicorionicidade (particularmente a bicorionicidade) não é garantia de polizigotia. (ver adiante corionicidade)

A divulgação das técnicas de reprodução assistida não apenas aumentou o número absoluto de gestações múltiplas e o seu grau, mas também modificou as suas características genéticas, incrementando desproporcionadamente as gestações múltiplas heterozigóticas.

As gestações múltiplas, mono ou multizigóticas, apresentam diferente morbilidade, sendo superior nos casos de monozigotia. O aumento da proporção de multizigotias (de menor risco inerente) veio melhorar alguns dos indicadores globais de sucesso das gestações múltiplas, particularmente as bigemelares, dando uma melhoria do risco global da multigemelaridade.

Os problemas clínicos específicos que a gemelaridade coloca à equipa de perinatologia prendem-se com quatro aspectos fundamentais:

  1. A monocorionicidade;
  2. As anomalias congénitas;
  3. A prematuridade; e
  4. As exigências logísticas.

Embora todas as gestações múltiplas sejam potencialmente de maior risco do que as gestações únicas, as gestações gemelares monozigóticas, particularmente as monocoriónicas, são as que envolvem maior risco.

A partilha da placenta nas gestações monocoriónicas é um dos principais condicionantes de risco acrescido para os fetos. O maior destes é a transfusão feto-fetal: um dos gémeos recebe mais sangue da placenta do que o outro, devido a desequilíbrio nas anastomoses entre os vasos da placenta. Esta complicação parece ocorrer em 5% a 25% das gestações bigemelares monocoriónicas (particularmente nas biamnióticas), em qualquer fase da gestação. Pode haver quadros crónicos ou agudos, conforme o tempo decorrido entre o início do desequilíbrio hemodinâmico e o fim da gestação.

As consequências para o feto receptor são poli-hidrâmnio, hipervolémia com policitémia, podendo surgir insuficiência cardíaca congestiva in utero e, após o nascimento, fenómenos de hiperviscosidade e hiperbilirrubinémia. Na fisiopatologia da transfusão feto-fetal participa o sistema renina-angiotensina, verificando-se níveis elevados de hBNP (péptido natriurético cerebral humano) e endotelina-1. Mediadores vasoactivos produzidos no dador são desviados para o receptor, do que resulta hipertensão e cardiomiopatia hipertensiva.

Para o feto dador, as consequências são oligoâmnio, anemia crónica e hipovolémia, causando restrição de crescimento intrauterino, sofrimento fetal crónico e, potencialmente, morte in utero.

O risco de morte na transfusão feto-fetal grave pode chegar a 80%. O risco de anomalias congénitas por causas mecânicas é maior no gémeo dador, pela moldagem e compressão condicionada pelo seu oligoâmnio.

A morte fetal de um dos gémeos é um fenómeno frequente. Gémeos monoamnióticos (1% das gestações gemelares) têm maior risco de morte fetal (50%-60%), devido principalmente ao risco de os cordões se entrelaçarem e sofrerem compressão.

Fenómenos de transfusão feto-fetal graves incrementam, em primeiro lugar, o risco de morte fetal do gémeo dador, mas, num segundo tempo, potencialmente também do receptor. A morte de um dos gémeos desencadeia processos biológicos que afectam o gémeo com o qual partilha a circulação placentar. Os produtos tóxicos do metabolismo do cadáver entram na circulação do sobrevivente, afectando-o. Fenómenos tromboembólicos originários no gémeo falecido podem atingir o sobrevivente, provocando neste lesões isquémicas embólicas, particularmente nos órgãos de maior fluxo sanguíneo e circulação terminal, como o sistema nervoso central. Este risco é tanto maior quanto mais tarde ocorrer a morte fetal.

Por outro lado, tanto nas gestações mono como nas policoriónicas, a morte de um dos gémeos aumenta a probabilidade de se desencadear prematuramente o trabalho de parto. No entanto, o gémeo falecido em fase embrionária é geralmente reabsorvido, sem consequências para o(s) sobrevivente(s); na fase fetal precoce, se não se desencadear o trabalho de parto, evolui para o estado chamado feto papiráceo, adquirindo um aspecto mumificado. A prematuridade é, portanto, o outro risco major das gestações múltiplas, sendo hoje em dia a sua importância cada vez maior, devido ao aparecimento de maior número de gestações com riscos acrescidos.

Na maioria das gestações gemelares, o trabalho de parto inicia-se espontaneamente mais cedo do que nas gestações únicas. A idade média de término espontâneo das gestações bigemelares naturais é ~ 35 a 37 semanas, sendo de 33 semanas nas gestações trigemelares. As complicações descritas nas gestações monocoriónicas podem provocar precocemente o desencadeamento espontâneo do parto ou a sua interrupção médica, para salvar um ou todos os gémeos.

A multigemelaridade iatrogénica de elevado grau acompanha-se de uma diminuição desproporcionada do tempo de gestação viável, ocorrendo o parto tanto mais cedo quanto maior o número de fetos. O aumento do número de fetos (e suas placentas) com risco proporcional de complicações gravídicas graves (diabetes, hipertensão, eclâmpsia, síndroma HELLP, descolamento da placenta, etc.), determina a indicação médica de abortamento por causa materna, fetal ou combinada.

A fecundação assistida é mais frequente em mulheres de idade mais avançada, as quais possuem por si só um maior risco das patologias gravídicas referidas. Se a isto associarmos a adopção de técnicas ou protocolos (felizmente já abandonados em muitos países e instituições) que levam à implantação de um número elevado de embriões (para obviar o risco de insucesso em mulheres em idade fértil avançada) compreende-se que aumente o risco de prematuridade.

As gestações múltiplas apresentam também um risco acrescido de anomalias congénitas, cromossómicas e genéticas, ou secundárias a perturbações vasculares ou mecânicas. Sendo algumas destas anomalias incompatíveis com a vida fetal, aumenta o risco de morte in utero. O elevado risco de anomalias congénitas é particularmente evidente nas gestações múltiplas monozigóticas, sendo pouco significativo na multigemelaridade dizigótica.

Sendo a reprodução assistida mais frequente em casais com história longa de infertilidade, especialmente em mulheres com risco inerente elevado de conceber embriões com anomalias cromossómicas, não é surpreendente o aumento da sua prevalência. Contudo, calculando o risco de ocorrência de anomalias congénitas em gestações múltiplas iatrogénicas, se for controlada a variável idade materna, o número obtido não é superior ao das gestações únicas.

Nalguns casos de anomalias graves pondo em risco a vida fetal, certos protocolos estabelecem a indicação de abortamento. Poderá, por outro lado, colocar-se a seguinte situação: necessidade da correcção precoce ex utero de anomalia num dos gémeos, susceptível de desencadear prematuramente o parto, com possível repercussão sobre o gémeo dito “são”.

No plano logístico, a iminência do parto prematuro de uma gestação múltipla poderá originar dificuldades na preparação de vagas nas UCIN, em número igual ao de gémeos.

De facto, nem sempre sendo possível garantir um número de vagas de ventilação igual ao de gémeos, poderá ser necessária a transferência ex utero para outra UCIN, o que comporta risco de morbilidade e mortalidade associado ao transporte (mesmo utilizando o sistema especial de transporte neonatal com cuidados intensivos).

Manifestações clínicas e diagnóstico

Cabe à equipa de Perinatologia (obstetra, neonatologista, geneticista clínico, etc.) identificar o mais precocemente possível as situações de maior risco associadas a gestações múltiplas, de modo a poder corrigi-las, ou a minorar as suas consequências: número de embriões, corionicidade, anomalias congénitas, perturbações do crescimento, bem-estar embrionário ou fetal, e patologia materna associada.

Verificar o número de gémeos é relativamente fácil, através da realização precoce da ecografia obstétrica. No entanto, ainda actualmente ocorrem casos esporádicos de diagnóstico tardio de multigemelaridade espontânea.

A determinação da corionicidade (caracterização da morfologia relativamente aos corion) de gestações múltiplas espontâneas é por vezes difícil, mas deve ser recolhido o maior número possível de elementos para fazer o diagnóstico de mono ou multicorionicidade.

Os gémeos monoamnióticos são, em princípio, monocoriónicos; a dúvida pode colocar-se nos casos de gemelaridade biamniótica. Ecograficamente, as primeiras semanas após a implantação embrionária são as ideais para determinar, por ecografia, a corionicidade da gestação gemelar, pois é então geralmente possível a visualização de placentas separadas.

Caso não tenha sido possível realizar uma ecografia precoce, ou não tenham sido identificadas imagens claras de placentas independentes ou separadas, a ecografia obstétrica utiliza como critério a morfologia da confluência dos dois sacos amnióticos com o córion.

Se na secção ecográfica desta confluência existe um pequeno espaço triangular entre o âmnio e o córion (imagem em Y), provavelmente trata-se duma gestação bicoriónica; se a imagem obtida é a de ausência de qualquer separação entre o âmnio e o córion (imagem em T), trata-se provavelmente de uma gestação monocoriónica.

Na data do termo da gravidez, placentas independentes podem macroscopicamente parecer uma única, pois juntam-se no seu crescimento. No entanto, é possível identificar histologicamente a independência de placentas aparentemente únicas.

Em qualquer gestação múltipla espontânea em que não há informação ecográfica fidedigna acerca da corionicidade e é expulsa uma placenta aparentemente única, deve solicitar-se o exame histológico da placenta.

O diagnóstico da zigotia (intimamente ligado ao da corionicidade) é igualmente importante, a curto, médio e longo prazo, de tal modo que a “Declaração dos Direitos e Necessidades dos Gémeos e Múltiplos de Elevado Grau” (1995) refere explicitamente: a) o direito dos pais ao registo exacto da corionicidade e determinação da zigotia dos seus filhos gémeos do mesmo sexo; b) o direito de gémeos múltiplos do mesmo sexo, cuja zigotia não fora determinada à nascença, a poderem testá-la mais tarde.

As vantagens da determinação precoce e exacta da zigotia são:

  1. Determinar os riscos fetais e pós-natais associados à monozigotia e à dizigotia;
  2. Conhecer riscos tardios de doenças genéticas;
  3. Informar quando se trata de gémeos “idênticos” ou “fraternos”;
  4. Saber se os gémeos serão potenciais dadores de órgãos compatíveis;
  5. Determinar o risco de recorrência de gestação múltipla e;
  6. Poder obter dados para estudos de coortes de gémeos.

O método mais fácil e barato de determinar a zigotia é, de facto, verificar o sexo. Gémeos de sexos diferentes, não são monozigóticos; gémeos do mesmo sexo, podem ser, ou não, monozigóticos.

O diagnóstico ecográfico pré-natal da zigotia de fetos do mesmo sexo pode ser problemático, pois, como foi referido, a determinação da corionicidade é falível, particularmente nos casos de fetos policoriónicos. Recentemente, foi sugerida a verificação ecográfica do número de corpos lúteos ováricos no primeiro trimestre de gestação como método de elevada exactidão para a determinação da zigotia. A existência de mais do que um corpo lúteo sugere libertação simultânea de mais do que um óvulo, portanto, elevada probabilidade de polizigotia. Este método está pendente de validação com o método padrão.

No período pós-natal, para determinação de monozigotia, outro método fácil, rápido e barato, de especificidade e valor preditivo positivo elevados, mas de sensibilidade e valor preditivo negativo de monozigotia baixos, é a fenotipagem (Landsteiner, Rhesus, Kell e Duffy) dos eritrócitos do sangue, do cordão ou periférico, de ambos recém-nascidos. Antigénios eritrocitários diferentes dão certeza de heterozigotia, mas antigénios iguais não dão qualquer certeza.

A avaliação das características fenotípicas pela observação física após o parto, pode dar informações importantes, tendo-se já desenvolvido tabelas que auxiliam esta determinação, se necessário através de observações repetidas, em diferentes fases do desenvolvimento.

O estudo genético, através de análise PCR multiplex de séries estabelecidas de genes, permite a determinação com elevado grau de certeza, em casos mais difíceis, sendo considerado actualmente o gold standard.

O diagnóstico pré-natal de transfusão feto-fetal grave pode ser feito ecograficamente, em gestações monocoriónicas, através, quer da identificação de discrepância de dimensão do saco amniótico e peso em fetos inicialmente concordantes (em princípio, o feto maior é o que tem hidrâmnio), quer de sinais de insuficiência cardíaca no feto receptor (má função ventricular, ascite ou mesmo hydrops foetalis), ou de alteração dos fluxos arteriais umbilicais, da aorta e/ou artéria cerebral média (maiores no feto receptor, menores no dador).

A prova pós-natal é dada pela verificação de discrepância ponderal de 15% a 25% (discrepâncias superiores a 25% são consideradas graves), e/ou de diferença de concentração de Hb > 2,5 a 5 g/dL. A evidência de transfusão feto-fetal é tanto mais potente quanto maior a discrepância de peso e/ou hemoglobina, mas não existe homogeneidade de opinião entre investigadores quanto ao valor limiar de diagnóstico da condição. A presença de consequências, como anemia, policitémia, insuficiência cardíaca, ascite, etc., é confirmada através dos exames complementares adequados.

A discrepância ponderal entre gémeos pode ser devida, não apenas à transfusão feto-fetal (que ocorre apenas em 5% a 25% das gestações monocoriónicas, que são apenas 10% de todas as gestações bigemelares), mas também a problemas placentares, ou à presença de anomalia congénita num dos fetos.

A pesquisa de anomalias congénitas deve ser uma preocupação, pré e pós-natal, em toda gestação múltipla. A atenção deve ser particularmente maior quando há homozigotia suspeita ou confirmada. Na fertilização in vitro, é frequente proceder-se à exclusão de anomalias cromossómicas antes da implantação dos embriões. Todas as gestações múltiplas devem ser submetidas a ecografia morfológica e ecocardiografia fetal. Após o nascimento, para além das manobras de rastreio de anomalias comuns a todo recém-nascido, devem ser confirmadas eventuais suspeitas pré-natais, mantendo um nível de suspeição elevado nos casos de gestações mal vigiadas e em relação às anomalias que se manifestam ao longo do período neonatal (como a coarctação da aorta).

O diagnóstico dos problemas associados à prematuridade não é diferente do realizado nos casos de gestações únicas. Apenas há que ter em conta a possibilidade de ocorrência simultânea dos outros problemas para os quais o risco é acrescido na gestação múltipla, que podem agravar ou simular situações próprias da prematuridade. É frequente o(s) gémeo(s) com situação de estresse intrauterino ligeiro a moderado apresentar (em) uma maturação funcional superior, relativamente ao(s) casos associados a bem-estar fetal. Esta diferença pode reflectir-se não apenas na menor necessidade de cuidados, mas também em pontuação ligeiramente diferente na avaliação da idade gestacional observada.

O diagnóstico de adequação de crescimento intrauterino e pós-natal é ainda um assunto não consensual. Embora se tenham desenvolvido tabelas de crescimento adaptadas a gestações bigemelares (mesmo adaptadas a gestações de maior grau), duvidamos da sua utilidade. É nossa convicção de que a gestação múltipla não é uma variável do normal, sim um erro da natureza ou uma iatrogenia, sendo de supor que os embriões, fetos e recém-nascidos, deveriam ter o potencial de desenvolvimento normal se fossem de gestação única, pelo que admitimos que devem ser avaliados através das tabelas de crescimento das gestação simples. Apenas assim será diagnosticada correctamente a adequação do crescimento dum gémeo.

No desenvolvimento pós-natal dos gémeos é importante acompanhar as potenciais consequências das patologias associadas à monocorionicidade, prematuridade e anomalias congénitas. A ecografia cerebral é recomendada em gémeos monocoriónicos, particularmente naqueles em que ocorreram incidentes, como transfusão feto-fetal grave ou morte fetal. Deve ser dada atenção especial a sinais de paralisia cerebral e outras perturbações do neurodesenvolvimento, cuja frequência se verificou ser superior nestas situações.

Prevenção e tratamento

A prevenção dos problemas da gestação múltipla começa por uma abordagem preventiva da multigemelaridade iatrogénica. É importante verificar as situações em que está efectivamente indicada a utilização de técnicas de estimulação da ovulação, sendo imprescindível, quando indicadas, esclarecer o casal acerca dos riscos de ocorrência de gemelaridade de alto grau, dos riscos a ela inerentes e das opções existentes para diminuir este risco. Casais que não aceitam estes riscos ou são incapazes de os compreender, não deveriam ser elegíveis para este método.

A eliminação selectiva de embriões já implantados não é uma opção de primeira linha, pois levanta problemas éticos e legais óbvios; por isso, uma abordagem preventiva será sempre preferível.

O desenvolvimento de protocolos que levam a maior sucesso das gestações induzidas, permitiu adoptar políticas de implantação de apenas um ou dois embriões na fertilização in vitro. Os países em que estas abordagens foram efectivadas viram terminar ou reduzir rapidamente a epidemia de multigemelaridade iatrogénica de alto grau.

Um elevado grau de suspeição e um seguimento obstétrico rigoroso baseado em normas estritas é o segundo passo para uma eficaz prevenção dos riscos das gestações múltiplas: diagnosticar precocemente a gemelaridade, verificar a corionicidade, proceder ao rastreio de anomalias congénitas, e monitorizar o crescimento e o bem-estar fetais permitem o diagnóstico atempado dos problemas e a programação em tempo útil das intervenções que a tecnologia contemporânea coloca à disposição.

A boa acessibilidade aos cuidados de saúde à grávida, a adequada competência ecográfica dos profissionais envolvidos e uma referenciação atempada e acertada, são condições fundamentais para atingir estes objectivos.

Cada vez se torna mais evidente a vantagem da existência de Consultas de Gémeos, particularmente pré-natais, pois, segundo Papiernik e colaboradores, “todas as gestações gemelares são de alto risco para as crianças e a mãe, mesmo que decorram sem problemas aparentes”.

 

O diagnóstico atempado de transfusão feto-fetal grave em gestações monocoriónicas permite actualmente optar entre várias abordagens terapêuticas pré-natais: a amniorredução, no feto com hidrâmnio; a septostomia amniótica para igualar o volume de líquido amniótico nos dois fetos; a utilização endoscópica do laser para interromper anastomoses vasculares placentares ou para selar a ligação dos vasos umbilicais dum feto falecido à placenta; o feticídio selectivo, como forma de evitar a morte dos dois fetos; eventualmente, a interrupção médica da gestação.

A identificação precoce e exacta de complicações da gestação gemelar (como de qualquer outra) obrigará ao encaminhamento da grávida para centros perinatais especializados com o objectivo de garantir melhor vigilância, assim como terapêutica fetal e neonatal adequada.

No período neonatal, a abordagem terapêutica da multigemelaridade é a das suas complicações: anemia, hiperviscosidade, hiperbilirrubinémia, insuficiência cardíaca e hemodinâmica, ascite ou hidropisia, insuficiência respiratória, complicações da prematuridade, etc..

Os gémeos e múltiplos depois do parto

Sob o ponto de vista evolutivo, os gémeos levantam determinadas questões específicas que exigem soluções e têm influência no prognóstico. Seguidamente procede-se a uma abordagem sucinta de algumas delas.

Morbilidade e mortalidade

Sabe-se que o risco de prematuridade e/ou baixo peso nos múltiplos é cerca de 60%, e que também existe um risco elevado de disfunção de neurodesenvolvimento e de morte perinatal.

Daí a necessidade de a grávida ser acompanhada em consulta de alto risco e de o parto ocorrer em centro diferenciado. Depois do parto, podem ocorrer situações difíceis para os pais: um dos gémeos evidenciar uma anomalia congénita e o outro não; um dos gémeos poder evidenciar situação clínica que necessite de internamento em UCIN mantendo-se o outro junto da mãe; um dos gémeos ter alta e o outro permanecer internado durante mais tempo.

O risco de morte de um feto ou recém-nascido gémeo é três vezes superior ao de um feto ou recém-nascido único. Se considerarmos a morte perinatal, ela é cinco vezes superior nos gémeos e dez vezes superior nos triplos relativamente a um recém-nascido único.

Uma questão particular surge quando um dos gémeos morre e o outro sobrevive. Os pais ficam divididos entre a alegria do nascimento de um filho e a perda de outro. Também para os profissionais de saúde esta situação é difícil, sendo frequente ouvir-se: “Você ainda tem um bebé lindo!” ou “Como poderia você lidar com dois ao mesmo tempo?”. Torna-se óbvio que é importante não menosprezar a dor dos pais e criar oportunidades para conversar sobre a criança que morreu, sempre que os pais assim o expressem

Impacte no sistema familiar

Nas famílias com gémeos ou múltiplos, sem assistência adequada, existe maior risco de divórcio, doença e abuso infantil. De facto, a chegada dos gémeos ao núcleo familiar acarreta alterações estruturais importantes da dinâmica e organização familiares que podem prejudicar um ou mais dos seus membros. Se os pais tiverem acesso a informação útil, terão maior capacidade de antecipar dificuldades, o que poderá facilitar o processo de adaptação à nova situação. A consulta de bibliografia específica, já existente no nosso País, e a frequência de consultas pré-natais ou a integração em grupos de ajuda com outros pais de gémeos, são formas diferentes, mas complementares, de se atingir este objectivo. Por exemplo, se a grávida for informada sobre os benefícios biológicos, psicológicos e financeiros do aleitamento materno de recém-nascidos (pré-termo ou de termo), e se lhe forem ensinadas técnicas de aleitamento materno em simultâneo, a probabilidade de iniciar e manter o aleitamento materno após o nascimento dos gémeos será maior.

A família deve preparar a chegada dos gémeos, não só adquirindo roupa e outros equipamentos, mas também procurando obter apoio adicional para as tarefas domésticas. Pode fazê-lo recorrendo a ajuda de familiares, ou contratando serviços especializados, ou ainda, recorrendo a instituições de solidariedade social.

Quando existem outros filhos, o nascimento dos gémeos é um momento crítico para eles, pois tal implica certa separação da mãe pelas exigências de cuidados a prestar aos RN. Esta situação pode ser minorada quando os pais encontram formas de dedicar tempo e atenção aos filhos mais velhos e tentam envolvê-los nalgumas tarefas relacionadas com os gémeos.

Em suma, se a família se preparar para a chegada dos gémeos durante a gravidez, tendo em conta os cuidados de antecipação referidos, a ansiedade dos pais, as dificuldades após o parto, quer com o aleitamento materno, quer na organização familiar, serão mais facilmente ultrapassáveis.

Aleitamento em simultâneo

O aleitamento materno em simultâneo de duas, três ou mesmo quatro crianças é possível tendo em conta que a produção de leite resulta da estimulação efectuada pelas crianças, a qual é tanto maior quanto maior o seu número. O referido aleitamento permite à mãe ganhar algum tempo com uma tarefa que ocorre várias vezes por dia, libertando-a para outras. Existe, no entanto, a desvantagem de a mesma não poder dar atenção individual a cada filho. Assim, pode haver vantagem em amamentar os gémeos em simultâneo quando acordam ao mesmo tempo e choram com fome.

O posicionamento para a amamentação em simultâneo faz-se com a ajuda de várias almofadas; as crianças são colocadas de cada lado da mãe com o tronco e membros atrás da mãe, ou apoiadas em linha cruzada ou em paralelo, à frente da mãe. A maternidade é local ideal para o treino deste posicionamento pois, com o apoio da equipa, a mãe terá oportunidade para aprender e experimentar.

Se a mãe não puder ou não quiser amamentar os seus filhos, existem também técnicas de aleitamento artificial em simultâneo. Uma delas consiste em colocar as duas crianças sobre o colo, apoiando-as com um braço, enquanto o outro segura os dois biberões. Noutra técnica, as crianças são colocadas no colo da mãe viradas para a frente e a mãe envolve cada uma com um membro superior pegando no biberão com a respectiva mão.

O sono

Os gémeos podem ter mais dificuldade em adquirir um ritmo de sono regular do que a criança única, por vários motivos.

Tratando-se frequentemente de crianças pré-termo manipuladas com intervalos curtos e regulares durante o internamento na UCIN, poderá surgir a falta desse hábito em casa.

Pela sua prematuridade e/ou baixo peso, poderão necessitar de fazer intervalos das mamadas de 2 ou 3 horas durante a noite.

É frequente haver mais do que uma pessoa a cuidar dos gémeos e, consequentemente, diferentes formas de dar um biberão, o que dificulta o início duma rotina. E, se a mãe estiver ansiosa e insegura com o baixo peso ou a prematuridade, ela irá oferecer necessariamente mais refeições durante a noite.

De qualquer forma, é possível que os gémeos adquiriram uma rotina de sono até aos 6 a 9 meses de idade.

Uma questão colocada frequentemente é a da partilha do berço pelos gémeos. Pode ser desejável esta partilha enquanto são pequenos, por oferecer algumas vantagens: o acordarem ao mesmo tempo permitirá estabelecer mais precocemente uma rotina de sono e de se entreterem entre si. Existe, porém, o risco de sobreaquecimento, um dos factores que se considera associado ao risco de morte súbita do lactente.

Crescimento e desenvolvimento

O crescimento dos gémeos é semelhante ao de qualquer criança de gestação única. Os gémeos dizigóticos poderão apresentar um crescimento diferente um do outro na adolescência, pois o desenvolvimento pubertário pode ser desfasado, tanto mais se os gémeos forem de sexos diferentes.

O desenvolvimento dos gémeos de baixo risco é também semelhante ao da criança única, com excepção da linguagem. A conhecida linguagem silenciosa dos gémeos, também designada por criptofasia, parece envolver cerca de 40% dos casos; é mais frequente em gémeos monozigóticos e consiste na comunicação que se estabelece intra-par, podendo haver palavras acidentais, apenas reconhecidas pelo outro.

Esta situação resulta do facto de cada gémeo ter como modelo o seu irmão gémeo, com uma linguagem tão pobre como a dele; por isso, a linguagem de ambos vai-se modificando, ao ponto de se tornar irreconhecível para os outros, e apenas perceptível por ambos. Isto não acarreta qualquer problema, desde que os gémeos desenvolvam em simultâneo uma linguagem adequada à sua idade.

Entre os gémeos com antecedentes de problemas mais complicados (gestação em idade materna tardia, concepção assistida por técnicas mais invasivas, multigemelaridade de alto grau, complicações médicas da gravidez, monocorionicidade, transfusão feto-fetal, morte fetal de um dos gémeos, grande prematuridade, gestação de termo, etc.) o risco de paralisia cerebral é grande.

Tal risco em gémeos, em comparação com recém-nascidos de gestação simples, varia, sendo cerca de 4-9 vezes maior. De tal hipotética mas provável circunstância, os putativos progenitores deverão ser informados pela equipa técnica de concepção assistida a quem recorrem, no contexto de diagnóstico de gestação gemelar.

A educação dos gémeos tem algumas particularidades, devendo a individualidade e a privacidade ser respeitadas, procurando que cada criança tenha uma identidade própria e saiba funcionar de forma autónoma.

Nesta perspectiva, é fundamental que os pais entendam que os gémeos poderão manifestar um padrão de neurodesenvolvimento não necessariamente sobreponível. Por isso, é fundamental procurar proporcionar-lhes uma atenção e oportunidades individualizadas.

Uma das questões frequentemente colocadas pelos pais quando os gémeos entram para a escola é se ambos devem ou não frequentar a mesma turma. Por razões práticas, tem sido habitual os gémeos ficarem na mesma escola, mas deve ser evitado que sejam colocados na mesma sala de aula.

Há, no entanto, situações especiais, em que os gémeos não estão preparados para ficar afastados quando entram para a escola; por isso, é necessário que a separação se faça de modo gradual.

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PREMATURIDADE

Definições

É definido recém-nascido pré-termo todo aquele cujo parto se verifica antes das 37 semanas de gestação completas (menos de 259 dias) contadas a partir do 1º dia da última menstruação. A idade de gestação pode calcular-se de diversos modos, entre eles: contando o tempo a partir da data do primeiro dia da última menstruação (método que comporta probabilidade de erro ~ 1 a 2 semanas); por ecografia fetal (método que comporta probabilidade de erro ~ 3 a 6 dias); e por métodos clínicos estruturados do exame físico do próprio RN, os quais integram um conjunto de parâmetros morfológicos e neurológicos (por ex. método de Ballard, abordado anteriormente).

A noção de RN pré-termo engloba um grupo muito heterogéneo, quer no que respeita à grande variabilidade: a) do peso (< 1.000 g ou baixo peso extremo, < 1.500 g ou muito baixo peso, < 2.500 g ou baixo peso); b) da idade gestacional (entre 22 a 36 semanas); c) da relação peso/idade gestacional, traduzindo o comportamento do crescimento fetal, a qual pode ser adequada, deficiente ou restrita, e excessiva.

Actualmente, segundo a OMS e peritos internacionais, são considerados os seguintes subgrupos de idade gestacional em RN pré-termo, em semanas: 22-27 à pré-termo extremo; 28-31 à muito pré-termo; 32-36 à pré-termo moderado; 34-36 à pré-termo tardio.

A OMS recomenda que se incluam apenas os nados-vivos. Contudo, de acordo com os peritos, a inclusão dos nados-mortos somente contribuirá para modificação significativa dos números nos países em desenvolvimento.

Estes conceitos implicam a utilização de tabelas e curvas de crescimento utilizadas na prática clínica corrente, às quais se fez referência no capítulo sobre Introdução à Neonatologia.

Muitas vezes utiliza-se o termo de prematuro como sinónimo de pré-termo. De facto, sob o ponto de vista da linguística os termos são sinónimos; no entanto, hoje em dia, e por razões históricas, há a tendência para considerar a designação de pré-termo como mais correcta uma vez que, segundo a “designação mais antiga, “prematuro” era todo e qualquer RN com peso de nascimento < 2.500 gramas. No entanto, considera-se correcto utilizar o adjectivo derivado de prematuro para a designada situação clínica inerente: prematuridade.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com dados do INE e do Registo de RN de Muito Baixo Peso da Secção de Neonatologia da SPP, a incidência actual de prematuridade é cerca de 8,2% (dados de 2018). Dum modo geral, a referida incidência por país é tanto maior quanto menor o desenvolvimento socioeconómico; ou seja, países como a Índia e Brasil têm incidências ~ 20%. Nos EUA, país com largas assimetrias sociais, ronda o valor de 12%.

A estratificação dos RN pré-termo em subgrupos de idade gestacional e/ou de peso conduz necessariamente à noção de limite de viabilidade (definido como a idade gestacional a partir da qual a criança se poderá adaptar à vida extrauterina independentemente da idade de sobrevivência e do prognóstico a médio e longo prazo). O limite de viabilidade é abordado doutro modo por alguns neonatologistas e pediatras do desenvolvimento, os quais consideram tal conceito ligado à possibilidade de crescimento e desenvolvimento normais. Ou seja, trata-se de questão polémica, com implicações éticas.

Efectivamente, com o desenvolvimento da investigação em diversas áreas (farmacologia pré e pós-natal, bioquímica, biofísica, electrónica, etc.) tem sido possível, ao longo dos anos, um conhecimento cada vez mais profundo da fisiopatologia da prematuridade, o que tem permitido taxas de sobrevivência cada vez maiores; isto é, sobrevivem cada vez mais crianças com peso e idade gestacional cada vez mais baixos (nalguns centros com pesos de nascimento ~ 380 gramas e idades gestacionais ~ 21/22 semanas), o que poderá ter repercussões pejorativas sobre o desenvolvimento e qualidade de vida.

Nas últimas três décadas a taxa de sobrevivência de RN pré-termo de muito baixo peso aumentou muito nos países industrializados, designadamente nos Estados Unidos, Canadá, Japão e países do Norte da Europa; com efeito, nalguns destes países têm sido relatadas taxas de sobrevivência de 68% em RN com 23 e 24 semanas gestacionais, de 80% com 25 semanas, e de 91% com 28 semanas.

Em Portugal, onde se registaram progressos assinaláveis na assistência perinatal sobretudo nos últimos vinte anos – a que foi feita referência no Capítulo 1 – registaram-se, no ano de 2000, taxas de sobrevivência de ~ 25% em RN de 24 semanas, de ~ 80% em RN de 28 semanas, e de ~ 90% em RN de 32 semanas. Considerando o parâmetro peso, no mesmo ano, a taxa de sobrevivência em RN com peso de nascimento < 1.000 gramas foi ~ 60%.

Prognóstico

Estudos epidemiológicos internacionais relatam, como sequelas de prematuridade, prevalência de paralisia cerebral oscilando entre 10% e 15%, dificuldade escolar em cerca de 30% a 50% dos casos, perturbações associadas a défice de atenção e hiperactividade em cerca de 25%-30%, e perturbações psiquiátricas em cerca de 20% a 30%.

No nosso País, de acordo com os resultados do Grupo de Estudo do Recém-Nascido de Muito Baixo Peso da SNN/SPP, em 3099 sobreviventes ex-pré-termo aos 4 meses de idade foram apuradas sequelas de grau variável em 20% dos casos; os tipos de sequelas mais frequentemente identificadas foram as neurológicas (~ 57%), oftalmológicas (~ 31%), respiratórias (~ 28%) e digestivas (~ 8%).

Em síntese, os RN pré-termo evidenciam uma diversidade de problemas clínicos que exigem diagnóstico atempado e assistência em unidades de cuidados especiais ou intensivos, integradas em centros hospitalares com recursos humanos e técnicos (Hospitais de Apoio Perinatal Diferenciado/ HAPD) fazendo parte duma rede de cuidados regionalizados, englobando os cuidados primários/unidades de saúde familiar/centros de saúde, e os Hospitais de Apoio Perinatal (HAP).

Prevenção

Cabe aos cuidados primários uma acção imprescindível no campo da prevenção da prematuridade: educação para a saúde, programação da gravidez, apoio a grupos sociais de risco em que as necessidades de saúde não estão satisfeitas, identificação precoce de factores de risco (de parto prematuro, designadamente) e transferência atempada da grávida em tais condições para os centros com mais recursos, viabilizando o parto com maior segurança.

Apesar do desenvolvimento do sistema de transporte do RN em ambulâncias com equipa médica e de enfermagem – uma realidade em Portugal – propiciando terapia intensiva “em movimento”, os estudos epidemiológicos têm demonstrado que a morbilidade e mortalidade dos RN em risco (neste caso dos RN pré-termo) é muito menor quando o parto ocorre em hospital com unidade de cuidados intensivos médico-cirúrgicos, em comparação com situações que obrigam a transporte do RN para instituição com nível de cuidados mais diferenciado.

Salienta-se, em suma, que os cuidados a propiciar por uma equipa multidisciplinar ao “produto da concepção” devem ter início antes do nascimento e continuar na fase peri-parto e pós-parto. Idealmente, os médicos que irão prestar cuidados na fase pós-parto (clínicos gerais/médicos de família, pediatras – neonatologistas) assessorados por outros profissionais, devem participar na avaliação pré-natal, assim como os obstetras e especialistas em medicina materno-fetal devem ser informados sobre a evolução pós-natal. É este o “espírito da Perinatologia”.

De referir o papel dos pais na prestação de cuidados, ainda durante a hospitalização em obediência à filosofia da humanização e da prestação de cuidados centrados na família.

Factores etiológicos e exames preditivos de prematuridade

Apesar dos progressos realizados em investigação no âmbito da medicina materno-fetal, ainda há muitas incógnitas quanto aos factores etiológicos de prematuridade, sendo que o nascimento de um RN com peso deficitário, quer por encurtamento da gravidez, quer por restrição do crescimento fetal, traduz, de facto, certo grau de incapacidade no que respeita à previsão e prevenção de tais situações.

O Quadro 1 resume os principais factores associados a parto pré-termo de acordo com os resultados de estudos acumulados ao longo de décadas. De facto, numa perspectiva de promoção da saúde, de prevenção e de estratégias de intervenção, torna-se fundamental o seu conhecimento, salientando-se que os mesmos factores podem ser relacionados: com a situação de mãe/grávida com repercussões no feto; com o sistema de saúde (acessibilidade e cuidados prestados, ou não prestados, com implicações na detecção, ou não, de factores de risco; e com o nível do sistema socioeconómico em que os cidadãos estão integrados).

QUADRO 1 – Factores etiológicos de parto pré-termo.

Factores maternos
    • Infecção (infecção por Streptococcus do grupo B, Mycoplasma, Herpes simplex, sífilis, vaginose bacteriana, VIH, corioamnionite, etc.)
    • Pré-eclâmpsia
    • Doença crónica (drepanocitose, hipertensão arterial, cardiopatia cianótica ou outra)
    • Toxicodependência
    • Idade materna (< 16 ou > 35 anos)
    • Peso e estatura deficientes
    • Deficiente progressão de peso durante a gravidez
    • Esforço/trabalho excessivo
    • Hábitos de tabaco e álcool
    • Comportamento de risco
Factores uterinos
    • Anomalias uterinas (por ex. útero bicórnio)
    • Incompetência cervical
    • Anomalias do colo uterino
Placenta
    • Placenta prévia
    • Abruptio placentae
Factores fetais
    • Doença hemolítica
    • Gravidez múltipla
    • Anomalias congénitas
    • Hidropsia não imune
    • Infecção associada ou não a corioamnionite
Miscelânea
    • Traumatismo
    • Intervenção cirúrgica
    • Ruptura prematura de membranas
    • Poli-hidrâmnio
    • Cesariana

As situações de amnionite implicam admitir, até prova em contrário, infecção fetal; por sua vez, os estudos demonstraram que a verificação de corioamnionite está associada a risco aumentado de sépsis neonatal, problemas respiratórios (por pneumonia, por défice ou destruição de surfactante, por doença pulmonar crónica, etc.) hemorragia intraperiventricular (HIPV), leucomalácia periventricular (LPV), paralisia cerebral, etc..

Como instrumento prático de detecção de factores de risco (designadamente de prematuridade) refere-se o critério de avaliação de risco pré-natal de Goodwinn modificado, aplicável no âmbito dos cuidados de saúde primários. Assim, o apuramento de pontuação ≥ 3 implicará o encaminhamento da grávida para centro com recursos mais diferenciados (HAP ou HAPD).

Em 2020, os especialistas de medicina materno-fetal e perinatologistas dispõem dum conjunto de exames complementares sofisticados que, acrescentando valor ao grau de previsão de parto pré-termo, mesmo nos casos de gravidez assintomática e gemelar, permitem, por outro lado, programar e executar certas intervenções que podem minorar o risco. Trata-se de exames preditivos.

Citam-se sucintamente os seguintes:

  • Ecografia transvaginal para medição do comprimento cervical (o comprimento cervical encurta com a idade gestacional);
  • Biomarcadores: fibronectina fetal (fFN), marcadores inflamatórios/citocinas, como a IL-6 e IL1B;
  • Estudo do microbioma vaginal;
  • Estudo da alfa-macroglobulina placentar (PAMG-1);
  • Estudo do PIGFBP-1 (phosphorylated insulin-like growth factor binding protein 1), etc..

A combinação dos resultados dos biomarcadores com o valor do comprimento do pescoço contribuir para o incremento da eficácia preditiva.

Particularidades da fisiologia do RN pré-termo e implicações clínicas

O RN pré-termo constitui um exemplo paradigmático de RN de risco dependente, sobretudo, da imaturidade dos órgãos e das baixas reservas energéticas.

Como particularidades fisiológicas do RN pré-termo que estão na base, afinal, dos problemas clínicos clássicos e das possíveis sequelas, citam-se as principais:

  • Pulmão imaturo com défice da cartilagem dos pequenos brônquios e imaturidade dos sistemas produtores de surfactante pulmonar condicionando diminuição da capacidade residual funcional;
  • Hipodesenvolvimento muscular com hipotonia;
  • Caixa torácica de consistência diminuída por incompleta ossificação das costelas;
  • Maior resistência da via aérea ao fluxo aéreo (por menor calibre da via aérea);
  • Risco aumentado de infecção grave pela imaturidade do sistema imunológico em diversas vertentes;
  • Imaturidade dos mecanismos homeostáticos levando a vulnerabilidade no equilíbrio hidroelectrolítico e na termorregulação;
  • Diminuição da actividade reflexa e da coordenação motora (sucção-deglutição) dificultando a alimentação;
  • Imaturidade de diversos sistemas enzimáticos (por ex. antioxidantes, da glicogenólise, da gluconeogénese, etc.) com risco elevado, nomeadamente de lesões teciduais oxidantes e alterações metabólicas;
  • Imaturidade do sistema nervoso central (SNC);
  • Imaturidade da autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral.

Tendo sido abordado anteriormente o conceito de viabilidade, caberá referir, a propósito de desenvolvimento do SNC, que após a 24ª semana verifica-se um incremento do processo de organização estrutural traduzido pelo desenvolvimento das sinapses, diferenciação de dendritos e axónios, e apoptose (morte celular programada). O “pico” de desenvolvimento coincide com período crítico ou de maior vulnerabilidade às noxas ou factores potencialmente “agressivos”.

Como exemplo de possíveis noxas é fundamental citar o papel potencialmente lesivo do ambiente das unidades de cuidados intensivos, tipificado, por exemplo pelas técnicas invasivas que originam dor.

Com efeito, está demonstrado que experiências repetidas de dor originam diversos tipos de respostas fisiológicas em vários órgãos; ao nível do SNC, um dos efeitos é a libertação de neurotransmissores excitatórios com efeito neurotóxico actuando nas células, alterando a sua estrutura, isto é, lesando-as.

As áreas mais vulneráveis do encéfalo são o cerebelo e o lobo frontal (com períodos críticos cerca da 31-32 semanas), a estrutura designada por placa subcortical (com período crítico entre as 22 e 36 semanas), os gânglios da base, e o hipocampo. Como consequências futuras poderão surgir alterações motoras, problemas cognitivos, de comportamento e de atenção.

A imaturidade do SNC do RN pré-termo determina uma diminuição das capacidades autonómicas e de autorregulação, traduzida por maior dificuldade de resposta a situações de estresse e a estímulos adversos do meio ambiente com repercussões na homeostase e, por sua vez, no próprio desenvolvimento do SNC.

No que respeita à imaturidade e desenvolvimento sensoriais, cabe referir algumas especificidades que implicam determinadas intervenções nas unidades onde os RN pré-termo estão hospitalizados, a que adiante se fará referência:

  • O feto crescendo em ambiente intrauterino não está exposto à luz, sendo que a maturação do sistema visual se processa numa fase tardia da gestação; o feto-pré-termo, assumindo a vida extrauterina por gravidez encurtada é, pois, exposto à luz em condições/período etário de desenvolvimento de maior vulnerabilidade;
  • O feto, relativamente protegido do ruído externo, escuta predominantemente a voz e os batimentos cardíacos maternos; tem capacidade para responder activamente aos sons a partir da 25ª semana e, a partir da 32ª semana tem capacidade de resposta de “atenção “ ou de “alerta”; o feto assumindo a vida extrauterina após gravidez encurtada, é confrontado de modo abrupto nas unidades onde é hospitalizado com ruído de elevada intensidade.

Principais problemas clínicos no RN pré-termo

Os principais problemas clínicos surgidos no RN pré-termo podem ser divididos pela sua génese em função de órgãos e sistemas. Procede-se a uma enumeração sucinta dos mesmos, tendo em conta que a abordagem mais aprofundada de alguns deles é feita noutros capítulos.

Respiratórios

Os problemas respiratórios mais típicos da prematuridade são:

  1. Depressão perinatal no pós-parto por deficiente adaptação extrauterina;
  2. DMH por imaturidade pulmonar;
  3. DBP;
  4. Imaturidade dos mecanismos de automatismo respiratório, particularmente para a apneia decorrente de processo inflamatório/infeccioso do corpo carotídeo com consequente alteração da sensibilidade do mesmo aos estímulos a que está sujeito.

Seguidamente é dada ênfase à apneia.

Apneia

A chamada apneia do RN pré-termo é uma situação clínica surgindo em episódios de frequência variável, caracterizada por pausas dos movimentos respiratórios durante mais de 20 segundos, acompanhadas de alterações fisiológicas como cianose e bradicárdia (ou durante menos de 20 segundos associadas às referidas alterações).

De acordo com a verificação, ou não, de fluxo de ar nas vias respiratórias, a apneia do pré-termo classifica-se em 3 tipos:

1) apneia central, em que se verifica simultaneamente interrupção dos movimentos respiratórios e do fluxo de ar; pode surgir, por ex., por imaturidade do centro respiratório ou por lesão do SNC;

2) apneia obstrutiva, resultante de obstrução das vias respiratórias (por ex. por colapso das vias respiratórias face à fraqueza muscular das mesmas, por secreções, etc.), o que origina interrupção do fluxo de ar, continuando a verificar-se movimentos de expansão e retracção torácicos;

3) apneia mista, mais frequente, e surgindo em cerca de 50%-70% dos casos em que, para além dos anteriormente citados dois mecanismos [1) e 2)], outros factores etiológicos poderão estar presentes: anemia, alterações metabólicas, infecção, etc..

No âmbito do diagnóstico diferencial, para além da observação clínica cuidadosa e análise dos factores possivelmente implicados, torna-se fundamental observar (idealmente em simultâneo, mas nem sempre possível, o traçado cardiorrespirográfico (monitorização da frequência cardíaca e respiratória concomitantemente com a oximetria de pulso – SpO2) e determinação do CO2 exalado através do capnógrafo. A monitorização respiratória pode fazer-se com o clássico monitor de movimentos respiratórios, vulgo “colchão de apneia”.

O tratamento da apneia inclui, para além do tratamento da causa, o suporte ventilatório e o uso de xantinas. As mais utilizadas são a aminofilina e a cafeína.

  1.  Aminofilina: a dose de impregnação é 5-6 mg/kg IV ou PO; a administração IV faz-se com auxílio de bomba de perfusão em tempo > 20 minutos; a dose de manutenção é 2 mg/kg/dose (3-4 doses diárias) IV ou PO; a administração IV deve ser efectivada através de bomba em tempo > 5 minutos. Deve vigiar-se a FC, interrompendo-se o fármaco se FC > 180/min. Deve proceder-se a doseamento sérico mantendo níveis ~ 7-10 mcg/mL. Se o nível for baixo, deve administrar-se +1 mL/kg para obter incremento de +2 mcg/mL. Manifestações de toxicidade, para além da taquicárdia, incluem arritmia, convulsões e hemorragias intestinais;
  2. Citrato de cafeína: a dose de impregnação é 20 mg/kg IV ou PO; a dose de manutenção, a iniciar 24 horas após a dose de impregnação, é 5-12 mg/kg IV ou PO, sendo que se deve proceder a minibolus inicial em > 10 minutos, de 5 mg/kg/dose, aumentando-se de 72 em 72 horas, +1 mg/kg/dia até se atingir máximo de 12 mg/kg/dia.

Dadas as repercussões da hipoxémia e hipercápnia resultantes dos episódios de apneia, entre outras, existe risco de lesão do SNC em função da duração e frequência dos mesmos.

Uma nota sobre os resultados de estudos demonstrando o papel benéfico da música nos padrões de sono, na tolerância alimentar e nos sinais vitais.

Intestinais e nutricionais

O problema principal é a enterocolite necrosante (ECN), tópico abordado anteriormente, em capítulo próprio. Por outro lado, as especificidades maturativas do sistema digestivo comportam maior risco de problemas nutricionais.

Renais

O problema principal diz respeito à lesão renal aguda (LRA), descrita anteriormente na Parte XIX, sobre Nefro-Urologia.

Cardiovasculares

Os problemas principais podem ser sistematizados do seguinte modo:

Persistência do canal arterial (PCA) ou persistência do ductus arteriosus (PDA)

No RN pré-termo principalmente no RNMBP existe risco elevado de PCA sendo que vários estudos indicam taxas superiores a 50% em RN com peso de nascimento inferior a 800 g. A gravidez encurtada e a síndroma de dificuldade respiratória constituem os dois factores etiológicos mais importantes: nestas situações, existe resistência vascular pulmonar aumentada, respectivamente por hiperplasia da musculatura arterial pulmonar e por PaO2 reduzida, do que resulta o não encerramento, estabelecendo-se um shunt esquerda (E) → direita (D). O volume de ejecção do ventrículo esquerdo aumenta proporcionalmente ao grau do shunt E → D pelo canal arterial, com consequente dilatação e aumento da pressão da aurícula e ventrículo esquerdos e, secundariamente, descompensação cardíaca e edema pulmonar (ver capítulo próprio na Parte XXII sobre Cardiologia). Salienta-se a este propósito que:

  • o tono intrínseco do ductus no pré-termo em relação ao RN de termo evidencia débil capacidade contráctil devido à imaturidade das isoformas da miosina do músculo liso;
  • no processo de maturação do ductus verifica-se a influência de determinados genes;
  • no RN pré-termo as concentrações séricas de prostaglandinas E2 são mais elevadas do que no RN de termo, contribuindo para manter a permeabilidade do ductus naquele após o nascimento.

As manifestações clínicas que levantam a suspeita de PCA no RN pré-termo são, a partir do 4º-5º dia de vida: pulsos femorais amplos, precórdio hiperactivo, sopro sistólico ou contínuo (subclavicular esquerdo, por vezes com irradiação para o dorso), bradicárdia, crises de apneia e aumento das necessidades ventilatórias.

O diagnóstico deve ser confirmado por ecografia cardíaca com doppler. O tratamento consiste na restrição hídrica (suprimento hídrico não superior a 120 ml/kg/dia) e, caso não haja contra-indicação, ibuprofeno (dose inicial de 10 mg/kg IV, seguindo-se 5 mg/kg IV 24 e 48 horas após a dose inicial).

O ibuprofeno, evidenciando menor probabilidade de disfunção renal, menor repercussão sobre o débito sanguíneo na mesentérica, maior eficácia na autorregulação do débito sanguíneo cerebral e permitindo o encerramento em > 80% dos casos de ductus patente no RNMBP, oferece, pois, vantagens relativamente à indometacina, pelo perfil farmacológico mais seguro.

 Pode-se, contudo, em alternativa continuar a utilizar esta última com a seguinte posologia: 0,2 mg/kg/dose de 12-12h no total de 3 doses; e 0,1 mg/kg/dose de 24-24h no total de 6 doses no RN com < 1.000 g). O seu emprego implica precaução e vigilância clínica e laboratorial, pela possibilidade de disfunção hepática e renal, assim como de hemorragia digestiva.

Nos casos de PCA hemodinamicamente significativa sem resposta às medidas anteriores, há indicação para o encerramento cirúrgico-laqueação.

A questão do tratamento cirúrgico (laqueação) versus tratamento conservador é hoje matéria de debate entre os especialistas, dado que em determinados estudos se demosnstrou a associação de laqueação do ductus a maior risco de doença pulmonar crónica, de retinopatia e de alterações neurossensoriais.

Nos primeiros 5 dias de vida em RN pré-termo, a determinação sérica seriada do BNP (péptido natriurético do tipo B) constitui um biomarcador útil para definir a estratégia terapêutica nas situações de ductus arteriosus hemodinamicamente significativo. Determinados centros utilizam os seguintes critérios- “picos” pelas 24-48 horas de vida: se ~ 250 pg/mL à indicação de tratamento médico; se ~ 2.000 pg/mL à indicada laqueação cirúrgica.

Hipertensão arterial

Para fins práticos considera-se hipertensão (sistólica/diastólica), respectivamente: > 100/70 mmHg no RN de termo; e > 90/60 mmHg no RN pré-termo (0-7 dias). Tal situação pode constituir complicação do emprego de certos fármacos, de cateterismo umbilical ou de displasia broncopulmonar (DBP).

Hipotensão arterial

Mais frequente do que a hipertensão arterial, pode ser secundária a hipovolémia, disfunção cardíaca (por vezes associada a PDA), hipoxémia ou infecção sistémica, levando a vasodilatação. Em geral, considera-se como limite inferior de normalidade da pressão média durante o 1º dia pós-natal, o valor igual à idade gestacional em semanas. Como regra, pelo 3º dia, > 90% dos RN pré-termo com idade gestacional < 26 semanas têm uma pressão média > 30 mmHg.

Neurológicos

Os problemas neurológicos hemorragia intraperiventricular/HIPV e leucomalácia periventricular/LPV) são abordados adiante, em capítulos próprios.

Hematológicos

Os principais problemas hematológicos incluem a anemia e a hiperbilirrubinémia. (ver adiante)

Oftalmológicos

O principal problema oftalmológico associado à prematuridade – retinopatia – designadamente a RN com < 1.500 gramas e < 32 semanas, foi abordado na Parte XXVI, em capítulo próprio, “Doenças da retina”.  

Regulação térmica

Os RN pré-termo são especialmente susceptíveis à hipotermia e hipertermia. Este tópico foi analisado anteriormente, nesta Parte XXXI, no âmbito do capítulo sobre “Adaptação fetal à vida extrauterina”.

A propósito da regulação térmica, é importante definir o conceito de ambiente térmico neutro (ou de termoneutralidade): o ambiente com variação de temperatura tal que a temperatura corporal central/interior é mantida dentro da normalidade, com uma taxa metabólica mínima (medida pelo consumo de oxigénio). Esta zona de termoneutralidade pode variar com a idade gestacional, a idade pós-natal, o tamanho corporal e com a circunstância de o RN estar ou não vestido.

Cuidados ao RN pré-termo (RNPT) de muito baixo peso (MBP)

Bloco de partos

Na sequência do que foi descrito a propósito dos cuidados gerais a prestar ao RN, nesta alínea são focados aspectos particulares da assistência ao RN PT de MBP.

No pressuposto da vigilância pré-natal desejável, identificando risco de parto pré-termo, idealmente a mesma deverá realizar-se num hospital de apoio perinatal diferenciado (HAPD), local onde existem condições logísticas, técnicas e humanas (equipa multidisciplinar especializada e unidades de cuidados intensivos, quer neonatais, quer para a puérpera). Tal pressupõe transferência da grávida (reitera-se esta estratégia de grande importância) em tempo oportuno para a referida instituição (transporte in utero). Continua actual uma frase muito expressiva que traduz esta filosofia: “A melhor incubadora de transporte é o útero materno”.

Os progenitores deverão ser informados sobre a situação clínica materno-fetal e, também em condições ideais desejáveis, deverá ser-lhes propiciada uma visita prévia ao referido hospital de acolhimento.

Considerando a elevada probabilidade de mais difícil adaptação à vida extrauterina e risco elevado de asfixia, o parto implica a assistência por equipa de neonatologistas treinados em intensivismo, obedecendo ao lema da “execução de manobras cuidadosas e não traumatizantes em ambiente de termoneutralidade”.

De acordo com estudos recentes, no pré-termo com < 28 semanas, estando indicados todos os procedimentos no pós-parto imediato já descritos anteriormente com a finalidade de evitar as perdas térmicas, os peritos recomendam que em tal circunstância não se proceda à secagem da pele.

No que respeita à laqueação do cordão umbilical, prevendo a eventualidade de ulterior cateterismo de vasos, deverá providenciar-se um coto mais comprido do que o habitual.

De acordo com o capítulo atrás referido sobre reanimação na sala de partos, dado que na maioria das vezes os RN pré-termo no pós-parto imediato não necessitam de reanimação, mas de estabilização, os peritos recomendam que seja aplicada a norma quanto ao tempo de laqueação: não inferior à idade de 1 minuto; com efeito, diferindo o tempo da laqueação tem também outras vantagens como: garantir maiores reservas de ferro, pressão arterial mais estável, diminuição da necessidade de utilização de inotrópicos, assim como de transfusões de sangue. Chama-se, entretanto, a atenção para o facto de a clampagem do cordão umbilical, antes do primeiro movimento respiratório, poder originar bradicárdia e diminuição do débito cardíaco.

Estando a equipa da UCIN previamente avisada, o transporte do RN para a mesma, após estabilização clínica, deverá ser feito em incubadora de transporte adequada depois de o mesmo ser mostrado aos progenitores, devidamente informados sobre a situação.

Admissão na UCIN

Após admissão na UCIN procede-se, sob fonte de calor, à aplicação de eléctrodos para monitorização cardiorrespiratória e de temperatura cutânea, braçadeira de esfigmomanómetro electrónico para determinação não invasiva de pressão arterial, de terminais “em pinça” de oxímetro de pulso para avaliação não invasiva da oxigenação (saturação da Hb em O2/SpO2) e à instalação de acesso venoso periférico em diversas modalidades (cãnula, cateter percutâneo, etc.), quer para fluidoterapia, quer para colheita de sangue para análises em geral.

De referir, no entanto, que a tendência actual, com o apoio das novas tecnologias, é utilizar tanto quanto possível, métodos não invasivos. Para a avaliação da gasometria por método não invasivo pode utilizar-se o monitor por método transcutâneo através de eléctrodos sobre a pele para determinação da pressão transcutânea de O2 e CO2. Com o desenvolvimento do oxímetro de pulso, o método transcutâneo para PO2 e PCO2 tem sido progressivamente menos usado.

Em circunstâncias especiais está indicado o cateterismo dos vasos umbilicais: da veia, para fluidoterapia ou colheita de sangue para análises em geral, e/ou de uma das artérias para colheita de sangue e gasometria e/ou determinação contínua da pressão arterial por método invasivo. O cateterismo arterial umbilical não é considerado procedimento urgente mas, quando incicado, é aconselhável nas primeiras horas de vida).

Dos procedimentos iniciais faz ainda parte a colocação de saco colector de urina para cálculo da diurese (ou como alternativa – fralda cujo peso se conhece – que é periodicamente pesada para dedução do débito urinário).

Os RN com bom estado geral, sem dificuldade respiratória e com peso de nascimento > 2.000 gramas, poderão eventualmente ser mantidos em berço aquecido durante 6-8 horas com monitorização da frequência respiratória, cardíaca e oximetria de pulso (evitando SpO2 < 90%).

Nos casos de RN com peso de nascimento < 2.000 gramas, com sinais evidentes de doença (mau estado geral, choque, dificuldade respiratória, etc..) deverão ser colocados em incubadora com temperatura ambiente adaptada ao peso, servocontrolada ou não, ou em berços sofisticados de cuidados intensivos sob fonte de calor servocontrolada. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Temperatura recomendável do micro-ambiente da incubadora.

Peso (gramas)Temperatura
< 100035-36 ºC
1000-149934-35 ºC
1500-249933-34 ºC
2500-349932-33 ºC
≥ 350031-32 ºC


Para monitorização da temperatura cutânea do RN, deve ser aplicado sensor sobre a pele do RN. Dependendo do estado clínico (por ex. em situações de choque), poderá estar indicada a aplicação de dois eléctrodos para avaliação da temperatura diferencial: um, ao nível do hipocôndrio direito/área hepática, representativo da temperatura central; e outro, na planta do pé, afastado do primeiro, representativo da temperatura periférica.

Nota sobre temperatura cutânea servocontrolada: através de um equipamento sofisticado de software implicando conexão entre fonte de calor e sensor aplicado sobre a pele, a fonte de calor poderá variar automaticamente a intensidade da energia para garantir a temperatura cutânea desejada.

Nos berços sofisticados com sistema de aquecimento radiante superior (com a designação corrente de incubadoras “abertas”) ou nas incubadoras “convencionais”, possuindo sistema de temperatura servocontrolada: em função da temperatura que se deseja para a pele do RN (com sensor aplicado), e programada previamente, é gerada automaticamente a temperatura do microambiente que está indicada.

Estadia na UCIN

O processo clínico de todo e qualquer RN saudável (acompanhando a mãe ou não, pré-termo ou não), admitido em qualquer unidade neonatal, engloba sempre as folhas de registo da história clínica (anamnese, exame objectivo e diário clínico), folha de registo de ocorrências da equipa de enfermagem e o Boletim de Saúde Infantil que acompanhará a criança após a alta.

No caso do RN pré-termo admitido em UCIN, para além dos registos mencionados, existem outros mais específicos, destacando-se os seguintes: – Folha de registo de parâmetros de cuidados intensivos pela equipa de enfermagem;

  • Folha de prescrição médica;
  • Gráfico de curvas de crescimento intrauterino;
  • Gráfico de curvas de percentis para vigilância a longo prazo, com utilidade em RN com peso de nascimento < 1.000 gramas, para avaliação do peso, comprimento e perímetro cefálico, em função da idade pós-concepcional segundo Fenton (Figura 1);
  • Gráfico de evolução ponderal para RNMBP, AIG e LIG, segundo Ehrenkranz (Figura 2);
  • Folha de assistência ventilatória;
  • Folha de avaliação da idade gestacional (método de Ballard).

Particularidades na assistência ao ex-RN pré-termo na UCIN

De facto, apesar dos progressos quanto a diminuição relativa de sequelas motoras em crianças ex-RN pré-termo submetidos a terapia intensiva, regista-se uma elevada incidência doutro tipo de sequelas, nomeadamente de problemas de escolaridade, comportamentais e de atenção, relacionáveis com noxas ambientais durante o período neonatal.

Considerando determinados aspectos da fisiologia do RN pré-termo atrás mencionados, é importante reforçar a importância da modificação de certas rotinas, tentando que certos procedimentos e atitudes sejam minimamente invasivos; o objectivo último é promover um neurodesenvolvimento global harmónico. Eis alguns exemplos práticos:

  • A UCIN clássica é um ambiente muito iluminado, agradável como ambiente de trabalho para os profissionais, mas potencialmente lesivo para o desenvolvimento adequado do RN pré-termo. Por isso, é recomendável utilizar uma cobertura de pano sobre a incubadora para reduzir a intensidade luminosa e reduzir a intensidade da luz de toda a unidade no sentido de tentar criar a alternância do ciclo dia-noite a que o RN se irá habituando, susceptível de, por exemplo, aumentar o período de sono nocturno e, consequentemente, proporcionar ganho ponderal mais favorável;
  • A UCIN clássica é também um ambiente com níveis de ruído muito elevados: para além do ruído de fundo, há que ter em conta períodos em que o mesmo aumenta – visitas médicas, admissão de doentes, passagem de turno da equipa de enfermagem, etc.. Assim, há que reduzir o ruído que cada componente da equipa “produz” involuntariamente. Tal implica, contudo: esforço de colaboração por toda a equipa, necessidade de formação, sensibilização para o problema e condições logísticas especiais (designadamente amplo espaço das unidades, construídas com material que absorva o ruído).

A atitude sistemática de poupar o RN (e especialmente o RN pré-termo) a estímulos desnecessários e a estresse poderá contribuir para um neurodesenvolvimento mais harmónico (continua actual o aforismo “primum non nocere”). Tal atitude pode ser tipificada no programa integrado conhecido pela sigla NIDCAP (Newborn Individualized Developmental Care Assessment Program) desenvolvido por Als em 1984. Trata-se de medidas simples de cuidados individualizados com o objectivo essencial de reduzir o manuseamento intempestivo e estimular a participação dos pais nos cuidados.

FIGURA 1. Valores de referência quanto a evolução ponderal para as primeiras semanas pós-natais. (Segundo Ehrenkranz RA, 1999)

FIGURA 2. Valores de referência para curto prazo, após alta hospitalar. (Segundo Fenton TR, 2003)

São descritos (e alguns, reiterados) a seguir, de forma necessariamente resumida, alguns dos aspectos genéricos deste programa:

  • Colaboração dos pais nos cuidados personalizados (nomedamente de higiene e alimentação) em sintonia com as equipas médica e de enfermagem, as quais se deverão manter estáveis para garantia de melhor relacionamento;
  • Meio ambiente calmo e tranquilo (já referido atrás);
  • Contacto pele com pele- mãe/filho precoce e prolongado sempre que as circunstâncias o permitam, no hospital e após a alta, com aleitamento materno exclusivo (procedimento que faz parte do Método Canguru);
  • Posição adequada do RN durante o sono, alimentação, banho e procedimentos tendo em vista rendibilizar as respectivas competências;
  • Necessidade de providenciar determinados apoios em certas circunstâncias tais como mudança de posição, tentativa de despertar ou tentar adormecer, início ou fim de cuidados ou procedimentos (por ex. providenciar aumento da FiO2, contenção, sucção não nutricional, etc.);
  • Organização de procedimentos ao longo das 24 horas, tentando preservar os períodos de sono, evitando multiplicação de procedimentos invasivos (por ex. reduzir, gerir, racionalizar, sempre que possível, o número de colheitas de sangue ao longo do dia);
  • Proceder a intervenções mais invasivas com o apoio de duas pessoas.

Em suma, os estudos até hoje divulgados sobre o NIDCAP aplicados ao RNMBP apontam para resultados positivos no que respeita, nomeadamente, a menor duração da oxigenoterapia, menor incidência de doença pulmonar crónica, redução da estadia hospitalar, e melhores índices de neurodesenvolvimento.

  • Antes da alta, deve proceder-se aos rastreios da audição e da anemia da prematuridade, neste último caso, com a determinação da hemoglobina e hematócrito;
  • Imediatamente antes da alta, em crianças elegíveis e durante a estação da infecção por vírus sincicial respiratório/VSR, deve proceder-se à administração de anticorpo monoclonal (palivizumab) como medida profiláctica, continuando ulteriormente o esquema de administração em regime ambulatório;
  • Dum modo geral, considera-se que a criança poderá ter alta após resolução dos problemas clínicos, com peso ~ 1.800-2.000 gramas, com incrementos estáveis de peso de cerca de 30 gramas/dia;
  • Nas crianças com peso de nascimento < 1.500 gramas ou idade gestacional < 30 semanas deve proceder-se ao exame oftalmológico para rastreio da retinopatia da prematuridade.

Notas importantes sobre o ex-RN pré-termo após a alta hospitalar  

  • Deve seguir-se o calendário vacinal aplicado a crianças nascidas de termo, pressupondo estabilidade clínica. Na prática, aos 2 meses de idade cronológica (pós-natal), independentemente do peso de nascimento ou idade gestacional. A propósito, aconselha-se a consulta do capítulo sobre Imunização – Princípios básicos, na Parte XXIX.
  • Tendo em conta que existe risco elevado de síndroma de morte súbita do lactente (SMSL) nas crianças com antecedentes de prematuridade, importa que a equipa assistencial/médico assistente esclareçam, sem alarme, mas com realismo, os pais e família, chamando a atenção, designadamente para os seguintes aspectos simples da maior relevância numa perspectiva preventiva: promover o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses, evitar a posição prona durante o sono e evitar o tabagismo.
  • Apesar de os pais da criança serem portadores de um relatório clínico sobre o período de internamento, e sendo a referida criança seguida no âmbito dos cuidados primários (por pediatra e/ou médico de família), afigura-se de grande utilidade a troca de ideias, directa e personalizada, entre o pediatra neonatologista hospitalar e o futuro médico assistente.

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ALTERAÇÕES DO CRESCIMENTO FETAL

Introdução

O crescimento fetal pode estar desviado, por excesso ou por defeito (restrição). Em qualquer das circunstâncias tal situação pode constituir um epifenómeno de patologia de etiopatogénese diversa com implicações diagnósticas e terapêuticas específicas, ou apenas representar uma variante da normalidade.

1. RESTRIÇÃO DO CRESCIMENTO INTRAUTERINO (RCIU)

Definição

A restrição do crescimento intrauterino (RCIU) – termo considerado actualmente mais adequado por muitos autores do que o anterior, de “atraso de crescimento intrauterino” – é definida no sentido lato como a perda de oportunidade de o feto atingir o respectivo potencial de crescimento. No sentido estrito, o critério de definição mais utilizado baseia-se exclusivamente no peso ao nascer: recém-nascido (RN) com peso inferior ao que corresponde ao percentil 10 para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a idade de gestação (LIG) em valores representativos da população.

Outros autores preferem utilizar como valores de corte, o percentil 5, o percentil 3, ou dois desvios-padrão abaixo da média.

Embora a condição LIG possa constituir um razoável indicador de RCIU, em rigor, os conceitos de LIG e RCIU, não são sinónimos, dado que cada situação poderá ocorrer na ausência de outra. Há recém-nascidos (RN) LIG constitucionalmente pequenos, considerados saudáveis, assim como casos de desnutrição intrauterina com inflexão da trajectória do crescimento fetal em que o peso no momento do nascimento se situa entre os percentis 3 e 97 (RN adequados para a idade de gestação, designados pela abreviatura AIG).

Nesta última circunstância, é essencial recorrer a outros indicadores de desnutrição fetal, referidos mais adiante.

Aspectos epidemiológicos e diagnóstico pré-natal

A incidência de RCIU varia, de acordo com diversos estudos epidemiológicos, entre 3% e 7% dos RN; trata-se dum problema ao qual se associa risco significativo de mortalidade e morbilidade perinatais, especialmente na ausência de diagnóstico pré-natal. O método mais fidedigno para o diagnóstico de RCIU assenta na avaliação de, pelo menos, duas avaliações da biometria fetal por ultrassonografia, sendo o perímetro abdominal o parâmetro mais sensível. A hemodinâmica avaliada por ecografia-Doppler, designadamente através de medições do fluxo nas artérias umbilical, cerebral média e uterina, reveste-se de grande utilidade no diagnóstico de insuficiência útero-placentar, o principal factor etiológico de RCIU.

Etiopatogénese e classificação

Para compreender as diferentes classificações de RCIU, é importante recordar as três fases de crescimento fetal. Na primeira, predomina a hiperplasia celular, caracterizada por rápido aumento do número de células até às 16 semanas de vida intrauterina.

Na segunda, entre as 16 e as 32 semanas de gestação, há um abrandamento da hiperplasia e um progressivo aumento to tamanho das células (hipertrofia).

Na terceira, após as 32 semanas, predomina a hipertrofia, com rápido aumento da dimensão celular.

Os dois tipos mais usados de classificação de RCIU são o etiológico e o clínico.

Pela classificação etiológica, a RCIU pode ser de origem fetal (explicável por patologia intrínseca do feto, útero-placentar), ou materna (explicável por factores extrínsecos).

A classificação clínica assenta na proporcionalidade corporal. Ou seja, a RCIU é classificada em função da “simetria” ou “assimetria” dos parâmetros do numerador e denominador de fracção em que o peso ocupa o numerador e o comprimento o denominador, por exemplo: índice peso-comprimento, índice de massa corporal e índice ponderal.

O índice ponderal de Rohrer tem sido o indicador antropométrico mais utilizado para avaliar a proporcionalidade ao nascer: [Peso (em g)/ Comprimento3 (em cm)]x100]. Este índice tem vindo a cair em desuso, porventura por incluir o comprimento elevado ao cubo; ao ser uma medição difícil de se obter com rigor, qualquer erro se amplia pelo facto de o valor estar elevado à potência.

Na RCIU simétrica, harmoniosa, ou proporcionada, tanto o peso como o comprimento estão diminuídos. Quando o peso é predominantemente afectado, a RCIU é designada assimétrica, desarmoniosa ou desproporcionada.

Esta terminologia, muito utilizada, poderá originar erroneamente a ideia de que a RCIU simétrica, harmoniosa ou proporcionada representará um processo mais “benigno”. De facto, assim não é.

Tipicamente, a RCIU simétrica está associada a patologia intrínseca do feto, como infecções intrauterinas (rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose, sífilis, paludismo, etc.), anomalias cromossómicas, síndromas dismórficas e noxas maternas actuando no feto – tabaco, álcool, cocaína, heroína e certos fármacos como o propranolol e os corticosteróides. Neste tipo de RCIU, a alteração do crescimento manifesta-se precocemente na gravidez, podendo atingir a fase de hiperplasia celular e organogénese e levar a uma redução do número total de células.

A RCIU assimétrica, mais frequente, inicia-se tardiamente na gravidez e está associada a causas maternas e útero-placentares, pré-eclâmpsia, hipertensão crónica e anomalias uterinas. Nestas circunstâncias, é frequente encontrar enfartes ou alterações microvasculares da placenta.

A desnutrição fetal aguda ocorrendo no último trimestre, em geral apenas atinge a fase de hipertrofia celular e associa-se à redução das reservas adiposa e de glicogénio, com consequente diminuição dos tecidos subcutâneo, muscular e hepático (redução do perímetro abdominal). Além do défice de suprimento de nutrientes, na insuficiência útero-placentar frequentemente coexiste menor fornecimento de oxigénio e consequente hipoxia pré- e perinatal. (Quadro 1)

Há autores, porém, que questionam a relação entre a conformação somática do RN e os factores etiopatogénicos referidos.

No Quadro 2, complemento do Quadro 1, são discriminados os factores que mais frequentemente estão associados a RCIU.

Demonstrou-se que a angiogénese, processo fundamental para o crescimento e desenvolvimento, designadamente da placenta, está alterada em múltiplas situações acompanhadas de RCIU.

Diversos estudos chamaram a atenção para o papel do factor de crescimento endotelial vascular (VEGF ou vascular endothelial growth factor) como mediador da angiogénese, o qual exerce o seu efeito através da cooperação de 2 receptores aos quais se liga: VEGFR-1 e VEGFR-2, sendo que o VEGFR-1 constitui um potente inibidor de VEGF e dum factor de crescimento placentar.

Outros estudos concluíram que a concentração sérica de VEGFR-1 solúvel está muito elevada nos RN com RCIU no 1º dia de vida, o que pode reflectir hipóxia intrauterina e disfunção placentar, traduzindo provavelmente papel importante como factor de risco de RCIU.

Recentemente tem-se demonstrado a acção deletéria de poluentes a que a grávida está exposta, tais como monóxido de carbono e certos compostos hidrocarbonados aromáticos policíclicos; os efeitos são diversos: défice de oxigenação fetal a par de estresse oxidativo, lesão do ADN, etc..

Manifestações clínicas, complicações e avaliação

À RCIU associa-se maior risco de mortalidade e morbilidade neonatais, designadamente na de tipo simétrico.

Apesar de os RN com RCIU terem maior capacidade termogénica, estão mais propensos à hipotermia pela menor espessura da gordura subcutânea.

Relativamente à conformação corporal, a RCIU de tipo assimétrico associa-se a maior risco de hipoglicémia e asfixia, enquanto a de tipo simétrico, a maior taxa de prematuridade e complicações perinatais.

A hipoglicémia constitui a principal complicação metabólica do RN com RCIU, por diminuição das reservas fetais de glicogénio e compromisso da neoglicogénese e da glicogenólise hepáticas. A hipocalcémia ocorre essencialmente em RN com RCIU e sinais de hipotrofia e/ou que sofreram asfixia perinatal.

A asfixia perinatal está intimamente relacionada com a hipoxia crónica por insuficiência útero-placentar a qual, por sua vez, pode associar-se a síndroma de aspiração de mecónio, hipertensão pulmonar e policitémia por estimulação da eritropoietina fetal.

QUADRO 1 – Tipos de restrição do crescimento intrauterino (RCIU).

 AssimétricaSimétrica
Biometria – Parâmetro afetadoPesoPeso, comprimento e perímetro cefálico
CausaExtrínsecaIntrínseca ou extrínseca
Incidência80%20%
Início na gravidezTardioPrecoce
Fase da gravidezHipertrofia celularHiperplasia celular
PatogéneseInsuficiência útero-placentar: défice de suprimento de nutrientesDiminuição do número de células
Tecidos e órgãosDiminuição do tecido adiposo, muscular e hepáticoDiminuição do encéfalo
PlacentaAlterações histológicasHistologia normal (exceto na embriopatia infeciosa)

QUADRO 2 – Factores frequentemente associados a RCIU.

Fetais
Anomalias cromossómicas, fetopatias infeciosas, síndromas malformativas, irradiação, gestação múltipla, hipoplasia pancreática, deficiência de insulina, mecanismos anti-angiogénicos, deficiência de ILGF do tipo II, VEGFR-1

Placentares
Peso e/ou celularidade deficientes, área deficiente, placentite vilosa (bacteriana, vírica, parasitária), enfartes, tumores (mola hidatiforme, corioangioma), separação placentar, síndroma de transfusão intergemelar

Maternos
Toxémia e/ou hipertensão arterial, hipoxémia (doença pulmonar, cardiopatia cianótica, altitude elevada), subnutrição (carência em macro e micronutrientes), doença crónica, drepanocitose, drogas (narcóticos, álcool, tabaquismo, cocaína, antimetabólitos).

Nos RN com RCIU pode verificar-se diminuição da absorção entérica de macromoléculas, nomeadamente de lípidos e de proteínas.

Determinados sinais clínicos indicam hipoxia pré-natal. A presença de líquido amniótico tinto de mecónio é um sinal de sofrimento fetal agudo, enquanto o líquido com aspecto de “puré de ervilha” sugere um processo mais prolongado de hipoxia intrauterina. Neste caso, é habitual o RN evidenciar sinais de dismaturidade, apresentando um aspecto “envelhecido”, pele enrugada e descamativa e olhar alerta, não condizente com o peso deficitário e o aspecto emagrecido. Tratando-se de um RN com RCIU, de termo, o mesmo evidenciará a postura típica com membros superiores e inferiores em flexão, semelhante à postura do RN de termo sem RCIU, e diversa da do RN pré-termo cujos segmentos dos membros estão em extensão. (Figuras 1 e 2)

Na RCIU simétrica devem ser procurados sinais de dismorfia:

  • Ou enquadrados em síndromas polimalformativas;
  • Ou que sugiram infecção intrauterina do grupo TORCHS. Neste caso é necessário pesquisar microcefalia, hepatosplenomegália, exantema e outros sinais biológicos.

Alguns parâmetros somatométricos podem auxiliar no diagnóstico de desnutrição fetal e prever o risco metabólico precoce. O mais fácil de avaliar é o peso, mas como foi referido, muitos RN LIG não têm patologia, enquanto outros têm peso adequado à idade de gestação e sofreram desnutrição intrauterina. Uma desproporcionalidade corporal em que o peso é afectado, mas não o comprimento, pode ser um bom indicador desta condição; a pouca espessura das pregas cutâneas e outros índices poderão ser tão bons ou melhores indicadores. Entre estes, incluem-se os valores baixos da razão perímetro braquial/perímetro cefálico, da razão peso/comprimento, e valores baixos das áreas da secção transversal do braço (áreas adiposa e braquial) calculadas a partir da prega cutânea tricipital e do perímetro braquial.

No entanto, vários autores questionam a confiabilidade da medição das pregas cutâneas no RN, a validade das áreas da secção transversal do braço e o valor da conformação corporal na previsão do risco metabólico precoce. (Figura 1)

Em comparação com os RN de equivalente idade de gestação e peso adequado, os pré-termo com RCIU têm maior risco de complicações inerentes à prematuridade. (Figura 2)

Embora haja a ideia de que o estresse a que é submetido o RN com RCIU induz a maturidade pulmonar, foi demonstrado que o RN pré-termo com esta condição tem maior probabilidade de ter doença da membrana hialina.

A maior prevalência de asfixia perinatal e consequente redistribuição do fluxo sanguíneo, hiperviscosidade por policitémia e a própria prematuridade, predispõem à enterocolite necrosante.

Outras complicações da RCIU relacionadas com a prematuridade são a sépsis, a hemorragia intraperiventricular e as sequelas neurológicas.

FIGURA 1. RN de termo com RCIU. Aspecto geral desnutrido; postura em flexão dos membros superiores e inferiores compatível com a idade gestacional. (URN-HDE)

FIGURA 2. RN pré-termo com peso de nascimento semelhante ao da Figura 1: postura dos membros inferiores em extensão, e hipotonia marcada, compatíveis com a idade gestacional. (URN-HDE)

Importância do problema e implicações futuras

Barker, especulando sobre os mecanismos que determinam a repercussão a longo prazo da desnutrição fetal, deu origem a uma teoria conhecida por “hipótese de Barker” ou “hipótese da poupança” (thrifty hypothesis). Segundo esta teoria, o feto responde à desnutrição com uma série de mecanismos de adaptação, que incluem o armazenamento de gordura, redução do metabolismo não essencial, restrição do crescimento e redistribuição do fluxo sanguíneo e nutrientes para órgãos nobres (designadamente, cérebro, coração e suprarrenais) em detrimento doutros nos quais se verificam alterações de que resultam lesões permanentes. A privação nutricional pode influenciar de modo programado o feto (ou originar, assim, uma “programação” ou “marca” no mesmo, levando mais tarde a lesões estruturais e metabólicas permanentes). Estas alterações não se tornam tão evidentes se o indivíduo, após o nascimento, continuar a crescer em ambiente nutricionalmente deficitário, representando tal ambiente a continuidade de condições que já se verificavam antes (in utero) e uma “vantagem” em termos metabólicos”, facilitando os mecanismos de adaptação do feto à vida extrauterina.

No entanto, ao ser exposto a meio nutricionalmente rico, a “programação” pré-natal torna-se inadequada e no indivíduo em causa poderá desenvolver-se tardiamente a chamada síndroma metabólica, dominada por alterações da homeostasia da glicose-insulina. Nesta síndroma, incluem-se a diabetes de tipo 2 (DT2), a doença coronária, a hipertensão arterial, o perfil lipídico aterogénico e a obesidade de predomínio troncular.

Estudos em modelos animais permitem explicar alguns mecanismos patogénicos desta síndroma. A exposição a um regime nutricional intrauterino pobre em proteína, origina no pâncreas fetal uma diminuição da proliferação das células-β dos ilhéus pancreáticos e redução da dimensão dos mesmos por défice de vascularização. A redistribuição de nutrientes também pode levar à redução permanente dos transportadores de glicose no músculo, iniciando o círculo vicioso: hiperglicémia, aumento do estímulo para produção da insulina e exaustão e apoptose das células-β pancreáticas e diminuição da expressão da insulin-like growth factor II.

Relativamente à hipertensão e doença cardiovascular, foram observadas: alterações da angiogénese; exposição do feto a níveis elevados de glucocorticóides, aumento da expressão do respectivo receptor, e estímulo para a activação do sistema renina-angiotensina; mecanismos epigenéticos, envolvendo a metilação do ADN; e doença renal por redução fetal do número de nefrónios.

Entre os mecanismos favorecendo a futura obesidade, foram descritas no feto: selecção de clones celulares associados à produção endógena de lípidos; supressão da lipólise induzida pela insulina em adipócitos malnutridos.

Na espécie humana, foi descrita alteração congénita do padrão do apetite e saciedade resultante das adaptações metabólicas referidas. Um dos factores que participam nesta programação pode relacionar-se com a grelina, péptido orexigénico cujos níveis estão aumentados em indivíduos nascidos LIG.

Existem outros efeitos não relacionados com a futura síndroma metabólica, mas também resultantes da redistribuição do fluxo sanguíneo e de nutrientes, justificando a hipocelularidade e hipoplasia de outros órgãos e tecidos, como: eventual redução da massa muscular (sarcopénia) e osteopénia; diminuição do desenvolvimento e função do timo e tecido linfóide; e maior susceptibilidade a infecções respiratórias e diarreias durante a infância, por afecção de componentes do sistema imunitário, particularmente sensíveis a défice nutricional precoce.

Nos primeiros anos de vida, é notório o hipocrescimento estaturo-ponderal na RCIU de tipo simétrico. Contudo, a médio e longo prazo, o prognóstico parece melhor. No entanto, cerca de 10% a 15% de indivíduos nascidos com RCIU não recuperam o crescimento aos 2 anos de idade, estão em maior risco de terem baixa estatura na idade adulta e poderão beneficiar de tratamento com hormona de crescimento.

Curiosamente, mulheres que nasceram com RCIU podem ter maior predisposição para gerar filhos com a mesma condição, estabelecendo-se assim um efeito transgeracional. Isto verificou-se não só em mães que sofreram desnutrição aguda, da coorte de Holandeses sujeitos a fome extrema durante a segunda guerra mundial (Dutch Famine Cohort), mas também em mães suecas de meio favorecido. Em parte, o efeito transgeracional pode dever-se às pequenas dimensões do útero e ovários, observado em adolescentes que sofreram RCIU.

2. HIPERCRESCIMENTO INTRAUTERINO

Definição

Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessivo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade de gestação e género numa curva representativa da população; tal RN é designado grande (ou pesado) para a idade de gestação (GIG).

Os RN GIG de termo são geralmente macrossómicos (ou macrossomáticos), termos que significam peso de nascimento superior a 4.000 gramas.

Aspectos epidemiológicos e diagnóstico pré-natal

Estima-se que 9% a 13% dos RN sejam GIG, condição associada a certo número de complicações no período perinatal.

Frequentemente, a condição de feto macrossómico (macrossomia) não é detectada durante a gravidez e o trabalho de parto, pelo facto de a sensibilidade e especificidade das estimativas ultrassonográficas ficarem aquém do desejado. Um dos parâmetros com maior sensibilidade diagnóstica é o perímetro abdominal.

Existem classificações, como as de White e de Pedersen, com valor prognóstico para o feto de mãe diabética.

A macrossomia é típica do RNMD, entidade clínica descrita noutro capítulo.

Etiopatogénese

Um RN GIG pode constituir manifestação de determinada patologia (como RN de mãe diabética – RNMD) e determinadas síndromas, enquadrar-se no contexto de gigantismo de início pré-natal, ou corresponder apenas uma situação de RN constitucionalmente grande/pesado, sem patologia subjacente.

Mais raramente, a condição de GIG pode associar-se à eritroblastose fetal grave, hidropisia fetal e transposição das grandes artérias.

A classificação do RN GIG, baseada no índice ponderal individualizado, veio mudar a perspectiva etiopatogénica: não se consegue determinar a causa da macrossomia em cerca de 1/3 dos RN GIG, sendo que os RNMD não representam mais do que 10% daqueles, ao contrário do que se julgava.

Manifestações clínicas e complicações

Pelas dimensões do feto, o parto por via vaginal comporta maior risco de distócia de ombros, de fractura da clavícula e dos membros, e de asfixia perinatal.

Ao RNMD associam-se intolerância alimentar, hipoglicémia, hipocalcémia, policitémia, hiperbilirrubinémia não conjugada e atraso na produção de surfactante com consequente quadro de SDR (doença da membrana hialina). Uma vez que a incidência de anomalias congénitas é significativamente superior nos RNMD, torna-se necessário proceder ao respectivo rastreio em tal circunstância (cita-se como exemplo a cardiomiopatia hipertrófica. (Figura 3)

O exame objectivo de um RN macrossómico obriga à detecção de determinadas lesões traumáticas tais como fractura da clavícula e dos membros, traumatismo das partes moles, lesão do plexo braquial e céfalo-hematoma, designadamente se o parto se tiver realizado por via vaginal.

FIGURA 3. RN macrossomático (RNMD) com insuficiência respiratória submetido a terapia em UCIN. (URN-HDE)

No RN GIG e/ou macrossómico devem ser pesquisados determinados sinais classicamente associados à entidade “RNMD”, se houver antecedentes maternos sugestivos.

O RNMD tem um fenótipo característico, com acumulação de gordura na face e tronco. Pode ter aspecto pletórico, tremor, taquipneia e icterícia. A antropometria poderá ajudar a definir melhor o referido fenótipo. Há autores sugerindo que a acumulação da gordura troncular pode ser mais bem avaliada pelo índice de gordura centrípeta (ainda não validado), baseada na medida das pregas cutâneas subescapular (PSE), suprailíaca (PSI), tricipital (PT) e bicipital (PB): (PSE + PSI)/(PT + PB + PSE + PSI).

Outros, sugerem medidas antropomórficas que poderão sugerir se a distocia de ombros no RNMD foi ou não motivada por ombros e perímetros dos membros desproporcionadamente grandes.

Retomando a noção de proporcionalidade corporal atrás explicitada, na prática este critério permitirá a destrinça entre GIG e verdadeiro macrossómico.

A macrossomia pode também enquadrar-se num gigantismo de início pré-natal, com aumento excessivo do comprimento ao nascer e outras características sindromáticas evidentes desde o período neonatal: a síndroma de Sotos, associando dificuldades em se alimentar, hipotonia, macrocefalia com dolicocefalia e abaulamento do frontal, palato ogival, extremidades acromegalóides e idade óssea avançada; a síndroma de Beckwith-Wiedemann, associando hipoglicémia, letargia, macroglossia, hiperplasia de órgãos internos, pregas típicas nos pavilhões auriculares, onfalocele e outros defeitos da parede abdominal, e criptorquidia; a síndroma de Weaver, associando anomalias craniofaciais típicas, choro rouco e agudo, hipertonia e camptodactilia; a síndroma de Marshall, associando anteversão das narinas, achatamento da base do nariz, espaçamento dos olhos aparentando macroftalmia, espessamento da parte superior da calote craniana, calcificações intracranianas, catarata e anomalias do palato; e a síndroma de Perlman, associando displasia renal, tumor de Wilms, hiperplasia do pâncreas endócrino e outras anomalias congénitas.

Noções práticas sobre a avaliação do estado de nutrição em crianças nascidas pré-termo

A avaliação do estado de nutrição em crianças nascidas pré-termo baseia-se fundamentalmente na antropometria e na medição de marcadores bioquímicos usados frequentemente na clínica. Em determinados centros de investigação, e segundo a experiência do autor (LPS) podem ser utilizados métodos biofísicos, mais sofisticados, para caracterização da composição corporal e requerendo ainda validação, tais como os baseados na impedância bioeléctrica (BIO), na densitometria (DXA), ultrassonografia (US) e ressonância magnética (RM) (ver adiante).

Antropometria

As medidas antropométricas clássicas [utilizando instrumentos rudimentares como fita métrica, craveira e balança, e devendo ser interpretadas utilizando curvas e valores de referência adequados], têm especial utilidade com três objectivos essenciais:  diagnóstico de desnutrição fetal ao nascer, vigilância do crescimento e do estado de nutrição após nascimento e identificação precoce de desnutrição ou de sobrenutrição.

  • Peso, embora seja o parâmetro mais frequentemente utilizado, não fornece informação sobre os compartimentos corporais.
  • Comprimento, reflectindo o crescimento esquelético, é um indicador da massa magra; o rigor na sua medição (ver adiante) é essencial.
  • Perímetro cefálico (PC) indica o crescimento do cérebro; há que atender à possibilidade de ser afectado por factores relacionados com a morbilidade associada à  prematuridade, e não com a nutrição.
  • Perímetro braquial (PB) é fácil de medir; a sua avaliação longitudinal indica razoavelmente as variações da adiposidade corporal.
  • Pregas cutâneas estimando satisfatoriamente a gordura somática, não são, no entanto, representativas da gordura intrabdominal.
  • Ratio peso/comprimento [quer utilizando o índice de massa corporal, quer o índice ponderal] tem sido usada para avaliar a proporcionalidade corporal ao nascer. Estes e outros índices antropométricos, como a ratio perímetro braquial/perímetro cefálico (PB/PC) e as áreas da secção transversal do braço (por ultrassonografia ou por ressonância magnética), podem fornecer boa estimativa da composição corporal, embora necessitem de ser validados. (Consultar www.growthcalculator.org)

Marcadores bioquímicos

Os marcadores bioquímicos, devendo ser utilizados como complemento da antropometria, permitem avaliar o status sérico ou sanguíneo electrolítico e metabólico (essencialmente cloro, sódio potássio e glucose) assim como a nutrição em ferro, proteica (azoto ureico, pré-albumina sérica, proteína ligada ao retinol e transferrrina sérica) e óssea (calcémia, fosforémia, combinação fosfato sérico e fosfatase alcalina, fosfatase alcalina, assim como certos marcadores urinários).

Um valor baixo de azoto ureico pode indicar suprimento insuficiente de proteínas. Pela semivida curta, a pré-albumina e a proteína de ligação ao retinol são bons marcadores da nutrição proteica atual, mas podem ser afetados por fatores não nutricionais. A combinação da hipofosforémia com o nível sérico elevado de fosfatase alcalina é o melhor indicador bioquímico precoce de doença óssea metabólica.

Eis alguns dos resultados mais representativos:

  • Azoto ureico com valor baixo sugere suprimento proteico insuficiente. De salientar que valores moderadamente elevados são difíceis de interpretar, podendo indicar suprimento adequado de aminoácidos, baixo suprimento energético em relação ao proteico, ou intolerância aos aminoácidos.
  • Pré-albumina e proteína de ligação ao retinol, pela semivida curta, constituem bons marcadores de nutrição proteica actual: valores baixos <> suprimento proteico insuficiente. De salientar, contudo, que os valores poderão ser afectados, quer no contexto de inflamação/infecção, quer no contexto de carência em ferro, zinco ou vitamina A.
  • Transferrina sérica: tal como foi referido no âmbito do capítulo sobre anemia ferropénica, valor elevado <> carência em ferro, independentemente do estado de nutrição.
  • Cálcio, fósforo e fosfatase alcalina: os respectivos valores séricos são em geral utilizados para avaliação da mineralização óssea. Salienta-se que o valor baixo da fosforemia corresponde a elevada especificidade para o diagnóstico de doença metabólica óssea (DMO). Quanto à fosfatase alcalina, níveis > 900 U/L associam-se a especificidade de 71% e a sensibilidade de 88% para DMO, o que é considerado limitação para o referido diagnóstico; no entanto, valores de fosforémia  < 5,6 mg/dL (< 1,8 mmol/L) associados a fosfatase alcalina > 900 U/L, evidenciam sensibilidade de 100% e especificidade de 70%, o que confere a tal associação a característica de melhor marcador bioquímico precoce de DMO.
  • Marcadores urinários de cálcio e fósforo: classicamente, poderão ser utilizados os parâmetros ratio cálcio/creatinina, fosfatúria e reabsorção tubular de fosfato; na prática, importa salientar que os referidos valores são influenciados pelo tipo de alimentação, quer da mãe, quer do filho.

Medições e técnicas

  • Perímetro cefálico – Utilização de fita métrica inextensível de largura < 1 cm, bem aplicada em torno da cabeça, num plano – fronte, por cima das arcadas orbitárias – proeminência occipital – em posição que permita a leitura do valor máximo em três tentativas. Consultar curvas de crescimento.
  • Perímetro braquial (lado esquerdo) – Utilização de fita métrica inextensível de largura < 1 cm, a meia distância entre o acrómio e o olecrânio; o membro superior deve ficar pendente com flexão do antebraço sobre o braço garantindo ângulo de 90°. (Consultar tabelas de Frisancho e bibliografia).
  • Prega tricipital – Utilização de calibrador de espessura (por ex. calibrador de Harpenden) pregueando ou “pinçando” a pele previamente com os dedos, na região tricipital, a meia distância entre o acrómio e o olecrânio; a pressão exercida pelas pinças do calibrador deve ser constante.
  • Peso – Pressupõe-se que a balança deve estar correctamente calibrada.
  • Comprimento/estatura – Quer utilizando craveiras para bebés, quer estadiómetros para crianças maiores em quem se consiga a posição bípede estável, haverá necessidade de o observador ser ajudado por outra pessoa para evitar oscilação da bacia, garantindo membros inferiores em extensão completa, pés formando ângulo de 90° com as pernas sem arquear o dorso, cabeça no plano do tronco, e bordo inferior das órbitas no mesmo plano dos meatos auditivos.

Prognóstico e implicações futuras

Às condições GIG e macrossomia natal, independentemente de resultarem de diabetes materna, associam-se futuro risco de obesidade, de doença metabólica e de doença cardiovascular.

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REANIMAÇÃO DO RECÉM-NASCIDO NO BLOCO DE PARTOS

Importância do problema

Na maioria dos casos, o feto/recém – nascido (RN) tem uma boa adaptação à vida extra-uterina, sem necessidade de qualquer intervenção; no entanto, circunstâncias especiais (tais como gravidez ou partos de risco, designadamente em relação com prematuridade, patologia perinatal diversa, ausência ou deficiência de vigilância pré-natal e perinatal) estão associadas a adaptação difícil implicando a necessidade urgente ou emergente de medidas terapêuticas intraparto ou pós-parto imediato por equipa treinada.

O objectivo de tais medidas é o restabelecimento das funções vitais, ou reanimação; tais medidas, não sendo efectivadas, ou sendo mal conduzidas, poderão conduzir a morte ou sequelas, designadamente do SNC –anomalias adquiridas do neurodesenvolvimento e do comportamento.

De acordo com dados da OMS, cerca de 6-10% dos RN necessitam de manobras de reanimação de grau variável no pós-parto imediato (em geral assistência ventilatória ligeira), sendo que em menos de 1% há necessidade de manobras consideradas avançadas. Por outro lado, sabendo-se que ocorrem em todo o mundo cerca de cinco milhões de mortes neonatais por ano, cabe salientar que cerca de 1/5 das mesmas é explicado por adaptação complicada à vida extrauterina.

Daqui se infere que a reanimação no bloco de partos (reanimação habitualmente designada por primária) pode e deve ser prevista e preparada. Trata-se duma estratégia de antecipação que faz parte dos cuidados perinatais. Tal implica um esquema organizativo, a existência de equipa treinada e de condições técnicas logísticas (espaço físico e equipamento adequado).

  • Cerca de 5-10% dos RN requerem estimulação simples no pós-parto imediato como “ajuda” para a respiração: secagem e massagem suave nas plantas dos pés.
  • Cerca de 3-6% dos RN necessitam de reanimação básica com balão tipo Ambou e máscara.
  • Menos de 1% dos RN necessitam de reanimação avançada obrigando e entubação traqueal para ventilação, massagem cardíaca e aplicação de fármacos.
  • Mundialmente, cerca de 1 milhão de RN morre de asfixia perinatal.
  • Daqui se infere que o desenvolvimento da competência em reanimação neonatal tem enorme impacte na saúde infantil.

História natural da asfixia

Durante o trabalho de parto ocorre episódio de hipoxémia transitória/fisiológica provocada pela contracção uterina, a qual é bem tolerada pelo feto dito saudável; salienta-se, contudo, que episódios repetidos de hipoxémia poderão produzir efeito cumulativo semelhante ao da hipoxémia progressiva.

Se se tratar de hipoxémia transitória/fisiológica, após a paragem inicial da respiração (apneia primária) verifica-se o início de um período de movimentos respiratórios lentos de amplitude variável mas pouco eficazes (gasping), após o qual surgirá um período de apneia secundária.

No período de apneia primária poderá haver retorno à respiração espontânea normal após estímulos tácteis mínimos (por ex. estimulação/massagem suave das plantas dos pés).

Pelo contrário, em situações de hipoxémia e hipercápnia acentuadas (asfixia), com consequente acidose respiratória, atingindo-se a fase de apneia secundária, verifica-se:

  1. depressão do centro respiratório;
  2. vasoconstrição periférica e diminuição da oxigenação tecidual periférica como mecanismo de compensação para garantir oxigenação de territórios “mais nobres” – SNC e miocárdio (é o chamado diving reflex ou reflexo do mergulhador).

Se este mecanismo de compensação claudicar, entra em acção a glicólise anaeróbia à custa das reservas de glicogénio (com risco de esgotamento), o que conduz a:

  1. agravamento da oxigenação tecidual com consequente diminuição da pressão parcial de O2 (pO2) e acidose;
  2. diminuição da contractilidade miocárdica e contribuindo para agravamento da diminuição do fluxo sanguíneo para o próprio miocárdio, SNC e outros órgãos. Estabelece-se, pois, um círculo vicioso que poderá conduzir à morte.

Como se pode calcular, para além da estimulação táctil anteriormente referida (eficaz na fase de apneia primária), haverá seguramente necessidade doutras medidas na fase de apneia secundária para reversão do estado de asfixia.

Nesta perspectiva, a reversão pronta da asfixia (focada essencialmente numa ventilação artificial efectiva) poderá prevenir ou minorar situações de falência multiorgânica, a morte ou a incapacidade permanente.

Equipa perinatal   

Idealmente, o parto deverá ocorrer numa maternidade acoplada (colada) a hospital geral ou a hospital pediátrico; tratando-se deste último, importa que, por sua vez, esteja acoplado a hospital geral. Independentemente da instituição em causa e do modelo assistencial, é fundamental que a equipa assistindo à grávida e ao recém-nascido, integrando uma diversidade de profissionais de saúde (obstetras, pediatras, médicos doutras especialidades, enfermeiros, técnicos, auxiliares, etc.), seja competente e esteja treinada. e possa contar com.

No âmbito do funcionamento da mesma, importa realçar os seguintes pontos:

  1. Existência de condições logísticas e técnicas em função do nível de cuidados a prestar pela instituição onde se realiza o parto.
  2. Presença dum responsável (chefe de equipa).
  3. Previsão da reanimação, conhecendo os factores de risco e evitando gestos precipitados e perdas de tempo.
  4. Cooperação interprofissional, com especial destaque para a ligação: especialistas de medicina materno – fetal/obstetrícia/pediatria neonatal/enfermagem, equipa de transporte da grávida e ou RN; ou seja, a equipa deverá funcionar como uma “orquestra afinada”.

Da equipa perinatal, no mínimo, deve fazer parte, em permanência, um profissional que domine os aspectos básicos da reanimação neonatal: um enfermeiro treinado poderá desempenhar papel crucial.

Igualmente (e porque cada minuto conta), deverá haver a possibilidade de recurso rápido e eficaz a, pelo menos, um segundo elemento, (idealmente neonatologista, ou pediatra com experiência em neonatologia, ou anestesista- reanimador) com competência em reanimação neonatal. Efectivamente, poderá tratar-se de situações complicadas e ou de partos gemelares, com necessidade de procedimentos em simultâneo.

Notas importantes:

    • A eficácia da execução das manobras de reanimação deverá ser assegurada regularmente através da realização de um programa de formação teórico-prática.
    • A boa comunicação entre os profissionais da equipa de urgência garante os cuidados de antecipação assim como a eficácia, eficiência e efectividade das manobras de reanimação.
    • Realça-se igualmente a importância do vínculo a estabelecer com os progenitores do RN e família esclarecendo-os, de forma humanizada, sobre o quadro clínico e procedimentos a realizar ou realizados.

Condições técnicas

O Quadro 1 mostra o material indispensável (colocado em local de fácil acesso e com conhecimento de todos os elementos da equipa) para se proceder a manobras de reanimação no RN. Tal material deverá ser verificado e experimentado pelo reanimador antes de actuar; e, diariamente, e após cada utilização, por responsável designado pelo chefe da equipa ou director do serviço. Do material deve fazer igualmente parte um conjunto de pequena cirurgia embalado em condições de assépsia, incluindo campos esterilizados, luvas esterilizadas, pinças, lancetas, agulhas/material de sutura, etc..

Importa prever a necessidade da existência de certos instrumentos em duplicado (ou mesmo, em triplicado) admitindo a hipótese de partos gemelares.

QUADRO 1 – Material indispensável para reanimação do RN no bloco de partos.

Material
    • Mesa de reanimação com sistema de aquecimento e iluminação
    • Relógio
    • Estetoscópio pediátrico ou neonatal
    • Fonte de oxigénio
    • Aspirador de pressão negativa regulável
    • Sondas de aspiração de calibres: 6; 8; 10
    • Bolsa ou balão (tipo Ambou) de 500 ou 750 ml, auto-insuflável tipo Ambu, ou bolsa tipo “anestésica” com válvula de pressão, ou ressuscitador com limite de pressão e peça em T, regulador de FiO2/ dispositivo para mistura de ar/O2 regulável, e monitor de pressão; se possível, capnógrafo
    • Tubos de Mayo (vários tamanhos)
    • Laringoscópio
    • Lâminas rectas de laringoscópio de tamanhos: 00; 0; 1
    • Tubo endotraqueal (TET) de calibres: 2.5; 3; 3.5; 4 (Quadro 3)
    • Fio condutor para tubo endotraqueal (TET)
    • Cateteres umbilicais
    • Fio de nastro esterilizado
    • Luvas esterilizadas
    • Adesivo/ tintura de benjoim
    • Tesoura
    • Seringas (de 1;3;5;10; 20 ml)
    • Torneira de 3 vias
    • Oxímetro de pulso e monitor electrónico para FC/ECG/3 eléctrodos
    • Peças de adaptação do TET para administração de surfactante
    • Peças de adaptação do TET para ligação ao dispositivo de pressão controlada e ao aspirador
    • Fármacos (Quadro 2)


No QUADRO 2 são discriminados os fármacos que podem ser utilizados em contextos diversos a descrever adiante; no mesmo quadro são incluídas as doses respectivas a utilizar.

QUADRO 2 – Fármacos e doses a utilizar em reanimação do RN.

Naloxona

    • 0,1 mg/Kg
    • Qualquer via (endotraqueal, endovenosa ou intramuscular), bólus
    • Contra-indicação: mãe toxicodependente

Adrenalina

    • 0,01-0,03 mg/Kg/dose
    • Diluir 1 ml de adrenalina em 9 ml de soro fisiológico: 0,1-0,3 ml/kg/dose
    • Via endotraqueal ou endovenosa, bólus
    • Repetir até máx. de 2 ml/kg

Bicarbonato de sódio

    • Diluir 10 ml de NaHCO3 a 8,4% em 10 ml de água destilada
    • 1-2 mEq/Kg/dose
    • Via endovenosa em 2 a 5 minutos

Expansores de volume

    • Soro fisiológico
    • Lactato de Ringer
    • Sangue ORh(-)
    • 10 ml/Kg IV

Glicose a 10%

    • 2 ml/Kg – em 1 minuto IV; depois glucose a 5% em perfusão lenta

Actuação prática

A reanimação do RN deverá ser encarada numa perspectiva de prevenção de lesões evitáveis do sistema nervoso central. Os objectivos gerais são: evitar a hipoxia, evitar a infecção, evitar a hipotermia e combater a acidose.

Relativamente à prevenção da infecção, importa salientar que, sendo  as manobras de reanimação realizadas em bloco de partos, portanto, em ambiente de bloco operatório, tal implica que todos os procedimentos devem ser levados a cabo em ambiente de assepsia cujas regras, não sendo aqui explicitadas, deverão estar sempre na mente de quem tem acesso a tal ambiente e reanima. Como na transição para a vida extrauterina o tempo conta muito, o tempo em  segundos conta, é importante que no bloco de partos exista , mais do que um relógio bem visível, um conta-segundos. De facto, há situações “exigindo” procedimentos a realizar nos primeiros 60 (sessenta) segundos que devem ser executados.

Sistematização geral  (Figura 1)

No pós-parto imediato (primeiros segundos), a primeira etapa consiste em verificar se estão presentes as seguintes condições (avaliação básica do risco): – RN de termo? – Choro imediato e respiração normal? – Bom tono muscular?

Se a resposta a todas estas questões for positiva, o RN deve ser “entregue” à mãe, colocado “pele com pele”, promovendo estimulação suave tipo “massagem” nas plantas dos pés. A temperatura corporal da mãe aquece o bebé, evitando a hipotermia.

Se a resposta a qualquer das questões for “não”, o RN deve ser colocado sob calor radiante no berço, ou na incubadora, garantindo temperatura cutânea entre 36,5 e 37,5ºC, secado e promovendo estimulação cutânea ligeira. Sobre certas particularidades nos casos de RN pré-termo e em situação de asfixia perinatal grave, ver adiante a alínea Ambiente térmico. Deve proceder-se à aplicação de oxímetro de pulso para monitorização contínua da SpO2.

FIGURA 1. Fluxograma de actuação na reanimação do recém-nascido (segundo AHA, 2020).

Ao mesmo tempo verificar a presença de eventuais secreções ou saliva na boca, as quais devem ser removidas suavemente e não aspiradas de rotina (pelo risco de bradicardia), desde que não existam sinais de mecónio ou de obstrução da via respiratória. (Figura 2)

Se, após 30 (trinta) segundos, se verificar apneia, gasping ou frequência cardíaca (FC) < 100 bpm, deverá iniciar-se ventilação com pressão positiva intermitente (IPPV – iniciando-se com pico de 20 cm H2O), FR (frequência respiratória – 40-60/ minuto), usando balão Ambou e máscara, e FiO2 a 21% (ar) se RN com 35 semanas ou >, e 21-30% se RN com < 35 semanas. (Figura 3)

Decorridos os 30 segundos iniciais, mantendo a aplicação do oxímetro, deve proceder-se à aplicação de 3 eléctrodos cutâneos no tórax para monitorização contínua com ECG + FC e FR (frequência respiratória), não devendo ultrapassar 1 minuto (30 segundos iniciais + 30 segundos com este último procedimento).

Se, após o referido 1 minuto (correspondendo ao tempo consumido com as manobras anteriores), e apesar da garantia da permeabilidade da via respiratória e da ventilação iniciada com balão Ambou e máscara, se verificar FC < 60 bpm, deve proceder-se a entubação traqueal, após o que se deve de imediato iniciar massagem cardíaca/ compressão cardíaca em sincronismo com a ventilação (ratio 3:1 ou seja, 90 compressões/ 30 insuflações com dedos no terço inferior do esterno durante 45-60 segundos pelo menos), avaliando entretanto a resposta da FC. Concomitantemente deve elevar-se a FiO2 para 100%. (Figuras 4 e 5)

Salienta-se que:

    • O indicador mais sensível e rigoroso do sucesso da actuação geral descrita é o aumento da FC;
    • A entubação traqueal deve sempre preceder o início da massagem cardíaca).

 

Se, com as manobras descritas, a FC não responder ao cabo de 60 segundos de ventilação + massagem cardíaca, continuando este procedimento, está indicado o início da fase seguinte (letra C de ABC) relacionada com a reanimação circulatória: utilização de fármacos: adrenalina e expansores da volémia (situação rara).

Adrenalina: está indicada, como foi referido, nos casos de FC<60 bpm para além de 60 segundos de massagem cardíaca e ventilação.

É recomendada a via IV (eventualmente, a veia umbilical após cateterismo), pelo seu efeito mais rápido, na dose de 10 – 30 mcg/kg (doses mais elevadas não são recomendadas). Utilizando, em situações extremas, a via traqueal, menos eficaz, torna-se necessário usar doses superiores para obter o mesmo efeito (pelo menos, 50 – 100 mcg/ kg). A concentração da adrenalina para qualquer das vias deverá ser 1: 10.000 (0,1 mg/mL). Obtido um efeito de vasoconstrição periférica por estimulação dos receptores alfa-adrenérgicos, verifica-se melhoria do suprimento de oxigénio ao SNC e miocárdio.

Expansores da volémia: estão indicados nas seguintes situações: – ausência de resposta às medidas anteriormente descritas; – choque hipovolémico traduzido por palidez, má perfusão periférica/pele marmoreada, hipotensão arterial, pulsos débeis (situação eventualmente relacionada com perda de sangue);

Como expansores, utilizam-se soluções cristalóides isotónicas: soro fisiológico (NaCl a 0,9%) ou lactato de Ringer. A dose inicial é 10 mL/kg por via IV periférica ou umbilical em 5 a 10 minutos, podendo repetir-se a administração. Em situações de hemorragia importante pode ser utilizado sangue 0 Rh (-). (Figura 1)

Resumindo:

As manobras de reanimação devem ser sequenciais, em etapas, sem hesitações nem perdas de tempo, como é sugerido no algoritmo da Figura 1 aplicando a regra do ABC:

A- airways <> permeabilização da via aérea com cabeça/ pescoço em posição neutra ou em extensão muito ligeira, e remoção/ limpeza das secreções na boca, e não obrigatoriamente aspiração das mesmas.

B- breathing <> início da respiração/ ventilação utilizando estímulo táctil suave (por ex. nas plantas dos pés), seguindo-se ventilação artificial.

C- circulation <> garantir a circulação através da aplicação de compressão torácica/ massagem cardíaca sincronizada com a ventilação artificial, eventualmente em associação à administração de fármacos como a adrenalina ou a perfusão endovenosa para expansão da volémia.

FIGURA 2. Remoção suave das secreções somente da boca se originarem obstrução (RN em decúbito dorsal, estando já laqueado o cordão umbilical).

FIGURA 3. Ventilação com balão Ambu no lactente: A – Cabeça em extensão. Aplicar bem a máscara à face (sobre a boca e nariz) de modo a não permitir “fugas”. Evitar traumatizar os globos oculares. Comprimir o balão entre os dedos. “Aliviar” a máscara da face imediata e momentaneamente após a insuflação; B – A pressão de ventilação pode ser regulada como se demonstra na figura, apertando o balão com um ou mais dedos (o ideal será, no entanto, verificar a pressão com dispositivo conectado ao sistema – manómetro)

FIGURA 4. Manobras sequenciais de entubação orotraqueal: A – A lâmina do laringoscópio aborda o lado direito da boca; B – Avançando para a linha média referencia-se a úvula; C – Pressão sobre a língua ao mesmo tempo que a extremidade da lâmina deve progredir em direcção à epiglote; D – Referência da epiglote; E – Os três tempos permitindo ultrapassar a epiglote; F – Epiglote ultrapassada (verifica-se facilmente que o esófago está por baixo da laringe; RN em decúbito dorsal).

FIGURA 5 – Massagem cardíaca externa/ compressão torácica e ventilação com máscara. NB: idealmente a ventilação deve ser com TET. Neste caso utilizou-se a técnica com os dois polegares do reanimador.

Particularidades

Laqueação do cordão umbilical

Actualmente aconselha-se a sua realização para além de 30 segundos. De acordo com a ACOG, nos casos de normal adaptação à vida extrauterina, recomenda-se 30-60 segundos, quer em RN de termo, quer pré-termo. Determinados centros aconselham, mesmo, diferir até 3 minutos. Tais atitudes fundamentam-se em certas evidências: teores mais elevados de Hb e de reservas de ferro pelos 3-6 meses de idade, menor necessidade de transfusões futuras, designadamente nos pré-termo, e menor incidência de enterocolite necrosante e de hemorragia intraperiventricular. Recorde-se que no RN de termo a volémia na placenta corresponde a cerca de 35 mL/kg de peso.

Temperatura corporal e ambiente 

O ambiente térmico e a termorregulação constituem elementos-chave na reanimação do RN. Múltiplos estudos demonstraram que a hipotermia se associa a taxa de mortalidade mais elevada, assim como a alto risco de problemas respiratórios, hipoglicémia e sépsis tardia.

Assim, a todos os RN, como regra geral, deve ser garantida manutenção da temperatura cutânea entre 36,5-37,5ºC e da temperatura ambiente entre 23 e 25ºC (ou superior, nos RN pré-termo). Independentemente de tal garantia poder ser concretizada na maior parte dos RN de termo com boa adaptação à vida extrauterina com o calor/ temperatura da pele da mãe (“pele com pele”), importa antecipar a possível necessidade de utilizar em determinadas condições: incubadora aquecida, mesmo em RN vestidos, sistema de aquecimento radiante superior, eventualmente com temperatura servorregulada, campos de pano estéreis aquecidos, concentradores de calor de perspex (túneis), folhas, sacos de estanho ou de plástico, ou ainda, colchões exotérmicos apropriados.

A secagem da pele não deverá ser realizada em RN pré-termo com < 28 semanas, pois com tal procedimento verifica-se maior perda de calor por evaporação e convecção.

Reiterando: nos RN de termo com boa adaptação à vida extrauterina, a fonte de calor imediata a utilizar no pós-parto imediato poderá ser o calor corporal do tórax/ abdómen da mãe (“pele com pele”).

Líquido amniótico com mecónio

À luz dos conhecimentos actuais, quer nos RN com boa vitalidade, quer nos deprimidos, não vigorosos, não está indicada a entubação traqueal para aspiração do líquido meconial. Ou seja, os cuidados iniciais são idênticos aos aplicados em circunstâncias ditas normais (aquecimento, estimulação táctil suave, etc.). Os critérios para entubação traqueal são os mesmos que existem quando não se verifica a situação de líquido amniótico com mecónio.

Encefalopatia neonatal

Sendo esta situação clínica abordada adiante em capítulo especial, cabe sintetizar aqui algumas particularidades relacionadas com a actuação no pós-parto imediato por asfixia perinatal grave, obrigando a manobras de reanimação laboriosas. Em tal contexto, havendo antecedentes perinatais tais como por ex. prolapso do cordão, descolamento da placenta, sofrimento fetal, etc., as manifestações clínicas no RN, traduzindo disfunção neurológica (designadamente alterações do tono muscular, dos reflexos e do estado de consciência) são o resultado de lesão cerebral hipóxico-isquémica.

Em tal situação, para além da actuação imediata, já descrita, e dado que a hipotermia tem efeito neuroprotector, em vez de se promover o aquecimento do RN, até observação por neurologista /intensivista, está indicado o não aquecimento até decisão final, a curto prazo, de se avançar para o protocolo específico.

Depressão neonatal versus asfixia

Importa referir que vários problemas perinatais podem interferir no processo de adaptação do feto à vida extrauterina conduzindo eventualmente a um processo de depressão neonatal, e não de asfixia, no sentido correcto do termo: asfixia = hipóxia + hipercápnia + acidose). Eis alguns exemplos:

  • Prematuridade (esta condição determina que o RN seja hipotónico e hiporreactivo, tenha imaturidade do centro respiratório dificultando o automatismo respiratório, entre outras particularidades);
  • Fármacos administrados à mãe e anomalias congénitas várias do RN (condições que dificultam o início de ventilação espontânea).

Contudo, torna-se evidente que em tais circunstâncias, se não forem postas em prática determinadas manobras descritas, poderá instalar-se quadro de verdadeira asfixia na sequência da depressão inicial.

Evolução de conceitos

Ao longo das últimas décadas, com a evolução da ciência baseada nos resultados da investigação, têm sido divulgadas normas sobre Reanimação do Recém-Nascido, evidenciando mudanças de atitudes e procedimentos. Da edição anterior desta obra, transcrevemos: “…o ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) em 2010, e diversos organismos internacionais a nível mundial, destacando a American Heart Association, o European Resuscitation Council, e a American Academy of Pediatrics, publicaram novas recomendações ou normas de orientação/ guidelines, divergindo significativamente nalguns pontos-chave relativamente às de 2005, descritas na 1ª edição desta obra.”

Na presente edição, adaptámos as normas (NRP-Neonatal Resuscitation Program) divulgadas em 2015 no âmbito da American Heart Association, e American Academy of Pediatrics citando Wyckoff MH, et al. Estas foram revisitadas por Hainstock LM, et al em 2020 (consultar bibliografia).

Tendo em conta os objectivos deste tratado elementar, devotado essencialmente a estudantes e a clínicos gerais ou pediatras gerais, são relevados alguns tópicos que tipificam as modificações a que aludimos.

    • Vários estudos nos últimos anos têm questionado a necessidade de emprego sistemático de oxigénio (e, designadamente em concentrações elevadas, como FiO2 de 100%) para reanimar RN no pós-parto imediato. Com efeito, verificou-se que, após períodos prolongados de hiperóxia, as hipoxantinas se acumulam nos tecidos combinando-se com oxigénio na presença de xantinoxidase, libertando radicais livres que podem provocar lesão tecidual significativa; tal lesão tecidual que corresponde a processo inflamatório (peroxidação lipídica, essencialmente) resulta da inibição da síntese proteica e de ADN. De facto, os radicais livres de oxigénio (superóxido, peróxido de hidrogénio e radicais peróxido) têm sido implicados na patogénese de uma série de quadros clínicos neonatais (sobretudo pulmonares e neurológicos), particularmente nos RN pré-termo, os quais evidenciam limitações na capacidade antioxidante (défice de enzimas antioxidantes: catalase, superóxido-dismutase, glutationa-redutase, etc.). É, pois, possível utilizar ar ambiente e evitar FiO2 elevadas o que contribuirá para a redução do teor de radicais livres produzido e de lesões teciduais após reperfusão.
    • Relativamente ao índice de Apgar (que tem sido questionado por não permitir prever o desfecho clínico a prazo, mas tão somente a avaliação da resposta à reanimação), foi proposta a sua modificação: considerando como mais importante a frequência cardíaca (FC), tem sido sugerido não valorizar o parâmetro “cor da pele”.
    • Ainda, sobre o índice de Apgar, quanto ao parâmetro “irritabilidade reflexa” avaliada ao “aspirar as fossas nasais”: considerando que esta manobra actualmente não deve constituir rotina, por desnecessária e pelo efeito potencialmente nefasto, inclusivamente em RN deprimidos, a sua inclusão é controversa.
    • Nos casos de eliminação de líquido amniótico com mecónio (LAM), os cuidados iniciais são idênticos àqueles prestados nas circunstâncias em que o LA é límpido; de facto, não está actualmente indicada a entubação traqueal para aspiração daquele, independentemente de existir ou não depressão/ deficiente vitalidade. Somente existe uma excepção: nos casos de obstrução comprovada da via respiratória.
    • Chamada da atenção actual para a importância das manobras a realizar no Minuto 1 de vida (Minuto de Ouro) incluindo a necessidade de utilização, a par do oxímetro de pulso, da monitorização electrocardiográfica com três eléctrodos.
    • Chamada de atenção para a vantagem de diferir no tempo a laqueação do cordão umbilical (> 30-60 segundos, podendo em situações especiais atingir 3 minutos). (consultar texto e bibliografia)

Técnicas

O equipamento básico para a reanimação primária do RN no bloco de partos é descrito no Quadro 1. Essencialmente: fonte de oxigénio e de ar com misturador, aquecimento e humidificação, balão tipo Ambou para insuflação manual intermitente (para pressão positiva intermitente/ IPPV), máscara para aplicação boca/ narinas ligado ao balão, e tubos endotraqueais (TET). Eventualmente, tubo em T para aplicação de sistema de pressão positiva contínua, adiante delineado.

Sobre aspectos básicos da fisiologia da respiração neonatal e sobre pressão positiva contínua ou de distensão contínua no fim da expiração/ CPAP/ PEEP, aconselha-se, adiante, a consulta do capítulo sobre problemas respiratórios. Salienta-se que existe equipamento automático para gerar, quer IPPV, quer CPAP/ PEEP, para conectar a máscara ou TET.

Ventilação artificial*

Salientando que a cor da pele constitui um fraco indicador da SpO2 durante o período neonatal imediato, e que a ausência de cianose constitui um fraco indicador de oxigenação tecidual, daí o interesse e a grande utilidade da oximetria por via transcutânea (com o vulgarmente chamado oxímetro de pulso) para monitorização do estado de oxigenação, avaliando a necessidade de administrar, ou não, oxigénio suplementar em % regulável com o dispositivo/ misturador O2/ar. De acordo com o algoritmo da Figura 1, há que evitar, quer a hipóxia, quer a hiperóxia.

* Ao abordar o fenómeno da ventilação artificial importa uma referência muito básica a certas noções da fisiologia respiratória para melhor compreensão do funcionamento dos dispositivos de ventilação (quer básicos, quer sofisticados).

    • a frequência respiratória (FR) corresponde ao número de ciclos respiratórios por minuto;
    • numa inspiração controlada ou assistida por dispositivo de ventilação (sendo o balão tipo Ambou o mais básico) gera-se uma pressão positiva inspiratória na via aérea designada ventilação com pressão inspiratória positiva intermitente (PIP ou IPPV) ou pressão de “pico”; o ar introduzido nos pulmões é mantido na via aérea durante uma pausa, para que haja tempo para as trocas gasosas/difusão a nível alveolar; a pressão da via aérea durante esta pausa denomina-se pressão de plateau/planalto;
    • durante a expiração, o pulmão é esvaziado de forma passiva em função da retracção elástica pulmonar;
    • no final da expiração normal persiste no pulmão certo volume de ar (designado capacidade residual funcional);
    • após expiração forçada resta ainda certo volume de ar (designado volume residual); o volume residual, impedindo o colapso do alvéolo, gera certa pressão de distensão alveolar contínua fisiológica que garante as trocas gasosas – a chamada pressão positiva fisiológica no fim da expiração.  

Ora, para certas situações de dificuldade respiratória em que o paciente tem respiração espontânea (isto é, não está em apneia), no sentido de incrementar artificialmente a chamada pressão positiva fisiológica no fim da expiração, (tentando melhorar ou maximizar as trocas gasosas), é possível intercalar no circuito do fluxo gasoso, um dispositivo que aumente a referida pressão de distensão contínua, pressão medida em cm de H2O.

A este conceito de pressão positiva artificial no fim da expiração em paciente com respiração espontânea é dado o nome de ou CPAP –continuous positive airways pressure), equivalente ao de (PEEP ou positive end expiratory pressure) se ao paciente estiver a ser aplicada simultaneamente IPPV (ver adiante).           

Dispositivos para ventilação

A ventilação efectiva pode ser conseguida empregando dois dispositivos (ressuscitadores) como:

  • o vulgar balão (com capacidade máxima de 750 mL) do tipo Ambu, ligado a fonte ventilatória (em geral com débito de 5 L/min) permitindo variar a concentração de oxigénio através de misturador ar/O2;
  • o balão de tipo anestésico com a chamada peça em T, permitindo variar a pressão inspiratória.  

Empregando máscara bucofacial, esta deve ser de tamanho e material adequados (transparente, almofadada, cobrindo apenas nariz, boca e região mentoniana, e aplanada para reduzir o espaço morto) sendo que o formato anatómico de base triangular ajusta-se melhor ao RN de termo, e o formato arredondado ao RN pré-termo.

O sistema deve possuir um mecanismo de segurança (manómetro ou válvula) de modo a evitar pressão inspiratória excessiva) superior a 40 cm H2O (ver atrás).

Torna-se fundamental que o reanimador (isto é, a equipa) tenha prática e experiência, verificando designadamente, se a máscara está bem ajustada à face, garantindo que a boca fica ligeiramente aberta e tendo em atenção a eventualidade de secreções susceptíveis de originar obstrução.  

Constitui boa norma aplicar sonda nasogástrica ao proceder a ventilação com máscara para evitar ou diminuir a distensão gástrica.

As máscaras laríngeas (dispositivos que se adaptam à entrada da laringe e poderão ser manipulados por quem não tem experiência em entubação traqueal e destinados às situações de abordagem difícil das vias aéreas), constituem uma alternativa transitória até se conseguir uma solução mais estável para manter a permeabilidade da via aérea.

O ressuscitador manual neo-puff é um dispositivo incluindo debitómetro, ciclado manualmente, e permitindo gerar pressão inspiratória regulável e pressão de distensão contínua (PEEP). O mesmo tem aplicação prática quando se torna necessário o transporte de RN pré-termo sem disponibilidade de ventilador convencional.

Pressão positiva intermitente (PPI ou PIP)

Se se verificar apneia, gasping, ou FC < 100 /min após realização dos passos anteriormente descritos, deve ser iniciada ventilação com PPI. Na prática deve providenciar-se uma frequência de ventilação / insuflação de 40 a 60/min, monitorizando a FC, sendo objectivo que atinja, com a ventilação, > 100/min. A pressão de insuflação / pressão inspiratória deve ser monitorizada; uma pressão de 20 cm H2O poderá ser efectiva, mas nalguns casos são necessários picos de pressão mais elevados (~ 30-40 cm H2O), designadamente em RN de termo sem respiração espontânea.

Nalguns centros que possuem capnógrafo (dispositivo detector de CO2 por método colorimétrico para detectar obstrução da via aérea ou, no caso de entubação traqueal – ver adiante – para comprovar a correcta colocação do TET na via respiratória). Utilizando máscara, parece não haver utilidade do capnógrafo.

Pressão positiva contínua

A pressão positiva contínua (CPAP) poderá ser usada em RN pré-termo que respiram espontaneamente, mas manifestando dificuldade e esforço. Tal atitude poderá reduzir a necessidade de entubação traqueal e de ulterior doença pulmonar crónica; ter em atenção a maior a probabilidade de pneumotórax. (ver adiante INSURE).

Sobre o equipamento utilizado para CPAP e seu funcionamento, procede-se a uma abordagem sucinta adiante, no capítulo sobre Problemas respiratórios.

Pode utilizar-se a associação de PPI com pressão positiva no fim da expiração / pressão de distensão contínua (PEEP) pós-parto imediato, ainda no bloco de partos.

Entubação traqueal

As principais indicações da entubação traqueal são:

  • Apneia
  • Ventilação com máscara e balão Ambou ineficaz e prolongada. Aplicando em sincronismo ventilação + massagem cardíaca, esta última deverá ser iniciada após a entubação traqueal (nunca a preceder). (ver atrás)
  • Circunstâncias especiais, designadamente as descritas na alínea seguinte.

Após entubação endotraqueal e administração de PPI/IPPV o melhor indicador de que o tubo se encontra em posição correcta (no interior da via laringotraqueal), providenciando ventilação efectiva, é o rápido incremento da FC. Outros indicadores de correcta posição do TET são a auscultação de murmúrio vesicular bilateralmente e a expansão torácica simétrica em sincronismo com as insuflações.  

A  comprovação objectiva de correcta posição do TET também pode ser  realizada através da  detecção (positiva) de CO2 exalado através do capnógrafo. Caso tal não aconteça (detecção negativa), deduz- se que o tubo foi introduzido no esófago; a mesma conclusão se poderá tirar se a auscultação ao nível do epigastro  identificar ruído aéreo.

O Quadro 3 mostra, de modo aproximado, o diâmetro aconselhado do TET em função do peso do RN / idade gestacional, sendo prudente que o reanimador escolha como reserva um TET de diâmetro superior e outro de diâmetro inferior ao escolhido.  No mesmo é referido o comprimento a inserir desde o lábio superior (entubação orotraqueal).

Uma regra matemática permite calcular, também, o comprimento do TET a inserir: distância em cm = peso em kg + 6. Em alternativa, a distância tragus-nasal pode ser usada para avaliar a distância entre a extremidade do TET e o lábio.

QUADRO 3 – Calibre do TET.

TUBO ENDOTRAQUEAL (TET)
Peso (g)Idade gestacional (semanas)Diâmetro do tubo (mm)Comprimento a inserir desde o lábio superior (cm)

<1000
1000-1999
2000-2999
≥3000

<28
28-34
34-38
>38

2.5
3.0
3.5
3.5-4.0

6.5-7
7-8
8-9
>9

Notas importantes:
– Actuação:

1º – ventilação, idealmente com TET;
2º –  a massagem cardíaca que, portanto, só deve ser iniciada após a ventilação (e mantendo esta, idealmente via TET).

Como variante e pormenores desta técnica, referem-se:

    • Compressão feita com o indicador e o médio, “evitando o apêndice xifoideu”;
    • Grau de compressão correspondendo a cerca de 1/3 do diâmetro ântero-posterior do tórax;
    • Não deslocação dos dedos da sua posição inicial de contacto com a pele do RN para prevenir o traumatismo de órgãos vizinhos e a ineficácia da manobra.
    • O modo correcto das compressões e insuflações assim como a não interrupção do procedimento são mais importantes do que providenciar o número exacto de manobras por minuto. (Figura 5)

Actuação prática em casos especiais

Hérnia diafragmática congénita (HDC)

O diagnóstico de HDC, idealmente, deverá ser realizado antes do nascimento.

No RN com diagnóstico pré-natal de HDC, a equipa de reanimação, informada do diagnóstico, deverá electiva e imediatamente após o nascimeno proceder a; 1) entubação traqueal; 2) ventilação com pressão positiva; 3) colocação de sonda nasogástrica para evitar hiperdistensão gástrica; 4) restante suporte vital que a situação imponha.

Notas importantes:

    • Nos RN com síndroma de dificuldade respiratória no pós-parto imediato, abdómen escafóide, ventilação assimétrica, e desvio dos sons cardíacos é essencial ponderar este diagnóstico e proceder em conformidade.
    • Nos casos de HDC, o risco de pneumotórax durante a reanimação é considerável; caso se verifique, deverá ser feita a descompressão imediata através de punção pleural com agulha tipo butterfly no 4º espaço intercostal esquerdo (EIE) na linha axilar anterior, conectada a seringa ou a sistema de drenagem subaquática.

Gastrosquise

A gastrosquise pode ser diagnosticada no âmbito da vigilância pré-natal pela observação ecográfica de vísceras em localização extraparede abdominal, sem saco de revestimento.

Para além das manobras atrás descritas de reanimação caardiorrespiratória, salientam-se as particularidades da chamada fase de reanimação circulatória: reposição de líquidos (as perdas são essencialmente de plasma e fluidos intersticiais), com necessidade de volumes muito superiores aos habituais: 150-300 mL/kg/dia, isótonicos, colóides, soro fisiológico ou lactato de Ringer.

Obstrução da via respiratória superior

A obstrução da via respiratória superior, seja intrínseca ou extrínseca, pode determinar adaptação difícil à vida extrauterina (traduzida fundamentalmente por esforço respiratório precoce) susceptível de tornar a reanimação mais laboriosa.

  • No RN com macroglossia ou glossoptose, o decúbito lateral ou ventral pode ajudar a aliviar os sintomas; se tal não se verificar, com o apoio de anestesista e endoscopista, pode tentar-se a colocação de tubo nasofaríngeo sob controlo fibroendoscópico;  
  • No RN com anomalia congénita do maciço facial pode ser difícil a realização de entubação traqueal; se, após aplicação do laringoscópio a visualização das cordas vocais for difícil ou impossível, poderá tentar-se sem laringoscópio, usando o método táctil:
    1. RN em decúbito dorsal com plantas dos pés frente ao reanimador;
    2. Segura-se o TET com a mão direita e, com o 4º dedo da mão esquerda introduzido na boca do RN avança-se até tocar na ponta da epiglote que se tenta levantar enquanto se introduz o TET;

A entubação traqueal guiada por fibroendoscopia constitui uma alternativa a utilizar nos casos de obstrução da via respiratória superior.

Surfactante no bloco de partos

Essencialmente, existem duas estratégias no que respeita à administração de surfactante: a profiláctica e a de recurso (ou resgate).

Na estratégia profiláctica, o surfactante é administrado nos primeiros minutos de vida a RN com maior probabilidade de desenvolvimento do problema respiratório típico da prematuridade por défice de surfactante (doença da membrana hialina), designadamente, em situações associadas a idade gestacional < 28 semanas, e a não administração de corticoides à grávida.  

Na estratégia de recurso, a administração de surfactante é protelada até verificação dos primeiros sinais de dificuldade respiratória relacionável com a referida doença.

Muitos estudos publicados têm demonstrado que ambas as estratégias são seguras e eficazes, continuando, contudo, a existir controvérsia quanto à selecção de pacientes para tratamento profiláctico, e ao intervalo de tempo máximo recomendado para a administração de primeira dose. Salienta-se, contudo, que em regra é recomendada a administração profiláctica aos 10 minutos de vida após período de ventilação com pressão positiva iniciada no pós-parto imediato.

Tem sido observado um crescente interesse no uso precoce do método de pressão positiva contínua por via nasal (CPAP nasal – nasal continuous positive airway pressure) já a partir do bloco de partos, em RN com idades gestacionais mais baixas.

Alguns estudos têm sugerido que esta estratégia poderá diminuir a necessidade de ventilação invasiva, a utilização de surfactante e a incidência de doença pulmonar crónica.

Também, a estratégia designada de “INSURE” (ou intubation – surfactant – extubation) significando “entubação electiva para administração de surfactante seguida de extubação” e aplicação de CPAP nasal pode contribuir para reduzir a necessidade de ventilação mecânica e suas complicações. De facto, a pressão positiva contínua/CPAP, mantendo os alvéolos distendidos, reduz a probabilidade de lesão do surfactante e, por outro lado, estimula a sua produção.

Para melhor compreensão das estratégias de assistência respiratória no pós-parto imediato em RN pré-termo, e especialmente em situações de prematuridade  (< 28 semanas e < 1.000 gramas) tendo em vista a prevenção de lesão alveolar pulmonar e suas sequelas, será útil a consulta do capítulo sobre problemas respiratórios.

Cuidados pós-reanimação

Na fase imediata à reanimação (na Hora de Ouro), seguindo-se à recuperação dos sinais vitais (estabilização), existe risco de deterioração, o que implica preparação da equipa para eventual intervenção nas horas subsequentes. Mesmo que o RN submetido a reanimação não seja transferido para UCIN, deverá ficar sob vigilância nas horas subsequentes em unidade de internamento: – prevenindo a hipotermia, a hipoglicémia e a infecção; e – possibilitando a monitorização biofísica (frequência cardíaca, respiratória, pressão arterial, SpO2, etc.) e bioquímica.

Importa salientar que o aleitamento deve ser fomentado e iniciado o mais precocemente possível, exceptuando no contexto de eventual contraindicação relacionado com o estado clínico da mãe ou bebé.

A administração de naloxona não é recomendada como fazendo parte das medidas iniciais no bloco de partos para combater a depressão respiratória. Aliás, é importante referir que nunca deve ser utilizada em RN de mães com antecedentes de toxicodependência de opióides pelo risco de síndroma de abstinência neonatal caracterizada por hiperexcitabilidade e convulsões.

Outros fármacos tais como bicarbonato ou vasopressores (por ex epinefrina ou dopamina) raramente estão indicados na fase de estabilização, excepto perante acidose metabólica e ou necessidade de expansão da volémia.  

Tendo em consideração o efeito lesivo da hipoglicémia, a determinação da glucose no sangue deve ser realizada, sendo de considerar no pós parto imediato, em função do contexto clínico de cada caso, a perfusão de glucose IV para prevenir aquela situação.  

Nos casos de RN de termo ou quase de termo (com 36 semanas ou mais) com encefalopatia hipóxico-isquémica moderada a grave (ver capítulo sobre encefalopatia neonatal) os mesmos devem  beneficiar de hipotermia terapêutica devidamente controlada (33,5ºC a 34,5ºC), sendo tal procedimento  iniciado dentro das primeiras 6 horas após o parto, continuando durante 72 horas, com ulterior reaquecimento.

Dilemas éticos

No bloco de partos a equipa de pediatria-neonatologia é muitas vezes confrontada com situações que comportam decisão difícil, designadamente no que se refere à abstenção de reanimação ou à sua interrupção.

Cabe referir, a propósito, que se torna impossível estabelecer consenso absoluto no que respeita ao tópico “reanimação”, uma vez que a adopção de toda e qualquer medida é susceptível de abranger, não só aspectos éticos, mas também científicos, legais, culturais, religiosos, entre outros; por conseguinte, as normas estabelecidas poderão variar entre grupos sociais ou culturais. De qualquer modo, é geralmente admitido que o bloco de partos não constitui o local mais próprio para decidir sobre a vida ou a morte.

Tendo em conta tais condicionalismos, no âmbito de cada país e cada instituição é importante elaborar normas de actuação que poderão ser revistas regularmente, e modificadas se necessário. Por outro lado, as decisões deverão basear-se no maior número de elementos clínicos antenatais, sempre que possível, confirmados no período pós-natal.

As situações que na maior parte dos casos podem suscitar dúvidas e dilemas dizem respeito fundamentalmente aos RN com sinais de imaturidade extrema (RN inviáveis?), àqueles que evidenciam anomalias congénitas (incompatíveis com a vida?), e aos casos em que o tempo de reanimação se prolonga.

Na fase actual dos conhecimentos, no âmbito da maioria dos centros e sociedades científicas perinatais dos países industrializados foram, entretanto, obtidos determinados consensos em situações de parto pré-termo:

  • a idade gestacional é considerada melhor “marcador” de viabilidade do que o peso de nascimento;
  • inviabilidade definida quando a idade gestacional é inferior a 23 semanas;
  • a reanimação deve ser instituída se o diagnóstico de maturidade (idade gestacional precisa) não tiver sido previamente estabelecido;
  • a reanimação não deve ser instituída se a idade gestacional confirmada for inferior a 23 semanas, ou o peso de nascimento inferior a 400 gramas;
  • o sinal clínico “fusão palpebral” habitualmente conotado com imaturidade inviável pode surgir em cerca de 20% dos RN com idades gestacionais compreendidas entre 24 e 27 semanas; todos os esforços devem ser feitos na assistência ao parto e na reanimação de RN com idade gestacional > 27 semanas;
  • nos RN com idade gestacional compreendida entre 25 e 27 semanas haverá que ponderar determinados factores tais como, por ex. a medicação na grávida com corticóides, parto em centro diferenciado com UCIN pressupondo transporte in utero prévio, problemas associados imediatamente detectados no pós-parto, etc..

A este propósito cabe referir que, de acordo com resultados dos estudos da Rede Neonatal Vermont Oxford, a maioria dos RN com peso de nascimento <1.000 gramas submetida a massagem cardíaca e ou tratamento com adrenalina sobrevive (50 % sem HIPV).

Quanto aos RN portadores de anomalias congénitas evidentes, designadamente nos casos de diagnóstico confirmado de trissomia 13 ou trissomia 18, considera-se em geral que se deverá tomar a decisão de iniciar a reanimação. Dada a posssibilidade actual de diagnóstico pré-natal das situações atrás referidas, considera-se que a decisão deva ser discutida com os pais sob os pontos de vista cultural, legal, religioso, etc..

Nas situações de reanimação prolongada, e após 15 minutos de ausência de batimentos cardíacos, apesar da realização de todos os procedimentos de modo adequado, aquela deverá ser interrompida.

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