CUIDADOS AO RECÉM-NASCIDO APARENTEMENTE SAUDÁVEL

Importância do problema

Este capítulo descreve os cuidados a propiciar ao RN aparentemente saudável durante o internamento no hospital-maternidade, o que pressupõe permanência do mesmo junto da mãe desde o nascimento até à alta para o domicílio promovendo o vínculo mãe-filho.

Nesta fase é de primordial importância que a equipa prestadora de cuidados (médico – pediatra/neonatologista, enfermeira e outros profissionais de saúde) exerça o seu papel de educação para a saúde junto dos pais, que se estabeleça contacto com o médico-assistente futuro (médico de família ou pediatra) e com o centro de saúde a que a família está ligada. É também desejável que, antes da alta, a mãe colabore nos cuidados ao filho acabado de nascer, o que constitui oportunidade ímpar de aprendizagem; de realçar o papel imprescindível dos profissionais de saúde no que respeita ao esclarecimento de dúvidas surgidas realçando a importância dos Boletins da Grávida e de Saúde Infantil e Juvenil.

Cuidados na sala de partos

Os cuidados a assegurar no pós-parto imediato são os seguintes:

  • Admitindo boa adaptação à vida extra-uterina e ausência de necessidade de reanimação, a laqueação do cordão deverá ser diferida até, pelo menos, 1 minuto;*
  • O RN deve ser imediatamente colocado sob uma fonte de calor e limpo com cuidado com um pano estéril, seco e aquecido. A substância gordurosa que o cobre (vernix caseosa) tem um efeito protector da pele, pelo que o banho na sala de partos apenas deve ser dado se houver sinais de amnionite ou a mãe for seropositiva para VIH ou portadora de hepatite B ou C. Embora este capítulo diga respeito ao RN aparentemente saudável, em geral, de termo, cabe salientar, a propósito dos cuidados gerais iniciais, segundo as novas normas de actuação, de consenso internacional, sob os auspícios do ILCOR 2010, nos RN de idade gestacional < 28 semanas, mantendo-se o tipo de cuidados referidos, não se deve proceder à secagem da pele;*
  • Avaliação sistemática do índice de Apgar ao 1º e 5º minutos de vida;
  • Realização de exame objectivo sumário com o objectivo de rastrear anomalias e avaliar o estado geral e a adaptação fetal à vida extrauterina. O peso de nascimento deve ser registado, assim como todos os dados referentes aos antecedentes pré-concepcionais e da gestação;
  • Profilaxia da doença hemorrágica com dose única de 1 mg de vitamina K1 por via intramuscular;
  • Profilaxia da conjuntivite neonatal por Neisseria gonorrhoeae com nitrato de prata;
  • Colocação de pulseira de identificação, a qual somente deverá ser retirada pelos pais quando o recém-nascido estiver em casa;
  • O RN vestido deve ser colocado num berço, sob uma fonte de calor, em decúbito dorsal junto à mãe na enfermaria desta (ou noutra enfermaria temporariamente se o estado clínico da mãe não o permitir) e “posto ao peito” nas primeiras duas horas de vida.

* ILCOR, sigla de International Liaison Committee on Resuscitation guidelines.
Trata-se das novas normas adoptadas internacionalmente, e elaboradas por oito grupos de trabalho de diversas sociedades internacionais, tais como a American Heart Association e Resuscitation Council (http://www. ilcor.org/en/consensus-2020/worksheets-2020)

Cuidados na enfermaria junto da mãe

  • Nesta área deverá ser confirmada a prestação dos cuidados adequados na sala de partos, nomeadamente: identificação, administração de vitamina K1 e profilaxia da conjuntivite;
  • Deve realizar-se um exame objectivo minucioso, não esquecendo o registo dos parâmetros somatométricos;
  • O Boletim de Saúde Infantil e Juvenil deve ser devidamente preenchido;
  • Devem ser administradas as primeiras vacinas: 1ª dose da vacina anti-hepatite B, e BCG (excepto se a mãe for VIH+, e tiver tuberculose pulmonar activa);
  • Independentemente do tipo de parto, o recém-nascido não deve ter alta antes das 36 horas de vida e nunca antes de ter havido comprovação de micções e de, pelo menos, uma dejecção.

Alimentação

Reiterando a “mensagem” que foi transmitida anteriormente sobre “alimentação com leite materno” – o melhor alimento para o recém-nascido é o leite da própria mãe –, sugere-se ao leitor a consulta da Parte sobre Nutrição-volume I. (Figura 1)

FIGURA 1. RN alimentado “ao peito”.

Higiene do coto umbilical

A desinfecção do coto umbilical faz-se diariamente com compressa embebida em álcool a 70º (não devendo ter aditivos), não esquecendo a zona junto à pele. O coto deve colocar-se fora da fralda, evitando-se que se molhe com urina. Deve ser observado diariamente, tentando detectar, nomeadamente, se apresenta mau cheiro, secreção ou hemorragia. Estando seco, o coto do cordão destacar-se-á mais precocemente: tal deverá ser explicado à mãe. Segundo a experiência de alguns autores, não haverá vantagem no emprego tópico de álcool a 70º ou de antissépticos em geral. 

Higiene corporal

  • O banho poderá ser propiciado durante a curta estadia na maternidade, mesmo antes de o cordão se destacar, desde que haja condições logísticas (incluindo profissionais de saúde suficientes facilitando o ensino à mãe) e de higiene básica na unidade neonatal. Quer em casa, quer na unidade neonatal, o mesmo (diariamente ou em dias alternados, atendendo sempre a situações especiais) deverá processar-se a temperatura ambiental adequada (em geral ~ 24-27ºC), com água a 35-36ºC para manter a temperatura rectal ~ 37ºC.
  • Em alternativa ao banho, pode lavar-se a criança parcelarmente por zonas, primeiro a cabeça, depois o corpo e, por fim, os membros de modo a evitar que se molhe o umbigo, e o arrefecimento.
  • Não devem ser usados produtos perfumados na limpeza da pele. O sabonete de glicerina é uma boa opção. A face deve ser lavada apenas com água.
  • O RN deve secar-se com uma toalha turca sem esfregar, incluindo as orelhas e as pregas, sem introduzir cotonetes no canal auditivo. As narinas também devem ser limpas suavemente para a remoção de secreções.
  • Depois do banho, a criança deve ser vestida: primeiro a camisa, e depois, a fralda.

Alguns problemas comuns

  • As fezes do lactente alimentado ao peito são ácidas e a pele em volta do ânus e órgãos genitais pode ficar vermelha, tipo “assado”. Quando se procede à mudança da fralda, após a higiene necessária, pode ser aplicado um creme protector.
  • Nos primeiros dias a urina pode deixar na fralda uma mancha residual cor de tijolo: tal se explica pela excreção de uratos. Este evento é considerado normal, regredindo espontaneamente.
  • No final da primeira semana de vida, pode surgir aumento do volume das glândulas mamárias (Figura 2) e, nos do sexo feminino, uma pequena hemorragia vaginal. Trata-se de manifestações clínicas consideradas normais, explicáveis pela transferência de hormonas da mãe para o recém-nascido, e regredindo espontaneamente, pelo que não está indicado qualquer procedimento.
  • O chamado eritema tóxico (máculas dispersas vermelhas, com um centro mais claro), constitui uma reacção habitual, não necessitando de cuidados especiais.

FIGURA 2. Tumefacção mamária em recém-nascido.

Cuidados no domicílio

  • Em casa, a criança deve ser recebida num ambiente calmo.
  • Todas as pessoas que manuseiam a criança devem praticar de modo sistemático hábitos fundamentais de higiene, designadamente, lavagem frequente das mãos antes e depois do manuseamento da mesma.
  • No local onde estiver o RN (evitando-se aglomerados numerosos), as pessoas não devem obviamente fumar; apesar de o contexto actual ser diverso daquele vivido há anos atrás, a insistência terá cunho pedagógico.
  • Nas saídas de casa a criança não deverá permanecer em locais com grande concentração de pessoas, tais como supermercados ou centros comerciais.
  • É aconselhável a posição de dormir em decúbito dorsal, explicando-se à mãe-família a razão de tal procedimento. Durante o dia, e sob vigilância rigorosa, quando o bebé está vígil, poderá ser colocado por períodos em decúbito ventral a fim de minorar a possibilidade de deformação craniana (plagiocefalia posicional). É o chamado “tummy time” ou período fraccionado permitido de posição em decúbito ventral.
  • O colchão deve ser plano e duro, de modo a não provocar covas, e ajustado aos bordos do berço. Não devem ser utilizados edredão nem almofada, assim como cordões ou fralda para segurar a chupeta.
  • Os irmãos e todas as pessoas que manuseiam a criança (nunca é exagero repetir) devem lavar cuidadosamente as mãos; deverá ser igualmente providenciada a lavagem da face dos irmãos que frequentam a escola ou infantário.
  • As pessoas com doença respiratória devem usar máscara que cubra a boca e o nariz, sempre que contactem com o lactente. As mãos devem ser lavadas antes e depois de colocar a máscara e, sempre, após o assoar.
  • Idem para o caso da mãe a amamentar, a qual pode continuar a amamentação.
  • Entre o 4º e o 6º dia de vida, o RN deve ser transportado ao Centro de Saúde da área de residência para se proceder à colheita de sangue para diagnóstico precoce (teste do pezinho) devendo marcar-se consulta médica entre a 1º e a 2ª semana de vida.
  • O Boletim de Saúde Infantil e Juvenil e o Boletim Individual de Saúde (de Vacinas) devem sempre acompanhar a criança no âmbito de todo e qualquer acto médico e/ou de enfermagem. Deve verificar-se se foi realizado e registado o resultado do rastreio auditivo.

Sinais de perigo

Como complemento do que foi descrito, estando ou não o RN já em casa, salienta-se que os pais devem ser esclarecidos quanto aos sinais considerados de perigo (aspecto geral de “não estar bem” podendo indiciar doença grave) os quais implicam observação por médico. São dados os exemplos mais significantes:

  • Recusa alimentar;
  • Secreções oro-nasais contendo abundantes bolhas de ar;
  • Dificuldade respiratória;
  • Vómitos biliares repetidos;
  • Palidez acentuada;
  • Cianose;
  • Petéquias;
  • Choro intenso;
  • Icterícia surgida nas primeiras 24 horas de vida ou, prolongada, para além de 2 semanas, com especial significado se o lactente não estiver a ser alimentado ao peito;
  • Gemido;
  • Irritabilidade, agitação, tremores espontâneos, convulsões;
  • Hiporreactividade, hipotonia;
  • Hipersudorese quando está a mamar ou a tomar biberão;
  • Perda de peso superior a 10% do peso de nascimento;
  • Febre ou hipotermia;
  • Alterações macroscópicas da urina ou fezes;
  • Distensão abdominal com vómitos e obstipação, etc..

Nota: a ausência ou atraso de eliminação de urina e/ou de mecónio nas primeiras 48 horas constitui sinal anómalo habitualmente detectado pelo médico ou enfermeiro, quando o RN ainda está internado após o parto.

BIBLIOGRAFIA

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EXAME CLÍNICO DO RECÉM-NASCIDO

Objectivos do primeiro exame clínico do RN

O primeiro exame clínico do RN, com especificidades relativamente ao exame clínico do lactente e criança em geral, tem como objectivos fundamentais:

  1. Avaliar a adaptação fetal à vida extra-uterina;
  2. Detectar anomalias congénitas (muitas vezes identificadas ou suspeitadas por exame imagiológico pré-natal);
  3. Avaliar a maturidade física e neurológica.

Tal exame implica a realização de anamnese perinatal (que, na perspectiva de antecipação de cuidados, deverá ser feita idealmente na fase pré-natal ou no pré-parto, à mãe grávida), entrando em conta com os dados obtidos a partir do Boletim da Grávida; este incluirá registos importantes relativos aos exames clínicos no âmbito da vigilância pré-natal (designadamente evolução da altura uterina, dados ecográficos, etc.) e a eventuais procedimentos englobados no conceito de diagnóstico pré-natal.

Anamnese

Os dados da anamnese a registar no processo clínico são sistematizados do seguinte modo:

  • Filiação, idades materna e paterna, morada, dia e hora de nascimento, nº do processo clínico;
  • Antecedentes familiares
    Doenças genéticas, anomalias congénitas, doenças endócrinas, doenças metabólicas, sífilis, tuberculose, infecção por VIH, SIDA, etc.;
  • Antecedentes maternos
    Idade, profissão, situação económico-social (índice de Graffar), consanguinidade, grupos sanguíneos (AB0 e Rh), doenças endócrino-metabólicas (diabetes, hipo ou hipertiroidismo, outras), hábitos de tabaco ou álcool, doenças hematológicas (anemia, púrpura, outras), hipertensão, epilepsia, infecções do grupo TORCHS), etc.;
  • Antecedentes paternos
    Idade, profissão, situação económico-social, estado de saúde, grupos sanguíneos (designadamente se mãe do grupo 0 ou Rh negativo).

Nota importante: a componente social/ambiental dos progenitores ou tutores pode ser avaliada através da chamada escala de Graffar (Consultar Anexos /vol. 3).

 

  • Antecedentes obstétricos
    Gravidezes anteriores (por ex. prematuridade, disfunção placentar, gemelaridade, iso-imunização, morte fetal, tipos de parto, aborto, etc.), drogas administradas durante a gravidez e parto, data do 1º dia da última menstruação, patologia da gravidez (eclâmpsia, síndroma antifosfolípida, hipertensão, lúpus eritematoso sistémico, doença renal crónica, hemorragia do terceiro trimestre, placenta prévia, ameaça de aborto, hospitalizações, etc.), características do parto (duração do trabalho de parto, febre intra-parto, via baixa, fórceps, cesariana, manobras de versão, tempo de ruptura da bolsa de águas, líquido amniótico (límpido, tinto de mecónio, fétido, quantidade- oligo ou polihidrâmnio, etc.), apresentação do RN, peso e aspecto da placenta (em condições de normalidade, cerca de 1/5 a 1/6 do peso do RN, eventuais zonas de enfarte, etc.), anestesia, analgesia, etc.;
  • Interpretação dos dados colhidos
    Determinados dados colhidos através da anamnese poderão ser de grande utilidade no que respeita à detecção antecipada de possíveis problemas:
    • Contacto da grávida com determinadas infecções → possível infecção no RN,
    • Hábitos de fumo com tabaco → baixo peso de nascimento,
    • Abuso de álcool → síndroma alcoólica fetal,
    • Gravidez em adolescente → baixo peso de nascimento e/ou prematuridade,
    • Febre materna ou febre intra-parto → possível infecção no RN,
    • Progressão ponderal na gravidez: deficiente → baixo peso de nascimento; excessivo → diabetes materna, macrossomia fetal,
    • Hipertensão arterial na gravidez → restrição do crescimento intra-uterino,
    • Oligo-âmnio → possível anomalia nefrourológica,
    • Poli-hidrâmnio → possível anomalia do SNC ou do tubo digestivo.

Exame objectivo

Sendo fundamental recordar a importância da prevenção das infecções, cabe chamar a atenção para a obrigatoriedade da lavagem das mãos e antebraços do observador antes da realização do exame objectivo (como os cirurgiões antes da operação); em situações especiais poderá estar indicada a realização do mesmo com luvas esterilizadas (e, eventualmente, de barrete, máscara e óculos de protecção).

No bloco de partos, após o nascimento, conhecendo o índice de Apgar, é realizado um primeiro exame objectivo sumário para avaliação do peso, comprimento, perímetro cefálico, comportamento e vitalidade (choro vigoroso, gemido, etc.), cor da pele (por ex. rosada, pálida, cianótica), actividade motora e postura dos membros (simetria ou assimetria, sendo que toda e qualquer assimetria de postura é anómala), frequência cardíaca/FC (normal:100-160 batimentos/minuto), frequência respiratória/FR (normal: 40-50 ciclos/minuto, índice de Silverman, pressão arterial/PA (em casos especiais), tempo de recoloração capilar da pele detectado por compressão digital na face anterior do tórax (normal até 3 segundos), detecção de anomalias congénitas (por ex. imperfuração anal), verificação dos vasos umbilicais (1 veia e 2 artérias), etc..

O exame objectivo mais pormenorizado e estruturado em alíneas que a seguir se discriminam (exame físico geral e exame físico por regiões), poderá ser realizado nas 2 a 4 horas a seguir ao parto, idealmente na presença dos pais; deverá aproveitar-se este acto médico para explicar os procedimentos realizados e esclarecer eventuais dúvidas surgidas.

A propósito da descrição dos aspectos semiológicos é abordada, nalgumas situações, a respectiva interpretação etiopatogénica.

Inspecção geral

Deve ser realizada antes de se proceder ao exame objectivo sistematizado por regiões. O RN deve estar sem roupa, numa marquesa própria, sob fonte de calor.

*Postura

No RN de termo verifica-se: cabeça em rotação lateral ou na linha média (região occipital assente no plano do berço); flexão simétrica dos segmentos dos membros superiores (antebraço sobre o braço e braço sobre o tronco) e semiflexão, também simétrica dos segmentos dos membros inferiores; dedos flectidos sobre as mãos; durante o choro executa movimentos dos quatro membros e da região cérvico-cefálica. (Figura 1)

FIGURA 1. Postura de RN de termo. (URN-HDE)

No RN pré-termo, os membros superiores e inferiores assumem posição em extensão pela hipotonia compatível com a imaturidade (Figura 2); à medida que avança a maturidade, a tendência para a flexão dos membros verifica-se no sentido membros inferiores (os primeiros a ficarem flectidos) → membros superiores (flexão em idade gestacional mais avançada).

Nos casos de fractura de clavícula ou de lesão óssea por sífilis congénita pode haver hipomobilidade do membro do lado afectado (superior na primeira hipótese, superior ou inferior na segunda hipótese).

Na apresentação de nádegas, os membros inferiores podem evidenciar uma postura assimétrica (Figura 3); nas apresentações de face, hiperextensão da cabeça; na paralisia do plexo braquial, extensão, pronação e rotação interna dum membro superior unilateralmente ou mão pendente unilateral (exemplos de assimetrias). Ou seja, e reiterando, toda e qualquer assimetria – estática ou de movimento – é considerada anómala.

*Fácies

Deve verificar-se a simetria da face (assimetria do sulco nasogeniano menos marcado, comissura labial mais aproximada da linha média e pálpebra superior do mesmo lado menos encerrada, sugestivos de paralisia facial periférica), fácies sui generis como na síndroma de Down, na síndroma de Edwards, fácies pletórica de “lua cheia” como nos RN de mãe diabética, fácies com retrognatismo, como na síndroma de Pierre Robin, fácies de bebé colódio, etc.. (Figura 4)

Um aspecto designado habitualmente por máscara equimótica (cor azulada da fronte e face como resultado da confluência de petéquias e pequenas sufusões) resulta de hipertensão no território da veia cava superior, em geral relacionável com circular do cordão apertada; poderá também ocorrer no contexto de parto precipitado, com período expulsivo rápido com consequente compressão e descompressão torácica bruscas, originando hipertensão no território da veia cava superior. (ver capítulo sobre lesões traumáticas)

*Choro

No RN de termo saudável, o choro é vigoroso, de tonalidade variável; a verificação de choro fraco, acompanhado ou entrecortado de gemido e/ou de dificuldade respiratória, agudo e monótono (o chamado “grito cerebral”) traduz situação anómala de etiopatogénese diversa. O chamado “choro miado” ou símile miar do gato é típico da “síndroma do miar do gato” ou cri du chat.

*Pele

No que respeita à textura, ela é muito variável (desde brilhante, lisa, gelatinosa no RN pré-termo a áspera, descamativa no RN pós-termo ou com antecedentes de disfunção placentar). Quanto à cor, pode evidenciar palidez (por anemia), cor vermelha viva ou aspecto pletórico, típica das situações de policitémia/ hiperviscosidade, ou icterícia (seguramente patológica se evidenciada precocemente -1as 24 horas de vida).

A cianose das extremidades (acrocianose ou periférica), traduzindo instabilidade vasomotora ou menor velocidade circulatória nas mãos e pés, provocada pelo frio, é muito frequente (sobretudo nos membros inferiores); regride geralmente com o aquecimento. A cianose dita central é notória ao nível da língua, leitos ungueais e lobos da orelha. O aspecto de pele marmoreada pode traduzir hipovolémia ou acção do frio.

As equimoses de etiopatogénese diversa, poderão traduzir fragilidade capilar, mais frequente no RN pré-termo; a localização depende da apresentação fetal.

A vernix caseosa é tanto mais abundante quanto menor a idade gestacional; nos RN de termo é observada sobretudo nas pregas de flexão.

Trata-se de matéria gorda de consistência saponácea que cobre parcialmente a pele do feto e RN; formada por sebo e células epiteliais descamadas e por pelos da penugem, tem como funções fundamentais a protecção da pele e o isolamento térmico.

FIGURA 2. Postura de RN pré-termo. (URN-HDE)

FIGURA 3. Postura assimétrica dos membros inferiores em RN com apresentação de nádegas/parto pélvico. (URN-HDE)

FIGURA 4. Fácies de ictiose (bebé colódio). (URN-HDE)

A pele (assim como faneras e cordão umbilical) poderão estar cobertos por mecónio eliminado por surtos durante a gestação como resultado de episódios de hipóxia.

Outros achados detectáveis à simples inspecção:

  • Hemangioma capilar, angioma plano ou nevus telangiectásico
    Este achado, que regride em geral durante o primeiro ano de vida, observa-se mais frequentemente na fronte, pálpebras superiores e nuca;
    A verificação de angioma extenso e verrucoso em segmento cefálico, no território do trigémio (hemifronte/face) pode fazer parte da síndroma de Sturge-Weber; pode verificar-se associação a angioma das leptomeninges;
  • Hemangioma cavernoso
    Nesta situação o aspecto do angioma é uma massa arredondada, firme, com cor de vinho ou arroxeada-avermelhada, simile framboesa, de localização diversa; em geral regride até aos 2-3 anos no sentido centrífugo.
    Na síndroma de Kasabach-Merritt existe associação de grande hemangioma a trombocitopenia;
  • Eritema tóxico ou tóxico-alérgico
    Consiste em lesões eritematopapulosas com centro mais claro ou amarelo, predominando no tronco. Detectadas no 2º-3º dias de vida, verifica-se regressão espontânea até aos 7-10 dias;
  • Milium sebáceo
    Por acção dos estrogénios maternos poderão surgir pequenas granulações com o tamanho de cabeça de alfinete, esbranquiçadas, formadas por pequenos quistos intra-epidérmicos localizados predominantemente no nariz e mento. Trata-se duma situação transitória (semanas) e sem significado patológico, resultante da dilatação dos canais sudoríparos ou dos folículos pilosos;
  • Mancha mongólica
    É uma mácula de cor azul-esverdeada, mais frequente e de maior dimensão na raça preta, desaparecendo até cerca dos 3-5 anos. Localiza-se mais tipicamente nas regiões lombossagrada, glútea, podendo, nalguns casos, atingir a região dorsal. A etiopatogénese relaciona-se com imaturidade da pele, da migração dos melanócitos e com factores raciais; (Figura 5)
  • Lanugo
    O lanugo é uma “penugem” ou conjunto de pelos finos que recobrem o corpo, mais frequentemente e com maior extensão nos RN pré-termo;
  • Fenómeno “arlequim”
    Trata-se duma alteração vasomotora transitória (minutos) e curiosa: hemicorpo rosado e hemicorpo pálido, sendo que existe uma linha recta de separação notória a meio do tronco, como que traçada a régua;

FIGURA 5. Mancha mongólica de grandes dimensões: nádegas e região dorsolombar. (URN-HDE)

  • Pênfigo palmo-plantar
    Corresponde a lesões bolhosas cutâneas contendo líquido seroso relacionáveis com sífilis congénita (um dos tipos de lesão cutâneo-mucosa de etiologia sifilítica, ou sifílide);
  • Pústulas com rubor circundante (foliculite), frequentemente de etiologia estafilocócica.

Parâmetros vitais e somatometria

Já nos referimos aos parâmetros vitais ao abordar o exame imediato do RN no bloco de partos.

No que respeita à somatometria (parâmetros peso, comprimento e perímetro cefálico), cabe referir:

  1. Noções práticas, salientando as seguintes correspondências: a cabeça+tronco correspondem a 2/3 do comprimento do RN, enquanto os membros inferiores, a 1/3 do mesmo comprimento; por sua vez, o perímetro cefálico corresponde ao comprimento “sentado”, ou seja, ao segmento superior;
  2. O peso, comprimento e perímetro cefálico devem ser relacionados com a idade gestacional através da consulta das chamadas curvas de crescimento intra-uterino, precisamente para detectar eventuais desvios do crescimento fetal, o que tem implicações na avaliação do risco do RN. (Figura 6)

FIGURA 6. RN com macrocefalia por hidrocefalia; perímetro cefálico > percentil 90. (URN-HDE)

Cabeça

*Crânio

De acordo com a semiologia clínica clássica, deverá proceder-se à inspecção, palpação e percussão do crânio (e eventualmente auscultação dependendo do contexto clínico).

Em função do modo de apresentação fetal poderá detectar-se assimetrias transitórias através da simples inspecção, assim como sinais de lesões traumáticas.

Através da palpação identifica-se:

  • Fontanela anterior (em losango, com diagonais ~ 2,5 x 2 cm) e a fontanela posterior (com < 0,5 cm em condições de normalidade); fontanela procidente e hipertensa sugere hipertensão intracraniana; fontanela deprimida é detectada em caso de desidratação; fontanela posterior de dimensões > 0,5 cm implica investigar possível hipotiroidismo. De salientar que o exame das fontanelas deverá ser sempre enquadrado na dinâmica do crescimento em geral, e sempre conjugado com o perímetro cefálico, sendo que dimensões muito reduzidas da fontanela anterior poderão sugerir encerramento precoce das suturas;
  • Suturas
    Investiga-se, quer cavalgamento, quer diástase ou afastamento, que constituem sinais anómalos.
  • Tumefacções
    As tumefacções podem ser englobadas em dois tipos:
    • Da linha média (devendo ser consideradas até prova em contrário como anomalias congénitas por defeito de encerramento do tubo neural (por ex. encefalocele, por vezes de pequenas dimensões),
    • Não obedecendo a noção de simetria (bossa serossanguínea e céfalo-hematoma).

A chamada bossa serossanguínea é uma tumefacção mole que ultrapassa o limite das suturas, notória no pós-parto imediato como resultado do edema de compressão do couro cabeludo (zona de apresentação) regredindo nos dias seguintes.

O chamado céfalo-hematoma é uma tumefacção ovóide, não necessariamente detectável no pós-parto imediato, aumentando de dimensões (ao contrário da bossa serossanguínea) e limitada às suturas (também ao contrário do que acontece com a bossa serossanguínea); trata-se duma colecção hemática subperióstica de consistência firme com sensação de flutuação; respeita as suturas, porque o periósteo é “independente” de osso para osso. Sendo colecção hemática subperióstica, se a mesma surgir atipicamente no pós-parto imediato, ela poderá constituir um epifenómeno de fractura óssea no contexto de parto laborioso e traumático. Existe tendência para calcificação/endurecimento da tumefacção, que se torna imperceptível nos meses ou anos seguintes à medida que o crânio cresce. (Figura 7)

A auscultação do crânio poderá detectar sopro, situação compatível com fístula arteriovenosa intracraniana.

*Face

Ao nível da face, a pesquisa de sinais incide sobre os olhos, nariz, orelhas, boca e região mandibular.

FIGURA 7. Tumefacção da cabeça: A – Bossa serossanguínea; B – Céfalo-hematoma. (URN-HDE)

Olhos
Pálpebras

As pálpebras permanecem na maior parte do tempo encerradas. Na inspecção das pálpebras deve analisar-se a inclinação das respectivas fendas (eixo simile-horizontal, mongolóide ou em V, e antimongolóide ou em “A”) assim como os respectivos movimentos; ptose (em relação com paralisia do 3º par craniano ou doença miopática; não encerramento (em relação com paralisia do 7º par), etc.; edema (em relação com a apresentação no parto).

Pupilas

Em situação de normalidade são de dimensões iguais reagindo à luz.

A presença de pupila “branca”, mais notória quando a pupila está mais dilatada, com a designação de leucocória, significa que existe processo patológico posterior à pupila, eventualmente grave, localizado no cristalino, vítreo ou retina. Pode tratar-se, com maior frequência, de catarata, retinoblastoma, ou retinopatia da prematuridade.

Conjuntivas

As hemorragias subconjuntivais, transitórias e raras, resultam de hipertensão no território da veia cava superior durante o parto.

Córnea

A verificação de córnea aumentada e opaca impedindo a visualização da íris é compatível com situação de glaucoma congénito.

Cristalino

A verificação de opacidade do cristalino (catarata) comprova-se incidindo foco luminoso perpendicularmente à íris, através da pupila (utilizando oftalmoscópio para melhor avaliação): em vez da visualização do fundo “avermelhado normal” [na gíria, o chamado REFLEXO VERMELHO NORMAL], obtém-se um fundo “branco” devido ao obstáculo da opacidade do cristalino interposto entre o cristalino e o fundo ocular. (De salientar que a noção semiológica de pupila de “cor branca” ou leucocória pode traduzir igualmente patologia do segmento posterior do olho, nomeadamente retina, exemplificando-se com o retinoblastoma).

Nota importante: alteração do Reflexo Vermelho com ou sem estrabismo, e ou leucocória, e ou antecedentes familiares de retinoblastoma implicam observação urgente por oftalmologista.
Esclerótica

De cor branca no RN de termo, a cor é azul no RN pré-termo e no RN com osteogénese imperfeita.

Nariz

Ao nível do nariz deve pesquisar-se essencialmente a forma (as anomalias de forma podem relacionar-se com defeitos intrínsecos do desenvolvimento, ou com deformações por pressão extrínseca relacionada com a posição in utero ou o próprio parto) e a permeabilidade das fossas nasais e dos coanos.

A obstrução nasal acompanhada de exsudado mucopurulento ou mucopiossanguinolento unilateral ou bilateral pode constituir sinal de sífilis congénita precoce.

A atrésia uni ou bilateral dos coanos pode suspeitar-se em caso de cianose que diminui com o choro; em tal circunstância deve introduzir-se uma sonda de polietileno para confirmação ou exclusão.

Orelhas

Os aspectos essenciais a pesquisar dizem respeito à forma, dimensões, implantação, obstrução do meato externo, presença de fístulas retroauriculares e apêndices pré-auriculares.

Considera-se implantação baixa se a hélice* se localizar abaixo duma linha imaginária horizontal que une as duas comissuras palpebrais externas. (Figura 8)

FIGURA 8. Implantação das orelhas. Tracejado: implantação normal; a cheio: implantação baixa. (consultar texto)

*Hélice da orelha (em inglês ou francês: helix) – prega saliente, em semicírculo, que rodeia o pavilhão da orelha, desde a concha à parte superior do lóbulo.

 

As alterações de forma e posição estão frequentemente associadas a anomalias renais, do primeiro arco branquial e a cromossomopatias.

Boca e região mandibular

No exame objectivo da boca deve averiguar-se sobre os seguintes aspectos: lábios (fenda labial ou lábio leporino? – Capítulo sobre anomalias cromossómicas – Figura 4 -, assimetria da comissura labial? por vezes só notória quando o RN chora, e relacionável com paralisia do facial), filtro (longo, na fetopatia alcoólica, curto na síndroma de Di George), retrognatismo por hipoplasia do maxilar inferior (um componente da síndroma de Pierre Robin, por ex.), orofaringe, palato duro e mole (fenda palatina?, úvula bífida? desvio da úvula?), tumefacções da mucosa e gengivas (quistos de retenção gengival? dente congénito? – por vezes associado a síndroma de Ellis van Creveld, implicando extracção pelo risco de aspiração para a via aérea), língua (macroglóssia sugerindo hipotiroidismo, síndroma de Beckwith-Wiedemann, síndroma de Down, glicogenose do tipo II (doença de Pompe, etc.).

A presença de secreções arejadas/saliva abundantes reaparecendo após aspiração pode levantar a suspeita de atrésia do esófago, designadamente havendo antecedentes de poli-hidrâmnio e sinais ecográficos pré-natais sugerindo obstrução do tubo digestivo superior.

A presença de exsudado branco semelhante a “leite coagulado” sobre as gengivas, face interna da região geniana e língua sugere infecção por Candida (monilíase oral ou “sapinhos”); trata-se de situação evidenciada ao cabo de alguns dias após o nascimento.

As chamadas pérolas de Epstein (alterações benignas e irrelevantes) são pequenas tumefacções do tamanho de cabeça de alfinete (correspondendo a quistos de inclusão, com acumulação de células epiteliais), por vezes agrupadas em número de 2-3, na linha média, tipicamente na transição do palato duro com o palato mole; regridem em semanas. (Figura 9)

As chamadas aftas de Bednar (evidenciadas após a primeira semana de vida) são úlceras localizadas bilateralmente ao nível do palato mole e da procidência das apófises pterigoideias; trata-se de lesões traumáticas raras relacionadas possivelmente com o fenómeno de sucção.

A rânula é uma tumefacção quística sublingual secundária a obstrução do canal excretor da glândula salivar sublingual.

FIGURA 9. Pérolas de Epstein. (URN-HDE)

Pescoço

Como característica fisiológica do RN, o pescoço é curto, sendo que, em situações anómalas como a síndroma de Klippel-Feilé excessivamente curto, o que se explica pela fusão de vértebras cervicais.

Através da inspecção pode observa-se o chamado pterygium colli ou prega bilateral do pescoço, simétrica, muito saliente, fazendo “ponte” entre a apófise mastoideia e os ombros.

Ao longo do bordo anterior do esternocleidomastoideu há que pesquisar tumefacções quísticas e fístulas branquiais. Por vezes detecta-se (somente após a 2ª-3ª semana) uma tumefacção esferóide dura, com cerca de 1 a 3 cm de diâmetro, ao longo de um dos feixes do referido músculo a qual corresponde a hematoma (surgido no contexto de traumatismo de nascimento); a retracção e encurtamento consequentes do músculo poderão originar torcicolo (torção do pescoço com inclinação da cabeça).

Na linha média deve igualmente pesquisar-se a presença de quisto ou fístula do canal tiroglosso, assim como de tiroideia aumentada de volume (bócio congénito).

Deve proceder-se igualmente à auscultação da base do pescoço.

Tórax

Podem ser pesquisados os seguintes aspectos: forma cilíndrica, variações morfológicas (em funil, em quilha, com o apêndice xifoideu saliente), tumores (Figura 10), glândulas mamárias tumefactas – não ocorrendo em todos os RN, em geral a partir do final da 1ª semana com regressão ulterior); deve igualmente verificar-se a distância intermamilar: mamilos muito lateralizados poderão enquadrar-se em síndromas malformativas.

FIGURA 10. Linfangioma quístico da parede do tórax e membro superior esquerdo. (URN-HDE; cortesia do Dr. J. Azevedo Coutinho)

O tipo de respiração é abdominal ou tóraco-abdominal, sendo frequentes variações da frequência e do ritmo respiratórios (e pausas no RN pré-termo).

Deve proceder-se à palpação das clavículas, sendo que qualquer tumefacção e/ou crepitação constitui sinal de fractura; nos casos em que estes sinais não são detectados, poderá ser a própria mãe, após a alta da maternidade, a detectar pequena tumefacção ovóide clavicular traduzindo calo de fractura anterior.

O exame do aparelho respiratório compreende essencialmente a auscultação: murmúrio vesicular audível simétrica ou assimetricamente, ruídos adventícios, etc..

O exame do aparelho cardiovascular compreende os seguintes passos:

  • Palpação do choque da ponta (no RN de termo, no 5º EIE e linha médio-clavicular; desvios traduzem situações anómalas (por ex. dextrocárdia, hérnia diafragmática esquerda, etc.); precórdio hiperdinâmico (procidência intermitente da região precordial coincidindo com a sístole/diástole do miocárdio) ou choque da ponta muito notório, podem constituir sinais de ductus arteriosus permeável;
  • Auscultação dos focos cardíacos convencionais, base do pescoço e dorso; sopro auscultado no dorso deve ser considerado anómalo; sopro mais audível na base do pescoço é compatível com ductos arteriosus permeável; em RN de termo, sopro auscultado no 3º ou 4º EIE ao longo do bordo esternal poderá ser considerado fisiológico, se isolado; a ausência de sopros não exclui cardiopatia;
  • Palpação de pulsos periféricos em regiões extratorácicas (femoral, umeral, radial, pedioso): trata-se dum procedimento fundamental que faz parte do exame cardiovascular; pulsos amplos em RN pré-termo sugerem ductus arteriosus permeável; pulsos femorais palpáveis pouco amplos ou ausentes, ou diferença, quanto à amplitude, dos pulsos nos membros superiores e inferiores sugerem coarctação da aorta; a diminuição generalizada da amplitude dos pulsos sugere hipotensão arterial ou hipovolémia;
  • Determinação da pressão arterial pelo método de doppler: valores médios no RN de termo: sistólica → 80 ± 15 mmHg; diastólica → 46 ± 15 mmHg; a ausência ou diminuição da amplitude dos pulsos femorais implica a necessidade de determinação da pressão arterial, não só nos membros superiores, mas também nos inferiores; hipertensão arterial (definida como valor de pressão arterial igual ou superior ao do percentil 95 para a idade) poderá relacionar-se com doença nefro-urológica.

Considera-se HTA no RN de termo a verificação de pressão sistólica > 100 mmHg (0-7 dias) e > 104 mmHg (8-28 dias).

Abdómen

Através da inspecção pode comprovar-se que o abdómen é globoso expandindo-se em coincidência com a inspiração de modo síncrono (situação normal) ou assíncrono (situação anormal relacionada com dificuldade respiratória); é menos globoso nos casos de restrição de crescimento intra-uterino.

A distensão abdominal importante sugere processos obstrutivos do tubo digestivo, massas abdominais, infecção sistémica, hipomagnesémia, etc.. Abdómen escavado ou menos globoso pode sugerir hérnia diafragmática de Bochdalek.

Outros aspectos que são evidentes à inspecção da parede abdominal incluem: onfalocele (exteriorização das vísceras cobertas por saco peritoneal), gastrosquise (exteriorização das vísceras não cobertas por saco peritoneal) e o coto umbilical; relativamente a este último, constitui procedimento sistemático a contagem dos vasos: duas artérias e uma veia, sendo que a verificação de artéria umbilical única poderá estar associada a anomalias cardiovasculares e/ou nefro-urológicas (associação pouco sensível e pouco específica). (Figura 11)

FIGURA 11. Coto umbilical evidenciando anomalia: artéria única (vaso de menor calibre). (URN-HDE)

Na observação do RN no decurso da primeira semana ou mais tarde, há que inspeccionar a base do cordão (ou a região umbilical após o cordão se ter destacado) para detecção de edema e outros sinais inflamatórios como exsudado eventualmente purulento (sinais de onfalite); por vezes, após se ter destacado, detecta-se ao nível da cicatriz umbilical uma pequena massa esferóide, do tamanho de grão de arroz ou de pequena ervilha, de cor vermelha brilhante constituída por tecido granulomatoso (granuloma).

No que respeita à palpação, salienta-se que o fígado é uma estrutura normalmente palpável (cerca de 2 cm abaixo do rebordo costal direito); em condições de normalidade o baço raramente é palpável; nos RN pré-termo os rins também podem ser palpáveis.

Salienta-se que mais de metade das massas abdominais anómalas no RN tem origem no rim.

Pela inspecção e palpação do hipogastro: a verificação de procidência ou distensão localizada na linha média, de superfície lisa e sob tensão relaciona-se, em geral, com distensão da bexiga (o chamado “globo vesical”); no sexo feminino a distensão pode relacionar-se com hidrometrocolpos.

Região anorrectal

Através da inspecção da região anal deve verificar-se a posição do ânus (desvios da linha média ou para diante em relação com possíveis lesões tumorais vizinhas), o pregueamento radiário normal (pregas da mucosa) testemunhando, em princípio, esfíncter anal funcionante; em situações de defeitos do tubo neural (spina bifida) pode não existir tal pregueamento, o que poderá traduzir esfíncter incontinente.

A eliminação de mecónio por via rectal traduz, em princípio, permeabilidade anorrectal; se tal não for comprovado, deverá introduzir-se sonda rectal para pesquisa da respectiva permeabilidade (progressão da sonda sem dificuldade, saindo, em geral, com restos de mecónio aderente).

Há que pesquisar igualmente fístulas, através das quais poderá ser eliminado mecónio (rectovaginal, recto-uretral, rectovestibular, perineal, etc.).

Região inguinal e órgãos genitais externos

Na região inguinoscrotal há que pesquisar:

  • Hérnia inguinal: saliência que aumenta de volume durante o choro, tosse e esforço, reduzindo-se quando se exerce sobre ela pressão (tumefacção redutível); é mais comum no sexo masculino e no RN pré-termo; quando se estrangula, perde estas características: torna-se imóvel, irredutível, dolorosa acompanhando-se de vómitos.
    Havendo informação por parte da mãe sobre este sinal anómalo não observado pelo examinador (pressupondo o exame realizado, não no pós-parto, mas no período neonatal tardio ou no lactente), torna-se necessário examinar o canal inguinal: com o dedo mínimo invagina-se a pele do escroto e procura-se atingir o anel inguinal interno; se o RN chorar, sente-se o impulso do saco herniário na ponta do dedo. Pode estar associada a hidrocele;
  • Hidrocele (acumulação de líquido seroso na túnica vaginal dos testículos ou no tecido que envolve o cordão espermático): manifesta-se no sexo masculino por bolsa escrotal aumentada de volume e tumefacção no canal inguinal, redonda ou levemente alongada, dura, irredutível e imóvel, que se deixa transiluminar (translúcida à transiluminação); a irredutibilidade e indiferença ao choro e esforço distinguem-na da hérnia inguinal; a ausência de dor e vómitos distinguem-na da hérnia inguinal estrangulada. (No sexo feminino tal anomalia corresponde à hidrocele do canal de Nuck);
  • Testículos: no RN de termo os testículos localizam-se nas bolsas escrotais, sendo que no RN pré-termo é frequente a situação designada por “escroto vazio” (a migração dos testículos no sentido abdómen → “fundo” do escroto” completa-se, em geral, nas 8 semanas que precedem o termo da gravidez);
  • Ovário encarcerado em saco herniário: no sexo feminino pode verificar-se tumefacção inguinal de cerca de 1 cm de diâmetro, que se move livremente, sem aderir à pele nem aos tecidos profundos.

No que respeita aos órgãos genitais externos do sexo masculino há que pesquisar:

  • Pénis: forma e dimensão; no chamado micropénis – em geral associado a outras anomalias – o comprimento é < 2 cm. A fimose (estreitamento do orifício do prepúcio) é fisiológica;
  • Posição do orifício externo da uretra (meato urinário) que, em situação de normalidade, está situado a meio da glande, no alinhamento do eixo do pénis; se o meato se localizar na face inferior do pénis, a anomalia designa-se hipospádia; se na face superior, epispádia (por vezes associada a extrofia da bexiga);
  • Jacto urinário: a emissão de urina em situações de normalidade verifica-se em “jacto forte”; a situação de gotejo ou de jacto fraco está invariavelmente associada a obstrução da uretra (nesta idade relacionável com anomalia congénita que implica resolução urgente – válvulas da uretra posterior).

Quanto aos órgãos genitais externos no sexo feminino, há que pesquisar:

  • Grandes e pequenos lábios: no RN de termo, os grandes lábios recobrem perfeitamente os pequenos lábios; no pré-termo, em grau variável em função da idade gestacional, os pequenos lábios ficam “a descoberto”;
  • Clítoris: verificação de possível hipertrofia sugestiva de síndroma adrenogenital;
  • Hímen: verificação de possível imperfuração que poderá originar acumulação de secreções a montante – na vagina (hidrocolpos), ou no útero (hidrometrocolpos);
  • Secreção mucóide ou fluxo hemorrágico (relacionável com influência dos estrogénios maternos).

Nota: por vezes há coexistência de caracteres de ambos os sexos (ambiguidade sexual), implicando a realização de exames complementares.

Coluna vertebral

Com o RN em decúbito ventral deve examinar-se o dorso e o trajecto da coluna em toda a sua extensão, pesquisando tumores ou depressões. Estes achados estão relacionados com neoplasias ou com defeitos de encerramento do tubo neural (fenda ou orifício originando bifidez da “espinha dorsal” ou spina bifida).

Muitos defeitos de encerramento do canal medular não são acompanhados de hérnia das meninges através dos mesmos: esta situação é designada por spina bifida oculta (coberta por pele e tecidos subjacentes e, por isso, não detectada à inspecção); pode ser suspeitada se existir depressão da pele a esse nível.

Sendo a região sacrococcígea a mais frequentemente afectada, cabe então referir os aspectos a pesquisar:

  • Depressão infundibuliforme – fosseta sacrococcígea – que pode terminar em fundo de saco ou estender-se, através de comunicação estreita ou seio pilonidal, até ao canal raquidiano;
  • Tumefacções ou massas ovóides, ulceradas ou não, (da linha média) relacionáveis com meningocele (hérnia das meninges através de fenda na coluna vertebral), ou mielomeningocele (hérnia das meninges e medula-espinhal com nervos e vasos).
    Ao nível do dorso e região sacrococcígea poderão ser também detectados tumores:
  • Teratoma sacrococcígeo: massa quística mais ou menos volumosa que pode chegar a exceder as dimensões da cabeça e ultrapassar a região sacrococcígea; a respectiva palpação evidencia zonas de consistência diversa (dura, mole, pétrea/ calcificada, etc.);
  • Outros tumores (hamartoma, ependimoma, neurofibroma, ganglioneuroma,

Membros

Os membros do RN são relativamente curtos em comparação com outras idades, sobretudo os inferiores; este aspecto é mais marcado no RN pré-termo. (ver atrás – Inspecção geral)

São dados característicos: mãos curtas e largas, curvatura tibial fisiológica, e hiperflexão plantar dos pés (pé talus calcaneus).

Os aspectos a pesquisar são:

  • Posição simétrica ou assimétrica;
  • Motilidade espontânea e passiva;
  • Defeitos congénitos (por ex. sindactilia (fusão de dedos), polidactilia (dedos supranumerários), ectromelia (paragem de desenvolvimento de membro, etc.); (Figura 12)
  • Nos membros inferiores, deformações em geral ligeiras, redutíveis ou não permanentes, e relacionáveis com má posição intra-uterina: metatarsos varus ou antepé varo (desvio do primeiro metatársico, em adução, relativamente ao eixo do pé – apoio no bordo externo), pé talus (apoio no calcanhar) e pé valgus (apoio no bordo interno);
  • O chamado pé boto equinovarus (equino ou com apoio na ponta do pé + varus ou com apoio no bordo externo), não redutível, é uma situação de potencial gravidade implicando intervenção cruenta. (A designação “boto” significa disforme, deformado);
  • Nos membros superiores podem ser observadas outras anomalias, tais como mão bota com encurtamento do membro por agenésia ou hipoplasia do rádio e desvio axial da mão e antebraço;
  • Pesquisa dos movimentos articulares dos membros: limitada na artrogripose congénita;
  • Detecção obrigatória de displasia da anca através da manobra de Ortolani descrita na Parte sobre Ortopedia.

FIGURA 12. Síndroma de bridas amnióticas. Amputação intrauterina do pé direito e constrição no 1/3 inferior da coxa direita. (URN-HDE)

Sistema nervoso

O comportamento do RN é fundamentalmente condicionado pela imaturidade do sistema nervoso (mielinização incompleta das fibras medulares, sobretudo do feixe piramidal, e incompleta diferenciação do córtex cerebral). Não existindo motilidade voluntária, mas sim actividade reflexa como manifestação de automatismo medular, o RN comporta-se, pois, como ser mesencefálico.

O exame neurológico sumário do RN, idealmente, deverá ser realizado cerca de 1-2 horas após a refeição (tentando evitar o choro excessivo ou a sonolência pós-prandial imediata, ruído ambiental excessivo, luz muito intensa, manipulação excessiva, etc.) e após as 12 a 24 horas de vida (tendo em conta a possível interferência de factores relacionados com o trauma do nascimento).

O mesmo integra a avaliação dos seguintes parâmetros: – atitude; – comportamento e actividade motora espontânea; – tono e força musculares; – reflexos; – pares cranianos.

Importa, por fim, detectar um conjunto de sinais que apontam para patologia do sistema nervoso obrigando a vigilância e eventual intervenção.

Atitude

No respeitante à atitude no RN de termo, verifica-se que: a cabeça está apoiada sobre a região occipital, mais ou menos rodada; membros superiores e inferiores com os respectivos segmentos flectidos simetricamente (antebraços sobre os braços, e braços sobre o tronco; pernas sobre as coxas, e coxas sobre o abdómen).

Em decúbito ventral mantém-se idêntica postura dos membros em relação ao tronco.

Actividade motora espontânea e comportamento

No RN de termo verifica-se: movimentos de rotação da cabeça; em decúbito dorsal, movimentos de flexão e extensão dos membros superiores e inferiores; em decúbito ventral, movimentos atrás descritos mais frequentes nos membros inferiores; em ambos os decúbitos, actividade do tronco nula.

O comportamento é classicamente avaliado em função dos estádios alternantes de vigília e sono, integrando essencialmente os seguintes parâmetros: o choro, os movimentos respiratórios e a posição das pálpebras:

  1. Respiração regular, pálpebras encerradas, ausência de movimentos espontâneos;
  2. Respiração irregular, pálpebras encerradas, movimentos espontâneos escassos;
  3. Pálpebras abertas, ausência de movimentos espontâneos;
  4. Pálpebras abertas, movimentos espontâneos frequentes, choro ausente;
  5. Pálpebras abertas ou fechadas, movimentos espontâneos muito frequentes, choro.

De referir que a não alternância de estádios ao longo do dia ou persistência de determinado estádio pode constituir sinal anómalo.

Tono e força musculares

Estes parâmetros avaliam-se das seguintes manobras:

  • O tono passivo, responsável pela postura, pode avaliar-se pela resistência aos movimentos passivos e pelo grau de alongamento muscular máximo.
    a) Resistência aos movimentos passivos
    Obtém-se informação “sacundindo” – com a precaução indispensável – uma extremidade; isto é, provocando movimentos oscilatórios de “vaivém” segurando na extremidade distal do membro superior (antebraço) ou inferior (perna) e verificando concomitantemente a amplitude de oscilação (balanceio) da mão ou do pé (maior amplitude → menor tono).
    Outro modo de pesquisar a passividade, com o RN em decúbito dorsal, é, ao nível do membro superior, levantar o membro superior e observar a velocidade da queda (maior velocidade → menor tono).
    b) Alongamento muscular máximo
    Trata-se de avaliar o grau de alongamento máximo que o músculo pode sofrer quando se afastam os seus pontos de inserção. É imprimido lentamente movimento passivo tentando a extensão dos segmentos dum membro em flexão até se verificar resistência (por exemplo extensão do joelho, determinando o ângulo popliteu com transferidor; ou extensão do cotovelo, determinado o ângulo antebraço – braço ao nível do sangradoiro (menor ângulo → maior tono).
  • O tono activo pode avaliar-se através de duas manobras:
    a) Manobra de puxar o tronco para diante e para trás
    Estando o RN em posição de decúbito dorsal, o mesmo é pegado pelo observador segurando-lhe os punhos, e puxado para passar da posição supina à posição de sentado.
    No RN de termo em situação de normalidade do tono verifica-se, uma vez obtida a posição vertical do tronco: alinhamento da cabeça com o tronco (os músculos flexores do pescoço “seguram” com relativa instabilidade a cabeça na posição vertical) e flexão dos joelhos e dos cotovelos.
    Considerando, na região cervicocefálica, os músculos flexores e extensores, se o tronco for reclinado demasiadamente para a frente, a cabeça por acção da gravidade acabará por acompanhar o tronco (mais rapidamente se existir hipotonia); reclinando depois o tronco para trás (manobra inversa) até ± 45º em relação ao plano horizontal, a cabeça “cairá para trás” por acção da gravidade (mais rapidamente se existir hipotonia).
    b) Manobra de suspensão ventral
    O RN é suspenso em decúbito ventral com a mão do observador abarcando o tronco; o objectivo é avaliar o tono do pescoço, tronco e extremidades. No RN de termo sem anomalia do tono verifica-se: a cabeça mantém-se no plano horizontal do tronco “contra a gravidade” com flexão dos membros superiores e inferiores.
Reflexos

Os reflexos primitivos ou arcaicos podem ser obtidos a partir das 28-30 semanas, sendo que a sua expressão depende do tono activo. Os mais frequentemente pesquisados são:

a) Reflexo de Moro (ou do abraço)
Pode ser obtido com diversos estímulos. Por exemplo, estando o RN em posição supina e segurado com a mão e antebraço do examinador, e sendo a cabeça suportada pela mão do lado oposto, largando esta mão – o que origina “queda” ou movimento da cabeça para trás e estimulação do labirinto – verifica-se num primeiro tempo extensão do tronco, extensão dos dedos das mãos, extensão e abdução dos membros superiores, seguidas, num segundo tempo, de flexão do tronco, flexão e adução dos membros superiores e flexão dos dedos das mãos, como que em acto de “abraçar”. (Figura 13)
Igualmente, estando o RN em decúbito supino, mas sobre um plano horizontal, um estímulo sonoro forte (bater com as mãos) ou luminoso intenso, origina idêntica resposta.
Este reflexo pode manter-se até cerca dos 4 meses.
Por vezes, a resposta não é completa nem exuberante, o que pode estar em relação com prematuridade ou o estádio de sono-vigília. A assimetria de resposta aponta para lesão do plexo braquial ou para fractura da clavícula.

FIGURA 13. Reflexo de Moro. (URN-HDE)

b) Reflexo tónico do pescoço
Obtém-se rodando a cabeça; a resposta a este estímulo origina extensão dos membros do lado para onde se roda a cabeça e flexão dos do lado oposto, como que em posição de “esgrimista”. Este reflexo pode manter-se até cerca dos 4 meses.

c) Reflexo de preensão
Obtém-se tocando com o dedo do observador (ou caneta, ou similar) na palma da mão: verifica-se flexão dos dedos prendendo o dedo/objecto que lhe toca. Ao nível do pé, a estimulação táctil do sulco metacarpofalângico origina flexão dos dedos respectivos. Este reflexo pode manter-se até cerca dos 2 meses. (Figura 14)

d) Reflexo dos pontos cardinais
A estimulação mecânica das comissuras e da parte média dos lábios superior e inferior (simile “norte-sul-leste-oeste”) com o dedo do observador, origina desvio da língua e cabeça para o lado estimulado.

FIGURA 14. Reflexo da preensão palmar.

e) Reflexo do encurvamento (ou arqueação) do tronco
A estimulação repetida da pele do dorso entre a 12ª costela e a crista ilíaca origina encurvamento do tronco do lado estimulado. Este reflexo, tal como o reflexo de Moro, é dos mais constantes no RN de termo saudável.

f) Reflexo da marcha automática
Com o RN em posição vertical seguro pelas axilas e com os pés apoiados em superfície lisa, promovendo ligeiro impulso para diante, verifica-se a execução de passos. Este reflexo desaparece até às 4 semanas de vida. (Figura 15)

Pares cranianos

Classicamente, no RN, o exame dos pares é estruturado de modo diferente relativamente a outras idades, sendo que muitos sinais referidos a propósito do comportamento, reflexos, mímica facial, sucção – deglutição, posição e mobilidade da língua, etc., se relacionam, de facto, com funções ou disfunções na dependência dos pares cranianos.

Em síntese, eis alguns exemplos:

  • A partir das 30 semanas o RN identifica o odor da mãe (Iº par- olfactivo);
  • O RN de termo fixa um objecto a cerca de 30 cm e reage também à luz com pestanejo. O reflexo fotomotor (contracção da pupila como reacção à luz) verifica-se já no RN pré-termo a partir das 29 semanas (IIº par- óptico);
  • A motilidade ocular e fixação dum objecto depende dos nervos oculomotores (IIIº par- motor ocular comum, IVº par- patético, e VIº par- motor ocular externo);
  • A verificação de assimetria da mímica facial, com apagamento do sulco nasogeniano do lado afectado e aproximação da comissura labial do lado afectado para o lado são, traduz paralisia periférica do VIIº par- facial que, por inervar o orbicular da pálpebra, origina, também, não encerramento da pálpebra do lado afectado;

FIGURA 15. Reflexo da marcha automática. (URN-HDE)

  • A resposta ao ruído através do VIIIº par (auditivo), por ex. para obter resposta reflexa de Moro, entre outras respostas, é possível a partir da 28ª semana de gestação;
  • A sucção e deglutição (só completamente desenvolvidas a partir do termo da gravidez) dependem respectivamente dos Vº (trigémio motor), VIIº, XIIº (grande hipoglosso) pares, e dos IXº (glossofaríngeo) e Xº (pneumogástrico) pares;
  • A mobilidade da língua depende do XIIº par;
  • Alteração do XIº par (espinhal) inervando o esternocleidomastoideu, pode explicar alteração dos movimentos de rotação da cabeça;
  • A sensação gustativa (dependendo dos VIIº e IXº pares) é difícil de avaliar, sobretudo no RN pré-termo.
  • Sinais anómalos

Realizado o exame neurológico do RN, cabe referir alguns sinais anómalos:

  • Letargia, correspondendo a persistência do estádio 1 de vigília- sono;
  • Coma, correspondendo a persistência do estádio 2;
  • Hiperexcitabilidade ou movimentos anómalos/ convulsões;
  • Choro persistente e de tonalidade aguda;
  • Hipertonia global;
  • Hipotonia global;
  • Opistótono;
  • Assimetria permanente da postura;
  • Desvio permanente da cabeça e olhos;
  • Dificuldade alimentar (sucção, deglutição, etc.).

Avaliação da idade gestacional

Um dos objectivos do primeiro exame clínico do RN é determinar a maturidade deste em função de determinados achados semiológicos, confrontando-os com a data do 1º dia da última menstruação, a partir da qual se inicia a contagem do tempo. Tal avaliação clínica, mesmo para clínicos experientes habituados a cálculo rápido após observação global, tem utilidade se houver antecedentes maternos de menstruações irregulares dificultando a contagem do tempo, e/ou em situações-limite de RN de baixo peso ou muito baixo peso em que não estão disponíveis outros dados, tais como resultados de exames ecográficos pré-natais. De facto, o rigor a imprimir a tal avaliação tem implicações clínicas práticas quanto à previsão de problemas e ao prognóstico.

Os métodos clínicos mais frequentemente utilizados (por ex., os de Dubowitz, Amiel-Tison, Ballard, etc.) integram de modo estruturado critérios somáticos e neurológicos validados estatisticamente, atribuindo a cada um deles determinada pontuação que, uma vez somada, conduz a uma pontuação final ou índice, a que corresponde determinada idade gestacional.

No Quadro 1 são discriminados os aspectos a considerar para cada critério do método de Ballard. A escala de Ballard modificada permite estimar a idade gestacional (IG) sempre que se realize nas primeiras 12 horas de vida.

Fórmula do cálculo: IG= [(2xpontuação)+120]/5.

QUADRO 1 – Avaliação da idade gestacional do recém-nascido (Método de Ballard).

QUADRO 1 – Avaliação da idade gestacional do recém-nascido (Método de Ballard) (cont.).

Critérios de maturidade física
-1 0 1 2 3 4 5
Pele Friável, transparente, húmida Gelatinosa, vermelha, translúcida Lisa, rosada veias visíveis Descamação superficial e/ou exantema, poucas veias Com sulcos, áreas pálidas, raras veias Apergaminhada: sulcos profundos, sem vasos Grossa, estalada com sulcos, enrugada
Lanugo Ausente Escasso Abundante Fino Áreas sem lanugo Maior parte sem lanugo (*)
(•) Somatório da pontuação dos critérios físicos e neuromusculares
-10 20
-5 22
0 24
5 26
10 28
15 30
20 32
25 34
30 36
35 38
40 40
45 42
50 44
Pontuação Semanas
Superfície plantar e sulcos Dedo-calcanhar 40-50 mm = -1 < 40 mm = -2 Dedo-calcanhar 50 mm, sem marcas Ligeiras marcas vermelhas Pregas transversais apenas na porção anterior Pregas nos 2/3 anteriores Pregas em toda planta
Região mamária Imperceptível Pouco visível Aréola plana, glândula não palpável Aréola proeminente, glândula de 1 a 2 mm Aréola elevada, glândula de 3 a 4 mm Aréola cheia, glândula de 5 a 10 mm
Olhos/orelha Pálpebras fundidas Francamente = -1 Fortemente = -2 Fenda palpebral aberta, pavilhão achatado Pavilhão parcialmente encurvado, reposição lenta à posição inicial Pavilhão bem encurvado, mole; reposição pronta Pavilhão formado e firme; regressão instantânea Cartilagem nos bordos, pavilhão firme
Genitais masculinos Bolsa escrotal lisa não enrugada Bolsa escrotal vazia, pouco enrugada Testículo no canal inguinal, bolsa escrotal com raras rugas Testículos no canal inguinal, poucas rugas Testículos na bolsa escrotal enrugada Testículos na bolsa em pêndulo, pregas profundas
Genitais femininos Clítoris proeminente, lábios rasos Clítoris proeminente, pequenos lábios pouco proeminentes Clítoris proeminente, pequenos lábios mais proeminentes Pequenos e grandes lábios igualmente proeminentes Grandes lábios maiores, pequenos lábios menores Grandes lábios recobrem o clítoris e os pequenos lábios

Súmula

Uma vez realizada a observação do RN, importa sintetizar metodicamente o resultado do exame clínico global, tentando classificação do caso em função de cinco diagnósticos clínicos iniciais a estabelecer:

  • De vitalidade ou de adaptação
    Índice de Apgar entre 7-10 corresponde, em princípio, a boa adaptação fetal à vida extra-uterina;
  • Somático
    Este diagnóstico baseia-se no peso independentemente da idade gestacional; na ausência de factores de risco ou de sinais anómalos associados, peso entre 2.500 e 4.000 gramas (normossomático) comporta bom prognóstico;
  • Cronológico e de maturidade
    Este diagnóstico baseia-se na idade gestacional de acordo com dados da anamnese perinatal, ecográficos pré-natais e resultado da avaliação clínica; o RN de termo (entre 37 e 41 semanas e 6 dias, isto é, entre 259 e 293 dias), na ausência de factores de risco ou de sinais anómalos, comporta melhor prognóstico relativamente a RN pré-termo ou pós-termo;
  • De crescimento intra-uterino
    Este diagnóstico, que traduz a dinâmica do crescimento fetal (restrito, adequado ou excessivo), baseia-se na relação entre peso e idade gestacional, e é estabelecido utilizando as chamadas curvas de crescimento intra-uterino.
    Os RN de termo, correspondendo a percentil entre 3 e 97, sem factores de risco nem sinais anómalos associados comportam melhor prognóstico relativamente àqueles de percentil > 97 ou < 3;
  • Sindrómico
    O diagnóstico sindrómico baseia-se na verificação de patologia evidente, por ex., dificuldade respiratória, icterícia, anemia, policitémia, etc..

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ADAPTAÇÃO FETAL À VIDA EXTRAUTERINA

Definição e importância do problema

O conceito de adaptação fetal à vida extrauterina engloba o conjunto de modificações de ordem anatomofisiológica (metabólicas/bioquímicas, imunológicas, hormonais, etc.) na transição da vida fetal (que decorre em meio líquido/líquido amniótico), para a vida extrauterina, (em meio envolvente aéreo), de cuja perturbação poderão resultar determinados problemas clínicos no RN com possível repercussão futura.

O processo de tal adaptação, sobretudo intraparto (estresse do nascimento) é comparticipado de modo muito importante pelos sistemas simpático-suprarrenal (tendo papel importante a adrenalina e a noradrenalina, quimiorreceptores, barorreceptores), e parassimpático, o que é testemunhado pelos níveis elevados de catecolaminas, angiotensina e vasopressina no pós-parto. No entanto, no conceito de adaptação estão também englobados certos eventos fisiológicos – não imediatos – que se processam nas semanas e meses seguintes, não sendo possível determinar, com precisão, quando termina tal adaptação.

Durante o período médio de duração da gravidez de termo (40 semanas), a placenta tem como funções primordiais as da respiração, da termorregulação, da nutrição, da excreção de catabólitos, endócrinas, etc.. No embrião, primeiramente, (4ª-12ª semanas – precedidas pela fase pré-embrionária no período compreendido entre a 1ª e 3ª semanas), e no feto, depois (13ª-40ª semanas), ocorrem processos complexos de crescimento e de maturação até ser viável a autonomia do produto de concepção após o nascimento.

Na realidade, o processo de mudança mais espectacular e relativamente mais rápido na transição da “vida aquática” para a “vida gasosa” é o que diz respeito ao aparecimento da respiração e ao concomitante incremento da perfusão pulmonar (adaptação respiratória e cardiocirculatória envolvendo processos interligados); de uma PaO2 fetal ~ 25 mmHg passa-se, em situação de normalidade, para uma PaO2 neonatal ~ 60 mmHg ao cabo de 30 minutos de vida com movimentos respiratórios, inspirando ar cuja FiO2 é ~ 21%.

Ora, o RN (ex-feto) para sobreviver em ambiente rico em oxigénio necessita que os sistemas de defesa antioxidante – defesa contra radicais livres de oxigénio (intracelulares: dismutases do superóxido, peroxidase da glutationa, catalase; extracelulares: ascorbato, etc.) – estejam desenvolvidos ao nascer. Acontece que tal desenvolvimento se completa somente no termo da gestação, (sobretudo os sistemas de defesa intracelular), o que equivale a dizer que a probabilidade de lesão oxidante de órgãos por radicais livres é maior nos RN pré-termo. Curiosamente, o desenvolvimento de tais sistemas de defesa processa-se paralelamente à maturação do sistema enzimático responsável pelo desenvolvimento do surfactante pulmonar.

Adaptação respiratória

Líquido pulmonar fetal (LPF)

Durante o período fetal as trocas gasosas são asseguradas através da “membrana” placentar. Desde a concepção, o sistema respiratório evolui em 5 períodos – cuja nomenclatura não coincide precisamente com os períodos atrás considerados – e chamados:

  • Embrionário → com vias aéreas proximais (0-7 semanas);
  • Pseudoglandular → com vias condutoras (8-16 semanas);
  • Canalicular → com formação dos ácinos (17-27 semanas);
  • Sacular → com áreas para trocas gasosas (28-35 semanas);
  • Alveolar → com expansão da área para as trocas gasosas (das 36 semanas ao termo da gravidez).

Concomitantemente desenvolvem-se as estruturas da microcirculação; e, a partir da 26ª-28ª semana, existe superfície de troca suficiente para assegurar as trocas gasosas após o nascimento.

Durante a vida fetal os pulmões estão preenchidos pelo chamado líquido pulmonar fetal (LPF, de características diferentes do líquido amniótico com o qual contacta ao nível da hipofaringe) segregado pelo epitélio respiratório (pneumatócitos do tipo I); o referido PPF aumenta progressivamente, sobretudo após a 18ª semana, ao ritmo de 2-4 mL/kg/hora, atingindo o volume de cerca de 20 mL/kg pelas 36 semanas, semelhante ao valor da capacidade residual funcional (CRF); isto é, o pulmão durante a vida intra-uterina é maciço.

A secreção de tal LPF para o interior das vias aéreas (exercendo pressão de distensão contínua e garantindo como “molde” o crescimento/ expansão do pulmão, e o desenvolvimento epitelial da via respiratória) – predomina sobre a absorção, dependendo de um gradiente osmótico entre a circulação e o espaço aéreo virtual; neste fluxo circulação → alvéolo, entram em acção um sistema de bomba sódio-potássio/ATP-ase localizado no pólo basal do pneumatócito I junto ao capilar.

O LPF contém quantidade significativa de cloro (> 150 mEq/L) e baixa de bicarbonato (~ 2,8 mEq/L), e de proteínas (< 0,3 mg/mL) sendo o pH ~ 6,27. A pressão do LPF, superior à do líquido amniótico (em cerca de 2 mmHg), permite que circule segundo trajecto vias distais → traqueia: a maioria é deglutida pelo feto e uma pequena porção é eliminada para a cavidade amniótica.

Tal movimento é igualmente facilitado pelas forças de elastância do pulmão (ou de tendência para a retracção).

A partir da 11ª semana surgem, com carácter intermitente, movimentos de expansão e retracção do tórax (movimentos pseudo “respiratórios”) irregulares, baixa amplitude e ao ritmo de 60-90/minuto, cuja regulação poderá estar relacionada com o estímulo de receptores periféricos. Associados ao sono REM, a frequência de aparecimento, a frequência por minuto e a amplitude são influenciados por estímulos como acidose e hipercárbia (aumento), ou hipóxia, hipoglicémia, sedativos, etc. (diminuição).

Durante os períodos de movimentos de expansão-retracção fica facilitado o movimento do LPF no sentido vias distais → traqueia atrás referido. Concomitantemente com os períodos de movimentos torácicos verifica-se dilatação da glote; pelo contrário, nos períodos sem movimentos/”apneia” verifica-se constrição da glote com aumento da resistência à saída do LPF.

É importante acentuar que a diminuição do ritmo e frequência dos movimentos de expansão/retracção do tórax fetal compromete o crescimento do pulmão.

Na parte final da gravidez, cerca de dois dias antes do início do trabalho de parto espontâneo, começa a verificar-se: diminuição da secreção do LPF; fluxo deste no sentido alvéolo → capilar → microcirculação → linfáticos; e a aumentar a absorção ou fluxo no sentido inverso, preparando o pulmão para receber ar no pós-parto. Ou seja, a partir desta data e no período pós-natal passa a predominar a absorção sobre a secreção: a adrenalina e noradrenalina libertadas pelo sistema simpático-suprarrenal, assim como a vasopressina, actuando sobre receptores no pólo basal do pneumatócito I, vão estimular o AMP-cíclico e promover a abertura de canais de sódio no pólo apical do mesmo pneumatócito, facilitando tal fluxo e progressivo esvaziamento do alvéolo em LPF.

Calcula-se que durante o trabalho de parto e durante as primeiras horas de vida seja absorvido, cerca de 90% do LPF. Durante a passagem do feto pelo tracto genital inferior a compressão do tórax também contribui para a expulsão do LPF pela boca e nariz, sendo que este mecanismo apenas contribui para a expulsão de cerca de 10% do total de LPF. Este fenómeno fica comprometido se se verificar extracção do feto por cesariana electiva (antes do início do trabalho de parto), determinando que o volume do LPF no ser extrauterino (RN) seja, em tais circunstâncias, praticamente igual ao que existe na vida fetal, o que poderá dificultar a entrada de ar na via respiratória.

Os primeiros movimentos respiratórios

A primeira inspiração sobrevém aproximadamente dentro dos primeiros 15 segundos de vida extrauterina; é desencadeada pelo frio, estímulos nociceptivos e variações das PA (alveolares) de O2 e de CO2 secundárias à laqueação do cordão umbilical.

Entre o feto e o RN existe diferença significativa quanto à sensibilidade dos quimiorreceptores. A resposta do RN de termo ao CO2 é semelhante à do adulto; no RN pré-termo tal resposta é mais fraca, aumenta com a idade gestacional, podendo ficar comprometida se existir hipóxia associada.

A primeira inspiração é caracterizada pela abertura da glote e aumento do tono da musculatura respiratória; durante cerca de 0,5 a 1 segundo exerce-se uma pressão negativa de abertura atingindo (– 40) a (– 80) cm H2O, que permite opor-se à resistência viscosa do LPF existente na via respiratória e às forças de tensão superficial e resistências teciduais, e facilitar a entrada de 50-60 mL de ar na via aérea. De salientar que a abertura alveolar pulmonar não é uniforme dada a raridade dos poros de Kohn no RN, o que constitui um factor predisponente de pneumotórax.

A primeira expiração efectua-se com a glote semi-encerrada: corresponde ao primeiro choro. A pressão pleural mantém-se positiva (~ 20-30 cm H2O); por outro lado, nem todo o ar inspirado é expirado, sendo de referir que cerca de 20-30 mL (ar residual) fica localizado nos alvéolos que mantêm distensão residual estável desde que exista surfactante funcionante.

O estabelecimento de movimentos respiratórios rítmicos está essencialmente na dependência de quimiorreceptores carotídeos. Durante os primeiros dias que se seguem ao nascimento, dois reflexos com ponto de partida pulmonar desempenham igualmente papel importante:

  • O reflexo de Hering-Breuer, não existindo no adulto, mas sim no RN de termo e pré-termo: a insuflação pulmonar determina cessação do esforço respiratório;
  • O reflexo paradoxal de Head: inspiração activa como resposta a insuflação pulmonar.

O reflexo de Head, muito mais importante no RN do que em qualquer outra fase da vida, é responsável por frequentes “suspiros” observados no período neonatal, com utilidade no sentido de manter arejamento pleno dos pulmões.

Os primeiros movimentos respiratórios, irregulares e bastante amplos, são entrecortados por esforços expiratórios. À medida que se verifica a manutenção dos movimentos respiratórios, sucessivamente mais alvéolos vão sendo “recrutados” ou preenchidos, com aumento progressivo da capacidade residual funcional (CRF), a qual atinge o valor ~ 30 mL/kg ao 30º minuto de vida extrauterina.

Em sucessivas inspirações cada vez menos ar é mobilizado, sendo que o volume corrente diminui e estabiliza no valor ~ 6 mL/kg.

Quanto à distensibilidade (compliance) pulmonar, dependente da secreção de surfactante pulmonar a partir da 20ª semana de gestação pelos pneumatócitos do tipo II, os valores são, progressivamente: 2 mL/cmH2O aos 3 minutos, e 5 mL/cm H2O aos 7 dias de vida (no adulto: ~ 170 mL/cm H2O).

O défice de surfactante, levando ao colapso alveolar, compromete a manutenção do ar residual e, por isso, a adaptação respiratória.

Relação entre ventilação e perfusão

A distensão alveolar acompanha-se de abertura do leito vascular pulmonar; a superfície alveolocapilar torna-se, assim, a zona de trocas gasosas, sendo que a relação ventilação/perfusão não é considerada óptima no RN. A abertura alveolar não é homogénea, havendo certas zonas perfundidas não ventiladas criando-se um curto-circuito direito-esquerdo intrapulmonar (15-30% no RN contra 5% no adulto).

Hemoglobina F e hemoglobina A

Muito progressivamente, no decurso do 3º trimestre da vida extrauterina a Hb F (fetal) dá lugar à Hb A (do tipo adulto), tendo esta última menor afinidade para o oxigénio.

Condições básicas para a adaptação respiratória

Após descrição sucinta dos passos mais importantes da adaptação respiratória (indissociável da adaptação cardiocirculatória) será mais fácil deduzir as condições básicas para a manutenção do automatismo e função respiratórios, assim como os problemas clínicos – abordados noutros capítulos – que decorrem de perturbações das referidas condições. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Função respiratória – Condições básicas.

    • Centros respiratórios activos e receptivos
    • Vias de condução nervosa intactas
    • Suprimento adequado de O2
    • Músculos respiratórios eficientes
    • Vias aéreas livres
    • Alvéolos estáveis [pneumatócitos tipo II (surfactante)]
    • Rede arterial pulmonar com muscularização adequada
    • Difusão alveolocapilar adequada (pneumatócitos tipo I)

Adaptação cardiocirculatória

In utero, a circulação fetal é fundamentalmente caracterizada pela importância do débito placentar e pelo escasso débito pulmonar (inferior a 10% do débito ventricular).

Com o nascimento verificam-se transformações radicais: supressão da circulação placentar com a laqueação do cordão, e aumento maciço da perfusão pulmonar coincidindo com o arejamento das vias respiratórias.

A adaptação cardiocirculatória corresponde, afinal, ao somatório de modificações anatómicas e fisiológicas sob a dependência de factores mecânicos e bioquímicos.

Circulação fetoplacentar

O esboço embrionário do coração funciona como “bomba” efectiva pela 8ª semana de gestação, sendo que a estrutura do coração está completamente formada cerca da 10ª semana.

A circulação fetoplacentar relativamente à verificada após o nascimento difere fundamentalmente:

  1. Pela existência da placenta como órgão interposto entre o feto e a grávida (hemodinamicamente é uma região de baixa resistência);
  2. Pela existência do foramen ovale (ou buraco de Botal) que permite a passagem de sangue da aurícula direita para a aurícula esquerda;
  3. Pela existência do ductus arteriosus ou canal arterial que também determina um curto circuito direito-esquerdo pela comunicação que estabelece entre a artéria pulmonar e aorta.

O sangue que circula no feto é bombeado pela circulação fetal através das duas artérias umbilicais em direcção à placenta. Na placenta fazem-se as trocas gasosas (transferência de CO2 para a circulação materna e aquisição de O2 e nutrientes para a circulação fetal). O sangue oxigenado volta ao feto através da veia umbilical que dá origem a dois importantes ramos antes de alcançar o fígado: um ramo para o lobo esquerdo do fígado; e outro ramo (ductus venosus) que se liga à veia cava inferior, o que determina mistura de sangue mais oxigenado (proveniente da placenta) com sangue não oxigenado (proveniente dos membros inferiores e órgãos infradiafragmáticos).

Determinadas particularidades anatómicas no local em que a veia cava inferior se liga à aurícula direita fazem com que:

  1. O sangue não oxigenado proveniente dos membros inferiores e órgãos infradiafragmáticos se dirija para o ventrículo direito através da válvula tricúspide; este sangue mistura-se, por sua vez, com o sangue, também não oxigenado, que provém da cabeça e membros superiores. A grande parcela do débito do ventrículo direito dirige-se para a circulação sistémica através do curto circuito – ductus arteriosus – ligando a artéria pulmonar à aorta descendente;
  2. O sangue mais oxigenado atingindo a aurícula direita (parcela superior à do sangue não oxigenado) dirige-se preferencialmente da aurícula direita para a aurícula esquerda através do foramen ovale e, a seguir, para o ventrículo esquerdo.

Consequentemente, no feto, considerando o volume de sangue que atinge a aurícula direita, somente cerca de 10% do mesmo irriga o território pulmonar, sendo o restante “desviado” para a circulação sistémica por meio do foramen ovale e ductos arteriosus.

O facto de o ductus arteriosus (conduzindo sangue menos oxigenado) desembocar na aorta a jusante da emergência das artérias que contribuem para a irrigação do miocárdio e encéfalo (recebendo sangue mais oxigenado através do circuito foramen ovaleaurícula esquerdaventrículo esquerdo), faz com que estes territórios (encéfalo e miocárdio) recebam sangue mais oxigenado.

Os dois ventrículos trabalham “em paralelo”, sendo a frequência cardíaca elevada (130-150/minuto) e o débito importante: entre a 10ª e 30ª semanas o somatório dos débitos direito e esquerdo totaliza cerca de 200 mL/kg/minuto.

A circulação pulmonar é caracterizada por resistência vascular elevada (cerca de cinco vezes superior à resistência sistémica. As arteríolas são submetidas, sobretudo a partir da 28ª semana de gestação, a uma modificação anatómica e estrutural: aumento global do peso do pulmão (cerca de 4 vezes), aumento progressivo da espessura da musculatura da média em relação à espessura da íntima, aumento do número de pequenos vasos (cerca de 40 vezes), aumento do número de vasos por unidade de volume da ordem de 10 vezes até ao termo da gestação; tais alterações podem ser interpretadas como preparação do pulmão para receber na vida extrauterina um volume de sangue 10 vezes superior ao que se verifica in utero.

O tono vascular pulmonar é sensível a mediadores endoteliais vasoactivos (vasodilatadores ou vasoconstritores), por ex. pH, PO2, PCO2, NO, endotelina, etc.; in utero predomina a acção de factores que promovem vasoconstrição.

Caberá referir, a propósito, que no feto, tal como a resistência vascular placentar, a resistência vascular periférica e a pressão arterial sistémica têm valores baixos.

Circulação neonatal de transição

A supressão brusca da circulação placentar coincide com o início da ventilação pulmonar que conduz a:

  • Elevação do nível de oxigenação alveolar e arterial;
  • Dilatação rápida dos vasos pulmonares que promovem incremento do débito sanguíneo pulmonar na ordem de 10 vezes (em cerca de 24 horas).

O aumento significativo do débito sanguíneo pulmonar conduz a maior volume sanguíneo de retorno à aurícula esquerda aumentando a respectiva pressão e determinando o encerramento funcional do foramen ovale, o que contribui para diminuir o curto-circuito direito-esquerdo a este nível. O aumento do débito sanguíneo pulmonar coincide com diminuição da pressão na artéria pulmonar e no ventrículo direito.

Por sua vez, a redução do gradiente de pressão entre artéria pulmonar e aorta, associada à constrição progressiva (primeiramente funcional, e depois anatómica) do ductus arteriosus (DA) determinada pela elevação do nível de oxigenação tecidual, leva à diminuição e eliminação progressiva do curto circuito direito-esquerdo, através daquele (DA).

A laqueação do cordão umbilical, eliminando a circulação placentar – região de baixa resistência – vai contribuir para elevar a pressão arterial sistémica, sendo que a pressão aórtica se torna superior à pressão na artéria pulmonar.

A Figura 1 representa de modo esquemático a circulação fetal e neonatal.

FIGURA 1. Representação esquemática dos circuitos da circulação fetal e neonatal (consultar texto). Vasos de cor branca <> sangue oxigenado; vasos de cor preta <> sangue não oxigenado; vasos com ponteado em diversas tonalidades <> sangue de mistura (mais oxigenado com menos oxigenado, em graus variáveis).

Fases de diminuição da resistência vascular pulmonar ex-útero

A diminuição da pressão na artéria pulmonar processa-se em três fases:

Primeira fase (0-1 minuto)

Logo após os primeiros movimentos respiratórios, com a substituição do LPF por ar e a formação de interface líquido/ar ao nível da superfície alveolar, são criadas imediatamente forças de tensão superficial que, diminuindo a pressão no interstício do parênquima pulmonar, permite dilatação dos vasos e aumento do débito pulmonar.

Segunda fase (até 12-24 horas)

Nesta fase, ao longo de 12 a 24 horas a RVP diminui por acção de mediadores com acção vasoactiva produzidos no endotélio (exemplificam-se como mais importantes o NO e a prostaciclina).

Terceira fase (entre as 12-24 horas e cerca de 10 dias)

Nesta fase continua, de modo mais lento, a diminuição da RVP, sobretudo à custa da diminuição da espessura da camada muscular e achatamento das respectivas células endoteliais, o que contribui para aumentar, mais ainda, o calibre das artérias pulmonares de menor calibre.

FIGURA 2. Adaptação cardiocirculatória à vida extrauterina.

Encerramento do foramen ovale

O encerramento do foramen ovale inicia-se ao cabo de algumas horas. Nos primeiros dias poderá ocorrer curto circuito bidireccional por hiperpressão ocasional na aurícula direita (por ex. com choro), originando cianose transitória. O encerramento torna-se mais efectivo ao cabo de 8-10 dias, sendo que o encerramento anatómico é mais tardio.

Encerramento do ductus arteriosus

O canal arterial é uma estrutura muito particular: camada muscular lisa interposta entre duas camadas elásticas, com orientação longitudinal e circular das respectivas fibras.

Como estímulos que podem gerar constrição citam-se designadamente o incremento da PaO2 e de prostaglandinas no sangue circulante do canal, e da respectiva artéria nutritiva (ramo da aorta descendente ou duma coronária). Situações como SDR/hipóxia e prematuridade poderão levar a atraso de encerramento.

O encerramento funcional verifica-se em 80%-90% dos casos entre as 10 e 18 horas de vida; e o encerramento anatómico, na maioria dos casos, cerca das 8 semanas; por conseguinte, neste período poderá haver curto-circuito bidireccional e hipóxia transitórios. A permeabilidade permanente é estimada em cerca de 0,04% dos RN de termo, e em 20%-40% de RN pré-termo com peso de nascimento < 1.000 gramas.

A Figura 2 sintetiza os principais fenómenos da adaptação cardiocirculatória à vida extrauterina.

Circulação de tipo adulto

A circulação neonatal definitiva é caracterizada pelo funcionamento “em série” dos dois ventrículos. O ventrículo esquerdo torna-se progressivamente preponderante e as pressões sistémicas aumentam também progressivamente.

Condições básicas para a adaptação cardiocirculatória

Após descrição sucinta dos passos mais importantes da adaptação cardiocirculatória (indissociável da adaptação respiratória) será mais fácil deduzir as condições básicas para a manutenção da função cardiocirculatória, assim como os problemas clínicos – abordados noutros capítulos – que decorrem de anomalias das referidas condições. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Função cardiocirculatória – Condições básicas.

    • Funcionamento da circulação neonatal definitiva de tipo adulto
    • Sistema cardiovascular sem anomalias morfológicas
    • Rede capilar suficientemente desenvolvida

Adaptação térmica

Termorregulação durante a vida fetal

Os mecanismos fundamentais de produção e de perda de calor (regulação térmica) são regulados pelo centro termorregulador, no hipotálamo. O referido centro recebe informações de receptores térmicos, quer superficiais (pele), quer profundos (músculos esqueléticos, abdómen, espinhal medula, mucosa respiratória, etc.).

In utero, o metabolismo fetal determina uma temperatura fetal que é superior, em cerca de 0,5ºC, à temperatura da mãe, criando-se um gradiente que permite perda de calor no sentido feto → mãe, sobretudo através da circulação umbilical e placenta; isto é, na ausência de placenta, a temperatura fetal elevar-se-ia na ordem de 3ºC por hora.

Termorregulação após o nascimento

No momento do nascimento a temperatura rectal do RN é cerca de 37,6ºC-37,8ºC, e a do ambiente do bloco de partos, em geral, 23ºC. Após o nascimento, a situação inverte-se completamente, pois o RN é confrontado numa luta contra o frio, estabelecendo-se um importante gradiente térmico.

Por um lado, a pele do RN está molhada com resto do líquido amniótico; por outro, o mesmo RN tem panículo adiposo escasso e pele não queratinizada (características mais acentuadas no RN pré-termo), e a relação superfície corporal/volume corporal é muito superior à do adulto (sobretudo nos RN pré-termo de peso < 1.500 gramas).

Criam-se, assim, condições para uma perda térmica importante no sentido interior corporal → superfície corporal → ar ambiente, de quatro modos:

Evaporação

(RN molhado – líquido amniótico aderente à pele ou água do banho à superfície da pele);

Condução

(perda de calor por “contacto directo” com uma superfície de temperatura inferior à da pele, por ex. colchão frio, prato da balança frio, etc.);

Radiação

(perda de calor “à distância” para superfícies não em contacto com a pele – por ex. parede da sala ou da incubadora);

Convecção

(perda de calor tendo como “veículo” ar em movimento/corrente de ar).

Na ausência de cuidados, no RN deixado à temperatura ambiente, molhado, não vestido, não colocado sob fonte de calor, a temperatura cutânea pode baixar rapidamente (0,3ºC/minuto), assim como a temperatura rectal, de modo mais lento.

As possibilidades de adaptação ou de resposta do RN ao ambiente exterior frio são de dois tipos:

Diminuição da perda de calor

O RN submetido ao frio responde com vasoconstrição periférica por libertação de adrenalina e noradrenalina, levando a: 1) vasoconstrição pulmonar; 2) aumento do débito cardíaco; 3) incremento do metabolismo anaeróbio (elevação do glucagon, diminuição de insulina; glicogenólise e elevação da glicémia numa primeira fase, seguidas de esgotamento das reservas de glicogénio e hipoglicémia ulterior); e 4) acidose metabólica.

Produção de calor (termogénese)

A termogénese no RN é limitada e, por isso, diferente da do adulto: 1) o fenómeno de calafrio (contracção muscular) praticamente não existe, embora o choro e a agitação contribuam para aumentar a actividade muscular; 2) a maior fonte de produção de calor no RN é constituída pela chamada gordura castanha, mais abundante no RN do que no adulto, mas insuficiente nos primeiros dias de vida, sobretudo nos RN pré-termo ou de baixo peso, o que constitui uma limitação.

Os depósitos de gordura castanha, muito vascularizados e com inervação simpática, localizam-se na região subescapular, trajecto dos grandes vasos, goteiras paravertebrais, mediastino, e regiões perirrenais e perissuprarrenais.

Como resultado da exposição ao frio, a libertação de adrenalina e noradrenalina desencadeia lipólise ao nível da gordura castanha: hidrólise de triglicéridos com libertação de glicerol e ácidos gordos livres, e consequente produção de energia sob a forma de calor que, por condução, se vai transmitir aos vasos e sangue circulante nos tecidos contíguos.

Relativamente às possibilidades de resposta do RN ao ambiente exterior quente (situações relacionadas, por ex. com falta de precaução: tempo quente e excesso de roupa, hiperaquecimento inadvertido, etc.), há que salientar que existem limitações no que respeita ao mecanismo de compensação de perda de calor – normalmente funcionante em crianças de mais idade e adultos – através da sudorese. Com efeito, face à imaturidade do RN e lactente, as glândulas sudoríparas têm capacidade limitada de secreção, o que aumenta a probabilidade de hipertermia face a temperatura exterior elevada.

Em suma, os mecanismos de termorregulação nos RN têm limitações, havendo maior risco comparativamente a crianças de maior idade, quer de elevação anormal da temperatura se colocados em ambiente quente, quer de diminuição anormal da temperatura se colocados em ambiente frio.

Adaptação digestiva

Nutrição e crescimento fetais

Durante a vida fetal a nutrição é de tipo hematogénico, assegurada pela via transplacentar. De salientar que o crescimento pré-natal está dependente sobretudo de factores de crescimento maternos e placentares (e fetais em menor escala) tais como insulina e factores de crescimento semelhantes a insulina (IGF 1 e 2), leptina, etc., enquanto o crescimento pós-natal depende fundamentalmente de hormonas hipofisárias e doutras.

No 1º trimestre verifica-se aumento do número de células; no 2º trimestre verifica-se, quer aumento do número, quer do volume das mesmas células, sendo o incremento de gordura cerca de 50 gramas e o peso atingido do feto cerca de 1/3 do peso de nascimento.

No 3º trimestre – o período de verdadeira preparação para a vida extrauterina – continua o aumento do volume das células já formadas, o que se traduz num incremento de 500 gramas de gordura branca e castanha (10 vezes mais do que nos trimestres anteriores), e da maior parte das reservas

de minerais, glicogénio e oligoelementos; neste trimestre verifica-se incremento de peso correspondente a 2/3 do peso de nascimento.

As principais fontes energéticas para o feto são os hidratos de carbono representados pela glucose: por difusão, verifica-se um suprimento do referido nutriente no sentido mãe → feto, da ordem de 4-6 mg/kg/minuto durante o 2º trimestre da gravidez, período em que já é possível a glucogénese. A neoglucogénese processa-se no terceiro trimestre. (ver adiante)

O suprimento em azoto para a síntese proteica é levado a cabo através da transferência directa activa de aminoácidos mãe → feto, sendo que também se verifica síntese dos mesmos no citosol da placenta.

No que respeita aos lípidos, cabe referir que a lipogénese se processa no feto a partir das 12 semanas, sendo estimulada pela insulina e inibida pelo glucagon e AMPc. As fontes de lípidos para o feto são constituídas por: ácidos gordos livres provenientes da mãe e da síntese na placenta; ou da lipólise de triglicéridos, lipoproteínas ou fosfolípidos, quer da mãe, quer do próprio feto (salientando-se o papel da lipoproteína-lipase do endotélio capilar na hidrólise dos triglicéridos).

Tubo digestivo fetal

Todas as estruturas do tubo digestivo estão individualizadas desde a 12ª semana de gestação, sendo que a maturação anatómica e funcional se efectua progressivamente das regiões proximais para as regiões distais.

Como particularidades essenciais da fisiologia do tubo digestivo fetal cabe referir:

  • O feto tem capacidade para a sucção e deglutição; no termo da gestação tem possibilidade de deglutir até 10 mL/hora de líquido amniótico;
  • O processo de absorção intestinal activa da glucose existe desde a 12ª semana, aumentando significativamente até à 16ª semana; de referir que os elementos contidos no líquido amniótico são em grande parte absorvidos;
  • À medida que se vai constituindo o mecónio, este vai-se acumulando no tubo digestivo; somente em caso de sofrimento fetal se verifica emissão do mesmo para o espaço amniótico.

Nutrição e alimentação neonatais

Com a laqueação do cordão umbilical, a nutrição hematogénica transplacentar é bruscamente interrompida. Estando o tubo digestivo desenvolvido no termo da gestação, a via natural para o suprimento alimentar é a via digestiva; no caso de imaturidade, compreende-se que esta via (natural, extrauterina) comporta algumas limitações. Como particularidades essenciais da fisiologia do tubo digestivo do recém-nascido cabe referir:

  • A sucção e a deglutição, já presentes no feto, estão bem coordenadas no recém-nascido de termo a partir das 12 horas de vida; no RN pré-termo, e tanto mais quanto menor a idade gestacional, existe incoordenação da sucção-deglutição;
  • Atraso do esvaziamento gástrico nas primeiras 12 horas de vida pós-natal, melhorando gradualmente nos primeiros 4 dias;
  • O trânsito intestinal estabelece-se, na ausência de anomalias morfológicas e funcionais desde o nascimento. O ar penetra no tubo digestivo atingindo o intestino delgado entre as 2 e 12 horas de vida, e a porção mais distal do cólon entre as 18 e 24 horas;
  • O refluxo gastresofágico de grau variável por relaxamento do esfíncter esofágico inferior é habitual, sobretudo nos primeiros três dias;
  • A actividade proteolítica (pancreática e da pepsina) é baixa até cerca de 1 ano, desenvolvendo-se até aos 3 anos;
  • A lipase pancreática, com actividade fraca, é compensada pala lipase salivar;
  • As amilases salivar e pancreática também evidenciam actividade deficitária nos primeiros meses de vida;
  • As dissacaridases (sacarase, lactase, maltase) atingem a actividade máxima no termo da gravidez após incremento progressivo durante a gestação; a actividade da lactase diminui progressivamente com a idade e, designadamente após o período de alimentação láctea exclusiva;
  • A primeira refeição estimula a libertação duma variedade de hormonas entéricas incluindo insulina, hormona de crescimento, gastrina, enteroglucagon e motilina;
  • A primeira emissão de mecónio – que pode ser desencadeada pela primeira refeição de leite que estimula a motilidade através de hormonas intestinais – sobrevém nas primeiras 24 horas; situações em que tal não se verifique até às 48 horas implicam vigilância; de salientar que, nos casos de eliminação de mecónio in utero, se comprovou elevação dos níveis de motilina no sangue do cordão;
  • O atraso da eliminação de mecónio com sinais de obstrução intestinal pode observar-se em diversas situações como “síndroma de rolhão de mecónio” e síndroma de microcólon esquerdo; uma vez que cerca de 50% dos casos de atraso de eliminação de mecónio surgem em RN de mãe diabética, admite-se que a elevação do glucagon (secundária à hipoglicémia) pode diminuir a motilidade do cólon; a diminuição de tal motilidade por défice de libertação de acetilcolina secundária a hipermagnesémia neonatal pode também verificar-se nos casos de tratamento de eclâmpsia materna com magnésio.

Adaptação metabólica

A composição do meio interno do feto depende da concentração dos diversos elementos do sangue circulante materno, dos mecanismos de troca verificados ao nível da placenta e, em menor grau, da aquisição progressiva de funções de regulação (maturação) do próprio feto.

A laqueação do cordão umbilical interrompendo de modo abrupto, quer o suprimento de nutrientes e doutros compostos provenientes do organismo materno, quer o processo de depuração de catabólitos anteriormente a cargo da placenta, cria no RN uma situação de instabilidade metabólica ou de perturbação da homeostasia de grau e duração variáveis em função da idade gestacional do mesmo.

Dois tipos principais de situações podem ser considerados representativos de tal perturbação da homeostasia no período neonatal:

  • Carência em reservas energéticas para satisfazer as necessidades nutricionais, com maior acuidade nos RN com antecedentes de gravidez encurtada (pré-termo), de insuficiência placentar e/ou com restrição de crescimento intra-uterino;
  • Doenças hereditárias do metabolismo cujos efeitos in utero são compensados pelos mecanismos homeostáticos do organismo materno: sendo muitas das situações referidas assintomáticas ou acompanhando-se de período assintomático, o clínico deverá proceder ao respectivo rastreio na base da anamnese perinatal, do exame objectivo e de eventuais exames complementares.

Nesta alínea é dada ênfase a aspectos da adaptação do metabolismo do cálcio e dos hidratos de carbono.

Metabolismo do cálcio

In utero, o cálcio é transportado pela placenta de modo activo para o feto de modo que, no termo da gestação, os níveis séricos de cálcio sérico fetal sejam superiores aos níveis de cálcio materno.

No feto os níveis séricos de PTH (hormona paratiroideia) e de 1,25 (OH)2 – vitamina D são baixos, mas os níveis de calcitonina e de 24, 25 (OH)2 – vitamina D são elevados, o que favorece a deposição de cálcio no tecido ósseo.

Após o nascimento, a interrupção brusca de suprimento de cálcio transplacentar determina que no RN se verifique, não só diminuição da taxa de deposição de cálcio no osso, mas ainda remoção do mesmo para o sangue como “garantia” da manutenção da homeostase do cálcio extracelular até à data em que se inicia a ingestão de leite (que corresponde ao suprimento de cálcio e outros minerais).

Nas primeiras 24 horas verifica-se diminuição progressiva dos níveis de cálcio sérico que estimula a libertação de PTH que, por sua vez, estimula a síntese de 1,25 (OH)2 – vitamina D. Consequentemente verifica-se elevação do cálcio sérico explicada pelos seguintes mecanismos: 1) reabsorção/ remoção de cálcio ósseo por acção de PTH e 1,25 (OH)2 – vitamina D; 2) absorção de cálcio intestinal por efeito de 1,25 (OH)2 – vitamina D; 3) redução da eliminação renal de cálcio por acção de PTH e 1,25 (OH)2 – vitamina D; 4) redução gradual do fósforo sérico por excreção renal aumentada, como efeito da PTH.

Em condições de normalidade, o cálcio sérico estabiliza com valor > 8 mg/dL cerca de 48 horas após o nascimento, aumentando depois durante a primeira semana.

Metabolismo dos hidratos de carbono

O feto está dependente do suprimento materno de glucose, sendo que a glicémia fetal corresponde a cerca de 60%-70% da glicémia materna. Após a laqueação do cordão umbilical verifica-se descida abrupta da glicémia no RN, sendo atingido o nadir entre 1 e 2 horas de vida pós-natal, aumentando subsequentemente.

Os níveis de glucose no sangue são inicialmente mantidos através da mobilização e eventual depleção das reservas de glicogénio hepático, o que é facilitado pela elevação das catecolaminas e glucagon, e diminuição da insulina pós-natal.

Tendo em conta que o suprimento de hidratos de carbono através da alimentação nos primeiros dias de vida é escasso, e que somente cerca de 20%-50% da glucose para as necessidades provém do leite, o RN fica dependente da neoglucogénese a partir de aminoácidos, glicerol e lactato.

Alterações metabólicas diversas, maternas (diabetes, excessivo suprimento de glucose por via parentérica intra-parto, tocolíticos beta-simpaticomiméticos, etc.) ou neonatais (asfixia perinatal, hipotermia, restrição de crescimento intra-uterino, hiperinsulinémia, excesso de peso para a idade gestacional, etc.) poderão resultar em perturbação do metabolismo da glucose no RN conduzindo a hipoglicémia.

No RN de termo saudável alimentado nas primeiras 4 horas de vida verifica-se em geral glicémia superior a 40 mg/dL.

A hiperglicémia é rara no RN de termo.

Adaptação renal

Funções do rim

O rim tem numerosas funções: regula o volume e a composição do líquido extracelular, participa na manutenção do equilíbrio ácido-base, elimina os catabólitos azotados, activa a vitamina D, segrega a eritropoietina e sintetiza localmente prostaglandinas, endotelina, bradiquinina, NO e dopamina; é igualmente o alvo de numerosas hormonas extra-renais: vasopressina, hormona paratiroideia, aldosterona, catecolaminas, corticóides, etc.. Por intermédio do balanço do sódio e do sistema renina-angiotensina-aldosterona contribui para a regulação da pressão arterial. Sob o ponto de vista farmacológico, o rim constitui a via de eliminação de numerosos compostos activos ou dos seus catabólitos.

Rim fetal

No decurso da vida intra-uterina o feto não necessita dos seus rins, pois todas as funções homeostáticas são asseguradas pela placenta, a qual constitui um verdadeiro “rim artificial”.

A formação dos nefrónios processa-se numa sequência centrífuga e completa-se pela 35ª semana de gestação. O desenvolvimento da filtração glomerular e da perfusão renal têm uma evolução característica ao longo do último trimestre da gravidez. A maturação funcional é muito mais rápida do que o crescimento morfológico até à 35ª semana de gestação; a partir desta data verifica-se menor ritmo de incremento da filtração glomerular que passa a desenvolver-se paralelamente à massa renal.

A formação de urina pelo rim fetal começa entre a 9ª e 12ª semana de gestação.

A diurese, estimada por técnica ecográfica, é cerca de 10 mL/hora pela 32ª semana, atingindo cerca de 28 mL/hora no termo da gestação; a urina é hipotónica, com uma osmolalidade de cerca de 200 mOsm/kg H2O. No decurso do 2º trimestre verifica-se já um processo de reabsorção activa de glucose, cloro e sódio.

Nas situações de obstáculo da uretra o débito urinário pode ser < 2 mL/hora, verificando-se concomitantemente elevação da concentração urinária de sódio (> 100 mmol/L) e de cloro (> 90 mmol/L), assim como elevação da osmolalidade urinária (> 200 mOsm/kg/ H2O).

A indometacina (inibidor da síntese das prostaglandinas), que é utilizada na grávida como tocolítico, atravessa a placenta podendo diminuir a diurese fetal e originar oligoâmnio. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina utilizados como agentes anti-hipertensão podem igualmente originar oligo-anúria fetal e oligoâmnio.

Maturação renal pós-natal

Filtração glomerular e perfusão renal

Após o nascimento, o rim encarrega-se das funções homeostáticas até então desempenhadas pela placenta; em situações de normalidade a primeira micção do RN de termo verifica-se em cerca de 97% dos casos até às 24 horas de vida e em 100% até às 48 horas. A inexistência de diurese até às 24 horas no RN de termo levanta a suspeita clínica de patologia subjacente que importa investigar (por ex. hipóxia – isquémia, anomalias congénitas, fármacos administrados à mãe, etc.).

A filtração glomerular e a perfusão renal aceleram o ritmo desde as primeiras horas de vida extrauterina. A filtração glomerular, cerca de 20 mL/min x 1,73 m2 no RN de termo, duplica nas primeiras duas semanas (num adulto cuja superfície corporal média é cerca de 1,73 m2, a filtração glomerular atinge 100-120 mL/min). O desenvolvimento do débito plasmático renal segue uma evolução paralela, sendo que no período neonatal a maturação funcional é mais rápida que o crescimento morfológico.

No RN pré-termo, a filtração glomerular, partindo dum nível mais baixo, desenvolve-se de modo rápido. Esta maturação depende de modificações anatómicas e hemodinâmicas:

  • Crescimento glomerular;
  • Elevação da pressão arterial;
  • Diminuição da resistência vascular renal; e
  • Aumento da superfície de filtração e da permeabilidade capilar.

Está igualmente associada a importantes alterações da concentração de hormonas vasoactivas:

  • Diminuição da angiotensina II, das prostaglandinas, do péptido natriurético auricular (PNA ou ANP produzido nos miócitos da aurícula como resposta a hipoxémia ou a distensão da cavidade auricular); e da
  • Endotelina.

A maturação da filtração glomerular traduz-se clinicamente por modificações da creatininémia. No pós-parto, o RN apresenta valores elevados da creatininémia que reflectem a concentração materna desta substância. A creatinina plasmática do RN de termo diminui rapidamente e estabiliza por volta do 5º dia de vida num valor de cerca de 35 μmol/L. No RN pré-termo de muito baixo peso com cerca de 28 semanas de gestação e taxa de filtração glomerular muito mais baixa (cerca de 10 mL/min x 1,73 m2), o tempo necessário para excretar a creatinina materna é muito mais longo, podendo atingir 1 mês.

Regulação homeostática

A capacidade de diluição do RN de termo ou pré-termo é eficaz: a osmolalidade pode atingir valores até cerca de 40 mOsm/kg H2O. A capacidade de concentração no RN pré-termo é, pelo contrário, limitada em comparação com o adulto: osmolalidade urinária máxima de cerca de 680

mOsm/kg/H2O contra cerca de 1400 mOsm/kg/H2O no adulto; no RN pré-termo tal valor é < 680 mOsm/kg/H2O.

Tendo em conta a fraca capacidade de concentração, o RN de termo e, ainda mais, o RN pré-termo, necessitam de um volume mais importante de água para a excreção da carga osmótica diária.

Balanço do sódio

O rim desempenha papel primordial na regulação do balanço de sódio e, por conseguinte, na manutenção da osmolalidade e volume do líquido extracelular.

Como particularidades do mecanismo do balanço do sódio cabe referir:

  • Existe equilíbrio, quer no RN, quer no adulto, entre a filtração e reabsorção de sódio;
  • A fracção excretada de sódio (FeNa ou percentagem de sódio filtrado não reabsorvido e excretado) na data de nascimento está inversamente correlacionada o com a idade gestacional; e, mais tarde, com a idade pós-natal. Este facto dificulta a interpretação dos valores de FeNa no RN pré-termo com suspeita de insuficiência renal aguda;
  • Os RN pré-termo (e em menor grau os RN de termo) evidenciam incapacidade para excretar excesso de sódio resultante de suprimento excessivo do mesmo (por menor filtração glomerular, actividade aumentada do sistema renina-angiotensina-aldosterona, perfusão preferencial dos glomérulos juxtaglomerulares em detrimento dos corticais, etc.); tal conduz a balanço positivo em sódio;
  • Os RN pré-termo evidenciam incapacidade para reter sódio em situações de carência do mesmo (por resistência parcial do túbulo renal distal à aldosterona, entre outros factores);
  • As perdas de água transepiderme, muito elevadas no RNMBP, poderão originar hipernatrémia mesmo que o suprimento em sódio não seja excessivo;
  • No RN pré-termo de muito baixo peso é relevante considerar o período inicial em que ocorre, paralelamente à perda de peso, contracção do espaço extracelular que contém sódio; uma vez que a referida contracção corresponde a passagem de sódio do espaço extravascular para o vascular, haverá que adoptar prudência na prescrição de sódio em tal período de adaptação.
Equilíbrio ácido-base

A regulação do equilíbrio ácido-base é relativamente eficaz no RN. Este excreta, desde os primeiros dias, os ácidos produzidos pela oxidação dos substratos metabólicos e reabsorve os bicarbonatos filtrados.

Existe igualmente capacidade para diminuir o pH urinário em situação de acidose metabólica (valores mais baixos no RN de termo); os valores mais baixos são atingidos proporcionalmente a partir da 2ª semana de vida.

Tendo em conta o baixo limiar de excreção urinária, é importante referir as diferenças de comportamento no RN de termo e no pré-termo; no primeiro caso a concentração de bicarbonato plasmático é cerca de 20-22 mmol/L e, no segundo caso, 18-20 mmol/L.

Actividade da renina plasmática (ARP)

Na data do nascimento a concentração da RP no RN de termo é cerca de 10-12 ng/mL/hora; tal concentração vai diminuindo até cerca de 1 ng/mL/hora pelos seis anos de idade, valor que se mantém até à idade adulta.

Os principais estímulos para a libertação de renina são mediados pela PG-E2 e PG-I1. Ora, a excreção urinária destas prostaglandinas é relativamente maior nos RN pré-termo, variando de modo inversamente proporcional à idade de gestação.

Carga de soluto renal

A quantidade de água necessária para a formação da urina depende, não só da função renal, mas também da chamada carga de soluto renal. Esta última deriva, quer de produtos do catabolismo tecidual quando o suprimento energético e proteico é insuficiente, quer do suprimento exógeno de proteínas e electrólitos. Por sua vez, para o rim excretar a carga de soluto renal através da urina, necessita de água cujo volume deve oscilar entre 40 mL/kg/dia inicialmente, e 60-80 mL/kg dia nas semanas subsequentes.

Adaptação hematológica

Tendo em consideração que determinados tópicos relacionados com esta alínea foram analisados noutros capítulos, é dada ênfase à transfusão placentar e à dinâmica dos neutrófilos.

Transfusão placentar

A prática corrente tem sido proceder à laqueação entre os 30 e 60 segundos de vida extrauterina, considerando que o RN e placenta são colocados no mesmo plano da vulva (salientando-se que as normas actuais recomendam tempo não inferior a 1 minuto).

Estudos muito recentes (Junho de 2021) advogam diferir a laqueação do cordão até cerca de 3 minutos em RN de termo, com vantagens no neurodesenvolvimento.

Recordando que o volume total de sangue (da placenta + do RN de termo) varia entre 115-120 mL/kg, e que o valor da volémia do RN em idênticas circunstâncias varia entre 70-100 mL/kg, compreende-se que a placenta constitui um reservatório importante de sangue, podendo influenciar a volémia do RN.

A posição da placenta cerca de 50 cm acima do plano do RN favorece a transfusão placenta-feto, enquanto a posição inversa favorece a transfusão feto-placenta.

Se a laqueação for precoce (< 30 segundos) com RN-placenta-vulva no mesmo plano, obtém-se, na ausência de anomalias hematológicas prévias ou de patologia associada, hematócrito ~ 48-50%; se a laqueação tiver lugar aos 30 segundos, obtém-se incremento do valor de Hb em + 2g/dL; se ao cabo de 3 minutos, o valor da transfusão placento-fetal é cerca de 25-50 mL/kg (o que conduz a incremento da volémia de ~ +50%).

Dinâmica dos neutrófilos

Entre as 12 e 24 horas após o nascimento verifica-se elevação do número de neutrófilos, diminuindo depois até às 72 horas, mantendo-se com número relativamente estável a partir desta data; a relação entre número absoluto de neutrófilos imaturos e o número absoluto de neutrófilos totais é < 0,2. Nas situações de estresse perinatal tais, como infecção perinatal, asfixia, eclâmpsia, etc., aumenta a proporção de neutrófilos imaturos.

Adaptação neurológica e comportamental do RN

No que respeita aos ritmos circadianos, os chamados ritmos diurnos encontram-se no feto desde as 20 semanas, possivelmente relacionados com os ritmos de melatonina materna.

O comportamento do RN no pós-parto, designadamente no que respeita à actividade motora e alternância de sono-vigília, pode ser influenciado por factores diversos tais como analgesia materna, anestesia intraparto, toxicodependência materna, etc..

Nos primeiros 120 minutos pós-parto o RN está alerta, executa movimentos de rotação da cabeça, de flexão e extensão dos membros, movimentos de sucção e simile mastigação, evidenciando mímica semelhante a “caretas”, e movimentos mioclónicos dos globos oculares.

Após os primeiros 120 minutos começa a verificar-se alternância de períodos de actividade com períodos de sono; o sono activo pode oscilar em períodos de minutos a cerca de 4 horas; no entanto, este processo de ritmo circadiano pós-natal (alternância sono-vigília em relação com os níveis de cortisol e melatonina) poderá levar entre 8 e 12 semanas e estabilizar.

De salientar que tais fases evolutivas podem sofrer alteração como resultado de determinadas situações como toxicodependência, diabetes materna, e restrição do crescimento intra-uterino.

A hemorragia intracraniana secundária a traumatismo do nascimento pode ser considerada uma anomalia da adaptação fetal à vida extrauterina; tal como a asfixia, poderá traduzir-se por apneia ou convulsões nas 48 horas a seguir ao parto. Apneia e convulsões poderão também ocorrer secundariamente a hipoglicémia, hipocalcémia, abstinência de drogas ou policitémia.

Outras formas de adaptação

Resistência do cérebro à hipóxia perinatal

Durante a vida intra-uterina as necessidades do encéfalo em energia e em oxigénio são mais baixas em relação ao RN, à criança maior e ao adulto (menor idade <> neurónios mais pequenos, menos ramificados e com menor número de sinapses); contudo, tais necessidades aumentam com a idade gestacional. De salientar que o encéfalo imaturo, com capacidade glicolítica anaeróbia, utiliza como alternativa, entre outras fontes energéticas, os corpos cetónicos.

O período de transição feto-RN é também acompanhado de alterações neuroquímicas importantes. A concentração de aminoácidos excitatórios, tais como o glutamato atingindo a concentração máxima no termo da gestação, poderá contribuir para maior sensibilidade à hipóxia no RN de termo em comparação com o pré-termo.

Activação de genes

O trabalho de parto interfere no mRNA no que respeita à codificação dum certo número de enzimas (tais como hidroxilase da tirosina e a betahidroxilase da dopamina), e de compostos (como a chamada substância P). Esta última, produzida no tractus solitarius, evidencia uma concentração que aumenta significativamente nos primeiros dias de vida; admite-se que possa ter papel de regulação no automatismo respiratório como mediador na estimulação de quimiorreceptores em situações de hipóxia.

Índice de Apgar

O chamado índice de Apgar, criado em 1953 nos EUA por Virgínia Apgar, é um método de avaliação vital do RN, traduzindo a adaptação imediata do feto à vida extrauterina (ao 1 minuto e 5 minutos; e, eventualmente, também aos 10 minutos e 15 minutos). De modo estruturado, são avaliados 5 parâmetros, a cada um dos quais é atribuída respectivamente a pontuação de 0 ou 1 ou 2. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Índice de APGAR.

 012
Frequência cardíacaausência de batimentos< 100/min> 100/min
Respiraçãoapneiairregularchoro forte
Irritabilidade reflexaausentefracaboa
Cor da pelepalidezcianoserosada
Tono muscularhipotonia marcadaflexão ligeira das extremidadesflexão franca das extremidades
actividade motora

 

De acordo com a pontuação verificada, é possível dividir as situações encontradas em 4 grupos:

  • 0 <> feto morto;
  • 1-3 <> depressão grave;
  • 4-6 <> depressão ligeira a moderada;
  • 7-10 <> boa vitalidade ou boa adaptação à vida extrauterina.

Sugere-se a consulta do Capítulo sobre Reanimação Neonatal.

Como notas importantes relativamente a este critério de avaliação, cabe acentuar:

  1. Trata-se dum instrumento que orienta quem assiste ao parto sobre a eventual necessidade de executar manobras de reanimação (o principal interesse deste critério);
  2. Índice de Apgar baixo (depressão ou adaptação difícil) não traduz necessariamente situação de asfixia perinatal, nem de probabilidade de sequelas futuras;
  3. Em situações específicas acompanhadas de valor baixo persistente (< 3) até aos 15 minutos existe, de facto, probabilidade de sequelas neurológicas.

Nota – Sobre as limitações do índice da Apgar, designadamente em situações de prematuridade, e quanto ao significado do parâmetro “cor da pele”, consultar o Capítulo sobre Reanimação Neonatal.

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INTRODUÇÃO À NEONATOLOGIA

Objectivos da Neonatologia

O termo Neonatologia abrange o conjunto de conhecimentos necessários para a prestação de cuidados ao RN saudável ou doente. O desenvolvimento deste ramo da Pediatria implica cooperação íntima com a Medicina Materno-Fetal; com efeito, estas duas áreas da Medicina são devotadas ao mesmo produto de concepção em fases diferentes do desenvolvimento (intra-uterina/feto – extra-uterina-RN) com o papel activo de pediatras – neonatologistas, obstetras, especialistas em medicina materno-fetal, pediatras gerais, médicos de família, profissionais de enfermagem e outros profissionais e técnicos de saúde.

De facto, o clínico responsável pelos cuidados a prestar ao RN pode deparar com um largo espectro de situações clínicas no pós-parto imediato (muitas delas previstas no pressuposto de se ter verificado vigilância pré-natal): desde o RN saudável sem factores de risco, junto da mãe que amamenta, em enfermaria de puérperas e com alta precoce para o domicílio (cerca de 90%), ao RN exigindo cuidados especiais, ou em situação crítica exigindo terapia intensiva médico-cirúrgica e a colaboração de equipas multiprofissionais altamente especializadas (cerca de 7-10%).

Cabe referir que, em qualquer dos cenários, os cuidados a prestar ao RN deverão ser globais, incorporando as vertentes biológica e psicossocial, em obediência aos princípios do reconhecimento da criança recém-nascida como pessoa, e do papel fundamental da Família no chamado acto médico. Hoje em dia nenhum serviço poderá merecer a qualificação de excelente se desconhecer o RN como pessoa.

Nasce, assim, o conceito de Neonatologia centrada na Família como um processo de facilitar o encontro pais-filho RN, incluindo a convivência da Família nos serviços assistenciais; tal equivale a dizer que a mesma também faz parte da equipa, englobando neste conceito os cuidados domiciliários com o apoio indispensável de equipas assistenciais ligadas à instituição de saúde onde a criança nasceu ou foi assistida no pós-parto.

Em suma, podem ser delineados dois grandes objectivos da Neonatologia na perspectiva de respeito pelos direitos e superiores interesses da criança, com o fim último de melhor qualidade de vida:

  1. Prestação de cuidados aos RN saudáveis e doentes, englobando a detecção precoce de anomalias congénitas;
  2. Redução da mortalidade e da morbilidade no grupo dos chamados RN de alto risco (englobando, designadamente, sequelas ligadas à patologia do feto e RN).

Definições

Para que as estatísticas de mortalidade e morbilidade possam ser comparadas, quer na mesma instituição, quer noutras instituições nacionais ou internacionais, torna-se necessário uniformizar a terminologia a utilizar. Efectivamente, só deste modo se poderá planear e avaliar com rigor a política de saúde perinatal. Dito doutro modo, pode afirmar-se que a utilização de terminologia não uniformizada limita seriamente a interpretação exacta dos estudos epidemiológicos, especialmente quando se trata de comparar amostras ou populações de crianças nascidas prematuramente ou concebidas segundo tecnologia de reprodução assistida.

Seguidamente são revistas e comentadas algumas definições correntes em Neonatologia.

Idade gestacional

É o tempo decorrido entre o primeiro dia da última menstruação e o dia do parto. O primeiro dia do último período menstrual ocorre aproximadamente duas semanas antes da ovulação e três semanas antes da implantação do blastocisto. Uma vez que a maioria das mulheres sabe quando teve início o último período, mas não quando ocorreu a ovulação, este critério relativamente fidedigno tem sido utilizado para fazer uma estimativa sobre a data prevista do parto. Poderão verificar-se imprecisões irrelevantes (variações de 4-6 dias) quanto à data do parto, relacionadas, sobretudo, com variabilidade quanto à fertilização do ovo e à implantação do blastocisto. Imprecisões mais relevantes (variações da ordem de semanas) poderão ocorrer nos casos de mulheres com menstruações com frequência e duração muito irregulares, ou nos casos de hemorragias surgindo em dias próximos à concepção.

Notas importantes:

    1. A idade gestacional pode ser expressa em semanas ou dias completos; contudo, cabe referir exemplos para garantir o rigor do registo: por exemplo, um feto com 25 semanas + 5 dias, ou com 25 semanas + 3 dias, é considerado um feto de 25 semanas; ou seja, de acordo com as normas vigentes, não é correcto proceder ao arredondamento para 26 semanas. Contudo, é correcto (tomando como exemplo o caso de feto com 25 semanas) acrescentar o número de dias da semana não completada, ainda a decorrer, em superscript, precedido do sinal +: 25 semanas+5 ou 25 semanas+3;
    2. O primeiro dia do último período menstrual é o dia zero (0) e não o dia um (1);
    3. A 40ª semana da gravidez actual, a decorrer (ou período entre o 280º dia e o 286º dia) significa semana 39ª completa.

Idade cronológica (ou idade pós-natal)

É o tempo decorrido após o nascimento, o qual pode ser expresso em dias, semanas, meses e/ou anos.

Idade pós-menstrual

Este termo, expresso em semanas, compreende o somatório dos dois termos anteriores: idade gestacional + idade cronológica.

Idade corrigida (ou idade ajustada)

Este termo, expresso em semanas ou meses, corresponde à idade cronológica subtraída do número de semanas que antecederam o nascimento antes das 40 semanas. Este termo deverá ser usado apenas em crianças até aos 3 anos de idade, com antecedentes de prematuridade.

Nota: Deve dar-se preferência ao termo idade pós-menstrual nos casos referentes ao período entre as 28 semanas de gestação e o 7º dia de vida pós-natal (168 horas); e ao termo idade corrigida nos casos avaliados após o 7º dia de vida pós-natal.

Período perinatal

Período que se inicia a partir de 22 semanas completas de gestação (154 dias) – data a que corresponde habitualmente peso fetal ~ 500 gramas – e termina uma vez completados 7 dias após o nascimento.

Período neonatal

Período que se inicia na data de nascimento e termina após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: precoce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672 horas).

Nascimento vivo

É a expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção (nado-vivo) que, depois da separação (independentemente de o cordão ter sido ou não laqueado e a placenta ter sido ou não retirada), respire ou evidencie qualquer outro dos sinais de vida, tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical, e movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária.

Peso de nascimento

Constitui a primeira medida de peso a efectuar no produto de concepção após o nascimento (quer se trate de nado-vivo, quer de nado-morto).

Este parâmetro deve ser determinado durante a primeira hora de vida e antes de se iniciar a perda de peso fisiológica pós-natal.

Recém-nascido de baixo peso (RNBP) ou microssomático

RN com peso de nascimento < 2.500 gramas (até 2.499 gramas inclusive).

Recém-nascido de muito baixo peso (RNMBP)

RN com peso de nascimento < 1.500 gramas (até 1.499 gramas inclusive).

Recém-nascido de muito baixo peso extremo (RNMBPE)

RN com peso de nascimento < 1.000 gramas (até 999 gramas inclusive).

Recém-nascido normossomático

RN com peso de nascimento compreendido entre 2.500 e 4.000 gramas.

Recém-nascido macrossomático

RN com peso de nascimento > 4.000 gramas

RN pré-termo

Recém-nascido cuja idade gestacional é inferior a 37 semanas completas (< 259 dias).

Actualmente, segundo a OMS e peritos internacionais, são considerados os seguintes subgrupos de idade gestacional em RN pré-termo, em semanas:

  • 22-27 → pré-termo extremo;
  • 28-31 → muito pré-termo;
  • 32-36 → pré-termo moderado;
  • 34-36 → pré-termo tardio.

A OMS recomenda que se incluam apenas os nados-vivos.

Contudo, de acordo com os peritos, a inclusão dos nados-mortos somente contribuirá para modificação significativa dos números nos países em desenvolvimento.

RN de termo

Recém-nascido com idade gestacional compreendida entre 37 semanas e 41 semanas e 6 dias (259-293 dias).

Neste grupo de idade gestacional é considerado um subgrupo: 37-38 semanas (RN de termo precoce).

RN pós-termo

Recém-nascido com idade gestacional de 42 semanas completas ou mais (294 dias ou mais).

Antropometria e valores de referência

  1. De acordo com a OMS (1995), os valores da antropometria podem ser expressos em curvas de percentis ou, quando as medidas têm uma distribuição normal, em médias e desvios-padrão (DP). Em qualquer circunstância, são estabelecidos limiares de diagnóstico ou valores de corte (cut off) que reflectem melhor o equilíbrio possível entre a sensibilidade e a especificidade, de modo a identificar o que “não é normal”. A mediana corresponde ao percentil 50 e, por aproximação, -1DP ao percentil 5, +1DP ao 95, -2DP ao 3 e +2DP ao 97.
  2. Os valores de referência da antropometria ao nascer reflectem o crescimento intra-uterino e não devem ser confundidos com as curvas de crescimento intra-uterino construídas a partir das medições ecográficas fetais seriadas. Recentemente foram publicados valores de referência de crescimento intra-uterino a partir do registo da antropometria ao nascer com base numa amostra multirracial de 257.855 RN de gravidez única, nos EUA. Abrangendo o período das 22 às 42 semanas de gestação, são específicos para o género e incluem curvas de percentis (3 a 97), assim como médias e desvios-padrão para o peso, o comprimento e o perímetro cefálico. São as chamadas curvas de Olsen, que deverão substituir as clássicas, mas obsoletas, curvas de Lubchenco.

Os valores do peso, em função da idade de gestação, permitem classificar os RN em:

  • Leves para a idade de gestação (< percentil 3);
  • Adequados para a idade de gestação (percentil 3 a 97); e
  • Grandes para a idade de gestação (> percentil 97). (Figura 1)

O índice ponderal calcula-se pelo quociente: (peso em gramas X 100)/ (comprimento em cm elevado ao cubo).

Relativamente à avaliação antropométrica no lactente e criança em três situações diversas:

  1. Nas primeiras semanas pós-parto (avaliação do crescimento durante a hospitalização);
  2. A curto prazo (semanas após a alta hospitalar);
  3. E a longo prazo (meses/anos), sugere-se ao leitor a consulta das seguintes referências bibliográficas:
    • Ehrenkranz RA, et al ” Pediatrics 1999; 104: 280-289;
    • Fenton TR ” BMC Pediatr 2003; 3:13;
    • Guo SS, et al ” Arch Pediatr Adolesc Med 1966;
    • Guo SS, et al ” Early Hum Dev 1997.
Nota importante: De acordo com a literatura recente, não existe consenso relativamente aos valores de referência para avaliação do crescimento de crianças nascidas pré-termo.

Morte fetal

É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contracção voluntária (nado-morto).

Morte neonatal

É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias.

Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia zero) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vida. A partir do segundo dia de vida, e até 28 dias completos de vida, a idade de morte deve ser registada em dias.

Índice Ponderal= Peso em gramas x 100
(comprimento em cm)3

Adaptado de Olsen, 2010, com permissão)

FIGURA 1. Curvas de crescimento intra-uterino de Olsen para ambos os sexos: A+B <> sexo feminino; C+D <> sexo masculino. (consultar o texto)

Gravidez e recém-nascido de alto risco

Sucintamente, alto risco na gravidez, ou no recém-nascido significa possibilidade de doença ou de morte em relação com a presença de determinados factores, respectivamente para a díade grávida-feto, e recém-nascido.

Factores de risco na gravidez

Um dos objectivos dos exames de saúde/consultas pré-natais é, precisamente, detectar precocemente factores de risco na perspectiva de tomada de medidas atempadamente (por exemplo, encaminhamento da grávida para centro especializado, tratamento farmacológico, repouso, hospitalização, etc.) com a finalidade de reduzir ao mínimo, compensar ou anular situações adversas, quer na grávida, quer no feto. De referir que cerca de 2/3 dos factores de risco na gravidez podem ser identificados nos primeiros meses, e os restantes no final ou durante o parto.

A decisão de considerar a gravidez de alto risco cabe ao médico. Tal não impede, no entanto, a colaboração da equipa de enfermagem no que respeita à colheita de dados, e ao apoio do clínico no respeitante à tomada de decisão.

Seguidamente são mencionadas listas de factores de risco na gravidez (por vezes associados) que servem de orientação para se proceder à anamnese nas consultas pré-concepcional e pré-natal.

Factores sócio-económicos
  • Casal com graves dificuldades financeiras;
  • Habitação precária;
  • Problemas sociais do casal (pai ausente, conflitos conjugais, etc.);
  • Mãe solteira, em especial se adolescente;
  • Nutrição deficiente da futura mãe, antes ou durante a gravidez;
  • Idade da mãe < 16 anos ou > 35 anos;
  • Estatura da mãe inferior a 152 cm;
  • Mãe fumadora (sobretudo se fumar > 10 cigarros por dia);
  • Antecedentes familiares de doenças hereditárias;
  • Antecedentes obstétricos de: ausência de vigilância pré-natal anterior, infertilidade, abortos repetidos, gravidezes seguidas- intervalo inferior a 2 anos-, multiparidade, RN pré-termo anterior, parto prolongado, RN de baixo peso, RN macrossomáticos, nado-mortos ou mortes neonatais anteriores, filhos anteriores com doença motora cerebral ou doença neurológica, filho anterior com defeitos congénitos, mola hidatiforme, coriocarcinoma, síndroma antifosfolípida, etc..
Doenças maternas
  • Incompetência cervical;
  • Nefropatia gravídica;
  • Doença renal crónica, infecções urinárias repetidas, albuminúria persistente;
  • Diabetes mellitus e pré-diabetes;
  • Tromboflebite, embolia;
  • Doença cardíaca;
  • Doenças endócrinas (suprarrenal, tiroideia, hipófise, etc.);
  • Doença pulmonar grave incluindo tuberculose;
  • Doença sexualmente transmissível ou outras doenças infecciosas;
  • Anemia crónica (ferripriva, megaloblástica, hemoglobinopatias, etc.);
  • Subnutrição;
  • Obesidade;
  • Doença neoplásica;
  • Intervenção cirúrgica durante a gravidez;
  • Anomalias congénitas importantes do aparelho locomotor;
  • Epilepsia, atraso mental, etc.;
  • Alcoolismo crónico ou dependência de drogas.
Factores materno-fetais
  • Incompatibilidade sanguínea (Rh, ABO, Kell, outros);
  • Administração de fármacos durante o período da organogénese;
  • Infecções do grupo TORCHS;
  • Irradiação;
  • Alteração do crescimento fetal (restrição ou macrossomia).
Factores placentares e amnióticos
  • Hemorragia vaginal;
  • Hemorragia retroplacentar;
  • Disfunção placentar primária;
  • Placenta prévia ou abruptio placenta, outras alterações, etc.;
  • Ruptura prematura das membranas ovulares;
  • Poli-hidrâmnio ou oligo-âmnio.
Nota: Para quantificar de modo objectivo o risco pré-natal estão descritas na literatura médica diversas escalas estruturadas atribuindo pontuação parcelar a cada parâmetro considerado, o que permite uma pontuação final e, por exemplo, decisão de transferir, ou não, a grávida para centro especializado.

Factores de risco no RN (RN de alto risco)

A lista seguinte integra um conjunto de situações, por vezes associadas, que comportam risco de grau variável no RN.

Factores perinatais
  • Início prematuro de contracções uterinas;
  • Parto pós-termo;
  • Duração do parto
    • na primigesta: > 24 horas
    • na multigesta: > 12 horas
    • segundo período: > 2 horas;
  • Ruptura prolongada de membranas: > 24 horas;
  • Apresentação anormal;
  • Desproporção céfalo-pélvica;
  • Prolapso do cordão umbilical;
  • Parto com fórceps alto;
  • Cesariana;
  • Parto pélvico.
Factores neonatais
  • Peso de nascimento < 2.500 gramas ou > 4.000 gramas;
  • Parto múltiplo (gemelaridade);
  • Líquido amniótico meconial;
  • Índice de Apgar < 5 ao 1º minuto;
  • Resultados anómalos de exames para determinação do “bem-estar” fetal;
  • Sofrimento fetal agudo, subagudo ou crónico;
  • Manobras de reanimação;
  • Dificuldade respiratória;
  • Depressão do SNC por medicamentos administrados à mãe;
  • Sinais de lesão traumática relacionada com o nascimento;
  • Anomalias congénitas.

 Critérios de gravidade

Está hoje demonstrado que o prognóstico da doença neonatal não depende apenas das condições inerentes ao próprio organismo susceptíveis de criarem maior vulnerabilidade (tais como grau de imaturidade), mas igualmente da gravidade do processo mórbido. Ou seja, quando se trata de comparar estudos epidemiológicos sobre morbilidade e mortalidade neonatais no âmbito das mais diversas instituições, os bons ou maus resultados obtidos não podem ser relacionados apenas com o peso e/ou idade gestacional, (exemplificando tão somente com parâmetros de avaliação muito frequentemente considerados), mas igualmente com a gravidade da doença ou doenças de base.

Daí a necessidade de entrar em conta com critérios representativos da gravidade da doença, questão que, ao longo da evolução da Neonatologia moderna tem levado grupos de investigadores a testarem vários parâmetros combinados de modo estruturado e quantificado (escalas de avaliação de gravidade), procedendo à sua ulterior validação.

O objectivo fundamental de tais escalas é tentar aperfeiçoar os indicadores de desempenho das unidades de tal forma que seja possível realizar comparações mais rigorosas entre unidades, regiões e, principalmente, nas próprias em diferentes períodos, tendo em vista a melhoria gradual dos cuidados a prestar aos RN. É o conceito de auditoria.

Há que reconhecer as limitações do método, o qual deverá ser entendido como instrumento de orientação complementar para a equipa médica que, recebendo informação através da escala, presta cuidado a um doente específico; à referida equipa são, pois, exigidos bom senso clínico e ponderação no que respeita a decisões de vária ordem.

Existem diversos modelos de escalas de gravidade baseados em medidas fisiológicas, terapêuticas, diagnósticas, factores de risco, etc., sendo que a cada parâmetro é atribuída determinada pontuação, obtendo-se uma pontuação final ou “índice”.

Seguidamente são apresentados alguns dos critérios mais frequentemente utilizados em unidades neonatais, os quais são designados habitualmente pelas respectivas abreviaturas do título em língua inglesa.

CRIB (Clinical Risk Index for Babies)

O método CRIB (Quadro 1), a utilizar nas primeiras 12 horas de vida, é simples e pode ser aplicado a RN com peso de nascimento < 1.500 gramas e/ou idade gestacional < 31 semanas. Como limitação refere-se a dificuldade de aplicação a RN transferidos doutra unidade neonatal.

De acordo com estudos disponíveis, este critério não é preditivo da morbilidade nos sobreviventes.

Poderá obter-se um valor ou índice final entre 0 e 23, directamente proporcional à gravidade.

QUADRO 1 – Parâmetros do índice de gravidade CRIB.

* Para manter PaO2 de 50-80 mmHg e saturação de O2-Hb de 88-95%
ParâmetroPontuação
Peso de nascimento (gramas)
> 1350
851-1350
701-850
≤ 700

0
1
4
7
Idade gestacional (semanas)
> 24
≤ 24

0
1
Anomalias congénitas
Ausentes
Sem risco de vida
Com risco de vida

0
1
3
Défice de base máximo (mmol/L) – 1as 12 horas
< 7,0
7,0 a 9,9
10,0 a 14,9
≥ 15,0

0
1
2
3
FiO2 mínima adequada* nas 1as 12 horas
≤ 0,40 0
0,41 – 0,60
0,61 – 0,90
0,91- 1,00

0
2
3
4
FiO2 máxima adequada* nas 1as 12 horas
≤ 0,40
0,41- 0,80
0,81 – 0,90
0,91 – 1,00

0
1
3
5

SNAP (Score for Neonatal Acute Physiology) e SNAP-PE (Perinatal Extension)

Este método, na modalidade inicial (SNAP) integrando 34 parâmetros relacionados com sinais vitais e resultados de exames complementares (pontuação atribuída respectivamente a cada parâmetro: 1, 3, 5), pode ser utilizado em RN com qualquer peso de nascimento; com esta escala pretende-se quantificar o grau de instabilidade fisiológica. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Parâmetros do índice SNAP.

ParâmetroPontuação
135
Pressão arterial média, mmHg
Alta
Baixa
66-80
30-35
81-100
20-29
>100
<20
Frequência cardíaca
Alta
Baixa
180-200
80-90
201-250
40-79
>250
<40
Frequência respiratória60-100>100
Temperatura ºC35-35,533,3-34,9<33,3
PO2 mmHg50-6530-50<30
Relação PO2/FIO22,5-3,50,3-2,49<0,3
PCO2 mmHg50-6566-90>90
 Índice de oxigenação0,07-0,200,21-0,40>0,40
Hematócrito %
Alto
Baixo
66-70
30-35
>70
20-29

<20
Contagem de leucócitos (x 1.000)/ mmc2-5>2
Relação imaturos/totais>0,20
Número absoluto de neutrófilos totais/mmc500-999<500
Número de plaquetas (x 1.000)/mmc30-1000-29
Ureia, mg/dL40-80>80
Creatinina, mg/dL1,2-2,42,5-4>4
Débito urinário, mL/kg/hora0,5-0,90,1-0,49<0,1
Bilirrubina indirecta (por peso de nascimento)
> 2 kg: mg/dL
≤ 2 kg: mg/dL
15-20
5-10
>20
>10

Bilirrubina directa, mg/dL≥2,0
Sódio, mEq/L
Alto
Baixo
150-160
120-130
161-180
<120
>180
Potássio, mEq/L
Alto
Baixo
6,6-7,5
2,0-2,9
7,6-9
< 2,0
>9
Cálcio ionizado, mg/dL
Alto
Baixo
≥1,4
0,8-1

<0,8

Cálcio total, mg/dL
Alto
Baixo
≥12
5,0-6,9

<5,0

Glicémia, mg/dL
Alta
Baixa
150-250
30-40
>250
<30

Bicarbonato sérico, mEq/L
Alto
Baixo
≥33
11-15

≤10

PH sérico7,20-7,37,10-7,19<7,10
ConvulsãoÚnicaMúltipla
ApneiaResposta à estimulaçãoNão resposta à estimulaçãoCompleta
Sangue oculto nas fezesPositivo


Posteriormente esta escala foi de modo progressivo simplificada para SNAP-II, e SNAP-PE-II, sugerindo-se a consulta da bibliografia.

Notas importantes:

    1. A utilização dos referidos índices para decisões de carácter ético não é recomendada.
    2. Doentes com quadros clínicos semelhantes poderão evidenciar diversidade quanto à evolução.
    3. A informação fornecida pelos índices de gravidade deverá ser considerada um complemento da avaliação global pelo clínico responsável por determinado doente.

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ASPECTOS DA MEDICINA PERINATAL II – VIGILÂNCIA INTEGRADA

A importância de novos paradigmas

Na sequência do que foi afirmado no capítulo anterior, pode inferir-se que o feto e o recém-nascido são um continuum de uma mesma entidade cuja abordagem é levada a cabo (e cuja prestação de cuidados é feita) em tempos diferentes por especialidades diferentes, com o objectivo de se assegurar um ser humano saudável.

O especialista em diagnóstico pré-natal, na posse do seu treino imagiológico e de técnicas de intervenção, tem uma acção muito dirigida ao feto; o obstetra procura que a mãe tenha as condições ideais para que o embrião e, depois, o feto, se desenvolvam harmoniosamente; e, finalmente, o pediatra vigia e cuida do recém-nascido desde o momento do nascimento.

De facto, a vigilância da mulher grávida em moldes clássicos, dando continuidade a práticas de há muito, valoriza essencialmente certos algoritmos de procedimentos e determinados exames complementares, subalternizando, não só certas características específicas e a individualidade da mulher, mas também a relevância do ambiente em que o feto se desenvolve.

Consequentemente, tendo em consideração a realidade descrita e os resultados da investigação, quer sobre a díade mãe-feto, quer sobre a importância do ambiente em que o feto se desenvolve (microambiente), e quer ainda sobre a do ambiente em que a grávida vive (macroambiente), os investigadores passaram a chamar a atenção para a necessidade de criar novos modelos de acompanhamento da gravidez.

O objectivo deste capítulo é descrever sucintamente, segundo a experiência e a investigação da autora, alguns dos pilares essenciais duma proposta de vigilância integrada da gravidez. (ver adiante)

Cuidados pré-concepcionais

Relativamente aos cuidados pré-concepcionais, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou diversas publicações, quer na sua plataforma (www.dgs.pt), quer na sua rede de intranet sobre Saúde Reprodutiva.

O impacte do trabalho profissional da grávida e da jovem mãe

As questões laborais no nosso País continuam a ter um impacte com repercussões negativas na grávida, apesar da legislação que apoia a gravidez e da existência de entidades que centralizam informação ou sinalização de casos (por ex. CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, acessível em www.cite.gov.pt). Qualquer grupo de trabalho nesta área terá uma capacidade de acção limitada, pois a prática clínica diária revela que a raiz do problema está na mentalidade estrutural da população.

Com efeito, as entidades patronais nem sempre “facilitam a vida” a trabalhadoras que tenham de seguir as orientações do médico. Eis alguns exemplos: ter de faltar para ir a consultas ou realizar exames, mudança de tarefas de uma funcionária, sua colocação num local compatível com esforço físico menos exigente, garantia de refeições a horas certas, ou ter de “picar o dedo” para colheita de sangue quatro vezes por dia para avaliar a glicémia.

Se o tempo de gravidez pode constituir, por si só, um risco de despedimento ou atitudes de má vontade da parte patronal, para a mãe, os primeiros tempos de vida do filho também poderão constituir uma preocupação baseada na realidade. E utilizando a licença de parto para que a mãe possa acompanhar em casa o filho, a mesma poderá não ser viável no contexto das profissões liberais. Por sua vez, na hipótese de os progenitores terem idêntica profissão, a licença de paternidade poderá ser inviabilizada.

Outras questões se levantam ainda, relacionadas designadamente com a circunstância de o bebé poder adoecer, implicando faltar ao trabalho por impossibilidade ou ausência do apoio por parte dos avós ou outros familiares.

Poderá surgir aqui um dilema: tendo em consideração que a população feminina jovem, valorizando muito uma carreira profissional com sucesso, por outro lado é confrontada com a imposição de condições estruturais adversas por parte da sociedade civil, o que poderá determinar situação de estresse com as implicações deletérias de impacte a longo prazo e transgeracional. (ver capítulo sobre “Doenças do feto com repercussão no adulto” – volume I).

Na verdade, na nossa prática clínica e na nossa vida diária, damo-nos conta de que existem situações laborais de pressão excessiva, de perseguição, ou mesmo de assédio por parte de certas entidades patronais no contexto de “colaboradora que está grávida ou tem um filho bebé”. Poderá tratar-se, pois, de situações que consubstanciam quadros bullying e harassment laboral com certa impossibilidade de mitigação face a uma legislação de protecção legal, que existe, mas é algo limitada.

A este propósito, importa salientar que, embora os actuais benefícios monetários disponibilizados às famílias possam constituir incentivo para certos grupos populacionais, tal critério não é aplicável à totalidade.

Enfim, para obviar alguns dos inconvenientes apontados, assim como alguns dos factores considerados adversos, especialmente no contexto da gravidez e dos primeiros meses de vida, torna-se lógico admitir que a flexibilização de horários, aplicada quer à grávida e jovem mãe que trabalha, quer ao pai, contribuiriam decisivamente para a redução do estresse a que nos referimos anteriormente.   

Actuação prática

A figura 1 esquematiza uma proposta de acompanhamento da grávida em que os diversos aspectos a ter em conta, desde o início, são planeados de forma integrada.

Figura 1. Proposta de acompanhamento planificado da gravidez por objectivos e com cuidados integrados. (TMV)

Na pré-concepção ou na primeira consulta da gravidez, propõe-se uma avaliação e uma caracterização multidisciplinar, devendo estabelecer-se um plano contemplando as seguintes vertentes:

  • cuidados nutricionais (indicados por nutricionista);
  • actividade física;
  • cuidados de âmbito emocional (com base no perfil psicológico detectado); – cuidados obstétricos (organização de acompanhamento periódico, exclusivamente por médico, ou partilhado por enfermeira especialista);
  • acompanhamento dirigido às especificidades laborais, contendo designadamente recomendações relativamente a tarefas profissionais compatíveis com a situação, ou a outras consideradas como contra-indicação;
  • eventuais reajustamentos ao longo da gravidez em função do contexto clínico, o que pressupõe seguimento, caso a caso, com definição de datas em períodos considerados mais vulneráveis.

No plano de gravidez inicial, deveriam ainda ser incluídos:

  • os tempos e os exames propostos para a realização de ecografias ou de diagnóstico pré-natal;
  • preparação para o aleitamento materno;
  • o programa de preparação para o parto com especificação de datas;
  • marcação da consulta de avaliação pediátrica pré-natal para o início do terceiro trimestre; e
  • programa de apoio social e domiciliário com especificação de datas, sempre que se considere conveniente.

Como importante nota complementar, este plano de gravidez deveria contemplar ainda:

  • todo o período da gravidez, parto, e primeiros dois meses pós-parto, até à revisão da puérpera, dado que todo este tempo é essencial para a saúde da mulher e do filho;
  • os cuidados pediátricos com especificação de datas ajustadas às directivas actuais e já praticadas, quer no âmbito dos cuidados primários de saúde, quer no de outros locais mais diferenciados.

O plano de acompanhamento psicológico deveria prolongar-se caso fossem identificadas situações de casos vulneráveis relacionados, por exemplo, com violência doméstica em associação a graves situações de medo e de ansiedade. Nesta perspectiva, seria ainda pertinente introduzir a figura da gestora da grávida, certamente desempenhada por uma enfermeira cuidadora e organizada, a qual deveria integrar todos os aspectos de acompanhamento e servir de ponte facilitadora entre as diversas áreas do plano individual de cuidados.

Conclusão

  1. Tendo como fundamentação o texto que integra este capítulo, é legítimo afirmar que a estratégia definida para o seguimento da gravidez é exigente sob o ponto de vista do envolvimento dos cuidados de saúde, uma vez que requer técnicos de várias áreas a trabalharem de uma forma multidisciplinar integrada, quer numa fase inicial, quer depois, de forma transdisciplinar e a longo prazo.
  2. No que respeita aos cuidados de saúde materna (quer primários, quer hospitalares), os mesmos deveriam ser reestruturados, tendo como base novas linhas de orientação mais atentas e abrangentes, pois o investimento feito nos primeiros mil dias da vida, ou seja, desde a concepção até se completarem dois anos de vida pós-natal, são fulcrais para toda a vida do indivíduo, com benefícios indiscutíveis para toda a sociedade.

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ASPECTOS DA MEDICINA PERINATAL I – GENERALIDADES E ASSISTÊNCIA PRÉ-NATAL

Generalidades

O imperativo da cobertura geral universal da população por cuidados de saúde primários e as necessidades especiais de grupos populacionais vulneráveis, obrigam a conferir alta prioridade aos cuidados de saúde a prestar às mulheres em idade fértil e às crianças.

A este propósito importa reter algumas noções extremamente básicas, mas muito importantes, tais como:

  1. É essencial que todas as grávidas possam ser examinadas durante a gestação; daqui nasce o conceito de vigilância ou assistência pré-natal.
  2. Uma gravidez não vigiada ou deficientemente vigiada leva ao insucesso, constituindo só por si um factor de risco.
  3. A melhoria dos indicadores de saúde perinatal, nomeadamente da mortalidade neonatal, depende fundamentalmente duma vigilância pré-natal correcta, idealmente na sequência duma avaliação pré-concepcional.
    • Nos últimos quarenta anos, sobretudo nos países industrializados (e designadamente em Portugal) tem-se assistido a uma diminuição significativa das taxas da mortalidade materna e neonatal, mercê de programas integrados de vigilância da grávida. Hoje em dia, para além da melhoria dos referidos indicadores, um dos grandes desafios é o combate à prematuridade.
    • Nos referidos países o parto prematuro espontâneo (antes das 37 semanas de gestação) ocorre em 6-11% de todas as gravidezes, e antes das 34 semanas em cerca de 3-5% das mesmas. Neste último período, a prematuridade comparticipa em cerca de ¾ a mortalidade neonatal, contribuindo igualmente para a morbilidade, sobretudo em termos de doenças do neurodesenvolvimento.
    • Os resultados de estudos recentes, incidindo sobre grávidas, demonstraram efeito benéfico e com segurança, da aspirina (ácido acetilsalicílico) em baixas doses, administrada desde fase muito precoce, mesmo antes das 16 semanas: redução muito significativa da taxa de prematuridade (em 8% no caso da aspirina), assim como da incidência de pré-eclâmpsia, restrição do crescimento fetal, insuficiência placentar, prematuridade e da contractilidade uterina. Tais efeitos foram explicados pelos efeitos de inibição da cicloxigenase e da acção antiagregante plaquetário da aspirina em baixas doses. Noutros estudos, utilizando fármacos do grupo dos antiagregantes plaquetários, foram obtidos resultados semelhantes.

Consulta pré-concepcional e pré-natal

I. Idealmente, e numa perspectiva extraordinariamente importante de prevenção, antes da gravidez deverá processar-se a chamada consulta pré-concepcional. Nesta consulta é avaliado o estado geral da “pré-grávida”, ponderando a eventual repercussão de antecedentes pessoais e familiares, quer da própria grávida, quer do parceiro, sobre a gravidez e produto de concepção.

Os aspectos específicos da consulta pré-concepcional podem ser sintetizados do seguinte modo:

  • Ponderar o risco genético susceptível de originar manifestações na futura criança;
  • Avaliar a somatometria (peso, altura, etc.) e os seguintes parâmetros: pressão arterial, Hb, Hct, regime alimentar, estado nutricional, tipo de actividade física habitual, etc.;
  • Propiciar orientações e aconselhamento sobre: vantagens do aleitamento materno, exercício físico, regime alimentar e factores de risco, etc..

II. A consulta pré-natal tem objectivos gerais e específicos:

Objectivos gerais:

  • Avaliar o bem-estar fetal e materno através de parâmetros clínicos e de exames complementares;
  • Detectar factores de risco que possam comprometer a evolução da gravidez e o bem-estar fetal, orientando correctamente cada situação;
  • Promover a educação para a saúde, integrando o aconselhamento sobre a importância do aleitamento materno e o apoio psicossocial ao longo de toda a gravidez.

Não existindo consenso (inclusive a nível internacional) sobre o número ideal de consultas pré-natais, de acordo com a Direcção Geral da Saúde é recomendado seguinte esquema:

  • Consultas mensais até à 32ª semana;
  • Consultas quinzenais entre 33ª e 37ª semanas;
  • Consultas semanais a partir da 38ª semana.

Considera-se esquema reduzido o número de 6 consultas (às 12, 20, 28, 32, 36 e 40 semanas).

Objectivos específicos:

  • Propiciar educação para a saúde e aconselhamento à grávida e sua família;
  • Propiciar um plano de rastreio e vigilância clínica com apoio de exames complementares com os objectivos de:
    • detectar precocemente desvios da normalidade,
    • minorar a sintomatologia associada à gravidez e apoiar a grávida na adaptação às alterações fisiológicas e às complicações que possam decorrer dos factores de risco.

Dos aspectos específicos da consulta pré-natal fazem parte:

  • Anamnese incidindo fundamentalmente sobre a detecção de factores de risco;
  • Exame físico incluindo determinação do peso (actual e incremento desde o início da gravidez), da altura, da pressão arterial, auscultação cardíaca e pulmonar, detecção de eventual mamilo pouco saliente, requerendo procedimento preventivo de repuxamento, edema, varizes, hemorróidas, outra patologia; e exame ginecológico (toque vaginal para apreciação do colo uterino e do estádio de apresentação depois das 34 semanas);
  • Aspectos indirectos relacionados com a semiologia fetal clínica convencional: determinação da altura do fundo uterino (distância entre sínfise púbica e fundo uterino), avaliação dos movimentos fetais, auscultação fetal (sendo que os batimentos cardíacos são audíveis com o estetoscópio de Pinard a partir das 19 semanas e a partir das 10 semanas com aparelhos do tipo Doptone), e avaliação da apresentação fetal no 3º trimestre;
  • Exames laboratoriais (grupo sanguíneo (A B 0) e factor Rh (assim como factor Rh do marido se a grávida tiver grupo Rh negativo), Hb e Hct, VDRL (a repetir obrigatoriamente em cada trimestre), serologia do grupo TORCHS e análise sumária de urina; em casos especiais: uricémia, creatininémia, prova de Coombs indirecta se for Rh- e marido Rh+, glicémia em jejum e pós-prandial, uricémia e urocultura;
  • Avaliação da pressão arterial da grávida;
  • Exames de imagem (ecografia fetal), a partir das 11-12 semanas;
  • Eventuais prescrições e revisão do regime alimentar.

Nota importante: Para o registo sequencial dos aspectos referidos, e de outros importantes, designadamente dos relacionadaos com promoção da saúde e prevenção da doença, foi concebido o pequeno livro chamado “Boletim da Grávida” de que a mesma deve ser portadora aquando das consultas ou episódios de observação por médico ou profissional de enfermagem. Trata-se, pois, dum documento informativo em circulação, de grande utilidade em prol da saúde da díade grávida feto/RN.

Avaliação do risco

Relativamente à avaliação do grau de risco (entendido como probabilidade de doença grave ou morte para a grávida e/ou feto/RN), exemplifica-se com o índice de Goodwinn. (Quadro 1), em que se atribui determinada pontuação [de 0 a 3] a certos parâmetros.

QUADRO 1 – Avaliação do risco pré-natal de Goodwinn, modificado.

I. História reprodutiva
IdadeParidade
≤ 17 e ≥ 40 = 3 
18 – 29 = 01 – 4 = 0  
30 – 39 = 1≥ 5 = 3  
História obstétrica anterior
Aborto habitual (≥ 3 consecutivos)= 1  
Infertilidade= 1  
Hemorragia pós-parto/dequitadura manual= 1  
Pré-eclâmpsia/eclâmpsia= 1  
Cesariana anterior= 2  
Feto morto/morte neonatal= 3  
Trabalho de parto prolongado ou difícil= 1  
Índice …………… ________________ + 
II. Patologia associada
Cirurgia ginecológica anterior= 1  
Doença renal crónica= 2  
Diabetes gestacional= 1  
Diabetes mellitus= 3  
Doença cardíaca= 3  
Outros problemas médicos
(Bronquite crónica, lúpus, etc.) Índice de acordo com a gravidade (1 a 3)
=  
Índice …………… ________________ +
III. Gravidez actual
Hemorragias1º Exame36ª Semana
≤ 20 semanas= 1   
> 20 semanas= 3   
Anemia (Hb ≤ 10 g/dL)= 1   
Gravidez prolongada (≥ 42 semanas)= 1   
Hipertensão= 2   
Rotura prematura das membranas= 2   
Hidrâmnio= 2   
Gravidez múltipla
Apresentação pélvica
Má apresentação
= 3   
Isoimunização Rh= 3   
Índice ……………________________________________
Total …………………………________________________________
BAIXO RISCO = 0-2
MÉDIO RISCO = 3-6
ALTO RISCO = ≥ 7


Em situações de risco médio ou alto (pontuação igual ou superior a 3), a grávida deverá ser encaminhada para centro especializado, sendo que a consulta neste último poderá envolver outros especialistas para além do especialista em medicina materno-fetal; o objectivo é avaliar a história natural da doença, estabelecer no feto o diagnóstico e o prognóstico, explicando aos pais e família aspectos psicossociais, assim como as possibilidades terapêuticas, incluindo, benefícios e riscos (aconselhamento).

A acessibilidade do feto leva ao conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) como um conjunto de procedimentos que permitem identificar ou excluir anomalias estruturais ou morfológicas, e funcionais, de um feto em desenvolvimento; ou seja, através do mesmo, é possível objectivar múltiplas situações de patologia fetal (ou excluí-las com elevado grau de especificidade), estabelecer eventual indicação de tratamento in utero, tratamento neonatal precoce, o que poderá contribuir para a melhoria do prognóstico.
Nesta perspectiva, subentende-se que o DPN, abordado adiante, deve ser encarado como uma das valências avançadas da vigilância pré-natal, o que pressupõe o cumprimento de determinadas etapas em centros especializados.

Notas importantes:

    1. Reportando-nos ao capítulo 1 desta obra, recorda-se a definição abrangente de Pediatria como “medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao fim da adolescência”, citada por uma figura de referência da pediatria e perinatologia: A. Torrado da Silva. A filosofia desta definição prende-se com a ideia de que o clínico que presta assistência a crianças (pediatra ou médico de família) deve valorizar os antecedentes pré-natais, dizendo respeito a eventos durante a gravidez com eventual impacto no embrião e ou no feto. Aliás, uma noção faz parte da história clínica pediátrica. Esta filosofia consubstancia a necessidade e o benefício em prol da saúde, de cooperação efectiva entre “médico da grávida e do parto” e “médico da criança”: este último, interessando-se pela evolução da gravidez e os primeiros, interessando-se pela evolução do bebé. É esta a base fundamental da perinatologia. Efectivamente, de acordo com a legislação portuguesa, no âmbito dos cuidados primários/centros de saúde, a grávida e a criança são observadas e seguidas por médico de família, os quais poderão referenciar os pacientes para especialistas em função do contexto clínico.
    2. Constituindo rotina a avaliação do risco pré-natal, a verificação de situações de médio ou alto risco implica a referenciação da grávida para centro especializado, local em que poderão ser realizados exames complementares mais sofisticados (abordados adiante), para além dos clássicos laboratoriais e ecografias pré-natais anteriormente citados.
    3. Relevando o papel da vigilância na gravidez, na década de 70 do século XX, em época anterior às novas tecnologias, um especialista sueco de renome – H. Hagberg – chamava a atenção para a enorme importância da utilização de instrumentos simples, perante recursos limitados: balança para avaliação seriada do peso, fita métrica para avaliação seriada da altura do fundo uterino, estetoscópio de Pinard para avaliação dos batimentos cardíacos fetais, esfigmomanómetro para avaliação da pressão arterial da grávida e bloco notas de papel para a mesma registar o número e horário dos movimentos fetais.
    4. Tendo sido sintetizados alguns aspectos das consultas pré-concepcional e pré-natal, salienta-se que, no âmbito da assistência pré-natal, as normas de orientação clínica poderão variar de centro para centro.
    5. Após o parto é distribuído à mãe/família do bebé um pequeno livro, chamado Boletim de Saúde Infantil e Juvenil para utilizar durante a idade pediátrica (contendo informação importante sobre a gestação, o período neonatal, educação para a saúde, recomendações em idades-chave, gráficos de crescimento e folhas para preencher pelo médico ou profissional de saúde no âmbito de actos médicos, vacinações ou episódios de doença. Trata-se, pois, dum importante documento informativo em circulação, que deve acompanhar a criança ou o jovem. Em anexo, contém o chamado Boletim Individual de Saúde (portfólio para registo de vacinas).

Semiologia fetal

Ecografia fetal convencional

A ecografia fetal é um exame imagiológico não invasivo que pode ser realizado por via transvaginal no primeiro trimestre da gestação, ou por via transabdominal em fases ulteriores.

De acordo com a experiência de vários centros considera-se como esquema ideal a realização de quatro ecografias durante a gestação:

  • 1ª entre as 11 e 14 semanas;
  • 2ª entre as 20 e 22 semanas;
  • 3ª entre as 26 e 28 semanas;
  • 4ª entre as 32 e 36 semanas.

As limitações da técnica estão relacionadas essencialmente com a posição do feto e a experiência do ecografista. Em função da experiência do ecografista e do grau de diferenciação do centro e capacidade técnica da aparelhagem onde é realizada a ecografia, são considerados classicamente três níveis:

  • Ecografia básica (nível I) realizada em ambulatório por imagiologistas, técnicos ou obstetras;
  • Ecografia diferenciada (nível II) realizada por obstetras com diferenciação especializada nesta área ou por imagiologistas;
  • Ecografia altamente diferenciada em centros altamente especializados onde se pode proceder igualmente a terapia fetal (nível III), realizada por especialistas em medicina fetal.

A ecografia fetal possui muitas potencialidades; entre outras, são destacadas as seguintes: avaliação da idade gestacional possibilitando melhor vigilância da evolução da gravidez, detecção de gravidez gemelar, detecção de restrição de crescimento fetal, detecção de anomalias congénitas com sensibilidade e especificidade de cerca de 95%, auxiliar para a realização de técnicas invasivas, avaliação do bem-estar fetal e medição da chamada translucência da nuca (TN).

A TN (imagem ecográfica hipoecogénica correspondente a líquido acumulado entre a pele e o tecido celular subcutâneo no triângulo posterior do pescoço do concepto entre as 11 e 13 semanas) constitui um método de rastreio de várias anomalias congénitas, incluindo anomalias cromossómicas e génicas; nalguns estudos sobre detecção pré-natal de trissomias 21, 13 e 18 verificou-se sensibilidade ~ 86% e especificidade ~ 95%.

O valor considerado normal é inferior a 2,5 mm; ou seja, a translucência considera-se aumentada quando evidenciar valor superior ao percentil 95 para a idade de gestação, o que obrigará a orientação da grávida para centro de medicina materno-fetal diferenciado.

Aquando da medição da TN pelas 11-13 semanas, o ecografista avalia em paralelo a anatomia fetal, sendo que o uso de sonda transvaginal aumenta o sucesso do referido estudo, designadamente quanto à visualização da face, rins e bexiga. Tal sucesso depende também da distância craniocaudal, do índice da massa corporal da mãe e do tempo despendido para o exame (idealmente nunca inferior a 25 minutos).

Ecografia tridimensional

Esta nova técnica, que não dispensa a ecografia convencional, permite a visualização do feto em três dimensões.

Como nota adicional, refere-se que o extraordinário desenvolvimento da ecografia destronou uma técnica invasiva envolvendo elevadas taxas de morbilidade e mortalidade que hoje pode ser considerada histórica – embrioscopia (visualização do feto por endoscopia intramniótica).

Ressonância magnética (RM)

A principal indicação deste exame imagiológico (ainda não exequível em todos os centros perinatais) é a detecção de anomalias congénitas do SNC.

Ecocardiografia fetal com ou sem doppler

A ecografia fetal, com ou sem doppler, está indicada em situações de risco gravídico elevado, e perante suspeita de defeito cardíaco. É realizada por cardiologista pediátrico com experiência nesta área, integrado na equipa multidisciplinar perinatal.

No Quadro 2 são resumidas algumas indicações deste exame complementar fetal.

QUADRO 2 – Indicações da ecocardiografia fetal.

Antecedentes familiares de cardiopatia congénita
Antecedentes familiares de morte perinatal de causa não esclarecida

Gravidez actual:

      • Arritmia cardíaca fetal
      • Hydrops fetalis de causa não imune
      • Anomalias fetais identificadas
      • Gemelaridade
      • Restrição do crescimento intra-uterino
      • Infecção do grupo TORCHS (ver adiante)
      • Idade materna > 35 anos
      • Outros factores de risco (diabetes, HTA, alcoolismo, fármacos, exposição a poluentes, etc.)

Amniocentese

A amniocentese (técnica de colheita de líquido amniótico por via abdominal para estudos vários – no âmbito da citogenética, biquímica, infecciologia, doenças metabólicas, etc.) é tradicionalmente realizada sob controlo ecográfico, entre as 16 e 18 semanas; em circunstâncias especiais pode ser realizada entre as 12 e 15 semanas.

Tal técnica, realizada por equipas experientes, propicia resultados conclusivos em cerca de 95% dos casos. As principais indicações deste procedimento constam do Quadro 3, que relaciona o tipo de exame a efectuar com a situação a esclarecer.

QUADRO 3 – Indicações da amniocentese.

Situação a esclarecerTipo de exame no líquido amniótico
Defeito do tubo neuralDoseamento da alfafetoproteína (AFP) acetilcolinesterase e pesquisa de células do sistema nervoso
Fibrose quística Fosfatase alcalina, aminopeptidase, dissacaridase
Maturidade pulmonar Relação lecitina/esfigomielina, fosfatidilglicerol
Infecções fetaisPesquisa de germe microbiano através do método PCR (reacção da polimerase em cadeia)
Doenças genéticasAnálise do ADN
Iso-imunizaçãoBilirrubina por espectrofotometria
Doenças metabólicasDoseamentos enzimáticos, identificação de metabólitos, estudo do fenótipo HLA, estudo molecular
Anomalias do tubo digestivoDoseamento de ácidos biliares, bilirrubina
Anomalias cromossómicasEstudo do cariótipo, sexo fetal, etc.

Cordocentese

A cordocentese é um procedimento em que se obtém amostra de sangue do cordão in útero por via percutânea com apoio imagiológico (ecogáfico), em geral realizado após as 19 semanas.

As principais indicações da cordocentese são:

  • Análise citogenética em caso de suspeita de anomalia congénita, doseamento de factor VIII, determinação da Hb em caso de iso-imunização fetal; e
  • Determinação de imunoglobulina M (IgM), PCR (reacção da polimerase em cadeia) e análise de ADN para identificação microbiana, havendo suspeita de infecção.

Biópsia das vilosidades coriónicas

Trata-se duma técnica em que se procede ao estudo histológico da camada citotrofoblástica das vilosidades da placenta em desenvolvimento, entre as 8 e 11 semanas de gestação contadas a partir do primeiro dia da última menstruação (mais frequentemente entre as 9 e 10 semanas); de acordo com a posição da placenta, utilizam-se as vias vaginal ou transabdominal, sob visualização ecográfica.

A biópsia das vilosidades coriónicas (que proporciona resultados rápidos e em fase precoce da gestação) realiza-se para estudo citogenético ao nível das células em mitose activa; podem também ser tiradas conclusões sobre o material genético do embrião a partir de cultura de células de fragmentos das vilosidades.

O grau de precisão dos resultados é semelhante ao obtido com a amniocentese; os riscos, no entanto, são ligeiramente superiores em comparação com esta última técnica.

Punção-biópsia e análise de células fetais

Em situações seleccionadas e muito específicas é possível, com o auxílio da ecografia, realizar punção ao nível de diversos órgãos (pele, fígado). Por outro lado, no sangue materno é possível detectar células fetais circulantes, pesquisando, designadamente, o respectivo ADN.

Ossos do nariz

Diversos estudos demonstraram, por método imagiológico, a existência de anomalias nos ossos do nariz em fetos com síndroma de Down, detectáveis já no primeiro trimestre (taxa de detecção de 73% para 5% de falsos positivos). A combinação deste parâmetro com o critério atrás descrito (associação de três parâmetros) permite aumentar para 95% o número de casos detectados, com 5% de falsos positivos.

Alterações hemodinâmicas no ductus venosus (DV)

Como se sabe, o ductus venosus é um vaso sanguíneo que, na vida intrauterina funciona como derivação reguladora (shunt) do fluxo venoso entre a circulação umbilical e o coração.

Através de ecografia doppler transvaginal ou transabdominal, estudo das alterações da forma das ondas de fluxo no sistema venoso fetal poderá dar informações importantes sobre a circulação central em fase precoce da gravidez (primeiro trimestre) devido às características do sistema venoso (baixa pressão, baixa velocidade e grande distensibilidade da parede vascular).

Ou seja, tal avaliação permitirá identificar precocemente na gravidez sinais de compromisso miocárdico e alterações do fluxo durante a contracção auricular fetais, as quais constituem o sinal mais precoce de compromisso cardíaco. Assim, é possível identificar fetos em risco de anomalia cromossómica, aneuploidia e/ou de insuficiência cardíaca.

Em estudos efectuados em fetos com aneuploidia verificou-se associação a dados anómalos do fluxo do DV, variável entre 59% a 95% dos casos; comparativamente com fetos evidenciando cariótipo normal foram encontrados sinais de fluxo anómalo em percentagens variando entre 3% e 21%.

Trata-se, no entanto, de um exame difícil, requerendo muita experiência para evitar erros de interpretação. Salienta-se, a propósito, que entre as dez e catorze semanas de gestação o DV tem um calibre de cerca de 2 mm.

Avaliação do bem-estar fetal

Para a avaliação do chamado “bem-estar fetal” ou estado vital do feto podem ser utilizados vários métodos:

Cardiotocografia (CTG)

Trata-se duma técnica sensível, mas pouco específica, para detecção de hipóxia fetal, habitualmente aplicada a partir das 28 semanas de gestação. Com o desenvolvimento da informática, existe hoje aparelhagem sofisticada que permite a interpretação automática dos dados obtidos. De salientar que a sua utilização foi suplantada pela fluxometria/doppler a referir seguidamente.

Fundamentalmente, cabe referir que a CTG integra um conjunto de parâmetros tais como: frequência cardíaca fetal (FCF) basal, a sua variabilidade, a relação entre aceleração da FCF e movimentos fetais, e a relação entre desaceleração ou diminuição da FCF com ausência ou presença de contracções uterinas.

Fluxometria

Trata-se duma técnica utilizada hoje em todos os centros de medicina perinatal, a qual tem como principal indicação a suspeita de restrição do crescimento do feto.

O fundamento da mesma é medir, pelo método doppler, a resistência vascular/onda pulsátil do sangue circulante nas artérias uterinas (compartimento materno), umbilicais (compartimento placentar), ou cerebral média (compartimento fetal), para avaliar o estado circulatório feto-materno.

Admite-se que uma diminuição do débito ou fluxo sanguíneo (por exemplo por disfunção placentar progressiva) traduz aumento da resistência ao mesmo fluxo. Tal aumento da resistência é evidenciado por diminuição do fluxo diastólico, e por eventual ausência ou inversão do fluxo durante a diástole.

Actualmente dá-se importância prognóstica ao padrão de onda pulsátil ao nível do ductus venosus, designadamente nas situações associadas a restrição de crescimento intra-uterino. (ver adiante)

Perfil biofísico

O chamado perfil biofísico integra um conjunto de parâmetros com o objectivo de avaliar o bem-estar fetal e, consequentemente, identificar situações de estresse ou de sofrimento fetal. Como instrumentos de avaliação são utilizados o CTG e a ecografia.

Os parâmetros avaliados são os seguintes: respiração fetal, movimentos fetais, tono muscular, frequência cardíaca fetal (FCF), e volume de líquido amniótico (Quadro 4). À situação de normalidade é dada a pontuação de dois (2); à situação anormal é dada a pontuação de zero (0). Os parâmetros são avaliados em períodos de 30 minutos.

QUADRO 4 – Critérios utilizados na avaliação do perfil biofísico.

(Adaptado de Creasy RK & Resnik R, 1994)

→ CTG

    • Pelo menos 2 episódios de aceleração da FCF de 15 ou mais batimentos/minuto, com duração de, pelo menos, 15 segundos, associados a movimentos fetais, durante período de 30 minutos = (2)
    • Menos de 2 episódios de aceleração da FCF, ou aceleração < 15 batimentos/minuto, durante período de 30 minutos = (0) 

→ Volume do líquido amniótico

    • Pelo menos 1 bolsa de LA com, pelo menos, 2 cm em 2 planos perpendiculares = (2)
    • Ausência de bolsa de LA ou 1 bolsa com < 2 cm = (0)

→ Tono fetal

    • Pelo menos 1 episódio de extensão activa com retorno à posição de flexão do, ou dos membros do feto; abrir e fechar a mão é considerado tono normal = (2)
    • Ou extensão lenta com retorno à flexão parcial, ou movimento do membro em extensão completa, ou ausência de movimento fetal com a mão em deflexão completa ou parcial = (0)

Movimentos de expansão e retracção do tórax (MER)

    • Pelo menos 1 episódio, durando pelo menos 30 segundos, no período de observação de 30 minutos = (2)
    • Ausência de MER ou nenhum episódio, durando pelo menos 30 segundos, no período de observação de 30 minutos = (0)

→ Movimentos fetais (do corpo ou membros)

    • Pelo menos 3 movimentos discretos em 30 minutos (episódios de movimentos contínuos são considerados 1 só movimento) = (2)
    • 2 ou menos episódios em 30 minutos = (0)

Uma pontuação total de 8-10 pode significar com elevado grau de confiança “bem-estar fetal”; pontuação de 6 é duvidosa, o que obrigará a repetição dentro de 12-24 horas; pontuação de 4 ou menos corresponde a alto risco e obrigará a reavaliação imediata e, provavelmente, a desencadear o parto.

Parâmetros laboratoriais no soro materno

É consensual que deverá ser disponibilizado a todas as grávidas um programa de rastreio de anomalias fetais e de patologia associada à gravidez a todas as grávidas, o qual pode ser sintetizado do seguinte modo:

Rastreio bioquímico de cromossomopatias

Entre as 11 e 13 semanas de gestação pode proceder-se ao doseamento da PAPP-A (sigla de pregnancy-associated plasma protein A – proteína A do plasma associada à gravidez) e da alfa-fetoproteína no soro da grávida.

  • O valor da PAPP-A aumenta em condições de normalidade com a idade de gestação. Na trissomia 21 os níveis são mais baixos, sendo que, de acordo com dados da literatura, a percentagem de casos falsos positivos é cerca de 5%. Tal determinação poderá detectar ~ 40% dos casos de trissomia.
  • O valor da alfa-fetoproteína está elevado em situações de gemelaridade e de defeitos do tubo neural (em ~ 100% dos casos de anencefalia, e em ~ 70% dos casos de spina bífida ou de defeitos de encerramento da parede abdominal). Nas trissomias e nas aneuploidias, o valor está reduzido.
Rastreio bioquímico de cromossomopatias e defeitos do tubo neural

Entre as 15 e 18 semanas pode proceder-se ao doseamento da alfa-fetoproteína e da gonadotrofina coriónica (b-hCG ou b-human chorionic gonadotropin) livre.

  • No soro materno o valor da b-gonadotrofina coriónica humana livre, diminui em condições de normalidade a partir das 10 semanas. Na trissomia 21 os respectivos valores estão aumentados. Isoladamente utilizada, a b-hCG livre poderá detectar cerca de 35% dos casos de trissomia 21, com 5% de casos falsos positivos. Associando a b-hCG livre à idade materna, é possível a detecção de cerca de 45% de trissomias. De referir que, no 1º trimestre, o doseamento da b-hCG total é menos discriminatório do que a b-hCG livre.*

*De salientar que a sub-unidade beta da gonadotrofina coriónica constitui um marcador biológico para diagnóstico da gravidez; em situação de normalidade, valor < 10 mUI/mL exclui estado de gravidez. Por ex., valores de referência entre 1.500 e 23.000 mUI/mL correspondem a gravidez de 4-5 semanas, sendo que os valores variam em função do número de semanas decorridas.

Neste tipo de rastreio aplica-se o que foi referido antes relativamente à alfa-fetoproteína.

Diagnóstico pré-natal no primeiro trimestre

Os avanços tecnológicos relacionados com o diagnóstico de patologia diversa e aplicáveis à díade materno-fetal, têm contribuído para o rápido progresso do chamado DPN. Estes avanços, cada vez mais seguros e sensíveis, e aplicados a populações de baixo risco, tiveram como resultado a sua expansão.

Assim, exames já antes referidos, como a ecografia de alta definição, técnicas de análise citogenética e molecular e respectiva divulgação pelos meios de comunicação social, têm permitido que os procedimentos que integram o DPN sejam bem aceites, não só pela população em geral, mas também pelos profissionais de saúde.

A este respeito, importa escolher um modelo de rastreio sistemático e universal, adequado para determinada população, com boa relação custo/benefício.

A realização do DPN no primeiro trimestre tem vantagens relacionadas, designadamente, com: 1- possibilidade de conhecer o resultado mais cedo, o que corresponde a um período menor de incerteza; 2- a gestação não é ainda conhecida pelo agregado familiar, o que torna mais simples decidir em função de um resultado desfavorável.

Nesta perspectiva, para que determinados procedimentos invasivos de DPN possam ser aplicados, deverão, à partida, estar satisfeitos os critérios de exequibilidade técnica, confiabilidade e utilidade (tratamento ou interrupção), necessidade, segurança (benefício superior ao risco) e consentimento informado e esclarecido.

De acordo com dados da literatura, o modelo de DPN no primeiro trimestre, aparentemente mais adequado e com melhor relação custo-benefício, integra o rastreio conjugado de dois parâmetros bioquímicos (doseamento de PAPP-A + b-hCG livre) e de um parâmetro imagiológico (medição da translucência da nuca), a realizar pelas doze semanas de gestação.

Segundo a Fetal Medicine Foundation, combinando num modelo matemático a idade materna, TN, b-hCG livre e PAPP-A, marcadores independentes entre si, é possível identificar anomalias em 87% dos casos rastreados, com 5% de falsos positivos.

A propósito de diagnóstico e tratamento pré-natal precoces, importa referir os avanços alcançados com a utilização de novas tecnologias para identificação e tratamento de diversas patologias fetais através da administração de células precursoras pluripotenciais/estaminais/stem cells.

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