DOENÇA DO ARRANHÃO DO GATO E OUTRAS BARTONELOSES

Bartoneloses e importância do problema

As bartoneloses são doenças reemergentes em todo o mundo. No que respeita às espécies patogénicas para o homem do género Bartonella (> 60), citam-se como principais, B. henselae, B. bacilliformis, B. quintana, B. elizabethae e B. clarridgeiae.

As manifestações clínicas e a gravidade da infecção dependem da espécie do agente microbiano, do estado imune e da idade do paciente.

A chamada doença do arranhão do gato é uma doença infecciosa autolimitada e benigna provocada por Bartonella henselae (bacilo Gram-negativo aeróbio, comportando-se como intracelular facultativo), surgindo após contacto com gato e escoriação provocada pelo mesmo. Trata-se duma afecção que atinge principalmente crianças e adultos jovens e é a causa mais frequente de linfadenopatia crónica (de duração igual ou superior a 3 semanas).

Na primeira bartonelose descrita na espécie humana (provocada por B. bacilliformis) no Perú/América do Sul verificou-se, para além da febre e anemia hemolítica (febre Oroya), erupção cutânea semelhante a hemangioma (verruga peruana).

À B. quintana estão associados casos em doentes com imunodeficiência, sintomatologia de compromisso do SRE, bacteriémia e endocardite, para além de outros quadros clínicos.

Neste capítulo é dada ênfase à doença do arranhão do gato, a que surge com expressão mais significativa no nosso meio.

Aspectos epidemiológicos

A doença do arranhão do gato é uma doença universal, em geral esporádica, que afecta todas as etnias e géneros em proporções semelhantes. Há uma maior incidência da doença no Outono e no Inverno, quer devido ao ciclo reprodutivo da pulga do gato, quer porque nestas estações os animais são mantidos mais tempo em casa. Nos EUA é estimada uma incidência anual de 9/100.000 casos em doentes ambulatórios. Não há referência a dados de incidência da doença em Portugal. Foram descritos surtos afectando membros da mesma família.

Etiopatogénese

O agente Bartonella henselae tem um crescimento em cultura muito insidioso (cerca de 5 semanas). O seu principal reservatório é o gato, portador assintomático, em particular com menos de seis meses de idade, o qual infecta o ser humano por inoculação cutânea; com efeito, a bacteriémia (assintomática) nos gatos de menor idade envolve maior carga bacteriana do que a verificada nos gatos com > 6 meses de idade. A infecção é transmitida entre os gatos pela acção dum vector – a pulga Ctenocephalides felis.

Após a lesão na pele provocada pelo arranhão do gato, do qual resulta a inoculação do microrganismo no ser humano, verifica-se o aparecimento de uma pápula ou nódulo e necrose da derme. Posteriormente, há alterações nos gânglios linfáticos locorregionais. O aspecto histológico característico do gânglio linfático consiste em hiperplasia folicular, com necrose cortical e formação de granuloma necrótico com microabcessos centrais.

Granulomas idênticos podem ser encontrados no fígado, baço e sistema ósseo provocando, nesta última localização, lesões osteolíticas.

Importa referir que em cerca de 1% dos casos o microrganismo pode ser transmitido pela saliva do gato inoculado em zona de pele ou mucosa lesada. Nalguns casos, o agente etiológico é B. clarridgeiae. Cães e macacos podem ser reservatório. Não se provou a transmissão de pessoa a pessoa.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação compreendido entre 7 e 12 dias, surge no local da inoculação, em cerca de 60% dos doentes, uma pápula ou nódulo avermelhado de 3-5 mm (Figura 1). Todavia, esta lesão poderá não ser valorizada pelas suas pequenas dimensões. Uma a quatro semanas depois, na maioria dos casos, verifica-se o aumento de volume dos gânglios satélites, com sinais inflamatórios na pele adjacente (Figura 2). As manifestações de adenite verificam-se mais frequentemente na zona da cabeça e pescoço, seguindo-se as extremidades. Em cerca de 10% a 20% dos casos os gânglios linfáticos atingidos supuram espontaneamente. A presença concomitante de sinais e sintomas sistémicos tais como febre, cefaleia e prostração, é frequente.

Ocasionalmente, a doença pode cursar com conjuntivite granulomatosa e adenopatia pré-auricular, constituindo-se a chamada síndroma oculoglandular de Parinaud.

Raramente, podem ocorrer outras alterações como exantema maculopapular, eritema nodoso e púrpura não trombocitopénica. (Figura 3)

FIGURA 1. Nódulo ulcerado com crosta no dorso do polegar após arranhão. (NIHDE)

FIGURA 2. A – Arranhão no polegar esquerdo; B – Adenopatia axilar esquerda. (NIHDE)

FIGURA 3. Exantema maculopapular notório no abdómen. (NIHDE)

Complicações

As complicações neurológicas, em regra com evolução favorável, surgem em cerca de 2%-5% dos doentes, geralmente 6 semanas após o aparecimento da adenite. A complicação mais frequente é a encefalopatia; na sua forma de apresentação clássica podem surgir convulsões, comportamento bizarro e alterações do estado de consciência.

Outras manifestações neurológicas incluem paralisia periférica do nervo facial, mielite, radiculite e ataxia cerebelosa.

As complicações hematológicas incluem anemia hemolítica, púrpura trombocitopénica e não trombocitopénica, assim como, eosinofilia.

A vasculite leucocitoclástica, semelhante à púrpura de Henoch-Schonlein, é rara.

As complicações sistémicas, surgindo com maior probabilidade em doentes imunodeprimidos, constam de quadros clínicos diversos, mais graves tais como: hepatite, anemia hemolítica, pneumonia atípica, retinopatia macular estelar, hepatosplenomegália (por alterações granulomatosas), endocardite, lesões osteolíticas granulomatosas ósseas, eritema nodoso, etc..

Exames complementares e diagnóstico

Existe suspeita desta doença quando, pela anamnese, se comprova contacto com gatos, e pelo exame objectivo se verifica lesão cutânea primária associada a adenopatia satélite.

As provas de serologia permitem a confirmação do diagnóstico utilizando a técnica de imunofluorescência indirecta, sendo a subida do título de anticorpos (IgG e IgM) detectada desde o início dos sintomas. De salientar que existe reactividade cruzada entre as espécies de Bartonella, especialmente entre B. henselae e B. quintana.

Através de exames de biologia molecular/PCR, utilizando como material de estudo amostras obtidas por escarificação da pele lesada, é possível evidenciar a sequência de ácidos nucleicos da Bartonella.

Os exames imagiológicos como a ecografia ou a TAC permitem detectar numerosos nódulos granulomatosos no fígado e baço.

Os resultados anómalos de determinados exames laboratoriais correntes, tais como velocidade de sedimentação elevada, leucocitose ligeira a moderada, ou elevação do valor das aminotransferases em casos de doença sistémica não têm, na maior parte das vezes, grande utilidade, excepto no que respeita à avaliação mais objectiva da repercussão da doença sobre o estado geral do doente.

Nota importante: é desaconselhada a prova cutânea empregando antigénios obtidos de aspirado purulento de lesões ganglionares pela falta de padronização e pelo risco de transmissão da infecção.

Diagnóstico diferencial

A verificação de adenopatias impõe o diagnóstico diferencial com outras situações:

  • de etiologia infecciosa, tais como infecções por Streptococcus Beta-hemolítico do grupo A, S. aureus, espécies de Brucella, citomegalovírus, vírus de Epstein-Barr, VIH, Toxoplasma, fungos; e
  • de etiologia não infecciosa como por ex. lesões tumorais.

A síndroma oculoglandular pode, por sua vez, estar associada a outras afecções tais como sífilis, tuberculose, infecções por Chlamydia, entre outras.

Os nódulos e pápulas cutâneos associados a adenopatia locorregional podem impor o diagnóstico diferencial com infecções por micobactérias atípicas, tuberculose, fungos e leishmaníase.

Tratamento

Sendo na maioria dos casos uma doença autolimitada, com resolução espontânea, o tratamento pode ser apenas sintomático. Todavia, diversos autores referem que a antibioticoterapia contribui para encurtar o tempo de resolução da doença, advogando a sua instituição após o diagnóstico. Nas formas sistémicas e nos doentes imunodeprimidos, tal tipo de tratamento é obrigatório.

A escolha dos antimicrobianos recai na azitromicina PO (10 mg/kg/dia no primeiro dia, 5 mg/kg/dia nos 4 dias seguintes), ou claritromicina PO (15 mg/kg/dia, em 2 doses diárias), 7 a 10 dias.

Nos doentes com repercussões sistémicas verifica-se em geral boa resposta à rifampicina PO (20 mg/kg/dia, de 12/12 horas), isolada ou associada a cotrimoxazol PO (40-100 mg/kg/dia de sulfametoxazol, de 12/12 horas) durante 14 dias. As fluoroquinolonas, em idades > 17 anos, são uma alternativa.

Nota importante: a duração ideal da terapêutica não está estabelecida; os esquemas referidos são os recomendados habitualmente. Os beta-lactâmicos, tetraciclinas e a eritromicina não são eficazes. Em circunstâncias especiais, poderá estar indicada a drenagem cirúrgica dos gânglios linfáticos atingidos.

Prognóstico

O prognóstico é, dum modo geral, excelente, com recuperação em semanas ou meses. Em regra, as manifestações sistémicas surgem em doentes portadores de síndromas de imunodeficiência.

Prevenção

As crianças, em especial as imunocomprometidas, devem evitar contactos íntimos com gatos com menos de 6 meses de idade. Se o indivíduo fôr arranhado pelo gato, a ferida deve ser imediatamente bem lavada. Devem igualmente ser promovidas medidas de controlo da pulga do gato.

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BRUCELOSE

Definição e importância do problema

A brucelose humana é uma doença infecciosa zoonótica causada por microrganismos do género Brucella (coco Gram-negativo cujo crescimento é insidioso).

Também conhecida por febre de Malta, doença de Bang ou febre ondulante, constitui um problema de saúde pública em todo o mundo, sendo de notificação obrigatória em Portugal.

Embora a brucelose seja reconhecida tradicionalmente como uma doença de risco profissional nos adultos, a mesma pode afectar crianças em relação com o consumo de produtos lácteos não pasteurizados e em deficientes condições de higiene.

Salienta-se que na época actual, os microrganismos Brucella constituem uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.

 Aspectos epidemiológicos

A brucelose é a zoonose bacteriana mais frequente no mundo, com uma incidência acima de 500.000 novos casos por ano (incidência oscilando entre 0,03 e 160/100.000 habitantes). Apesar de a doença ser universal, é mais comum na zona do Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia, Américas Central e do Sul. Depois do desmembramento da União Soviética assistiu-se a um recrudescimento da referida doença na Europa de Leste, associado a degradação de condições de vigilância veterinária e de saúde pública.

Como regra, é considerada rara nos países industrializados, com condições de higiene mais regulamentadas. De Portugal, foram obtidos os seguintes dados: -entre 2010 e 2013 foram notificados 249 casos, dos quais 20 abaixo dos 15 anos de idade; – entre 2013 e 2016, 185 casos, sendo 6 abaixo dos 15 anos.

Estatísticas doutro país da Europa (Reino Unido), no período 2013-2016, apontam para ~ 20 casos/ano.

Nos EUA a erradicação da brucelose bovina reduziu a incidência de infecção no homem a 0,5 casos por 100.000 habitantes, embora na fronteira mexicana a prevalência seja 8 vezes superior.

O ser humano é um hospedeiro acidental, contraindo a infecção por contacto directo (feridas da pele) com produtos animais infectados, inalação de microrganismos veiculados por partículas sob a forma de aerossóis e ingestão de leite ou de queijo fresco não pasteurizados, ou ainda de produtos lácteos obtidos de animais infectados. No primeiro caso trata-se frequentemente duma doença profissional de veterinários ou de funcionários de matadouros. (ver Glossário)

A ingestão de leite ou derivados não pasteurizados constitui a forma mais frequente de transmissão da doença em idade pediátrica.

A transmissão inter-humana é rara, tendo sido descrita em relação com transfusões de sangue, transplantação de medula óssea e bancos de esperma.

A transmissão mãe-filho pode ocorrer via transplacentar ou pelo leite materno.

Etiopatogénese

Foram descritas 8 espécies do género Brucella pelas suas características fenotípicas, antigénicas e prevalência da infecção em diferentes hospedeiros; de referir que a sequenciação dos respectivos genomas revelam muitas similitudes.

Os agentes mais comuns responsáveis pela doença humana são: B. melitensis (a partir do gado caprino), B. abortus (a partir do gado bovino), B. suis (a partir do gado suíno) e B. canis (a partir dos cães). Os agentes B. ovis (a partir dos carneiros) e B. neotomae (a partir dos roedores do deserto) não têm sido transmitidos ao Homem.

As bactérias Brucella são parasitas intracelulares facultativos com capacidade de sobrevivência e de multiplicação no interior das células do SRE. Não possuem flagelos, endosporos, cápsula ou plasmidos. A membrana celular externa tem um componente lipopolissacarídeo dominante, o qual constitui o principal factor determinante de virulência da bactéria. B. melitensis e B. suis são mais virulentas que B. abortus.

Todas as espécies de Brucella produzem granulomas no fígado, baço, gânglios linfáticos e medula óssea. A inflamação de tipo granulomatoso poderá também ocorrer na bexiga, testículo (produzindo orquite intersticial com atrofia fibróide), endocárdio (produzindo endocardite com vegetações nas válvulas), cérebro, rim e pele.

A multiplicação dos germes dentro de células do SRE é essencial para a indução da imunidade; com efeito, o organismo hospedeiro responde elaborando anticorpos específicos tais como aglutininas, opsoninas, precipitinas e anticorpos fixadores do complemento contra polissacáridos e outros antigénios da parede celular.

Os anticorpos IgM específicos aparecem dentro de 1 semana após a entrada do germe no organismo, diminuindo após cerca de 3 meses. Os anticorpos IgG aumentam pela 2ª-3ª semana, persistindo nos casos não tratados ou incompletamente tratados. A verificação de reactividade cruzada dos anticorpos específicos para a Brucella com os germes Yersinia, Vibrio cholerae, Salmonella e Francisella resulta da similitude estrutural dos lipossacáridos das membranas dos referidos germes.

O principal determinante do processo de cura da infecção está relacionado com activação dos macrófagos através da acção de linfócitos T que, libertando citocinas (interferão-gama e TNF-alfa), conferem àqueles capacidade para a destruição do microrganismo Brucella.

A característica de crescimento insidioso de Brucella tem implicações práticas no que respeita a exames culturais; com efeito, para excluir resultados negativos verdadeiros dever-se-á esperar 21 dias pelo resultado laboratorial definitivo.

Manifestações clínicas

O período de incubação pode variar entre vários dias a 4-6 semanas.

As queixas de febre arrastada e/ou queixas articulares, associadas à ingestão de alimentos não pasteurizados, devem conduzir à suspeita de brucelose. Na ausência de antecedentes conhecidos de contacto com animais ou de ingestão de leite ou produtos lácteos não pasteurizados, o diagnóstico clínico de brucelose é difícil.

Trata-se duma doença sistémica com início agudo ou insidioso, habitualmente cerca de 2 a 4 semanas após a inoculação da bactéria no organismo. Surgem então manifestações inespecíficas de febre, artralgia, ou artrite, e hepatosplenomegália (30%-40% dos casos), as quais constituem a tríade clássica da doença. A febre, classicamente descrita como ondulante, é elevada, diária podendo acompanhar-se de sudorese nocturna intensa.

É comum a coexistência de sintomas gerais inespecíficos, tais como prostração, anorexia, cefaleias, dor abdominal, tosse e faringite. A doença pode envolver qualquer órgão ou sistema, embora as manifestações articulares sejam mais frequentes.

Em cerca de 30% dos casos, a doença, não se acompanha de febre, podendo manifestar-se apenas por doença articular, sendo mais frequentemente afectadas as articulações sacroilíaca, coxo-femoral e do joelho.

O exame objectivo é pouco informativo, podendo apenas evidenciar discreta hepatosplenomegália ou sinais de artrite. Raramente, pode ocorrer endocardite e meningoencefalite. No jovem, a doença pode manifestar-se por orquite aguda.

Os sinais de localização em órgãos ou sistemas (por ex. miocardite, osteomielite e infecção do tracto génito-urinário) são pouco frequentes. O intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico pode ser cerca de 150 dias, com uma média de 4 semanas.

Diagnóstico

O diagnóstico de suspeita poderá ser fácil nas áreas onde a infecção animal é endémica. Nas áreas não endémicas, o clínico poderá orientar-se valorizando a estadia do doente em áreas endémicas ou a ingestão de leite ou produtos animais provenientes das referidas áreas.

Os achados hematológicos, inespecíficos, poderão evidenciar anemia, hemólise, leucopénia, trombocitopénia ou pancitopénia por hiperesplenismo, hemofagocitose ou compromisso medular. A proteína C reactiva pode estar elevada, assim como a velocidade de sedimentação, especialmente nos casos de compromisso articular.

Existem fundamentalmente três instrumentos laboratoriais para o diagnóstico definitivo: – exame cultural; – serologia e; – provas moleculares.

O diagnóstico definitivo é realizado pelo isolamento da bactéria em hemocultura, líquido articular ou medula, sendo que tal ocorre numa percentagem entre 15% a 75% dos casos na fase aguda, antes da antibioticoterapia; na fase subaguda a percentagem de isolamento da bactéria diminui. Realça-se aqui o que atrás foi dito, tendo em conta as características do crescimento (lento) do agente Brucella: haverá que esperar pelo resultado até 4 semanas.

Por esta razão, e atendendo à fisiopatologia da doença, as provas serológicas através da pesquisa de anticorpos (provas de aglutinação) são fundamentais para o diagnóstico, salientando que os resultados devem ser interpretados em função da anamnese e exame objectivo.

O exame laboratorial de rastreio-padrão é a prova Rosa de Bengala pela elevada sensibilidade, embora a especificidade seja baixa. Este exame utiliza antigénios de B. abortus e detecta anticorpos contra todas as bactérias do género Brucella que contêm LPS. É considerada positiva se os títulos de IgM forem ≥ 1/160, o que acontece na maioria dos casos; contudo, o resultado desta prova poderá ser negativo na primeira semana de doença.

A evolução dos títulos de IgM e de IgG constitui um bom indicador de cura ou de recaída, sendo fundamental para a interpretação dos títulos de anticorpos, quantificar as IgG através de tratamento laboratorial do soro com 2-mercaptoetanol.

Pode utilizar-se a prova enzimática de imunoensaio, de elevada sensibilidade para a detecção de anticorpos anti-Brucella.

Assim, como notas importantes, cabe salientar:

    1. O sucesso do tratamento é seguido por diminuição rápida de anticorpos IgG;
    2. Títulos elevados ou em subida de IgG após tratamento sugerem infecção persistente ou recaída;
    3. Títulos baixos de IgM podem persistir durante semanas ou meses após tratamento da infecção;
    4. Em consonância com o que foi referido atrás, poderão ser encontrados resultados positivos falsos por reacção cruzada (anticorpos contra outros agentes Gram-negativos como Yersinia enterocolitica, Francisella tularensis e Vibrio cholerae);
    5. Poderão ser encontrados resultados negativos falsos devido ao fenómeno pró-zona (presença de títulos elevados de anticorpos anti-Brucella).

No âmbito de novos exames cabe citar:

    • a reacção em cadeia da polimerase (PCR) identifica o ADN do agente Brucella, salientando-se as suas elevadas sensibilidade e especificidade;
    • os achados histológicos são característicos, mas não patognomónicos. A biópsia de um gânglio linfático mostra inicialmente hiperplasia linfóide com proliferação arteriolar.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas de brucelose podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como riquetsioses, febre tifóide, tularémia, tuberculose, infecções por micobactérias atípicas, infecções por fungos (histoplasmose, blastomicose, coccidioidomicose) e vírus (da mononucleose infecciosa, entre outros).

No caso de brucelose persistente haverá que fazer a destrinça com histiocitose maligna, linfoma ou outras doenças neoplásicas.

Em circunstâncias especiais em que a história clínica não é suficientemente elucidativa, poderão estar indicados exames especiais, designadamente imagiológicos e biópsia medular.

Tratamento

Dado que o microrganismo Brucella é uma bactéria intracelular de crescimento insidioso, o tratamento antimicrobiano deve ser sempre duplo e prolongar-se por 4 a 6 semanas nas formas comuns. Nas formas associadas a osteomielite, meningite ou endocardite, o tratamento tem maior duração, 4 a 6 meses.

Chama-se a atenção para o facto de a actividade de muitos antimicrobianos demonstrada in vitro contra Brucella nem sempre corresponder ao resultado clínico desejado.

A doxiciclina é o antimicrobiano mais útil; quando associado a aminoglicosídeo, garante menor percentagem de recaídas. As falências verificadas com beta-lactâmicos, incluindo cefalosporinas de 3ª geração, poderão ser explicadas pela natureza intracelular do microrganismo.

Nesta perspectiva, a chave do êxito terapêutico passa pelo esquema de tratamento prolongado no sentido de minorar a probabilidade de recaídas.

No início do tratamento poderá verificar-se reacção de Herxheimer relacionada com grande carga antigénica libertada com a destruição do agente infeccioso.

O Quadro 1 resume o esquema de tratamento antimicrobiano considerando idade (> 8 anos, igual ou < 8 anos) e situações associadas a meningite, osteomielite e endocardite.

Situações de meningite, endocardite e osteomielite implicam internamento hospitalar, para além de outras situações específicas em função do respectivo contexto clínico. Na meningite por Brucella, a utilização de corticóides como terapêutica adjuvante da antibioticoterapia tem sido recomendada.

Tratando-se duma doença com repercussão sistémica, estão indicadas medidas sintomáticas com analgésicos e antipiréticos.

QUADRO 1 – Tratamento antimicrobiano da brucelose.

> 8 anos de idade
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas; ou Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 semanas + Estreptomicina IM (20-30 mg/kg/dia), dose máxima de 1 g/dia, durante 1-2 semanas, ou Gentamicina IM/IV(3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas.

≤ 8 anos de idade
Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas + trimetoprim (TMP)-sulfametoxazol (SMZ) PO (TMP: 10 mg/kg/dia, dose máxima de 480 mg/dia) e (SMZ: 50 mg/kg/dia, dose máxima de 100 mg/kg/dia), durante 4-6 semanas.

Meningite, Osteomielite, Endocardite
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 meses + Gentamicina IV (3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 meses.

Prognóstico

O prognóstico das formas comuns da doença é excelente, desde que o doente cumpra o regime antibiótico prescrito. Por vezes as famílias não respeitam tratamentos prolongados, o que contribui para recaídas da doença.

Salienta-se que o tratamento com apenas um antimicrobiano comporta risco de recaída da ordem de 5%-40%. As formas letais decorrem de complicações como a endocardite.

Prevenção

Tratando-se duma zoonose, a prevenção desta doença depende, entre outras medidas, e no âmbito da medicina veterinária, dos cuidados no manuseamento de carne e leite de animais e da erradicação da doença no gado caprino, ovino, suíno e bovino (imunização ou abate de animais infectados). Os cuidados com o manuseamento de animais potencialmente infectados devem ser aplicados igualmente pelos caçadores.

Por outro lado, deverá ser proscrita a ingestão de alimentos lácteos não pasteurizados.

A aplicação de vacina viva atenuada utilizada em animais não é praticável na espécie humana.

GLOSSÁRIO

Aerossol > Em Infecciologia significa disseminação aérea de partículas ≤ 5 mm de gotículas evaporadas contendo microrganismos, que permanecem em suspensão durante longos períodos, ou poeiras contendo agentes infecciosos ou esporos; os microrganismos podem dispersar-se até longas distâncias através de correntes de ar.

Plasmido > Elemento genético das bactérias susceptível de ser transmitido de um indivíduo para outro, independentemente dos genes veiculados pela grande molécula de DN.

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INFECÇÕES POR Salmonella

Definição, nomenclatura e importância do problema

O agente Salmonella é um bacilo Gram-negativo, não esporulado, anaeróbio facultativo, que se propaga à espécie humana. É resistente a muitos agentes físicos, sendo destruído a temperatura de 55ºC durante 1 hora ou a 60ºC durante 15 minutos. Mantém-se viável no ambiente a baixas temperaturas durante dias ou semanas em material fecal, resíduos orgânicos, etc.. A doença provocada por tal agente infeccioso, de expressão clínica variada, designa-se dum modo geral salmonelose.

Salmonella é um género da família Enterobacteriaceae cuja classificação taxonómica, algo complexa e confusa, tem mudado ao longo do tempo. (ver adiante)

O referido agente pode originar, após contacto com o organismo, para além da colonização assintomática, 2 síndromas clínicas:

  1. Infecção gastrintestinal (gastrenterite aguda ou prolongada); e
  2. Invasão sanguínea com consequente infecção sistémica.

As infecções por Salmonella (doenças de declaração obrigatória) surgem de forma endémica em várias regiões do globo, designadamente nos países em desenvolvimento, constituindo um problema de saúde pública de grande magnitude, com elevados custos para a sociedade (nos EUA, > de 3 biliões de dólares/ano).

A primeira forma descrita foi a febre tifóide, actualmente com baixa incidência nos países de maiores recursos económicos e rede adequada de cuidados primários e de saneamento básico. Em todo o mundo, estima-se que ocorram anualmente cerca de 20 milhões de casos e 600.000 mortes.

Nos países ditos desenvolvidos, a incidência de febre tifóide é < 15 casos/100.000 habitantes, ocorrendo, sobretudo em cidadãos que viajam e contactam com casos de portadores; em comparação, nos países do terceiro mundo, estima-se incidência da ordem de 100-1.000 casos/100.000 habitantes.

Em Portugal, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, no quadriénio 2010-2013 foram declarados até aos 15 anos de idade (exclusive) 742 casos de salmoneloses (S. typhi e paratyphi) correspondendo a média anual de 185. Neste período da idade pediátrica, a incidência anual média situou-se em ~ 1,85/100.000, inferior à obtida no quinquénio 2003-2007: ~ 3,2/100.000.

No que respeita às salmoneloses não tifóides (ver adiante), estatísticas da OMS referentes aos EUA, apontam, por ano, para ~ 1,4 milhões de casos, 15.000 hospitalizações e ~ 600 óbitos.

Com o desenvolvimento da biologia molecular, a partir de 2004 foi adoptada nomenclatura diversa da anterior relativamente ao género Salmonella em função da homologia genética, sendo que agentes infecciosos com analogias no genoma podem provocar doença de manifestação diversa.

O Quadro 1 pretende elucidar sobre a correspondência quanto a nomenclatura:

– tradicional; versus – actual, de acordo com os CDC (Centers for Disease Control and Prevention).

QUADRO 1 – Salmonella: Nomenclatura tradicional e actual (do CDC).

TradicionalActual
*S. typhiS. entérica, subespécie entérica, serótipo typhi
*S. paratyphi S. entérica, subespécie entérica, serótipo paratyphi A
*S. dublinS. entérica, subespécie entérica, serótipo dublin
*S. typhi muriumS. entérica, subespécie entérica, serótipo typhi murium
*S. enteritidisS. entérica, subespécie entérica, serótipo enteritidis
*S. marinaS. entérica, subespécie houtenae, serótipo marina

De acordo com a classificação tradicional, o género Salmonella (S) engloba mais de 2.500 serótipos caracterizados em função dos respectivos antigénios (O ou somáticos e H ou flagelares).

Actualmente são consideradas subespécies dentro de determinada espécie, salientando-se que cada subespécie contém vários serótipos. (ver adiante)

Relativamente às espécies, ainda hoje é utilizada a divisão em grupos A, B, C, D, E, etc..

A destrinça baseia-se em provas bioquímicas ou em técnicas de hibridação do DNA.

Algumas bactérias Salmonella (particularmente S. typhi) possuem mais um antigénio, o antigénio Vi.

S. typhi, paratyphi A, B, C, typhi murium, enteritidis, etc. têm na espécie humana o único reservatório; noutros, os principais reservatórios são os animais. (ver adiante salmonelose não-typhi)

Neste capítulo são descritas duas formas clínicas: salmoneloses não tifóides e febre tifóide.

1. SALMONELOSES NÃO TIFÓIDES

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

Os agentes implicados nesta forma clínica são S. dublin, presente no gado em geral (vacum, ovelhas, cabras, etc.), S. cholerae suis, no porco; a maioria dos serótipos pode atingir, contudo, um espectro mais alargado de espécies animais.

Os 2 serótipos mais importantes nas salmoneloses de transmissão de animais à espécie humana são: S. enteritidis (S. enterica – serótipo enteritidis) e S. typhi murium (S. enterica – serótipo typhi murium).

A recrudescência deste tipo de infecções em muitas partes do mundo nas 3 décadas passadas relaciona-se com práticas intensivas em pecuária, traduzidas fundamentalmente por selecção de certas estirpes em resultado do emprego de antimicrobianos de largo espectro para conservação de rações animais preparadas industrialmente.

Como principais factores de risco de surtos de doença não tifóide por Salmonella, citam-se contacto com animais domésticos infectados: cães, gatos, répteis, roedores, galinhas, ovos, anfíbios, etc.; certos serótipos estão tipicamente associados a determinados animais (por ex. S. entérica marina em iguanas).

Outros factores de risco incluem: hemoglobinopatias, paludismo, doença inflamatória intestinal, acloridria, tratamento prolongado com corticóides ou imunossupressores, quimioterapia associada a doença oncológica, infecção por VIH, e défice hereditário de IL-12 comportam maior risco de septicémia e de osteomielite por Salmonella.

Como factores predisponentes, há a salientar défice imunitário e as idades extremas, mais vulneráveis (1ª infância e idade avançada). Os animais domésticos e o Homem adquirem o agente infeccioso através de produtos animais contaminados.

As estirpes resistentes aos antibióticos são também as mais virulentas.

As infecções sucedem-se à ingestão de alimentos contaminados (carne picada, ovos, leite, água, charcutaria, mariscos de concha, pastelaria, etc.) e ao contacto com animais infectados (galinhas, iguanas de estimação ou outros répteis, tartarugas, etc.); no entanto, a propagação também se pode fazer de pessoa a pessoa (epidemias em infantários, hospitais ou instituições em relação sobretudo com superlotação de enfermarias e deficiente lavagem das mãos por parte dos profissionais de saúde que contactam intimamente com doentes ou pessoas em geral). As pessoas infectadas sem sintomas ou portadores crónicos (muitas vezes com litíase biliar) constituem reservatórios de germes microbianos que são fonte de contágio.

Como nota à margem, cita-se que foram descritos casos de transmissão sexual e por via transplacentar.

Para que surja doença sintomática no adulto torna-se necessário que o número de bactérias ingeridas (inóculo) seja ~ 100 a 1.000. A acidez gástrica inibe a multiplicação dos agentes microbianos, sendo que surge morte dos mesmos com pH < 2; pelo contrário, a acloridria gástrica favorece-a (RN e lactente). As situações de esvaziamento gástrico rápido, designadamente as associadas a gastrenterostomias, constituem também factores predisponentes.

Outros factores incluem: serótipo envolvido, porta de entrada, doenças comprometendo os mecanismos de defesa imunitária, uso prévio de antimicrobianos, etc..

A resposta inflamatória típica da mucosa intestinal na infecção por Salmonella não tifóide é um processo de enterocolite com edema difuso da mucosa, por vezes com erosões e microabcessos.

Os agentes Salmonella (bactérias invasivas) localizam-se sobretudo no intestino (íleo terminal e intestino grosso): aderindo primeiramente às microvilosidades, são depois englobados pelo enterócito (por mecanismo semelhante à pinocitose, penetrando através da membrana da célula da bordadura em escova), ocupando o respectivo citoplasma sem se multiplicarem; tal processo de multiplicação, ocorrendo nos macrófagos após cerca de 24 horas ao atingirem a lâmina própria, conduz a reacção inflamatória com estimulação do AMP cíclico, libertação de prostaglandinas, etc..

Embora S. typhi murium possa originar doença sistémica na espécie humana, da infecção intestinal, geralmente, resultam:

  • resposta secretória do epitélio intestinal (por acção de enterotoxinas com consequente diarreia secretória); e
  • indução de secreção de IL-8 e outros mediadores ao nível dos lisossomas das células da bordadura.

Caso se verifique recrutamento e transmigração de neutrófilos até ao lume intestinal, a disseminação da bactéria fica condicionada.

Da interacção entre Salmonella e macrófagos resulta alteração na expressão de certos genes do hospedeiro, incluindo os que codificam mediadores pró-inflamatórios (sintetase do NO, IL-1b), receptores ou moléculas de adesão (TNF-alfa R, CD40, molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1), mediadores anti-inflamatórios (TGF-beta 1 e beta 2), assim como genes envolvidos no processo de morte celular e de apoptose.

Salienta-se que existem genes específicos de virulência cuja acção se traduz na capacidade para invasão da corrente sanguínea (bacteriémia). Estes genes encontram-se com maior frequência em estirpes de S. typhi murium isoladas do sangue e das fezes.

As estirpes de S. dublin têm maior propensão para invadir rapidamente a corrente sanguínea, ao mesmo tempo que existe menor ou nula acção patogénica intestinal.

A bacteriémia é possível, contudo, com qualquer serótipo de Salmonella, especialmente em indivíduos com défice imunitário ou compromisso do sistema reticuloendotelial.

A IL-12, produzida por macrófagos activados, é um potente indutor de interferão-gama através dos linfócitos T e das células natural killer. Considerando o possível papel protector da IL-12 contra a infecção por Plasmodium, a circunstância de fagócitos conterem/estarem infectados por Salmonella pode afectar secundariamente a produção de IL-12 e levar a situação de círculo vicioso de coinfecção Plasmodium e Salmonella.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da salmonelose não tifóide dependem essencialmente de dois factores:

  • infecção confinada ao tubo digestivo; ou
  • disseminação da infecção com focos extraintestinais.

Assim, poderão surgir: gastrenterite aguda, bacteriémia e infecções focais extra-intestinais.

Gastrenterite aguda

Trata-se da forma de apresentação mais frequente, podendo manifestar-se, após período de incubação geralmente inferior a 24 horas, variando entre 6 e 72 horas.

Fora do período neonatal, o quadro clínico, com uma duração entre 1 a 2 semanas, integra essencialmente náuseas, com ou sem febre, vómitos, dor abdominal e diarreia aquosa, por vezes muco-sanguinolenta.

No recém-nascido, em situações acompanhadas de imunossupressão ou de carga infectante considerável, e em função do serótipo em causa, pode seguir-se bacteriémia com repercussão sistémica grave acompanhada de leucocitose (quadro simile septicémia e/ou ou meningite-cefaleias, prostração, confusão mental, convulsões, distensão abdominal e meningismo). As fezes contêm polimorfonucleares e, nos casos não associados a fezes sanguinolentas, sangue oculto.

Cerca de 0,5% a 1% das crianças infectadas por S. não-typhi tornam-se portadoras e excretoras pelas fezes durante período indeterminado, com maior frequência em crianças de idade inferior a 1 ano.

Bacteriémia

Surgindo em cerca de 1% a 5% dos casos com diarreia, é mais frequentemente associada a sintomas em crianças maiores. O prolongamento da febre > 5 dias no contexto de gastrenterite por Salmonella sugere bacteriémia.

Esta pode estar associada a choque séptico – o que se tem verificado nos países em desenvolvimento – e surgir com recorrências em doentes com infecção por VIH apesar da antibioticoterapia.

Têm sido descritas com frequência considerável (~ 40%-70%) formas de doença invasiva provocada por S. typhi murium e S. enteritidis no continente africano em doentes com infecção por VIH e malária.

Infecções focais extraintestinais

Esta forma pode seguir-se à bacteriémia com formação de focos infecciosos em diversos sistemas, designadamente se a esse nível existem lesões com susceptibilidade para infecção (sistema esquelético, áreas de enfarte ósseo, próteses ósseas, meninges, encéfalo, alterações vasculares relacionadas com cateteres, etc.).

O pico de incidência da meningite por Salmonella verifica-se na 1ª infância; este quadro é associado a manifestações sistémicas importantes e comporta risco elevado de sequelas neurológicas e de mortalidade.

 Complicações

As complicações mais frequentes são a desidratação por gastrenterite e artrite reactiva pós-gastrenterite, sobretudo em adolescentes com o antigénio HLA-B-27.

Muitas das complicações podem, por outro lado, corresponder a manifestações da própria doença, a qual assume um carácter mais arrastado e mais grave, evoluindo para septicémia, ou recorrente; tal poderá acontecer, nomeadamente, em crianças com < 6 meses de idade, se existir patologia de base como doença inflamatória crónica, malária, infecção por VIH, anemia hemolítica, esquistossomíase, etc..

Nos doentes com esquistossomíase, o agente Salmonella poderá persistir e multiplicar-se dentro dos esquistossomas, levando a infecção crónica, somente curada após tratamento efectivo da esquistossomíase.

Diagnóstico

Nas situações de gastrenterite, o diagnóstico baseia-se no isolamento do agente, sendo preferível nas fezes relativamente à zaragatoa rectal (de salientar que a eliminação pelas fezes pode ser intermitente e prolongar-se durante semanas ou meses).

A verificação de muco, sangue e leucócitos indicia colite; de salientar que a presença de leucócitos nas fezes aponta para a presença de germe invasivo ou de germe produtor de citotoxina incluindo Salmonella (o que igualmente acontece com Shigella, Campylobacter jejuni e E. coli invasivo, obrigando a diagnóstico diferencial. (ver adiante)

Havendo sinais evidentes de focos de supuração, está indicada a pesquisa em aspirados a partir dos respectivos locais para coloração pelo Gram e exame cultural. Embora os agentes Salmonella cresçam bem em meios não selectivos ou enriquecidos (por ex. agar-sangue), e existência de microbiota mista obriga a utilizar meios selectivos (por ex. MacConkey).

Em alternativa aos exames culturais, podem utilizar-se técnicas PCR. Outras técnicas (rápidas) incluem a de aglutinação pelo látex e a imunofluorescência.

Nos casos de colite está indicada endoscopia, identificando-se padrão que pode sugerir colite ulcerosa.

Através do estudo serológico podem ser detectados anticorpos utilizando diversas técnicas.

Nos casos de doença invasiva estão indicados exames culturais a partir do sangue, urina, LCR e das lesões metastáticas (por exemplo medula óssea).

Nota importante: em crianças com < 3 meses, assim como nos casos de crianças imunocomprometidas com isolamento positivo das fezes, independentemente de haver, ou não sintomas sugestivos de bacteriémia, está indicada hemocultura.

Diagnóstico diferencial

As formas de salmonelose não-typhi traduzidas por gastrenterite evidenciam sintomatologia semelhante à das gastrenterites provocadas por outros germes microbianos, por ex. Shigella, E. coli, Yersinia enterocolitica, Entamoeba histolytica, Campylobacter jejuni, Clostridium difficile, etc., sendo a destrinça feita através de exames culturais ou análises pelos métodos ELISA e PCR.

Nos casos de diarreia persistindo mais de 14 dias, poderão estar indicados exames para avaliar síndroma de má-absorção, incluindo endoscopia e biópsia do intestino delgado.

Tratamento

O esquema de tratamento varia em função da idade e apresentação clínica.

Nos casos de gastrenterite estão indicadas as medidas aplicáveis a situações com etiologia diversa. Os antibióticos não estão em geral indicados por suprimirem a microbiota intestinal normal e poderem prolongar a excreção de Salmonella, havendo risco de se criar estado de portador crónico.

Contudo, dado o risco de bacteriémia em crianças com < 3 meses de idade e de disseminação de infecção em indivíduos imunocomprometidos, nestes casos está indicada antibioticoterapia empírica até conhecimento dos resultados do exame cultural:

  • cefotaxima (100-200 mg/kg/dia em 4 doses) durante 5-14 dias; ou
  • ceftriaxona (75 mg/kg/dia em 1 dose) durante 7 dias; ou
  • ampicilina (100 mg/kg/dia em 4 doses) durante 7 dias; ou
  • cefixima (15 mg/kg/dia) durante 7-10 dias.

Dada a possibilidade de aparecimento de multirresistências aos antibióticos, em casos de infecção por agente Salmonella, está indicada a avaliação da sensibilidade. A propósito, salienta-se que a estirpe S. typhi murium, fago do tipo DT104 é geralmente resistente a: ampicilina, cloranfenicol, estreptomicina, sulfonamidas e tetraciclina.

 Prognóstico

Desde que não existam factores de risco (infecções crónicas antes referidas, má-nutrição, défice imunitário), as crianças com gastrenterite recuperam completamente da doença.

No entanto, reiterando o que foi dito antes, Salmonellas não tifóides poderão continuar a ser excretadas durante semanas; o tempo de excreção prolongado (< 1%) é mais frequente em crianças com litíase biliar no contexto de hemólise crónica. Esta situação poderá contribuir como fonte de contaminação fecal-oral ou através de alimentos.

Prevenção

Para evitar a transmissão de infecções por Salmonella à espécie humana torna-se necessário:

  1. Controlar a infecção nos reservatórios animais;
  2. Utilizar judiciosamente antibióticos no âmbito da indústria de lacticínios e da medicina veterinária;
  3. Prevenir a contaminação de alimentos, nomeadamente no âmbito da indústria e comércio alimentares;
  4. Garantir a confecção doméstica de refeições em condições de higiene relacionadas, não só com os próprios alimentos, mas também com o pessoal envolvido, o ambiente e o equipamento utilizado.

As medidas de prevenção englobam igualmente: – cuidados de isolamento com répteis e anfíbios (quer os ditos de companhia doméstica, quer os públicos em jardins zoológicos e exposições), evitando o contacto com pessoas; e – condições especiais de segurança (implicando nomeadamente possibilidade de lavagem das mãos).

Relativamente a vacinas contra infecções por Salmonella não tifóide, actualmente as mesmas somente estão disponíveis para aplicar em animais.

2. FEBRE TIFÓIDE ou ENTÉRICA

Definição e importância do problema

A entidade febre tifóide (também designada por alguns autores febre entérica) diz respeito à infecção por Salmonella enterica serótipo typhi e Salmonella entérica serótipo paratyphi A.

Reiterando o que foi descrito anteriormente, cumpre referir que a distribuição geográfica da febre tifóide é universal, com uma incidência anual de 20 milhões de casos e de 600.000 mortes.

É endémica em países em vias de desenvolvimento, especialmente na Ásia, África e América Latina.

Embora rara no nosso meio, justifica-se a sua abordagem pela facilidade actual de transportes, e pela probabilidade de ocorrência de casos em viajantes retornados de áreas endémicas.

Aspectos epidemiológicos

Uma das particularidades da epidemiologia da febre tifóide é a emergência de resistência do respectivo agente infectante a antimicrobianos usados (multirresistência), por vezes na sequência de surtos esporádicos.

O mecanismo de tal resistência adquirida tem sido relacionado:

  1. Com a intervenção de plasmidos (o que acontece com ampicilina, cloranfenicol e sulfametoxazol-trimetoprim); e
  2. Com a intervenção cromossómica (quinolonas se usadas indiscriminadamente).

Outra particularidade diz respeito à adaptação de S. typhi à espécie humana, significando que o agente perdeu a capacidade de se transmitir a outros animais. Admite-se que tal facto se deve a fenómeno de degenerescência de genes.

Assim, o contacto directo ou indirecto com uma pessoa infectada (doente ou portador crónico) constitui pré-requisito para a infecção.

A contaminação pode verificar-se através de mariscos e ostras obtidos em viveiros próximos de esgotos, ou a ingestão de alimentos ou água contaminados com fezes humanas por S. typhi ou paratyphi A (ausência de saneamento básico).

Etiopatogénese

Para além da implicação do agente referido anteriormente (Salmonella enterica serótipos typhi e paratyphi A), pode também surgir doença idêntica mais ligeira provocada por S. paratyphi B (Schotmulleri) e S. paratyphi C (Hirschfeldii), respectivamente na proporção de 10/1 casos. O Homem (doente ou portador) constitui o único hospedeiro das referidas bactérias. (ver adiante)

Em termos de património genético, cabe referir que S. typhi partilha muitos genes com Escherichia coli e com S. typhi murium, alguns dos quais são conhecidos pela sua patogenicidade, e outros, adquiridos durante a evolução dos respectivos agentes infecciosos.

Um dos genes mais específicos de S. typhi é o chamado Vi, o qual está presente em cerca de 90% das estirpes, com efeito protector contra a acção bactericida do soro de doentes infectados.

Após ingestão, o número de microrganismos S. typhi para provocar infecção pode oscilar entre 100 e 1.000. Os mesmos, atingindo a mucosa intestinal, penetram depois em determinados enterócitos especializados (células M do íleo terminal encimando as áreas de tecido linfóide – as placas de Peyer), ou atravessam o espaço intercelular. Em qualquer das modalidades de passagem transepitelial, atingem o tecido linfóide mesentérico e os vasos linfáticos até aos vasos sanguíneos. Inicia-se assim bacteriémia (chamada primária), assintomática, a que correspondem em geral culturas negativas.

Os agentes S. typhi disseminam-se, então, pelo organismo colonizando órgãos do SRE (baço, fígado, vesícula biliar, medula óssea), multiplicando-se no interior de macrófagos.

Após período de multiplicação, os referidos S. typhi voltam novamente à corrente sanguínea, originando nova bacteriémia (agora chamada secundária), a qual coincide com o início de sintomas e corresponde ao fim do período de incubação (de duração variável, em função da magnitude do inóculo).

A infecção com S. typhi produz uma resposta inflamatória nas camadas mais profundas da mucosa e tecido linfóide subjacente com hiperplasia das placas de Peyer e subsequente necrose que pode levar a ulceração do epitélio suprajacente; por sua vez, como consequência da lesão da muscularis e peritoneu, surgirá perfuração da parede intestinal.

As úlceras podem sangrar e curar depois sem cicatriz, ou originar estenose intestinal. Ao nível dos gânglios mesentéricos, fígado e baço, a par do processo inflamatório, verificam-se áreas de necrose focal.

Admite-se que, através dos genes de virulência (incluindo SPI-2, TTSS) exista capacidade para o agente infeccioso provocar infecção sistémica. O antigénio capsular polissacarídeo de virulência (Vi) interfere com a fagocitose prevenindo a ligação de C3 à superfície da bactéria.

A capacidade de os microrganismos sobreviverem dentro de macrófagos (outra característica de virulência) é também determinada geneticamente (gene phoP).

A ocorrência ocasional de diarreia pode ser explicada por enterotoxina termolábil (similar a enterotoxina produzida por E. coli e vibrião colérico).

A síndroma clínica constituída por febre e sinais sistémicos deve-se à libertação de citocinas pró-inflamatórias a partir das células infectadas (IL-6, IL1-beta, TNF-alfa).

Os doentes com infecção por VIH, e Helicobacter pylori têm especial predisposição para febre tifóide.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas revelam-se após período de incubação, oscilando entre 7 e 14 dias, com limites entre 3-60 dias. Classicamente são descritos cinco períodos:

1 – Período inicial (duração ~ 7-10 dias) com sintomatologia geral de início agudo ou insidioso integrando mal-estar geral, anorexia, dor abdominal, vómitos, diarreia ou obstipação, hepatosplenomegália; e também febre alta (39-40ºC) com frequência cardíaca não proporcional à febre (classicamente bradicárdia com febre).

2 – Período de estado (duração ~ 7-14 dias) caracterizado por exacerbação da sintomatologia descrita no período inicial, sendo notória a febre elevada. Neste período poderá surgir exantema maculopapular de cor rósea na face anterior do tórax e abdómen, desaparecendo à pressão e surgindo em surtos; é a chamada roséola tífica com valor de grande sensibilidade para o diagnóstico, mas de fraca especificidade por ser inconstante. Neste período poderão surgir complicações que são descritas adiante.

3 – Período de declínio (duração ~ 7 dias) associado a oscilações da temperatura, com febre cada vez menos elevada e melhoria progressiva dos sinais gerais.

4 – Período de convalescença (duração variável): astenia, emagrecimento e, por vezes, febrícula de curta duração; nalguns casos surge queda de cabelo e descamação da pele.

De salientar que existem variantes quanto a manifestações clínicas: forma clínica em que predomina hiperpirexia; forma subfebril ou acompanhada de febre intermitente, mas prolongada; forma acompanhada de miocardite ou pneumonia traduzindo repercussão especial ao nível de determinados territórios, etc..

Estima-se que cerca de 10% dos doentes com febre tifóide eliminam pelas fezes S. typhi durante 3 meses, e que em cerca de 4% dos casos se verifica o estado de portador crónico (risco, no entanto, que é superior no adulto).

Complicações

Hoje em dia raras, tendo em conta o diagnóstico e antibioticoterapia precoces, surgem habitualmente ao cabo de 3-4 semanas de evolução:

  1. Enterorragia, em cerca de 1% dos casos (por vezes subtil e microscópica);
  2. Abcesso intestinal;
  3. Perfuração intestinal (0,5%-1%), esta última a complicação de maior gravidade, podendo levar a peritonite.

Complicações raras incluem endocardite, miocardite tóxica, choque cardiogénico, neurológicas (ataxia cerebelosa, coreia, síndroma de Guillain-Barré, necrose da medula óssea, SHU, meningite, etc.).

Exames complementares

O diagnóstico de febre tifóide é fundamentalmente clínico, a confirmar pela realização dos seguintes exames:

  • Identificação do microrganismo (utilizando diversas técnicas) e em diversos locais: fezes (eliminação intermitente), sangue, medula óssea, bílis, LCR, etc.;
    A hemocultura (o melhor método para o diagnóstico) é positiva em 60%-80% dos doentes na fase precoce da doença desde que não tenha havido antibioticoterapia prévia. A coprocultura e a urocultura são positivas após a 1ª semana; a coprocultura poderá já ser positiva durante o período de incubação. O mielocultura, pela sua elevada sensibilidade, aumenta a probabilidade de confirmação bacteriológica, com o inconveniente de se tratar de técnica invasiva.
  • Estudo serológico (detecção de anticorpos utilizando diversas técnicas).
    Pela reacção de Widal, pesquisando o título de anticorpos aglutinantes ou aglutininas para os antigénios O e H; em geral, a reacção é negativa na primeira semana, positivando a partir desta data – para o antigénio O entre o 7º e 12º dia, e para o antigénio H entre o 8º e o 15º dia.
    Os resultados da reacção de Widal devem ser interpretados devidamente pelas seguintes razões:
    • somente em 30% a 50% dos doentes se verifica elevação dos títulos;
    • em 30% dos casos o resultado é falsamente negativo;
    • a imunização antitífica prévia e infecções anteriores por outros germes, designadamente enterobacteriáceas (partilhando com os agentes Salmonellas similitude de antigénios capsulares) poderão determinar a elevação de aglutininas O e H;
    • o nível sérico de aglutininas em indivíduos sãos varia de região para região endémica;
    • a utilização anterior, em fase precoce da doença, quer de corticóides, quer de antibióticos pode modificar também a evolução da resposta serológica;
    • Portanto, não se trata duma prova específica.
  • Prova da PCR (da reacção em cadeia da polimerase), prova rápida PCR usando H1-d primers para amplificação de genes específicos de S. typhi, prova rápida na urina para identificação do antigénio Vi, reacção ELISA (reacção imunoenzimática), reacção de contra-imunoelectroforese, anticorpos monoclonais, etc..
  • Exames para avaliação global: hemograma (os achados, inespecíficos, habitualmente detectados, são: anemia, leucopénia com neutropénia, eosinopénia e linfocitose relativa; nas crianças pequenas pode haver leucocitose; a leucocitose também poderá significar doença intercorrente; trombocitopénia pode corresponder a doença grave e acompanhar CIVD); as provas de função hepática poderão evidenciar anomalias, o que é raro.

Diagnóstico diferencial

As salmoneloses typhi e paratyphi evidenciam globalmente sintomatologia semelhante a doenças infecciosas de etiologia diversa (por ex. mononucleose infecciosa, malária, calazar, tuberculose, brucelose, endocardite bacteriana, etc.) e a doenças não infecciosas (conectivites, linfomas, leucemias, etc.).

A febre paratifóide originada por S. paratyphi cursa com um quadro clínico semelhante ao da febre tifóide, em geral mais ligeiro, com período febril mais curto e menor frequência de complicações (excepto no lactente). O período de incubação é mais curto e a diarreia surge mais frequentemente.

Tratamento

Medidas gerais

Na maioria dos casos de febre tifóide é possível o tratamento em regime ambulatório com vigilância médica rigorosa (detecção de complicações e de eventual ausência de resposta ao tratamento) e antibioticoterapia oral.

A hospitalização, pressupondo antibioticoterapia parentérica e fluidoterapia IV, está indicada perante vómitos persistentes, diarreia grave, distensão abdominal e compromisso do estado geral.

As medidas gerais incluem repouso, regime alimentar simples, mole, facilmente digerível, hidratação, correcção das alterações hidroelectrolíticas, e antipirexia com paracetamol PO (10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes, até dose máxima de 80 mg/kg/dia).

Verificando-se íleo paralítico ou distensão abdominal, deve proceder-se a pausa alimentar.

Tratamento antimicrobiano

São descritos dois esquemas aplicáveis a infecções por S. typhi e paratyphi (respectivamente febre tifóide e paratifóide), respeitando sempre o resultado das provas de sensibilidade aos antimicrobianos:

  1. → Esquema recomendado pela OMS, não consensual entre os peritos, designadamente no que respeita às fluoroquinolonas, indicadas somente a partir da adolescência tardia. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Tratamento antimicrobiano da febre tifóide (segundo a OMS).

1 – Formas não complicadas

    • Sensibilidade comprovada
      • cloranfenicol PO ou IV (50-75 mg/kg/dia) em 4 doses durante 14-21dias; ou
      • amoxicilina PO ou IV (75-100 mg/kg/dia) em 3 doses durante 14 dias.
    •  Multirresistência
      • fluoroquinolona PO (15 mg/kg/dia) em 2 doses durante 5-7 dias; ou
      • cefixima PO (15-20 mg/kg/dia) em 2 doses durante 7-14 dias.
    • Resistência a quinolonas
      • azitromicina PO (8-10 mg/kg/dia) em 1 dose durante 7 dias; ou
      • ceftriaxona IV ou IM (75 mg/kg/dia) em 1dose durante 10-14 dias.

2 – Formas complicadas

    • Sensibilidade comprovada
      • fluoroquinolona (por ex. ciprofloxacina) idem durante 10-14 dias;
      • ceftriaxona idem.
    • Multirresistência
      • fluoroquinolona idem durante 10-14 dias.
    • Resistência a quinolonas
      • ceftriaxona idem;
      • cefotaxima (80 mg/kg/dia) durante 10-14 dias.

2.→ Esquema alternativo

2.1 – O tratamento de primeira linha face a estirpes sensíveis consiste na administração de ampicilina IV (200 mg/kg/dia em 4 doses durante 10-14 dias), trimetoprim/TMP-sulfametoxazol/SMX PO (10 mg/kg/dia de TMP + 50 mg/kg/dia de SMX em 2 doses durante 10-14 dias) ou fluoroquinolonas (por ex. ciprofloxacina PO (15-30 mg/kg/dia durante 10-14 dias), sendo que é dada preferência aos dois últimos antimicrobianos por se tratar de microrganismo intracelular.

2.2 – Se houver suspeita de estirpe resistente, utiliza-se a ceftriaxona IV ou IM (100 mg/kg/dia durante 14 dias) até se conhecer o perfil de sensibilidade; como alternativa: cefotaxima IV (150 mg/kg/dia em 4 doses durante 14 dias), ou ofloxacina PO (15 mg/kg/dia em 2 doses) durante 10 dias.

2.3 – Em casos resistentes, determinados estudos demonstraram boa resposta com azitromicina.

Corticosteróides

O tratamento com corticosteróides, indicado em situações críticas de choque, coma ou estado confusional, diminui a mortalidade. Recomenda-se dose inicial de dexametasona de 3 mg/kg IV em 30 minutos, seguida de 1 mg/kg/dia em 4 doses durante 2 dias.

Prognóstico

Apesar do tratamento, poderão surgir recaídas (manifestadas fundamentalmente por febre e outras manifestações),em cerca de 5%-15% dos casos no período de convalescença; as mesmas são explicáveis pela manutenção do microrganismo acantonado na vesícula biliar ou gânglios mesentéricos, regiões de difícil acesso aos antimicrobianos.

De acordo com dados da literatura, são mais frequentes após tratamento com cloranfenicol ou amoxicilina, obtendo-se maior percentagem de curas com quinolonas ou cefalosporinas de 3ª geração.

Os indivíduos que excretam o microrganismo durante período > 3 meses após episódio de infecção são considerados portadores crónicos (< 2% no casos pediátricos, valor que corresponde a proporção mais baixa do que a verificada na idade adulta).

Nos casos de esquistossomíase pode verificar-se estado de portador urinário crónico.

As recidivas correspondem a novo episódio de febre tifóide após se ter verificado cura do primeiro episódio.

Prevenção

Os aspectos gerais mais importantes de prevenção da doença diarreica infecciosa (em idade pediátrica, e não só) dizem respeito fundamentalmente à prática de medidas de higiene simples:

  • lavagem frequente das mãos com água e sabão;
  • utilização de água não contaminada na alimentação (fervida ou engarrafada com garantia) e como bebida simples;
  • cuidados de isolamento e conservação (rede de frio);
  • confecção dos alimentos, com especial atenção para a lavagem adequada de alimentos não submetidos a fervura.

A sigla em língua inglesa dos “três FFF” – Food, Flies, Fingers (alimentos, vectores, dedos das mãos) traduz bem a necessidade de detectar, controlar e eliminar as fontes de infecção, tanto animais como humanas. Chama-se mais uma vez a atenção para o papel dos répteis domésticos na transmissão de Salmonella, tornando-se indispensável que crianças com idade inferior a 5 anos ou pessoas com síndromas de imunodeficiência de qualquer etiologia não contactem com tais animais.

Em alínea anterior foi dada ênfase aos alimentos contaminados que poderão estar implicados na cadeia de transmissão de germes microbianos.

Outra medida diz respeito à imunização antitífica indicada em situações especiais (por exemplo deslocação para zonas endémicas com elevada prevalência de estirpes de Salmonella typhi multirresistente).

Na confecção de tais vacinas (de três tipos) são utilizadas subunidades antigénicas e células bacterianas atenuadas, tendo sido demonstrada relativa eficácia (< 100%) em crianças de idade escolar, no adolescente e no adulto:

  1. Vacina oral viva atenuada (Ty21a); é uma vacina imunogénica a partir dos 2 anos, devendo repetir-se de 5-5 anos;
  2. Vacina morta por via parentérica (inactivação pelo fenol e calor, holocelular);
  3. Vacina parentérica à base de polissacáridos capsulares (ViCPS ou Vi Conjugada) para crianças com > 2 anos, a repetir de 2-2 anos.

Em Portugal, é recomendada a vacina à base de polissacáridos com a indicação atrás expressa, conferindo protecção durante três anos.

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DOENÇA MENINGOCÓCICA

Definição e aspectos epidemiológicos

A designação de doença meningocócica engloba as situações clínicas associadas à infecção pela Neisseria meningitidis ou meningococo. Trata-se dum importante problema de saúde pública mundial, estimando-se 500.000 casos por ano, do que resultam 50.000 óbitos.

A incidência de doença meningocócica relatada pelos Centers for Disease Control and Prevention em 2006 referente aos EUA foi de 0,3 casos/100.000 habitantes e, em 2011, de 0,2/100.000; tal indicador varia conforme o grupo etário: mais elevada incidência em crianças com menos de 1 ano, – 6,4/100.000. Em determinadas zonas do mundo são atingidos valores de 14/100.000/ano. A doença invasiva aparece mais frequentemente em crianças pequenas (~ 9/100.000 no primeiro ano de vida ~ 25 casos/100.000 nos primeiros 4 meses de vida).

Em Portugal, no quinquénio 2003-2007, foram notificados 387 casos de doença meningocócica, ocorrendo 26% dos casos em crianças com menos de 1 ano, 34% entre 1-4 anos e 18% entre 5 e 14 anos. A doença tem no nosso país um carácter esporádico, com casos ocorrendo ao longo do ano, com maior frequência no Inverno e Primavera, não havendo relato de qualquer epidemia (definida como o aparecimento de > 3 casos no período de 3 meses na mesma comunidade e > 10 casos/100.000 pessoas) ou surto em anos recentes.

Os dados nacionais mais recentes da vigilância epidemiológica de base laboratorial do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (IRJ), mostram uma redução da incidência global da doença invasiva meningocócica (DIM) de 1,99 casos por 100.000 habitantes em 2003, para 0,53 em 2014 e 0,41 em 2016. Esta descida poderá ser explicada pela natureza cíclica da doença causada pelo meningococo B e pela utilização da vacina contra o meningococo C.

De realçar que a incidência de DIM é máxima nos lactentes (com redução nos últimos anos: 24 por 100.000 habitantes de 2008 a 2013 para 15,8 em 2014), diminui de forma acentuada até a adolescência e mantém-se relativamente estável, em valores baixos, durante a idade adulta.

Na última década, o serogrupo predominante foi sempre o B, com percentagens que variaram, entre 47,9% e 90,5%, respectivamente, em 2003 e 2008.

Em 2015 e 2016, respectivamente 72,7% e 77,5% das estirpes identificadas pertenciam a este serogrupo (B), com um número total de casos tendencialmente crescente.

Os dados de distribuição por grupo etário mostram que a DIM causada pelo serogrupo B tem um perfil característico, com um pico de incidência aos 6 meses de idade. Em crianças com menos de 1 ano de idade, entre 2003 e 2013, 67,1% (159/237) dos casos de DIM causados pelo grupo B ocorreram até aos 6 meses de idade, inclusivé.

Em Portugal foram realizados dois estudos para avaliação da taxa de colonização numa população de estudantes universitários, na mesma área geográfica, em anos diferentes, utilizando a técnica da polymerase chain reaction (PCR).

No primeiro estudo, em 2012, a taxa de colonização global foi de 14,5%, correspondendo 2,5% ao grupo B. No segundo estudo, em 2016, as respectivas taxas foram 12,5% e 1,7%.

A taxa de letalidade global por DIM entre 2003 e 2014 variou entre 2,2% e 10,6% (média <> 7,0%), salientando-se que a referida taxa é crescente a partir dos 45 anos, verificando-se proporções superiores a 30%.

Situações associadas a doenças crónicas, infecções por vírus, especialmente influenza, condições precárias higiénicas, socioeconómicas e habitacionais com convívio promíscuo, exposição ao fumo do tabaco e hábitos tabágicos constituem factores de risco.

No RN a doença surge raramente.

Etiopatogénese

Considerando a relação entre hospedeiro humano e microrganismo, existem diversas variantes quanto ao efeito deste sobre aquele: 1) estado de colonização assintomática da orofaringe ou de portador; o estado de portador assintomático por um período geralmente curto é mais frequente no adolescente e adulto jovem e constitui um factor de disseminação da infecção; 2) infecções localizadas; 3) doença invasiva, sem dúvida a mais frequente e mais grave, cursando por vezes de modo agudo e fulminante, podendo conduzir à morte em poucas horas.

Na maior parte dos casos a colonização da nasofaringe resulta em resposta do organismo hospedeiro com formação de anticorpos (IgM, IgG e IgA), o que confere imunidade natural (protecção) contra diversos serótipos. Numa minoria de casos, especialmente nas crianças pequenas, N. meningitidis penetra na mucosa e, atingindo a circulação sanguínea, causa doença sistémica. A colonização intestinal de enterobacteriáceas produz o mesmo efeito de protecção (imunidade cruzada). A estirpe não patogénica (N. lactamica) confere igual protecção.

O meningococo é um diplococo Gram-negativo aeróbio, oxidase positivo e produtor de catalase. Possui um invólucro com 3 camadas (membrana citoplásmica, parede celular de peptidoglicano, e membrana externa com fosfolípidos, proteínas e lipo-oligossacárido); tal invólucro está rodeado por uma cápsula polissacarídea.

As características estruturais da cápsula determinam a existência de, pelo menos, 12 (anteriormente considerados em número de 13) serogrupos (a que correspondem diversas variantes antigénicas) de meningococo, dos quais seis – A, B, C, W (anteriormente designada W135), X, e Y – são os responsáveis pela maioria dos casos da doença sistémica.

Cada serogrupo divide-se em serótipos e subtipos em função das proteínas porinas da membrana externa (porA e porB, respectivamente), que contribuem para a virulência do microrganismo. O imunotipo é definido pela estrutura do lipo-oligossacárido/LOS ou endotoxina, crucial na cascata inflamatória activada através do Toll-like 4 receptor (TLR-4).*

*O Toll-like receptor 4 (Receptor TLR-4) é uma proteína codificada pelo gene TLR-4. Reconhecendo determinados compostos como por exemplo o lipopolissacárido (LPS), um componente presente em muitas bactérias Gram-negativas, é responsável pela activação do sistema imune inato.

A cápsula contendo, na sua composição, polissacáridos tem capacidade para resistir à fagocitose e à acção de depuração, com a participação do ferro através da lactoferrina e transferrina.

Através de técnicas genéticas concluiu-se que existem sete linhagens hiperinvasivas, causadoras da maior parte dos casos de doença meningocócica invasiva.

De salientar a maior prevalência dos serogrupos B e C nos países industrializados (com incidência ~ 1-3/100.00 nas duas últimas décadas) e a do serogrupo A nos países em desenvolvimento, os quais têm registado incidência anual de ~ 25 casos/100.000.

A nível mundial, em diversos continentes, e relativamente aos serogrupos, verifica-se a seguinte distribuição predominante: América do Norte: B, C, Y; América do Sul, Austrália e Europa: B, C; Ásia: A, B, C; África: A, W, C, X.

Da interacção meningococo – célula endotelial – complemento resulta a produção de citocinas pró-inflamatórias- TNF-alfa, IL-1 beta, IL-7, IL-8, e activação das vias intrínseca e extrínseca da coagulação culminando em CID e vasculite difusa. O LOS, com acção antigénica, induz a produção de IL-12 e resposta de tipo Th1. São também produzidos anticorpos bacterianos contra o polissacárido capsular, as proteínas da camada externa da membrana e o próprio LOS.

A transferência de IgG materno-fetal confere protecção ao lactente nos primeiros 3 meses de vida; contudo, o défice de complemento confere risco aumentado de meningococcémia em tais crianças.

Como factores de risco de doença meningocócica grave/invasiva, descrevem-se como principais: infecção respiratória vírica prévia, défice congénito de properdina ou factor D, défice congénito de componentes terminais do complemento (C5-C9) e contacto com pessoa afectada pela doença.

Manifestações clínicas

O espectro clínico da doença meningocócica varia muito, desde o estado de portador assintomático, à forma aguda fulminante, levando à morte após escassas horas de evolução. As formas mais frequentes são a meningite (30%-50% dos casos) e a septicémia/sépsis.

Outras formas clínicas incluem bacteriémia sem sépsis, sépsis com ou sem meningite, pneumonia, bacteriémia crónica e bacteriémia oculta e infecções focais com diversas localizações.

As entidades meningite meningocócica e sépsis meningocócica, acompanhada ou não de meningite integram o conceito da chamada doença invasiva. (ver adiante “diagnóstico de meningococcémia)

Uma vez que aspectos gerais da meningite bacteriana relacionada com N. meningitidis foram abordados em capítulo anterior (meningite bacteriana pós-neonatal), o objectivo essencial deste capítulo é incidir sobre a sépsis meningocócica e outras manifestações de gravidade aparentemente intermédia.

  1. O quadro clínico de apresentação mais comum integra a febre acompanhada de exantema petequial na proporção variável entre 28% e 77% dos casos, com predomínio no tronco e extremidades inferiores (início como exantema maculopapular convertendo-se em petéquias após algumas horas. Nos casos graves, estas lesões podem evoluir para equimoses e púrpura disseminada, embora nem todos os casos letais evidenciem exantema. A febre está geralmente associada a mialgias, calafrios, vómitos, diarreia, rinite, disfagia e artralgias; este quadro pode coincidir com o aparecimento das lesões cutâneas.
  2. A bacteriémia/menigococcémia oculta manifesta-se por febre associada ou não a outros sintomas, sugerindo quadro de infecção vírica. A bacteriémia poderá regredir sem antibioticoterapia, ou evoluir para meningite ou para infecção focal com diversas localizações.
  3. Outras manifestações incluem sintomatologia associada a infecções focais: pneumonia com ou sem derrame, artrite séptica com isolamento do meningococo do líquido sinovial, artrite reactiva, estéril, de etiopatogénese imunológica, pericardite, miocardite, etc..
  4. A meningococcémia crónica constitui uma forma de apresentação rara, caracterizada por febre, artralgias, aspecto geral “não tóxico”, cefaleias, e exantema. A sintomatologia é intermitente, podendo durar cerca de 6 a 8 semanas. As hemoculturas são geralmente positivas, embora inicialmente estéreis. Nos casos não tratados poderá surgir meningite.
  5. As manifestações que sugerem o quadro da sépsis meningocócica na sua fase inicial são: febre, lesões cutâneas, e mau estado geral de instalação aguda. Por parte do clínico, reitera-se que deverá existir um elevado índice de suspeita no âmbito da avaliação de cada caso.

Tratando-se de criança mais pequena (lactente), as lesões cutâneas associadas ao mau estado geral podem constituir a primeira suspeita. As mesmas podem ser constituídas por petéquias localizadas ou disseminadas e confluentes, purpúricas.

As lesões petequiais iniciais em poucas horas aumentam em número e podem evoluir para exantema purpúrico equimótico (púrpura fulminante) com consequentes sequelas de necrose em vários territórios do organismo, podendo culminar em amputação das extremidades e obrigando a enxertos. Pode deduzir-se que, quanto mais rápida a evolução, pior o prognóstico. (Figura 3 do Capítulo sobre CIVD)

O mau estado geral corresponde a situação de choque, razão pela qual é importante pesquisar os respectivos sinais (oligúria, má perfusão periférica com tempo de reposição de circulação capilar pós-compressão da pele > três segundos, taquicárdia, taquipneia) – choque compensado. Com a evolução da situação pode passar-se para a fase de descompensação do choque potencialmente fatal, traduzida essencialmente por hipotensão arterial e falência multiorgânica.

As situações acompanhadas de insuficiência suprarrenal aguda integram a chamada síndroma de Waterhouse-Friderichsen.

Salienta-se que:

  • as formas subagudas e crónicas de doença meningocócica são raras (ver adiante);
  • em 80% dos casos, a doença meningocócica é acompanhada de sinais clínicos sugestivos;
  • o agente meningitidis é isolado do sangue em cerca de 2/3 dos casos de doença, em cerca de 50% do LCR e, em ~ 1%, do líquido articular.

Diagnóstico

O diagnóstico de meningococcémia baseia-se no isolamento da N. meningitidis do sangue, LCR, líquidos sinovial, pleural, pericárdio e lesões da pele por “técnicas de raspagem”.

Tal como noutras formas de sépsis a positividade dos exames culturais depende de vários factores, designadamente o eventual início de antibioticoterapia prévia e condições da colheita do produto a analisar.

A propósito da sépsis, cabe referir que estão indicados, em princípio, os exames complementares descritos a propósito de sépsis e meningite; salienta-se, no entanto, o interesse da PCR (técnica molecular de reacção em cadeia da polimerase) que permite aumentar a taxa de confirmação diagnóstica e quantificar a carga bacteriana com valor no prognóstico. Por outro lado, considerada a elevada probabilidade de CIVD, aconselha-se a consulta do capítulo sobre este tópico.

No que respeita a marcadores clássicos de gravidade em infecções sistémicas, determinados estudos demonstraram que, no caso da doença meningocócica, a procalcitonina (PCT) tem maior especificidade e sensibilidade que a proteína C reactiva (sigla igual à referida anteriormente para a reacção em cadeia da polimerase), considerando como valores de corte/cut off respectivamente 2 ng/mL (PCT) e 3 mg/dL (Prot CR). No que respeita à PCT, em situações de normalidade as concentrações séricas são geralmente < 0,01 ng/mL, em situações inflamatórias ligeiras, eventualmente de causa vírica raramente > 1 ng/mL, e em situações de doença menigocócica ou de infecção sistémica grave, em geral > 500 ng/mL.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se com outras causas de sépsis ou meningite (por enterobacteriáceas, S. pneumoniae, S. aureus, etc.) e de exantemas petequiais relacionados com infecções víricas, infecções por S. viridans, púrpura de Henoch-Schonlein, síndroma hemolítica urémica, púrpura trombocitopénica idiopática, reacções farmacológicas, etc..

Tratamento

Os aspectos do tratamento a propósito da meningite bacteriana, choque e coagulação intravascular disseminada, são aplicáveis à sépsis meningocócica.

O tratamento empírico deve iniciar-se imediatamente ante a suspeita de doença meningocócica. De facto, o tratamento antibiótico pré-hospitalar com estabilização hemodinâmica (prioritários), seguido de transporte medicalizado para hospital com unidade de cuidados intensivos, têm contribuído para melhorar o prognóstico, diminuindo a mortalidade e as sequelas.

Sintetizam-se aqui aspectos essenciais da antibioticoterapia que, reitera-se, se deve iniciar precocemente em regime de internamento hospitalar:

→ de eleição

  • penicilina G via IV (250.000-400.000U/kg/ dia IV em 4-6 doses);
  • cefotaxima via IV (200 mg/kg/dia) em 4-6 doses;
  • ceftriaxona via IV (100 mg/kg/dia) em 2 doses;
  • ampicilina via IV (200-400 mg/kg/dia) em 4-6 doses.

→ de alternativa (se alergia grave a beta-lactâmicos)

  • ciprofloxacina via IV (18-30 mg/kg/dia) em 2-3 doses;
  • meropenem via IV (60-120 mg/kg/dia) em 3 doses;
  • cloranfenicol via IV (75-100 mg/kg/dia) em 4 doses.

A duração varia entre 5 e 7 dias.

Notas importantes:

    • Nalguns centros hospitalares com experiência e com o apoio de equipas médicas e de enfermagem de ambulatório e de cuidados continuados, em função do contexto clínico, está previsto o tratamento empírico em casos seleccionados de crianças com estado geral bom/não tóxico durante surtos de meningococcémia em regime extra-hospitalar.
    • Têm sido identificadas estirpes de N. meningitidis evidenciando resistência relativa à penicilina (CIM de penicilina <> 0,1-1,0 mcg/mL).
    • As estirpes de N. meningitidis produtoras de beta-lactamase são raras.

Prevenção

Medidas não imunológicas

As medidas não imunológicas incluem:

  • isolamento de doentes com doença invasiva;
  • quimioprofilaxia com rifampicina na dose de 20 mg/kg/dia (não excedendo 600 mg/dose), em 2 tomas diárias, durante 2 dias. No adulto a dose é 600 mg/dia, 1 toma diária. A profilaxia não é recomendada a grávidas.

Como alternativa, pode utilizar-se uma única injecção de ceftriaxona ou 1 dose oral de ciprofloxacina (neste último caso, somente a partir dos 18 anos).

Em Portugal, as infecções por meningococos são de notificação obrigatória. Todas estas medidas deverão ser comunicadas aos pais ou responsáveis pela criança, assim como a professores e educadores em geral.

Medidas imunológicas

Em Portugal, as vacinas meningocócicas C (Men C) e B (Men B) fazem parte do actual PNV, sendo que, esta última, a partir de 2020.

Existem, também, comercializadas vacinas polissacarídeas anti-N. meningitidis dos grupos A, C, W e Y (Men ACWY- vacina conjugada tetravalente, por ex. Nimenrix®), designadamente para indivíduos residentes ou que façam viagens para áreas endémicas ou epidémicas.

A Comissão de Vacinas da Sociedade Portuguesa de Infecciologia Pediátrica, ramo da Sociedade Portuguesa de Pediatria (CV-SPP/SIP), recomenda igualmente a administração da referida vacina conjugada nas seguintes situações: as crianças e adolescentes com asplenia anatómica ou funcional, hiposplenismo, défice congénito do complemento e submetidas a tratamento com inibidores do complemento (Eculizamab).

Segundo a referida CV, a administração duma dose de Men ACWY aos 12 meses de idade dispensa a administração da Men C incluída no PNV. A mesma pode ser administrada a partir das 6 semanas de idade.

Prognóstico

A taxa de mortalidade da doença meningocócica invasiva situa-se entre 5%-10%, sendo que os óbitos se verificam predominantemente nas situações de elevada carga bacteriana infectante.

Constituem factores de mau prognóstico: hipotermia, hipertermia, hipotensão, choque, púrpura fulminante, convulsões, leucopénia, trombocitopénia, CIVD, acidose, e elevados níveis circulantes de TNF-alfa e de endotoxinas. A presença de petéquias de início precoce (< 12 horas), ausência de meningite e baixa ou normal velocidade de sedimentação, são indicadores de rápida progressão da doença e de prognóstico mau.

Após resolução de episódio de infecção meningocócica aguda está indicado o rastreio de défice de complemento, sobretudo na segunda infância e adolescência, dado o risco de recorrência de infecções graves, caso se verifique tal défice.

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TOSSE CONVULSA

Definição e importância do problema

A tosse convulsa típica é uma doença infecciosa aguda do tracto respiratório provocada pela bactéria Gram-negativa Bordetella pertussis e, menos frequentemente, parapertussis.

Doença altamente contagiosa, é caracterizada fundamentalmente por acessos curtos e súbitos de tosse, por vezes emetizante; conhecida no Oriente por tosse dos 100 dias, só foi descrita no século XVI e apenas no século XIX isolado o agente Bordetella pertussis. Acompanha-se de morbilidade e mortalidade importantes, especialmente em crianças com idade inferior a três meses.

A tosse convulsa na era pré-vacinal era uma doença quase exclusiva da criança em idade pré-escolar e escolar. A vacinação universal contra a referida doença teve influência na epidemiologia que se traduziu por desvio etário. De facto, a doença actualmente atinge o pequeno lactente não vacinado ou incompletamente vacinado, o adolescente e o adulto jovem; como facto relevante regista-se que nos últimos anos se tem verificado uma incidência crescente. Apesar de uma taxa de cobertura vacinal elevada (86% a nível mundial em 2014), continua a ser um importante problema de saúde pública.

De acordo com estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2008 ocorreram cerca de 16 milhões de casos de tosse convulsa no mundo, dos quais mais de 95% ocorreram em países em vias de desenvolvimento, resultando na morte de 195.000 crianças. Em 2014 foram reportados 139.786 casos em todo o mundo, estimando-se o número de 89.000 mortes pela doença.

Aspectos epidemiológicos

A tosse convulsa é uma doença endémica em todo o mundo, com ciclos epidémicos que ocorrem a cada quatro a cinco anos, com duração aproximada de 12 a 18 meses, o que sugere que a vacinação não impede a circulação do agente.

Sendo o agente Bordetella pertussis patogénico humano exclusivo, o contágio faz-se através do contacto com gotículas do tracto respiratório de indivíduos com a doença. O grau de contagiosidade é extremamente elevado, podendo atingir 90%-100% dos contactos intradomiciliários susceptíveis. Mesmo em doentes imunocompetentes e vacinados, a percentagem de indivíduos com doença subclínica pode atingir 80%. Os portadores assintomáticos, descritos por vezes nos surtos, não são responsáveis pela transmissão da doença, uma vez que não tossem activamente.

A generalização da vacinação contra Bordetella pertussis no início da década de 1940 traduziu-se por franco declínio do número de casos e mortes. Com efeito, nos Estados Unidos da América (EUA) a mortalidade passou de 155 para 0,5 mortes/100.000 habitantes; em Portugal, após a introdução da vacinação em 1965, passou de 55 para 3 mortes/100.000 habitantes.

Apesar da diminuição da incidência com a vacinação universal, nos últimos anos tem-se assistido à re-emergência da doença. Em Portugal as notificações passaram de 32 casos durante o ano de 2011, para 225 em 2012, dos quais, 181 ocorreram durante o primeiro ano de vida e resultaram em 4 mortes. Em 2014 o número de casos voltou a diminuir: 74 casos.

O incremento das notificações poderá decorrer, não só do uso de exames de diagnóstico cada vez mais sensíveis, de programas de vigilância mais adequados, e da diminuição da subnotificação, mas também dum aumento real do número de casos.

Em Portugal, entre 2010 e 2013 (4 anos) foram notificados 385 casos, dos quais 309 (80%) ocorreram no primeiro ano de vida. Estes casos correspondem provavelmente a crianças contagiadas por adolescentes e adultos jovens que, por terem perdido a imunidade conferida pela vacina, adquiriram doença atípica, por vezes dificilmente diagnosticável. É de notar que a vacina não é 100% efectiva e a imunidade conferida pela vacina ou doença, não é permanente. As crianças nascem sem imunidade passiva para B. pertussis, o que significa que RN e lactentes são altamente vulneráveis até que o esquema vacinal se complete, em geral aos 6 meses de idade.

Etiopatogénese

O agente Bordetella pertussis é um coco-bacilo Gram-negativo, aeróbio, pleiomórfico, que sobrevive apenas algumas horas nas secreções respiratórias e que necessita de meios especiais para cultura, sendo os humanos o seu reservatório exclusivo. Pertence ao género Bordetella, o qual engloba oito espécies adicionais: Bordetella parapertussishu (infectando humanos), Bordetella parapertussisov (infectando ovelhas), Bordetella bronchiseptica (que causa doença respiratória em imunocomprometidos), Bordetella avium, Bordetella hinzii, Bordetella trematum, Bordetella holmesii e a mais recentemente descrita Bordetella petrii. Apesar de filogeneticamente semelhantes, estas espécies têm diferentes hospedeiros.

A transmissão ocorre por inalação de gotículas infectadas com Bordetella pertussis. Esta bactéria adere ao epitélio ciliado da nasofaringe, multiplica-se e dissemina-se pelo epitélio ciliado das vias aéreas inferiores. Num pequeno número de casos pode atingir o alvéolo e provocar pneumonia.

Os aspectos moleculares e celulares da patogénese da infecção por Bordetella pertussis são muito complexos e alguns ainda mal conhecidos. Esta bactéria produz diversas substâncias biologicamente activas (Quadro 1), com capacidade antigénica e de virulência, o que tem como resultado lesão celular, doença sistémica e interferência com os mecanismos de defesa do organismo. Muitas destas substâncias activas são imunogénicas e têm sido incluídas como componentes das vacinas acelulares disponíveis no mercado.

QUADRO 1 – Bordetella pertussis (Bp): alguns componentes moleculares biologicamente activos.

Componentes antigénicos Actividade biológica
    • Toxina pertussis (PT)
    • Hemaglutinina filamentosa (FHA)
    • Pertactina (PTN)
    • Fimbriae (aglutinogénios)
    • Toxina da adenilciclase (ACT)
    • Lipopolissacárido – endotoxina (LPS)
    • Factor de colonização traqueal ou citotoxina traqueal (TCT)
    • Toxina termolábil dermonecrótica
    • (HLT ou DNT)
    • Endotoxinas, factores de grande virulência com interferência em vários mecanismos imunológicos do hospedeiro; promovem a linfocitose associada à doença
    • Adesão ao epitélio ciliar; existem vários tipos; certas Bp poderão não conter fimbriae, outras conter fimbriae 2, fimbriae 3, ou fimbriae 2 e 3, etc.; interacção com integrina, regulando a expressão do receptor do complemento (CR3)
    • Citotóxica; afectando a fagocitose
    • Reacções locais, febre, e reacções observadas com a vacina de célula completa (holocelular) (ver adiante)
    • Efeito citopático na mucosa traqueal
    • Lesão da mucosa; responsável por alguns dos sintomas da fase catarral (consultar texto)
Com o tempo têm sido identificadas alterações genéticas relacionadas com os certos componentes antigénicos, nomeadamente PT, PTN e fimbriae.


FHA e alguns aglutinogénios (especialmente fimbriae tipos 2 e 3 e pertactina) são fundamentais para a adesão da bactéria às células epiteliais respiratórias. TCT e PT inibem provavelmente o processo de depuração da bactéria; por sua vez, TCT, HLT e DNT são responsáveis pela lesão epitelial (que origina sinais e sintomas respiratórios), permitindo a absorção de PT.

Os genes que determinam a virulência das várias espécies têm afinidades em termos de ADN, sendo que somente o germe B. pertussis produz PT.

Manifestações clínicas

Na sua forma típica (clássica) os sinais e sintomas são muito sugestivos. O diagnóstico de tosse convulsa é, pois, essencialmente clínico, sendo necessário um grau de suspeição elevado, nomeadamente quando a apresentação é atípica.

Nas formas típicas o diagnóstico é fácil, permitindo o início da terapêutica antes da confirmação laboratorial.

Após um período de incubação habitualmente de 7 a 10 dias (pode prolongar-se até 20 dias), a doença, na sua descrição clássica, tem 3 fases distintas:

  1. Fase catarral, com duração de 1-2 semanas, caracterizada por rinorreia serosa e obstrução nasal, acompanhadas por tosse seca esporádica (a partir da segunda semana) e lacrimejo. A febre é inconstante e, quando presente, é baixa. Ao contrário das outras infecções do tracto respiratório superior, ao fim destes 10-14 dias há um aumento da intensidade e frequência da tosse.
  2. Fase paroxística, com duração de 2-8 semanas, caracterizada por aumento gradual dos acessos de tosse os quais passam a ocorrer, tal como foi referido antes, em paroxismos típicos e muito característicos, com uma série de acessos de tosse no mesmo ciclo expiratório, muitas vezes acompanhados por engasgamento, protusão da língua, cianose e plétora facial, ocorrendo frequentemente vómito pós-tússico; tais acessos são seguidos por um “guincho ou silvo” inspiratório característico, que corresponde à passagem de ar pela glote, ainda parcialmente encerrada.
    Estes episódios, que podem ser espontâneos ou desencadeados por estímulos (como a alimentação ou frio), aumentam de frequência e intensidade ao longo da primeira e segunda semanas desta fase; estabilizam nas 2 a 3 semanas seguintes e diminuem gradualmente nas semanas que se seguem. As possíveis complicações da doença, descritas adiante, ocorrem nesta mesma fase.
    A contagiosidade é máxima durante a fase catarral e nas 2 primeiras semanas da fase paroxística.
  3. Fase de convalescença, pode durar semanas a meses, ao longo das quais ocorre diminuição progressiva da tosse.

Nas formas atípicas (ocorrendo em geral no pequeno lactente) a fase catarral está muitas vezes ausente ou é muito curta. Os paroxismos de tosse com congestão facial podem surgir apenas durante as refeições, estando a criança assintomática nos intervalos, e sendo o guincho característico muito pouco comum. No entanto, as complicações da doença, nomeadamente a apneia e bradicárdia, são mais frequentes.

No adolescente e adulto jovem, na maioria dos casos, a doença é atípica, manifestando-se por tosse persistente, o que dificulta o diagnóstico. Apesar de nestas faixas etárias a forma clínica ser benigna, é real o contágio ao lactente não vacinado ou sem primo-vacinação completa.

Em suma, o diagnóstico deverá ser ponderado em qualquer criança com tosse com a duração de, pelo menos, 14 dias, especialmente se não coexistir febre, exantema, enantema, e rouquidão. (Figura 1)

FIGURA 1. Cronologia da sintomatologia e exames complementares.

Complicações

As complicações mais graves da doença ocorrem na fase paroxística e decorrem essencialmente da hipóxia ou do aumento de pressão venosa por mecanismo semelhante ao da manobra de Valsalva durante os acessos de tosse. São muito mais frequentes nas crianças com idade inferior a três meses. A complicação mais comum é a pneumonia secundária (cerca de 13%), mas são descritas outras:

  1. Complicações do SNC: convulsões, encefalopatia, hemorragia subaracnoideia e intraventricular, síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética.
  2. Complicações nutricionais por vómitos, diminuição da ingesta e desidratação.
  3. Complicações cárdio-respiratórias: apneia, bradicárdia, cianose, hipertensão pulmonar, pneumotórax, pneumonia primária.
  4. Outras complicações: hemorragias conjuntivais, petéquias da face e tronco, epistaxe, hérnia umbilical e inguinal, prolapso rectal, laceração do freio da língua.

A tosse convulsa maligna, com evolução muito rápida, caracteriza-se por uma combinação de pneumonia, falência respiratória, leucocitose grave, envolvimento neurológico e hipertensão pulmonar. Culmina em morte em 75% dos casos apesar das medidas terapêuticas intensivas.

Exames complementares

Na tosse convulsa, o hemograma típico da fase catarral demonstra muitas vezes um valor aumentado dos leucócitos (15.000-100.000 cél/µL) com linfocitose e sem eosinofilia (como acontece na infecção por Chlamydia trachomatis). Os valores de linfocitose estão directamente relacionados com a gravidade da doença.

A radiografia do tórax poderá não evidenciar qualquer sinal de alteração, ou pode apresentar infiltrados peri-hilares inespecíficos ou atelectasia.

Embora o diagnóstico de tosse convulsa seja clínico, existem vários exames para confirmação da infecção:

  1. Exame cultural
    Apesar de continuar a ser considerado o método gold standard para o diagnóstico, o exame cultural tem vindo a ser substituído pelas técnicas de biologia molecular. Isto, porque a sua sensibilidade é baixa (especialmente após a fase catarral), o que se deve às características delicadas do agente e à difícil técnica de colheita.
    Recorda-se a propósito que o local de eleição para recolha do material deve ser a nasofaringe e não as fossas nasais, e que existe necessidade de zaragatoas específicas e de meios de transporte e cultura particulares. Além da baixa sensibilidade, o tempo de resposta é mais longo em comparação com os exames de biologia molecular.
  2. Polimerase Chain Reaction (PCR) ou reacção em cadeia da polimerase
    A utilização desta técnica de diagnóstico molecular tem vindo a ser cada vez maior, com as seguintes vantagens: – possibilidade na obtenção de resultados mais precoces e de utilização até mais tarde no decurso da doença; – não influência da antibioticoterapia prévia; – elevada sensibilidade, uma vez que o resultado é independente de existirem microrganismos viáveis ou de um inóculo importante.
    A sua maior limitação é a baixa especificidade.
  3. Imunofluorescência directa
    Esta ténica é usada para a detecção nas secreções respiratórias de Bordetella pertussis, através de anticorpos marcados. Com menor especificidade e sensibilidade do que o exame cultural e a PCR, é muito pouco utilizada, para além de que não é aceite como comprovativo de infecção.
  4. Estudo serológico
    A infecção por Bordetella pertussis desencadeia um aumento da concentração sérica de IgA e IgG para os antigénios de superfície (sendo que a IgM não tem significado diagnóstico na tosse convulsa). São necessárias duas colheitas de sangue para as serologias: uma na fase aguda e outra na fase de convalescença. A duplicação dos títulos de anticorpos (quantificação pelo método de ELISA) entre estas duas amostras tem elevada especificidade, apesar de fraca sensibilidade. Um valor de IgG anti-Bp >100 EU/ml também ajuda para o diagnóstico. De salientar, contudo, que permite o diagnóstico apenas nas semanas terminais da fase paroxística ou na fase de convalescença. Outras limitações do estudo serológico são:
    • diferente resposta individual, dependente da idade (crianças com menos de 3 meses podem não ter ainda capacidade imunológica para uma subida do título dos anticorpos);
    • interferência nos resultados, decorrente de exposição prévia ao microrganismo ou aos seus antigénios pela vacinação, tornando extremamente difícil a sua aplicação e interpretação.

O Center for Disease Control (CDC) recomenda a seguinte combinação de exames complementares para a comprovação diagnóstica de tosse convulsa:

  1. Nas primeiras quatro semanas de doença (três semanas de tosse): cultura e PCR.
  2. Tosse com duração de três ou quatro semanas: PCR e estudo serológico.
  3. Tosse com duração superior a quatro semanas: estudo serológico.

De notar que a tosse convulsa é uma doença de declaração obrigatória (DDO), devendo igualmente ser notificados todos os casos prováveis ou confirmados.

Diagnóstico diferencial

A infecção por Bordetella parapertussis é muito semelhante à doença provocada pela Bordetella pertussis. O hemograma (linfocitose igual ou superior a 10.000/uL é muito sugestiva de infecção por Bordetella pertussis); exames culturais ou PCR positivos para B. pertussis, permitirão o diagnóstico definitivo.

Outras infecções respiratórias que decorrem com tosse, por vezes acessual, podem dever-se a Chlamydia trachomatis, Chlamydia pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae, infecções por vírus respiratório sincicial, adenovírus e vírus parainfluenza.

Há ainda que considerar a tosse espasmódica que pode surgir no decurso de pneumonia bacteriana, fibrose quística, tuberculose, assim como nas situações de compressão extrínseca da traqueia e brônquios, ou de aspiração de corpo estranho. Nestes casos, uma anamnese cuidadosa e os exames complementares permitem, habitualmente, um diagnóstico diferencial rápido e correcto. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Tosse convulsa (por B. pertussis): diagnóstico diferencial.

Infecções víricas
Vírus sincicial respiratório (VSR); vírus parainfluenza; adenovírus; influenza A e B; rhinovirus; coronavírus
Infecções bacterianas
Bordetella parapertussis; Chlamydia trachomatis; Chlamydia pneumoniae; Mycoplasma pneumoniae
Causas não infecciosas
Refluxo gastresofágico, aspiração de corpo estranho

Tratamento

As crianças com menos de 6 meses ou com doença grave requerem hospitalização. Os doentes deverão ser mantidos isolados (transmissão por gotículas – quarto individual e máscara) até 5 dias após o início da antibioticoterapia.

Os principais critérios para internamento são: incapacidade de alimentação, sinais de dificuldade respiratória (retracção intercostal, taquipneia e cianose), convulsões ou más condições sociais. Por vezes, principalmente na criança com menos de 3 meses, é necessário o internamento em unidades de cuidados intensivos. Nos casos de insuficiência respiratória e hiperleucocitose (> 50.000 leucócitos/uL) deverá ser avaliada a possibilidade de realização de ECMO (extra-corporeal membrane oxigenation).

O tratamento de suporte é fundamental, com suprimento calórico e fluidoterapia ajustados às necessidades, uma vez que tais doentes têm frequentemente extrema dificuldade em se alimentar.

A terapêutica antibiótica (resumida no Quadro 3) deve ser iniciada numa fase precoce, o que contribui para uma diminuição da gravidade e duração dos sintomas, assim como da transmissão da doença aos contactos susceptíveis. Deverá ser instituída se houver uma suspeita clínica fortemente sugestiva, não se esperando pela confirmação do diagnóstico através dos meios de diagnóstico atrás descritos.

Broncodilatadores, glicocorticóides e antitússicos não têm qualquer papel no tratamento da doença.

QUADRO 3 – Tratamento antimicrobiano da tosse convulsa.

  Terapêutica Primária Terapêutica Alternativa
Grupo etário Azitromicina Eritromicina Claritromicina Cotrimoxazol
TMP – SMX
< 1 mês 10 mg/kg/dia, 24/24h; 5 dias Não recomendada Não recomendada Contraindicado em lactentes com < 2 meses
1-5 meses 10 mg/kg/dia, 24/24h; 5 dias 40 a 50 mg/kg/dia, 6/6h; 14 dias 15 mg/kg/dia,
12/12h; 7 dias
> 2 meses: Cotrimoxazol
TMP 8/SMX 40 mg/Kg/dia 12/12h; 14 dias
> 6 meses D1: 10 mg/kg/dia (máximo: 500 mg)
D2-5: 5 mg/kg/dia
(máximo: 250 mg)
24/24h
40 a 50 mg/kg/dia, 6/6h, (máximo: 2 g/dia); 14 dias 15 mg/kg/dia,12/12h
(máximo: 1 g/dia);
7 dias
Cotrimoxazol
TMP 8/SMX 40 mg/Kg/dia 12/12h
14 dias
Adolescentes/ Adultos D1: 500 mg
D2-5: 250 mg
24/24h
2000 mg/dia 8/8h;
14 dias
1000 mg/dia 12/12h;
7 dias
Cotrimoxazol
TMP 320/SMX 1600 mg/dia 12/12h 14 dias

Com o objectivo de evitar a transmissão secundária, para além do tratamento do caso índex, é recomendada a profilaxia dos contactos íntimos com macrólido, independentemente da idade e do estado vacinal. Nas crianças com idade igual ou inferior a 6 anos e com atraso vacinal deve ser actualizado o esquema de vacinação.

Prevenção

A imunização universal de crianças, começando na primeira infância e com reforços periódicos, constitui a base essencial da contenção da doença por B. pertussis.

Efectivamente, nos países industrializados a introdução da vacina na década de 40 permitiu uma diminuição da incidência da doença, da sua morbilidade e mortalidade. A primeira vacina utilizada foi a de célula completa Pw (DTPw ou vacina antipertussis associada à antidiftérica e antitetânica).

No entanto, pelo elevado número de efeitos adversos associados, foi interrompida nalguns países. Este procedimento teve consequências: recomeçaram grandes epidemias de tosse convulsa.

Os estudos epidemiológicos subsequentes demonstraram que o risco da doença excedia largamente o risco da vacinação, pelo que a DTPw foi reintroduzida na maioria dos países que a tinham suspendido. Grande parte das reacções adversas à DTPw deve-se ao seu conteúdo em endotoxina.

De forma a contornar esta problemática, surgiram as vacinas acelulares (DTPa), nas quais são utilizados apenas alguns antigénios da Bordetella pertussis, o que consequentemente levou a menor frequência de reacções adversas, conquanto associada a menor imunogenicidade e eficácia relativamente à DTPw. Assim, a DTPa não está recomendada em crianças com mais de 7 anos.

Os objectivos para o controlo da tosse convulsa a nível europeu estão definidos pela OMS desde 1993; entre outros, atingir em cada país a incidência inferior a 1/100.000. Portugal atingiu essa taxa em 1997, passando de 1,6 para 0,34/100.000. De salientar que, com tal estratégia, o nível de endemicidade manteve-se, com picos regulares.

Em Portugal, em 1965 foi introduzida no PNV a vacina combinada contra a tosse convulsa do tipo célula inteira (DTPw), sendo substituída em 2006 pela vacina pertussis acelular (DTPa).

Entretanto, passou a verificar-se o chamado efeito perverso da vacinação, com desvio etário da doença, quer no pequeno lactente não vacinado ou incompletamente vacinado, quer nos adolescentes e adultos.

Com o desenvolvimento da tecnologia, começaram a surgir vacinas acelulares com menor dose antigénica (símbolo pa em oposição ao convencional Pa) (Boostrix®), e com uma imunogenicidade semelhante à das vacinas utilizadas para a vacinação primária (DTPa), podendo ser utilizadas no adolescente e adulto em função da realidade epidemiológica local ou regional.

As estratégias a adoptar para controlo da re-emergência da tosse convulsa não consensuais, começaram a ser adoptadas nalguns países:

1. Vacinação da grávida

A passagem transplacentar de anticorpos é máxima às 34 semanas de gravidez. Embora a correlação entre os níveis de anticorpos e a seroprotecção não esteja ainda estabelecida, admite-se que aquela confere protecção passiva no primeiro mês de vida.

Desde 2012 os EUA e o Reino Unido adoptaram a vacinação de grávidas contra a tosse convulsa entre as 28 e as 38 semanas de gestação. Os estudos realizados pelos programas de vigilância de efeitos adversos destes países demonstraram que a vacina é segura e altamente eficaz na protecção do recém-nascido e pequeno lactente.

A vacinação da grávida parece ser a medida mais eficaz na prevenção da tosse convulsa em lactentes com menos de três meses; no entanto, é desconhecido se há interferência dos anticorpos maternos com a posterior resposta vacinal à DTPa no lactente.

2. Vacinação de recém-nascidos/antecipação da primovacinação

A imunização com DTPa no período neonatal parece interferir na resposta imunitária subsequente à tosse convulsa, não sendo recomendada. Antecipar a administração da DTPa para as 6 semanas tem sido proposto em vários países. Contudo, o impacte desta estratégia não está bem estabelecido.

3. Vacinação selectiva de familiares e contactos próximos do recém-nascido (cocooning)

Vários estudos sugerem que os lactentes são infectados pelos conviventes familiares em mais de 75% dos casos. Apesar de o efeito desta estratégia não estar ainda bem definido, a OMS recomenda a vacinação de adultos que tenham contacto próximo com recém-nascidos. Esta estratégia já foi adoptada na Austrália, EUA, França e Alemanha, sendo muito difícil de concretizar, não parece ser suficiente para diminuir a morbilidade no lactente pequeno nem a incidência global da doença.

4. Vacinação de adolescentes e adultos

Diminuir a doença nos adolescentes não parece trazer benefícios na redução de doença em lactentes. Tal facto poderá estar relacionado com a baixa cobertura vacinal ou com a reduzida interacção entre adolescentes e crianças. Por outro lado, o declínio da imunidade 6-10 anos após a vacinação na adolescência poderá levar a um aumento da susceptibilidade dos adultos em idade fértil. Para contornar esta problemática, alguns países sugerem reforços dos adultos a cada 10 anos com dTpa.

5. Vacinação selectiva de profissionais de saúde

São vários os estudos que têm sido publicados sobre surtos de infecção nosocomial em unidades de saúde, tendo os profissionais de saúde papel importante no contágio aos lactentes.

A OMS recomenda a vacinação dos profissionais de saúde, especialmente, de unidades de cuidados intensivos neonatais e maternidades. No entanto, não há estudos que avaliem o impacte desta medida.

Salienta-se que nenhuma das cinco estratégias descritas tem impacte significativo na redução global da doença e na morbilidade. Assim, perante o conhecimento actual, e de acordo com as recomendações internacionais (CDC e OMS), a comissão de vacinas da Sociedade de Infecciologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Pediatria recomenda:

  • A vacinação de jovens pais e conviventes que desejem reduzir o risco de infecção para os próprios e para os recém-nascidos com quem covivem; 

  • A vacinação de grávidas durante o terceiro trimestre (entre as 28 e 36 semanas da gravidez) durante surtos, tal como o que ocorre actualmente na Europa;
  • A vacinação de adolescentes e adultos como medida de protecção individual. 


Em suma, para avaliar o impacte de qualquer das estratégias abordadas, deverá existir um programa nacional de vigilância epidemiológica. Por outro lado, torna-se fundamental alcançar coberturas vacinais elevadas para garantir resultados eficazes em todos os grupos submetidos a vacinação na tentativa de eliminação da doença.

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INFECÇÕES POR HAEMOPHILUS INFLUENZAE

Definição e importância do problema

O agente Haemophilus influenzae é um cocobacilo, Gram-negativo e pleiomórfico, que necessita do factor X (hematina) e factor V (fosfopiridina nucleótido) para o seu crescimento. Algumas estirpes têm cápsula de polissacárido (cápsula polissacarídea), o principal determinante da virulência e da imunogenicidade.

Depois do pneumococo, agente Haemophilus influenzae é o mais prevalente na via respiratória superior sem causar doença; esta situação de colonização (60%-90% por estirpes não capsuladas) é designada por portador assintomático, agente Haemophilus influenzae. A espécie humana constitui o único reservatório.

As estirpes capsuladas, antigenicamente distintas, incluem seis serótipos (a, b, c, d, e, f). Haemophilus influenzae do tipo b (Hib) é o mais prevalente e causa de doença invasiva com septicémia, meningite, artrite séptica, celulite, epiglotite, pneumonia e empiema.

As estirpes não capsuladas ou não tipáveis associam-se a infecções não invasivas (das superfícies mucosas) como otite média, sinusite, bronquite, conjuntivite e alguns tipos de pneumonia, sendo que cerca de 30% dos casos de otite média aguda e sinusite são explicados pelo agente.

Aspectos epidemiológicos

Após a introdução da vacinação universal anti-Hib, a epidemiologia das infecções por Haemophilus influenzae modificou-se consideravelmente. Contudo, a doença provocada por este agente (incluindo doença invasiva) continua a ser responsável por uma variedade de entidades clínicas, comportando morbilidade e mortalidade elevadas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

O habitat natural deste microrganismo é a via respiratória superior do ser humano. A trasmissão ocorre de pessoa a pessoa, através da inalação de gotículas respiratórias, ou por contacto directo com secreções e gotículas de saliva.

Também pode ocorrer transmissão por via vertical, através da aspiração de líquido amniótico ou de secreções contaminadas do aparelho genital materno. Nestas circunstâncias, as estirpes em causa são distintas das que colonizam habitualmente o aparelho respiratório superior.

O período de incubação é desconhecido, sendo de salientar que pode haver múltiplas exposições ao microrganismo antes de a doença se manifestar.

Com a generalização das vacinas conjugadas, a incidência da doença invasiva diminuiu cerca de 90% nalgumas regiões do globo, sendo que os casos declarados da mesma se associam em geral a situações de imunização incompleta e a recém-nascidos.

A doença tem um carácter sazonal bimodal com um pico entre Setembro e Dezembro e Março e Maio.

A susceptibilidade à doença por Hib depende essencialmente da idade e correlaciona-se com a resposta imune. Durante os primeiros 6 meses de vida, algumas crianças evidenciam um estado de protecção passiva por anticorpos IgG maternos, adquiridos por via transplacentar e pelo aleitamento materno.

O pico da incidência ocorre entre os 7 e os 11 meses, quando o nível de anticorpos é baixo ou nulo. Após uma primeira doença invasiva, os níveis de anticorpos podem permanecer baixos, o que pode determinar uma resposta imune escassa e um segundo ou terceiro episódio de doença. Assim, a existência de doença invasiva prévia não invalida a necessidade de vacinação.

Na era pré-vacinal, por volta dos 5 anos de idade, na maioria das crianças, após infecções repetidas e aquisição de anticorpos capsulares e bactericidas, desenvolvia-se imunidade específica natural para o Hib.

A incidência da doença invasiva por Hib é mais elevada no sexo masculino, em crianças africanas, em índios, e em esquimós do Alasca. Os meios socioeconómicos desfavorecidos, a permanência em lugares com elevada densidade habitacional, ou em espaços fechados como instituições ou infantários, facilitam a transmissão por uma maior exposição ao agente, aumentando o risco de doença.

Outros factores de risco incluem o não aleitamento materno, doença crónica com défice da imunidade humoral ou do complemento, doença de células falciformes, asplenia, doença oncológica e terapêutica com imunossupressores. A constituição genética do hospedeiro pode também ter papel importante na susceptibilidade à infecção por Hib, sendo ainda desconhecido o mecanismo exacto de tal associação.

Mundialmente, enquanto a incidência anual de doença invasiva por Hib em crianças com < 5 anos tem sido estimada em cerca de 67-130/100.000, a incidência daquela por serótipos não tipo b é muito inferior (~0,5-1,9 /1.000.000).

Entre 1989 e 2010, dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, mostram que a introdução da vacina anti-Hib em Portugal conduziu a alterações na epidemiologia da doença invasiva, particularmente no que respeita ao declínio da infecção por Hib (de 81% para 13,2%) e ao aumento da infecção por estirpes não capsuladas (de 19% para 77,1%) e por Haemophilus influenzae tipo f (de 0,8% para 6,9%).

A doença secundária, que ocorre 1 a 30 dias após o contacto com um doente, representa menos de 5% de todos os casos de doença invasiva por Hib. O maior risco (2%-4%) verifica-se em conviventes da mesma família, principalmente em crianças não imunizadas ou parcialmente imunizadas, com menos de 2 anos. Surgindo doença, esta manifesta-se na primeira semana após o diagnóstico do caso index. Por esta razão se realiza quimioprofilaxia após a exposição à doença invasiva por Hib. Nos infantários, o risco de doença secundária por Hib parece ser relativamente mais baixo (~1,35%).

Etiopatogénese

O microrganismo invade a mucosa do epitélio respiratório, ocorrendo posteriormente bacteriémia. Para surgir a infecção, a bactéria adere ao epitélio respiratório através de adesinas da superfície bacteriana. Na maior parte das estirpes as adesinas são proteínas de elevado peso molecular (HMW1 e HMW2); numa pequena percentagem de estirpes predomina uma adesina chamada Hia (Haemophilus influenzae adhesin).

Todas as estirpes possuem uma adesina multifuncional chamada Hap que pertence a uma família de factores de virulência designados por proteínas autotransportadoras, com papel na adesão às células epiteliais e a certas proteínas da matriz extracelular (por ex. fibronectina, laminina e colagénio tipo IV) e na agregação bacteriana com formação de microcolónias.

Outros factores que influenciam a interacção com o epitélio respiratório incluem: fibras adesivas chamadas pili, uma proteína da camada externa da membrana chamada P5 e uma variante de lipopolissacárido (LOS ou lipoligossacárido).

Muitos agentes bacterianos exercem acção patogénica entrando para o interior das células epiteliais; pelo contrário, os agentes Haemophilus influenzae não tipáveis vão ocupar os espaços entre as células. A este último fenómeno dá-se o nome de paracitose, o qual propicia um “nicho” que protege as bactérias da acção dos antibióticos e poderá explicar o estado de portador crónico nasofaríngeo da bactéria em causa.

Haemophilus influenzae não tipáveis poderão também escapar ao mecanismo imune por variações que se verificam ao nível das estruturas referidas atrás (pili, adesinas HMW, e LOS) que funcionam como antigénios determinados geneticamente; ou seja, a variação antigénica compromete o efeito dos anticorpos anteriormente formados contra o agente infeccioso cujo património antigénico entretanto se modificou.

A maior parte das estirpes de Haemophilus influenzae é susceptível à amoxicilina ou ampicilina; cerca de 1/3 produz beta-lactamase, o que confere resistência àqueles antibióticos. Nos casos de resistência sem produção de beta-lactamases, aquela explica-se pela produção, na membrana, da enzima PBP3, o que ocorre com frequência cada vez maior.

Quanto ao hospedeiro, o mecanismo de defesa conhecido mais importante face à agressão por Haemophilus influenzae do tipo b relaciona-se com a existência de anticorpos com acção opsónica dirigidos contra o polissacárido capsular tipo b (PRP-polyribosylribitol phosphate) cuja acção é facilitar a lise de Hib.

A magnitude do inóculo bacteriano e as infecções respiratórias prévias, víricas ou por Mycoplasma pneumoniae, podem potenciar o risco de doença invasiva. Admite-se que as estirpes capsuladas, conseguindo resistir aos mecanismos de lise do complemento ou à fagocitose no hospedeiro, podem multiplicar-se no sangue e causar doença invasiva como sépsis, ou disseminar-se para outros locais e causar meningite ou artrite.

A adesina Hap tem também papel importante neste mecanismo patogénico, facilitando a ligação de Hib às células lesadas com formação de microcolónias de bactérias agregadas.

As infecções não invasivas das mucosas são mais frequentes, principalmente na era pós-vacinal. Presume-se que ocorram por extensão de locais contíguos à mucosa do aparelho respiratório e causem otite média, sinusite, pneumonia e bronquite.

A doença é mais frequente quando existe alteração dos mecanismos de depuração ou da função imunológica do hospedeiro, tais como obstrução dos seios, disfunção da trompa de Eustáquio, infecção vírica prévia ou lesão da mucosa pelo fumo do tabaco ou outros irritantes.

O mecanismo patogénico da pneumonia, epiglotite e celulite não é completamente compreendido, mesmo quando se verifica bacteriémia associada.

Possivelmente a pneumonia ocorre após aspiração de um número significativo de microrganismos virulentos; a epiglotite relaciona-se com infecção focal da epiglote; e a celulite, com infecção do tecido subcutâneo por agente veiculado pela corrente sanguínea.

Manifestações clínicas

A doença causada por Haemophilus influenzae pode afectar vários órgãos e sistemas, e originar diferentes quadros clínicos.

Meningite

É a manifestação mais grave da doença invasiva por Hib. Antes da vacinação universal era a maior causa de meningite bacteriana entre os 3 meses e os 3 anos. Tem um pico de incidência entre os 6 e 9 meses, diminuindo após os 2 anos. Nos países em vias de desenvolvimento, onde os recursos para programas de vacinação são escassos, continua a ser uma importante causa de meningite e sépsis.

O ínicio da doença pode ser fulminante, mas mais frequentemente é insidioso, com sintomas inespecíficos como recusa alimentar, febre, irritabilidade, letargia ou vómitos. Em 10% a 20% dos casos existem outros focos de infecção como celulite, pneumonia ou artrite, na sua maioria acompanhados de bacteriémia.

Epiglotite

A infecção da epiglote é a mais aguda e emergente de todas as infecções causadas por Hib, podendo conduzir à morte em 5%-10% dos casos. Está quase sempre relacionada com a obstrução abrupta da via aérea na ausência de tratamento adequado. Ocorre entre os 2 e os 7 anos, sendo rara abaixo dos 12 meses. Em cerca de 50% dos doentes ocorre infecção da via respiratória superior.

O início da doença é súbito com febre alta, odinofagia, disfagia, sialorreia, voz “abafada”, protusão da língua, agitação, exibindo o paciente um “aspecto tóxico”.

A infecção da epiglote ou tecidos supraglóticos pode, em poucas horas, evoluir para obstrução aguda da via aérea com dificuldade respiratória, estridor e cianose. Para permitir a entrada do ar, o doente senta-se inclinado para a frente, com a cabeça em hiperextensão, adoptando a típica posição em tripé. Actualmente esta entidade pode ocorrer em crianças não imunizadas ou adultos.

Pneumonia

Na era pré-vacinal a pneumonia por Hib era responsável por cerca de um terço das pneumonias bacterianas. Clinicamente é semelhante a outras pneumonias bacterianas.

O padrão radiográfico pode revelar infiltrados segmentares, lobares ou intersticiais, realçando-se que em mais de 50% dos casos se verifica derrame pleural ou pericárdico concomitante.

A hemocultura, o exame cultural do líquido pleural ou aspirados traqueais são positivos em 75% a 90% dos casos. A detecção de antigénios capsulares do Hib no líquido pleural, sangue ou urina não tem valor diagnóstico na idade pediátrica. As complicações incluem empiema, pericardite e meningite, sendo as sequelas a longo prazo raras.

Artrite séptica e osteomielite

Na era pré-vacinal, e na maioria dos casos de artrite séptica em crianças com < 2 anos estava implicado o agente Hib. Em mais de 90% dos casos, o envolvimento abrange apenas um território, de uma grande articulação, como a coxo-femoral, a do joelho, a tibiotársica ou o cotovelo.

Habitualmente, os sinais inflamatórios são precedidos de infecção das vias respiratórias superiores. Em cerca de 10% a 20% dos doentes pode ocorrer osteomielite por contiguidade.

Bacteriémia

A partir dum foco infeccioso surge bacteriémia, a qual precede a doença invasiva. Contudo, em crianças com < 2 anos pode ocorrer bacteriémia oculta (BO) sem foco infeccioso detectável, com febre > 39ºC e leucocitose periférica. Contrariamente à BO por pneumococo, que pode regredir espontaneamente, na BO por Hib, em 30% a 50% dos casos surgem complicações focais como meningite, pneumonia ou celulite, com implicações nas decisões de exames complementares a realizar.

Celulite

A celulite por Hib, mais observada na época pré-vacinal, envolve a face, cabeça e nariz em crianças abaixo dos 2 anos. A celulite odontogénica, mais frequente no lactente, tem ínicio súbito com rubor, calor, edema e aparecimento de uma área endurecida com halo violáceo que pode assemelhar-se à erisipela.

Outros quadros clínicos de doença invasiva

Na sequência de bacteriémia podem surgir os seguintes quadros clínicos: pericardite, endoftalmite, abcesso cerebral, glossite, traqueíte, tiroidite, endocardite, fascite necrosante, piomiosite, tenossinovite, polisserosite, abcesso pulmonar, abcesso intraperitoneal, abcesso escrotal e peritonite.

A doença invasiva pode ainda manifestar-se por febre isolada, febre e petéquias, ou febre de origem indeterminada.

Doença neonatal

O microrganismo Haemophilus influenzae pode causar sépsis precoce e meningite no recém-nascido: na maioria dos casos (2/3) a sintomatologia surge no primeiro dia de vida.

Habitualmente a doença é causada por estirpes não tipáveis isoladas do tracto genital materno.

A transmissão pode ocorrer durante o parto ou in utero. Pode existir associação a prematuridade, baixo peso de nascimento, corioamnionite materna e ruptura prematura de membranas. Nalguns casos há antecedentes de parto por cesariana.

As manifestações clínicas incluem fundamentalmente pneumonia, bacteriémia e conjuntivite. A taxa de mortalidade é cerca de 55%.

Infecções por Haemophilus influenzae não tipáveis

As estirpes não tipáveis do Haemophilus influenzae são causa frequente de otite média, sinusite, conjuntivite e bronquite. As vacinas conjugadas não conferem protecção para estas estirpes não capsuladas.

A sinusite por Haemophilus influenzae tem um curso clínico mais arrastado. A otite e a sinusite crónica raramente causam complicações como mastoidite ou abcessos meníngeos.

A conjuntivite habitualmente é bilateral e purulenta, podendo ocorrer por surtos e associar-se a otite média. Esta situação é denominada síndroma conjuntivite-otite.

A doença invasiva associada a estirpes não tipáveis, rara, associa-se a factores de risco como prematuridade, fístula permitindo a perda de líquido cefalorraquidiano, cardiopatia congénita ou imunodeficiência.

Salienta-se que o diagnóstico de infecção invasiava por estirpes não tipáveis obriga a investigação imunológica, mesmo na ausência de factores de risco.

Diagnóstico

A suspeita de doença por Haemophilus influenzae obriga à realização de exames complementares para avaliação clínica e confirmação etiológica.

Exame directo

A identificação do microrganismo em esfregaço de produto biológico, após coloração pelo Gram, pressupõe que exista uma concentração da ordem de, pelo menos, 105 bactérias/mL; consequentemente, a probabilidade de detecção é baixa.

Exame cultural

O exame cultural (hemocultura, cultura de outros líquidos biológicos) implica necessidade de colheita em condições ideais e transporte rápido para o laboratório. As amostras não devem ser expostas a temperaturas ou secura extremas.

Na BO por Hib, em 30% a 50% dos casos poderão surgir complicações focais como meningite. Assim, na presença de hemocultura positiva deverá considerar-se a realização de punção lombar e exame do LCR.

Serotipagem

Pelas implicações clínicas, epidemiológicas e de saúde pública, torna-se fundamental proceder a esta técnica, designadamente para identificação ou exclusão de serótipos associados a doença invasiva.

Outros exames

Na ausência de identificação do agente em exames culturais, o diagnóstico etiológico pode ser realizado por técnicas de biologia molecular com pesquisa de sequências específicas de ARN ou de ADN em produtos no local da infecção.

Tratamento

As crianças com doença invasiva devem ser hospitalizadas e submetidas a antibioticoterapia endovenosa. Nas infecções por estirpes não tipáveis poderá optar-se, em função do contexto clínico, pela antiboticoterapia oral.

A escolha do antibiótico deve basear-se nos seguintes critérios: 1) conhecimento epidemiológico; 2) susceptibilidade aos antimicrobianos; 3) local e gravidade do quadro clínico; 4) factores de risco no hospedeiro.

A resistência de Haemophilus influenzae à ampicilina varia entre 5% a 50%. Em Portugal, em cerca de 10% das estirpes verifica-se produção de beta-lactamase, sendo que existe uma susceptibilidade quase total à amoxicilina/clavulanato e cefuroxima.

O esquema de tratamento varia em função da entidade clínica. Os Quadros 1 e 2 sintetizam os principais esquemas de tratamento. No que respeita às entidades epiglotite, conjuntivite, pneumonia, artrite séptica e celulite, sugere-se ao leitor a consulta do índice geral para localização dos respectivos capítulos.

QUADRO 1 – Esquema de tratamento de algumas infecções por H. influenzae.

AM/CL* = amoxicilina e ácido clavulânico
EntidadeActuaçãoAntibióticoDuração
MeningiteRealizar 2 hemoculturas exame cultural do LCR
Realizar detecção de antigénios capsulares no LCR e urina se antibioticoterapia prévia
Dexametasona: 0,6 mg/kg/dia IV, 6/6h, 4 dias; administrar primeira dose 20 a 30 minutos antes da 1ª administração de antibiótico. Vigiar complicações neurológicas
Ceftriaxona10-14 dias
PneumoniaRealizar 2 hemoculturas
Exame cultural de líquido pleural e aspirados traqueias
Realizar detecção de antigénios capsulares no líquido pleural
e urina se antibioticoterapia prévia
Cefuroxima ou AM/CL*10 dias
BacteriémiaRealizar 2 hemoculturas
(cada colheita com 2 mL de sangue no mínimo)
Se hemocultura positiva realizar punção lombar
Ceftriaxona7-10 dias
Doença neonatalRealizar 2 hemoculturas e punção lombar
Vigiar pneumonia
Ampicilina + Cefotaxima10-14 dias
Doença invasiva por H. influenzae não tipáveisRealizar 2 hemoculturas e punção lombar
Realizar investigação imunológica, inclusivamente nos casos de criança previamente saudável
Ceftriaxona10 dias
Outras infecções por H. influenzae não tipáveisTratar OMA se houver factores de risco, otites de repetição
e na criança com menos dos 2 anos, durante 5 a 7 dias
Tratar sinusite durante 14 dias e bronquite durante 10 dias
AM/CL* 

QUADRO 2 – Esquema de tratamento de algumas infecções por H. influenzae.

Amoxicilina e ácido clavulânico (AM/CL): via oral/dose de amoxicilina: 50 mg/kg/dia; via IV: 50 mg/kg/dose
AntibióticoDose diária Dose no RNNº de doses/dia
Cefuroxima100 mg/kg200 mg/kg/dia3
Cefotaxima100 mg/kg200 mg/kg/dia3
Ceftriaxona100 mg/kg200 mg/kg/dia1
AM/CL*50 mg/kg*200 mg/kg/dia2-3

Prognóstico

A gravidade da doença depende fundamentalmente do local da infecção, de factores de risco, factores inerentes ao hospedeiro, factores de virulência do agente e de mecanismos de resistência aos antibióticos. O mais importante elemento de defesa do hospedeiro é a existência de anticorpos dirigidos contra o polissacárido capsular do tipo b PRP (poli-ribosil-ribitol-fosfato).

Prevenção

Medidas não imunológicas

Considera-se contacto de risco aquele que corresponde à exposição a uma pessoa com doença invasiva, ocorrendo 4 ou mais horas por dia, e durante, pelo menos, 5 dias.

As medidas não imunológicas incluem:

  • isolamento de doentes com forma invasiva até 24 horas após início de antibioticoterapia
  • quimioprofilaxia aplicada a:
    1. contactos de risco;
    2. conviventes do agregado familiar que, independentemente da idade, tenham contacto com crianças com < 4 anos não imunizadas ou parcialmente imunizadas;
    3. irmãos ou conviventes com menos de 12 meses;
    4. imunodeprimidos, independentemente do seu estado de imunização;
    5. Assistência em infantários ou instituições onde ocorreram 2 ou mais casos de doença invasiva no período de 60 dias.

Em qualquer situação de 1- a -5 deve administrar-se rifampicina na dose de 20 mg/kg/dia (não excedendo 600 mg/dose), em toma única diária, durante 4 dias. No adulto a dose é 600 mg/dia, em toma única diária.

Nota: Em Portugal, as infecções por Haemophilus influenzae são de notificação obrigatória desde 1999.

Medidas imunológicas

As vacinas conjugadas com protecção para o Haemophilus influenzae tipo b têm tido um papel primordial no combate à doença invasiva, diminuindo a incidência em cerca de 90%, a colonização da nasofaringe e a transmissão interpessoal em idades precoces em que o estado de portador é mais prevalente.

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