Introdução

O metabolismo da mitocôndria, muito complexo, compreende a produção de energia necessária a diversos processos metabólicos sob a forma de Adenosina trifosfato/ TriPhosphate/ ATP) através da fosforilação oxidativa, oxidação do piruvato, ciclo de Krebs, beta-oxidação de ácidos gordos, catabolismo dos aminoácidos e apoptose. Nesta perspectiva, a disfunção de tal mecanismo pode verificar-se em numerosas situações.

Enquanto uma maior parcela da energia (ATP) advém da fosforilação oxidativa (OXPHOS) obtida através da cadeia respiratória (CR), uma menor parcela da energia é obtida através dos restantes processos atrás citados, sendo que nas respectivas vias metabólicas está envolvida uma multiplicidade de enzimas sob controlo genético.

Às doenças decorrentes de alterações no metabolismo energético mitocondrial [em relação com defeitos de enzimas ou de complexos enzimáticos, interferindo nas vias metabólicas que conduzem à geração de energia] tem sido dado o nome de doenças mitocondriais (DM). Dado que o cérebro e o músculo são muito dependentes do sistema OXPHOS/CR, a sintomatologia neurológica e muscular é muito comum. Assim, surgiu o termo encefalopatia mitocondrial como sinónimo de DM, conceito que abrange um largo espectro de doenças multissistémicas.

A este propósito, importa reter as seguintes noções:

  • As DM são causadas por mutações em genes do DNA mitocondrial (DNAmit – a que correspondem cerca de 40 genes) ou do DNA nuclear (DNAn – a que correspondem cerca de 1500 genes). De salientar que os defeitos do genoma nuclear são responsáveis pela maioria (80-90%) das doenças mitocondriais que se manifestam na idade pediátrica;
  • Tal patologia, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/10.000 nados-vivos e a que corresponde um grupo nosológico de enorme heterogeneidade, integra as formas mais comuns de alterações neurológicas hereditárias;
  • A sintomatologia das DM, evidenciando várias combinações de sintomas, traduz a disfunção de órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina.

A mitocôndria possui o seu próprio sistema DNA (DNAmit), o qual está fortemente dependente do genoma nuclear para a produção de inúmeros factores essenciais a diversas funções das mesmas mitocôndrias, como transcrição, tradução, replicação.

Assim, cada célula contém centenas de mitocôndrias, ou seja milhares de cópias do DNAmit, e de genes que as codificam.

Notas importantes:

    1. Anteriormente, considerava-se que as doenças mitocondriais (DM) eram afecções caracterizadas exclusivamente por disfunção primária da cadeia respiratória mitocondrial (CR) ou sistema OXFOS com a consequente diminuição da produção de energia pela fosforilação oxidativa, na forma de ATP.
    2. Na actualidade, o conceito DM é mais amplo, dizendo respeito (para além da disfunção na cadeia respiratória), a outras disfunções da mitocôndria relacionadas com vias metabólicas em que participam processos bioquímicos, enzimas e complexos enzimáticos, interdependentes, como: complexo da piruvato-desidrogenase (c PDH), ciclo da carnitina, β-oxidação dos ácidos gordos (β-OXAG), oxidação de acetilCoA no ciclo tricarboxílico, cetogénese, cetólise, síntese e transporte da creatina, ciclo de Krebs, homeostase do cálcio, apoptose, estresse oxidativo, etc. (ver adiante).
    3. As DM na sua grande maioria dizem respeito a situações de base hereditária genética, as quais constituem o objecto de estudo deste capítulo (DM primárias).
    4. Com efeito, a par desta maioria, existe uma minoria de situações adquiridas (DM secundárias) em que se comprova disfunção mitocondrial, tais como síndroma metabólica, isquémia-reperfusão após acidente vascular cerebral, doenças neurodegenerativas, etc.

 

Neste capítulo são abordados tópicos essenciais das doenças mitocondriais de base hereditária/ genética, dando ênfase aos defeitos/ às disfunções da CR, da oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como aos defeitos da biossíntese e transporte da creatina.

Em certos livros de texto, os tópicos relacionados com a oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como os defeitos da biossíntese e transporte da creatina, são abordados no âmbito do metabolismo dos lípidos e dos aminoácidos.

1. DISFUNÇÃO DA CADEIA RESPIRATÓRIA (Sistema OXPHOS)

Complexos e funções da cadeia respiratória (CR)

A fosforilação oxidativa (OXPHOS) é obtida através da cadeia respiratória (CR) formada por cinco complexos.

A CR, localizada na membrana interna da mitocôndria, merece assim uma referência especial, designadamente quanto a complexos que integra e suas funções; a mesma está dependente de dois genomas diferentes: o DNAn e o DNAmit, ao nível dos quais se podem verificar mutações (ver caixas seguintes, realçando-se a importância de uma das suas funções – fosforilação oxidativa – na produção de energia/ ATP).

CRcomplexos

    • complexo I (CI): NADH-CoQ- oxido-redutase que contém mais de 40 subunidades codificadas pelo DNA nuclear (DNAn), e apenas 7 pelo DNAmit;
    • complexo II (CII): Succinato-CoQ-oxido-redutase com 4 subunidades codificadas apenas e só pelo DNAn;
    • complexo III (CIII): Ubiquinol-citocromo c-oxido-redutase, com dez subunidades codificadas pelo DNAn, e uma pelo DNAmit;
    • complexo IV (CIV): Citocromo c-redutase (oxidase) com dez subunidades do DNAn, e três codificadas pelo DNAmit; e
    • complexo V (CV): ATP-sintetase com catorze subunidades do DNAn, e apenas duas do DNAmit. Portanto: das 80-90 proteínas da CR, apenas 13 são codificadas pelo DNAmit.

CRfunções

    • a reoxidação do NADH e FADH oriundos do ciclo do ácido cítrico (CAC) e da b-OXAG;
    • a transferência de electrões para o O2; e
    • a fosforilação oxidativa do ADP em ATP (Fig. 1).

A reoxidação dos referidos substratos liberta energia [E] que serve para bombear protões da matriz da mitocôndria para o espaço intermembranar; o gradiente electroquímico gerado é utilizado pelo CV para a síntese de ATP (Fig. 2, esquematizando apenas os aspectos fundamentais).


Os defeitos ou disfunções da CR podem surgir em qualquer idade. O desenvolvimento intrauterino pode ser afectado gravemente, o que se traduz em defeitos congénitos, designadamente do SNC (necrose neuronal, alteração da migração axonal originando por ex. dismorfia craniofacial); nas crianças mais pequenas predomina a patologia encefalopática, intermitentemente progressiva, enquanto em adolescentes e adultos predomina a patologia miopática.

FIGURA 1. Funções da cadeia respiratória mitocondrial.

FIGURA 2. Complexos da CR e formação de ATP.

Genética

Para melhor compreensão da clínica das DM, importa relembrar algumas noções fundamentais de genética referente à mitocôndria e ao núcleo:

  1. O DNAmit é herdado da mãe;
  2. As moléculas do DNAmit existem em múltiplas cópias na célula (poliplasmia);
  3. As mutações patogénicas afectam, no geral, uma certa proporção do DNAmit (heteroplasmia);
  4. Apenas acima de uma percentagem mínima crítica de DNA que sofreu mutação surgem alterações significativas da fosforilação oxidativa e sintomatologia (efeito limiar);
  5. O grau de heteroplasmia, nas gerações seguintes de células, pode alterar-se (segregação replicativa), podendo mudar o quadro clínico;
  6. Os defeitos enzimáticos da CR podem ser: isolados (um só complexo afectado), ou combinados, sendo que qualquer defeito enzimático da CR, independentemente da sua localização, poderá afectar gravemente o metabolismo;
  7. As mutações do DNAn que podem afectar o metabolismo energético são ainda pouco conhecidas, mas o seu número cresce progressivamente;
  8. Na fertilização, todo o DNAmit provém do ovócito, pelo que o padrão de transmissão do DNAmit (e mutações patogénicas) é radicalmente diferente do da hereditariedade mendeliana (nuclear). Assim, uma mãe com mutação pontual no DNAmit transmite-a a todos os seus filhos de ambos os sexos, mas só as filhas a transmitirão à descendência (hereditariedade materna);
  9. O fenótipo é assim determinado pela proporção relativa entre o DNA em que se verificou mutação e o DNA normal, que é variável nos diferentes tecidos, e pode alterar-se ao longo da vida.

Na perspectiva da relação entre alterações genéticas e entidades clínicas, pode estabelecer-se a seguinte sistematização:

Alterações primárias do DNAmit

As doenças resultantes de tais alterações associam-se a hereditariedade mitocondrial.

Podem surgir deleções simples, duplicações (estas últimas podendo coexistir), e mutações pontuais. As deleções simples, apresentando-se geralmente de forma esporádica, determinam determinadas síndromas como: de Pearson, de Kearn-Sayre (KSS), PEO (oftalmoplegia externa progressiva), diabetes e surdez. Ocasionalmente pode haver transmissão materna.

No que respeita às mutações pontuais (cerca de 200) poderão decorrer de hereditariedade materna e ser multissistémicas, ou esporádicas e específicas de tecido; o seu número tem crescido, sugerindo-se, para actualização, a consulta do sítio – http://infinity.gen.emory.edu/mitomap. html.

Nas encefalomiopatias de transmissão materna há fundamentalmente 4 síndromas mais importantes a destacar: MELAS, MERFF, NARP/MILS e LHON.

Para além destas formas sindromáticas (e outras, como veremos adiante), bem definidas e caracterizadas, estão descritas inúmeras associações de sinais/ sintomas devidas a mutações do DNAmit. Os órgãos ou sistemas mais frequentemente afectados são, entre outros, os relacionados com: visão, audição, sistemas endócrino, cardiovascular, digestivo, renal, etc..

Alterações do DNAn

As doenças resultantes de tais alterações associando-se a hereditariedade nuclear, mendeliana, especificamente dependem de mutações em genes que codificam proteínas da CR e defeitos da sinalização intergenómica.

Das várias dezenas de polipéptidos que constituem a CR, apenas 13 são codificados pelo DNAmit, sendo todos os outros pelo DNAn.

Eis alguns exemplos: mutações que codificam subunidades do CI e CII dando origem:

  • a formas autossómicas recessivas (AR) de síndroma de Leigh; ou
  • a defeitos predominantemente miopáticos, encefalopáticos ou generalizados do CoQ10; ou
  • a mutações nos genes que codificam proteínas necessárias à “reunificação” dos diferentes complexos da CR, como: SURF1, SCO2, COX10, COX15, SCO1 associadas a formas de Leigh, a formas infantis miltissistémicas fatais, a encefalopatia e cardiomiopatia (SCO2, COX15), a nefropatia (COX10), a hepatopatia (SCO1).

Nota: É importante mencionar, a propósito, o defeito primário de CoQ10: primeiros casos descritos em 1989 em 2 irmãos com fadiga progressiva, fraqueza proximal, crises de mioglobinúria, presença de RRF (ver adiante) e lípidos no músculo. A actividade enzimática dos complexos da CR era normal, mas diminuída a dos CI+III e II+III. Outros doentes podem apresentar encefalomiopatia sem mioglobinúria, ou fenótipo de Leigh, com início na idade adulta.

No que se refere aos defeitos da sinalização intergenómica, importa salientar que as mutações nos genes nucleares podem provocar alterações qualitativas ou quantitativas no DNAmit.

  • Alterações qualitativas: deleções múltiplas do DNAmit (AD ou AR) com: oftalmoplegia externa progressiva (PEO) associada a variados sinais/ sintomas; ou mutações no gene da timidina fosforilase (TP) originando a síndroma MNGIE (encefalomiopatia neurogastrintestinal mitocondrial); ou mutações no gene de uma isoforma do transportador do nucleótido adenina (ANT1) com PEO (AD); ou mutações no gene da polimeraseg (POLG) com PEO (AD ou AR); ou no gene Twinkle (helicase).
  • Alterações quantitativas: deplecções acentuadas a parciais do DNAmit com formas congénitas ou juvenis de miopatia ou hepatopatia (AR). Estão identificados 2 genes na síndroma de depleção do DNAmit: gene da timidina-quinase 2 (TK2) com depleção do DNAmit e miopatia isolada; e gene da deoxiguanosina-quinase (δ GK) com formas sistémicas de depleção, frequentemente com miopatia e compromisso hepático.

Têm sido descritos recentemente mais genes nucleares patogénicos, como: o gene da síndroma de Barth (tafazina), e os genes nucleares do CI: NDUFV1, NDUFV2, NDUFS1, NDUFS3, NDUFS4, NDUFS6, NDUFS7. A investigação nesta área está em franco progresso.

Resumindo:

    • As DM podem resultar, quer de mutações no genoma mitocondrial ou nuclear, quer de defeitos da comunicação intergenómica;
    • As DM evidenciam quadros clínicos muito variados resultantes do compromisso de numerosas funções em órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina: combinações de sinais e sintomas envolvendo sistemas diferentes e independentes.

Manifestações clínicas de suspeita de DM

Como regra geral, deve suspeitar-se de DM quando ocorrer uma associação inexplicável (isto é sem relação aparentemente funcional ou embriológica) de dois ou mais sintomas, geralmente com curso rapidamente progressivo ou persistente. É característico observar-se um número crescente de órgãos/tecidos afectados em que o SNC acaba por estar envolvido nas fases avançadas.

A sintomatologia inicial pode persistir ou agravar-se ou, por vezes, melhorar ou desaparecer, à medida que outros órgãos vão sendo afectados.

    • As DM podem surgir em qualquer idade, com qualquer tipo de sintomas, atingir qualquer órgão ou sistema, e com qualquer tipo de hereditariedade.
    • Para além de um alto grau de suspeição, é crucial realizar uma anamnese detalhada e um exame físico o mais completo possível.

São descritos a seguir determinados sinais e sintomas clínicos de suspeição em função de diferentes idades:

Período neonatal

  • Cardíacos: cardiomiopatia;
  • Digestivos: hepatopatia, hipoglicémia refractária, insuficiência hepatocelular grave;
  • Multissistémicos: alterações multiorgânicas e acidose láctica, alterações hematológicas como anemia e pancitopénia;
  • Neurológicos: dificuldade respiratória e acidose láctica marcadas, grave hipotonia isolada, verificação de lesões quísticas na imagiologia cerebral sem história de asfixia perinatal.

A causa mais frequente da sintomatologia neurológica é a depleção do DNAmit por mutações em DNAn.

Período pós-neonatal

  • Metabólicos: coma com cetoacidose, crises de acidocetose e hiperlacticidémia em períodos febris, morte súbita, síndroma de Reye;
  • Gastrintestinais: não progressão ponderal, vómitos recorrentes, diarreia crónica, atrofia das vilosidades intestinais, hipocrescimento, insuficiência hepática grave, hepatomegália progressiva, falência hepática devida ao valproato, disfunção pancreática exócrina, pseudo-obstrução intestinal;
  • Cardíacos: cardiomiopatia, geralmente hipertrófica (concêntrica), síndroma de hiperexcitabilidade, bloqueios de condução;
  • Hematológicos: anemia sideroblástica, pancitopénia com medula aplástica, neutropénia e trombocitopénia, anemia macrocítica refractária e dependente de múltiplas transfusões;
  • Endócrinos: hipoglicémia recorrente, diabetes mellitus insulinodependente, diabetes insípida, hipocrescimento, atraso da idade óssea, hipotiroidismo, hipoparatiroidismo, deficiência de hormona de crescimento, insuficiência suprarrenal, hiperaldosteronismo, insuficiência ovárica ou disfunção hipotalâmica com infertilidade;
  • Renais: raquitismo vitaminorresistente, hipercalciúria, insuficiência renal, nefrite tubulointersticial, síndroma de Toni-Debré-Fanconi, de Bartter, nefrótica, hemolítica-urémica;
  • Musculares: hipotonia e fraqueza musculares, instabilidade cérvico-cefálica, hipomobilidade espontânea, atrofias musculares, fadiga fácil, miopatia, intolerância ao exercício com mialgias, mioglobinúria recorrente, distonia;
  • Neurológicos: atraso ou paragem do desenvolvimento psicomotor, ataxia cerebelosa, epilepsia resistente ou que se agrava com valproato, epilepsia mioclónica, síndroma de West, polineuropatia sensitivo-motora, pés cavos, amiotrofia muscular, leucodistrofia;
  • Oftalmológicos: ptose palpebral, atrofia óptica, retinite pigmentar, degenerescência retiniana, retinopatia “sal e pimenta”, motilidade ocular alterada, oftalmoplegia externa, cataratas, opacidades da córnea, diplopia;
  • ORL: surdez neurossensorial progressiva, ototoxicidade provocada por aminoglicosídeos;
  • Dermatológicos: pigmentação marmoreada, pigmentação de áreas expostas à luz, cabelo fraco, quebradiço, tricotilodistrofia, exantemas;
  • Dismórficos: fácies simile síndroma alcoólica fetal, com ou sem agenésia do corpo caloso;
  • Outros: lipomatose simétrica múltipla, paraganglioma hereditário.

Formas clínicas

Para além da vastidão do perfil clínico, destacam-se formas sindromáticas particulares (algumas designadas por siglas do inglês) que importa conhecer.

Síndroma de Leigh

Esta síndroma, com especial interesse na idade pediátrica, reflecte as consequências da alteração do metabolismo energético no desenvolvimento do cérebro. Demonstrou-se associação, quer a outras alterações relacionadas com DNAmit e DNAn, quer a defeitos do metabolismo do piruvato.

Também chamada encefalomielopatia necrosante subaguda, caracteriza-se por lesões bilaterais, simétricas, de espongiose, proliferação vascular e astrocitose, afectando os gânglios da base, tronco cerebral e medula.

A evolução faz-se por crises com regressão psicomotora, episódios frequentes de apneia e problemas de deglutição por alteração do tronco cerebral.

É frequente a verificação de: vómitos, recusa alimentar, paralisia oculomotora, atrofia óptica, nistagmo, movimentos involuntários (e/ou síndroma extrapiramidal), síndroma piramidal por vezes com reflexos osteotendinosos ausentes.

Menos frequentes: proteínas elevadas no LCR, diminuição da velocidade de condução nervosa, leucodistrofia.

Foram identificadas mutações em cerca de 75% dos genes nucleares com padrão de hereditariedade AR ou ligada ao X. Em cerca de 25% dos casos existem mutações do DNAmit.

A imagiologia cerebral é fundamental para documentar as alterações referidas.

Síndroma de Pearson

Surge habitualmente no primeiro ano de vida com compromisso multiorgânico variável, anemia macrocítica refractária, com ou sem neutropénia, e trombocitopénia.

Na medula óssea: vacuolização dos precursores eritróides e mielóides, hemossiderose, sideroblastos em anel. É frequente observar-se disfunção pancreática exócrina.

Trata-se de síndroma geralmente fatal durante a infância; nos sobreviventes regista-se evolução para síndroma de Kearn-Sayre.

Através da genética molecular são identificadas grandes deleções simples do DNAmit de novo.

Síndroma de Kearns-Sayre (KSS)

Esta síndroma integra um qaudro multissistémico definido pela tríade: início habitual antes dos 20 anos, oftalmoplegia externa progressiva e retinite pigmentar; por outro lado, os doentes afectados têm pelo menos um dos seguintes sinais: bloqueio cardíaco, ataxia cerebelosa ou proteínas no LCR > 100 mg/dL.

Outras manifestações incluem: demência, diabetes, hipoparatiroidismo, baixa estatura por défice da hormona de crescimento, presença de RRF (tradução de Red Rough Fibres, fibras vermelhas rasgadas ou defeituosas) no músculo.

A nível genético foram identificadas mais de 150 deleções simples diferentes no DNAmit.

Síndroma de Barth

Nesta afecção, com hereditariedade ligada ao cromossoma X, salientam-se cardiomiopatia dilatada, neutropénia crónica grave, miopatia e acidúria 3-metilglutacónica (tipo II).

Síndroma de Alpers ou Alpers-Huttenlocher

Ocorrendo habitualmente entre 1-4 anos de idade, tem as seguintes manifestações: regressão psicomotora e crises mioclónicas refractárias, microcefalia, poliodistrofia rapidamente progressiva com perda neuronal, astrocitose, espongiose e hepatopatia (insuficiência hepatocelular).

Síndroma de depleção do DNAmit

São descritas várias formas:

  • Encefalopática com hepatopatia: ocorrendo desde o período de RN até aos 2 anos de vida, com hipotonia generalizada, grave encefalopatia, acidose láctica, hipocrescimento, morte precoce e hepatopatia fatal. Pode verificar-se epilepsia mioclónica e cardiomiopatia;
  • Miopática: no RN e lactente jovem, com hipotonia generalizada, miopatia progressiva, acidose láctica, tubulopatia frequente, distrofia e atrofia musculares progressivas. A histologia do músculo pode ser normal ou evidenciar RRF (ver atrás). O EMG evidencia padrão miopático.

MELAS (Mitochondrial Encephalomyopathy, Lactic Acidosis, Stroke-like episodes)

Esta síndroma caracteriza-se pela seguinte tríade: episódios simile AVC, encefalopatia com convulsões e/ou demência e acidose láctica ou presença de RRF evidenciadas em biópsia muscular (ver atrás) geralmente antes dos 40 anos.

Outras manifestações incluem crises epilépticas focais ou generalizadas, cefaleias recorrentes (tipo enxaqueca), vómitos, hipocrescimento/ baixa estatura, surdez neurossensorial, oftalmoplegia externa progressiva, diabetes não insulinodependente, polineuropatia. Pelo exame do LCR: proteinorráquia (~50% dos casos). Pela imagiologia: calcificações nos gânglios. A mutação mais comum é a A3243G.

MERRF (Myoclonic Epilepsy Ragged Red Fibres)

Síndroma multissistémica (com nome derivado de abreviaturas em inglês: evidenciando mioclonias, por vezes o primeiro sinal de epilepsia mioclónica com presença de RRF. Por vezes, demência, surdez neurossensorial, atrofia óptica, e neuropatia sensitiva. Mutação mais típica: A8344G.

NARP (Neuropathy, Ataxia, Retinitis Pigmentosa)

Síndroma caracterizada essencialmente por neuropatia, ataxia, retinite pigmentar e fraqueza muscular proximal, em combinações variáveis. Também, atraso psicomotor, epilepsia e atraso mental.

LHON ou neuropatia óptica de Leber

Mais frequente no sexo masculino (4 a 5 vezes), o quadro clínico inclui: perda de visão aguda ou subaguda devida a atrofia óptica bilateral, neuropatia retrobulbar, tortuosidade dos vasos retinianos e edema do disco óptico, síndroma cerebelosa, piramidal, neuropatia periférica e alterações da condução cardíaca.

MNGIE (Mitochondrial Neuro-Gastro-Intestinal Encephalopathy)

Encefalopatia mio-neuro-gastrintestinal que ocorre com diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução intestinal, miopatia com RRF, oftalmoplegia externa progressiva, neuropatia periférica, leucodistrofia e caquexia.

Síndroma de Wolfram (DIDMOAD)

Esta forma clínica, muito rara (prevalência global de 1/770.000 nados vivos), é conhecida também pelo acrónimo assinalado (em inglês ) significando combinação de sinais e sintomas, respectivamente: diabetes insípida, diabetes mellitus, atrofia óptica (optical atrophy) e surdez neurossensorial (deafness).

Trata-se de patologia progressiva, década a década da vida: na idade adulta, surgimento de complicações renais e neurológicas (ataxia cerebelosa e mioclonias).

Diagnóstico

O diagnóstico definitivo das DM exge um trabalho complexo, necessitando, dum modo geral, da conjugação de parâmetros clínicos, bioquímicos, anatomopatológicos e genéticos. De acordo com os resultados respectivos, o diagnóstico poderá ser considerado: confirmado, provável, possível, ou refutado.

Tal complexidade resulta do facto de a clínica e as alterações bioquímicas não serem específicas do defeito metabólico, o que poderá levar a resultados inconclusivos. Na literatura científica é realçada uma “verdadeira odisseia” relacionada com uma exigência de raciocínio clínico laborioso conducente ao diagnóstico.

Por outro lado, se os resultados forem normais, tal não invalida o diagnóstico de DM. Por consequência, são necessárias, por vezes, provas dinâmicas que ponham em evidência a alteração do metabolismo energético subjacente, provas que implicam padronização com o objectivo de uma mais correcta interpretação.

Assim, frequentemente, o diagnóstico bioquímico/ genético só é concretizado após uma longa série de estudos bioquímicos e moleculares, em diferentes tecidos, de preferência os mais afectados clinicamente. É crucial, pois, existir um diálogo contínuo entre o clínico, o bioquímico e o geneticista para uma interpretação integrada de todos os dados recolhidos.

De salientar que devem ser evitadas as provas/ estudos desnecessários, chamando-se a atenção para a necessidade do consentimento informado e esclarecido.

Para o diagnóstico de DM torna-se necessário persistência, humildade e, não raras vezes, aguardar pela evolução do quadro clínico.

O fluxograma da Figura 3 poderá ser útil.

FIGURA 3. Doenças mitocondriais – marcha diagnóstica.

SUSPEITA DE DOENÇA MITOCONDRIAL
Atingimento de órgãos sem aparente relação com evolução clínica progressiva
Acidose metabólica no momento da descompensação aguda
Padrão simile AVC (stroke-like)
Atingimento dos gânglios basais
Alteração da substância branca

Exames bioquímicos basais (iniciais)

Análise basal de metabólitos

Doseamento de: lactato (L), piruvato (P), razão L/P, 3-hidroxibutirato (3OHB), acetoacetato (AcAc), razão 3OHB/AcAc, e glicémia e AG livres, em jejum e 1 hora após refeição, se possível ao longo de 24 horas.

Fundamental para o diagnóstico: hiperlacticidémia (L > 4 mmol/L); frequentemente a razão L/P e, também, a razão 3OHB/AcAc estão elevadas; cetonémia paradoxal após refeição: é sugestiva.

Tais relações reflectem, indirectamente, o potencial redox do citoplasma (L/P), e da mitocôndria (3OHB/AcAc).

Deve ser colhido sangue venoso ou arterial em tubo com fluoreto de sódio, não usando garrote e evitando, quanto possível, designadamente, a agitação (movimentos) e o choro. É útil recordar a correspondência: Lactato em mmol/L <> mg/dL x 0,11.

Outros metabólitos: CPK, ácido úrico, amónia, CoQ10, AA (alanina), carnitina total, livre e acilcarnitinas no plasma e urina; aminoácidos (AA) e ácidos orgânicos (AO) urinários. Se possível: tocoferol e biotinidase.

Se houver sintomas gastrintestinais (GI) predominantes, deve dosear-se a timidina no sangue para o diagnóstico de MNGIE.

Nota: se os doseamentos evidenciarem resultados normais no sangue, mas existirem sinais de compromisso do SNC, deve proceder-se aos seguintes doseamentos no LCR: glucose, proteínas, L, P, L/P, AA e folatos.

Provas dinâmicas

  • Prova de sobrecarga com glucose: 2 g glucose/kg, com doseamento no sangue (imediatamente antes e 60 minutos após a toma) de: glicémia, L, P, 3OHB e AcAc, respectivas razões; e, na urina, os AO. A prova procura revelar uma alteração do metabolismo energético mitocondrial não evidente nas condições basais, como seja um L ou alanina elevados. Trata-se duma prova ideal para crianças.
  • Prova de esforço: em crianças maiores colaborantes, adolescentes e adultos. Dosear no sangue: CPK, L, P, L/P, AA (alanina), e AO (urina), antes e após o esforço. Interpretação por vezes difícil.
Outros estudos

Cita-se a análise do consumo de O2 (polarografia) em mitocôndrias a fresco, só possível em laboratórios especializados muito experientes.

Outros exames complementares

Todos os órgãos-alvo devem ser explorados cuidadosamente.

  • Olhos: fundoscopia, acuidade visual, campimetria, motilidade ocular. A retinite pigmentar está presente em 75% dos casos.
  • Sistema nervoso: EMG e velocidade de condução nervosa; potenciais evocados auditivos e visuais; ERG; EEG (vigília e sono) com poligrafia. RM-CE convencional: possível detecção de lesões hiperintensas nos núcleos da base e tronco (Leigh); lesões vasculares agudas (MELAS), alterações difusas da substância branca central (KSS, defeito do CII); RM-CE com espectroscopia: estudo do pico de L, mielinização, perda neuronal, medição de picos de outros metabólitos como: creatina, colina, acetil-aspartato; TAC-CE para detecção de calcificações (MELAS, KSS). Com estes exames de neuroimagem podem ser observadas alterações em 80% dos doentes, dependendo, contudo, do tempo de evolução da doença.
  • Sistema cardiovascular: para detecção de cardiomiopatia, bloqueios de condução, síndroma de hiperexcitabilidade, etc..
  • ORL: audiometria (detecção de surdez neurossensorial, frequente).
  • Sistema endócrino: detecção de diabetes, hipoparatiroidismo (Pearson, KSS, MELAS). Prova com ACTH e outros estudos se existir baixa estatura.
  • Rim: função renal completa, glomerular e tubular, urina de 24 horas. Avaliação sobre eventualidade de síndroma de Fanconi ou outras alterações até ao momento não evidenciadas (Pearson, KSS, MELAS).
  • Sangue: alterações podem afectar as três séries; se suspeitar de Pearson, há que proceder a punção da medula óssea.
  • Sistema digestivo: frequentes os problemas alimentares e RGE, particularmente nos mais jovens; valorizar vómitos frequentes, diarreia crónica, hipocrescimento, disfunção pancreática exócrina (Pearson), episódios de pseudobstrução intestinal; valorizar os sintomas do foro hepático como hepatomegália, insuficiência hepática induzida pelo valproato, disfunção hepática aguda (depleção do DNAmit).
  • Sistema muscular: poderá ser necessário estudar o metabolismo energético da mitocôndria com RM e espectroscopia com 31P, e determinar a relação fosfocreatina/ fósforo inorgânico no estado de repouso, exercício e na recuperação. Nos doentes, a relação é baixa no repouso, desce mais ainda no exercício e, na recuperação, verifica-se subida lenta, sendo que a técnica é difícil de aplicar em crianças.
  • Sistema cognitivo: uma avaliação cognitiva cuidadosa é, obviamente, importante.

Nota importante: deverá proceder-se a registos audiovisuais: fotos e videoimagens, para estudo evolutivo.

Exame histológico

Os estudos histológicos são muito importantes para o diagnóstico de DM. O achado ultra-estrutural de fibras vermelhas rasgadas (RRF) (Figura 4) corresponde a fibras musculares com acumulação subsarcolémica de mitocôndrias alteradas quanto ao seu número, disposição, forma e estrutura interna. Tal achado foi considerado como marcador inequívoco de DM, mas actualmente não é aceite, pois poderá ser observado noutras doenças não mitocondriais como a distrofia muscular, polimiosite, dermatomiosite, ou até em pessoas idosas.

Por outro lado, pode verificar-se DM sem padrão RRF, designadamente nas formas LHON e síndroma de Leigh, em relação com mutações no gene da ATPase 6.

Nos estudos histológicos usam-se actualmente diferentes técnicas: morfológicas (como o teste tricrómio Gomorri modificado); histoquímicas (succinato desidrogenase, citocromo c-oxidase, ou ambas); de fluorescência (catiões lipofílicos fluorescentes); imuno-histoquímicas (anticorpos), ou de hibridação in situ (sondas específicas). No músculo dos doentes é frequente a observação de depósitos de gordura e de glicogénio.

As alterações mitocondriais são mais difíceis de interpretar noutros tecidos, como hepatócitos, células tubulares renais, miocárdio, músculos extraoculares, etc..

FIGURA 4. Aspecto ultra-estrutural RRF (fibras musculares rasgadas, defeituosas ou Ragged Red Fibers). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exame bioquímico ulterior

Após a realização dos estudos bioquímicos iniciais, e perante a suspeita de DM, deve proceder-se ao doseamento da actividade dos complexos da CR, o qual pode ser efectuado em diferentes tecidos:

  • Cultura de fibroblastos através de biópsia de pele; ou
  • Biópsia do músculo.

As biópsias devem ser executadas nas condições mais adequadas, cumprindo regras essenciais:

    • No caso da biópsia de pele, a amostra deve ser colocada em meio especial (ex. Hans), conservada e enviada à temperatura ambiente até ao limite de 48 horas, para o laboratório especializado;
    • No caso da biópsia do músculo e para estudos a fresco (métodos polarográficos), os mesmos deverão ser feitos obrigatoriamente no mesmo dia da biópsia, o que implica a realização desta no próprio centro especializado. Se tal não acontecer, deve dividir-se a amostra de músculo em 2 porções, conservadas a -80º C:
      → uma para estudo da actividade enzimática e DNA; e
      → outra para estudos histológicos. Chama-se a atenção para a importância do doseamento de CoQ10 no músculo, porquanto a doença por defeito de CoQ10 é tratável.

 

Em suma, o uso de amostras congeladas é a prática mais comum, ainda que não a ideal. É aconselhável medir a actividade enzimática individual dos complexos da CR, mas também a actividade do I+III e II+III.

Deve padronizar-se a actividade de cada complexo pela actividade da citrato-sintetase, para garantia da validade e estado de conservação da amostra.

Nota importante: uma actividade enzimática normal dos complexos da CR não afasta o diagnóstico de DM. Com efeito, poderá acontecer que o tecido estudado não expresse a doença ou, no caso de a expressar, que exista um mosaicismo celular.

Exame genético

O exame genético é, por vezes, decisivo para diagnóstico de DM.

Assim, numa primeira fase, deve proceder-se do seguinte modo:

  • Investigar as mutações do DNAmit e DNAn (estas últimas ainda pouco conhecidas);
  • Escolher o(s) tecido(s) mais afectado(s) clinicamente a que possivelmente corresponderá uma proporção maior de DNA que sofreu mutação;
  • Estudar: mutações pontuais, deleções, duplicações e deplecção do DNAmit;
  • Técnicas: colheita de sangue: 5-10 mL em tubo EDTA; colheita de tecidos: fibroblastos, músculo, fígado, outros.

É útil fazer o estudo genético do(a) filho(a) e da mãe, se houver suspeita de mutações do DNAmit e hereditariedade materna; ou no doente e em ambos os progenitores, se se suspeitar de mutações nucleares e hereditariedade mendeliana.

Se houver suspeita de determinada síndroma clínica em concreto, como por exemplo: MERRF, MELAS, NARP, Leigh, etc., deve fazer-se a detecção prévia das alterações genéticas conhecidas do DNAmit; se o estudo mutacional for negativo, deve proceder-se a biópsia muscular para estudos bioquímicos, histológicos e moleculares.

Se a situação configurar uma associação de sintomas e sinais não conhecida, mas evocadora de uma DM, deve proceder-se a biópsia muscular e a outros estudos neste tecido.

Tratamento

Específico

Pela ausência de grandes séries de doentes, não há estudos conclusivos quanto ao efeito dos múltiplos tratamentos experimentados. A terapêutica farmacológica específica revela apenas alguma melhoria em casos raros, geralmente sem efeito nas formas precoces e multissistémicas. Como excepção devem ser citados os seguintes fármacos:

  • A ubiquinona-10 ou CoQ10, potente antioxidante, eficaz no defeito primário do CoQ10;
  • A idebenona: similar à ubiquinona mas muito mais solúvel; pode atravessar a barreira hemato-encefálica, e pode ser útil na doença de Friedrich;
  • Outros (sendo referida entre parênteses a entidade clínica para a qual é dirigido): vitamina C (def. CIII); vitamina K3, menadiona (def. CIV provavelmente); vitamina B2, riboflavina (def. CI); vitamina B1, tiamina (útil apenas no def. PDH); citocromo c (KSS provavelmente); mono-hidrato de creatina (crises agudas do MELAS); histidinato de cobre (a tentar nas formas graves de encefalomiocardiopatia do lactente com defeito de COX – mutação SCO2); carnitina (útil nas deficiências secundárias); dicloroacetato (útil nas acidoses lácticas graves no defeito PDH, mas por períodos curtos); bicarbonato (melhoria da hiperventilação); ácido fólico (útil no KSS e anomalias da mielinização); ácido folínico (por vezes alguma melhoria em situações de alteração da substância branca cerebral); corticóides (por vezes útil nas crises do MELAS e na insuficiência suprarrenal no MELAS e KSS); L-arginina, precursora do óxido nítrico (vasodilatador), com acção inconstante nas crises de AVC no MELAS.

Nota importante: não devem ser usados fármacos que inibam a CR e/ou o metabolismo da mitocôndria: valproato de sódio, fenobarbital, hidantoína, tetraciclinas, ciprofloxicina, aminoglicosídeos (especialmente nos doentes com a mutação A1555G, que têm surdez), anestésicos vários, analgésicos (como o fentanil).


Os transplantes hepático, renal ou cardíaco deverão ser cuidadosamente ponderados em casos muito seleccionados, dadas as características evolutivas das DM.

Medidas gerais

Reforça-se o papel importante de certas medidas de suporte, a saber:

  • Evicção/correcção de descompensações metabólicas agudas, tendo em atenção a correcção sintomática em função de sinais de compromisso de diferentes órgãos;
  • Suprimento energético adequado, não excessivo: evicção do jejum prolongado, promovendo refeições com intervalos regulares;
  • Dieta cetogénica somente com indicação no def. PDH, e no Leigh, com resultados contraditórios;
  • Evicção de situações que exijam elevada necessidade energética: administração de antipiréticos em casos de febre (não ácido acetilsalicílico, preferindo ibuprofeno), evicção de ambientes muito quentes, abstenção de álcool;
  • Reidratação IV em situações de desidratação;
  • Diálise se insuficiência renal ou nos casos de MNGIE (se timidina muito elevada no sangue);
  • Fomento do exercício físico aeróbico controlado, sempre que possível para melhorar a tolerância à fadiga;
  • Correcção da acidose: bicarbonato; nos casos de acidose láctica grave, poderão estar indicadas diálise peritoneal ou hemodiálise;
  • Apoio psicológico e/ou psiquiátrico aos doentes e familiares, quando necessário (aspecto fundamental, a não descurar).

Nota importante:

    1. Apesar de não existir tratamento curativo para as DM, ante a mínima suspeita deve proceder-se à administração de cofactores para melhorar a função da CR. No caso específico de MELAS, em todos os doentes deve administrar-se suplemento com arginina e citrulina durante os surtos de “AVC” e na fase de manutenção.
    2. Abundam controvérsias acerca dos resultados e benefícios de muitas das terapêuticas citadas.

2. DOENÇAS POR DEFEITOS DA OXIDAÇÃO MITOCONDRIAL DOS ÁCIDOS GORDOS E DA CETOGÉNESE

Etiopatogénese e nosologia

A oxidação dos ácidos gordos (AG) na mitocôndria é crucial para a produção de energia. Nos estádios tardios de jejum, os AG fornecem ~80% das necessidades totais de energia pela síntese hepática de corpos cetónicos e por oxidação directa noutros tecidos.

Os ácidos gordos de cadeia longa (AGCL: C16-C20) constituem a fonte energética essencial para o músculo esquelético durante o exercício prolongado e a fonte preferida pelo miocárdio.

A oxidação de AG integra quatro componentes:

  1. Ciclo da carnitina;
  2. Ciclo da beta-oxidação;
  3. Via de transferência de electrões; e
  4. Síntese dos corpos cetónicos (ver adiante).

A via de transferência de electrões transfere uma parcela da energia libertada na beta-oxidação para a cadeia respiratória, daí resultando síntese de ATP.

No fígado, parte importante da acetil-CoA derivada do ciclo da beta-oxidação é utilizada para a síntese de corpos cetónicos: 3-hidroxibutirato e acetoacetato. Estes corpos cetónicos são então exportados para os tecidos para a oxidação final (principalmente para o cérebro), poupando glicose.

Noutros tecidos, como o músculo, a acetil-CoA entra no ciclo de Krebs para a produção de ATP.

Os AG livres, libertados com o concurso das lipases, dos triglicéridos armazenados no tecido adiposo, circulam ligados à albumina. A sua oxidação nos tecidos periféricos poupa o consumo de glucose, e a necessidade da conversão das proteínas do corpo em glucose.

Por sua vez, o fígado, utilizando AG, fornece energia para a gluconeogénese e para a síntese de ureia.

As doenças principais que decorrem de anomalias ao nível dos quatro componentes atrás referidos ( 1 -, 2 -, 3 – , 4 – ) podem ser assim sistematizadas (ver caixa):

    • defeito do transportador da carnitina (CTD) – deficiência primária de carnitina e deficiência de captação de carnitina;
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 1 (CPT1);
    • deficiência de carnitina/acilcarnitina-translocase (CACT);
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 2 (CPT2);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia muito longa (VLCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia média (MCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia curta (SCAD);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia longa (LCHAD);
    • deficiência de proteína trifuncional mitocondrial (MTP);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia curta (SCHAD);
    • deficiência de 3-cetoacil-CoA tiolase da cadeia média (MCKT);
    • deficiência de desidrogenases de múltiplas acil-CoA (acidúria glutática tipo 2) ou de ETF/ETF-DH (flavoproteínas de transferência de electrões);
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase conduzindo a defeito da cetogénese;
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) liase conduzindo a defeito da cetogénese.


Dois aspectos com implicações clínicas importantes a reter são:

  • A produção insuficiente de corpos cetónicos, associada à inibição da gliconeogénese pelos baixos níveis de acetil-CoA durante os estados catabólicos (por ex. jejum prolongado, infecção, procedimento cirúrgico, etc.), poderá causar coma hipoglicémico hipocetótico típico, acompanhado por sinais de insuficiência hepática e hiperamoniémia;
  • A acumulação tóxica de acilcarnitinas de cadeia longa, especialmente nas perturbações de oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa, poderá causar acidose láctica grave no RN e lactente, cardiomiopatia e hepatopatia.

Como consequência do que foi referido, os defeitos da ß-oxidação dos AG são actualmente considerados um grupo major de doenças neurometabólicas. As respectivas manifestações clínicas levantam problemas de diagnóstico diferencial com defeitos da CR.

Manifestações clínicas

As perturbações da oxidação de ácidos gordos e da cetogénese, evidenciando grande variabilidade de manifestações, apresentam-se na maioria dos casos, em 3 formas principais: hepáticas, cardíacas, e musculares.

Em geral, as manifestações ocorrem no lactente jovem com episódios potencialmente fatais de coma com hipoglicémia hipocetótica induzidos por jejum ou doença febril, por vezes em associação a falência hepática e hiperamoniémia.

O compromisso hepático é o mais comum e revelador (qualquer que seja o defeito): hepatomegália, esteatose, aumento do valor das transaminases, síndroma de Reye, colestase e falência hepática. A esteatose é um indicador seguro, mas não específico, que deverá conduzir à suspeita e estudo destas patologias.

Quanto ao compromisso extra-hepático, há a referir, no RN e lactente: sinais hemodimâmicos/ cardíacos, designadamente cardiomiopatia (CM), taquicardia ventricular e arritmia hipoglicémia hipocetótica.

Em crianças mais velhas é comum observar-se: fraqueza e dor musculares, rabdomiólise recorrente induzida pelo exercício ou CM aguda ou crónica.

Na LCHAD pode observar-se retinopatia ou neuropatia periférica e síndroma HELLP materna.

Os defeitos (def.) da cetogénese: def. de HMG-CoA sintetase e def. de HNG-CoA liase podem apresentar-se, precoce ou tardiamente, no contexto de infecção ou de estresse metabólico.

A descompensação pode levar a encefalopatia, vómitos, alterações da consciência, em associação frequente a hepatomegália, hipoglicémia hipocetótica. Na deficiência de liase, em que é possível a complicação de pancreatite, alguns pacientes podem estar assintomáticos durante anos ou evoluir para sequelas neurológicas.

A MCAD é, no geral, o defeito mais frequente, seguindo-se LCHAD, VLCAD e os defeitos do ciclo da carnitina (CPT1, CPT2, CACT). Em Portugal a MCAD é frequente na etnia cigana.

Salienta-se que a deficiência de CACT é frequentemente sintomática nas horas a seguir ao parto.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em:

Exames laboratoriais

  • Perfil das acilcarnitinas no plasma ou urina por espectrofotometria de massa em tandem;
  • Doseamento da carnitina total no plasma, sendo que todas estas doenças (excepto a CPT1) têm concentrações de carnitina baixa ou muito baixa;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina, a qual poderá evidenciar acidúria dicarboxílica específica durante o jejum ou doença;
  • Acilglicinas urinárias;
  • Doseamento de ácidos gordos plasmáticos.

Também relevantes para o diagnóstico: hiperamoniémia moderada (mais comum no RN), acidose metabólica moderada, hiperlactacidémia (que diminui com a idade). Os valores de ALT, AST e GGT são raramente superiores 2-3 vezes em relação aos valores de referência.

Por vezes são necessárias outras análises, in vitro ou in vivo, para estudo da via de oxidação dos ácidos gordos.

Estudo histológico hepático

O estudo histológico hepático na fase aguda pode evidenciar sinais de esteatose hepática micro ou macrovesicular que, nos intervalos das crises, podem normalizar.

Pode existir fibrose hepática (VLCAD) e alteração cirrótica (LCHAD).

Nas formas musculares poderá verificar-se quadro de miopatia lipóide/ acumulação de gordura.

Avaliação da actividade enzimática

A avaliação da actividade enzimática é possível nos fibroblastos e linfoblastos.

Diagnóstico molecular

O diagnóstico molecular pode ser de utilidade nas seguintes doenças, para pesquisa de mutações (designadas entre parênteses): MCAD (A985G), LCHAD (G1528C) e CPT2 na sua forma miopática (S113L).

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico pré-natal é possível em todas estas doenças usando amniócitos ou vilosidades coriónicas, excepto na deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase.

Há que admitir a possibilidade de defeito de beta-oxidação de AG perante hipoglicémia, miopatia ou cardiomiopatia não explicadas.

Tratamento

Fase aguda

  • Deve promover-se elevado suprimento de glucose IV (10 mg/kg/minuto ou superior) de imediato, estando proscritos lípidos por via IV;
  • Manter a glicémia > 100 mg/dL (> 5,5 mmol/L), com o objectivo de estimular a secreção de insulina, suprimir a oxidação de AG no fígado e músculo, e bloquear a lipólise;
  • Riboflavina:100 mg/dia (alguns doentes com SCAD e ETF/ETF-DH respondem bem):

A recuperação, não imediata, pode demorar 1-2 dias.

Fase de manutenção

  • Deve evitar-se o jejum prolongado na tentativa de evitar a utilização de AG como fonte energética;
  • Nos casos mais graves, especialmente nos doentes com fraqueza muscular e/ou CM, deve evitar-se o jejum, procedendo-se à alimentação intragástrica contínua nocturna, dar-se amido cru como meio libertador lento de glucose, e restringir-se o suprimento de gorduras;
  • TCM/ triglicéridos de cadeia média: nos defeitos de beta-oxidação da AG de cadeia longa e na LCHAD são de grande utilidade; de utilidade discutível nos SCAD, SCHAD e defeitos da cetogénese e; contraindicados nos casos de deficiência MCAD; no defeito VLCAD podem ter utilidade episodicamente antes do exercício físico;
  • Triglicérido C7 (tri-heptanoína) em formas seleccionadas, por ex. VLCAD, suprindo 30-35% do VCT; melhoria sobretudo em situações de hipoglicémia, rabdomiólise, fraqueza muscular e CM;
  • Carnitina: a sua utilização, se os respectivos níveis estiverem diminuídos, é crucial na forma CTD (defeito do transportador da carnitina); deve ser cautelosa ou evitada noutras formas;
  • Fórmulas especiais com redução da gordura: Monopen, Basic-f, úteis nos VLCAD e CPT2;
  • Ácidos gordos essenciais/ AGE, designadamente óleos de noz, de soja, de trigo, incorporando ácidos linoleico (ómega-6), linolénico (ómega-3) nos casos de restrição de AGCL muito severa;
  • Ácido docosa-hexanóico (DHA) na LCHAD;
  • Bezafibratos – a investigação em curso configura boas expectativas.

Nota final – os níveis séricos de vitaminas lipossolúveis devem ser vigiados.

Evolução

Com o rastreio neonatal alargado e o diagnóstico precoce das situações descritas, de acordo com estudos de grandes séries, a mortalidade, anteriormente rondando cerca de 48%, baixou significativamente. Como exemplos – no MCAD, anteriormente 20%, baixou para 0-4%; LCHAD e VLCAD, de 60% para 0%.

3. DOENÇAS POR DEFEITOS DA CETÓLISE

Etiopatogénese e nosologia

Os corpos cetónicos (cc): acetoacetato e 3-hidroxibutirato são metabólitos derivados dos ácidos gordos/ AG e dos aminoácidos/ AA cetogénicos, como a leucina.

A situação de cetose esporádica surge como resposta ao jejum, estado catabólico ou dieta cetogénica. A cetose permanente, rara, poderá traduzir defeito da cetólise.

A cetose, se associada a outras anomalias metabólicas, poderá traduzir: alterações do metabolismo mitocondrial, tais como acidúrias orgânicas e perturbações da cadeia respiratória; e, também, diabetes mellitus. A cetonúria no RN constitui, como regra, doença metabólica primária.

Após jejum prolongado os cc podem oferecer cerca de 2/3 da energia necessária para o cérebro.

Nas doenças por defeitos da cetólise verifica-se falência do processo de utilização dos corpos cetónicos sintetizados no fígado, originando cetoacidose grave e hipoglicémia hipercetótica.

Na prática clínica identificam-se duas entidades relacionadas com defeitos da cetólise:

  • Deficiência de succinil-CoA 3-oxoácido CoA-transferase (SCOT);
  • Deficiência de 3-oxotiolase ou beta-cetotiolase (acetoacetil-CoA tiolase mitocondrial), também envolvida no catabolismo da isoleucina.

Trata-se de doenças passíveis de bom prognóstico clínico se o diagnóstico e tratamento forem precoces e correctos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As perturbações da cetólise traduzem-se fundamentalmente por episódios recorrentes de cetoacidose grave potencialmente fatais, taquipneia, hipotonia e coma (na SCOT) e também por episódios de náuseas e vómitos, com sinais neurológicos de expressão variável (na deficiência de 3-oxotiolase), raramente com apresentação neonatal.

Nalguns doentes poderá desenvolver-se insuficiência mental, ataxia ou distonia.

→ Na SCOT a função hepática não está afectada e não existe hepatomegália. Verifica-se elevação pemanente de cc – acetoacetato e 3-hidroxibutirato – no soro e urina.
Deve fazer-se o diagnóstico diferencial, designadamente com a hipoglicémia cetótica idiopática e a glicogenose tipo 0.
O diagnóstico deve ser confirmado por estudo enzimático em linfócitos, trombócitos e fibroblastos (essencial) em cultura.

→ Na deficiência de 3-oxotiolase para além da elevação acetonas (D-3-hidroxibutirato e acetoacetato) no soro e urina, verifica-se hipo ou hiperglicémia. Na urina salienta-se a elevação de metabólitos da isoleucina como a 2-metil-3 hidroxibutirato, 2-metilacetoacetato e tiglilglicina.
A elevada concentração de acetoacetato no sangue e urina pode originar resultados falsos positivos no teste dos salicilatos.

Através da RM poderão ser evidenciadas anomalias dos gânglios basais.

Tratamento

As bases fundamentais da actuação têm em conta que os doentes com defeitos da cetólise podem sofrer descompensação rápida já na primeira infância, o que poderá dar origem a sequelas neurológicas irreversíveis.

A actuação compreende os seguintes passos:

  • Devem ser evitados períodos de jejum, propiciando elevado suprimento em fluidos com elevado teor de hidratos de carbono desde a verificação do mínimo sinal de doença (designadamente intercorrências acompanhadas de estresse metabólico como infecções) ou em caso de intervenções cirúrgicas;
  • Hospitalização caso se comprove cetonúria; em tal circunstância deve ser aplicada perfusão IV de glucose para tentar interromper o estado catabólico (~10 mg/kg/minuto <> 60 kcal/kg/dia) e incorporando bicarbonato se a acidose for grave (pH<7,1);
  • Na fase aguda da descompensação deve ser evitado o suprimento de proteínas e gorduras;
  • Monitorização rigorosa do balanço hidroelectrolítico, prevenindo e/ou combatendo a desidratação, tendo em conta que a hipernatrémia poderá ser fatal;
  • Após melhoria está indicado suprimento de baixo teor em gorduras (não ultrapassando 1 g/kg/dia de lípidos IV);
  • Poderá estar indicado suplemento em carnitina se os respectivos níveis séricos forem baixos.

4. DOENÇAS POR DEFEITOS DA BIOSSÍNTESE e TRANSPORTE da CREATINA

Etiopatogénese e nosologia

O sistema creatina/ creatina-fosfato tem papel importante de reserva energética no cérebro e músculo.

A creatina (Cr) é sintetizada num processo que envolve duas enzimas: arginina-glicina amidinotransferase (AGAT) e guanidinoacetato metiltransferase (GAMT).

A S-adenosilmetionina (SAM) serve como dador do grupo metilo.

A creatina é sintetizada primariamente no rim e pâncreas (ambos ricos em AGAT), e no fígado (rico em GAMT). A creatina e a creatina-fosfato são convertidas, não enzimaticamente, em creatinina (Crn), que é excretada especialmente na urina.

Para que a Cr seja captada ao nível dos tecidos cerebral e muscular torna-se necessário um transportador da Cr (CRTR).

Nesta perspectiva, são identificadas três entidades relacionadas com defeitos da biossíntese ou do transporte de Cr, levando a concentrações baixas desta no SNC:

  • Deficiência de GAMT;
  • Deficiência de AGAT;
  • Deficiência de CRTR (ou def. SLC6A8) ligada ao cromossoma X.

A GAMT é a forma mais grave, a CRTR a forma mais comum, sendo a sua prevalência alta entre os doentes do sexo masculino com insuficiência mental ligada ao sexo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

No que respeita a manifestações clínicas salienta-se que nas três afecções referidas, verifica-se atraso no neurodesenvolvimento, com especial relevância na área da fala (grave), epilepsia por vezes refractária (verificando-se anomalias no EEG), sinais extrapiramidais (na GAMT), autismo e alterações do comportamento.

Através da RM com espectrometria é possível comprovar-se as concentrações baixas/ muito baixas de Cr no cérebro (o órgão mais afectado) nas três entidades anteriormente referidas constituem um dado fundamental para o diagnóstico. O cérebro é, aliás, o órgão mais afectado.

O diagnóstico bioquímico faz-se pelo doseamento simultâneo de: creatina, creatinina, ácido guanidinoacético (AGA) no plasma, e pela razão Cr/Crn na urina. Para os resultados importa consultar a caixa seguinte.

A concentração muito elevada (e tóxica) do AGA, é marcador da GAMT. A ratio Cr/Crn elevada na urina é marcador de CRTR, especialmente no sexo masculino. Assim:

AGAT → AGA baixo (urina, plasma e LCR); Cr no plasma no limite do normal; Crn moderadamente baixa na urina.
GAMT → AGA muito elevado (tecidos e fluidos) – achado quase patognomónico -, e Cr baixa.
CRTR → AGA dentro do normal.

      • No sexo masculino: Cr elevada na urina; Crn baixa na urina; ratio Cr/Crn elevada na urina.
      • No sexo feminino: ratio Cr/Crn no limite do normal, ou elevada na urina.

A confirmação diagnóstica faz-se através de estudos enzimáticos, moleculares e funcionais de captação da Cr nas células em cultura, para o CRTR.

O estudo molecular, disponível para as três entidades, deve ser feito em todos os doentes.

Os doentes portugueses com GAMT apresentam a mutação c.59G>C (p.W20S), geralmente em homozigotia. A CRTR é diagnosticada em crianças e adultos; as mulheres heterozigotas, em 50% dos casos, apresentam dificuldades de aprendizagem e alterações do comportamento.

O tratamento inclui essencialmente a administração oral de mono-hidrato de creatina (300-400 mg/kg/dia), com suplemento de ornitina, e redução de arginina na GAMT, com melhoria de prognóstico e evolução.

Na AGAT a administração de mono-hidrato de creatina pode levar a melhoria dramática do desenvolvimento, se iniciada na fase pré-sintomas.

Aliás, se a terapia for instituída precocemente nos assintomáticos com AGAT e GAMT, poderá evitar-se o surgimento das manifestações clínicas.

A Cr tem efeitos neuroprotectores (in vivo e in vitro).

Recentemente foram propostas novas terapias:

  1. Suplemento de S-adenosilmetionina, a qual atravessa a barreira hemato-encefálica;
  2. Suplementos de ácido fólico, vitaminas B6 e B12 a fim de se promover o incremento da síntese de metionina e a redução da S-adenosil-homocisteína (que inibe a GAMT);
  3. Análogos lipofílicos de Cr, que atravessam a barreira hematoencefálica, são independentes do CRTR, e evidenciam efeitos promissores na experimentação animal.

Quanto ao defeito de CRTR (SLC6A8), a administração isolada do mono-hidrato de Cr não é eficaz. Foi proposto juntar suplementos de arginina e glicina (precursores da Cr), com resultados incertos ou não mantidos: em certos casos tem-se assistido a melhoria da epilepsia ou dos sintomas musculares, enquanto noutros se tem verificado agravamento do quadro clínico com a introdução da glicina.

No geral, salienta-se que os doentes com “pico” residual de Cr no cérebro beneficiam com o suplemento oral de Cr, mais eficazmente se iniciado em fase precoce.

Como conclusão prática pode afirmar-se:

  1. Perante uma situação de insuficiência mental ligada ao cromossoma X deverá admitir-se: síndroma do X-frágil; e defeito de CRTR.
  2. O rastreio destas doenças da creatina está indicado em doentes de ambos os sexos, com insuficiência mental não específica associada a: – comportamento autista ou outros sintomas psiquiátricos e; – convulsões ou hipotonia.

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