1. HIPERTERMIA
Definições e importância do problema
A temperatura corporal compreende dois componentes: a chamada temperatura central (ou do interior do corpo), e periférica (ou do exterior, à superfície do mesmo). A temperatura central pode ser representada pela temperatura rectal, esofágica e oral; por sua vez, a temperatura periférica pode ser exemplificada pela temperatura cutânea, em geral determinada na região axilar. Cabe salientar, a propósito, que a temperatura central se relaciona com o risco de lesão dos vários órgãos.
Os termorreceptores em relação com a temperatura periférica residem na pele, enquanto os receptores para a temperatura central estão localizados, não só na pele, como no córtex cerebral, hipotálamo, tronco cerebral, medula espinhal e estruturas abdominais profundas.
Com as variações de temperatura, estes receptores transmitem impulsos aferentes através do feixe lateral espinotalâmico para o termóstato central localizado no hipotálamo anterior/pré-óptico que, com papel regulador, contribui para que a temperatura corporal se mantenha dentro dos níveis de normalidade (36-37,5ºC).
O termo genérico hipertermia refere-se à situação em que se verifica elevação da temperatura corporal para além dos limites de regulação do hipotálamo, quer por perda, quer por ganho excessivo de calor. O termo febre, com uma acepção mais ampla, designa especificamente elevação da temperatura central > 38,5ºC associada a determinados sinais e sintomas como taquicardia, taquipneia, delírio, letargia, alterações electrocardiográficas, etc.. Muitas vezes estes termos são empregues impropriamente como sinónimos.
O termo golpe de calor, situação potencialmente fatal, caracteriza-se pela elevação da temperatura central > 40ºC, associada a sintomas e sinais com maior repercussão sobre o estado geral que na situação considerada febre.
Existem múltiplas implicações fisiopatológicas da elevação excessiva da temperatura, de grau diverso em função da susceptibilidade individual, de base genética. A este propósito salientam-se as repercussões neurológicas, sobretudo ao nível do cerebelo, órgão particularmente sensível a altas temperaturas; outros problemas relacionam-se com a possibilidade de lesões no tubo digestivo e neurológicas, como hemorragia intracraniana, enfarte cerebral, edema cerebral, hipóxia-isquémia, etc..
Etiopatogénese
Para a melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes de hipertermia, importa recordar os mecanismos fundamentais do balanço térmico no organismo.
O calor é produzido no organismo como resultado final do metabolismo celular e também adquirido a partir do ambiente. As reacções metabólicas são exotérmicas, contribuindo para 50-60 kcal/m2/hora. Durante um esforço físico intenso a produção de calor pode atingir valor 10-20 vezes superior ao do correspondente à situação basal.
Os mecanismos de transferência de calor são quatro:
1 – Convecção: o calor é transferido através do ar e do vapor de água circundante ao corpo (dependendo do movimento do ar na pele e velocidade do vento e explica o efeito do uso de roupas largas e folgadas em climas quentes para manter algum conforto);
2 – Radiação: o calor é transferido por ondas electromagnéticas; trata-se da principal fonte de ganho de calor em ambientes quentes – até 300 Kcal/hora podem ser ganhas num dia de Verão;
3 – Evaporação: a conversão de um líquido para um gás resulta em transferência de calor (por exemplo 1 litro de suor resulta em uma perda de 580 Kcal de calor);
4 – Condução: o contacto físico transfere calor de um objecto mais quente para um mais frio (a água é 25 vezes mais eficiente que o ar na condução de calor).
A maior parcela da perda verifica-se através da pele, designadamente por evaporação induzida pela perspiração. De particularizar que através dos vasos à superfície da pele é perdido calor do sangue circulante a determinada temperatura por condução e convecção, sendo que o sistema simpático regula o débito sanguíneo ao nível da pele através do efeito sobre fibras vasodilatadoras ou vasoconstritoras.
As síndromas com hipertermia podem ter na sua base factores ambientais por aumento do calor (ondas de calor, maior humidade) ou diminuição da dissipação do calor (excesso de roupa, maior humidade, anidrose), aumento da produção de calor (exercício físico, tirotoxicose, hipertermia maligna, síndroma maligna neuroléptica, feocromocitoma, delirium tremens, hemorragia hipotalâmica, ingestão tóxica – simpaticomiméticos, anticolinérgicos, ecstasy) e causas genéticas ou desconhecidas. De salientar que nos casos de hipertermia em que se identifica o exercício físico como factor de risco, poderá haver concomitantemente predisposição genética.
A seguir à elevação da temperatura corporal (com maior impacte nas situações de golpe de calor) surge elevação do nível sérico de TNF-alfa, IL1, IL6 e de endotoxinas susceptíveis de originarem lesão tecidual. Do balanço entre os mediadores pró-inflamatórios (tais como interferão-gama e IL1-beta) e mediadores anti-inflamatórios (tais como TNF-alfa e IL10) resultará o grau de lesão. A vasodilatação que resulta dos mediadores desvia o sangue da circulação esplâncnica para a circulação à superfície, do que resulta, designadamente hipóxia-isquémia gastrintestinal. A activação da cascata da coagulação como resultado da lesão tecidual pela temperatura excessiva traduz-se pela presença do complexo trombina-antitrombina e por diminuição do nível sérico das proteínas C, S e da antitrombina III.
Formas clínicas
Golpe de calor
Nos casos de exposição a calor ambiente excessivo em diversos cenários pode verificar-se delírio, convulsões, letargia ou coma; neste contexto, com temperatura central > 40,6ºC deve suspeitar-se de golpe de calor.
Em relação com os eventos fisiopatotógicos atrás descritos, verifica-se o seguinte quadro clínico-biológico-imagiológico: hipotensão e hipovolémia, IRA, alterações electrocardiográficas e ecocardiográficas (disfunção miocárdica, disritmias, alterações da condução, alterações do intervalo QT e do segmento ST, etc.). O prolongamento do intervalo QT poderá ser devido a diminuição do cálcio, magnésio e/ou potássio séricos (hipocaliémia- inicialmente- como consequência da alcalose respiratória), hiponatrémia (perdas de Na por sudorese acentuada), hipoglicémia, hiperuricémia, rabdomiólise (valor elevado de CPK e mioglobinúria), acidose láctica (compensada com alcalose respiratória por hiperventilação) e CID são achados frequentes.
A rabdomiólise, frequente no contexto de golpe de calor, leva a hiperpotassémia com acção cardiotóxica, mioglobinúria, necrose diafragmática e insuficiência respiratória grave. Nos casos de rabdomiólise, e nas 24-48 horas subsequentes ao episódio agudo do golpe de calor, pode surgir quadro de choque por sequestração de volume considerável de fluido intramuscular (síndroma compartimental), o que agrava a necrose muscular por compressão.
O quadro de SDR (tipo adulto) com sinais de hipoventilação globar (pulmão branco) pode estar relacionado com lesão alveolar pulmonar com disfunção ou destruição do surfactante.
As complicações do golpe de calor ao nível do SNC poderão obrigar a TAC ou RM para esclarecimento de eventuais lesões.
O diagnóstico diferencial faz-se com afecções do SNC (por ex. meningoencefalite), doença de Graves, acção de drogas como neurolépticos e anticolinérgicos, síndromas de abstinência de drogas (narcóticos, benzodiazepinas), cetoacidose diabética, hipertermia maligna (esta última abordada adiante mais pormenorizadamente).
O tratamento (emergente) em UCIP implica a aplicação dum conjunto de medidas assim sintetizadas (Quadro 1):
- Ressuscitação cardiorrespiratória em obediência aos princípios explanados no Capítulo próprio, admitindo-se a eventualidade de ulterior ventilação mecânica com PEEP e oxigenoterapia para correcção da hipoxémia, não ultrapassando FiO2 de 50%; há que ter atenção ao choque pelas 24-48 horas, após o episódio inicial nos casos de rabdomiólise;
- Aplicação de vários métodos de arrefecimento com o objectivo de obter temperatura central < 39ºC;
- Fluidoterapia/reidratação em caso de rabdomiólise, com o objectivo de promover diurese > 3 mL/kg/hora e prevenir a IRA;
- Correcção das alterações electrolíticas, tais como hiperpotassémia, hipocalcémia, etc.;
- Correcção da hiperfosfatémia com quelantes do fósforo e diálise;
- Alcalinização da urina acrescentando bicarbonato de sódio aos fluidos IV (para obter pH urinário > 6,5 a fim de prevenir a precipitação da mioglobina no túbulo renal, necrose tubular e IRA);
- Administração de manitol IV (0,25 g/kg) uma vez obtido o estado de hidratação, com o objectivo de promover diurese osmótica;
- Fasciotomia nos casos de rabdomiólise com síndroma compartimental.
QUADRO 1 – Métodos de antipirexia no golpe de calor
Gerais
|
Síndroma de hipertermia maligna clássica
A chamada hipertermia maligna (HM) clássica é definida como uma síndroma hereditária autossómica dominante, com expressividade e penetrância variáveis (em relação com gene anormal localizado em locus 19q13.1, conhecendo-se mais de 15 mutações); pode estar associada a determinadas miopatias, designadamente a conhecida por central core.
A sua incidência varia entre 1/15.000 anestesias efectuadas em crianças, e cerca de 1/50.000 em adultos.
A etiopatogénese relaciona-se com disfunção do músculo esquelético (estriado), traduzida por incapacidade de a membrana do retículo sarcoplásmico reter o cálcio, aumentando a sua libertação para a estrutura muscular envolvente, o que leva a contracção muscular permanente e consequente estado hipermetabólico. Este estado de hipermetabolismo conduz a um aumento do metabolismo anaeróbio por estimulação do catabolismo do glicogénio, com acumulação de ácido láctico, aumento da produção de calor e de CO2 e aumento de consumo de O2. O aumento da permeabilidade das membranas leva a necrose das fibras musculares (rabdomiólise) com libertação de enzimas, electrólitos e mioglobina para a circulação sanguínea. Como se pode depreender, existe repercussão destas alterações ao nível de vários órgãos e sistemas, pelo que o doente deverá estar monitorizado em UCIP com apoio laboratorial e imagiológico contínuo.
As manifestações surgem sob a forma de episódios agudos na sequência de exposição do doente a certos anestésicos gerais potentes e a certos anestésicos locais (Quadro 2); para além da temperatura corporal excedendo por vezes 41ºC, verificam-se rigidez muscular, trismo, acidose respiratória e metabólica, taquicárdia e taquipneia (por vezes relacionável com SDR tipo adulto). Na ausência de intervenção emergente, a rabdomiólise leva a aumento dos valores de CPK ~ 35.000 UI/L e a mioglobinúria), verificando-se entretanto, taquicárdia, hipercaliémia e IRA mioglobinúrica. A repercussão hepática e hematológica traduz-se por elevação de ALT, LDH, TP, PTT, anemia, trombocitopénia, diminuição do fibrinogénio, aumento de PDF, etc..
QUADRO 2 – Hipertermia maligna (HM): agentes desencadeantes e agentes agravantes
* MAO = monoaminoxidase | |
Desencadeantes | Agravantes |
|
|
Cabe salientar que a HM tem um espectro de apresentação clínica variável; de acordo com o Grupo Europeu de Hipertermia Maligna, distinguem-se os seguintes tipos: 1) fulminante – o mais grave com, pelo menos três das seguintes manifestações: taquicárdia e arritmia cardíaca, acidose, hipercápnia, rigidez muscular e febre; 2) espasmo do masséter – a única manifestação é a contractura do masséter ou trismo que, só por si pode levar a admitir o diagnóstico de HM em 50% dos casos; 3) abortivo, traduzindo-se por alguns dos sinais e sintomas ou alterações metabólicas descritos; a tríade “hipertermia, hipercápnia e acidose” constitui a associação mais frequente.
No diagnóstico diferencial da HM clássica há que ter em conta a chamada síndroma simile HM (SSHM) surgindo na ausência de exposição, quer a anestésicos, quer a succinilcolina; tal situação ocorre nos casos de coma hiperosmolar hiperglicémico não cetótico, associado a diabetes mellitus tipo 2, sendo que a hipertermia é desencadeada após administração de insulina. O quadro, mais frequente em obesos afroamericanos com acanthosis nigricans, é acompanhado de rabdomiólise, instabilidade hemodinâmica e falência de órgãos.
O tratamento de emergência da HM (a cargo do anestesista ou intensivista) integra um conjunto de medidas descritas nos Quadros 3, 4 e 5, relacionando aspectos semiológicos e diagnósticos com a actuação segundo a Associação da Hipertermia Maligna dos Estados Unidos da América.
QUADRO 3 – Hipertermia maligna: Avaliação Imediata
Avaliação imediata | ||
Sinais de hipertermia maligna | Paragem cardíaca súbita/inesperada | Trismo ou contractura dos masseteres com succinilcolina |
Aumento de ETCO2 (CO2 expirado) | Presumir hipercaliémia e iniciar tratamento | Sinal precoce de HM |
Rigidez corporal | Medição de CPK, mioglobina e gasimetria até os valores normalizarem | Iniciar dantroleno se rigidez dos membros |
Trismo ou contractura dos masseteres | Considerar dantroleno | Para procedimentos emergentes evitar agentes desencadeadores de HM; considerar dantroleno |
Taquicardia/ taquipneia | Suspeitar de patologia miopática (ex. distrofia muscular) | Monitorizar CPK imediatamente e de 6/6 horas até normalizar e pelo menos até 36 horas. Se urina escura testar para mioglobinúria |
Acidose | Reanimação pode ser difícil e prolongada | Internamento em Cuidados Intensivos até pelo menos 12 horas |
Aumento da temperatura (pode ser um sinal tardio) |
QUADRO 4 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Aguda
Tratamento na fase aguda |
1. Notificar o cirurgião |
|
2. Dantroleno 2,5 mg/kg ev rápido |
|
3. Bicarbonato para tratamento da acidose metabólica |
|
4. Arrefecimento do doente se temperatura central > 39ºC |
|
5. Disritmias geralmente respondendo ao tratamento da acidose e hipercaliémia |
|
6. Hipercaliémia: tratar com hiperventilação, bicarbonato, glicose/insulina, calcio |
|
7. Monitorizar ETCO2, electrólitos, gasometria, CPK, temperatura central, diurese e coloração da urina, provas de coagulação |
|
QUADRO 5 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Pós- Aguda
Tratamento na fase pós-aguda |
|
Síndroma neuroléptica maligna
Define-se a síndroma neuroléptica maligna (SNM) como situação rara associada ao uso de fármacos antipsicóticos após período de latência de dias ou semanas.
As manifestações clínicas incluem classicamente quatro sinais cardinais:
- Rigidez muscular;
- Alterações do estado mental (confusão, agitação, catatonia, encefalopatia, coma);
- Hipertermia; e
- Instabilidade autonómica (taquicárdia, HTA lábil, diaforese).
Para o tratamento têm sido usados os fármacos dantroleno, bromocriptina e amantadina.
Síndroma serotonínica
Define-se como síndroma serotonínica (SS) uma situação em que se verificam sinais de excesso de neurotransmissão serotoninérgica pós-sináptica por acção de um conjunto de fármacos após período de latência curto (~24 horas).
Os fármacos que podem produzir tal efeito, entre outros, incluem: fentanil, dextrometorfam, L-triptofano, anfetamina, cocaína, ecstasy, fluoxetina, amitriptilina, nortriptilina, linezolid (inibidor da MAO), etc..
As manifestações clínicas incluem uma tríade clássica de anomalias: 1) do estado mental (agitação, delírio); 2) da função neuromuscular (hiperreflexia, clono, hipertonia, tremor); e 3) da função autonómica (hipertermia, taquicárdia, HTA, diaforese, vómitos, diarreia). Por vezes é confundida com SNM, sendo que o clono não é proeminente nesta última.
O tratamento inclui as seguintes medidas:
- Ressuscitação circulatória com fluidos;
- Fenilefrina (vasoconstritor de acção directa) para tratar a hipotensão;
- Cipro-heptadina (antídoto para SS) por via nasogástrica na dose diária de 0,25 mg/kg/dia dividida em 4 doses (dose máxima diária de 12 mg dos 2-6 anos, e de 16 mg dos 7-14 anos).
Nos casos de SSHM o tratamento inclui também o dantroleno; uma vez que o dantroleno é diluído em água esterilizada, concomitantemente deve administrar-se soluto salino hipertónico em dose a calcular, a fim de se prevenir o rápido declínio da osmolalidade sérica, susceptível de originar edema cerebral.
2. HIPOTERMIA
Definições e importância do problema
Hipotermia é definida pela verificação de temperatura corporal central inferior a 35ºC. A hipotermia tem implicações clínicas importantes pelas alterações fisiopatológicas sistémicas e lesões teciduais locais ou sistémicas que pode provocar em função do grau, obrigando a medidas terapêuticas específicas. Tal pode acontecer designadamente em crianças e jovens expostos a ambientes de clima frio com neve e gelo durante grande parte do ano, e em cenários de desportos de neve e de escaladas de montanhas no inverno. Para além da hipotermia de causa ambiental, são exemplos de lesões provocadas pelo frio: a frieira, e a necrose gorda ou paniculite.
Etiopatogénese e manifestações clínicas
Tendo em consideração o balanço térmico descrito em 1. torna-se importante salientar que existe maior susceptibilidade à lesão pelo frio em situações de alteração circulatória por doença cardiovascular, desidratação, anemia, toxicodependência, sépsis, e idades extremas (infância e velhice). Surge, assim, hipotermia como epifenómeno da falência dos mecanismos de manutenção da normalidade da temperatura central relacionados com diminuição da perda ou tentativa de produção de calor (designadamente por vasoconstrição, arrepio, contracção muscular). O Quadro 6 resume os principais factores etiológicos da hipotermia (acidental ou não, ambiental ou não), cuja gravidade se pode classificar do seguinte modo:
1) Ligeira (35-32ºC); 2) Moderada (< 32-28ºC); 3) Grave (< 28ºC).
Nos casos de hipotermia moderada ou grave, a água intra ou extacelular congela, o que interfere no funcionamento da bomba de sódio e conduz a ruptura da membrana celular. Ocorrem igualmente alterações estruturais em células sanguíneas podendo verificar-se microembolismo ou trombose. Como resultado de respostas neurovasculares (vasoconstrição/vasodilatação), poderão surgir curto-circuitos veiculando sangue para zonas menos afectadas, o que agrava as lesões iniciais. O espectro de lesões abrange sobretudo vasos, nervos e pele.
Ao abordar o tópico Hipotermia, torna-se oportuno citar sucintamente alguns exemplos de manifestações clínicas relacionadas com o efeito do frio no organismo (causa ambiental) – lesões locais provocadas pela exposição prolongada ao frio (não necessariamente associadas a hipotermia):
|
QUADRO 6 – Factores etiológicos de hipotermia
Perdas de calor aumentadas (ambiental, iatrogénica/tratamento do golpe de calor, queimaduras, dermatose esfoliativa, vasodilatação periférica/etanol, beta-bloqueantes, etc.). |
Produção de calor diminuída (insuficiência neuromuscular, hipoglicémia, má-nutrição, falência endocrinológica/hipopituitarismo, hipotiroidismo, hipoadrenalismo). |
Alteração da termogénese (patologia do SNC, acção de fármacos no SNC, falência do sistema nervoso periférico/neuropatias/lesão da espinhal medula). |
Outras situações clínicas (lesões de politraumatismo, choque, sépsis, pancreatite, intoxicação pela água, disautonomia familiar). |
Em função do grau de hipotermia surgem manifestações clínicas e respostas diversas, endócrino-metabólicas e ao nível de vários sistemas (SNC, cardiovascular, respiratório, renal e neuromuscular), considerando respectivamente os símbolos:
L = ligeiras; M = moderadas; G = graves.
L: arrepio, taquipneia, taquicárdia, HTA, íleo paralítico, hipocaliémia, alcalose, diurese pelo frio estado confusional, disartria, ataxia, hiperreflexia.
M: arrepio inconstante, hipoventilação, hipoxémia e acidose respiratória, bradicárdia, hipotensão, hipovolémia/IRA, prolongamento do intervalo QT, pancreatite, doença péptica, hiperglicémia, hipercaliémia, acidose láctica, oligúria, rigidez, hemoconcentração, hipercoagulabilidade, agitação, midríase, hiporreflexia.
G: ausência de arrepio, apneia, edema pulmonar, SDR, AESP, FV, assitolia, pancreatite, doença péptica, hipercaliémia, hiperglicémia, acidose láctica, rabdomiólise, trombocitopénia, CID, IRA, coma, pupilas não reactivas, estado símile morte cerebral.
Exames complementares
No doente hipotérmico são considerados exames complementares prioritários: ionograma sérico, glicémia, provas de função renal, gasometria arterial, hemograma completo, estudo da coagulação e exame toxicológico para doseamento de fármacos e etanol.
Tratamento
A actuação nos casos de hipotermia consiste nas seguintes medidas, a ponderar em função do contexto clínico de cada caso:
- Reaquecimento passivo de todo o corpo, incluindo cabeça, com cobertor no sentido de reduzir as perdas por evaporação, em geral eficaz nos casos ligeiros (L) podendo incrementar a temperatura entre 0,5 – 4ºC;
- Aquecimento externo activo através da aplicação de calor directo à pele, só efectivo se a circulação estiver intacta, permitindo o retorno, da periferia para a zona central do organismo, de sangue reaquecido; tal pode realizar-se através de cobertores aquecidos ou calor irradiante ou sob a forma de ar forçado aquecido a curta distância do doente; este método é eficaz em geral nos casos ligeiros e moderados (L,M);
- Aquecimento interno activo através de ar humidificado e aquecido a 42ºC por via endotraqueal, associado a fluidoterapia IV com fluido aquecido a 42ºC em perfusão rápida controlada conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-2ºC/hora;
- Aquecimento interno invasivo com “lavagem” através de instilação de soro fisiológico aquecido na bexiga, estômago e cólon (e, nalguns centros, também cavidades pleural e peritoneal), conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-4ºC/hora.
Na maior parte dos casos as disritmias corrigem-se com o aquecimento.
Aplicam-se nos casos de hipotermia as medidas de ressuscitação ABC descritas no Capítulo próprio, com algumas especificidades:
- Em geral torna-se prioritário promover o reaquecimento até, pelo menos, 30ºC salientando-se que as manobras poderão ter que ser muito prolongadas;
- Embora o doente pareça clinicamente morto, os esforços de ressuscitação deverão continuar até se atingir, com as manobras de reaquecimento, a temperatura central normal;
- Justifica-se a ressuscitação circulatória agressiva nos doentes hipotérmicos desidratados, tendo em conta a hipovolémia e a vasodilatação após reaquecimento.
Nota final – Dado que a hipotermia programada constitui uma medida terapêutica (efeito neuroprotector) em situações especiais, o leitor pode consultar o capítulo sobre encefalopatia hipóxico-isquémica na Parte Perinatologia/Neonatologia.
BIBLIOGRAFIA
American Haert Association (AHA). AHA Guidelines for cardiopulmonary resuscitation and emergency cardiovascular care. Circulation 2005; 112 (Suppl): IV.133 – IV.138
Berkow R. Cold injury In Berkow R (ed). The Merck Manual of Diagnosis and Therapy. Rahway/NJ: Merck, Sharp & Dohme,1992
Brislin RP, Theroux MC. Core myopathies and malignant hyperthermia susceptibility: a review. Pediatric Anesthesia 2013; 23: 834-841
Britt LD, Dascombe WH, Rodriguez A. New horizons in management of hypothermia and frost bite injury. Surg Clin North Am 1991; 71:345-370
Fink EL, Kochanek PM, Clark RSB, et al. How I cool children in neurocritical care. Neurocrit Care 2010; 12: 414-420
Fuhrman BP, Zimmerman J. Pediatric Critical Care. St Louis: Elsevier, 2011
Gillman PK. Neuroleptic malignant syndrome: mechanisms, interactions and causality. Movement Disorders 2010; 25: 1780-1790. http://dx.doi.org/10.1002/mds.23220
Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman – Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016
Helfaer MA, Nichols DG. Roger´s Handbook of Pediatric Intensive Care. Philadelphia: Wolters Kluwer/Lippincott Williams & Wilkins, 2009
Helfaer MA, Nichols DG. Roger´s Textbook of Pediatric Intensive Care. Philadelphia: Wolters Kluwer/Lippincott Williams & Wilkins, 2008
Hickey RW, Kochanek PM, Ferimer H, et al. Hypothermia and hyperthermia in children after resuscitation from cardiac arrest. Pediatrics 2000; 106: 118-122
Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020
Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018
Li S, Guo P, Zou Q, et al. Prevention of hypothermia after birth and during NICU in preterm infants: a systematic review and meta-analysis. PLoS One 2016; 11 (6): e0156960. doi: 10.1371/journal.pone.0156960
McAllen KJ, Schwartz DR. Adverse drug reactions resulting in hyperthermia in the intensive care unit. Crit Care Med 2010; 38: 244-252
McIntosh N, Helms P, Smyth R, Logan S. Forfar and Arneil´s Textbook of Pediatrics. London: Churchill Livingstone, 2008
Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015
Paal P, Gordon L, Strapazzon G, et al. Accidental hypothermia – an update. Scand J Trauma Resusc Emerg Med 2016; 24:11. Doi: 10.1186/s13049-016-0303-7
Pawar SC, Rosenberg H, Adamson, et al. Dantrolene in the treatment of refractory hyperthermic conditions in critical care: a multicenter retrospective study. Open Journal of Anesthesiology 2015; 5: 63-71
Ruza F, et al (eds). Tratado Cuidados Intensivos Pediátricos. Madrid: Norma-Capitel, 2003
Salazar JH, Yang J, Shen L, et al. Pediatric malignant hyperthermia: risk factors, morbidity and mortality. Pediatric Anesthesia 2014; 24: 1212-1216