Importância do problema

Os traumatismos alvéolo-dentários não se encontram geralmente ligados ao risco de vida. Exceptuam-se a entrada de corpo estranho na via aérea, a “queda posterior” da língua em fractura mandibular com recuo muito acentuado, e eventual lesão de pedículo vascular major.

Trata-se de problemas muito frequentes, salientando-se que a precocidade de tratamento tem implicação no prognóstico; adiar opções, transferindo-as para decisão dita tecnicamente especializada, se tardia, não retira a responsabilidade profissional.

A divulgação de informação básica junto das escolas poderia melhorar a triagem dos casos a encaminhar para o estomatologista, e diminuir o tempo que decorre até aos primeiros socorros alvéolo-dentários, com resultados muito positivos em Saúde Pública, como aconteceu nos países nórdicos.

Uma população pouco informada e uma rede de cuidados não contemplando a Urgência de Estomatologia, mais responsabilidade acarreta ao pediatra e clínico geral, os quais primeiramente observam a criança após o traumatismo.

Parece, assim, justificar-se maior atenção a conhecimentos que rendibilizem tão escassos recursos. Um maior rigor terminológico entre médicos e outros profissionais de saúde permitiria, por exemplo, uma consultadoria telefónica ou audiovisual efectiva, com elevados benefícios e óbvios ganhos de eficiência.

Aspectos epidemiológicos

No grupo etário entre os 12 e 14 anos estima-se que aproximadamente 30% das crianças sofrem lesões traumáticas em grau variável da dentição decídua, e 22% da dentição definitiva. Um primeiro pico de incidência ocorre entre os 2 e os 4 anos de idade, e um segundo entre os 8 e os 10 anos.

Classificação

Na perspectiva do problema em análise torna-se, pois, imprescindível: utilizar a classificação/terminologia da Organização Mundial de Saúde (Application of the International Classification of Diseases and Stomatology, IDC-Da); e proceder ao mais rigoroso exame objectivo permitindo maior rigor diagnóstico.

De acordo com o ICD-9-CM (International Classification of Disease – 9th revision – Clinical Modification), são considerados quatro tipos fundamentais de lesões traumáticas:

  • Lesões dos dentes e lesões da polpa dentária;
  • Lesões periodontais;
  • Lesões ósseas;
  • Lesões da gengiva e lesões da mucosa oral.

O Quadro 1, adoptado na Unidade de Estomatologia do Hospital de Dona Estefânia – Lisboa, discrimina de modo pormenorizado tais lesões.

QUADRO 1 – Tipologia das lesões alvéolo-dentárias

Lesões dos dentes e da polpa dentária
Fracturas coronáriasFracturas corono-radicularesFracturas radiculares
Infracção do esmalte
Fractura do esmalte
Fractura do esmalte e dentina ou fractura não complicada
Fractura complicada
Não complicadas
Complicadas
 
Lesões periodontais
Sem deslocamentoCom deslocamento 
Concussão
Subluxação
Intrusão/ luxação intrusa/ deslocamento central
Extrusão/ luxação extrusa/ deslocamento periférico
Luxação lateral
Avulsão/ Exarticulação
 
Lesões ósseas
Osso alveolarOsso basal 
Fragmentação alveolar
Fractura da parede alveolar (ou tábua)
Fractura do processo alveolar
  
Lesões da gengiva e da mucosa oral
Laceração
Contusão
Abrasão

Lesões dos dentes e lesões da polpa dentária

As fracturas dentárias englobam dois grupos: não complicadas (se não houver compromisso pulpar); ou as fracturas dentárias complicadas (se houver compromisso pulpar, o que só acontece se existir lesão simultânea do esmalte e/ou do cimento e da dentina).

Em função das estruturas duras atingidas – pela relevância da respectiva tradução clínica e radiológica, e pela cascata terapêutica que impõem, classificam-se em:

Fracturas coronárias
  • Infracção do esmalte – fractura incompleta do esmalte (fissura), tipo ramo verde, se não houver perda de substância.
  • Fractura do esmalte (A) – fractura completa do esmalte, se houver solução de continuidade por perda de substância. (Figura 1)
  • Fractura do esmalte e da dentina ou fractura coronária não complicada (B) – fractura implicando esmalte e dentina, mas sem compromisso da polpa. (Figura 1)
  • Fractura coronária complicada (C) – fractura implicando esmalte e dentina, com exposição da polpa. (Figura 1)
Fracturas corono-radiculares
  • Fractura corono-radicular não complicada (D) – fractura implicando esmalte, dentina e cimento, sem compromisso da polpa. (Figura 1)
  • Fractura corono-radicular complicada (E) – fractura implicando esmalte, dentina e cimento, com exposição da polpa. (Figura 1)
Fracturas radiculares
  • Fractura radicular (F) – fractura implicando dentina, cimento e polpa, seja transversal (do terço apical, do terço médio, do terço coronário ou cervical), seja longitudinal. (Figura 2)

FIGURA 1. Fracturas coronárias e fracturas corono-radiculares

FIGURA 2. Fractura radicular (do terço médio)

FIGURA 3. Lesões periodontais (exceptuando avulsão)

FIGURA 4. Lesão periodontal (avulsão)

Lesões periodontais

São consideradas sem deslocamento (se for preservada a relação dente/alvéolo) ou com deslocamento (se não for preservada a relação dente/alvéolo, sendo que o deslocamento pode verificar-se ou não segundo o eixo alveolar).

Sem deslocamento
  • Concussão (G) – lesão sem mobilidade, nem deslocamento, associada a sensibilidade ao toque e hiperestesia à percussão, quer vertical, quer horizontal. (Figura 3)
  • Subluxação (H) – lesão com discreta mobilidade horizontal, sem deslocamento, mas com dor óbvia ao toque e ao contacto com os dentes oponentes (impedindo oclusão), e hiperestesia à percussão, quer vertical quer horizontal. (Figura 3)
Com deslocamento
  • Intrusão (luxação intrusa ou deslocamento central) (I) – lesão com deslocamento em direcção ao extremo apical do alvéolo, quase inevitavelmente com fractura do mesmo; a deslocação centrípeta implica provável imobilidade e associa-se a ausência de dor à percussão. O deslocamento faz-se tendencialmente segundo o eixo alveolar na dentição definitiva, mas associa-se a provável desvio de eixo na dentição decídua. (Figura 3)
  • Extrusão (luxação extrusa, deslocamento periférico ou exarticulação parcial) (J) – lesão com deslocamento em direcção ao extremo cervical do alvéolo, por definição segundo o respectivo eixo; qualquer pequeno desvio implica a classificação de luxação lateral. (Figura 3)
  • Luxação lateral (luxação palatina/luxação labial ou vestibular) (L1 e L2) – lesão com deslocamento em direcção ao palato (a mais frequente, nos traumatismos directos) ou ao vestíbulo (e lábios); o aprisionamento dentário, intra-alveolar, pode associar-se a semiologia muito próxima da intrusão, sendo de referir que grandes deslocamentos implicam fractura de tábuas. (Figura 3)
  • Avulsão (exarticulação) (M) – lesão com deslocamento completo do dente, para fora do alvéolo; é mais frequente entre os 7 e os 9 anos, dada a grande resiliência do osso alveolar e a imaturidade ligamentar dente/alvéolo. (Figura 4)

Lesões ósseas

Podem estar associadas aos subtipos já apontados, localizando-se no osso alveolar (alvéolo e parede alveolar – tábua externa ou tábua interna – e processo alveolar), ou no osso basal (maxila ou mandíbula).

Osso alveolar
  • Fragmentação alveolar – compressão ou “esmagamento” das paredes, como é frequente na luxação intrusa e possível nas luxações laterais.
  • Fractura de parede alveolar (ou tábua) (L2) – fractura confinada à parede vestibular ou lingual de alvéolo. (Figura 3)
  • Fractura do processo alveolar (N e O) – fractura do processo que pode ou não implicar o alvéolo. (Figura 5)
Osso basal
  • Fractura da maxila ou da mandíbula (P e Q) – fractura(s) que implica(m) o osso basal e que pode(m) ou não atingir o alvéolo; a sua abordagem ultrapassa o âmbito deste capítulo. (Figura 5)

FIGURA 5. Lesões ósseas

Lesões da gengiva e lesões da mucosa oral

Tal como as lesões ósseas, associam-se aos traumatismos dentários e periodontais descritos. É essencial compreender que a gengiva é um tecido com características de adesão, comportamento e funções absolutamente distintas da restante mucosa, (dos chamados “tecidos moles”). São consideradas:

Laceração – ferida, superficial ou profunda, com desinserção/descolamento, geralmente produzida por objecto afiado;
Contusão – equimose, habitualmente associada a hemorragia apenas submucosa, sem solução de continuidade e geralmente produzida por objecto rombo;
Abrasão – ferida superficial produzida por atrito, de que resulta uma superfície cruenta e hemorrágica.

Etiopatogénese

As lesões traumáticas alvéolo-dentárias entre os 2 e os 14 anos, sobretudo por queda, relacionam-se com a falta de coordenação do início da marcha e da corrida, justificando algum paralelismo nos dois sexos. Mais tarde, sobretudo por queda ou colisão, coincidem com o início da vida escolar e desportiva, penalizando os mais irrequietos ou agressivos e os que preferem os desportos de contacto ou velocidade (karaté, bicicleta), o que pode explicar uma relação de 1/2 entre o sexo feminino e o masculino.

Antes dos 2 anos, os traumatismos são esporádicos e relacionam-se, sobretudo, com quedas do colo ou dos carrinhos. Depois dos 14 anos, exceptuando os acidentes de viação, predominam os acidentes desportivos, as agressões em rixas, estas às vezes já conotadas com o consumo de álcool ou estupefacientes, e os assaltos. Em qualquer dos grupos, porém, interessa identificar a “criança e o jovem com tendência para acidentes”; com efeito, a repetição de traumatismos pode originar compromisso maxilo-facial que, nalgumas estatísticas, atinge os 50%.

Nos traumatismos da dentição decídua predominam as lesões periodontais e ósseas, dada a grande resiliência dessas estruturas, enquanto na dentição definitiva predominam as lesões dos dentes e da polpa.

Numa visão tradicional da face, considera-se que a pirâmide nasal constitui como que o primeiro “pára-choques”, o bloco incisivo superior o segundo, e o mento o terceiro; de facto, trata-se de estruturas protectoras – nos impactes directos – de estruturas ditas nobres, a saber as órbitas, a região frontal e, genericamente, o crânio. Esta hierarquia de maior saliência no perfil, coaduna-se, aliás, com a ordenação de prevalência dos traumatismos maxilo-faciais.

Compreende-se, então, que no âmbito estrito dos traumatismos alvéolo-dentários, a área dos incisivos centrais superiores seja a mais sacrificada, seguida da dos incisivos laterais superiores e da dos incisivos centrais inferiores. Melhor se compreende que um overjet aumentado, constitua risco acrescido de lesão.

O lábio superior, se for incompetente ou insuficiente, constitui factor agravante, uma vez que não funciona enquanto almofada amortecedora como protecção. Em contrapartida, interpondo-se no impacte, distribuirá as forças por mais extensa área, diminuindo a pressão e favorecendo as lesões periodontais, em desfavor das dos dentes e polpa.

Nem todos os traumatismos se estabelecem por impactes directos, sendo importante, nos indirectos, compreender a razão de ser de múltiplas, possíveis associações.

Os traumatismos podem processar-se de modo crónico pela continuidade do estímulo, às vezes apenas revelados à distância no tempo. É o que acontece, por exemplo, no recém-nascido com entubação oro-traqueal por tempo prolongado. Com o tempo, a pressão do tubo no rebordo maxilar pode implicar alterações dos germes dentários em desenvolvimento que, após erupção, revelam defeitos estruturais do esmalte.

São também iatrogénicos os traumatismos devidos ao uso intempestivo do laringoscópio, quando brandido em alavanca, sobre o bloco incisivo superior, forçando a abertura da boca.

Semiologia clínica

Não havendo hemorragia importante, dificuldade respiratória ou alterações da consciência impondo abordagem prioritária, a história clínica contribuirá para o esclarecimento da situação na perspectiva de uma actuação adequada e idealmente não diferida; de salientar que a procura de assistência em momento especialmente tardio de caso aparatoso é mais frequente na criança agredida.

A eventualidade de traumatismo craniano impõe a respectiva abordagem, sem, contudo, justificar atrasos de consequências irreversíveis. A necessidade de avaliação neurológica especializada é geralmente compatível com os primeiros cuidados cirúrgicos, se não houver necessidade de sedação/anestesia.

Anamnese

Relativamente aos dados a colher na anamnese importa especificar os tópicos clássicos: quem; quando; como e onde.

O quem distingue a criança saudável da que tem território patológico e/ou de risco acrescido (discrasia hemorrágica, valvulopatia, disfunção neurológica, surdez, ambliopia); a sua idade, sexo, área de residência, aproximam-nos do território de probabilidades descrito e sugerem-nos a envolvente social, o risco de repetição ou falta de apoio para posterior vigilância ou medicação.

O quando permite determinar o tempo decorrido e impõe a ultrapassagem de esperas, pela relevância no sucesso de reimplante de dente definitivo e da redução das luxações e fracturas.

O como caracterizará as forças em causa e, portanto, o tipo de traumatismo. É importante a pista de eventual objecto na boca, envolvido no acidente: aparelho ortodôntico, lápis, pauzinho de gelado, como fontes de lesões acessórias.

O onde informa da conspurcação das feridas (coice de cavalo) e esclarece a necessidade de profilaxia antitetânica, alerta para eventual presença de corpos estranhos (acidente de viação em estrada de gravilha fina), explica a lógica do desaparecimento de dentes (mergulho com impacte na beira da piscina), ou sugere a possibilidade de intrusão.

Exame objectivo

Os gestos semiológicos assentam fundamentalmente em inspecção, palpação e mobilização.

O diagnóstico dos problemas de traumatologia da face ou seus segmentos decorre essencialmente do exame objectivo, sendo a sua insuficiência (tal como a do seu registo) a fonte de trágicos erros. Serão abordados aspectos essenciais do exame objectivos a levar a cada pelo pediatra geral ou pelo médico de família, na maioria dos casos quem se confronta com as situações traumáticas deste foro.

Nas situações de politraumatizado há que considerar a vertente oro-maxilo-facial, sendo necessário distinguir o traumatismo facial do craniofacial.

A área alvéolo-dentária pode ser mais chamativa, mas há que procurar eventuais lesões menos evidentes. Uma fractura de processo alveolar, com luxações laterais e hemorragia franca, associando lábio superior contuso e hematoma geniano baixo, por espectaculares que sejam, poderão descurar uma fractura subcondiliana. Não é, porém, raro tal acontecer.

O primeiro contacto, com voz ciciada, se indutor de sossego, pode permitir que a inspecção decorra simultaneamente com a palpação afável dos contornos esqueléticos: rebordo orbitário, arcada zigomática, canal auditivo externo, mastóide e mandíbula.

Os dedos (utilizando luvas esterilizadas) devem também percorrer os contornos ósseos endorais, enquanto se pesquisam soluções de continuidade da mucosa ou hematomas submucosos, sugestivos de fractura maxilar ou mandibular, e soluções de continuidade; detectam, com facilidade, um abaulamento da tábua externa da zona incisiva, subsequente a uma intrusão; reconhecem uma luxação extrusa extrema ou exarticulação camuflada, aproveitando instantaneamente para agarrar um dente “solto” dado o risco de originar aspiração e asfixia.

É essencial detectar eventual mobilidade de dentes ou de segmentos ósseos ou ósteo-dentários; de salientar que a própria criança poderá saber dizer “se os dentes batem uns nos outros como é costume”.

Se o registo fotográfico, complemento da inspecção, estiver disponível, resumirá a deformidade, a distribuição extra-oral e endoral de sufusões e feridas, as alterações posicionais de segmentos ósseos (basais, alveolares) e dentes, acrescentando valor médico-legal.

É também essencial pesquisar a mobilidade e proceder a eventual percussão dos dentes (pode usar-se a espátula de inspecção da orofaringe). A mobilização bidigital dos dentes permite distinguir a fractura de processo alveolar da fractura de parede, e ainda de luxação; a diferença é relevante quanto aos critérios para envio a centro especializado e consequências.

Na fractura de processo alveolar, a mobilização de um dente desencadeia a mobilização solidária dos outros dentes do mesmo fragmento, porque desloca a respectiva “base de residência”. Na fractura de parede alveolar, a mobilização de um dente poderá desencadear a mobilização simultânea da tábua fracturada. As luxações acarretarão mobilidade individual, se não tiver havido “encarceramento”.

A percussão permite, ao ouvido habituado, o reconhecimento instantâneo do “som anquilótico” da intrusão; associada à palpação, distingue a concussão da subluxação, esta com maior compromisso do aparelho ligamentar alvéolo-dentário.

Realizados a anamnese e o exame objectivo, importa estabelecer classificação da lesão.

Actuação geral prioritária

Os fragmentos de tecidos ou dentes devem ser colocados em soro fisiológico (ou leite), melhorando a viabilidade celular, especialmente a periodontal; de imediato, o doente deve ser enviado a centro de urgência médico-cirúrgica especializado, com aviso prévio, e relatório sucinto e rigoroso.

Deve proceder-se, com carácter de urgência em caso de avulsão, a reposicionamento do dente no alvéolo, procedimento indispensável se precoce. A celeridade de reposicionamento condiciona o sucesso biológico efectivo no reimplante de dente definitivo, mesmo que a posição obtida não seja a ideal. (ver adiante)

Pode, entretanto, haver necessidade de exercer compressão local para garantir reposicionamento do dente, parar a hemorragia, ou controlar mobilidade patológica.

Deve retirar-se corpo estranho endoral ou induzir o vómito, para evitar obstrução da via aérea, esta última sugerida por tosse arrastada.

É indispensável ter no local, luz dirigida intensa e necessária para a remoção – com compressa húmida – de fragmentos e de coágulos, quando possível seguida de aspiração cirúrgica continuada de saliva e sangue. Os meios tradicionais de observação, em geral disponíveis na área de triagem do serviço de urgência médica, são suficientes para um rastreio eficaz.

Está indicada antibioticoterapia com beta-lactâmicos (ver adiante).

O exame radiológico simples da face, clássico, utilizando as incidências: face superior, face inferior, Waters e Hirtz, pode ser indispensável se o exame objectivo deixar em dúvida uma fractura de osso basal.

Na área alvéolo-dentária, são os radiogramas endorais, em múltiplos ângulos, especialmente oclusais, que permitem respostas cabais a algumas dúvidas levantadas pelo exame objectivo.

É importante referir que a radiografia panorâmica (ortopantomografia) é um excelente meio complementar de diagnóstico nas fracturas da mandíbula, embora de menor utilidade nos compromissos maxilares, e praticamente inútil nos compromissos dos segmentos anteriores. Não deverá ser solicitada indiscriminadamente.

De salientar, no entanto, que nenhum estudo radiológico substitui qualquer dos tempos da actuação descritos atrás. Admitindo, por outro lado, que na actuação prioritária o pediatra ou clínico geral pode ter papel importante, tal implica o apoio do radiologista nos casos em que está indicado estudo imagiológico.

Actuação em situações específicas

Lesões traumáticas da dentição decídua

Na dentição decídua, a anamnese orientada e o exame sumário permitem ao médico uma referência adequada para o especialista de estomatologia.

Basicamente, a actuação geral nos casos de traumatismos alvéolo-dentários da dentição decídua tem por objectivo o controlo da dor e da hemorragia, evitando consequências para a dentição definitiva.

Seguidamente são descritos aspectos da actuação em situações específicas.

Intrusão

O diagrama da Figura 6 aponta a estreita relação anatómica entre o terço apical da raiz do dente decíduo e o germe do dente definitivo.

Uma luxação intrusa mais provavelmente deslocará um incisivo em direcção à tábua externa por se tratar de trajecto de menor resistência, mas poderá implicar “invasão directa” do folículo.

Deste traumatismo interno podem resultar defeitos de cor e de estrutura, mas também morfológicos e mais ou menos bizarros e espectaculares, da coroa – dilaceração coronária ou da raiz – dilaceração radicular, com alterações subsequentes da erupção. É de salientar que, quanto mais jovem for a criança, mais graves os efeitos.

São exemplo frequente de compromissos superficiais de germe as “manchas brancas”, opacas, do esmalte do incisivo definitivo, constituindo marcador anatómico dum acidente pregresso; tais manchas são semelhantes às das fases iniciais da cárie e às da hipoplasia do esmalte, por fluorose. Os múltiplos arranjos destes defeitos funcionam como “marcadores arqueológicos”, com data de verificação bastante rigorosa, a ponto de serem utilizados na perspectiva médico-legal, para efeitos de indemnização.

Se houver acesso a métodos radiológicos, uma incidência de perfil focada na espinha nasal pode revelar se a deslocação foi feita em direcção ao germe ou não. Se foi, justifica-se extracção pelo estomatologista, na tentativa de reduzir ao mínimo as sequelas.

Na hipótese de não se ter realizado extração, poderá verificar-se “reerupção” passiva do dente intruso, com lento regresso à arcada, o que faz advogar por alguns especialistas uma espera de 2-3 meses, na expectativa de auto-resolução.

FIGURA 6. Relação anatómica entre a raiz do dente decíduo e o germe do dente definitivo

Luxações não intrusas, avulsões e lesões ósseas

Um pequeno deslocamento, sem interferência oclusal significativa (oclusão como “contacto dentário interarcadas, no encerramento”), poderá merecer, apenas uma segunda observação, a médio prazo, se houver complicações: alteração da cor, dor à pressão, abcesso alveolar agudo ou fístula.

Por não ser rara uma pequena mordida aberta anterior (ver Aspectos da relação incisiva), luxações com pequenos deslocamentos são muitas vezes oclusalmente irrelevantes, dispensando maior investigação ou terapêutica, tal como acontece com as concussões e subluxações.

Nas luxações extrusas, a raiz ter-se-á deslocado para fora do alvéolo, segundo o respectivo eixo, poupando o folículo do dente definitivo; o reposicionamento é possível, “num instante”, mas não justificará que se recorra a meios especiais, na criança não colaborante, nem que de tal opção resulte lesão iatrogénica no germe. Em contrapartida, a sua redução pode impor o recurso a contenção (splinting).

As fracturas dos processos alveolares implicam imobilização rígida durante aproximadamente 2 meses.

Lesões periodontais

Nos traumatismos verificados imediatamente antes de momento de esfoliação, salvo questão major, há duas opções possíveis: abstenção ou extracção.

A partir das 24 horas, na maioria dos casos a redução é impossível e, pelas 12 horas, insatisfatória, o que é explicável pela progressiva organização dos coágulos.

As lesões periodontais justificam a administração de analgésicos, como paracetamol; exceptuando a concussão e a subluxação, é norma o recurso ao ibuprofeno, bem como à cobertura antibiótica, com beta-lactâmicos.

Pode haver necessidade de alongar no tempo a dieta mole, mas a criança é geralmente capaz, a curto prazo, de se defender de zona dolorosa, conduzindo os alimentos para zona não dolorosa da boca.

Lesões dos dentes e da polpa

As fracturas coronárias não complicadas, na criança colaborante, justificam reabilitação por parte do estomatologista, não cabendo no âmbito da urgência.

Nas fracturas coronárias complicadas, na criança não colaborante, a resolução é a extracção dentária; a criança colaborante, porém, pode justificar tratamento endodôntico, em função da idade e circunstância.

As fracturas corono-radiculares e as fracturas radiculares são facilmente diagnosticáveis pela observação dos fragmentos disponíveis e dos alvéolos, não estando indicado exame radiológico. Nas corono-radiculares está indicada extracção “total”, enquanto as radiculares – com traço de fractura do terço médio ou cervical – carecem apenas de extracção do fragmento coronário. As fracturas do terço apical são muitas vezes compatíveis com a permanência dos dentes, sem complicações.

Lesões traumáticas da dentição definitiva

Nos casos de lesões traumáticas da dentição definitiva, os objectivos terapêuticos passam pela preservação dos próprios dentes, impondo recursos e diferenciação técnica. São analisadas neste âmbito, as seguintes situações:

Lesões periodontais

As lesões periodontais impõem métodos de contenção e/ou imobilização exigindo algum treino, mesmo que idealmente conduzidos com materiais simples; as luxações obrigam a redução precoce, com reposicionamentos adequados e contidos, nas primeiras 6 horas. O tempo decorrido entre o traumatismo e o seu tratamento, ou os primeiros cuidados que merecem, é relevante no sucesso biológico e na onerosidade global da reabilitação.

Fracturas coronárias complicadas e corono-radiculares

As fracturas coronárias complicadas, bem como as corono-radiculares, e mesmo algumas radiculares, não são situações urgentes, embora seja aconselhável a observação por estomatologia dentro de 24 horas. Apesar dos quadros dolorosos e da necessidade de abstenção alimentar, são lesões menores, sem risco acrescido.

Avulsão

A avulsão representa, talvez, a situação mais desafiante, pela necessidade de decisões imediatas. A sua abordagem tem variado muito, nos últimos anos, e continua a não ser consensual: discute-se a responsabilização médico-legal por atraso de reimplante, e a ética de se proceder a reimplante com elevada probabilidade de insucesso, apenas em nome da expectativa dos pais.

O factor primordial é o tempo extra-alveolar, sobretudo o tempo extra-alveolar em meio seco, não pela necrose da polpa, mas pela morte do ligamento periodontal, considerada inevitável a partir dos 60 minutos. Um tempo extra-alveolar rondando os 20 minutos associa-se a sucesso biológico satisfatório, razão para se entender, aliás, que o reimplante ideal é o que é imediatamente conduzido pelo próprio, ou por socorrista presente (o professor, a mãe). (ver atrás – Actuação prioritária)

São dois os tipos de evolução periodontal mais frequentes, após um reimplante.

Um constitui a chamada reabsorção externa inflamatória com desaparecimento progressivo da raiz, de origem osteoclástica, com subsequente perda dentária.

Outro é a reabsorção de substituição – vulgo, anquilose – traduzindo-se no desaparecimento progressivo do próprio ligamento periodontal, com fusão entre dente e osso que acaba por tomar, substituir, o próprio dente. Tal implica, na criança em crescimento, paragem do crescimento da apófise alveolar, conduzindo a sequela importante.*

* Com efeito, existe como que uma frente osteoclástica que se encarrega da reabsorção/desaparecimento do dente, imediatamente seguida por uma fronteira osteoblástica em que os tecidos dentários são substituídos por osso (daí reabsorção de substituição). Num momento intermédio no processo, é impossível dizer, com base na radiologia, onde acaba dente e começa osso. Esse neo-osso tem, porém, comportamento distinto do osso são e não cresce. Daí a possibilidade de ulterior deformidade.

A opção de reimplantar começa assim, pela necessidade de avaliar a probabilidade de cada um destes tipos de evolução, pois que a cura do periodonto, com restitutio ad integrum, parece ser uma raridade e a reabsorção superficial pouco frequente. Há que verificar também:

  1. se a extremidade da raiz se encontra já completamente formada ou não, definindo-se a probabilidade de sobrevivência da polpa ou a necessidade de indução do encerramento radicular, no futuro, pelo recurso ao Ca (HO)2 e consequente aumento da probabilidade de fractura radicular e insucesso;
  2. igualmente se se trata de dente são, a reimplantar em alvéolo são e arcada não apinhada;
  3. há que ter em conta ainda a acessibilidade geográfica e social, e a possibilidade de deslocação, por exemplo, a centro onde possa ser feito o seguimento adequado.

Reitera-se a antibioticoterapia profiláctica, idealmente com beta-lactâmicos, nas doses habituais; a antibioticoterapia é facto relevante no sucesso e deve ser promovida no serviço de urgência. (ver atrás – Actuação prioritária)

Se o dente estiver em meio seco, como geralmente acontece, deve ser transferido para salino ou leite, manipulado pela coroa, nunca pela raiz, evitando lesão acrescida das células periodontais.

Reforçando o que foi dito antes, na ausência de acesso rápido a estomatologista, deve ser reimplantado imediatamente, se a menos de 20 minutos do acidente. Se o ápex estiver aberto, justifica-se um banho prévio, de 5 minutos, num soluto de 1 grama de doxiciclina para 20 ml de água destilada.

Se o tempo extra-alveolar for superior a 1 hora, é desejável submeter a raiz ao ácido cítrico e a um fluoreto, minorando os riscos de reabsorção externa inflamatória, e reimplantar, mesmo que o reposicionamento conseguido não seja o ideal.

A dificuldade na adaptação ao alvéolo pode resolver-se através de irrigação com seringa de soro (remoção de coágulos), ou suavemente empurrando, com instrumento cirúrgico, as tábuas fracturadas. Não deve exercer-se pressão importante com o dente.

Na indisponibilidade de um método ortopédico de contenção, a pressão dos lábios, ajudada por um dedo ou pela interposição de um objecto, podem ser de grande utilidade.

Apesar da necessidade de boa gestão do tempo, a tendência internacional é obter-se consentimento informado, seja para reimplantar, seja para não reimplantar.

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