Importância do problema

A maioria das crianças atendidas pela primeira vez na consulta de Cardiologia Pediátrica não tem doença cardíaca. São enviadas por sintomatologia mal definida como dor torácica, “picadas e sensação de falta de ar”. O esclarecimento destas situações é importante a fim de evitar o estigma de doença cardíaca com todas as consequências sobre o estado psicológico e qualidade de vida de crianças, jovens e suas famílias. Os motivos principais para o recurso à consulta de Cardiologia Pediátrica são discriminados nas alíneas seguintes.

Sopro cardíaco detectado em observação de rotina (sopro inocente)

A incidência de sopro não associado a patologia cardiovascular (inocente) em crianças em idade escolar é ~ 75%, em contraste com a prevalência das cardiopatias congénitas que é 3 a 4/1000 no mesmo grupo etário (6 a 8/1000 nados-vivos). A maioria dos sopros cardíacos inocentes pode ser identificada com base na anamnese e na observação. As principais características de cada tipo de sopro inocente estão resumidas nos Quadros 1 e 2.

Os sopros inocentes podem ser sistólicos ou contínuos, mas nunca diastólicos.

Na nossa experiência, os mais frequentes são: sopro vibratório (43%), seguido de zumbido venoso e da associação de ambos (11% cada). O sopro pulmonar (7%) e o ruído carotídeo (menos de 1%) são menos frequentes. Os sopros inocentes tendem a variar de intensidade com o estado dinâmico da circulação, e a desaparecer com a idade. O diagnóstico de sopro inocente pode ser confirmado pela ausência de alterações cardiovasculares na radiografia do tórax e no electrocardiograma. Os pais devem ser alertados para o facto de o sopro inocente poder ser mais bem audível em situações de febre, anemia ou após esforço e quando a criança é observada por um médico diferente do habitual. Há que evitar o desenvolvimento da chamada “neurose cardíaca”, assim como de atitudes de sobreprotecção ou de complexos de culpa nos pais.

QUADRO 1 – Características gerais do sopro inocente

Intensidade
Inferior a 3/6

Altura
Grave

Timbre
Vibrações de altura e intensidade homogéneas

Local de máxima intensidade
Específico para cada tipo

Intervalo entre o 1º ruído e o sopro
Existe

Circunscrito no precórdio
Sim

Modifica-se com posição ou com manobras
Sim (posição, respiração, exercício, manobras de compressão vascular, febre)

QUADRO 2 – Características específicas dos sopros inocentes

Abreviaturas – EICE: espaço intercostal esquerdo; VE: ventrículo esquerdo; dta: direita; VD: ventrículo direito; TSVD: tracto de saída do ventrículo direito; (?): possivelmente
Tipo de soproIntensidadeLocalIrradiaçãoGénese
Vibratórioinferior a 3/64º EICEVariável, mas nunca axilaVE (?)
Pulmonarsuave, grau 2/62º EICESem irradiaçãoVD
Zumbido venosoinferior a 3/6Base do pescoço
Mais frequente à direita
Diminui ou desaparece com decúbito
e com rotação da cabeça
Veias jugulares
Ruído carotídeograu 2/62º EICE
Fossa supraclavicular
Base do pescoço
 Artérias

Sintomas ou sinais não esclarecidos (suspeita de causa cardíaca pelo médico assistente)

Dor torácica durante actividade normal

Esta é actualmente a principal causa de envio à consulta de Cardiologia Pediátrica de crianças mais velhas e adolescentes. Este facto deve-se, em parte, à divulgação mediática da morte de desportistas jovens em pleno esforço e ao receio por parte dos pais de a dor poder corresponder a uma doença cardíaca grave, potencialmente letal.

Na maioria das situações trata-se da chamada “dor torácica benigna do adolescente”. É mais frequente entre as idades de 8 e 16 anos. A dor ocorre em repouso, é aguda, cortante ou do tipo picada e, raramente, do tipo opressão ou aperto. Dura breves instantes durante os quais algumas crianças sentem “o coração bater”. Ocasionalmente, pode ser de grande intensidade provocando choro, aparecendo e desaparecendo subitamente. A observação e os resultados dos exames complementares são completamente normais. Deve assegurar-se à família a ausência de patologia e alertar para a possibilidade de a dor poder repetir-se.

A dor torácica neste grupo etário é frequentemente de origem músculo-esquelética. A observação clínica deve ser cuidadosa e, além do estado da pele, há que analisar as costelas e as articulações condrocostais. A osteocondrite das articulações condrocostais e condroesternais é frequente em adolescentes; decorre sem edema, localiza-se entre a 2ª e a 5ª articulação e é autolimitada.

A síndroma de Tietze, mais rara, decorre com inflamação não supurada e edema das articulações cartilagíneas das costelas. Pode ser recidivante e necessitar de analgésicos e anti-inflamatórios.

Outra causa rara de dor torácica é a mialgia ou pleurodínia, localizada na região abdominal superior ou intercostal. A causa é vírica e ocorre em geral associada a síndroma gripal. A dor é intensificada pela respiração, tosse e movimentos do tórax; é autolimitada. A glândula mamária pode também ser responsável por dor torácica, em particular em jovens no início da menarca, durante as menstruações ou durante a gravidez.

Das causas pulmonares salienta-se a asma. Nesta situação, a dor pode ser causada pelo esforço muscular associado à dispneia e à tosse, ou pode ser devida à ansiedade. A inflamação da pleura pode causar dor torácica que ocorre durante a inspiração e se acompanha de atritos pleurais detetados por auscultação.

Das causas gastrintestinais, salienta-se o refluxo gastro-esofágico que muitas vezes se associa à asma.

Outra causa é a dor psicogénica, cada vez mais frequente em crianças e adolescentes sujeitos a vários tipos de tensão emocional.

Queixas ou sinais inespecíficos

Há muitos motivos inespecíficos que podem levar os pais a suspeitar de doença cardíaca e a insistir junto do médico assistente na necessidade do esclarecimento da mesma.

  1. Cansaço – é uma das queixas mais frequentes. O cansaço pode ter múltiplas causas não cardíacas: psicológicas (carência afectiva, imitação de familiares idosos ou doentes com quem coabitam), ou orgânicas (obesidade, falta de treino físico, asma, alterações ortopédicas).
  2. Perdas de conhecimento acompanhadas ou não de convulsões – são situações alarmantes que podem ter diversas causas. A causa cardíaca é rara; por isso, estas crianças devem sempre ser investigadas neurologicamente antes de serem enviadas à Cardiologia Pediátrica.
  3. Espasmo do soluço – é muitas vezes motivo de referência à consulta de Cardiologia Pediátrica. Geralmente trata-se duma doença benigna que cursa sem complicações e cede espontaneamente com o crescimento; no entanto pode por vezes causar pausas dos batimentos cardíacos, de tal forma acentuadas que podem condicionar perda de conhecimento.
  4. Alterações benignas do ritmo cardíaco – são muitas vezes mal interpretadas. Ao avaliar o ritmo e a frequência cardíaca da criança é necessário ter em consideração as condições em que se efectua o exame, excluindo febre, choro ou agitação. É frequente o envio por arritmia respiratória ou fisiológica detectada no electrocardiograma, e que é normal na criança.
  5. Valores elevados de TASO – valores elevados de antiestreptolisinas O apenas indicam a existência prévia de infecção por estreptococos; e, na ausência de sinais ou sintomas cardiovasculares, valores elevados de TASO não são sinónimos de doença cardíaca nem de febre reumática.
  6. Pseudocardiomegália detectada na radiografia do tórax – deve-se em geral a sobreposição de imagem do timo com a silhueta cardíaca ou a deficiente técnica de execução (em expiração ou em posição ântero-posterior).

Os sinais e sintomas inespecíficos, quando mal esclarecidos, levantam suspeita de doença cardíaca. Para a sua diferenciação é fundamental conhecer os limites dos valores normais na criança e ter em consideração que a doença cardíaca na criança apresenta sinais e sintomas bem definidos que podem ser avaliados e identificados através duma observação cuidadosa.

Nalguns centros, como complemento da observação clínica, para o rastreio de defeitos cardíacos no RN, tem sido utilizada a técnica de oximetria transcutânea para avaliação da saturação em oxigénio da hemoglobina (SaO2).

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