Introdução

Apesar de suplantado ao longo dos anos pelos novos métodos de imagem, a electrocardiografia (ECG) mantém-se uma das pedras basilares da avaliação dos doentes com suspeita de doença cardíaca, propiciando, ainda hoje, dados impossíveis de obter com qualquer outro método de diagnóstico actualmente disponível.

Em idade pediátrica o traçado electrocardiográfico apresenta algumas particularidades, reflexo de aspectos anatómicos e fisiológicos; tais particularidades devem ser conhecidas, sob pena de se sub ou sobrevalorizar os achados encontrados. Pretende-se, com este capítulo, abordar de uma forma sistematizada os aspectos mais relevantes do ECG em tal período da vida.

Anatomofisiologia fundamental

Condução do estímulo eléctrico normal

A capacidade de produzir fenómenos eléctricos é uma propriedade dos seres vivos. As células cardíacas têm as seguintes propriedades: 1- automaticidade (capacidade para iniciar um impulso eléctrico); 2- excitabilidade (capacidade para responder a um impulso ou a um estímulo eléctrico; 3- contractilidade (capacidade para responder ao impulso).

Importará reter a noção muito básica segundo a qual se estabelecem correntes eléctricas sempre que o protoplasma passa do estado de repouso à actividade; é o que acontece, por exemplo, a um músculo em contracção, em que a parte excitada se comporta como de carga negativa em relação à inactiva. Para esquematizar de modo muito simples, pode dizer-se que numa célula em repouso se encontram no exterior da respectiva membrana uma série de cargas positivas e, no interior, uma série de cargas negativas. Neste estado falamos de membrana polarizada.

 Se, usando um estímulo eficaz, activarmos a célula, verifica-se uma alteração da membrana no sentido de se tornar permeável aos aniões e aos catiões. Como consequência, os aniões passam para o exterior da célula e, em contacto com as cargas positivas, surge um processo de neutralização das cargas, isto é, o potencial eléctrico é o mesmo dos dois lados da membrana; dizemos que a membrana está despolarizada.

Quando se dá a regressão ao estado de repouso, a membrana volta lentamente a ser só permeável aos catiões e regressa, (recupera, passa) ao estado primitivo de polarização. Dá-se, portanto, a repolarização da membrana.

Depois de uma célula ser despolarizada, a mesma não consegue despolarizar-se novamente até passar um determinado tempo de recuperação fixo, o período refractário. As células que têm a capacidade de se despolarizar são excitáveis, e as que não o fazem são refractárias.

O conhecimento do modo como o impulso eléctrico cardíaco é iniciado e segue determinado trajecto é fundamental para a correcta interpretação do electrocardiograma pediátrico. Assim, importa recordar que existem estruturas cardíacas especializadas que formam o sistema de condução cardíaca: nódulo sinusal (ou sinoauricular, ou de Keith-Flack, localizado na parte alta da aurícula direita), nódulo auriculoventricular (A-V), o feixe de His com os seus ramos direito e esquerdo, e o sistema Purkinje, formando estes dois últimos o sistema His-Purkinje.

Os impulsos eléctricos partem do nódulo sinusal e propagam-se ao nódulo A-V e ao sistema His-Purkinje, até ser atingido o miocárdio ventricular direito e esquerdo. Finalmente, as frentes de onda de despolarização espalham-se, através da parede ventricular, do endocárdio ao epicárdio, dando início à contracção (despolarização de aurículas e ventrículos) ou sístole auricular e ventricular.

Antes de receber outro impulso, o coração recupera: estado com as aurículas e ventrículos relaxados (diástole ou período de recuperação ou repolarização miocárdica).

Se um estímulo eléctrico cair antes de terminar o período de repolarização, poderão ocorrer ritmos repetitivos anómalos como que resposta análoga a reacção em cadeia.

Importa referir que o nódulo sinusal, o nódulo A-V e, em circunstâncias anormais, outras regiões do coração podem descarregar ou gerar impulsos espontaneamente; contudo, a frequência da descarga ou de impulsos gerados pelo nódulo sinusal é, normalmente, mais elevada, e a despolarização gerada por este mesmo propaga-se a outras regiões, antes que estas últimas descarreguem impulsos.

Isto é, o nódulo sinusal é, portanto, o monitor ou pacemaker ou marca passo cardíaco normal e a sua frequência de descarga determina a frequência dos batimentos do coração.

Quando o marca-passo está fora do nódulo sinusal, diz-se que o estímulo provém de um marca-passo ectópico. A sede do centro ectópico ventricular pode encontrar-se no feixe de His, nos seus ramos, na rede de Purkinje, ou no próprio miocárdio ventricular.

Todo este processo conta com a regulação através do sistema nervoso autónomo e das catecolaminas circulantes, o que permite o controlo da frequência cardíaca. (ver Glossário)

A despolarização e a repolarização miocárdicas determinam deflexões ou ondas no ECG. Qualquer actividade eléctrica anormal dá origem às chamadas arritmias ou disritmias. Este tópico é abordado noutro capítulo.

As derivações

À medida que o impulso eléctrico cardíaco se propaga através do coração, as correntes eléctricas espalham-se pelos tecidos que o circundam e uma pequena proporção propaga-se até à superfície do corpo. Ao colocar eléctrodos sobre a pele, em lados opostos do coração, os potenciais eléctricos gerados por estas correntes podem ser registados, o que nos permite obter uma representação tridimensional da actividade eléctrica cardíaca. Classicamente utilizam-se 12 derivações; em pediatria acrescentam-se, três derivações pré-cordiais adicionais (V3R, V4R e V7), para melhor avaliação das forças ventriculares direitas. As derivações utilizadas podem ser agrupadas em dois planos: plano frontal (derivações clássicas – I, II, III, aVR, aVL e aVF) e plano transverso (derivações pré-cordiais – V4R a V7). Os eléctrodos são colocados na seguinte sequência: aVR: punho direito; aVL: punho esquerdo; aVF: maléolo esquerdo; V1: 4º espaço intercostal (EIC) direito, bordo externo; V2: 4º EIC esquerdo, bordo externo; V3: entre V2 e V4; V4: 5º EIC esquerdo, linha médio-clavicular; V5: 5º EIC esquerdo, linha axilar anterior; V6: 5º EIC esquerdo, linha médio-axilar; V3R e V4R: “espelho” de V3 e V4. (Figura 1)

FIGURA 1. Derivações electrocardiográficas

FIGURA 2. Calibração do electrocardiograma.
(Adaptado de Human Physiology: An Integrated Approach (7th Edition), Dee Unglaub Silverthorn, Pearson; January 9, 2015).

Calibração

O registo de ECG de superfície é efectuado em papel milimétrico a uma velocidade habitual de 25 mm/segundo (1 mm = 1quadrado pequeno = 0,04 s; 1 quadrado grande = 0,2 s: 5 quadrados grandes = 1 s) e a uma amplitude de 10 mm/milivolts (mV) (1 mm = 1 quadrado pequeno = 0,1 mVolt; 2 quadrados grandes = 1mVolt. (Figura 2)

Registo e leitura do ECG

A obtenção de um traçado de ECG na idade infantil nem sempre se revela fácil. Trata-se de um exame que exige calma, alguma paciência, o apoio dos pais e, por vezes, sedação. Os eléctrodos dos membros podem ser colocados mais proximais de modo a reduzir os artefactos de movimento. As medições do ECG, particularmente no recém-nascido (RN), devem ser efectuadas manualmente. É necessário ter em conta que nos electrocardiógrafos que dispõem de leitura automática, esta não está adaptada para interpretação em idade pediátrica.

Interpretação do ECG

A leitura de um traçado de ECG deve ser realizada de uma forma sistematizada e metódica. No Quadro 1 estão apresentados os valores de referência habitualmente usados na pediatria. Na interpretação dos achados ECG deve ser tido em conta que o registo electrocardiográfico normal tem variações desde o nascimento até ao início da idade adulta, reflectindo modificações da fisiologia circulatória e da anatomia cardíaca. De um modo geral, após o nascimento, o ECG traduz a diminuição das “forças direitas” [aurícula e ventrículo direito (AD e VD)] em detrimento das “forças esquerdas” [aurícula e ventrículo esquerdo (AE e VE)] e aumento nos intervalos de condução.

QUADRO 1. Valores electrocardiográficos de referência*

*(Adaptado de PR Rijnbeek, M Witsenburg,E Schrama,J Hess,J.A Kors. New normal limits for the paediatric electrocardiogram. European Heart , 2001).

 0-1 meses1-3 meses3-6 meses6-12 meses1-3 anos3-5 anos5-8 anos8-12 anos12-16 anos
FC (bpm)160 (129, 192)
155 (136, 216)
152 (126, 187)
154 (126, 200)
134 (112, 165)
139 (122, 191)
128 (106, 194)
134 (106, 187)
119 (97, 55)
128 (95, 178)
98 (73, 123)
101 (78, 124)
88 (62, 113)
89 (68, 155)
78 (55, 101)
80 (58, 110)
73 (48, 99)
76 (54, 107)
Eixo onda P (°) (ms)56 (13, 99)
52 ( 24, 80)
52 (10, 73)
48 (20, 77)
49 (-5, 70)
51 (16, 80)
49 (9, 87)
50 (14, 69)
48 (-12, 78)
47 (1, 90)
43 (-13, 69)
44(-6, 90)
41 (-54, 72)
42 (-13, 77)
39 (-17, 76)
42 (-15, 82)
40 (-24, 76)
45 (-18, 77)
Duração P (ms)78 (64, 85)
79 (69, 106)
79 (65, 98)
78 (62, 105)
81 (64, 103)
78 (63, 106)
80 (66, 96)
80 (64, 07)
80 (63, 113)
83 (62, 104)
87 (67, 102)
84 (66, 101)
92 (73, 108)
89 (71, 107)
98 (78, 117)
94 (75, 114)
100 (82, 118)
98 (72, 122)
Intervalo PR (ms)99 (77, 120)
101 (91, 121)
98 (85, 120)
99 (78, 133)
106 (87, 134)
106 (84, 127)
114 (82, 141)
109 (88, 133)
118 (86, 151)
113 (78, 147)
121 (98, 152)
123 (99, 153)
129 (99, 160)
124 (92, 156)
134 (105, 174)
129 (102, 163)
139 (107, 178)
135 (106, 76)
Eixo QRS (°)97 (75, 140)
110 (63, 155)
87 (37, 138)
80 (39, 121)
66 (-6, 107)
70 (17, 108)
68 (14, 122)
67 (1, 102)
64 (-4, 118)
69 (2, 121)
70 (7, 112)
69 (3, 106)
70 (-10, 112)
74 (27, 117)
70 (-21, 114)
66 (5, 117)
65 (-9, 112)
66 (5, 101)
Duração QRS (ms)67 (50, 85)
67 (54, 79)
64 (52, 77)
63 (48, 77)
66 (54, 85)
64 (50, 78)
69 (52, 86)
64 (52, 80)
71 (54, 88)
68 (54, 85)
75 (58, 92)
71 (58, 88)
80 (63, 98)
77 (59, 95)
85 (67, 103)
82 (66, 99)
91 (78, 111)
87 (72, 106)
Intervalo QT (ms)413 (378, 448)
420 (379, 462)
419 (396, 458)
424 (381, 454)
422 (391, 453)
418 (386, 448)
411 (379, 449)
414 (381, 446)
412 (385, 455)
417 (381, 446)
412 (377, 448)
415 (388, 442)
411 (371, 443)
409 (375, 449)
411 (373, 440)
410 (365, 447)
407 (363, 449)
414 (370, 457)
  1. Ritmo cardíaco: em qualquer idade, o ritmo cardíaco normal é o sinusal, isto é, uma onda P sinusal (ver infra) a preceder cada complexo QRS. A regularidade do ritmo avalia-se através do intervalo RR. A arritmia mais frequente na idade pediátrica é a “arritmia sinusal, respiratória ou fisiológica”, fenómeno caracterizado pela variação cíclica da frequência cardíaca com o ciclo respiratório, modulado pelo vago, com diminuição da FC com a expiração e aumento da FC com a inspiração. Este fenómeno é normal nesta faixa etária, sem significado patológico.
  2. Frequência cardíaca (FC): a FC varia com a idade, temperatura, tónus do sistema nervoso autónomo e actividade física. Após o primeiro ano de vida a FC tem tendência a diminuir lentamente, aspecto associado à maturação da inervação vagal do nódulo sinusal. Existem várias formas para calcular a FC no ECG. De entre estas a mais usada é: FC=300 / nº de unidades de 0,2 s (quadrados grandes) entre 2 complexos QRS (R-R).
  3. Onda P: a onda P reflecte a despolarização auricular e é normalmente avaliada em DII. Em ritmo sinusal, o vector da onda P deve ser orientado de cima para baixo e da direita para a esquerda, reflectindo a progressão da despolarização desde o nódulo sinusal para as aurículas, direita e esquerda. O eixo eléctrico da onda P está, consequentemente, compreendido entre os 0º e + 90ºC. A onda P sinusal é positiva em DI, DII e aVF; negativa em aVR e geralmente bifásica em V1. A onda P normal tem uma altura e um comprimento máximo de 2,5 mm e 110 milissegundos (ms) respectivamente, não sofrendo variações significativas com a idade.
  4. Complexo QRS: o complexo QRS reflecte a despolarização ventricular; corresponde à sístole ventricular e tanto o seu eixo como a morfologia variam com a idade. O eixo eléctrico do QRS descreve a orientação média do vector QRS em relação ao plano frontal e os valores de referência variam com a idade. De uma forma simplificada o seu método de cálculo consiste em dividir o plano frontal em quatro quadrantes utilizando as derivações DI e aVF. Como as derivações são ortogonais, pode-se estimar a direcção e a amplitude do vector.
  5. Eixo do QRS: as características da circulação fetal condicionam no recém-nascido uma hipertrofia ventricular direita relativa, com um eixo do QRS no plano frontal habitualmente entre +110 a +180º (“desvio direito do eixo”). Habitualmente, após o primeiro mês de vida e ao longo dos primeiros anos de vida, em relação com a regressão das forças ventriculares direitas, verifica-se uma alteração relativamente rápida do eixo com desvio para a esquerda. (Quadro 2)

Quadro 2 – Determinação do eixo eléctrico do QRS*

*(Adaptado de: Park MK, Guntheroth WG: How to Read Pediatric ECGs, Philadelphia, Mosby, 2006)

Eixo do QRSDerivação IDerivação aVF 
0º-  +90º
0º-  -90º
+90º-  ±180º
-90º-  ±180º
  1. Componentes do complexo QRS: o complexo QRS é formado por 3 ondas distintas. A primeira deflexão negativa corresponde à onda Q (despolarização do septo interventricular), a primeira deflexão positiva corresponde à onda R (depolarização do ápex) e a segunda deflexão negativa corresponde à onda S (despolarização das paredes ventriculares).
    • Ondas R e S: no período neonatal, as derivações pré-cordiais direitas (V3R,V4R,V1) apresentam uma onda positiva (R) maior do que a negativa (S), enquanto as derivações esquerdas (V5, V6) demonstram uma relação R/S inferior a um. Uma onda R dominante em V6 torna-se aparente ao fim de alguns dias de vida, reflectindo a rápida progressão das forças ventriculares esquerdas. Com a idade, há tendência para a amplitude da onda R diminuir nas derivações direitas, e aumentar nas esquerdas. No entanto, pode haver persistência, da relação R/S superior a um em V1 até aos primeiros anos da adolescência (“padrão juvenil”). Ondas r secundárias (r’ ou R’) são igualmente frequentes nestas faixas etárias, originando a uma morfologia de padrão de bloqueio de ramo direito, sem significado patológico.
    • Onda Q: a onda Q nas derivações pré-cordiais esquerdas reflecte a despolarização septal que habitualmente ocorre da esquerda para a direita. As ondas Q são frequentes no ECG pediátrico, aspecto por vezes valorizado como patológico; no entanto, são poucas as situações em que a sua presença tem significado clínico. Os valores normais da onda Q variam com a derivação e com a idade. Na maioria das derivações com onda Q – derivações esquerdas (DI, DII, DIII, aVF, V5 e V6) há tendência a esta duplicar de amplitude nos primeiros meses de vida, atingindo um máximo (≤ 0,5 mV) entre os três a cinco anos, com posterior diminuição (< 0,3 mV).
  2. Duração do QRS: a duração do QRS está relacionada com a normal sequência de activação e interacção dos ramos do feixe de His e fibras de Purkinje. Permanecendo relativamente estável até aos 3 anos de vida, posteriormente aumenta de forma linear até à adolescência – o que está relacionado com o aumento da massa muscular. Para a sua avaliação é mais indicado seleccionar uma derivação com onda Q (V5, V6). Valores superiores aos indicados no Quadro 1 podem ser sugestivos de bloqueio de ramo.
  3. Amplitude do QRS: a amplitude do QRS mede de forma quantitativa a massa ventricular e varia com a idade. Alterações da amplitude do QRS podem ser sugestivas de algumas patologias. Baixa voltagem do QRS (amplitude R+S < 0,5 mV) é sugestiva de miocardite ou miopatia.
  4. Onda T: a onda T indica-nos a repolarização ventricular, processo electricamente oposto da despolarização (i.e., do epi para o endocárdio), pelo que o vector médio da onda T deve ter a mesma orientação que o QRS.
    • Progressão da onda T com a idade: ao nascimento são normais ondas T positivas nas derivações pré-cordiais direitas (V3R, V4R, V1); posteriormente ficam negativas, geralmente nas primeiras 48 horas de vida. Ondas T positivas persistentes após a primeira semana de vida em V3R, V4R ou V1 são um achado anormal, podendo sugerir hipertrofia VD. Após a primeira semana de vida, e geralmente prolongando-se até à adolescência, a onda T em V1 é negativa. A onda T em V1 não deverá ser positiva antes dos seis anos de idade, constituindo esta uma das mais importantes diferenças entre o ECG pediátrico e de adulto. Em todas as idades as ondas T devem ser positivas em V5 e V6.
    • Amplitude das ondas T: a onda T deve ter uma amplitude superior ou igual a 2 mm e inferior ou igual a 7 mm (nas derivações frontais) ou a 10 mm (nas derivações pré-cordiais), em qualquer idade. As alterações mais frequentes na onda T reflectem alterações funcionais e não traduzem patologia cardíaca. Exemplos disso são a inversão das ondas T numa derivação após período de hiperventilação, ou ainda o padrão de “repolarização precoce” frequente nos adolescentes com elevação do ponto J (ponto onde termina onda R) (< 4 mm) e ondas T altas.
  5. Onda U: a onda U representando a repolarização do sistema His-Purkinje, nem sempre é visível no ECG. Apresenta o mesmo eixo que a onda T mas de menor amplitude que esta (nunca deve ser superior a 50% da amplitude da onda T). Pode estar aumentada na hipocaliemia, com o uso de antiarrítmicos e na síndroma do QT longo.
  6. Intervalo PR: corresponde ao tempo necessário para a despolarização das aurículas e propagação do estímulo eléctrico desde o nódulo sinusal até ao nódulo aurículo-ventricular. Deve ser medido em DII, desde o início da onda P até ao início do QRS. O intervalo PR aumenta com a idade e diminui com a estimulação do sistema nervoso simpático. Um intervalo PR acima do limite superior para o grupo etário indica bloqueio aurículo-ventricular (BAV) de 1º grau; pode contudo ser secundário a hipercaliemia ou a efeito digitálico. Um intervalo PR abaixo do limite inferior para o grupo etário pode ser sugestivo de pré-excitação ventricular ou ocorrer no contexto de doença de Fabry ou doença de Pompe.
  7. Intervalo QT: corresponde ao período de tempo desde o início da despolarização ventricular até ao final da repolarização ventricular, reflectindo principalmente esta última. A sua avaliação é habitualmente efectuada em DII e/ou V5-V6; devem ser realizadas pelo menos três medições em três ciclos cardíacos diferentes, usando o maior valor obtido. O intervalo QT varia inversamente com a FC, pelo que deve ser corrigido para a FC (QT corrigido) mediante a fórmula de Bazett: QTc (ms) = QT(ms)/√R-R precedente(ms) , cujo valor deve ser inferior a 450 mseg e superior a 330 mseg. Esta avaliação pode não ser muito correcta se a FC for muito rápida ou muito lenta ou se houver alterações no intervalo RR. Intervalos QTc curtos podem ser secundários a hipercalcemia e efeito digitálico, comportando risco aumentado de morte súbita. Intervalos QTc longos podem sem secundários a hipocalcemia, miocardite, síndroma de QT longo, enfarte do miocárdio, toxicidade de fármacos (macrólidos, procinéticos, outros fármacos – consultar www.crediblemeds.org), ou a lesão do sistema nervoso central. Indivíduos com QTc prolongado estão em risco de arritmias potencialmente fatais, pelo que é essencial a sua correcta identificação, particularmente em doentes com história familiar de morte súbita ou com surdez neuro-sensorial.
  8. Segmento ST: o segmento ST é o segmento compreendido entre o início da onda S e o final da onda T, sendo habitualmente isoeléctrico. Desvios até 1 mm nas derivações frontais ou 2 mm nas pré-cordiais podem não ser patológicos durante o primeiro ano de vida. Não deve estar infradesnivelado mais de 0,5 mm em qualquer derivação. Uma ligeira elevação do ST pode ocorrer na síndroma de repolarização precoce. As alterações do segmento ST devem ser valorizadas com base na clínica do doente. Elevação do segmento ST ocorre no contexto de pericardite (a causa mais frequente), hipercaliemia, hemorragia intracraniana, pneumotórax, pneumopericárdio, enfarte agudo do miocárdio (por alterações anatómicas das coronárias). O infradesnivelamento do segmento ST pode ser secundário a hipocaliemia e o seu prolongamento ou encurtamento a alterações da cinética do cálcio.

Alterações sugestivas de isquémia do miocárdio

A dor torácica é uma das queixas mais frequentes em crianças e adolescentes, que motivam recurso ao serviço de urgência. Sendo um sintoma preocupante, é geralmente benigno, sendo a causa cardíaca muito rara. Destas, destaca-se a pericardite como a principal etiologia, salientando-se que a dor, nesta circunstância, é típica, e os achados laboratoriais e electrocardiográficos são também típicos.

A principal preocupação neste grupo de doentes relaciona-se com a presença potencial de isquémia do miocárdio. Situação de grande raridade na criança, surge apenas associada a cardiopatias congénitas muito raras, como a origem anómala da artéria coronária esquerda a partir da artéria pulmonar, a cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva e outras anomalias coronárias congénitas, também pouco frequentes. A doença de Kawasaki com complicações cardíacas e aneurismas coronários pode na fase aguda, subaguda ou crónica condicionar má perfusão miocárdica e isquémia. O diagnóstico destas situações depende do quadro clínico típico de cada patologia referida, seja a insuficiência cardíaca, a presença de sopro ou síncope e os achados típicos da doença de Kawasaki. Do ponto de vista electrocardiográfico, nestas situações específicas, os achados são idênticos aos encontrados nos adultos com isquémia, ou seja presença de ondas “q” patológicas (> 5 mm), e supradesnivelamento do ST na fase aguda ou infradesnivelamento do ST e inversão das ondas T, em lesões mais difusas.

São contraindicação para administração da adenosina a existência de doença do nódulo sinusal, distúrbios da condução AV e doentes com broncorreactividade grave. A adenosina tem uma semivida muito curta, induzindo bloqueio AV; assim, a falta de resposta à sua administração pode dever-se a: – dose inadequada; – administração lenta ou numa via demasiado distal ao coração (por exemplo, nos membros inferiores), ou; – ao facto de a situação de taquicardia não ser dependente da condução AV. Na presença de uma administração adequada, a não conversão a ritmo sinusal pode permitir fazer o diagnóstico da taquicardia com origem auricular. 

GLOSSÁRIO

Despolarização > Diminuição da polarização (da diferença de potencial) e inversão momentânea das cargas eléctricas entre dois pontos de um tecido vivo ou entre as faces interna e externa de uma membrana celular. Os fenómenos de despolarização-repolarização intervêm na propagação do influxo nervoso e na contracção muscular. A despolarização dum nervo corresponde à passagem dum influxo nervoso; a despolarização duma fibra muscular corresponde à sua contracção. Num ECG, a onda QRS corresponde à despolarização dos ventrículos.

Repolarização > Retorno de fibras musculares ao seu potencial de repouso. A reposição das fibras musculares tem lugar no momento em que se interrompe a excitação. A onda T do ECG marca o fim da reposição dos ventrículos.

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