Importância do problema
A Cardiologia Fetal é uma valência da Cardiologia Pediátrica que se dedica ao estudo e tratamento das perturbações cardíacas e circulatórias no feto. Emprega-se o termo “Perinatal” quando os cuidados se estendem ao período neonatal.
A ecocardiografia fetal é uma das técnicas que permite estudar a morfologia e a fisiologia cardíaca no feto. Pode ser efectuada por via intravaginal no primeiro trimestre (12ª – 13ª semanas) de gestação, ou por ecocardiografia transabdominal no segundo e terceiro trimestres. A idade gestacional ideal para a ecocardiografia fetal compreende o período entre as 17 e as 20 semanas. (ver Parte XXXI)
A Cardiologia Perinatal requer uma estreita relação com obstetras e perinatologistas no período fetal; e, no período neonatal, com neonatologistas, cirurgiões cardíacos e anestesistas. Esta relação multidisciplinar permite o diagnóstico precoce de patologia cardíaca, o seu tratamento quando indicado, e o planeamento das melhores condições possíveis para o parto e cuidados perinatais.
A eficácia dos cuidados terciários de saúde só tem tradução se forem bem articulados com cuidados primários de qualidade. A equipa de cuidados primários deve conhecer bem a história obstétrica e gestacional e as indicações para efectuar rastreio pré-natal de uma anomalia cardíaca no feto, através da ecocardiografia fetal. Para tal é fundamental:
- identificar as famílias em risco de ter filhos com cardiopatia congénita – se a mãe, o pai ou irmãos do feto forem portadores de cardiopatia congénita, o risco aumenta em relação à população em geral, variando com grau de parentesco, sexo e tipo de A presença de síndroma polimalformativa familiar também aumenta o risco de cardiopatia no feto;
- identificar riscos ambientais potencialmente teratogénicos, quer sejam infecciosos, medicamentosos, tóxicos, químicos ou outros. As doenças maternas também devem ser identificadas, em particular, diabetes pré-concepcional, doenças do colagénio, fenilcetonúria e hipotiroidismo;
- identificar riscos inerentes ao próprio feto, tais como restrição de crescimento intrauterino, ascite ou anasarca fetais, que podem associar-se a patologia cardíaca. Este grupo requer, além da avaliação clínica, uma ecografia obstétrica correctamente executada e interpretada.
Ainda que cerca de metade das gravidezes de crianças com cardiopatia tenham riscos identificáveis, só cerca de um terço das grávidas é referenciado para rastreio. Esta circunstância explica que a grande maioria das crianças com cardiopatia nasça sem diagnóstico pré-natal. Por outro lado, actualmente, quase todas as gravidezes são vigiadas e submetidas a várias ecografias, mas a grande maioria das cardiopatias graves não é identificada (apenas cerca de 25 a 30% dos recém-nascidos com cardiopatia têm diagnóstico pré-natal).
O número de grávidas que são referenciadas para ecocardiograma fetal tem vindo a aumentar, sendo a dificuldade técnica no estudo cardíaco, o principal motivo de referência. Este facto denota o elevado grau de preocupação e de exigência por parte dos obstetras ecografistas que não se limitam a observar as imagens no plano das quatro câmaras, mas também a saída dos ventrículos e as grandes artérias. No plano das quatro câmaras identificam-se cardiopatias que cursam com desequilíbrio das cavidades ventriculares como coração univentricular, coração esquerdo ou direito hipoplásicos, e defeitos do septo aurículo-ventricular. No plano de saída ventricular e grandes artérias identificam-se cardiopatias com anomalias morfológicas da região de saída como tetralogia de Fallot e transposição das grandes artérias.
Uma vez identificada uma anomalia cardíaca no feto, a grávida deve ser orientada para uma consulta de alto risco obstétrico. Aí será feito acompanhamento adequado e serão realizadas ecografias morfológicas minuciosas para rastreio de outras anomalias. Idealmente cada caso deverá ser discutido em reuniões conjuntas de diagnóstico pré-natal, onde serão programadas, com os obstetras, neonatologistas, cirurgiões cardíacos e cardiologistas pediátricos as atitudes periparto mais adequadas. Pode estar indicada a realização de cariótipo fetal, através de amniocentese, muitas vezes orientado pelo tipo de cardiopatia, com a finalidade de identificar alterações cromossómicas associadas, com implicações na evolução da doença. Por exemplo, nas cardiopatias do tipo conotruncal (tetralogia de Fallot, truncus arteriosus, transposição das grandes artérias) é importante realizar no feto um estudo cromossómico com hibridação in situ (FISH) da região crítica 22q11.2, para o rastreio da síndroma de DiGeorge; esta situação que pode cursar com anomalia do desenvolvimento, hipocalcémia neonatal grave e maior susceptibilidade para infecções.
Assim que é feito o diagnóstico de um defeito cardíaco fetal é importante esclarecer e acalmar os pais, de preferência no centro de cardiologia pediátrica onde a criança irá ser seguida e tratada. Os cardiologistas pediátricos e os cirurgiões cardíacos deverão explicar aos pais, de modo personalizado, a cardiopatia e os resultados dos tratamentos propostos. A opção de prosseguir ou não com a gravidez é sempre do casal, sabendo-se que se trata de decisão delicada e difícil.
Em caso de interrupção de gestação ou de morte fetal será efectuado estudo anátomo-patológico fetal com a finalidade de confirmar o diagnóstico e promover o aconselhamento genético tendo em perspectiva futuras gestações.
Indicações para ecocardiograma fetal
Existem orientações nacionais, promovidas pela Direcção Geral da Saúde relativamente às principais indicações para efectuar ecocardiograma fetal que, resumidamente, são:
- Causa familiar
- História familiar de cardiopatia congénita;
- Síndromas familiares associadas a patologia cardíaca.
- Causa ambiental
- Doença materna;
- Diabetes, fenilcetonúria;
- Doença do colagénio com AC Ro/SSA e/ou La/SSB positivos;
- Medicação;
- Infecção materna.
- Causa fetal
- Dificuldades técnicas no estudo do coração fetal;
- Suspeita de cardiopatia na ecografia obstétrica;
- Patologia dos fluidos/derrames fetais
- Hidropisia fetal; hidrotórax; derrame pericárdico e pleural; poli-hidrâmnios
- Anomalias fetais extracardíacas
- Onfalocele; hérnia diafragmática; atrésia esófago/duodenal; fístula tráqueo-esofágica; higroma quístico; alterações esqueléticas; anomalias renais; artéria umbilical única; restrição do crescimento intrauterino
- Anomalias cromossómicas, confirmadas ou suspeitadas;
- Translucência da nuca aumentada;
- Arritmias;
- Outras causas: tumor muito vascularizado, fístula arteriovenosa, gémeo acardíaco;
- Transfusão feto-fetal, anemia, ausência de ductus venosus.
Tratamento in utero
Existem várias patologias fetais que requerem tratamento in utero.
As arritmias fetais, embora raras podem ter consequências graves, mesmo fatais para o feto sendo, por isso, necessário o seu tratamento e acompanhamento frequente.
Podem ocorrer ritmos rápidos; a taquicardia supraventricular é a mais frequente, logo seguida pelo flutter auricular. O tratamento é feito por via transplacentar, com antiarrítimos administrados à mãe. Existem vários protocolos em que se começa com digoxina administrada por via intravenosa, seguida, se necessário, por flecainida ou sotalol. Como recurso em casos refractários pode ainda utilizar-se a amiodarona. A grande maioria destes bebés não tem cardiopatia, mas alguns têm síndroma de Wolff-Parkinson-White. Depois do parto, deve ser mantida terapêutica com digitálicos durante os primeiros 6 a 12 meses, mesmo nos casos assintomáticos.
As bradiarritmias fetais estão muitas vezes associadas a colagenoses maternas mediadas imunologicamente. Têm indicação terapêutica, em particular se se demonstrar repercussão fetal com insuficiência cardíaca, esta última dependendo da etiologia. Em geral utilizam-se dexametasona, imunoglobulinas e, por vezes, fármacos simpaticomiméticos.
O cateterismo de intervenção fetal tem sido tentado em algumas cardiopatias congénitas, desde os anos 90, em particular nos obstáculos esquerdos graves. O procedimento consiste na introdução de um cateter de balão no ventrículo esquerdo e através da válvula aórtica por via transplacentária e transtorácica fetal, e na dilatação da válvula aórtica. Os resultados não têm tido o êxito desejado porque a técnica é complexa e requer grau elevado de treino. Actualmente este tratamento também pode ser aplicado aos obstáculos direitos, (nomeadamente no caso de estenose pulmonar crítica) e ao encerramento ou restrição do foramen ovale.
Tratamento do recém-nascido com cardiopatia
O tratamento no período neonatal corresponde à conclusão de todo um trabalho de acompanhamento pré-natal. Como paradigma de tal tipo de procedimento apontam-se as cardiopatias canal-dependentes, como é o caso da transposição completa das grandes artérias cujo diagnóstico pré-natal nem sempre é fácil.
Na maior parte dos casos surge cianose persistente nas primeiras horas de vida, obrigando a terapêutica imediata. Esta pode incluir administração de prostaglandinas E1 e transporte, de urgência, para um Serviço de Cardiologia Pediátrica. Dado que a administração de prostaglandina E1 pode provocar apneia como acção acessória importante, recomenda-se que o transporte seja realizado em viaturas com pessoal especializado e incubadoras com ventiladores como as do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). No Serviço de Cardiologia Pediátrica é, em geral, necessário realizar atriosseptostomia com cateter de balão – procedimento descrito por Rashkind e Miller como terapêutica de emergência para melhorar a saturação sistémica. A cirurgia de correcção anatómica (operação de Jatène ou switch arterial) realiza-se durante a primeira semana de vida, dependendo os resultados das condições pré-operatórias e de especificidades anatómicas, nomeadamente ao nível das artérias coronárias. O diagnóstico pré-natal permite a programação e agilização destes procedimentos, reduzindo o risco clínico e melhorando os resultados. Por outro lado, é fundamental o aconselhamento genético aos pais destas crianças tendo em perspectiva a programação de gravidezes futuras.
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