Nova nomenclatura e importância do problema
O conceito de insuficiência renal aguda (IRA) – entendido como a deterioração rápida da função renal com diminuição da taxa de filtração glomerular, consequente acumulação de produtos azotados e alteração da homeostase do organismo em 2/3 dos casos com diminuição da diurese – foi revisto em 2012 à luz da medicina baseada na evidência, considerando-se que deveria ser substituído por outro termo mais amplo – o de lesão renal aguda (LRA).
Assim, no conceito de LRA cabe a noção de disfunção renal como um processo contínuo desde a agressão inicial ao rim até à lesão deste em diversos estádios de gravidade, culminando com o desenvolvimento de doença renal crónica na idade adulta; neste contexto, foram elaboradas escalas de classificação com valor prognóstico, baseadas em determinados critérios, tais como: – redução do filtrado glomerular; – elevação da creatinina sérica; e – diminuição da diurese. (ver adiante)
De salientar que se torna fundamental a uniformização de critérios de diagnóstico e a detecção precoce da lesão enquanto não forem clinicamente validados melhores marcadores bioquímicos.
Aspectos epidemiológicos
Sendo difícil calcular a verdadeira incidência da LRA na idade pediátrica – a qual poderá ser subdiagnosticada pelo défice de consenso na sua definição em diversas séries, estimam-se os seguintes valores: 0,5-1% em crianças hospitalizadas, 2,5-5% em doentes em estado crítico, 23% em recém-nascidos (RN) e 40% em RN pré-termo.
A prevalência em RN internados em UCIN é estimada em 3-8%, variável conforme a definição usada e condicionada por factores de risco como muito baixo peso (18%), asfixia moderada (9%) a grave (56%), sépsis (22%) e pós-operatório de cardiopatia congénita (52%).
Senda a LRA um factor independente da mortalidade, aumenta contudo a probabilidade de lesão renal crónica, assim como a necessidade de tratamento substitutivo renal. A mortalidade é muito elevada: ~30%.
Etiopatogénese e classificação
Gobalmente, as causas mais frequentes de LRA em países desenvolvidos são a cirurgia associada a técnica extracorporal na correcção de cardiopatias congénitas, a sépsis e as doenças hemato-oncológicas.
No RN são mais habituais a hipóxia-isquémia perinatal, a sépsis e a acção de agentes nefrotóxicos. Uma vez que a nefrogénese decorre entre a 15ª e a 34-36ª semanas de gestação, e o desenvolvimento renal se prolonga no período pós-natal, torna-se compreensível a maior vulnerabilidade do RN pré-termo pela concomitante imaturidade funcional, a qual pode ser tipificada pela limitada capacidade de concentração urinária e de manutenção da autorregulação do fluxo sanguíneo renal em caso de alterações hemodinâmicas.
A agressão inicial, embora possa ter origem diversa e multifactorial, tem como ponto de partida a lesão isquémica do rico endotélio capilar renal com a consequente libertação de numerosos mediadores inflamatórios que expandem e perpetuam a cascata inflamatória e, assim, a isquémia renal.
Sob o ponto de vista etiopatogénico, a LRA classifica-se em três categorias: pré-renal, renal (intrínseca) e pós-renal (obstrutiva).
- Pré-renal
Os factores causais pré-renais, responsáveis por 85% dos casos, são todos aqueles que provocam hipoperfusão renal e diminuição do filtrado glomerular por hipovolémia ou diminuição do volume arterial efectivo.
A hipovolémia estimula a libertação de substâncias vasoactivas para normalização do volume intravascular e da pressão arterial garantindo as perfusões cardíaca e cerebral, embora à custa da diminuição da perfusão renal.
Ao nível do rim são postos em marcha mecanismos compensadores: libertação de prostaglandinas actuando como vasodilatadores intrarrenais, activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona que produz aumento da pressão hidrostática intraglomerular, e dilatação da arteríola aferente. A lesão renal inicial é funcional, mas se a noxa for intensa ou prolongada desencadeará LRA estrutural (renal/intrínseca). - Renal/Intrínseca
Esta causa de LRA, surgindo em cerca de 11% das situações, como resultado da isquémia inicial mantida, pode resultar também doutros tipos de noxas actuando directamente ao nível das diversas estruturas renais, vasculares, glomerulares, tubulares ou intersticiais. Na ausência ou défice de mecanismos renais compensadores perpetua-se a lesão celular traduzida de vários modos como necrose tubular aguda, necrose cortical ou, mais raramente, necrose papilar ou nefrite intersticial. Esta subdivisão é meramente académica usando a definição de LRA. - Pós-renal/Obstrutiva
Esta causa de LRA é em geral de origem urológica, relacionada com a obstrução mecânica, intrínseca ou extrínseca do tracto urinário, bilateral, ou unilateral em caso de rim solitário. A consequência é a interrupção do fluxo urinário, o que pode acontecer em cerca de 3% dos casos de LRA.
Os referidos factores etiológicos, incluindo os que actuam no RN, são sistematizados no Quadro 1.
QUADRO 1 – Principais factores etiológicos de LRA
Pré-renal |
|
Renal/Intrínseca |
|
Pós-renal ou Obstrutiva |
|
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas dependem da etiologia e do tipo de lesão renal. Salienta-se que não existe qualquer sintoma que oriente no sentido de desenvolvimento de LRA. Por vezes somente se verifica elevação da ureia ou creatinina séricas, o que poderá atrasar o diagnóstico.
No RN pode evidenciar-se por sinais clínicos frustres ou levar ao desenvolvimento de falência renal aguda com necessidade de terapêutica de substituição. Pode por vezes cursar com alterações analíticas diversas e graves como hipercaliémia, hiponatrémia, hiperfosfatémia, hipocalcémia e acidose metabólica. Apesar de a oligúria ser um achado frequente e relevante, a LRA pode cursar com um débito urinário normal ou poliúria.
Em qualquer idade são frequentes os sintomas derivados da sobrecarga de volume como no quadro de lesão renal oligúrica: edema, HTA, insuficiência cardíaca (fervores crepitantes nas bases pulmonares, turgescência das jugulares, hepatomegália, edema agudo pulmonar, edema periférico nomeadamente na face, pálpebras, lábios, dorso das mãos e pés, escroto/vulva), etc..
Nos quadros secundários a depleção do volume, em geral presentes desde o início da LRA de causa pré-renal, são notórios os sinais e sintomas de desidratação: mucosas secas, olhos encovados, fontanela deprimida, taquicardia, hipotensão e preenchimento capilar lento.
Outros achados podem ser: palpação de massa abdominal resultante de nefromegália no contexto de trombose dos vasos renais, ou verificação de globo vesical explicável por obstrução uretral, avaliação do jacto urinário.
O aparecimento de dismorfias, lesões cutâneas, sinais de artrite ou adenopatias pode levantar a suspeita de doença sistémica como vasculite ou lúpus.
Critérios de diagnóstico
1. Exames complementares
O diagnóstico de LRA deve basear-se na história clínica rigorosa (anamnese e exame objectivo) tentando identificar possíveis factores predisponentes e/ou causais e o grau de compromisso da função renal. Para tal será necessário proceder a um conjunto de exames complementares escolhidos de modo racional e fundamentado: genericamente, certas análises de sangue e urina e ecografia abdominal (ver adiante – Exames complementares). O diagnóstico precoce pode evitar a progressão para lesão renal irreversível.
A determinação da ureia e creatinina séricas juntamente com a avaliação da diurese continuam a ser genericamente os marcadores utilizados na prática clínica para valorizar o grau de lesão renal e o seu possível mecanismo desencadeante.
1.1 Creatinina sérica
A creatinina sérica continua a ser largamente utilizada como marcador da função renal na estimativa da avaliação taxa de filtração glomerular (TFG). Apresenta, contudo, algumas particularidades que a tornam oscilante no período de RN: aumento nos primeiros dias após o parto, seguido de uma diminuição, e ulterior estabilização na primeira semana de vida. Além disso, o seu aumento apenas é evidente 48-72 horas após o início da LRA e na presença de um atingimento significativo da função renal (perdas superiores a 25-50% da linha de base).
São inúmeras as variáveis que podem interferir no valor de creatinina sérica, nomeadamente:
- Idade gestacional e idade pós-natal (Quadro 2);
- Reabsorção e secreção de creatinina no epitélio tubular em grau
- variável;
- Influência da creatinina sérica materna (os níveis de creatinina são inicialmente um reflexo dos níveis maternos).
QUADRO 2 – Valores de creatinina sérica desde o nascimento
Idade gestacional | Creatinina sérica (mg/dL) |
23-26 semanas | 0,77 – 1,05 |
27-29 semanas | 0,76 – 1,02 |
30-32 semanas | 0,70 – 0,80 |
33-45 semanas | 0,77 – 0,90 |
0-4 anos | 0,03 – 0,50 |
4-7 anos | 0,03 – 0,59 |
7-10 anos | 0,22 – 0,59 |
10-14 anos | 0,31 – 0,88 |
> 14 anos | 0,50 – 1,06 |
1.2 Débito urinário
Definindo-se oligúria como um débito urinário < 0,5-1 mL/kg/hora após as primeiras 24-48 horas, importa salientar que:
- o débito urinário deve ser interpretado com precaução uma vez que cerca de 50% dos casos de LRA cursam com diurese normal ou poliúria; e
- RN de termo, e nomeadamente o prematuro, têm uma fase oligúrica fisiológica nos primeiros dias de vida.
1.3 Taxa de filtração glomerular (TFG)
Utilizada como um parâmetro de avaliação da função renal. Calcula-se, de acordo com a fórmula de Schwartz, a partir da concentração sérica de creatinina e de acordo com a idade gestacional:
- TFG (mL/min/1,73m2) = K x comprimento (cm) / creatinina sérica (mg/dL)
- K (constante) = 0,33 no RN < 34 semanas; K = 0,45 no RN ≥ 35 semanas
No RN de termo a TFG aumenta progressivamente desde o nascimento até atingir o valor do adulto aos 1-2 anos de idade (100-125 mL/min/1,73m2).
No prematuro, estes valores são significativamente mais baixos e estão relacionados com a idade gestacional. (Quadro 3)
QUADRO 3 – Média da TFG em RN pré-termo de acordo com a idade gestacional e idade pós-natal
Dia | TFG média (mL/min/1,73 m2) | ||||
27 semanas | 28 semanas | 29 semanas | 30 semanas | 31 semanas | |
7 | 13,4 | 16,2 | 19,1 | 21,9 | 24,8 |
14 | 16,2 | 19,1 | 21,9 | 24,8 | 27,6 |
21 | 18,0 | 20,8 | 23,7 | 26,5 | 29,4 |
28 | 21,0 | 23,9 | 26,7 | 29,6 | 32,4 |
O surgimento do conceito de LRA contribuiu largamente para simplificar e uniformizar a visão clínica, até então dispersa, quanto ao diagnóstico diferencial de entidades clínicas como necrose tubular aguda, necrose cortical, necrose papilar e lesão tubulointersticial.
A fim de padronizar a definição de LRA, classificar o respectivo padrão, e avaliar a gravidade e o prognóstico de cada situação, com base em determinados critérios adoptados inicialmente nos adultos, foi criado um acrónimo designado por RIFLE, com letras iniciais em inglês identificando cada critério, respectivamente, risk/risco, injury/lesão, failure/falência, loss/perda, e end-stage renal disease/estádio terminal da doença renal. Para a idade pediátrica e para crianças em estado crítico passou a adoptar-se o pRIFLE.
Considerando que o critério RIFLE se foca na taxa de filtração glomerular, passaram a ser considerados três estádios de acordo com a Acute Kidney Injury Network (AKIN) em função da elevação sérica da creatinina: estádio I > 150%; estádio II > 200%; estádio III > 300%.
Os Quadro 4, 5 e 6, documentando a aplicação de tais critérios aos períodos neonatal e pós-neonatal, permitem identificar objectivamente diversos graus de LRA, com valor prognóstico.
QUADRO 4 – Classificação da LRA (segundo os critérios RIFLE) – no RN
Critérios | Creatinina/Taxa de filtração glomerular (TFG) | Débito urinário |
Risk/Risco | Aumento da creatinina de 1,5 vezes ou Diminuição da TFG > 25% | ≤ 0,5 mL/kg/h em 8 horas |
Injury/Lesão | Aumento da creatinina de 2 vezes o valor basal ou Diminuição da TFG > 50% | ≤ 0,5 mL/kg/h em 12 horas |
Failure/Falência | Aumento da creatinina de 3 vezes ou Diminuição da TFG > 75% | ≤ 0,3 mL/kg/h em 24 horas ou anúria em 12 horas |
Loss/Perda | Perda completa da função renal > 4 semanas | |
End Stage/Estádio Terminal | Doença renal em estádio terminal > 3 meses |
QUADRO 5 – Classificação da LRA (critério RIFLE) – na idade pós-neonatal
Critérios | Estimativa da Clearance da Creatinina (eCl-C) | Débito urinário | |
Risk/Risco | Diminuída em 25% | ≤ 0,5 mL/kg/h em 8 horas | |
Injury/Lesão | Diminuída em 50% | ≤ 0,5 mL/kg/h em 16 horas | |
Failure/Falência | Diminuída em 75% ou eCl-C < 35 mL/min/1,73 m2 | ≤ 0,3 mL/kg/h em 24 horas ou anúria em 12 horas | |
Loss/Perda | Perda completa da função renal > 4 semanas | ||
End Stage/Estádio Terminal | Doença renal em estádio terminal > 3 meses |
QUADRO 6 – Classificação da LRA (segundo os critérios AKIN)
Estádio | Creatinina sérica | Débito urinário |
0 | Sem alteração ou aumento < 0,3 mg/dL | ≥ 0,5 mL/kg/h |
I | – Aumento ≥ 0,3 mg/dL em 48 horas ou – Aumento > 1,5-1,9 vezes em relação a valor menor anterior | <0,5 mL/kg/h por 6-12 horas |
II | Aumento ≥ 2,0-2,9 vezes em relação a valor menor anterior | < 0,5 mL/kg/h > 12 horas |
III | – Creatinina sérica ≥ 2,5 mg/dL – Aumento ≥ 3 vezes em relação a valor menor anterior ou – Diálise | < 0,3 mL/kg/h > 24 horas ou anúria > 12 horas |
Em suma, os critérios que integram os Quadros 4, 5 e 6 (pRIFLE e AKIN) permitem detectar com maior sensibilidade e mais precocemente situações de LRA, objectivando a sua evolução; com efeito, de um limiar anteriormente considerado de creatinémia de 1,5 mg/dL, passou a valorizar-se de modo seriado o incremento da creatininémia e a evolução da diurese, o que permitirá estabelecer com maior rigor o prognóstico.
2. Outros exames complementares
2.1. O estudo analítico sanguíneo deve incluir hemograma, ureia e creatinina séricas, ionograma (cloro, sódio e potássio), cálcio, fósforo e gasometria. Na urina deve estudar-se o sedimento, pH, densidade/osmolalidade e ionograma. Em função do contexto clínico de cada caso, para além doutros exames, haverá que ponderar determinados parâmetros para estudo da inflamação e exames culturais perante suspeita de infecção.
2.2. Biomarcadores: devido às limitações dos parâmetros diagnósticos abordados, têm sido alvo de estudo vários possíveis marcadores de função renal independentes da TFG na tentativa de detecção precoce das alterações representativas de LRA; citam-se os seguintes, com relativo valor prognóstico:
- cistatina C (sérica);
- interleucina 18 (urinária);
- calprotectina urinária;
- lipocalina associada à gelatinase neutrofílica sérica e urinária (NGAL, neutrophil gelatinase associated);
- molécula de lesão renal urinária (KIM-1, kidney injury molecule).
Num estudo recente, avaliando o papel dos últimos três marcadores quanto à avaliação do prognóstico, designadamente quanto ao risco de mortalidade e necessidade de terapia de substituição, concluiu-se que a calprotectina e a KIM-1 têm maior relevância quanto à previsão da necessidade de terapia de substituição, enquanto a NGAL revelou maior interesse preditivo quanto à mortalidade no contexto de LRA de diversa etiologia.
2.3. Avaliação imagiológica: a ecografia renovesical é o exame de imagem de primeira linha, permitindo a avaliação de anomalias congénitas, de alterações do parênquima renal, de obstrução urinária, de trombose da veia renal, bem como de estenose da artéria renal ou de lesões associadas a síndroma da aorta média (técnica com Doppler).
3. Diagnóstico diferencial entre LRA pré-renal e renal
Para o diagnóstico diferencial entre LRA pré-renal e renal tem interesse prático a valorização dos parâmetros que integram o Quadro 7.
QUADRO 7 – Parâmetros utilizados no diagnóstico diferencial entre LRA pré-renal e renal
FE Na = Fracção (%) excretada de Na = (Cr S x Na U / Cr U x Na S) x 100; FE ureia = Fracção (%) excretada de ureia = (Cr S x ureia U / Cr U x ureia S) x 100; U = na urina; S = no sangue; IFR = Índice de falência renal = Cr S x Na U / Cr U ; Cr = creatinina; Na = sódio; RN = recém-nascido | ||
Índice | LRA pré-renal | LRA renal |
Densidade urinária | > 1.020 | < 1.020 |
Osmolalidade urinária | > 500 mOsm/kg H2O > 400 mOsm/kg H2O (RN) | < 300 mOsm/kg H2O < 400 mOsm/kg H2O (RN) |
Na urinário | < 10 mEq/L < 30 mEq/L (RN) | > 60 mEq/L > 60 mEq/L (RN) |
FE Na | < 1% < 2,5 %(RN) | > 2% > 2,5% (RN) |
FE ureia | < 35% | > 35% |
Cr U/ Cr S | > 40 > 30 (RN) | < 20 < 10 (RN) |
IFR | < 1 < 3 (RN) | > 1 > 3 (RN) |
Tratamento
Aspectos gerais
O objectivo do tratamento da LRA é evitar as complicações, manter a homeostasia de líquidos e electrólitos, propiciar suporte nutricional adequado e iniciar tratamento substitutivo quando estiver indicado. Nos casos de LRA pré-renal (potencialmente reversível e cuja identificação deve ser precoce) importa proceder-se à correcção urgente da hipovolémia, hipotensão e hipoxémia mediante hidratação e ventilação adequadas para manter a perfusão renal. Salienta-se que importa verificar previamente a existência de factores de risco de sobrecarga cardiopulmonar e de obstrução urinária.
No caso de não estarem presentes tais factores de risco, a desidratação corrige-se com NaCl 0,9%, 10 mL/kg/hora, a repetir, se necessário. Em contexto de evolução favorável surgirá diurese de 2-3 mL/kg/hora nas próximas horas; se tal não acontecer um terceiro ciclo será útil, acautelando a eventualidade se estar em presença de LRA intrínseca ou pós-renal. O papel da furosemida e da dopamina é discutido adiante.
Na forma pós-renal, a identificação de retenção urinária estabelece a indicação de desobstrução urgente, medida que poderá ser suficiente para a reversão do problema.
Quanto à LRA renal/intrínseca, a actuação traduz-se por medidas preventivas e de suporte, nomeadamente, a correção de desequilíbrios hidroelectrolíticos, ácido-base e fosfocálcico. O ajuste posológico de fármacos nefrotóxicos é mandatório.
Aspectos específicos
Fluidoterapia
Pormenorizando com o modelo aplicado ao RN, importa referir que a monitorização do edema, diurese, balanço hídrico, parâmetros analíticos, e do peso cada 12 ou 6 horas permitirá fazer a avaliação da volémia e calcular o suprimento hidroelectrolítico.
A necessidade de fluidos varia de acordo com a etiologia da LRA, das perdas mensuráveis e das insensíveis (0,5-1 mL/kg/hora no RN de termo), sendo a regra de ouro na LRA do RN a manutenção de “traços” de edema periférico, mas sem evidência auscultatória de fervores crepitantes, nem de turgescência jugular.
Como regra geral, torna-se frequentemente necessária a restrição hídrica, a qual pode atingir os 25% das necessidades diárias.
Suporte nutricional
No RN a alimentação recomendada consiste no suprimento energético de 90-120 kcal/Kg/dia sem restrição proteica com o intuito de evitar o catabolismo e a produção excessiva de metabólitos nitrogenados.
A via de eleição é a entérica e o leite materno o ideal. A alternativa é a fórmula com baixa carga de solutos e baixo nível de potássio e fósforo.
Na necessidade de alimentação parentérica a carga proteica, incluindo aminoácidos essenciais, não deve exceder 1-2 g/kg/dia e a emulsão lipídica os 2 g/kg/dia (30-40% do total energético). O suprimento de glicose e outros solutos deve ser adequado a cada caso.
Uma vez que a necessidade de restrição hídrica em RN com oligúria condiciona a adequada ingestão calórica, é habitual a perda de peso na ordem dos 0,2-0,1% por dia (após a primeira semana de vida).
No período pós-neonatal é estabelecida a regra geral de restrição de sódio, potássio e fósforo. O suprimento proteico deve ser moderadamente reduzido, promovendo, tanto quanto possível em função do contexto de cada caso clínico, incrementar o suprimento calórico a fim de minorar a acumulação de catabólitos nitrogenados.
Nota: O suprimento dos nutrientes deve ter em conta a situação metabólica e a classificação pRIFLE.
Alterações electrolíticas
As alterações mais comuns são a hiponatrémia, hipercalémia e hiperfosfatémia, mas podem acontecer hipocalémia e hipomagnesémia (comum na toxicidade por aminoglicosídeos) dependendo da etiologia.
Hiponatrémia (Na sérico < 130 mEq/L)
A atitude prioritária na presença de hiponatrémia é a restrição hídrica uma vez que habitualmente se trata duma hiponatrémia de diluição por sobrecarga hídrica.
É importante relembrar que imaturidade renal cursa com excreção urinária de sódio aumentada, sendo necessário vulgarmente o suplemento com NaCL na alimentação entérica ou parentérica.
Na hiponatrémia sintomática (letargia, convulsões) ou grave (Na sérico <120 mEq/L), deve ser feita correção urgente com NaCl a 3%, utilizando-se a fórmula, admitindo como desejável atingir Na de 125 mEq/L:
mEq de Na requerido = 0,6 x peso em kg x 125 – Na actual em mEq/L.
Hipercaliémia (K > 6 mEq/L)
Os níveis de potássio sérico devem ser inferiores a 6,0 mEq/L e monitorizados frequentemente: se > 7,0 mEq/L deve administrar-se – gluconato de cálcio a 10% – 1 mL/kg IV em 3-5 minutos; – bicarbonato de sódio, 1-2 mEq/kg IV em 5-10 minutos; glicose/insulina (insulina regular 0,1U/kg com solução de glucose a 50%, 1 mL/kg em 1 hora.
A resina permutadora de catiões será eficaz na regularização mais sustentada do potássio, pois impede a absorção intestinal e deve iniciar-se se K > 6,5 mEq/L. O Resonium A® (resina permutadora de iões) e o Kayexalate® (sulfonato poliestireno de sódio) podem ser administrados por via rectal.
A terapêutica de substituição da função renal será opção no caso de hipercalémia refractária à terapêutica conservadora. (ver adiante)
Nota: Na LRA oligúrica, não deve ser administrado potássio (nem fósforo).
Hipocalcémia
O défice do metabólito activo da vitamina D e o hiperparatiroidismo secundário contribuem para a hipocalcémia, a qual potencia a toxicidade cardíaca da hipercaliémia.
Para tratamento da hipocalcémia, a actuação prioritária diz respeito à diminuição do fósforo sérico (dieta com diminuição do P, e quelantes do P facilitando a excreção gastrintestinal do mesmo – por ex. carbonato de cálcio 50-100 mg/Kg/dia, oral, 6/6h às refeições, misturado com leite. Posteriormente: gluconato de cálcio oral a 10% (5-8 mL/kg/dia).
Se sintomática/tetania: gluconato de cálcio a 10% IV, 1-2 mL/kg em 5-10 minutos: ponderar perfusão em 24 horas se hipocalcémia persistente na dose de 5-8 mL/Kg/dia.
Hiperfosfatémia
Em complemento do que foi referido a propósito da hipocalcémia, nesta situação específica, reitera-se:
- a necessidade de reduzir o suprimento de fósforo na dieta através da utilização de leite materno ou de fórmulas lácteas com baixo teor em fosforo, em função da idade do paciente;
- administração de quelantes de fósforo obrigatória.
Nota: Na LRA oligúrica, não deve ser administrado fósforo (nem potássio).
Alterações do equilíbrio ácido-base
Se acidose metabólica grave (pH < 7,2 e/ou HCO3 ≤ 12 mmol/L) deve administrar-se bicarbonato de sódio oral ou endovenoso, de acordo com a fórmula:
HCO3 (mEq) a administrar: (HCO3 desejado – HCO3 actual) x peso (kg) x 0,3
Uma vez que o tratamento da acidose metabólica diminui o nível de cálcio ionizado, é necessário assegurar valores séricos de cálcio adequados para prevenir tetania e convulsões.
Farmacoterapia
O uso de fármacos deve ser bem ponderado pois não está provado cientificamente o benefício da utilização de diuréticos de ansa e de dopamina, designadamente no que se refere ao prognóstico a curto e médio prazo. De acordo com normas actuais, não é recomendado. No RN, nos status pós-asfixia perinatal e no contexto de prevenção e tratamento da LRA, a dopamina também não é actualmente recomendada.
A teofilina, um antagonista do receptor de adenosina e, consequentemente, da vasoconstrição, está indicada nos casos de asfixia perinatal devendo a administração ser feita no pós-parto imediato (dose única) por se ter demonstrado efeito profiláctico da LRA neste contexto após ponderação de risco neurológico (KDIGO).
Hipertensão arterial
A hipertensão arterial é geralmente secundária ao aumento do volume intravascular ou à libertação de renina.
No primeiro caso, pode ser preconizada a utilização de diuréticos ou a diálise.
Em casos de falência de resposta ou associados a renina sérica elevada, preconiza-se a administração de fármacos anti-hipertensores como antagonistas de canais de cálcio (amlodipina – 0,1-0,6 mg/kg/24h) ou betabloqueantes (propranolol – 0,5-8,0 mg/kg/24h ou labetalol – 0,5-8,0 mg/kg/24h), mas não de inibidores da enzima de conversão da angiotensina.
Nas formas graves sintomáticas e implicando tratamento urgente ou emergente pode utilizar-se infusão contínua de nicardipina (0,5-5,0 mcg/kg/minuto).
Terapêutica de substituição da função renal (TSFR)
A TSFR, englobando diversas modalidades – diálise peritoneal, hemodiálise, hemofiltração e hemodiafiltração – é utilizada quando as medidas de suporte anteriormente enumeradas não resolvem as complicações. O seu tipo será seleccionado individualmente e o início deve ser precoce, pois condiciona o prognóstico.
As indicações da TSR incluem:
- Anúria/oligúria;
- Sobrecarga de volume com evidência de hipertensão e/ou edema pulmonar refractário à terapêutica diurética;
- Hipercaliémia e acidose metabólica;
- Urémia sintomática/ureia > 100-150 mg/dL (pericardite, neuropatia, encefalopatia);
- Incapacidade de concretizar regime nutricional adequado tendo em conta a indispensável restrição de fluidos.
A retenção de fluidos, além de constituir o motivo principal para a instituição de TSFR, é considerada por si só um factor de mau prognóstico independente da LRA, mas directamente proporcional ao grau da mesma.
Dentro das diversas modalidades de TSFR, a diálise peritoneal continua a ser a mais utilizada pela fácil execução e pela relativamente baixa de complicações associadas.
Prognóstico
O prognóstico LRA depende da etiologia, gravidade, precocidade do diagnóstico e duração da lesão. A de causa pré-renal é potencialmente reversível e de excelente prognóstico. Pelo contrário, a de causa renal tem prognóstico reservado a avaliar pela taxa de mortalidade associada que pode atingir 25-50%.
São factores de mau prognóstico indiciando lesão renal permanente na idade adulta: oligoanúria, falência multiorgânica, instabilidade hemodinâmica, nefrouropatia congénita, necessidade de ventilação assistida e necessidade de TSFR.
Dada a elevada probabilidade de surgimento de doença renal crónica na sequência de LRA, esta última situação obriga à necessidade de seguimento contínuo especializado.
Em função do contexto clínico, o estudo dos biomarcadores séricos e urinários atrás citados poderão também contribuir para o prognóstico.
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