Definição

De acordo com a EFAS (European Federation to Audiology Societies), a Audiologia é uma área especializada do conhecimento devotada à função e disfunção do sistema auditivo: diagnóstico, reabilitação, perturbações da comunicação, formação e investigação. Neste contexto, importa esclarecer que a Audiologia não se ocupa da prescrição farmacológica nem das técnicas cirúrgicas para reabilitar a audição.

Introdução

Função auditiva

A audição é uma função complexa que resulta da integração central (e interpretação) dos sons previamente captados e processados pelo órgão periférico, sendo o sinal transmitido pela via auditiva ao córtex auditivo. Qualquer som será analisado nas suas três principais dimensões: frequência, amplitude e tempo. A via auditiva está completamente desenvolvida na data do nascimento; no entanto, sofre complexos fenómenos de maturação. Com efeito, a plasticidade do sistema nervoso central permite que, por exposição ao som, haja um desenvolvimento de conexões neuronais a nível cortical até aos seis meses de idade. A via auditiva sofre também maturação ao longo dos primeiros anos de vida. Inicialmente os tempos de condução nervosa estão diminuídos, atingindo os valores dos adultos cerca dos dezoito meses de idade.

O Quadro 1 refere os apectos mais significativos do desenvolvimento da via auditiva e o Quadro 2 a relação entre audição e linguagem.

QUADRO 1 – Desenvolvimento da via auditiva

• Nos RN a via auditiva periférica está completamente desenvolvida.

• O sistema auditivo é modelado durante o 1º ano de vida pela experiência auditiva, sobretudo pela exposição à fala.

• Embora as crianças só produzam palavras reconhecíveis ao ano de idade, podem reconhecer nomes de objectos familiares, entoar a fala e exercer funções auditivas muito sofisticadas muito antes de produzir a sua própria fala.

• Ao nascer, o sistema auditivo periférico possui as capacidades semelhantes às do adulto, pronto a estabelecer as conexões neurais baseadas na experiência auditiva.

• O tronco cerebral vai-se desenvolvendo ao longo dos dois primeiros anos.

• A via auditiva periférica não possui plasticidade, mas esta é mantida a nível do SNC.

QUADRO 2 – Audição e linguagem

• A fala é emitida em diferentes contextos (de timbre, velocidade de produção).

• O ser humano pode caracterizar os sons em fonemas e palavras com grande fidelidade e exactidão, começando estas capacidades a desenvolver-se após o nascimento.

• A aquisição de linguagem perceptiva precede a linguagem expressiva. Os bebés aprendem a organização dos sons na sua língua nativa na 2ª metade do 1º ano de vida.

• Pequenas alterações da audição podem alterar a aquisição e a percepção de linguagem (sobretudo em condições de ruído – escolas).

Surdez infantil

Considera-se surdez significativa a hipoacusia permanente, superior a 40 decibéis (dB), nas frequências conversacionais, no melhor ouvido.

Esta definição tem em conta que, a partir destes valores, a hipoacusia tem repercussões negativas na aquisição de linguagem e no desenvolvimento de competências comunicativas da criança. Existem vários graus de hipoacusia: ligeira, moderada, grave e profunda, correspondendo a dificuldades crescentes de comunicação audio-verbal.

Etiologicamente, a hipoacusia pode ser classificada em sensorioneural relacionada com patologia (endo ou retrococlear), de transmissão relacionada com patologia (ouvido externo ou médio) e mista.

Na maior parte dos casos, a hipoacusia de transmissão é adquirida, constituindo a otite sero-mucosa a causa mais frequente.

No entanto, menor grau de hipoacusia pode influenciar negativamente a integração social e escolar da criança. Na infância ocorrem frequentemente períodos mais ou menos longos (semanas, meses ou anos) em que as crianças sofrem de hipoacusia de transmissão, bilateral ou unilateral, o que influencia o seu desenvolvimento. Estes períodos correspondem a episódios de otite serosa (otite com efusão ou otite com derrame) os quais podem decorrer com hipoacusia de transmissão de grau variável até 40dB, e que é reversível.

O Quadro 3 caracteriza os diferentes graus de deficiência auditiva em relação a perda tonal média.

QUADRO 3 – Graus de deficiência auditiva

1. Deficiência Auditiva Ligeira

2. Deficiência Auditiva Média

3. Deficiência Auditiva Grave

4. Deficiência Auditiva Profunda

5. Deficiência Auditiva Total

1. Perda tonal média: >20 e <40 dB

2. Perda tonal média: >40 e <70 dB

3. Perda tonal média: >70 e <90 dB

4. Perda tonal média: >90 e <120 dB

5. Perda tonal média: 120 dB à (dB = decibéis)

Importância do problema

Estima-se que a incidência da hipoacusia infantil significativa ocorra em 1-2/1000 recém-nascidos aparentemente saudáveis; trata-se da doença congénita mais frequente para a qual existe rastreio e intervenção precoce. Reconhece-se a existência de factores de risco que podem aumentar a incidência de surdez.

Em determinadas situações de maior risco de hipoacusia a incidência pode aumentar para 1/100 recém-nascidos. Grande parte dos factores de risco relaciona-se com ocorrências desfavoráveis durante o período perinatal (muito baixo peso, prematuridade, hipóxia perinatal, sépsis, ototoxicidade, hiperbilirrubinémia grave, etc.). Em idade escolar a hipoacusia significativa pode ter uma prevalência de 8 por cada mil crianças.

FIGURA 1. Exemplo de criança com hipoacúsia de transmissão por anomalia congénita do ouvido externo e médio

As causas genéticas correspondem a cerca de 30% dos casos de surdez congénita, relacionável na maioria dos casos com transmissão autossómica recessiva. Em geral, a surdez surge isolada, mas poderá estar integrada em síndroma; há descritas cerca de 400 síndromas que incluem défice auditivo. (Figura 1)

Existem mais de 20 loci descritos para a surdez isolada, mas um único locus – DFNB1 – é responsável por uma elevada proporção dos casos: trata-se do gene GJB2, que codifica a proteína conexina 26. Mutações neste gene são responsáveis por aproximadamente 50% dos casos de surdez congénita isolada não infecciosa.

As causas infecciosas pré-natais (rubéola, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus) são, felizmente, cada vez menos frequentes.

A hipoacusia pode classificar-se quanto à cronologia do seu aparecimento, em congénita ou adquirida (período perinatal ou ao longo da vida). Assim, a criança pode ser portadora de deficiência auditiva desde o período pré-lingual (congénita ou adquirida no período perinatal) ou adquirida no período de aquisição de linguagem (ex: meningite bacteriana), pós-lingual (expresssão tardia de surdez congénita, meningite bacteriana, traumatismo craniano, etc.). O prognóstico é diferente conforme as competências linguísticas que já existiam quando surgiu a hipoacusia.

Rastreio auditivo neonatal

Desde longa data tem havido tentativa de programas de rastreio da deficiência auditiva, nomeadamente no período neonatal, utilizando métodos baseados na pesquisa de reacções motoras dos recém-nascidos após apresentação de estímulos auditivos de elevada intensidade. Estes testes baseavam-se na interpretação das reacções dos recém-nascidos feita por observadores treinados, consumindo, assim, muitos recursos humanos. Existia, no entanto, uma grande variabilidade de resultados entre os vários observadores, e além da fraca confiabilidade, os referidos testes apenas detectavam graus de surdez grave e profunda; por isso, foram abandonados.

Em 1972 o Joint Committee on Infant Hearing, grupo multidisciplinar, elaborou uma lista de circunstâncias em que os recém-nascidos tinham risco acrescido de ocorrência de surdez devendo, por isso, ser obrigatoriamente sujeitos a rastreio que era habitualmente efectuado pelos nove meses de idade. Esta lista de factores de risco foi sendo progressivamente alargada ao longo dos anos.

No entanto, uma vez que cerca de 50% das crianças surdas não possuem nenhum factor de risco de surdez, houve necessidade de pôr em acção rastreios universais no recém-nascido. Durante a década de noventa foram organizados rastreios universais dos recém-nascidos, mercê da disponibilidade de técnicas de rastreio sensíveis, específicas, rápidas, de preço acessível e de aplicação fácil: os aparelhos de oto-emissões acústicas (OEA) que surgiram nesta altura. Estes rastreios foram divulgados a partir dos Estados Unidos, sendo a sua aplicação facilitada pelo ulterior aparecimento de aparelhos automáticos, quer de oto-emissões acústicas, quer de potenciais evocados auditivos. Estes aparelhos dão resposta do tipo “Apto”, “que passa” ou sem problema, e “Inapto” ou com problema a esclarecer. Não necessitando de interpretação dos resultados por parte do técnico, podem ser utilizados por pessoal sem formação específica em audiologia (enfermeiros, médicos, pediatras, voluntários), após um determinado tempo de treino. Estes rastreios devem ser coordenados por profissionais da área da audiologia pediátrica e com o apoio de uma unidade de audiologia com recursos técnicos e humanos apropriados.

Actualmente os rastreios universais da audição dos recém-nascidos são aplicados na maioria dos países desenvolvidos, segundo critérios padronizados. Prevê-se que nos próximos anos surjam critérios normativos para as diferentes características técnicas dos mesmos. A eclosão destes programas, cujo objectivo é o diagnóstico de hipoacusia significativa antes dos 3 meses de idade e o início da reabilitação até aos 6 meses, permite a muitos recém-nascidos usufruirem dos benefícios da intervenção precoce que se traduzem em níveis de aquisição de linguagem superiores aos que iriam adquirir se o diagnóstico continuasse a ser tardio. De salientar que estudos publicados pelo grupo do Colorado vieram demonstrar que a idade de intervenção (abaixo dos seis meses de idade) constitui o factor que mais positivamente influencia a reabilitação e aquisição de linguagem para qualquer grau de surdez.

A maioria dos rastreios é organizada em 3 fases, com início ainda na maternidade, nas primeiras horas de vida. São utilizadas técnicas automáticas, potenciais evocados automáticos ou oto-emissões acústicas automáticas.

De acordo com as recomendações do GRISI (ver adiante), na instituição onde se procede ao rastreio considera-se equipamento indispensável: dois aparelhos, de OEA (de diagnóstico ou automático) e/ou de PEATC (de diagnóstico ou automático).

Os bebés que não “passam” ou não são considerados “aptos” na primeira fase (por exemplo por existência de exsudado no ouvido médio, colapso ou obstrução do canal auditivo externo), serão sujeitos à segunda fase do rastreio, geralmente uma ou duas semanas depois. Pode utilizar-se a mesma técnica que foi utilizada na primeira fase, verificando-se que na maioria dos casos o resultado será normal. Caso contrário, a criança será encaminhada para uma consulta de otorrinolaringologia e sujeita a estudo através da técnica de potenciais evocados auditivos diagnósticos e impedancimetria. Esta terceira fase, diagnóstica, deverá ter lugar até aos quatro meses.

Os programas de rastreio auditivo deverão ser integrados, apoiados por programas de reabilitação/habilitação e estimulação precoce apropriados que envolvem a adaptação protética, a estimulação auditiva e verbal e, por vezes, a aplicação de implantes cocleares. Há, por isso, necessidade de formar equipas multiprofissionais dotadas de meios técnicos apropriados, motivadas para o objectivo final que consiste em diagnosticar e habilitar/reabilitar precocemente, apoiando as famílias nas suas decisões e necessidades. Estas equipas deverão incluir pediatras, otorrinolaringologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas de fala, professores de surdos, psicólogos, assistentes sociais e administradores hospitalares, entre outros. É evidente que novos desafios se perfilam aos profissionais envolvidos nesta área, pois, como foi dito, os grandes objectivos são a identificação, o correcto diagnóstico e o início de intervenção cada vez mais precocemente; daí a necessidade de meios técnicos sofisticados e de treino específico na área da audiologia pediátrica.

O Quadro 4, adaptado do Joint Committee on Infant Hearing discrimina os critérios considerados de alto risco que determinam o rastreio da audição.

QUADRO 4 – Critérios de alto risco para rastreio auditivo (RN em UCIN)

• História familiar de surdez infantil de origem hereditária.

• Infecções intrauterinas tais como por citomegalovírus, rubéola, sífilis, herpes e toxoplasmose.

• Anomalias craniofaciais, incluindo anomalias do pavilhão auricular e canal auditivo externo.

• Peso de nascimento <1,5 Kg.

• Hiperbilirrubinémia não conjugada atingindo níveis que necessitam de exsanguinotransfusão.

• Medicações ototóxicas, incluindo, designadamente aminoglicosídeos, usados em terapêuticas múltiplas ou em combinação com diuréticos de ansa.

• Meningite bacteriana.

• Índice de Apgar de 0 a 4 ao primeiro minuto ou de 0 a 6 aos 5 minutos.

• Ventilação assistida durante cinco ou mais dias.

• Estigmas associados a síndroma conhecida por se associar a hipoacusia sensorial ou de condução.

De salientar, a propósito, a filosofia expressa pelo European Consensus on Infant Screening em 1998: “… embora os sistemas de saúde na Europa variem de país para país em termos de organização e financiamento, deverão ser postos em marcha, sem atrasos, programas de rastreio de audição neonatal. Assim, serão dadas aos novos cidadãos da Europa mais oportunidades e melhor qualidade de vida no próximo milénio”.

No âmbito de uma política nacional de saúde para o diagnóstico precoce da surdez e intervenção, constituiu-se o Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez (GRISI). Este grupo de trabalho, aberto e multidisciplinar, reúne profissionais com experiência nesta área.

O objectivo deste grupo coordenado pela autora é o desenvolvimento de um programa nacional de detecção e intervenção auditiva precoces, padronizando técnicas e metodologias, através de acções conjuntas entre os vários organismos oficiais e associações profissionais.

O Quadro 5 define as condições consideradas indispensáveis para garantia de rendibilidade e de qualidade do rastreio considerado universal.

QUADRO 5 – Condições para rastreio universal (qualidade e rendibilidade)

1. Um mínimo de 95% dos recém-nascidos deverá de ser sujeito a rastreio conclusivo (só poderão ser perdidos para seguimento cerca de 5%).

2. Deverão ser utilizados métodos objectivos (potenciais evocados auditivos ou oto-emissões acústicas) e testar-se os 2 ouvidos.

3. O rastreio deverá detectar todas as crianças com hipoacusia significativa, isto é, com limiares superiores a 35 dB no melhor ouvido.

4. A taxa de falsos positivos deve ser inferior a 3% (normo-ouvintes evidenciando alterações no âmbito do rastreio).

5. A taxa de verdadeiros casos positivos deve situar-se entre 2-4/1000.

6. É desejável taxa zero de falsos negativos.

FIGURA 2. Organização do rastreio auditivo neonatal universal

FIGURA 3. Rastreio de crianças em UCIN

As Figuras 2 e 3 resumem os esquemas organizativos respectivamente do Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU) – sem risco conhecido, e rastreio considerado de alto risco, em crianças internadas em UCIN (Quadro 4 já referido).

Estes esquemas são aplicados no Hospital Dona Estefânia desde 2003.

Rastreio auditivo pós-neonatal

Na hipótese de não se ter procedido ao rastreio auditivo no período neonatal, há que atender aos indicadores de risco de surdez em geral, os quais constam do Quadro 6, de grande utilidade na prática clínica, quer para pediatras quer para médicos de família. O referido quadro chama igualmente a atenção para as situações com necessidade de acompanhamento, e associadas ao aparecimento tardio de perda auditiva.

QUADRO 6 – Indicadores de risco de surdez

Crianças até aos dois anos:

· Preocupação/suspeita dos pais em relação ao desenvolvimento da fala, linguagem ou audição.

· Meningite bacteriana e outras infecções associadas com perda auditiva neurossensorial.

· Traumatismo crânio-encefálico acompanhado de perda de consciência ou fractura do crânio.

· Estigmas ou sinais de síndromas associadas a perdas auditivas de condução e/ou neurossensoriais.

· Medicamentos ototóxicos (incluindo, mas não limitados a agentes quimioterápicos ou aminoglicosídeos, associados ou não a diuréticos de ansa).

· Otite média de repetição/persistente, com efusão por períodos de, pelo menos, 3 (três) meses.

Crianças que necessitam de acompanhamento até aos 3 anos de idade:

– Alguns RN podem “passar” no rastreio auditivo, mas necessitam de acompanhamento periódico pois têm risco aumentado de aparecimento tardio de perda auditiva neurossensorial ou de condução.

– Crianças com indicadores abaixo referidos, requerem avaliação a cada 6 (seis) meses.

Indicadores associados ao aparecimento tardio de perda neurossensorial:

– Antecedentes familiares de perda auditiva tardia na infância.

– Infecções congénitas (rubéola, sífilis, herpes, citomegalovírus, toxoplasmose).

– Neurofibromatose tipo II e doenças neurodegenerativas.

Indicadores associados ao aparecimento tardio de perda de condução:

– Otite média de repetição/recorrente ou persistente com derrame.

– Defeitos anatómicos e outras alterações que afectam a função da trompa de Eustáquio.

– Doenças neurodegenerativas.

Provas diagnósticas

Uma vez realizado o rastreio, cabe referir a abordagem diagnóstica que pode ser realizada nos casos em que foi detectada alteração da função auditiva através daquele.

A avaliação audiológica das crianças utiliza um conjunto de provas cujos resultados devem ser cruzados e interpretados em conjunto. Cada prova tem um valor relativo e constitui uma “janela” que avalia uma determinada área/função da via auditiva. De um modo geral as provas diagnósticas podem ser classificadas em comportamentais e fisiológicas (também denominadas objectivas).

Provas comportamentais

As alterações do comportamento da criança após exposição a um som-teste são avaliadas por um audiologista. As condições do teste são controladas pelo técnico e os resultados deverão ser reprodutíveis (não deverão existir variações intra e inter-teste). São, por isso, provas objectivas e precisas. Trata-se de provas que exigem que a criança tenha o desenvolvimento psicomotor necessário e que a mesma coopere na execução do teste. O técnico deverá ter a capacidade para determinar que tipo de teste é o mais indicado para cada criança, baseado no desenvolvimento psicomotor, e não na idade cronológica.

Podem dividir-se em provas limiares, quando visam a detecção da menor intensidade sonora perceptível para cada som-teste (limiar para aquela frequência), e supralimiares quando a intensidade do som-teste se situa acima do limiar de percepção.

São abordadas as seguintes provas comportamentais:

  • Prova dos reflexos incondicionados
    Assim chamada porque são desencadeadas reacções reflexas inatas dos recém-nascidos a sons de intensidade audível. É habitualmente utilizada até aos 6-7 meses de idade. Consiste na detecção de reflexos incondicionados (reacções de sobressalto, abertura dos olhos, pestanejo, suspensão de actividades motoras tais como a sucção) a sons de intensidades supralimiares e de várias frequências. É muito importante para complementar a informação obtida através de provas fisiológicas, não devendo ser utilizada isoladamente (Figuras 4 e 5).

FIGURA 4. Exemplos de instrumentos que produzem sons, utilizados para testar os reflexos incondicionados

FIGURA 5. Reflexos incondicionados – A criança vira a cabeça na direcção da fonte sonora

  • Prova dos reflexos de orientação condicionada
    A partir do momento em que a criança se senta e segura a cabeça (6-7 meses), é possível estudar reacções de orientação do olhar para a fonte sonora no plano horizontal, sendo possível condicioná-la utilizando técnicas de condicionamento operante. É apresentado um som de suficiente intensidade para que a criança vire o olhar na direcção da fonte sonora. Após esta reacção da criança ao som, é apresentado um reforço positivo ao seu comportamento. O reforço comportamental poderá ser uma luz que se acende, um brinquedo eléctrico que se liga ou um boneco que se torna visível. Cada vez que a criança “vira o olhar” em resposta à apresentação do som-teste, recebe o reforço positivo. Quando a criança se encontra condicionada, isto é, quando consistentemente vira a cabeça e procura o reforço após a apresentação do som-teste, pode ser feita uma determinação de limiares auditivos para cada frequência: o estímulo vai diminuindo de intensidade até que a criança não responde mais (limiar auditivo). O processo de determinação de limiares vai-se repetindo para as várias frequências. As crianças que não permitam a colocação de auscultadores terão de ser testadas em campo livre, sendo os limiares obtidos respeitantes ao melhor ouvido.
    A criança um pouco mais velha, ao permitir a colocação de auscultadores e de vibrador ósseo, poderá ser testada separadamente aos dois ouvidos, por via aérea e por via óssea (Figura 6).

FIGURA 6. Reflexos de orientação condicionada – A criança é condicionada a olhar para o brinquedo cada vez que ouve o estímulo sonoro; recebendo um reforço positivo, o boneco começa a mexer-se e a luz acende-se

  • Audiometria condicionada por jogos
    A criança mais velha, geralmente a partir dos dois anos e meio, poderá ser condicionada utilizando jogos: é-lhe explicado que, cada vez que ouvir o som-teste, deverá colocar uma peça do jogo. O som-teste poderá ser apresentado em campo livre, através de auscultadores ou de vibrador. Inicia-se o exame pela apresentação de um som com uma intensidade suficiente para que a criança oiça; e depois vai-se diminuindo a intensidade e variando a frequência, de modo a obter os limiares para as frequências entre 250 a 4000 Hz. (Figura 7)
    As limitações das provas comportamentais são: exigem condições técnicas adequadas a crianças (cabines insonorizadas de dimensões adequadas, audiómetros adaptados a colunas calibradas para campo livre, técnicos treinados em audiometria infantil, sendo por vezes necessários dois em simultâneo); a criança tem que cooperar, o que nem sempre é possível, devido à sua idade ou a atraso do desenvolvimento psicomotor; a resposta comportamental pode extinguir-se rapidamente, pelo que muitas vezes a prova terá que ser interrompida, recomeçado de novo, quando a criança volte a cooperar, por vezes no dia seguinte.
    Pelas limitações descritas, quando as respostas não são claras e consistentes, há necessidade de complementar as provas comportamentais com provas fisiológicas, sendo cruzados os resultados de ambas as provas.

FIGURA 7. Audiometria lúdica (condicionada por jogos) – A criança coloca uma peça do jogo se, e quando, ouvir o som-teste

Provas fisiológicas

No grupo das provas fisiológicas consideram-se as seguintes modalidades: provas de impedância (incluindo o timpanograma e a prova dos reflexos acústicos); a prova dos potenciais evocados auditivos (incluindo uma nova modalidade designada por “potenciais estáveis” – ASSR ou Auditory Steady State Response), e a prova das oto-emissões acústicas.

  • Timpanograma
    Esta prova permite avaliar as condições físicas do ouvido médio (mobilidade da cadeia tímpano-ossicular, pressão dentro do ouvido médio, meio de transmissão do som: gás ou exsudados). Deverá utilizar-se uma sonda de frequência 226 Hz a partir dos 4 meses de idade, e de 1000 Hz em bebés até esta idade.
    Há três tipos principais de resultados obtidos pelo timpanograma: tipo A, B e C. No tipo A, o gráfico corresponde a um ouvido normal, com uma mobilidade normal do sistema tímpano-ossicular; o segundo (B) corresponde a um aumento significativo da impedância do ouvido médio, com imobilidade da cadeia tímpano-ossicular, na maior parte das vezes correspondendo à presença de derrame dentro do ouvido médio; o timpanograma do tipo C corresponde a situações intermédias, com pressões negativas dentro do ouvido médio, por funcionamento anómalo da trompa de Eustáquio.
  • Prova dos reflexos acústicos
    Esta prova que perdeu a importância diagnóstica que teve no passado, com a utilização generalizada das oto-emissões acústicas e dos potenciais evocados auditivos a referir adiante, testa a integridade da via auditiva (arco reflexo da via auditiva-nervo facial). O princípio utilizado é o seguinte: apresentando um som-teste de intensidade superior ao limiar auditivo do ouvido (+ 60 dB), desencadeia-se um reflexo que consiste na contracção dos músculos do ouvido médio, no ouvido testado e no ouvido contralateral (reflexos ipsi e contralaterais). Como principais limitações citam-se: tempo exigido para o teste, durante o qual a criança deverá estar imóvel; não poder ser executada na presença de líquido no ouvido médio; e imobilidade da cadeia tímpano-ossicular. A presença de reflexos normais significa normalidade das duas vias testadas (aferente e eferente), mas a sua ausência não permite a afirmação de hipoacusia.
  • Potenciais evocados auditivos (PEA)
    São provas que avaliam as variações dos potenciais eléctricos entre vários pontos da superfície da calote craniana em resposta a um estímulo auditivo aplicado a cada um dos ouvidos. Podem designar-se, quanto à sua latência, em potenciais de curta, média e longa latência. Muitas vezes estes potenciais são denominados quanto à origem das ondas que examinam (ex: potenciais evocados auditivos do tronco cerebral ou PEATC). Tais provas exigem que o doente se encontre perfeitamente relaxado, preferencialmente adormecido, havendo muitas vezes necessidade de recorrer à sedação ou anestesia. São de extrema utilidade, pois permitem confirmar os limiares auditivos obtidos pelas provas comportamentais; em casos de crianças muito jovens, não cooperantes ou com deficiência, estas provas podem ser as únicas a fornecer dados acerca das capacidades auditivas. As respostas obtidas deverão ser interpretadas por um técnico treinado e relacionadas com a clínica e com os resultados das restantes provas.
    Os potencias evocados auditivos mais utilizados na clínica audiológica pediátrica são os potenciais evocados auditivos precoces, de curta latência ou do tronco cerebral (ERA, BERA, PEATC). A prova consiste no seguinte: são colocados eléctrodos na superfície da calote craniana sendo registado o traçado electroencefalográfico (EEG) do doente, o que corresponde à actividade eléctrica de base. Registam-se as variações da actividade eléctrica recolhida pelos eléctrodos, após a apresentação de um estímulo auditivo por meio de auscultadores a cada um dos ouvidos separadamente, sendo este som-teste repetido rapidamente (por exemplo, repetido 2 000 vezes, a uma cadência de 11,3 por segundo). O estímulo auditivo mais utilizado é um “click”, estímulo transitório com um espectro frequencial centrado entre 2000 e 4000 Hz.
    O computador analisa as ondas, extraindo a resposta eléctrica da via auditiva da actividade eléctrica cerebral (EEG), sendo identificadas ondas positivas (I, II, III, e complexo IV-V) que representam a activação de diversas zonas da via auditiva. (Quadro 7)
    A intensidade do estímulo vai depois sendo diminuída, em degraus de 10 dB, até que as ondas se vão extinguindo progressivamente. Quando a chamada onda V se extingue (geralmente a mais resiliente), verifica-se se o limiar auditivo se situa cerca desta intensidade. Este limiar corresponde ao limiar obtido por audiometria comportamental entre os 2000 e os 4000 Hz. Com esta prova não é possível a determinação de limiares electrofisiológicos para as restantes frequências. Além do limiar electrofisiológico, podem medir-se as latências das ondas e os intervalos entre as ondas, o que permite um diagnóstico topográfico das lesões da via auditiva, contribuindo para o esclarecimento etiológico da hipoacusia.
    Esta prova tem elevadas especificidade e sensibilidade, estando disponível na maioria das unidades de audiologia desde há décadas.
    Actualmente existem no mercado aparelhos automáticos com algoritmos de decisão, em que o próprio aparelho procede à identificação das ondas e à sua análise, dando resultados do tipo “Apto ou que passa”, ou “Inapto ou com problema” que exige esclarecimento, tal como foi descrito a propósito dos rastreios.

QUADRO 7 – Origem provável das ondas dos PEATC

• Onda I – Cóclea e porção mais distal do VIII par
• Onda II – Porção proximal do VIII par e Núcleos Cocleares
• Onda III – Complexo Olivar Superior
• Onda IV – Leminiscus Lateralis, Núcleos Cocleares e Complexo Olivar Superior
• Onda V – Coliculus Inferior
  • Otoemissões acústicas (OEA)
    Com esta prova são utilizados sons de fraca intensidade com origem nas células ciliadas externas (cóclea) ocorrendo nos ouvidos normo-ouvintes, quer espontaneamente, quer em resposta a estímulos auditivos. Podem classificar-se em OEA espontâneas (sem utilização clínica), OEA evocadas (transitórias), e OEA de produtos de distorção.
    Após a sua produção na cóclea estas ondas sonoras “caminham” por via retrógrada, fazendo vibrar a cadeia tímpano-ossicular, transmitindo-se estas vibrações ao ar do canal auditivo externo onde serão detectadas por um microfone. Após processamento destas respostas obtêm-se valores que serão representados graficamente e que podem ser utilizados para fins diagnósticos. Considera-se que, quando as oto-emissões acústicas estão presentes, o ouvido tem um limiar auditivo igual ou melhor que 40 dB; por outro lado a ausência de OEA, que pode resultar de oclusão do canal auditivo externo, presença de líquido dentro do ouvido médio, ou disfunção coclear, significa que o ouvido deverá ter limiares auditivos piores que 40 dB.
    As OEA não permitem a definição de limiares auditivos, mas constituem um teste importante para avaliar a função coclear. Utilizam-se, sobretudo, em rastreios auditivos (rastreio universal da audição de recém-nascidos, rastreio da audição após meningite, e também na monitorização de fenómenos de ototoxicidade e de surdez induzida por ruído).
    Em suma, a avaliação audiológica correcta deverá basear-se num conjunto de testes adaptados para cada idade e para cada criança; é mais difícil nas crianças muito pequenas, com atraso psicomotor, com perturbações da esfera do autismo e nas crianças com multideficiência (cerca de 30% das crianças com surdez).
    O papel dos profissionais de saúde (pediatras, clínicos gerais, técnicos) com responsabilidade na avaliação do desenvolvimento das crianças, deverá ser proactivo, no sentido de detectar a deficiência auditiva cada vez mais precocemente. Com efeito, no passado, muitas vezes o diagnóstico apenas se fazia aos dois ou três anos, quando a criança apresentava um manifesto atraso de aquisição da linguagem verbal.

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