HOSPITALIZAÇÃO DOMICILIÁRIA. NOÇÕES FUNDAMENTAIS

Introdução

Em 1945, Spitz descreveu na criança pequena a chamada síndroma do hospitalismo e estados depressivos, relacionável com a separação da sua mãe e do ambiente da sua família em casa, e mais expressiva no contexto de hospitalizações prolongadas. Tal síndroma consiste essencialmente em manifestações de carência afectiva e em regressão no neurodesenvolvimento.

Em 1951, a Organização Mundial da Saúde publicou uma monografia da autoria de Bowlby, intitulada “Maternal Care and Mental Health”, abordando o problema da carência de cuidados maternos e sua repercussão no desenvolvimento da criança em várias situações (hospitais, creches e outras instituições).

Como conclusão de vários estudos de investigação, o referido autor lembrava aos médicos e outros profissionais de saúde uma noção fundamental: para uma boa saúde mental do lactente e criança pequena é essencial que se estabeleça um vínculo, isto é, uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe (ou seu substituto) conduzindo a satisfação, alegria e bem-estar a todos. Daí, o não ser desejável que em qualquer circunstância a criança se separe da mãe.

Em 1952, Robertson, em colaboração com Bowlby e Rosenbluth, demonstrando em imagens de filme os factos apontados, tentaram sensibilizar a sociedade e os profissionais para um problema que até então não era valorizado.

Posteriormente, em vários países, sobretudo da Europa e América do Norte, começou a esboçar-se uma tomada de consciência do problema, iniciando-se esforços no sentido de modificação das condições de hospitalização das crianças doentes, tornando-as mais adaptadas às suas exigências e necessidades.

Para esta tomada de consciência igualmente terá tido influência – com algum atraso – a Declaração dos Direitos Humanos em 1948, cujo artigo 25º refere o Direito da Criança a Cuidados e Assistência Especiais.

Em Portugal, três instituições foram pioneiras no cabal acolhimento e na aplicação prática de tal filosofia: Instituto de Apoio à Criança (IAC), Instituto Português de Oncologia (IPO) e Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC). De salientar também o papel dinamizador da Sociedade Portuguesa de Pediatria, nomeadamente através da sua Secção de Pediatria Social.

Entretanto, nos EUA, nas décadas de 70-80, surgiu o conceito de Humanização, traduzindo o desenvolvimento duma estratégia ou cultura de cuidados à criança hospitalizada em ligação à mãe e família (acompanhando o doente), tornando também o ambiente hospitalar mais acolhedor com a colaboração de todos os profissionais; trata-se, pois, duma filosofia de prestação de cuidados não reduzida ao tecnicismo. Posteriormente, em 1988, viria a ser publicado um importante documento designado Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas.

Assim, em consonância com o conceito de Humanização, a par de medidas relacionadas com a melhoria da qualidade do atendimento nas diversas instituições, em Portugal e noutros países passou a ser cada vez mais habitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hospitalização.

Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas

Este documento foi elaborado pela EACH (European Association for Child Health), aprovado em Leiden pela Confederação Europeia dos Sindicatos Nacionais e adoptado em Portugal pela Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente (CNSCA).

Descrita integralmente no capítulo 4 (Parte 1) desta obra, a referida Carta, passando a ser seguida por todos os profissionais que prestam cuidados hospitalares à criança e ao adolescente, traduz um abrir de portas das unidades de internamento ou de ambulatório às famílias segundo certas regras, as quais passaram a estar incluídas nos manuais de qualidade e segurança consagradas por legislação (DR: Lei 106/2009, 14 de Setembro).

Constando tal Carta de 10 regras, destacam-se três:

  1. As crianças somente serão admitidas para internamento hospitalar se os cuidados de que necessitam não puderem ser propiciados no domicílio ou em regime ambulatório.
  2. Os pacientes, com idade até aos 18 anos, internados em hospital ou unidade de saúde, têm direito ao acompanhamento permanente do pai e da mãe, ou de pessoa que os substitua.
  3. As crianças hospitalizadas devem ser agrupadas de acordo com as idades e separadas dos serviços para adultos.

No âmbito da organização e prestação dos cuidados especializados na idade pediátrica, importa uma referência especial a duas modalidades assistenciais seguindo os princípios da Humanização e da Qualidade: trata-se efectivamente de dois conceitos que permitem maior proximidade às famílias e melhor gestão de vagas de camas hospitalares: hospital de dia pediátrico e hospitalização domiciliária pediátrica, discriminados a seguir.

# Hospital de dia pediátrico – principais características (ver caixa):

    1. Estrutura organizacional integrada num Serviço de Pediatria, com espaço físico e meios técnicos próprios, integrando recursos humanos qualificados;
    2. Prestação de cuidados de saúde de modo programado em regime ambulatório (em alternativa ao internamento) a doentes com < 18 anos;
    3. Estadia de duração < 12 horas, fora do período nocturno.

 

A propósito desta modalidade, importa realçar o seguinte:

  • Papel especialmente relevante no contexto de doença crónica (situação surgindo com uma prevalência de cerca de 20% da população até aos 18 anos de idade);
  • Conquanto o título (hospital…) Possa gerar confusão, trata-se duma modalidade, considerada de ambulatório.

# Hospitalização domiciliária pediátrica (HDP).
Este último tópico, que na área pediátrica e no nosso País inicia os primeiros “passos”, constitui o objectivo principal deste capítulo.

Conceito de hospitalização domiciliária

Como facto histórico, importa referir que o conceito de “hospital em casa” surgiu pela primeira vez em 1947, nos Estados Unidos da América do Norte/EUA, com uma prática de cuidados médicos assistenciais em adultos designada por Home Care.

Ao tempo, com tal prática, tentava-se reduzir a taxa ocupacional dos hospitais, ao mesmo tempo que se criava um ambiente mais “humanizado”, próximo das famílias. Cerca de uma década depois, o modelo começou a ser praticado na Europa, mais propriamente, em França.

Trata-se, pois, dum modelo de prestação de cuidados em casa, dirigido a pacientes com doença aguda ou crónica, incluindo patologia complexa.

Constituindo uma alternativa ao internamento hospitalar convencional sob a responsabilidade duma equipa de saúde coordenada por médico, em ligação a serviço hospitalar clássico, para a referida hospitalização domiciliária é exigida a obediência a um conjunto de critérios clínicos, geográficos e sociais (incluindo acordo com o paciente ou familiar)

Numa perspectiva de visão holística do doente e considerando a pediatria como uma medicina integral de grupo etário, os princípios gerais enunciados deste modelo aplicam-se à idade pediátrica (< 18 anos), período da vida em que a doença crónica surge com uma prevalência relevante, atrás referida.

Objectivos da hospitalização domiciliária pediátrica (HDP)

Sistematizam-se os principais objectivos:

  • Promover o bem-estar do doente e a sua recuperação, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida de todo o agregado familiar;
  • Encurtar o tempo de hospitalização e evitar internamentos frequentes, desnecessários, rendibilizando recursos;
  • Estabelecer a comunicação entre os diversos níveis de cuidados, actuando em rede e promovendo a continuidade assistencial;
  • Valorizar o conceito de cuidados de saúde centrados na família e a prática da educação para a saúde.

Vantagens

Como principais vantagens, citam-se:

  • Favorecer o neurodesenvolvimento, diminuindo o risco de hospitalismo;
  • Diminuir o risco de infecções associadas aos cuidados de saúde;
  • Diminuir os custos familiares (por ex., com deslocações, alimentação, absentismo laboral, etc.;
  • Promover o trabalho em equipa, com a participação da família, assessorando a equipa de saúde.

Requisitos exigidos

Eis os requisitos obrigatórios:

  • A aceitação por parte da família desta modalidade de cuidados, a qual deve ser voluntária, não imposta;
  • Estabilidade clínica do paciente, não se prevendo agravamento a curto prazo, exceptuando situações assistidas no regime de cuidados paliativos;
  • Garantia da família quanto à assunção de responsabilidade e de disponibilidade permanente quanto a contacto telefónico ou através doutros meios de comunicação mais sofisticados;
  • Ambiente doméstico com condições logísticas e sanitárias garantindo segurança.

Tipologia dos pacientes com indicação para HDP

É a seguinte:

  • Doentes crónicos complexos, com falência de um ou mais órgãos (por ex. encefalopatias, cardiopatias, displasia broncopulmonar grave, síndromas polimalformativas, doenças do foro oncológico, etc.);
  • Doentes submetidos a antibioticoterapia endovenosa, quer em situações crónicas, quer agudas (por ex. infecções das partes moles, osteomielites, celulites orbitárias, endocardites, empiemas, infecção por cateter, etc.);
  • Doentes crónicos do foro respiratório dependentes da ventilação e/ou da oxigenoterapia, com ou sem traqueostomia;
  • Doentes assistidos no regime de cuidados paliativos; sobre esta modalidade, sugere-se ao leitor a consulta de capítulos próprios nas partes I e XXXI;
  • Recém-nascidos pré-termo pesando entre 1.600 gramas e 2.000 gramas, com alta hospitalar precoce;
  • Necessidade de nutrição enteral ou parenteral;
  • Necessidade de quimioterapia;
  • Necessidade de transfusão de componentes hemáticos;
  • Status pós-operatório de situações obrigando a vigilância contínua e a cuidados prolongados.

Equipa assistencial

A equipa de saúde da HDP (médica e de enfermagem), conduzida por um chefe, conta com o apoio de pessoal administrativo (fundamental para a gestão das admissões e de certa burocracia como a organização de processos e de relatórios clínicos), assim como de elementos da família e de auxiliares de acção médica. Em situações especiais, como no âmbito dos cuidados paliativos, prevê-se a colaboração de psicólogo.

No que respeita ao perfil dos elementos médicos e de enfermagem, são salientados dois tipos de pressupostos:

  • Experiência clínica abrangendo o amplo grupo etário pediátrico, desde o período neonatal até ao fim da adolescência ( 0 à < 18 anos);
  • Competência técnica no que respeita, designadamente, a ventilação mecânica, oxigenoterapia, nutrição enteral e parenteral, cateterismo central, canalização de veias periféricas, diálise peritoneal, transfusões, estomas, etc..

Aspectos organizativos

Seguidamente são sistematizadas de modo sucinto as principais características do funcionamento e manutenção da HDP.

Origem dos doentes: diversas dependências do hospital, desde cuidados intensivos, urgência, serviço hospitalar, hospital de dia, consulta externa, etc., até mesmo do próprio domicílio nos casos de anterior período de HDP.

Responsabilidade pela admissão em HDP: o médico hospitalar, assistente do paciente em causa, propondo à família e/ou paciente (tratando-se de adolescente) a modalidade assistencial de HDP. Nesta fase, é avaliada a eventual necessidade de dispositivos ou equipamento específico em função da patologia em causa (por ex. nebulizadores, bombas de perfusão, equipamento para oxigenoterapia em alto débito, etc.).

Área geográfica (distância entre local do hospital e local do domicílio): no caso de o doente com a indicação para HDP necessitar de transferência por qualquer razão do foro médico, importa que o tempo da transferência não seja superior a 20-30 minutos.

Formação teórico-prática dos elementos da família que autorizaram e assumiram a responsabilidade de colaboração na HDP; tal formação, na vertente teórica, poderá concretizar-se, por ex., através de material didáctico em papel, vídeo, DVD, etc. sobre problemas de saúde em geral; na vertente prática, cita-se como exemplo o tema sobre reanimação cardiorrespiratória, empregando modelos/ manequins de simulação, etc..

Garantia de meio de transporte para deslocação dos elementos da equipa ao domicílio: táxi, veículo próprio, etc..

Horário de trabalho: em condições ideais, a unidade de HDP presta assistência continuada 24 horas/dia, 365 dias/ano; contudo, por carência de recursos, tal não sendo possível, a alternativa é garantir a assistência entre 8-12 horas/dia, muitas vezes apenas nos dias úteis, gerindo o tempo e a periodicidade das visitas em função da patologia e do estado clínico. Fora do dito horário, está também prevista a modalidade não presencial de contacto telefónico diário com a família, designadamente utilizando por ex. as modalidades de sms, correio electrónico, vídeo-chamada, zoom ou skype.

Assistência integral: numa perspectiva holística, reforça-se a ideia de que é fundamental o trabalho multidisciplinar com a colaboração de todos os elementos da equipa, sendo desejável que exista contacto periódico com o médico de família responsável pelo paciente no âmbito dos cuidados primários/ centro de saúde. Aliás, numa fase de transição, está previsto que o médico de família possa integrar algumas das visitas da equipa ”titular” e, obrigatoriamente, aquando do dia em que termine o período assistencial a cargo da HDP (“alta” do paciente pela equipa de HDP).

Nota final: como foi referido no início, o funcionamento pleno da modalidade HDP, exigindo recursos, no nosso meio está ainda numa fase muito “embrionária”.

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ASPECTOS DA MEDICINA INTEGRATIVA

Introdução

Ao longo do tempo, à palavra Medicina têm sido acrescentados adjectivos ou expressões adjectivadas traduzindo, quer diversas filosofias na prestação de cuidados de saúde de vária ordem, quer diversas atitudes e actuações profilácticas ou terapêuticas de acordo com certas experiências ou vivências.

Nesta perspectiva, virá a propósito mencionar alguns exemplos de terminologias com que frequentemente nos confrontamos: medicinas preditiva, preventiva, do trabalho, social, clássica (convencional, tradicional ou alopática), tradicional chinesa, homeopática, paliativa, alternativa ou complementar, baseada na evidência, narrativa, integrativa, etc.. As referidas terminologias, por sua vez, consubstanciam diversos cenários da relação médico-doente.

De acordo com fontes idóneas, a chamada medicina integrativa (MI) associa práticas da medicina clássica, ensinada nas universidades, com as práticas da chamada medicina alternativa ou complementar (que foram cientificamente comprovadas), criando-se um sinergismo.

Trata-se, com efeito, duma área em franca expansão na Europa e Américas, com alguns estudos publicados em revistas internacionais indexadas na PubMed, e sobre a qual a Organização Mundial da Saúde e a Academia Americana de Pediatria já se pronunciaram. A este respeito, cabe referir que no Brasil e Argentina, segundo estatísticas recentes, foi possível obter uma redução de custos em saúde da ordem dos 12,5%, explicável por menor consumismo de medicamentos.

Fundamentação

A medicina alternativa ou complementar (MA/C), integrando diversas modalidades e técnicas com indicações terapêuticas amplas, e baseando-se em conceitos filosóficos que correspondem a determinados estilos de vida, valoriza a noção de que os médicos devem, não só saber tratar, mas também saber cuidar, e de que o estresse psíquico influencia os sistemas nervoso, endócrino e imunitário. Desta última constatação nasceu uma nova disciplina designada psico-neuro-endócrino-imunologia.

No âmbito da MA/C, e em termos genéricos, os meios utilizados e a sofisticação tecnológica são muito variáveis: desde simples remédios caseiros, a produtos manufacturados complexos; estes poderão ser, ou altamente eficazes e seguros, ou ineficazes, perigosos e tóxicos.

De facto, a eficácia real atribuída à MA/C depende de diversos factores tais como a competência profissional e qualidades éticas de quem prescreve e pratica, e da idiossincrasia da pessoa assistida.

Contudo, há aspectos de grande relevância, contribuindo de sobremaneira para o êxito de tal prática: designadamente, as particularidades da relação médico-doente de quem exerce a MA/C, estabelecendo enorme empatia com o doente, ”preocupando-se mais com o doente que tem uma doença do que com a doença que o doente tem, colocando-se na posição do doente, e valorizando aspectos vividos para além da doença.

Esta postura, que dismistifica o poder absoluto da ciência, contribui para a humanização do acto clínico em medicina tradicional ou clássica e relaciona-se com a chamada “medicina narrativa”, área não desenvolvida neste capítulo.

No seguimento do que atrás foi referido e segundo os especialistas, a medicina integrativa (MI) é mais do que a soma da medicina clássica com a MA/C, no pressuposto (salienta-se) de serem utilizadas as modalidades desta última em que a eficácia e segurança foram cientificamente comprovadas.

E diz-se mais do que a soma…pelo facto de estar implícito obrigatoriamente um valor acrescido que se atribui à dimensão biopsicossocial, espiritual e holística, considerando a pessoa assistida como um todo e uma relação médico-doente mais humanizada.

Modalidades de MA/C

Entre os diversos grupos e modalidades de MA/C, derivados da medicina tradicional chinesa, cabe salientar aqueles em que se comprovou eficácia com base científica: a acupunctura, a osteopatia, a quiropraxia e os tratamentos farmacológicos biológicos, estes últimos já largamente utilizados em doenças do foro reumatológico.

Na caixa a seguir, anotam-se em síntese:

Acupunctura: esta prática é a mais conhecida como complemento da medicina convencional. Consiste na aplicação de agulhas para estimular pontos específicos do corpo. O alívio da dor, designadamente da dor crónica, como fibromialgia, contribuindo para o bem-estar, é o principal benefício associado a esta técnica.

Osteopatia: esta terapêutica (com nome derivado do grego osteon e relacionada com o tratamento dos ossos), idealizada pelo norte-americano Andrew Still (1828-1917) tem como filosofia uma abordagem holística, considerando o corpo como um todo. O objectivo é restabelecer a função de estruturas corporais através da intervenção manual sobre articulações, músculos e ligamentos. Os princípios da Osteopatia podem ser aplicados por fisiatras.

Quiropraxia: trata-se de terapêutica que, de certa forma, faz fronteira com a osteopatia. Etimologicamente, khei-ros, palavra grega, exprime a ideia de “mão”. Com efeito, na quiropraxia, para alívio da dor, as mãos (aliadas a uma ideia de conforto a transmitir) são utilizadas para promover o alinhamento das articulações, principalmente, da coluna vertebral, de modo a descomprimir as estruturas nervosas e a eliminar contracturas.

A posição de organismos internacionais

Em 1970, a Organização Mundial da Saúde (OMS) objectivou, em comunicados e resoluções, o compromisso de incentivar a nível mundial o desenvolvimento da Medicina Integrativa nos sistemas públicos de saúde; e, em 2002, reafirmou a respectiva estratégia, a qual teve seguidores na Europa e Américas.

Na transição para o século XXI, registou-se nos Estados Unidos um facto: uma proporção crescente de cidadãos (33-55%) passou a socorrer-se da MA/C pelo facto de se ter gerado certa desilusão com alguma falta de resultados em saúde em relação com a medicina clássica, considerando que “esta não satisfazia as necessidades” daqueles, “apesar do desenvolvimento da tecnologia”.

Nesta perspectiva, universidades de prestígio no Reino Unido, Israel e Estados Unidos (tais como Georgetown em Washington DC, Johns Hopkins, UCLA, etc.), reafirmando os valores humanísticos, e encarando o doente na perspectiva holística, ou seja, valorizando o conceito integrativo, passaram a incluir nos seus curricula programas educacionais conferindo competências nesta matéria aos seus graduados, após avaliação.

O próprio National Institute of Health (USA) criou um departamento para a investigação neste ramo, aguardando-se, entretanto, os resultados de estudos aleatorizados e observacionais sobre as implicações da formação no âmbito deste ramo da prestação de cuidados.

Por fim. relativamente à incorporação da MI nos programas de educação médica pré e pós-graduada e continuada, cabe citar a Academia Americana de Pediatria (AAP), de idoneidade indiscutível, e titular duma revista periódica de cariz formativo e enorme interesse pedagógico – Pediatrics in Review. Excelente repositório de temas de actualização, as respectivas edições incluem frequentemente artigos subordinados à rubrica Complementary, Holistic, and Integrative Medicine.

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SIMULAÇÃO E ENSINO-APRENDIZAGEM EM CLÍNICA PEDIÁTRICA

“It´s time to develop multimedia-based interactive training modules that provide really good simulations of possible experiences in a manner similar to the training and recertification of airline pilots”.

Fanaroff AF,1999.

Introdução

As metodologias e estratégias no âmbito da Educação Médica evoluíram muito nos últimos 40 anos. Com efeito, tem-se assistido a um verdadeiro movimento renovador com base em estudos científicos cuja liderança tem cabido a vários centros dos EUA, Reino Unido, Holanda, Suécia, Canadá e Austrália. Na Europa, entre outros centros pioneiros, Maastricht na Holanda e Dundee na Escócia, podem ser considerados exemplos paradigmáticos de excelência.

Nesta perspectiva, chamando-se a atenção para as potencialidades das novas tecnologias, têm sido preconizadas mudanças curriculares clamando maior efectividade dos programas formativos, designadamente no período da pré-graduação.

Cabe, a este respeito, uma referência especial aos seguintes documentos: Tomorrow´s Doctors (versões de 1993 e 2003) sob os auspícios do General Medical Council (GMC), Declaração de Edimburgo (1988), Iniciativa de Lisboa (1988) e às conclusões do evento World Summit on Medical Education em 1994. Dos mesmos resultaram determinadas recomendações, salientando as relacionadas com os seguintes tópicos:

  • Programas formativos em torno de problemas clínicos;
  • Programas formativos chamados “em espiral” cuja ideia principal é a de que um mesmo conteúdo deve ser apresentado de modo progressivo, em diferentes níveis de complexidade crescente, para melhor compreensão da sua aplicação à prática. Tal implica um esquema organizativo muito rigoroso, o qual pode ser consubstanciado na criação de áreas pedagógicas “em rede” ou agrupamento harmonioso de conteúdos, em contraposição ao aglomerado de disciplinas em compartimentos estanques em que se verifica maior probabilidade de repetições, com inconvenientes óbvios, designadamente quanto à gestão do tempo lectivo;
  • Participação dos alunos em projectos de investigação, sendo desejável o contacto com centros de investigação e personalidades ligadas a esta área;
  • Contacto, desde os primeiros anos do curso, com a futura realidade profissional em diferentes ambientes em que se poderá processar a prática clínica (infantários, escolas, centros de assistência à terceira idade, centros de saúde, escolas, visitas domiciliárias, etc.);
  • Programas utilizando a simulação em diversas modalidades associada aos métodos clássicos.

O objectivo deste capítulo é a abordagem de aspectos essenciais da “Simulação aplicável à Clínica Pediátrica” como estratégia de treino clínico tendo em vista a aquisição de competências técnicas e não técnicas.*

    • No texto, os: vocábulos “ensino-aprendizagem”, “ensino” e “aprendizagem” são por vezes utilizados indiferentemente.
    • Considerou-se a seguinte definição de competência: capacidade para a realização de determinadas tarefas com base em conhecimentos, atitudes, aptidões e valores. De acordo com Englander et al [2017]: “Competency An observable ability of a health professional related to a specific activity that integrates knowledge, skills, values, and attitudes. Since competencies are observable, they can be measured and assessed to ensure their acquisition. Competencies can be assembled like building blocks to facilitate progressive development”.
    • O inglesismo skill foi considerado como noção ligada a perícia, habilidade, destreza.

Simulação aplicada à Medicina

Em Medicina, o treino para aquisição de skills implica a “utilização” de seres humanos, adultos ou crianças, saudáveis ou doentes, cujas manifestações traduzem grande variabilidade de fenómenos biológicos.

Imperativos éticos e certos condicionalismos actuais relacionados, quer com novas regras de governação, quer com novos paradigmas assistenciais (de que são exemplo os internamentos de duração cada vez mais curta) limitam significativamente as oportunidades de treino para a aquisição das referidas competências.

Exemplificando com a situação clínica de meningite, comprova-se que as oportunidades de um interno de uma especialidade médica fazer uma punção lombar são escassas e, mais escassas são para alunos no âmbito do ensino pré-graduado.

Nesta perspectiva, surgiu o conceito de ensino – aprendizagem através do treino baseado na simulação.

Simular é, como se sabe, imitar ou fingir, fazendo parecer real o que não é. Tal conceito tem sido aplicado com objectivos educativos em áreas profissionais muito diversas; cita-se como exemplo clássico o treino dos pilotos da aeronáutica militar e civil desde há mais de 80 anos, utilizando simuladores de voo, não só para aprendizagem e aperfeiçoamento do desempenho em situações reais, mas também para avaliação do desempenho e recertificação periódica.

Considerando a área da clínica pediátrica, as capacidades a adquirir podem ser de âmbito:

  • Não técnico, compreendendo quer aspectos cognitivos (relacionados com conhecimentos fundamentais para a interpretação de dados clínicos), quer comportamentais (em relação com atitudes, tais como comunicação, liderança, atenção, trabalho de equipa, etc.);
  • Técnico, compreendendo aspectos psicomotores (gestos, habilidades, procedimentos ou técnicas em relação com o manejo de diverso equipamento com destreza).

Em Medicina, o desenvolvimento da área de treino baseado em simulação tem sido lento. Efectivamente, foi nas últimas quatro décadas que se verificou o maior impulso na sequência de estudos de validação científica comprovando boa relação custo-efectividade em termos de desempenho profissional futuro.

Porém, tal área de treino deverá ser encarada como complemento do treino clínico de proximidade, à cabeceira do “doente “real”. Assim, através da simulação em ambiente fictício, o praticante poderá cometer erros e corrigi-los, o que se afigura de grande utilidade: o objectivo último é saber estar e saber fazer bem, de modo correcto, o que garantirá a segurança do doente em situações reais futuras.

Assim a concretização dum programa de simulação obrigará, pois, a três requisitos fundamentais:

  • Condições logísticas que permitam criar um cenário, o mais aproximado possível da realidade;
  • Equipa treinada de formadores;
  • Equipamento para a simulação.

Âmbito da Simulação

Em Medicina o âmbito da simulação é lato, podendo abranger diversos cenários ou modalidades de treino de competências. Na sua forma mais simples e primitiva pode ser considerado acto de simulação o treino clássico na realização de determinadas tarefas ou procedimentos, com ou sem instrumentos, discriminados adiante, na alínea “Simulação aplicada ao ensino da Pediatria”.

Como modalidade clássica mais antiga de simulação, ainda hoje utilizada, remontando a séculos, cita-se a dissecção de cadáveres humanos e de animais como forma de treino em técnicas cirúrgicas.

Na década de 1960, a simulação começou a ter lugar na Medicina de Adultos com “doentes simulados”, ou seja, com pessoas treinadas (muitas vezes actores), para imitar situações clínicas diversas como expressão de dor com diversas localizações, tipos de tosse, dispneia, sibilância, estridor, crises epilépticas, abdómen agudo, etc.. Esta modalidade (Simulação com actores “doentes”, previamente treinados) permite igualmente o treino em comunicação.

Com o desenvolvimento da electrónica, dos sistemas multimédia e da criação das condições para a chamada “realidade virtual”, passou a ser possível utilizar programas de software permitindo obter treino em diversas áreas, nomeadamente em ventilação mecânica e na interpretação de casos clínicos, valorizando a semiologia e o treino em raciocínio clínico (Simulação baseada em computadores).

Ao mesmo tempo, a indústria passou a criar modelos com pormenores anatómicos e funcionais de grande minúcia (manequins simuladores) imitando fielmente o corpo humano, no todo ou em partes; inicialmente para treino de anestesistas, mais tarde passaram a ser utilizados para treino em reanimação básica e em procedimentos invasivos vários, como cateterismo, entubação traqueal, punção lombar, etc.. A chamada simulação híbrida congrega a combinação do cenário doentes actores com manequins simuladores.

Surgindo posteriormente a aplicação de programas de software aos manequins, entrou-se na era dos simuladores manequins de alta fidelidade ou baixa fidelidade, conforme o grau de sofisticação da tecnologia. Tais manequins robotizados, de corpo inteiro e assistidos por computador, adaptados à idade pediátrica, permitem reproduzir mais de uma centena de situações clínicas com fisiopatologia diversa.

Com a tecnologia que lhes serve de base, entre outras funcionalidades, executam movimentos de expansão e retracção torácica, cianose, palidez, sons e sopros cardíacos, pestanejo, adejo nasal, diversos tons de voz, diversos tipos de tosse, etc..

É igualmente possível observar o seu “comportamento” traduzido por efeitos ou “reacções” em função de determinadas intervenções terapêuticas ou procedimentos (correctos ou incorrectos); por exemplo, surgimento de cianose ou palidez, grito de dor, taqui ou bradicardia, etc.. É o caso dos simuladores designados por certas marcas de fabrico – SimMan (Laerdal Medical Corporation, Gatesville, USA) e por METI (Medical Educational Technologies Inc., Sarasota, USA).

Em suma, a tecnologia sofisticada passou a viabilizar manequins verdadeiramente “interactivos” com especial interesse, designadamente no treino em suporte básico e avançado de vida e em pneumocardiologia (Figura 1).

Outra modalidade é a chamada simulação baseada nas realidades virtual e virtual aumentada, com aplicação em diversos contextos, como no treino em técnicas cirúrgicas, designadamente em cirurgia laparoscópica. (pela particularidade da terminologia “realidade” no contexto deste capítulo, menos habitual, deverá consultar-se a caixa, a seguir à Figura 1).

1. Simuladores de baixa fidelidade

2. Simuladores de alta fidelidade

3. Tecnologia para realidade virtual

4. Modelos de treino de técnicas isoladas

5. Simulação baseada em computadores (software)

6. Simulação híbrida

7. Tecnologia para realidade aumentada

FIGURA 1 – Modalidades de utilização da Simulação em Medicina.

Realidade Virtual (RV): tecnologia que, através de instrumentos computacionais, permite “transportar” o utilizador para um ambiente virtual.
Realidade Aumentada (RA): tecnologia que, permitindo sobrepor elementos virtuais à nossa visão da realidade, combina imagens do mundo real com o mundo virtual; trata-se de conceito derivado do de Realidade Virtual.
Estas modalidades, implicando tecnologia dispendiosa, utilizam diversos dispositivos ou equipamento como “capacete” específico, monitores e dispositivo com formato de “óculos” associado a projector, etc..

Simulação aplicada ao ensino da Pediatria

Treino nas fases pré-clínica e de integração na prática clínica

Nas fases pré-clínica e de integração gradual na prática clínica do Mestrado Integrado em Medicina/MIM, de modo progressivo, para além do treino de atitudes, podem ser utilizados diversos tipos de manequins, assim como de aparelhos para o treino de técnicas e procedimentos. Especificando:

  • Prática correcta da lavagem das mãos em diversos ambientes;
  • Treino em comunicação: anamnese no contexto de casos clínicos simples recorrendo ao médico, incluindo situações de normalidade na perspectiva da prevenção e da informação clínica explicativa a familiares, etc.;
  • Utilização de manequins “anatómicos” como alternativa ao treino em cadáveres;
  • Medição da pressão arterial, treino em oftalmoscopia e otoscopia, manejo do oxímetro de pulso, etc.;
  • Inspecção e palpação de manequins exibindo diversa patologia (por ex. adenomegálias, globo vesical palpável, hepatosplenomegália, etc.);
  • Auscultação cardiopulmonar em manequim, aplicando tecnologia sofisticada assistida por computador (manequim de alta fidelidade);
  • Em ligação estreita ao relato de casos clínicos simples, observação de resultados imagiológicos em diversas idades incluindo o período pré-natal (fetos): por ex. de radiografia convencional, tomografia axial computadorizada, ressonância magnética, ecografia, etc.;
  • Entubações (gástrica, traqueal) em manequim;
  • Toque rectal e punção suprapúbica em manequim;
  • Aplicação de venoclise em manequim.

Treino na fase clínica do MIM, de pós-graduação e formação contínua

Nestes períodos da formação pediátrica, as áreas de treino, de execução mais complexa, incluem suporte básico e avançado de vida, assim como estabilização e transporte da criança gravemente doente. Eis os tópicos clássicos:

  • Prática na mudança de posição dos doentes simulados e transposição para macas ou camas;
  • Execução de determinados procedimentos utilizando partes de manequins convencionais (por ex. dorso, região dorso-lombar e região glútea para prática de punção lombar, membro superior para prática de venoclise ou cateterismo venoso, abdómen de recém-nascido para prática de cateterismo de artéria ou veia umbilical, abdómen e pelve para treino da manobra de Ortolani no recém-nascido, região vulvar e coxas com cabeça fetal em expulsão para compreensão da patogénese do traumatismo ocorrendo durante o trabalho de parto);
  • Prática de entubação traqueal e ventilação com pressão positiva intermitente, utilizando manequins clássicos;
  • Prática com desfibrilhador;
  • Programas estruturados de software em computador com sistemas áudio e vídeo, possibilidade de observação virtual do doente, discussão interactiva de casos clínicos, e avaliação final do desempenho;
  • Prática em manequins da alta fidelidade em centros de simulação (situações seleccionadas e adaptadas ao curriculum do MIM);
  • Programas de treino em reanimação e suporte avançado de vida como o EPLS (European Pediatric Life Support course ) ou de Reanimação Neonatal como o NLS (Neonatal Life Support) do ERC (European Resuscitation Council). Estes programas são considerados actualmente de referência e altamente recomendados no âmbito do Internato de Formação Específica em Pediatria e do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos. Desejável, contudo, é a inclusão nos programas já existentes de lista de técnicas e procedimentos, com aplicação de critérios de aprendizagem mensuráveis com base na simulação.

Nos EUA, o Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME) e a Residency Review Committee (RRC) for Pediatrics recomendam a aquisição das referidas competências em reanimação, e doutras já citadas, através do ambiente simulado durante o internato de pediatria.
Também, no Canadá e na Austrália, o uso proficiente e apropriado de competências técnicas em procedimentos invasivos constitui um requisito de acreditação dos programas de treino no âmbito dos internatos de Pediatria.

Quer no período da pós-graduação, quer no da formação contínua, para além das diversas valências de treino discriminadas anteriormente, e em função das necessidades educativas do praticante discente, poderão ser desenvolvidas as seguintes áreas:

  • Técnicas endoscópicas com simuladores assistidos por computador, com especial interesse em Cirurgia, Otorrinolaringologia, Pneumologia, Gastrenterologia e Urologia. O simulador para laparoscopia, designadamente o denominado pela sigla MISTELS (McGill Inanimate System for Training and Evaluation of Laparoscopic Skills) utilizado na Universidade de McGill/Canadá-Montreal, permite o treino na aquisição de capacidades em laqueações, execução de nós e suturas, e coordenação olho-mão em executantes dextros e sinistros;
  • Prática com simuladores de doenças cardiovasculares e de situações de anestesia utilizando, quer sistemas multimédia assistidos por computador, quer manequins de alta fidelidade;
  • Prática de farmacoterapia utilizando programas assistidos por computador centrados em fisiologia e farmacologia humanas; com esta estratégia é possível avaliar, em doente virtual, respostas específicas a fármacos, utilizados correcta ou incorrectamente;
  • Prática com manequins de alta fidelidade.

Estratégias para a formação

Para garantir a rendibilidade da aprendizagem, importa salientar determinados requisitos de ordem geral (a adaptar em função dos cenários anteriormente explanados), salientando-se que deverá imperar a noção de versatilidade:

  1. Antes do treino de procedimentos propriamente dito (treino), o formador explicando pormenores sobre o treino, procede à distribuição de um guião explicativo a todos os praticantes integrando, designadamente, métodos e estratégias, videogramas, cronograma das sessões e respectivos objectivos educativos.
    Este passo, exemplificando situações concretas com que o discente praticante se irá confrontar, consubstancia a noção de Briefing ou Prebriefing, termos muito usados na gíria internacional.
    Nesta sessão prévia impõe-se igualmente abordar um tópico designado na gíria internacional pela sigla CRM (Crew Resource Management), exprimindo um conceito. Tal área do conhecimento (CRM) teve origem nos procedimentos preventivos levados a cabo pelas tripulações de aeronaves perante riscos e erros de comunicação susceptíveis de provocar desastres e tragédias (ver caixa).

O conceito CRM, dizendo respeito ao treino em competências não técnicas como complemento das técnicas, e na gestão dos recursos, pode ser assim esquematizado:

    • treino na aquisição de competências, designadamente de liderança, utilizando todos os recursos disponíveis, incluindo todas as pessoas envolvidas assim como os equipamentos utilizados;
    • treino na execução de procedimentos feitos em segurança e na resolução de problemas surgidos, admitindo a possibilidade de surgirem erros, o que exige atitude de alerta para a prevenção destes;
    • treino na identificação das limitações humanas e técnicas associadas ao sistema;
    • treino em comunicação com eficácia entre elementos da equipa e na relação médico-paciente-família.

 

  1. O treino de procedimentos inicia-se após a breve explicação prévia do formador: os praticantes reúnem-se em pequenos grupos (não mais do que 4 por tutor e, idealmente, aos pares) dispondo em geral de 10-15 minutos para a execução de cada.
    • Havendo mais do que uma sala, o material didáctico poderá ser disposto de modo sequencial, o que facilitará a aprendizagem.
    • A atitude dos praticantes em geral, deverá ser o mais aproximada possível da situação real (em cenário de “doente”/manequim, ou de “reunião” para discussão de casos assistidos por computador) em obediência às normas vigentes na instituição.
    • No âmbito da prática de procedimentos invasivos, a acção formativa deverá incluir:
    • o ritual do “contacto com o doente-família” para obtenção de consentimento esclarecido na perspectiva de treino de capacidades para a comunicação;
    • o ritual da assepsia exigida com a realização de gestos simples, mas fundamentais, como os da lavagem correcta das mãos e utilização de “bata esterilizada”, precedidos pela colocação de avental, barrete e máscara (tal como acontece em ambiente de “bloco operatório”, de “bloco de partos”, ou mesmo de enfermaria onde poderão ser realizados procedimentos invasivos).
  2. Terminada a sessão de treino, este é ulteriormente completado em sessão na sala de reuniões com discussão docente/ discente sobre o desempenho da cada praticante, documentado com gravação. Nesta parte da acção formativa são emitidas recomendações pelo tutor sobre o que se aprendeu e sobre aspectos a melhorar. Este passo corresponde, pois, a um balanço final reflexivo sobre as tarefas realizadas durante a simulação, na gíria internacional designado por Debriefing (ver caixa).

 

Notas sobre terminologia internacional

Briefing ou Prebriefing – Sessão informativa preparatória para todos os praticantes em treino, antecedendo a experiência de simulação. Liderada pelo coordenador responsável, o objectivo é esclarecer sobre os objectivos do cenário, incluindo orientações para o uso de equipamentos (manequins e simuladores em geral) e contexto clínico do paciente. São reforçados os seguintes pontos: – necessidade de criação de ambiente sério e formal de aprendizagem, conquanto acolhedor e não hostil; – confidencialidade; e – participação equitativa.

Debriefing – Actividade que ocorre posteriormente à experiência de simulação, com o objectivo de consolidação dos conhecimentos. Tratando-se dum balanço do que aconteceu durante o treino, o coordenador dá oportunidade aos praticantes para reflectirem sobre o respectivo desempenho, sugerindo a colocação de dúvidas e a menção de aspectos que necessitam de revisão.
Existem vários métodos de Debriefing, utilizados por diferentes escolas. Entre os mais conhecidos e utilizados, citamos apenas três exemplos com siglas que correspondem a variantes estruturadas: – RUST (Reaction, Understanding, Summarize, Take-Home Messages); – FFAST (Feelings, Facts, Activity, Summary, Take Home Messages); – OSAD (Objective Structured Assessment of Debriefing).

Centros de Simulação

Em certos países, em hospitais e universidades com recursos avultados, existem áreas específicas de dimensões variáveis com toda a logística inerente a um serviço ou unidade (secretariado, enfermaria convencional, gabinetes de consulta, unidade de cuidados intensivos, bloco operatório, bloco de partos, sala de reuniões, etc.) onde são concentrados todos os recursos para a simulação; todavia, em vez de doentes reais há manequins e equipamento acessório. Este contexto corresponde ao centro de simulação “ideal”, nem sempre exequível, pelos elevados custos envolvidos.

O recrutamento dos formadores poderá ser feito entre clínicos ou elementos de enfermagem (ou outros profissionais ligados à saúde) motivados para o ensino centrado na simulação e experientes quanto à realização de certas técnicas e ao manuseamento de certa aparelhagem. De salientar que o treino com manequins de alta fidelidade implica formação específica nesta área.

Para além do formador (ou formadores) e dos discentes praticantes, e não existindo “doentes reais” no ambiente criado, é suposta a colaboração doutras pessoas com diversas funções associadas ao processo de simulação: pessoal de secretaria, familiares ou pessoas simulando familiares, médicos e enfermeiros, etc.., outras. Existe, portanto, um cenário próprio, quase “teatral”.

No referido centro é possível, de modo integrado, o treino de todas as capacidades descritas nas alíneas anteriores, incluindo lavagem das mãos, uso de bata, máscara, barrete, luvas, elaboração de relatórios, exposição oral de casos à cabeceira do “doente” e na sala de reuniões, etc..

Reitera-se que o praticante é igualmente treinado a adoptar atitudes correctas aplicáveis a casos específicos e a comunicar com médicos, profissionais de saúde, pessoal de secretariado e familiares.

No que se refere à logística e a aspectos organizativos, importa salientar que a escolha do equipamento deverá ser muito criteriosa e adaptada à realidade de cada instituição.

Como se pode depreender, reunidas as condições indispensáveis para além do equipamento (referidas anteriormente – formadores treinados e espaço disponível), haverá que colher referências junto de instituições com experiência comprovada neste âmbito.

Numa fase inicial de arranque, deverá ser adquirido material e manequins para prática de procedimentos básicos e treino de capacidades considerados prioritários, sem a preocupação de criar centro sofisticado. Igualmente, antes da aquisição do material haverá que ponderar os custos com as reparações e a manutenção do mesmo.

Numa perspectiva económica de racionalização de recursos e de poupança, haverá que organizar o plano contando com material já não utilizável na prestação de cuidados a doentes reais, mas ainda adequados no contexto de simulação, desde que reunidas condições de segurança para formadores e praticantes.

A experiência de um centro de simulação de técnicas em Pediatria (**)

Desde 2001, por iniciativa de JMVA, com a colaboração de MTN, e em afiliação à Universidade Nova de Lisboa através da Faculdade de Ciência Médicas/ Nova Medical School, funciona num dos pavilhões do campus do Hospital Dona Estefânia, uma área designada Centro Universitário.

Neste, para além de salas polivalentes onde decorrem acções de formação teórico-práticas, seminários e reuniões assistidas por meios audiovisuais, computadores com acesso à internet e biblioteca, localiza-se um Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria (CSTP), compreendendo sala de procedimentos, zona de lavagem e desinfecção das mãos e zona de armazenamento de equipamento. A equipa é constituída por elementos com formação em ensino por simulação, em número variável de acordo com as necessidades e a disponibilidade

(**) ABREVIATURAS: CSTP – Centro de Simulação de Técnicas em Pediatra; FCM/NMS/UNL – Faculdade de Ciência Médicas/Nova Medical School, da Universidade Nova de Lisboa; HDE – Hospital de Dona Estefânia, Lisboa; JMVA – João M. Videira Amaral; MTN – Maria Teresa Neto; PG – Pedro Garcia.

 

Os modelos disponíveis, representados na Figura 2, reproduzem de forma tão fidedigna quanto possível algumas das áreas anatómicas do corpo humano – cabeça e pescoço, boca, faringe e laringe (A), região abdominal, região umbilical neonatal com vasos umbilicais acessíveis (F), região lombo-sagrada para punção lombar (D), articulação coxo-femoral para manobra de Ortolani, membros superiores e inferiores (E) com componentes vascular e óssea e frascos com fluidos.

Existe também disponível o seguinte material, dum modo geral desactivado de diversas áreas assistenciais, tais como unidades de cuidados intensivos e bloco operatório: laringoscópios, tubos endotraqueais, máscaras laríngeas, insuflador manual auto-insuflável Sussex®, agulha intraóssea automática, cateteres venosos e arteriais umbilicais, material cirúrgico diverso (porta-agulhas, pinças, tesouras, pinças hemostáticas, etc.). Existe ainda material consumível diverso, tal como fios de sutura, cateteres, abocaths, agulhas, seringas e compressas.

Com os referidos modelos e material é propiciado o treino nos seguintes procedimentos e técnicas: estabelecimento de via aérea com máscara laríngea, tubo naso-faríngeo, entubação orotraqueal; ventilação com máscara e insuflador manual; cateterismo umbilical neonatal venoso e arterial; outros tipos de cateterismo venoso, periférico e central; estabelecimento de via emergente intraóssea; colheita de sangue venoso e arterial; punção lombar; limpeza e desinfecção de feridas; treino com material cirúrgico e suturas e drenagem de pneumotórax.

Figura 2 – Alguns dos modelos disponíveis no CSTP no Centro Universitário do Hospital de Dona Estefânia: modelo de estabelecimento da via aérea (A), modelos para punção venosa e arterial (B e E), instrumentos para suturas/ pequena cirurgia (C), modelo de punção lombar (D), modelo para canalização de artéria e veia umbilicais (F).
O CST tem vindo a crescer com a aquisição de novos modelos e substituição de outros, deteriorados pelo uso intensivo.

Nos primeiros anos, as acções de formação estiveram a cargo de um Professor (MTN). Desde 2011, o Coordenador responsável do CSTP é PG (Pedro Garcia), possuindo as seguintes competências: Tutor da FCM/NMS com Mestrado em Educação Médica, diferenciação em cirurgia e reanimação pediátrica e neonatal, e membro da Comissão de Reanimação do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa.

Ao longo de cada ano lectivo, recebem aulas de simulação de técnicas em pediatria cerca de 280 alunos, no âmbito do ensino da Pediatria do 5ª ano do MIM. Durante todo o ano lectivo, são recebidos dois grupos de 6-7 alunos por semana para participação em aulas com duração médica de 2 horas.

A execução de cada técnica é precedida de um enquadramento teórico para a realização da mesma (Briefing) em função de cada caso clínico, indicações e fundamentação da mesma, exames complementares a solicitar, resultados esperados e sua interpretação.

Segue-se a descrição da técnica e a demonstração prática do procedimento por parte do docente, chamando-se a atenção para o conceito atrás definido de CRM.

Posteriormente, inicia-se o treino individual dos alunos praticantes, com supervisão directa do tutor, prevendo-se repetição, tantas as vezes quanto as necessárias. Salienta-se que a orientação do ensino de gestos é feita individualmente, com a preocupação da aprendizagem correcta de cada procedimento, o qual é repetido até o aluno “saber fazere, sobretudo,saber fazer bem”, em obediência ao referido conceito de CRM.

No fim de cada bloco é solicitada de modo informal, a cada estagiário, opinião reflexiva sobre a sessão concluída, enquadrada nesta área de aprendizagem (Debriefing).

As opiniões dos alunos sobre o treino centrado na simulação podem sintetizar-se nas seguintes ideias-chave:

  • Aprendizagem útil/muito útil;
  • Sugerida maior carga horária dedicada a esta actividade;
  • Necessidade de melhoria das instalações;
  • Necessidade de aquisição de modelos mais diversificados; e
  • Substituição dos modelos mais antigos e deteriorados;
  • Considerado como muito positivo o apoio e acompanhamento personalizado dos docentes até “os alunos saberem fazer bem”.

Conclusão

  • A aquisição de competências, técnicas e não técnicas, adoptando o treino baseado na simulação como complemento da prática convencional em pessoa real afigura-se de grande utilidade, o que é corroborado por estudos científicos de validação, evidenciando bons índices de custo-efectividade; tal noção aplica-se a diversas fases da diferenciação profissional: desde a pré-graduação, à pós-graduação e à formação contínua.
  • A simulação como método de ensino-aprendizagem pode ser considerada um acto de treino clínico (tão natural como a sessão em que se apresentam casos clínicos para discutir, a prática em consulta externa, ou a visita médica clássica nas enfermarias).
  • Em termos organizativos e de planeamento, importa uma referência aos custos médios inerentes a esta estratégia de ensino-aprendizagem: um manequim convencional para idade pediátrica (ou parte anatómica de manequim) poderá oscilar entre 800 e 4.000 euros (sendo que existem manequins para diversas idades), e o dum manequim de alta fidelidade (robotizado, agregando mecanismos de software assistidos por computador), entre 80.000 e 250.000 euros.

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METABOLÓMICA – PERSPECTIVAS DE APLICAÇÃO À CLÍNICA

Definição e importância do problema

Perante a complexidade de determinadas patologias, os clínicos confrontam-se frequentemente com certas limitações quanto à sensibilidade e especificidade dos métodos laboratoriais clássicos utilizados para o diagnóstico. Por outro lado, em tais circunstâncias, segundo a experiência de investigadores, os referidos métodos são marcadores tardios da lesão de órgão.

No final do século XX, após a sequenciação do genoma humano, foram desenvolvidas novas metodologias – cuja designação termina com o sufixo “ómica” – representando a chamada Biologia dos sistemas. Com tal modalidade, torna-se possível a identificação e quantificação em simultâneo, de número significativo de metabólitos celulares (biomarcadores).

Trata-se, pois, duma nova área da ciência (Ciência das ómicas) em franca expansão, com o propósito de se proceder ao estudo integrado das moléculas que compõem um organismo.

As “ómicas abrangem áreas ou níveis de complexidade diversa mas interdependente, tais como: – a genómica e a transcriptómica, relacionadas respectivamente com os genes (ADN) e a sua expressão (ARN); – a proteómica, relacionada com as proteínas; e a metabolómica, área emergente da bioquímica analítica que identifica e quantifica os produtos intermédios ou finais das vias metabólicas (metabólitos, moléculas de baixo peso molecular). Uma vez que os metabólitos representam a expressão do genoma, transcriptoma e proteoma, os mesmos poderão reflectir o fenótipo de um organismo ou determinadas patologias em tempo real.

A Epigenética – interface entre a genética e os factores ambientais – estudando as modificações do genoma que podem ser transmitidas hereditariamente (alterações moleculares, designadamente metilação ou modificação das histonas, sem alteração da sequência dos nucleótidos do ADN) veio salientar a importância da regulação metabólica do ADN, regulação que pode ser avaliada e monitorizada precisamente através da metabolómica.

Através da metabonómica, variante da metabolómica, procede-se à avaliação em tempo real de determinado perfil metabólico em resposta a determinados estímulos como fármacos, nutrientes, exposição ambiental, etc..

No âmbito da comunidade científica, é consensual que a metabolómica é actualmente, a área das “ómicas” com maior utilidade na prática clínica pediátrica no que respeita especificamente à descoberta de biomarcadores, ao diagnóstico, prognóstico, e à avaliação dos efeitos de fármacos.

O objectivo deste capítulo é uma abordagem sucinta dos principais aspectos da metabolómica na perspectiva da aplicação à clínica pediátrica.

Aspectos metodológicos e limitações

Os vários aspectos da metodologia do estudo metabolómico estão resumidos no fluxograma que integra a Figura 1.

FIGURA 1. O processo da metodologia nos estudos metabolómicos (adaptado de MH Hanna & PD Brophy, 2015).

Salienta-se que é fundamental:

I – a correcta execução sequencial destes “passos” para evitar resultados enviezados;

II – garantir a validação correcta dos mesmos para evitar conclusões erradas.

As análises metabolómicas podem aplicar-se a qualquer tipo de amostras de produtos biológicos (urina, plasma, soro, sangue do cordão umbilical, saliva, ar exalado, fezes, líquido sinovial, tecidos em biópsias, etc.).

A urina é o fluido que mais frequentemente tem sido utilizado, com diversas vantagens, designadamente: – método de colheita não invasivo; – possibilidade de obter informação metabólica mais alargada, holística. Destas características decorre o seu especial interesse em Pediatria e Neonatologia.

A metabolómica utiliza actualmente tecnologias analíticas de elevada sensibilidade e especificidade como a cromatografia gasosa (GC) ou líquida (LC) associada a espectrometria de massa (GC-MS ou LC-MS), e a espectroscopia de ressonância magnética (NMR).

As plataformas mais frequentemente utilizadas em metabolómica apenas identificam espectros de moléculas cuja separação foi obtida com base na sua carga/ massa (espectrometria de massa, MS) ou nas propriedades magnéticas de átomos como 1H ou 13C (NMR).

A identificação dos metabólitos pode ser feita posteriormente através da utilização de bases de dados, como por exemplo a Human Metaboloma Database Metabolite, que associa espectros de MS e de NMR a metabólitos específicos e a vias metabólicas. Estas bases de dados incluem também referências a concentrações dos metabólitos em diferentes fluidos biológicos.

Os resultados analíticos (perfis de metabólitos) são submetidos a complexa análise estatística multivariada, sendo que o número de metabólitos submetidos a estudo pode ultrapassar várias dezenas ou centenas.

O conjunto dos vários metabólitos identificados (combinados e integrados num algoritmo único, interpretado de forma unificada), integra as chamadas “assinaturas”, na gíria dos investigadores.

As “assinaturas” são assim designadas por se assemelharem às vulgares assinaturas, reconhecíveis apenas no seu todo e por poderem contribuir para uma caracterização (metabólica) mais personalizada de cada indivíduo.

As mesmas podem ser comparadas a um código de barras (cada barra, cada metabólito): no seu conjunto é fornecida informação relevante, conquanto cada barra, como peça única, possa não ter significado.

Limitações

Apesar de se tratar duma área do conhecimento muito promissora, na fase actual verificam-se ainda algumas limitações relacionadas:

  • Com as características da tecnologia (equipamentos muito sofisticados e muito caros);
  • Com os recursos humanos (ainda escassos, exigindo-se elevado grau de diferenciação);
  • Ausência de definição dos valores de referência nalgumas áreas, entre o normal e patológico, o que constitui limitação acrescida no caso do organismo em idade pediátrica, caracterizado por variações dos metabolomas com o tempo, face ao crescimento e desenvolvimento; e
  • Falta de estandardização.

Áreas de investigação e aplicações práticas

No quadro 1 são enumeradas as áreas em que a investigação em metabolómica tem sido mais activa.

QUADRO 1. Áreas de investigação metabolómica em Perinatologia e Pediatria.

Medicina FetalRestrição do crescimento
Exposição a agentes infecciosos
Idade gestacional
Peso de nascimento
Prematuridade

Pediatria Neonatal – Neonatologia

Asfixia perinatal
Doenças hereditárias do metabolismo
Fibrose quística
Nutrição

Pediatria Geral

Agressividade
Anorexia nervosa
Asma
Neuro-psicopatias/Autismo
Hiperactividade e défice de atenção
Diabetes
Displasia broncopulmonar
Doença celíaca
Doença inflamatória intestinal
Enterocolite necrosante
Espondilite anquilosante
Fibrose quística
Nefro-uropatias
Defeitos congénitos cardíacos
Microbioma intestinal
Subnutrição
Obesidade e excesso de peso
Obstipação
Oncologia
Sepsis
Susceptibilidade a infecções

 

Citam-se a seguir alguns exemplos concretos de investigação em metabolómica, com aplicações práticas, designadamente quanto a decisões clínicas.

→ Análises em amostras de sangue do cordão umbilical:

  • Diferenças no perfil de aminoácidos e de outros metabólitos entre recém-nascidos (RN) com peso adequado para a idade gestacional e com restrição do crescimento intrauterino; entre RN de baixo peso e de peso normal; e entre RN pré-termo e de termo;
  • Diferenças entre gémeos monocoriónicos e bicoriónicos;
  • Diferenças entre RN com e sem quadro de asfixia perinatal, permitindo compreender a patogénese da adaptação à vida extrauterina (amostras de sangue do cordão);
  • Previsão da evolução clínica de RN com quadro de infecção congénita por CMV (citomegalovírus).

→ Análises em amostras de urina:

  • Diferenças entre RN com persistência de PDA (ductus arteriosus patente) quanto a necessidade, ou não, de profilaxia com anti-inflamatório (ibuprofeno) e, em caso positivo, previsão da resposta ao fármaco.

→ Análises em amostras de lavado broncoalveolar:

  • Diferenças quanto ao perfil de metabólitos do lavado broncoalveolar de RN com síndroma de dificuldade respiratória, pré- e pós-administração de surfactante.

Dados da investigação recente apontam para a comprovação de “assinaturas” compostas de biomarcadores que podem ser mais úteis na fenotipagem da asma e na selecção de tratamentos personalizados, comparativamente a estratégias baseadas em biomarcadores únicos.

A metabolómica da diabetes mellitus do tipo 1 (DM1) tem revelado aspectos curiosos. Demonstrou-se que as alterações da regulação do metabolismo dos lípidos e aminoácidos precedem o processo de seroconversão da autoimunidade pancreática.

Quanto ao papel da metabolómica e da metabonómica em nutrição na idade pediátrica, salienta-se a sua importância na identificação, a curto prazo, de marcadores de estado nutricional e, a longo prazo, na personalização do regime alimentar a recomendar.

Em medicina materno-fetal, as provas científicas mais interessantes dizem respeito à identificação de “assinaturas” metabolómicas urinárias das grávidas, preditivas do crescimento fetal. Acresce a possibilidade de intervenção precoce em contexto de factores de risco modificáveis como o estilo de vida das grávidas, por forma a alterar o metabolismo materno e, assim, a reduzir o risco de doença no recém-nascido.

No âmbito da avaliação de fármacos (fármaco-metabolómica) cabe citar, entre outros, os estudos preditivos do metabolismo e toxicidade de drogas, assim como a descoberta dos mecanismos de idiossincrasia.

A prevalência da asma na população pediátrica e o seu impacte, a diversidade de fenótipos e de prognóstico, assim como as limitações das terapêuticas farmacológicas, são alguns dos factores que justificam o maior desenvolvimento desta área. Há resultados encorajadores na aplicação da metabolómica, em tempo real e com dispositivos portáteis, dirigida à análise de compostos orgânicos voláteis.

O quadro 2 sintetiza alguns estudos de metabolómica em amostras líquidas obtidas por colheitas não invasivas relacionados com a asma em diversas populações pediátricas.

QUADRO 2 – Resumo dos estudos de metabolómica em amostras líquidas obtidas por colheitas não invasivas na asma em diversas populações pediátricas.

População (n)Amostra
(Método)
Metabólitos identificados com potencial capacidade discriminativaBibliografia
(n) = nº de indivíduos investigados; EBC = utilizando condensado do ar exalado; LC-MS = por cromatografia líquida associada a espectrometria de massa; NMR = por ressonância magnética nuclear.
Controlo saudável (25)
Asma (33)
EBC
(LC-MS)
Metabólito da prostaglandina, prostaglandina D2, leucotrieno C4, ácido 5-hidroxieicosatetraenóico.Glowacka E, et al, 2013
Controlo saudável (15)
Asma não grave (31)
Asma grave (11)
EBC
(LC-MS)
Ácido retinóico, deoxiadenosina, calcitriol, 20-hidroxi-prostaglandina F2alfa, tromboxano B2 e 6-ceto-prostaglandina F1alfa.Carraro S, et al, 2013
Controlo saudável (24)
Asma (65)
Saliva
Urina
(NMR)
Saliva: arginina, aspartato, citrato, taurina.
Urina: ácido butírico, ácido glucónico, ácido pantoténico, ácido quinolínico, lisina, pseudouridina.
(Pité L, et al – dados não publicados)
Asma controlada com corticosteróides (15)
Asma sem resposta a corticosteróides (15)
Urina
(LC-MS)
Gama-glutamilcisteína, cisteína-glicina, ácido 3,6-di-hidronicotínico, 3,4-di-hidroxi-fenilalanina, 3-metoxi-4-hidroxifenil (etileno)glicol.Park YH, et al, 2016
Controlo saudável (12)
Asma (41)
Urina
(LC-MS)
Ácido urocânico, ácido metil-imidazoleacético, dipéptido isoleucina-prolina.Mattarucchi E, et al, 2012
Controlo saudável (42)
Asma controlada (53)
Asma agudizada (20)
Urina
(NMR)
1-Metil-histamina, 1-metilnicotinamida, 2-oxoglutarato, 3-metiladipato, 4-amino-hipurato, O-acetilcarnitina, fenilalanina, triptofano, etc..Saude EJ, et al, 2011
Asma agudizada sob budesonida e salbutamol (69) ou placebo (48)Urina
(NMR)
Urina: cis-aconitato, lactato, 2-deoxyinosina, 3-metilhistidina, ácido 5-hidroxiindoleacético, 2-aminoadipato, glicose, citrulina, homoserina, histamina, alanina, asparagina, glicilprolina, snglicero-3-fosfocolina, sarcosina, ornitina, creatina, creatinina, glicina, isoleucina and trimetilamine N-óxidoQuan-Jun Y, et al, 2017

Conclusão

Sobre metabolómica, área em grande expansão, existem já na actualidade muitos estudos, particularmente no campo da asma. Salienta-se o interesse desta disciplina em Pediatria, considerando a utilização de amostras biológicas obtidas por métodos não invasivos, designadamente a partir do ar exalado, saliva e/ou urina.

Tendo em conta algumas limitações, torna-se obrigatório proceder à padronização no desenho dos estudos para a validação dos resultados em diferentes populações.

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QUALIDADE E SEGURANÇA EM CUIDADOS DE SAÚDE

Importância do problema: Primum non nocere

Os cuidados médicos podem, só por si, ser causadores de lesão. A dimensão do problema ao nível do sistema de saúde tornou-se evidente a partir dos anos 90, com a publicação por Lucian Leape dos primeiros artigos sobre a frequência do erro médico e com o relatório “To err is human: Building a safer Health System” do Institute of Medicine (1999).

Este estudo mostrou que doentes hospitalizados nos EUA, na proporção aproximada de 3 a 4%, sofriam danos como resultado de cuidados médicos, com um número de mortes anuais superior a 44.000. Nos hospitais portugueses, um estudo piloto revelou que 11% dos doentes adultos hospitalizados sofreram uma lesão associada aos cuidados de saúde. Para um profissional de saúde é hoje impossível ignorar esta realidade ou ficar indiferente à sua relevância na prática clínica.

À medida que os cuidados de saúde se tornam mais abrangentes, mais invasivos e mais complexos tecnologicamente, a intervenção do médico está cada vez mais dependente da subespecialização, da actualização científica e do trabalho de equipa. Neste contexto, tem-se verificado que os novos sucessos terapêuticos se acompanham de um risco cada vez maior, inerente ao sistema, e de maior número de oportunidades de erro e de lesão.

Paralelamente, os doentes e as suas famílias, estando mais atentos ao processo diagnóstico e terapêutico, tornam-se cada vez mais exigentes na avaliação dos resultados. E o grupo etário pediátrico está na linha da frente: quando consideramos os factores de risco para a ocorrência de incidentes (Quadro 1), verifica-se que a frequência de incidentes relacionados com a medicação em crianças e jovens é cerca de 3 vezes superior à dos adultos.

QUADRO 1 – Características de população pediátrica que a tornam mais susceptível à ocorrência de incidentes relacionados com os cuidados de saúde.

Dependência de um cuidador ou familiar para os cuidados habituais de sobrevivência (alimentação, locomoção, etc.) e para os cuidados médicos.

Comunicação difícil ou limitada pela idade e grau de desenvolvimento, com necessidade de interlocutores para a compreensão da história clínica, da doença e do plano terapêutico.

Anatomia e fisiologia imaturas, com desenvolvimento físico e cognitivo em mudança permanente limitando uma abordagem unificada a toda a pediatria.

Necessidade de equipamento ajustado à idade e necessidade de cálculos na prescrição e administração de medicação.

Epidemiologia diferente em relação à população adulta, com mais episódios de doença aguda e menos doença crónica.

 

A revisão de processos clínicos num hospital pediátrico mostrou que 15% das crianças hospitalizadas são vítimas de um evento adverso, ou seja, sofrem uma lesão relacionada com os procedimentos a que são submetidos. Muitos destes incidentes são considerados susceptíveis de prevenção.

A lesão originada pelos cuidados médicos é muitas vezes invisível para o doente e também para o próprio profissional, o qual é tentado a considerá-la inevitável ou pouco frequente.

O primeiro passo para a execução de práticas mais seguras na rotina é, por isso, garantir a maior visibilidade do erro e das suas implicações aos mais variados níveis (diagnóstico, medicação, utilização de equipamento, procedimentos, etc.).

Assim, recai sobre os pediatras grande responsabilidade, os quais deverão ser os principais promotores da segurança do doente.

Os incidentes relacionados com os cuidados de saúde na idade pediátrica

Como se definem

Para uniformizar os conceitos de incidente, de risco de evento adverso, de erro, de segurança e doutros termos relacionados com a qualidade dos cuidados de saúde, foi elaborada pela OMS em 2009 uma taxonomia internacional, recentemente adoptada pela Direcção Geral da Saúde (Quadro 2).

QUADRO 2 – Definição de conceitos em Segurança do doente.*

*Estrutura Conceptual da Classificação Internacional sobre Segurança do Doente, DGS 2011.
Segurança do Doente é a redução do risco de danos desnecessários relacionados com os cuidados de saúde, para um mínimo aceitável. Um mínimo aceitável refere-se à noção colectiva em face do conhecimento actual, recursos disponíveis e no contexto em que os cuidados foram prestados em oposição ao risco do não tratamento ou de outro tratamento alternativo.
Risco: a probabilidade de ocorrência de um incidente.
Dano associado ao Cuidado de Saúde é o dano resultante ou associado a planos ou acções tomadas durante a prestação de cuidados de saúde, e não de uma doença ou lesão subjacente.
Incidente de Segurança do Doente é um evento ou circunstância que poderia resultar, ou resultou, em dano desnecessário para o doente. Os incidentes surgem quer de actos intencionais quer de actos não intencionais.
Erro é a falha na execução de uma acção planeada de acordo com o desejado ou o desenvolvimento incorrecto de um plano. Os erros podem manifestar-se por prática da acção errada (comissão) ou por não se conseguir praticar a acção certa (omissão), quer seja na fase de planeamento, quer na fase de execução.
Ocorrência comunicável é uma situação com potencial significativo para causar dano, mas em que não ocorreu nenhum incidente.
Quase evento (near-miss) é um incidente que não alcançou o doente.
Evento sem danos é um incidente em que um evento chegou ao doente.
Incidente com danos (evento adverso) é um incidente que resulta em danos para o doente.

São frequentes?

Os incidentes relacionados com os cuidados pediátricos foram revistos por vários investigadores utilizando metodologias diferentes.

Diversos estudos adaptaram à Pediatria o método dos “triggers”, ou seja, a revisão dos processos clínicos dos doentes hospitalizados triados através da detecção de situações clínicas que podem fazer suspeitar de um incidente (ex: hipo ou hiperglicémia, hipo ou hipernatrémia, necessidade de antagonista de heparina ou de anticonvulsante).

Este método tem sido considerado o padrão para a determinação da frequência da lesão relacionada com os incidentes. A rede neonatal de Vermont Oxford analisando 1.230 relatos voluntários de incidentes em 54 unidades de cuidados intensivos neonatais, obteve os seguintes resultados:

  • 47% relacionados com a medicação;
  • 11% com erros de identificação; e
  • 7% com erro ou atraso no diagnóstico.

Em 10.778 prescrições pediátricas, o estudo de Kaushal et al detectou: 616 erros de medicação (5,7% das prescrições), dos quais 1% causaram lesão.

Num período de 1 ano, a National Patient Safety Agency no Reino Unido recebeu 910.089 relatos de incidentes dos quais 5% se relacionavam com os cuidados pediátricos e 2% com os cuidados a recém-nascidos.

Dos 339 diários clínicos pediátricos analisados por Carrol et al, 27% tinham registos errados referentes à medicação.

Os cuidados prestados em regime ambulatório têm sido menos estudados, não escapando contudo ao erro: de acordo com o estudo “Learning from errors in ambulatory pediatrics” analisando 147 relatos de erros médicos com origem em 14 consultórios, verificou-se que 37% eram relacionados com o tratamento, 22% com a identificação, 15% com as imunizações e 13% com exames diagnósticos.

Num serviço de urgência pediátrico canadiano foram verificadas as seguintes ocorrências: 100 erros de prescrição e 39 erros de administração de medicação por cada 1.000 doentes admitidos.

No Hospital de Dona Estefânia, o hospital pediátrico português com maior volume de doentes, foram relatados 3.418 incidentes relacionados com os cuidados de saúde entre 2002 e 2010 (8 anos), dos quais 428 (12,5%) foram relacionados com a medicação, 479 (14%) com o equipamento e 214 (6,3%) com a realização de procedimentos. 

Entre Janeiro de 2010 e Outubro de 2020, foram relatados 4.659 incidentes de segurança do doente, beneficiando já de uma plataforma electrónica de registo voluntário e confidencial. O padrão-tipo de incidentes relatados é semelhante ao dos anos anteriores, com predomínio de incidentes relacionados com os dispositivos e equipamentos (25,9%), medicação e fluidos intravenosos (16,9%), segurança geral (7,5%), dieta e alimentação (7%), comportamento (6,6%) e gestão do percurso do doente (6,5%).

Neste último período registaram-se também 210 incidentes relacionados com a informática. Os incidentes que se associaram com maior frequência a lesão do doente (evento adverso) foram as complicações cirúrgicas, as infecções associadas aos cuidados de saúde e os incidentes relacionados com a medicação.

Porque é que acontecem?

Embora uma acção ou omissão particular, um erro por desconhecimento do procedimento correcto, ou ainda um lapso momentâneo possam estar na origem imediata de um incidente (Quadro 3), a análise mais cuidada da situação revela invariavelmente uma sucessão prévia de pequenos desvios das práticas de segurança, influenciados pelo ambiente de trabalho.

QUADRO 3 – Alguns exemplos de eventos adversos em Pediatria.

Base de dados da Gestão de Risco do CHLC – HDE, Lisboa.
Lactente com suspeita de oclusão intestinal enviado para o bloco operatório sem observação prévia do cirurgião sénior, verificando-se a não indicação operatória quando o doente já estava ventilado e sedado na mesa operatória.
Erro na marcação na bomba infusora do ritmo de soro de correcção com cloreto de sódio (9 ml/hora em vez de 20 ml/hora) num recém-nascido com desidratação grave hiponatrémica, causando perfusão de dose infraterapêutica durante 12 horas.
Desconexão de cateter venoso umbilical, com consequente perda de sangue e necessidade de transfusão de concentrado eritrocitário e plaquetas.
Extubação acidental de criança ventilada e sedada durante a realização de radiografia do tórax originando bradicárdia e hipoxémia, sendo necessária ventilação manual com máscara e reentubação imediata.

 

Nos cuidados aos doentes no serviço de urgência pediátrico podem, por exemplo, ser factores contributivos para a ocorrência de incidentes: a incorrecta identificação dos doentes, a falta de experiência pediátrica do pessoal, o erro de cálculo nas doses de medicamentos, o défice de comunicação entre os profissionais que enviam e os que recebem o doente, ou entre os profissionais e os familiares, o diagnóstico errado por informação incompleta ou interrupções durante a avaliação do doente e a descoordenação por falta de treino em trabalho de equipa.

A cultura de segurança na prática clínica

A cultura de segurança ideal apoia-se em 4 elementos chave: os relatos de incidente, a justiça, a flexibilidade e a aprendizagem.

O relato voluntário dos incidentes detectados na prática clínica abre uma janela diagnóstica para as falhas do sistema. Para ultrapassar a habitual relutância dos profissionais em relatar é fundamental a compreensão, por parte da organização, do valor do relato como uma oportunidade para aprender e melhorar o sistema e não como factor de culpabilização.

A participação de enfermeiros, técnicos e médicos no sistema de relato ajuda a quebrar barreiras interprofissionais e a recolocar o interesse do doente (neste caso a prevenção da lesão) no centro dos cuidados. Sem desresponsabilizar os profissionais pelas quebras intencionais na segurança dos cuidados, uma cultura de justiça encoraja e valoriza a identificação das situações de risco, separando a sua análise e correcção da função disciplinar da instituição.

Uma cultura flexível favorece o trabalho de equipa disciplinado e a aquisição de competências técnicas em detrimento da hierarquia rígida ou do individualismo.

Numa organização de cuidados de saúde, todos os pormenores devem estar orientados para o doente. Em clínica pediátrica, este aspecto é particularmente importante: desde o treino dos vários profissionais no tratamento de crianças até à adaptação das instalações e dos equipamentos à dimensão infantil e à necessidade da presença permanente dos pais.

A flexibilidade também se traduz na incorporação da informação gerada pelos relatos de incidentes, avaliações de risco e auditorias na gestão diária da organização. São exemplos no Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central (CHULC):

  • A substituição rápida de equipamento com defeito detectado em relatos de incidente (sistemas de medição de diurese com tubos muito rígidos impedindo a clampagem, seringas mal calibradas que se soltam dos prolongamentos, agulhas de punção que se partem facilmente, prolongamentos de soro que não permitem perfusão com ritmos baixos, compressas cujos folhetos se separam);
  • A elaboração de procedimentos para actividades onde se verifique grande variabilidade (administração de terapêutica pré-anestésica, antibioticoterapia pré- e intraoperatória, actuação na dor abdominal aguda pediátrica, organização do processo clínico); e
  • A formação profissional em áreas transversais a toda a organização (controlo de infecção, reanimação pediátrica, prevenção do erro na via utilizada para o medicamento, segurança das instalações, etc.).

Uma cultura de aprendizagem utiliza a informação obtida pelos vários instrumentos de gestão de risco para implementar planos de acção correctivos ou preventivos da lesão do doente (Quadro 4).

QUADRO 4 – Análise de incidente e plano de acção.

*Causa raiz: a causa original da falha ou falta de eficiência de um processo; isto é, a razão fundamental para a ocorrência de um evento.
Base de dados da Gestão de Risco do CHLC – HDE, Lisboa.

Incidente
Lactente internado com alimentação parentérica exclusiva através de cateter venoso central de longa duração. Corte acidental do cateter pelo pai do lactente ao tentar remover com bisturi o adesivo que segurava uma luva de protecção colocada na zona de conexão do cateter ao sistema de soro (utilizada durante o banho do lactente).
Consequências para o doente
Necessidade de colocação cirúrgica de novo acesso central, perda de capital venoso (necessidade de laqueação de veia jugular).
Causa raiz*
Manipulação do cateter com técnica errada (utilização de bisturi).
Factores contributivos
Falta de formação do pai na manipulação de cateteres, excesso de confiança, presença de bisturis nos quartos, utilização pelos profissionais de procedimento inapropriado (luva e adesivo) para a protecção do cateter.
Plano de acção
Remoção dos cortantes dos quartos; plano de formação faseado dos cuidadores na manipulação dos cateteres com registo escrito do ensino e aprendizagem; não utilização de luva e adesivo para protecção do cateter.

A sistematização da análise e correcção dos incidentes com maior gravidade utilizando, por exemplo, o Protocolo de Londres, assim como a comunicação “em anonimato” dos resultados da investigação permitem criar uma memória organizacional susceptível de previnir ocorrências semelhantes no futuro.

As áreas que têm sido alvo de mais atenção dizem respeito a:

    • segurança do circuito de medicação, desde a prescrição à administração;
    • controlo de infecção hospitalar;
    • reconhecimento precoce da deterioração clínica do doente;
    • actuação rápida na paragem cardiorrespiratória;
    • comunicação eficaz da informação clínica;
    • prevenção das complicações cirúrgicas (compressas retidas, lado errado); e
    • identificação correcta dos doentes.


As medidas gerais sugeridas para cumprir estes objectivos são a simplificação de processos, a diminuição da variabilidade com o uso de protocolos e listas de verificação, a melhoria da comunicação e o treino de simulação e trabalho de equipa (Quadro 5).

QUADRO 5 – Cinco sugestões para melhorar a segurança do doente pediátrico.

1. Seguir protocolos escritos de segurança
2. Falar quando há dúvidas
3. Comunicar com clareza e precisão
4. Não desleixar o trabalho e impedir que outros o façam
5. Relatar e analisar os incidentes

E o doente? Aspectos da comunicação na relação médico-doente

Um estudo da Healthcare Commission (no Reino Unido) analisou o serviço prestado às crianças nos hospitais e detectou que apenas 24% das enfermeiras e 7 a 9% dos médicos tinham recebido algum treino na comunicação com crianças.

Segundo o referido estudo, e de acordo com os pais das crianças, os profissionais de saúde não dão grande importância à informação esclarecida sobre o estado clínico dos pacientes familiares, designadamente no contexto de deterioração do estado clínico ou do surgimento de novos sintomas.

Muitos estudos têm avaliado a participação das famílias e dos próprios doentes na promoção da segurança nos seus cuidados. Alguns hospitais (incluindo o HDE) sugerem sistematicamente ao doente e à sua família a lavagem das mãos, a vigilância para prevenção de quedas (grades das camas levantadas), dão conhecimento pormenorizado da medicação e dos procedimentos programados, alertam para situações de risco e esclarecem sobre a probabilidade de erros detectados durante o internamento.

Nesta perspectiva, os doentes que foram vítimas de um incidente que se tenha traduzido em lesão esperam uma comunicação honesta e aberta desse facto por parte dos profissionais implicados. Esta é uma “boa prática” reconhecida, mas infelizmente pouco praticada.

A dificuldade desta comunicação, sendo evidente, requer coragem, preparação e suporte por parte da instituição. Neste processo, não pode ficar esquecido o plano de cuidados ao doente lesado e o apoio ao profissional implicado.

Como saber e fazer mais

A segurança (em prol da qualidade dos cuidados prestados) implica um esforço conjunto dos profissionais, da administração e dos doentes e famílias, realçando-se a importância da participação dos pais nos cuidados pediátricos.

Em suma, todos os profissionais, particularmente os médicos, com o dever ético de investir na formação pós-graduada e continuada, devem incluir o treino da comunicação, do trabalho de equipa e da prevenção do erro no seu plano de formação em serviço.

Nesta perspectiva será de grande utilidade utilizar a experiência e as estratégias de diversos organismos internacionais devotados à melhoria da segurança e qualidade dos serviços assistenciais na idade pediátrica, tais como: National Patient Safety Agency, World Alliance for Patient Safety, Institute for Healthcare Improvement, Joint Commission, Agency for Healthcare Research and Quality.

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MEDICINA BASEADA NA EVIDÊNCIA – PRINCÍPIOS E APLICAÇÕES EM PEDIATRIA

Definição e importância do problema

A medicina baseada na evidência (MBE) é uma metodologia científica de apoio à decisão clínica que nas últimas três décadas adquiriu importância crescente na prática médica.

Considerando as diversas definições existentes, aquela que parece reflectir melhor os princípios e aplicações da MBE, foi descrita por Sackett (2000) que a refere como “the integration of best research with clinical expertise and patient values”. Na prática, a MBE pode ser vista como um processo sistemático de revisão, análise e utilização da literatura científica na avaliação das opções e no apoio às tomadas de decisão clínica.

Tal paradigma surge como opção do processo de tomada de decisão clínica utilizado durante séculos, que assentava, essencialmente, no ensino/ treino intensivo, na experiência individual (perícia/ expertise) acumulada e na aprendizagem com os “mestres” – medicina baseada na prática.

As principais críticas a este processo de decisão clínica residiam na enorme variabilidade das práticas, algumas delas com pouca sustentação científica e, consequentemente, dos resultados clínicos e económicos bem como no facto de nem sempre essas práticas serem avaliadas.

O desenvolvimento tecnológico, paralelamente aos sucessivos avanços na área da biomedicina, vieram colocar enormes desafios à prática clínica, exigindo uma constante actualização. Paralelamente, o difícil equilíbrio entre gerir recursos escassos e dispendiosos face a necessidades quase ilimitadas impõem, por parte da Sociedade, a prestação de cuidados efectivos, em tempo útil, centrados no doente, acessíveis, equitativos e com a máxima eficiência e segurança.

Na base desses desafios está a necessidade de obter e sintetizar a informação e o conhecimento científicos, válidos e relevantes, que sirvam de suporte à actividade clínica diária.

A questão central é, então, saber como podem os clínicos ter acesso à inovação e ao desenvolvimento que vai ocorrendo a um ritmo muito acelerado e, simultaneamente, dominar essa informação e conhecimento de modo a introduzir eventuais mudanças na sua prática para obter o máximo benefício para os doentes e o equilíbrio atrás referido.

Aspectos históricos

Historicamente, não obstante a utilização de estudos controlados no apoio à decisão clínica, remontar a 1940 pode dizer-se que a MBE, como metodologia sistemática, surgiu na década de 1970. Entre os pioneiros destaca-se Archie Cochrane (epidemiologista britânico), o principal impulsionador das revisões sistemáticas e o defensor da utilização de ensaios clínicos aleatorizados (randomized controlled trials – RCT) como “padrão de ouro” para se obter a prova ou a evidência em medicina, sendo igualmente.*

Mais tarde, nas décadas de 1980 e 1990, foram dados contributos muito significativos para a afirmação, conceptualização e desenvolvimento da MBE, salientando-se os estudos de David Sackett, Gordon Guyatt e Brian Haynes da Universidade de McMaster (Toronto, Canadá), e de David Eddy e colaboradores da Universidade de Duke (Carolina do Norte, EUA).

Virtudes e controvérsias

A MBE, ao defender a utilização da melhor prova ou evidência disponível para apoiar a tomada de decisão, incorpora três vantagens essenciais para a melhoria da prática clínica:

  • Proporcionar uma forma mais robusta e objectiva de definir e manter consistentemente elevados padrões de qualidade e segurança;
  • Promover o processo de transferência dos resultados decorrentes de estudos científicos para a prática clínica (medicina de translação);
  • Possibilitar ganhos de eficiência (através da diminuição de desperdícios e da aplicação de boas práticas).

Apesar de as virtudes atrás descritas serem facilmente identificáveis e estarem robustamente fundamentadas (prós), existem algumas resistências e oposições (contras) a este paradigma.

No essencial, as críticas assentam em dois argumentos:

  • A MBE diminui, ou não contempla, a importância da experiência clínica e a opinião do médico enquanto perito;
  • As condições em que são feitos os estudos e ensaios clínicos que definem as melhores práticas não são as que existem na prática clínica do dia-a-dia.

* Na verdade, segundo os filólogos, a palavra “evidência“, já radicada na gíria médica, é uma tradução não totalmente correcta da palavra em língua inglesa evidence que, em português significa “prova”. Mais correctamente, a tradução para português de, por ex. there is evidence seria “está provado” ou “existem provas de que…” Este anglicismo deve-se ao grande impacte que a língua inglesa tem hoje em diversas áreas da ciência.

João M. Videira Amaral

Haynes e colaboradores (2002) desenvolveram um modelo (Figura 1) que pretende demonstrar o papel central que a perícia/ experiência do médico tem na tomada de decisão clínica baseada na evidência.

Não pretendendo ser exaustivos na análise do modelo, parece-nos interessante referir o factor-chave nele contido: a experiência clínica (incluindo as competências básicas da prática clínica e a experiência individual do médico) deve ter em consideração e integrar, na tomada de decisão, as preferências dos doentes, o contexto e as circunstâncias da situação clínica, bem como o que está provado com rigor científico (isto é, a melhor prova ou evidência disponível).

Cinco passos fundamentais da MBE

Objectivamente, a MBE inclui cinco passos essenciais (Quadro 1):

  • A formulação de questões clínicas que emergem da constatação do problema, ou seja, converter a necessidade de informação em questões objectivas;
  • Pesquisar evidência, isto é, procurar e recolher provas que nos permitam dar resposta às questões clínicas levantadas;
  • Avaliação da qualidade da evidência (validade e utilidade clínica);
  • Aplicação da evidência ao doente individual ou grupo de doentes – população;
  • Avaliação do desempenho da aplicação da evidência na prática clínica (adesão à utilização da evidência e desfecho ou impacte nos resultados – Outcomes).

O Quadro 1 sintetiza estas ideias.

FIGURA 1. Modelo de tomada de decisão clínica baseada na evidência (adaptado de Haynes et al. 2002).

Haynes e colaboradores (2002) desenvolveram um modelo (Figura 1) que pretende demonstrar o papel central que a perícia/ experiência do médico tem na tomada de decisão clínica baseada na evidência.

Não pretendendo ser exaustivos na análise do modelo, parece-nos interessante referir o factor-chave nele contido: a experiência clínica (incluindo as competências básicas da prática clínica e a experiência individual do médico) deve ter em consideração e integrar, na tomada de decisão, as preferências dos doentes, o contexto e as circunstâncias da situação clínica, bem como o que está provado com rigor científico (isto é, a melhor prova ou evidência disponível).

Cinco passos fundamentais da MBE

Objectivamente, a MBE inclui cinco passos essenciais (Quadro 1):

  • A formulação de questões clínicas que emergem da constatação do problema, ou seja, converter a necessidade de informação em questões objectivas;
  • Pesquisar evidência, isto é, procurar e recolher provas que nos permitam dar resposta às questões clínicas levantadas;
  • Avaliação da qualidade da evidência (validade e utilidade clínica);
  • Aplicação da evidência ao doente individual ou grupo de doentes – população;
  • Avaliação do desempenho da aplicação da evidência na prática clínica (adesão à utilização da evidência e desfecho ou impacte nos resultados – Outcomes).

O Quadro 1 sintetiza estas ideias.

QUADRO 1 – Os cinco passos essenciais na medicina baseada na evidência.

    1. Formular uma questão clínica
    2. Pesquisar a informação mais relevante
    3. Avaliar a qualidade da prova ou evidência
    4. Aplicar a informação obtida ao doente
    5. Avaliar os resultados/ desempenho

 

A formulação de questões clínicas constitui o ponto de partida e, muitas vezes, a sua principal dificuldade, na medida em que nem sempre é fácil traduzir um problema clínico numa questão objectiva. Tendo essa dificuldade em consideração, Sackett e colaboradores (2000) desenvolveram um esquema que integra quatro pontos fundamentais (tipificados no acrónimo em Inglês, PICO, patient ou problema; intervention; comparison; outcomes), os quais devem ser tidos em consideração aquando da formulação de questões clínicas.

Apresentamos, como exemplo, o caso de um rapaz de 4 anos de idade que recorre ao seu médico assistente por febre com 12 horas de evolução e otalgia à direita. Na observação verifica-se uma membrana timpânica hiperemiada com abaulamento da mesma, compatível com otite média aguda (OMA) à direita. Surge a questão sobre medicar ou não com antibiótico, tendo em conta o seu efeito na duração dos sintomas, a ocorrência de complicações, a possibilidade de se estar perante uma situação frequente, a otite serosa, bem como potenciais efeitos adversos associados à terapêutica (Quadro 2).

QUADRO 2 – Exemplo duma questão clínica utilizando o acrónimo PICO.

P (Problema/ doente) Criança de 4 anos com otite média aguda

I (Intervenção) Antibioticoterapia

C (Comparação) Não medicar com antibiótico

O (Outcome/ Resultado) Duração dos sintomas, ocorrência de complicações, persistência de otite serosa e efeitos adversos da terapêutica

 

A pesquisa da literatura existente nas diferentes fontes de informação bibliográficas em formato digital (por exemplo: Cochrane; Pubmed; Web of Science; EMBASE, etc. onde se podem encontrar diversos títulos de publicação periódicas de carácter científico, tais como Evidence–Based Medicine; ACP Journal Club; Evidence-Based Practice; Clinical Evidence; Acta Paediatrica; Current Pediatrics; International Journal of Evidence Based Healthcare; Evidence-Based Child Health – Cochrane Review Journal; Pediatrics; Journal of Pediatrics; Pediatrics in Review; Archives of Disease in Childhood; British Medical Journal; New England Journal of Medicine; Lancet; Science) constitui um passo decisivo, uma vez que será esta a base da análise que posteriormente será avaliada e seleccionada, e que fundamentará as decisões/ opções a tomar.

Após pesquisar a literatura podemos obter:

  • quer estudos primários, como por exemplo, estudos retrospectivos de caso-controlo, estudos prospectivos de coorte, ensaios clínicos aleatorizados e controlados;
  • quer estudos secundários – síntese dos primários – de que são exemplo as revisões sistemáticas e as meta-análises relevantes para a questão colocada.

 

A fase seguinte consiste na avaliação crítica [em termos de validade interna (consistência do estudo entre a pergunta de investigação, a metodologia utilizada e os resultados obtidos), de validade externa (capacidade de obter resultados semelhantes quando se replica o estudo noutro contexto)] e utilidade clínica da evidência (ou implicações clínicas do que foi provado cientificamente).

Para o processo de avaliação crítica da evidência é fundamental obter respostas a um conjunto de questões e regras pré-definidas (por exemplo, risco de viés; como foi feita a aleatorização; grau de ocultação; os sujeitos foram tratados de maneira idêntica nos diferentes grupos do estudo?).

Outro critério para avaliar a utilidade da evidência em relação à capacidade para responder à questão clínica inicial pode ser ilustrado, numa forma hierárquica, conforme se apresenta na Figura 2 (hierarquia do valor relativo dos estudos primários e secundários).

Quando se considera estar perante um conjunto de literatura válida e útil (após passar pelo crivo de avaliação crítica) é chegada a fase de decidir qual a evidência que pode ser aplicada/ utilizada para determinado doente em particular, ou para uma determinada população.

Tal decisão deve contemplar os valores e preferências do doente, bem como as circunstâncias presentes. Outro aspecto crucial a ter em consideração diz respeito à discussão que deve haver entre o médico e o doente e/ou seus familiares, sobre a efectividade e os riscos inerentes às opções válidas. Dessa forma, o doente torna-se actor participante (aquilo que alguns autores anglo-saxónicos denominam de “therapeutic alliance”) e tem a possibilidade de fazer escolhas informadas. Ainda nesta fase, de aplicação do que está provado (da evidência), é fundamental integrar as questões custo-efectividade e a disponibilidade e exequibilidade da opção escolhida.

FIGURA 2. Hierarquia da evidência (adaptado, Haynes, 2006).

Por último, e não menos importante, vem a fase de avaliação após aplicação da evidência na prática clínica. Tal avaliação deve ser realizada periodicamente (em intervalos de tempo razoáveis), e possibilitar a introdução de melhorias em qualquer das quatro fases antecedentes.

Um exemplo importante é a realização de reuniões de revisão de casuística e de reuniões sobre morbilidade e mortalidade. Tais acções têm por base um processo de auto-avaliação da prática clínica de forma reflexiva.

Paralelamente, a execução prática de um programa de auditorias, internas e/ou externas é, de facto, desejável, pois permite medir o grau de utilização da MBE na tomada de decisão clínica, bem como o seu contributo para a melhoria da qualidade e da segurança dos cuidados prestados. Outro aspecto incontornável, principalmente na actual conjuntura socioeconómica, é a necessidade e a pertinência de se proceder a estudos de avaliação económica que permitam avaliar, numa perspectiva de custo-benefício, a adopção de tal metodologia na prática clínica do dia-a-dia.

Síndroma da morte súbita do lactente e plagiocefalia, exemplos de estudo

As recomendações actuais a nível nacional e internacional são unânimes em defender o decúbito dorsal como posição para dormir nos lactentes, por forma a prevenir a entidade síndroma de morte súbita do lactente (SMSL). Dado tratar-se dum tipo de patologia pouco frequente numa população saudável, as recomendações foram essencialmente baseadas em estudos de “caso-controlo”.

Na segunda metade do século XX fora aconselhado o decúbito ventral, com base em argumentos fisiológicos e fisiopatológicos. Com efeito, até 1970 foram publicados os resultados de dois estudos revelando um risco superior de SMSL associado ao decúbito ventral; a partir de 1986 estudos realizados em vários países revelaram consistentemente resultados semelhantes e, em 1988, foram publicados na revista Lancet os resultados preliminares duma primeira revisão sistemática.

Seguiram-se entretanto campanhas de saúde pública (a iniciativa Back to Sleep a partir de 1990) e a substancial redução da incidência de novos casos de SMSL (~50%) em concomitância com a redução da prevalência do decúbito ventral, o que se considerou sucesso. Contudo, aplicando tal medida, por outro lado e simultaneamente observou-se um incremento exponencial (~600%) da plagiocefalia.

Novos estudos foram realizados perante esta realidade e, numa perspectiva preventiva deste problema crescente relacionado com a campanha Back to Sleep, a Academia Americana de Pediatria em 2000 lançou nova campanha designada Back to Sleep – Tummy Time to Play, passando a aconselhar durante o período em que o bebé está acordado, o decúbito ventral de 10-15 minutos, pelo menos 3 vezes por dia, sob estrita vigilância.

Pode, pois, concluir-se que a concomitância ou associação dos factos descritos constituem provas convincentes ou evidências (ou, segundo a gíria da MBE, “as melhores evidências” disponíveis): no primeiro contexto, traduzidas em redução de mortes potencialmente evitáveis; no segundo contexto, traduzidas em redução da prevalência de plagiocefalias.

A este propósito, aconselha-se a consulta dos capítulos sobre Discranias e Plagiocefalia, na Parte XXI.

Normas de orientação clínica e MBE

As normas de orientação clínica – NOC (guidelines) – constituem um conjunto de recomendações desenvolvidas de forma sistematizada para apoiar o médico e o doente na tomada de decisões acerca dos cuidados de saúde, em situações clínicas específicas.

A metodologia de elaboração das NOC obedece aos princípios gerais da medicina baseada na evidência, ou seja, assenta na interpretação e síntese dos estudos científicos publicados sobre a matéria em discussão.

Cada NOC deve propiciar, de forma explícita, toda a informação disponível sobre a estrutura da sua concepção, como por exemplo: título; responsáveis pela sua elaboração; fontes de financiamento; objectivos; intervenções/ práticas; fonte e métodos de selecção da evidência científica; metodologia e avaliação crítica da referida evidência; recomendações principais; análise de custos; benefícios e riscos potenciais; e as datas previstas para se proceder à revisão das recomendações.

A “força ou robustez das recomendações de uma NOC deve ter por base um conjunto de factores, salientando-se os seguintes:

  • A qualidade da evidência (prova científica) em que se baseiam;
  • O balanço entre os riscos e os benefícios;
  • A aplicação e disponibilidade no contexto e nas circunstâncias em causa; e
  • O impacte em termos de custo-benefício.

Considerando as diferentes abordagens quanto à avaliação da qualidade da evidência e à hierarquização da força de recomendação das NOC, o Grading of Recommendation, Assessment, Development and Evaluation (GRADE) é, provavelmente, a mais conhecida e utilizada na generalidade dos vários centros mundiais. O GRADE tem por base uma abordagem sistemática relativamente a cada um dos factores enumerados no parágrafo anterior.

A concluir, cabe destacar que a MBE tem como principal objectivo melhorar a qualidade (senso lato)* dos cuidados através da integração da melhor evidência disponível com a perícia/ experiência do médico e as preferências dos doentes.

Longe de retirar a “arte” à prática da medicina, conforme alguns críticos afirmam, a MBE realça e potencia a interface entre “a ciência e a arte” na prestação de cuidados de saúde.

*Nas dimensões definidas por Maxwell: efectividade, eficiência, segurança, aceitabilidade; equidade; relevância.l

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