A importância de novos paradigmas
Na sequência do que foi afirmado no capítulo anterior, pode inferir-se que o feto e o recém-nascido são um continuum de uma mesma entidade cuja abordagem é levada a cabo (e cuja prestação de cuidados é feita) em tempos diferentes por especialidades diferentes, com o objectivo de se assegurar um ser humano saudável.
O especialista em diagnóstico pré-natal, na posse do seu treino imagiológico e de técnicas de intervenção, tem uma acção muito dirigida ao feto; o obstetra procura que a mãe tenha as condições ideais para que o embrião e, depois, o feto, se desenvolvam harmoniosamente; e, finalmente, o pediatra vigia e cuida do recém-nascido desde o momento do nascimento.
De facto, a vigilância da mulher grávida em moldes clássicos, dando continuidade a práticas de há muito, valoriza essencialmente certos algoritmos de procedimentos e determinados exames complementares, subalternizando, não só certas características específicas e a individualidade da mulher, mas também a relevância do ambiente em que o feto se desenvolve.
Consequentemente, tendo em consideração a realidade descrita e os resultados da investigação, quer sobre a díade mãe-feto, quer sobre a importância do ambiente em que o feto se desenvolve (microambiente), e quer ainda sobre a do ambiente em que a grávida vive (macroambiente), os investigadores passaram a chamar a atenção para a necessidade de criar novos modelos de acompanhamento da gravidez.
O objectivo deste capítulo é descrever sucintamente, segundo a experiência e a investigação da autora, alguns dos pilares essenciais duma proposta de vigilância integrada da gravidez. (ver adiante)
Cuidados pré-concepcionais
Relativamente aos cuidados pré-concepcionais, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou diversas publicações, quer na sua plataforma (www.dgs.pt), quer na sua rede de intranet sobre Saúde Reprodutiva.
O impacte do trabalho profissional da grávida e da jovem mãe
As questões laborais no nosso País continuam a ter um impacte com repercussões negativas na grávida, apesar da legislação que apoia a gravidez e da existência de entidades que centralizam informação ou sinalização de casos (por ex. CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, acessível em www.cite.gov.pt). Qualquer grupo de trabalho nesta área terá uma capacidade de acção limitada, pois a prática clínica diária revela que a raiz do problema está na mentalidade estrutural da população.
Com efeito, as entidades patronais nem sempre “facilitam a vida” a trabalhadoras que tenham de seguir as orientações do médico. Eis alguns exemplos: ter de faltar para ir a consultas ou realizar exames, mudança de tarefas de uma funcionária, sua colocação num local compatível com esforço físico menos exigente, garantia de refeições a horas certas, ou ter de “picar o dedo” para colheita de sangue quatro vezes por dia para avaliar a glicémia.
Se o tempo de gravidez pode constituir, por si só, um risco de despedimento ou atitudes de má vontade da parte patronal, para a mãe, os primeiros tempos de vida do filho também poderão constituir uma preocupação baseada na realidade. E utilizando a licença de parto para que a mãe possa acompanhar em casa o filho, a mesma poderá não ser viável no contexto das profissões liberais. Por sua vez, na hipótese de os progenitores terem idêntica profissão, a licença de paternidade poderá ser inviabilizada.
Outras questões se levantam ainda, relacionadas designadamente com a circunstância de o bebé poder adoecer, implicando faltar ao trabalho por impossibilidade ou ausência do apoio por parte dos avós ou outros familiares.
Poderá surgir aqui um dilema: tendo em consideração que a população feminina jovem, valorizando muito uma carreira profissional com sucesso, por outro lado é confrontada com a imposição de condições estruturais adversas por parte da sociedade civil, o que poderá determinar situação de estresse com as implicações deletérias de impacte a longo prazo e transgeracional. (ver capítulo sobre “Doenças do feto com repercussão no adulto” – volume I).
Na verdade, na nossa prática clínica e na nossa vida diária, damo-nos conta de que existem situações laborais de pressão excessiva, de perseguição, ou mesmo de assédio por parte de certas entidades patronais no contexto de “colaboradora que está grávida ou tem um filho bebé”. Poderá tratar-se, pois, de situações que consubstanciam quadros bullying e harassment laboral com certa impossibilidade de mitigação face a uma legislação de protecção legal, que existe, mas é algo limitada.
A este propósito, importa salientar que, embora os actuais benefícios monetários disponibilizados às famílias possam constituir incentivo para certos grupos populacionais, tal critério não é aplicável à totalidade.
Enfim, para obviar alguns dos inconvenientes apontados, assim como alguns dos factores considerados adversos, especialmente no contexto da gravidez e dos primeiros meses de vida, torna-se lógico admitir que a flexibilização de horários, aplicada quer à grávida e jovem mãe que trabalha, quer ao pai, contribuiriam decisivamente para a redução do estresse a que nos referimos anteriormente.
Actuação prática
A figura 1 esquematiza uma proposta de acompanhamento da grávida em que os diversos aspectos a ter em conta, desde o início, são planeados de forma integrada.
Figura 1. Proposta de acompanhamento planificado da gravidez por objectivos e com cuidados integrados. (TMV)
Na pré-concepção ou na primeira consulta da gravidez, propõe-se uma avaliação e uma caracterização multidisciplinar, devendo estabelecer-se um plano contemplando as seguintes vertentes:
- cuidados nutricionais (indicados por nutricionista);
- actividade física;
- cuidados de âmbito emocional (com base no perfil psicológico detectado); – cuidados obstétricos (organização de acompanhamento periódico, exclusivamente por médico, ou partilhado por enfermeira especialista);
- acompanhamento dirigido às especificidades laborais, contendo designadamente recomendações relativamente a tarefas profissionais compatíveis com a situação, ou a outras consideradas como contra-indicação;
- eventuais reajustamentos ao longo da gravidez em função do contexto clínico, o que pressupõe seguimento, caso a caso, com definição de datas em períodos considerados mais vulneráveis.
No plano de gravidez inicial, deveriam ainda ser incluídos:
- os tempos e os exames propostos para a realização de ecografias ou de diagnóstico pré-natal;
- preparação para o aleitamento materno;
- o programa de preparação para o parto com especificação de datas;
- marcação da consulta de avaliação pediátrica pré-natal para o início do terceiro trimestre; e
- programa de apoio social e domiciliário com especificação de datas, sempre que se considere conveniente.
Como importante nota complementar, este plano de gravidez deveria contemplar ainda:
- todo o período da gravidez, parto, e primeiros dois meses pós-parto, até à revisão da puérpera, dado que todo este tempo é essencial para a saúde da mulher e do filho;
- os cuidados pediátricos com especificação de datas ajustadas às directivas actuais e já praticadas, quer no âmbito dos cuidados primários de saúde, quer no de outros locais mais diferenciados.
O plano de acompanhamento psicológico deveria prolongar-se caso fossem identificadas situações de casos vulneráveis relacionados, por exemplo, com violência doméstica em associação a graves situações de medo e de ansiedade. Nesta perspectiva, seria ainda pertinente introduzir a figura da gestora da grávida, certamente desempenhada por uma enfermeira cuidadora e organizada, a qual deveria integrar todos os aspectos de acompanhamento e servir de ponte facilitadora entre as diversas áreas do plano individual de cuidados.
Conclusão
- Tendo como fundamentação o texto que integra este capítulo, é legítimo afirmar que a estratégia definida para o seguimento da gravidez é exigente sob o ponto de vista do envolvimento dos cuidados de saúde, uma vez que requer técnicos de várias áreas a trabalharem de uma forma multidisciplinar integrada, quer numa fase inicial, quer depois, de forma transdisciplinar e a longo prazo.
- No que respeita aos cuidados de saúde materna (quer primários, quer hospitalares), os mesmos deveriam ser reestruturados, tendo como base novas linhas de orientação mais atentas e abrangentes, pois o investimento feito nos primeiros mil dias da vida, ou seja, desde a concepção até se completarem dois anos de vida pós-natal, são fulcrais para toda a vida do indivíduo, com benefícios indiscutíveis para toda a sociedade.
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