1. HIPERTERMIA

Definições e importância do problema

A temperatura corporal compreende dois componentes: a chamada temperatura central (ou do interior do corpo), e periférica (ou do exterior, à superfície do mesmo). A temperatura central pode ser representada pela temperatura rectal, esofágica e oral; por sua vez, a temperatura periférica pode ser exemplificada pela temperatura cutânea, em geral determinada na região axilar. Cabe salientar, a propósito, que a temperatura central se relaciona com o risco de lesão dos vários órgãos.

Os termorreceptores em relação com a temperatura periférica residem na pele, enquanto os receptores para a temperatura central estão localizados, não só na pele, como no córtex cerebral, hipotálamo, tronco cerebral, medula espinhal e estruturas abdominais profundas.

Com as variações de temperatura, estes receptores transmitem impulsos aferentes através do feixe lateral espinotalâmico para o termóstato central localizado no hipotálamo anterior/pré-óptico que, com papel regulador, contribui para que a temperatura corporal se mantenha dentro dos níveis de normalidade (36-37,5ºC).

O termo genérico hipertermia refere-se à situação em que se verifica elevação da temperatura corporal para além dos limites de regulação do hipotálamo, quer por perda, quer por ganho excessivo de calor. O termo febre, com uma acepção mais ampla, designa especificamente elevação da temperatura central > 38,5ºC associada a determinados sinais e sintomas como taquicardia, taquipneia, delírio, letargia, alterações electrocardiográficas, etc.. Muitas vezes estes termos são empregues impropriamente como sinónimos.

O termo golpe de calor, situação potencialmente fatal, caracteriza-se pela elevação da temperatura central > 40ºC, associada a sintomas e sinais com maior repercussão sobre o estado geral que na situação considerada febre.

Existem múltiplas implicações fisiopatológicas da elevação excessiva da temperatura, de grau diverso em função da susceptibilidade individual, de base genética. A este propósito salientam-se as repercussões neurológicas, sobretudo ao nível do cerebelo, órgão particularmente sensível a altas temperaturas; outros problemas relacionam-se com a possibilidade de lesões no tubo digestivo e neurológicas, como hemorragia intracraniana, enfarte cerebral, edema cerebral, hipóxia-isquémia, etc..

Etiopatogénese

Para a melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes de hipertermia, importa recordar os mecanismos fundamentais do balanço térmico no organismo.

O calor é produzido no organismo como resultado final do metabolismo celular e também adquirido a partir do ambiente. As reacções metabólicas são exotérmicas, contribuindo para 50-60 kcal/m2/hora. Durante um esforço físico intenso a produção de calor pode atingir valor 10-20 vezes superior ao do correspondente à situação basal.

Os mecanismos de transferência de calor são quatro:

1 – Convecção: o calor é transferido através do ar e do vapor de água circundante ao corpo (dependendo do movimento do ar na pele e velocidade do vento e explica o efeito do uso de roupas largas e folgadas em climas quentes para manter algum conforto);

2 – Radiação: o calor é transferido por ondas electromagnéticas; trata-se da principal fonte de ganho de calor em ambientes quentes – até 300 Kcal/hora podem ser ganhas num dia de Verão;

3 – Evaporação: a conversão de um líquido para um gás resulta em transferência de calor (por exemplo 1 litro de suor resulta em uma perda de 580 Kcal de calor);

4 – Condução: o contacto físico transfere calor de um objecto mais quente para um mais frio (a água é 25 vezes mais eficiente que o ar na condução de calor).

 A maior parcela da perda verifica-se através da pele, designadamente por evaporação induzida pela perspiração. De particularizar que através dos vasos à superfície da pele é perdido calor do sangue circulante a determinada temperatura por condução e convecção, sendo que o sistema simpático regula o débito sanguíneo ao nível da pele através do efeito sobre fibras vasodilatadoras ou vasoconstritoras.

As síndromas com hipertermia podem ter na sua base factores ambientais por aumento do calor (ondas de calor, maior humidade) ou diminuição da dissipação do calor (excesso de roupa, maior humidade, anidrose), aumento da produção de calor (exercício físico, tirotoxicose, hipertermia maligna, síndroma maligna neuroléptica, feocromocitoma, delirium tremens, hemorragia hipotalâmica, ingestão tóxica – simpaticomiméticos, anticolinérgicos, ecstasy) e causas genéticas ou desconhecidas. De salientar que nos casos de hipertermia em que se identifica o exercício físico como factor de risco, poderá haver concomitantemente predisposição genética.

A seguir à elevação da temperatura corporal (com maior impacte nas situações de golpe de calor) surge elevação do nível sérico de TNF-alfa, IL1, IL6 e de endotoxinas susceptíveis de originarem lesão tecidual. Do balanço entre os mediadores pró-inflamatórios (tais como interferão-gama e IL1-beta) e mediadores anti-inflamatórios (tais como TNF-alfa e IL10) resultará o grau de lesão. A vasodilatação que resulta dos mediadores desvia o sangue da circulação esplâncnica para a circulação à superfície, do que resulta, designadamente hipóxia-isquémia gastrintestinal. A activação da cascata da coagulação como resultado da lesão tecidual pela temperatura excessiva traduz-se pela presença do complexo trombina-antitrombina e por diminuição do nível sérico das proteínas C, S e da antitrombina III.

Formas clínicas

Golpe de calor

Nos casos de exposição a calor ambiente excessivo em diversos cenários pode verificar-se delírio, convulsões, letargia ou coma; neste contexto, com temperatura central > 40,6ºC deve suspeitar-se de golpe de calor.

Em relação com os eventos fisiopatotógicos atrás descritos, verifica-se o seguinte quadro clínico-biológico-imagiológico: hipotensão e hipovolémia, IRA, alterações electrocardiográficas e ecocardiográficas (disfunção miocárdica, disritmias, alterações da condução, alterações do intervalo QT e do segmento ST, etc.). O prolongamento do intervalo QT poderá ser devido a diminuição do cálcio, magnésio e/ou potássio séricos (hipocaliémia- inicialmente- como consequência da alcalose respiratória), hiponatrémia (perdas de Na por sudorese acentuada), hipoglicémia, hiperuricémia, rabdomiólise (valor elevado de CPK e mioglobinúria), acidose láctica (compensada com alcalose respiratória por hiperventilação) e CID são achados frequentes.

A rabdomiólise, frequente no contexto de golpe de calor, leva a hiperpotassémia com acção cardiotóxica, mioglobinúria, necrose diafragmática e insuficiência respiratória grave. Nos casos de rabdomiólise, e nas 24-48 horas subsequentes ao episódio agudo do golpe de calor, pode surgir quadro de choque por sequestração de volume considerável de fluido intramuscular (síndroma compartimental), o que agrava a necrose muscular por compressão.

O quadro de SDR (tipo adulto) com sinais de hipoventilação globar (pulmão branco) pode estar relacionado com lesão alveolar pulmonar com disfunção ou destruição do surfactante.

As complicações do golpe de calor ao nível do SNC poderão obrigar a TAC ou RM para esclarecimento de eventuais lesões.

O diagnóstico diferencial faz-se com afecções do SNC (por ex. meningoencefalite), doença de Graves, acção de drogas como neurolépticos e anticolinérgicos, síndromas de abstinência de drogas (narcóticos, benzodiazepinas), cetoacidose diabética, hipertermia maligna (esta última abordada adiante mais pormenorizadamente).

O tratamento (emergente) em UCIP implica a aplicação dum conjunto de medidas assim sintetizadas (Quadro 1):

  • Ressuscitação cardiorrespiratória em obediência aos princípios explanados no Capítulo próprio, admitindo-se a eventualidade de ulterior ventilação mecânica com PEEP e oxigenoterapia para correcção da hipoxémia, não ultrapassando FiO2 de 50%; há que ter atenção ao choque pelas 24-48 horas, após o episódio inicial nos casos de rabdomiólise;
  • Aplicação de vários métodos de arrefecimento com o objectivo de obter temperatura central < 39ºC;
  • Fluidoterapia/reidratação em caso de rabdomiólise, com o objectivo de promover diurese > 3 mL/kg/hora e prevenir a IRA;
  • Correcção das alterações electrolíticas, tais como hiperpotassémia, hipocalcémia, etc.;
  • Correcção da hiperfosfatémia com quelantes do fósforo e diálise;
  • Alcalinização da urina acrescentando bicarbonato de sódio aos fluidos IV (para obter pH urinário > 6,5 a fim de prevenir a precipitação da mioglobina no túbulo renal, necrose tubular e IRA);
  • Administração de manitol IV (0,25 g/kg) uma vez obtido o estado de hidratação, com o objectivo de promover diurese osmótica;
  • Fasciotomia nos casos de rabdomiólise com síndroma compartimental.

QUADRO 1 – Métodos de antipirexia no golpe de calor

Gerais

    • Criança sem roupa.
    • Antipirético associado a fluidoterapia anteriormente referida.
      • 1º fármaco ” paracetamol po (10-15 mg/kg/dose, 4-6x/dia, até 80 mg/dia; duração variável); em alternativa pode ser usado propacetamol IV em que 1 g <> 0,5 g de paracetamol
      • 2º fármaco ” ibuprofeno po (5-10 mg/kg/dia, 4-6x/dia, até 20 mg/kg/dia); duração variável
    • Banho com água a temperatura cerca de 4ºC inferior à temperatura central, precedido de antipirético.
    • Ingestão de líquidos se o estado do doente o permitir.


Específicos (a aplicar apenas em UCIP)

    • Imersão em água com gelo (risco de vasoconstrição, interferindo com as medidas de ressuscitação).
    • Aplicação de água atomizada em micropartículas (spray) com ar quente de modo a manter a temperatura corporal > 33ºC (equipamento próprio).
    • Envolvimento com lençol húmido associado a deslocação de ar com ventoinha.
    • Aplicação de sacos com gelo sobre as axilas, virilhas e pescoço.
    • Outros métodos (em investigação)
      • introdução, através de sonda, de água fria no estômago e bexiga
      • fluidoterapia IV com fluidos arrefecidos

 

Síndroma de hipertermia maligna clássica

A chamada hipertermia maligna (HM) clássica é definida como uma síndroma hereditária autossómica dominante, com expressividade e penetrância variáveis (em relação com gene anormal localizado em locus 19q13.1, conhecendo-se mais de 15 mutações); pode estar associada a determinadas miopatias, designadamente a conhecida por central core.

A sua incidência varia entre 1/15.000 anestesias efectuadas em crianças, e cerca de 1/50.000 em adultos.

A etiopatogénese relaciona-se com disfunção do músculo esquelético (estriado), traduzida por incapacidade de a membrana do retículo sarcoplásmico reter o cálcio, aumentando a sua libertação para a estrutura muscular envolvente, o que leva a contracção muscular permanente e consequente estado hipermetabólico. Este estado de hipermetabolismo conduz a um aumento do metabolismo anaeróbio por estimulação do catabolismo do glicogénio, com acumulação de ácido láctico, aumento da produção de calor e de CO2 e aumento de consumo de O2. O aumento da permeabilidade das membranas leva a necrose das fibras musculares (rabdomiólise) com libertação de enzimas, electrólitos e mioglobina para a circulação sanguínea. Como se pode depreender, existe repercussão destas alterações ao nível de vários órgãos e sistemas, pelo que o doente deverá estar monitorizado em UCIP com apoio laboratorial e imagiológico contínuo.

As manifestações surgem sob a forma de episódios agudos na sequência de exposição do doente a certos anestésicos gerais potentes e a certos anestésicos locais (Quadro 2); para além da temperatura corporal excedendo por vezes 41ºC, verificam-se rigidez muscular, trismo, acidose respiratória e metabólica, taquicárdia e taquipneia (por vezes relacionável com SDR tipo adulto). Na ausência de intervenção emergente, a rabdomiólise leva a aumento dos valores de CPK ~ 35.000 UI/L e a mioglobinúria), verificando-se entretanto, taquicárdia, hipercaliémia e IRA mioglobinúrica. A repercussão hepática e hematológica traduz-se por elevação de ALT, LDH, TP, PTT, anemia, trombocitopénia, diminuição do fibrinogénio, aumento de PDF, etc..

QUADRO 2 – Hipertermia maligna (HM): agentes desencadeantes e agentes agravantes

* MAO = monoaminoxidase
DesencadeantesAgravantes
      • Halotano
      • Enflurano
      • Isoflurano
      • Desflurano
      • Sevoflurano
      • Metoxiflurano
      • Tricloroetileno
      • Ciclopropano
      • Contraste radiológico halogenado
      • Clorofórmio
      • Éter
      • Etileno
      • Succinilcolina
      • Drogas simpaticomiméticas
      • Drogas parassimpaticolíticas
      • Digitálicos
      • Cálcio
      • Potássio
      • Inibidores da MAO*
      • Inibidores da angiotensina
      • Antidepressivos tricíclicos
      • Bloqueantes dos canais de cálcio

Cabe salientar que a HM tem um espectro de apresentação clínica variável; de acordo com o Grupo Europeu de Hipertermia Maligna, distinguem-se os seguintes tipos: 1) fulminante – o mais grave com, pelo menos três das seguintes manifestações: taquicárdia e arritmia cardíaca, acidose, hipercápnia, rigidez muscular e febre; 2) espasmo do masséter – a única manifestação é a contractura do masséter ou trismo que, só por si pode levar a admitir o diagnóstico de HM em 50% dos casos; 3) abortivo, traduzindo-se por alguns dos sinais e sintomas ou alterações metabólicas descritos; a tríade “hipertermia, hipercápnia e acidose” constitui a associação mais frequente.

No diagnóstico diferencial da HM clássica há que ter em conta a chamada síndroma simile HM (SSHM) surgindo na ausência de exposição, quer a anestésicos, quer a succinilcolina; tal situação ocorre nos casos de coma hiperosmolar hiperglicémico não cetótico, associado a diabetes mellitus tipo 2, sendo que a hipertermia é desencadeada após administração de insulina. O quadro, mais frequente em obesos afroamericanos com acanthosis nigricans, é acompanhado de rabdomiólise, instabilidade hemodinâmica e falência de órgãos.

O tratamento de emergência da HM (a cargo do anestesista ou intensivista) integra um conjunto de medidas descritas nos Quadros 3, 4 e 5, relacionando aspectos semiológicos e diagnósticos com a actuação segundo a Associação da Hipertermia Maligna dos Estados Unidos da América.

QUADRO 3 – Hipertermia maligna: Avaliação Imediata

Avaliação imediata
Sinais de hipertermia malignaParagem cardíaca súbita/inesperadaTrismo ou contractura dos masseteres com succinilcolina
Aumento de ETCO2
(CO2 expirado)
Presumir hipercaliémia e iniciar tratamentoSinal precoce de HM
Rigidez corporalMedição de CPK, mioglobina e gasimetria até os valores normalizaremIniciar dantroleno se rigidez dos membros
Trismo ou contractura dos masseteresConsiderar dantrolenoPara procedimentos emergentes evitar agentes desencadeadores de HM; considerar dantroleno
Taquicardia/ taquipneiaSuspeitar de patologia miopática (ex. distrofia muscular)Monitorizar CPK imediatamente e de 6/6 horas até normalizar e pelo menos até 36 horas. Se urina escura testar para mioglobinúria
AcidoseReanimação pode ser difícil e prolongadaInternamento em Cuidados Intensivos até pelo menos 12 horas
Aumento da temperatura (pode ser um sinal tardio)  

QUADRO 4 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Aguda

Tratamento na fase aguda
1. Notificar o cirurgião
      • descontinuar agentes voláteis e succinilcolina
      • hiperventilar com FiO2 100% ou > 10 L/minuto
      • suspender o procedimento quando possível; se emergente, não usar agentes desencadeantes
2. Dantroleno 2,5 mg/kg ev rápido
      • repetir até regressão dos sinais de HM
      • se necessário máxima dose 10-30 mg/kg
      • dissolver 20 mg em pelo menos 60 ml de água esterilizada
3. Bicarbonato para tratamento da acidose metabólica
      • 1-2 mEq/kg de imediato se ainda não houver valores de gasometria 
4. Arrefecimento do doente se temperatura central > 39ºC
      • lavagem das cavidades abertas (estômago: lavagem gástrica por sonda naso/orogástrica – instilar 10 ml/kg de água ou soro fisiológico gelado em 30-60 segundos e remover em 30-60 segundos (objectivo: reduzir 0,15ºC por minuto); também se pode utilizar a bexiga e a ampola rectal)
      • lavagem peritoneal por catéter peritoneal: instilar e drenar 500-1000 ml de soro fisiológico gelado até temperatura central atingir 38-39ºC (objectivo: reduzir 0,5ºC por minuto ou 5-10ºC por hora)
      • perfusão endovenosa de solução salina gelada
      • arrefecimento externo: aplicação de gelo à superfície corporal, imersão em água gelada, vaporização com água tépida (15ºC), evaporação com ventoínhas, ambiente frio (ar condicionado, refrigeração)
      • suspender estes procedimentos quando temperatura central < 38ºC
5. Disritmias geralmente respondendo ao tratamento da acidose e hipercaliémia
      • usar fármacos adequados excepto os bloqueadores dos canais de cálcio (risco de hipercaliémia ou paragem cardíaca na presença do dantroleno)
6. Hipercaliémia: tratar com hiperventilação, bicarbonato, glicose/insulina, calcio
      • bicarbonato ≥ 1-2 mEq/kg ev
      • insulina ≥ 0,1 Unidade/kg e 1 ml/kg de glicose a 50% (adulto: 10 U insulina regular ev e 50 ml de glicose a 50% ev)
      • gluconato de cálcio a 10% ≥ 10-50 mg/kg se risco de vida pela hipercaliémia
      • monitorizar glicemia de hora a hora
7. Monitorizar ETCO2, electrólitos, gasometria, CPK, temperatura central, diurese e coloração da urina, provas de coagulação
      • induzir diurese se < 0,5 ml/kg/h ou CPK e/ou caliémia em agravamento, para evitar insuficiência renal por mioglobinúria

QUADRO 5 – Hipertermia maligna: Tratamento na Fase Pós- Aguda

Tratamento na fase pós-aguda
      1. Observação do doente em Cuidados Intensivos até pelo menos 24 horas pelo risco de recorrência
      2. Dantroleno 1 mg/kg ev de 4-6 horas de intervalo ou 0,25 mg/kg/hora de perfusão ev, até pelo menos 24 horas
      3. Monitorizar CPK de 6/6 horas e gasimetrias frequentes (ver item 7. da fase aguda)
      4. Monitorizar mioglobinúria e prevenir a precipitação da mioglobina nos túbulos renais e subsequente insuficiência renal aguda. Promover diurese aumentada e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio
      5. Sinalizar o doente e familiares em consultas médicas específicas. Risco de desenvolver esta situação em novas ocasiões e prevenção para que não ocorram

Síndroma neuroléptica maligna

Define-se a síndroma neuroléptica maligna (SNM) como situação rara associada ao uso de fármacos antipsicóticos após período de latência de dias ou semanas.

As manifestações clínicas incluem classicamente quatro sinais cardinais:

  1. Rigidez muscular;
  2. Alterações do estado mental (confusão, agitação, catatonia, encefalopatia, coma);
  3. Hipertermia; e
  4. Instabilidade autonómica (taquicárdia, HTA lábil, diaforese).

Para o tratamento têm sido usados os fármacos dantroleno, bromocriptina e amantadina.

Síndroma serotonínica

Define-se como síndroma serotonínica (SS) uma situação em que se verificam sinais de excesso de neurotransmissão serotoninérgica pós-sináptica por acção de um conjunto de fármacos após período de latência curto (~24 horas).

Os fármacos que podem produzir tal efeito, entre outros, incluem: fentanil, dextrometorfam, L-triptofano, anfetamina, cocaína, ecstasy, fluoxetina, amitriptilina, nortriptilina, linezolid (inibidor da MAO), etc..

As manifestações clínicas incluem uma tríade clássica de anomalias: 1) do estado mental (agitação, delírio); 2) da função neuromuscular (hiperreflexia, clono, hipertonia, tremor); e 3) da função autonómica (hipertermia, taquicárdia, HTA, diaforese, vómitos, diarreia). Por vezes é confundida com SNM, sendo que o clono não é proeminente nesta última.

O tratamento inclui as seguintes medidas:

  • Ressuscitação circulatória com fluidos;
  • Fenilefrina (vasoconstritor de acção directa) para tratar a hipotensão;
  • Cipro-heptadina (antídoto para SS) por via nasogástrica na dose diária de 0,25 mg/kg/dia dividida em 4 doses (dose máxima diária de 12 mg dos 2-6 anos, e de 16 mg dos 7-14 anos).

Nos casos de SSHM o tratamento inclui também o dantroleno; uma vez que o dantroleno é diluído em água esterilizada, concomitantemente deve administrar-se soluto salino hipertónico em dose a calcular, a fim de se prevenir o rápido declínio da osmolalidade sérica, susceptível de originar edema cerebral. 

2. HIPOTERMIA

Definições e importância do problema

Hipotermia é definida pela verificação de temperatura corporal central inferior a 35ºC. A hipotermia tem implicações clínicas importantes pelas alterações fisiopatológicas sistémicas e lesões teciduais locais ou sistémicas que pode provocar em função do grau, obrigando a medidas terapêuticas específicas. Tal pode acontecer designadamente em crianças e jovens expostos a ambientes de clima frio com neve e gelo durante grande parte do ano, e em cenários de desportos de neve e de escaladas de montanhas no inverno. Para além da hipotermia de causa ambiental, são exemplos de lesões provocadas pelo frio: a frieira, e a necrose gorda ou paniculite.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Tendo em consideração o balanço térmico descrito em 1. torna-se importante salientar que existe maior susceptibilidade à lesão pelo frio em situações de alteração circulatória por doença cardiovascular, desidratação, anemia, toxicodependência, sépsis, e idades extremas (infância e velhice). Surge, assim, hipotermia como epifenómeno da falência dos mecanismos de manutenção da normalidade da temperatura central relacionados com diminuição da perda ou tentativa de produção de calor (designadamente por vasoconstrição, arrepio, contracção muscular). O Quadro 6 resume os principais factores etiológicos da hipotermia (acidental ou não, ambiental ou não), cuja gravidade se pode classificar do seguinte modo:

1) Ligeira (35-32ºC); 2) Moderada (< 32-28ºC); 3) Grave (< 28ºC).

Nos casos de hipotermia moderada ou grave, a água intra ou extacelular congela, o que interfere no funcionamento da bomba de sódio e conduz a ruptura da membrana celular. Ocorrem igualmente alterações estruturais em células sanguíneas podendo verificar-se microembolismo ou trombose. Como resultado de respostas neurovasculares (vasoconstrição/vasodilatação), poderão surgir curto-circuitos veiculando sangue para zonas menos afectadas, o que agrava as lesões iniciais. O espectro de lesões abrange sobretudo vasos, nervos e pele.

Ao abordar o tópico Hipotermia, torna-se oportuno citar sucintamente alguns exemplos de manifestações clínicas relacionadas com o efeito do frio no organismo (causa ambiental) – lesões locais provocadas pela exposição prolongada ao frio (não necessariamente associadas a hipotermia):

      • Forma ligeira de alteração dos tecidos da pele pelo frio, especialmente da face, orelhas, extremidades dos dedos das mãos e pés em indivíduos expostos a temperaturas ~15ºC (áreas brancas e frias). Poderão surgir nos 2-3 dias seguintes vesículas e descamação. (Frostnip)
      • Frieiras (eritema pérnio), ou lesões eritemato-vesiculares, por vezes ulcerando, em zonas expostas a temperaturas < 15ºC (orelhas, dedos das mãos e pés). Verifica-se, também, discreto edema, dor e prurido, admitindo-se que se originem por vasoconstrição. Podem durar enquanto se verificar a exposição ao frio.
      • Necrose gorda induzida pelo frio (paniculite), situação benigna traduzida por lesões maculares, papulares ou nodulares durando em geral entre 1 a 3 semanas. Esta afecção foi abordada anteriormente em capítulo próprio.
      • Destruição da pele ou outros tecidos (sofrendo congelação e podendo levar a gangrena) por exposição a temperaturas entre 6ºC e -15ºC. (Frostbite)

QUADRO 6 – Factores etiológicos de hipotermia

Perdas de calor aumentadas
(ambiental, iatrogénica/tratamento do golpe de calor, queimaduras, dermatose esfoliativa, vasodilatação periférica/etanol, beta-bloqueantes, etc.).
Produção de calor diminuída
(insuficiência neuromuscular, hipoglicémia, má-nutrição, falência endocrinológica/hipopituitarismo, hipotiroidismo, hipoadrenalismo).
Alteração da termogénese
(patologia do SNC, acção de fármacos no SNC, falência do sistema nervoso periférico/neuropatias/lesão da espinhal medula).
Outras situações clínicas
(lesões de politraumatismo, choque, sépsis, pancreatite, intoxicação pela água, disautonomia familiar).


Em função do grau de hipotermia surgem manifestações clínicas e respostas diversas, endócrino-metabólicas e ao nível de vários sistemas (SNC, cardiovascular, respiratório, renal e neuromuscular), considerando respectivamente os símbolos:

L = ligeiras; M = moderadas; G = graves.

L: arrepio, taquipneia, taquicárdia, HTA, íleo paralítico, hipocaliémia, alcalose, diurese pelo frio estado confusional, disartria, ataxia, hiperreflexia.

M: arrepio inconstante, hipoventilação, hipoxémia e acidose respiratória, bradicárdia, hipotensão, hipovolémia/IRA, prolongamento do intervalo QT, pancreatite, doença péptica, hiperglicémia, hipercaliémia, acidose láctica, oligúria, rigidez, hemoconcentração, hipercoagulabilidade, agitação, midríase, hiporreflexia.

G: ausência de arrepio, apneia, edema pulmonar, SDR, AESP, FV, assitolia, pancreatite, doença péptica, hipercaliémia, hiperglicémia, acidose láctica, rabdomiólise, trombocitopénia, CID, IRA, coma, pupilas não reactivas, estado símile morte cerebral.

Exames complementares

No doente hipotérmico são considerados exames complementares prioritários: ionograma sérico, glicémia, provas de função renal, gasometria arterial, hemograma completo, estudo da coagulação e exame toxicológico para doseamento de fármacos e etanol.

Tratamento

A actuação nos casos de hipotermia consiste nas seguintes medidas, a ponderar em função do contexto clínico de cada caso:

  • Reaquecimento passivo de todo o corpo, incluindo cabeça, com cobertor no sentido de reduzir as perdas por evaporação, em geral eficaz nos casos ligeiros (L) podendo incrementar a temperatura entre 0,5 – 4ºC;
  • Aquecimento externo activo através da aplicação de calor directo à pele, só efectivo se a circulação estiver intacta, permitindo o retorno, da periferia para a zona central do organismo, de sangue reaquecido; tal pode realizar-se através de cobertores aquecidos ou calor irradiante ou sob a forma de ar forçado aquecido a curta distância do doente; este método é eficaz em geral nos casos ligeiros e moderados (L,M);
  • Aquecimento interno activo através de ar humidificado e aquecido a 42ºC por via endotraqueal, associado a fluidoterapia IV com fluido aquecido a 42ºC em perfusão rápida controlada conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-2ºC/hora;
  • Aquecimento interno invasivo com “lavagem” através de instilação de soro fisiológico aquecido na bexiga, estômago e cólon (e, nalguns centros, também cavidades pleural e peritoneal), conseguindo-se elevação térmica ~1ºC-4ºC/hora.

Na maior parte dos casos as disritmias corrigem-se com o aquecimento.

Aplicam-se nos casos de hipotermia as medidas de ressuscitação ABC descritas no Capítulo próprio, com algumas especificidades:

  • Em geral torna-se prioritário promover o reaquecimento até, pelo menos, 30ºC salientando-se que as manobras poderão ter que ser muito prolongadas;
  • Embora o doente pareça clinicamente morto, os esforços de ressuscitação deverão continuar até se atingir, com as manobras de reaquecimento, a temperatura central normal;
  • Justifica-se a ressuscitação circulatória agressiva nos doentes hipotérmicos desidratados, tendo em conta a hipovolémia e a vasodilatação após reaquecimento.

Nota final – Dado que a hipotermia programada constitui uma medida terapêutica (efeito neuroprotector) em situações especiais, o leitor pode consultar o capítulo sobre encefalopatia hipóxico-isquémica na Parte Perinatologia/Neonatologia.

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